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If you are not located in the United States, you -will have to check the laws of the country where you are located before -using this eBook. - -Title: Estudos sobre criminalidade e educação - philosophia e anthropagogia - -Author: Manuel António Ferreira Deusdado - -Release Date: August 14, 2022 [eBook #68751] - -Language: Portuguese - -Produced by: Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team - at https://www.pgdp.net (This file was produced from images - generously made available by National Library of Portugal - (Biblioteca Nacional de Portugal).) - -*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ESTUDOS SOBRE CRIMINALIDADE E -EDUCAÇÃO *** - - - - - - ESTUDOS - SOBRE - CRIMINALIDADE E EDUCAÇÃO - - (PHILOSOPHIA E ANTHROPAGOGIA) - - POR - - FERREIRA-DEUSDADO - - Director da Revista de Educação e Ensino, antigo membro do Conselho - Superior de Instrucção Publica - - - Jus est ars boni et aequi. - - CELSO. - - Usa dizer-se que no mundo dos sentimentos os contrahidos - na escola são os mais firmes e duradoiros, a proposição ainda - ficará perfeitamente exacta, se incluir as idéas que ali se aprendem; - nenhumas outras teem predominio tão grande nem falam - ao espirito acompanhadas de tanta saudade. - - JAYME MONIZ. - - LISBOA - IMPRENSA DE LUCAS EVANGELISTA TORRES - Rua do Diario de Noticias, 93 - 1889 - - - - - AO MERITISSIMO JUIZ DE DIREITO - - O Ill.ᵐᵒ Ex.ᵐᵒ Sr. - - CONSELHEIRO DR. EDUARDO JOSÉ COELHO - - UMA DAS GLORIAS MAIS BRILHANTES E MAIS AUSTERAS - DA MAGISTRATURA PORTUGUEZA - - DEDICA - - ESTE MODESTO TRABALHO - COMO TESTEMUNHO DE SUBIDA CONSIDERAÇÃO, ANTIGA AMISADE - E INDELEVEL RECONHECIMENTO - - _Manuel Antonio Ferreira-Deusdado_ - - - - -I - - Uma these penologica do Congresso Juridico de Lisboa. O direito - criminal italiano na escola anthropologica. A taxonomia em psychologia - morbida e em anthropologia criminal. A divisão pedagogica da sciencia - penal - - -Em sessão de 1 de maio de 1889 no congresso juridico discutiu-se a -these n.ᵒ 19 que é do theor seguinte: - -«Em que sentido é urgente reformar os codigos penaes, na parte -relativa ás condições da responsabilidade criminal do agente do facto -incriminado e aos effeitos das circumstancias dirimentes, para que a -doutrina da lei fique de accordo com as affirmações da psychologia -contemporanea, da anthropologia criminal e da pathologia alienista, e -satisfaça ás necessidades de possivel segurança contra o crime?» - -É este assumpto profundamente complexo e deveras importante, porque -n’elle se encerra uma das questões mais debatidas e mais melindrosas -da psychologia humana. A these da responsabilidade é d’altissimo -valor ethico e social, porque importa o fundamento da moral e a base -do direito de punir. Todos os codigos penaes das nações civilisadas -assentam no principio da responsabilidade moral, incluindo o -proprio codigo italiano, no qual já influiram assás os trabalhos de -anthropologia criminal e de psychologia morbida. Os exageros d’esta -escola juridica, chamada anthropologica, são subversivos da ordem -social e attentatorios para a dignidade humana. Os seus principios -geraes quanto a irresponsabilidade não são novos; appareceram -na infancia da philosophia, envoltos de mistura com os systemas -theologicamente fatalistas, mas por fortuna nunca tiveram senão -um caracter theorico. O determinismo contemporaneo traz as mesmas -consequencias moraes e sociaes do fatalismo, mas ostenta uma fórma -de demonstração mais apparatosa e modernamente ornada com trajos -scientificos. A geração nova, durante as discussões do congresso, -mostrou-se determinista, porém as conclusões do parecer da secção penal -acceitam a responsabilidade, como se deduz do trecho seguinte: - -«As leis penaes devem attender, não só aos criminosos completamente -loucos, mas tambem áquelles, que, sem terem as faculdades intellectuaes -perfeitamente regulares, tambem não podem dizer-se completamente -irresponsaveis. - -Os criminosos completamente irresponsaveis pelo facto que practicaram, -e cuja liberdade é perigosa para a sociedade devem ser para sempre -recolhidos em um hospital ou asylo expressamente fundado para elles, -sem as formalidades do julgamento; mas depois de verificada a sua -irresponsabilidade por meio de peritos, e de ser ouvido o representante -do ministerio publico e a defeza, por despacho do juiz, do qual deve -caber sempre recurso para os tribunaes superiores. - -Os criminosos não completamente loucos, e portanto com mais ou menos -responsabilidade pelo crime que commetteram, deverão, depois tambem -de examinados pelos respectivos peritos, ser julgados e condemnados a -reclusão no asylo indicado por tanto tempo quanto deveria durar a pena -que lhes caberia, caso gozassem d’um funccionamento perfeito das suas -faculdades mentaes.» - -Nem todos os membros do congresso acharam este parecer satisfactorio, -o que motivou divergencias no seio da secção e depois na assembléa -plenaria. Um grupo de congressistas apresentou uma proposta tendente a -serem substituidas pelas seguintes, as conclusões do relatorio sobre a -these 19.ᵃ: - -«1.ᵃ É urgente reformar os codigos penaes, prescrevendo-se n’elles -que o delinquente affectado de doença mental, que por um processo -especial fôr julgado irresponsavel, mas perigoso, seja recolhido n’um -estabelecimento adequado por tempo indefinido, conforme a natureza -da sua affecção, não podendo d’elle sair sem precedencia d’um novo -processo, em que intervenham as mesmas entidades e pelo mesmo modo que -no da reclusão. - -2.ᵃ Para que o processo, a que deve ser submettido o delinquente -affectado ou suspeito de doença mental, offereça todas as garantias, -devem n’elle interferir, além dos juizes e representantes do ministerio -publico, peritos alienistas e os interessados pelo lado do delinquente -e da parte offendida, quando esta não possa; devendo a resolução ser -confirmada pelos tribunaes da 2.ᵃ instancia, podendo ainda levar -recurso para os tribunaes de revisão. - -3.ᵃ É indispensavel organizar convenientemente o serviço medico legal e -crear juizes instructores do processo. - -(Assignados) Jeronymo da Cunha Pimentel, Cesar Silio y Cortés, Antonio -Azevedo Castello Branco, João Jacintho Tavares de Medeiros, Caldazo -Monzano. - -Tem o voto dos srs. Alberto de Sousa Larcher, João A. Sousa Queiroz, A. -Arthur de Carvalho.» - -Houve quem sustentasse integralmente os principios classicos do direito -de punir, baseado sómente no livre arbitrio, não admittindo por tanto a -existencia de criminosos loucos nem distincção entre criminosos loucos -e criminosos meio loucos. - -Estes congressistas foram os srs. Pinto Coelho, Xavier Cordeiro, Torres -Campos, e dr. Avelino Calixto. - -O sr. Pinto Coelho formulou com grande nitidez o argumento: ou o -accusado é responsavel pelo acto que commetteu e n’essa hypothese -é um criminoso que a justiça precisa punir, ou é irresponsavel, é -louco, e então temos uma questão exclusivamente da alçada do direito -civil, que não compete ao direito penal porque não existe crime. O sr. -Pinto Coelho acceita as conclusões do parecer da commissão, todavia -não como principio novo, visto que de ha muito esse principio figura -na legislação do nosso paiz. Não crê que em sciencia juridica haja -revoluções, mas evoluções. - -Os srs. Antonio Azevedo Castello Branco, Jeronymo Pimentel, Osorio -Sarmento, Taladriz, combateram a existencia do livre arbitrio e -propugnaram o determinismo com os argumentos tirados da Escola -anthropologica, e negam como principio geral a responsabilidade do -delinquente. Parece que a sua doutrina consiste em estudar o crime pelo -que elle significa, como offensa á sociedade, e graduar a applicação -das penas conforme a gravidade da offensa, visando até a eliminação do -offensor. Como póde verificar-se em face da historia do direito penal, -esta theoria não é novissima, é velhissima. - -Ao mesmo tempo que parte da jurisprudencia indigena defende tal -criterio do direito de punir, o que equivale á passagem d’uma esponja -pelo que ha de mais elevadamente puro na especie humana, contradiz-se -ingenuamente, protestando contra os ataques dos que professam o -sentimento da liberdade e defendendo o principio da lei moral e os -beneficios da acção educativa e correccional. - -Os trabalhos de Lombroso, Garofalo, Marro, Navarra, Beltrani Scalia, F. -Puglia, Maudsley, Ch. Feré, Tarde, Adolphe Prins, as discussões sobre -o codigo penal italiano como os _Studi sull ultimo progetto del nuovo -codice penale italiano per Innocenzo Fanti; Les Études sur le nouveau -projet de code penal d’Italie_, por Victor Molinier, chegaram ás mãos -d’alguns juristas estudiosos portuguezes entre os quaes se distingue -o sr. Antonio Azevedo Castello Branco, que tem feito uma infatigavel -propaganda da anthropologia criminal italiana, cujos primeiros -symptomas já se manifestaram no congresso juridico. - -Muitos dos jovens bachareis recentemente saidos da nossa faculdade -juridica crêem a metaphysica um termo insultuoso, um verdadeiro doesto -philosophico; dizem-se depois da leitura d’um livro de propaganda, -adeptos calorosos da negação absoluta do livre arbitrio e das outras -conclusões exageradas da pathologia criminal. A verdadeira causa -d’esta situação mental nasce da falta de estudo psychologico e da -carencia de vigorosa disciplina no conhecimento das outras sciencias -moraes. Inclinam-se pois para a escola avançada, porque lhe dá o tom -de espiritos modernos e de audazes revolucionarios, assim como por -ora em philosophia se dizem _positivistas comteanos_, suppondo essa -escola ainda uma novidade, quando é um fossil pouco interessante na -fauna da sua epoca e já sem representantes na nossa fauna dominante. -A perissologia, com que a adornam, amesquinha-a ainda mais. Póde -applicar-se-lhe o conceito horaciano: _Solve senescentem_. - -O homem não é um agente moral se não for responsavel pelas suas acções, -e não é tal se não for susceptivel de obrar ou não obrar conforme a uma -regra de dever que está prescripta na consciencia. A possibilidade -da moralidade, depende pois da possibilidade da liberdade; porque se -o homem não é um agente livre, não é o auctor das acções que pratica, -e não tem conseguintemente responsabilidade, e nem personalidade -moral[1]. Para demonstrar estes principios não se faz mister recorrer -á intervenção divina, basta o raciocinio operando sobre os elementos -fornecidos pela psychologia humana. - -O direito é um principio puramente humano, que se deduz da liberdade e -da sociabilidade, assegurando-lhe ao mesmo tempo o reconhecimento e a -protecção. - -As escolas philosophicas estão ainda longe d’um accordo em quanto á -determinação do fundamento, sobre o qual repousa o direito de punir. -Para uns tem origem na utilidade publica, para outros na religião, -que o considera como uma consequencia do principio de expiação, do -principio da justiça absoluta que exige a retribuição do mal pelo mal; -para outros como uma applicação do direito de legitima defeza e até -como uma fórma da caridade que pede, não o castigo, mas a emenda do -culpado.[2] - -Victor Hugo nos _Miseraveis_ defende a these de que a sociedade, -sobretudo, é a responsavel pelos crimes que os seus membros -commetteram, porque tudo é fructo das instituições e das opiniões, as -quaes, para nós, representam a ordem social. - -Beccaria interrogou o seu espirito sobre o fundamento do direito de -punir e encontrou a base na _utilidade commum_, na necessidade da -_conservação social_, acompanhando todavia esta affirmação da confissão -formal de que era mister que o fito desejado fosse conforme com as -exigencias da lei moral. A verdade é que o direito penal é fundado, não -sobre a ordem de idéas assignaladas por Beccaria, mas sobre a noção -superior de justiça applicada pela sociedade, na medida do que ella crê -necessario para a sua conservação[3]. - -Rousseau no _Contracto social_ tambem sustentou que o direito de punir -saiu do direito de defeza, theoria sustentada por Locke. Todas as -theorias contemporaneas teem o seu germen na Historia da Philosophia. - -No direito criminal antigo não havia distincção entre a violação das -prescripções divinas e humanas; punia-se o delicto e o peccado. A idéa -d’uma offensa contra a divindade fez surgir as primeiras leis penaes; -a idéa d’uma offensa contra o proximo fez apparecer as segundas, mas -a idéa d’uma offensa contra o Estado, ou a collecção de cidadãos não -produziu primeiro um direito criminal. Parece que esta idéa só apparece -regularmente na Grecia, e em Roma subiu até á exageração. - -Hoje o encargo mais difficil no juiz consiste em distinguir até que -ponto o accusado seja moralmente culpado, visto como as leis modernas -evitam as definições n’esta materia. Deixam ao jury ou ao julgador o -cuidado de decidir.[4] - -A interpretação da idéa de direito e a suavidade ou o rigor da pena -dependem do desenvolvimento intellectual da sociedade, posto que o -caracter do principio seja invariavel em todas as condições de tempo e -de espaço. - -Era legitima a pena de morte nos tempos em que a escravidão foi -considerada como uma instituição de direito geral das nações. Era -igualmente legitima nos sacrificios humanos praticados nas idades -sacerdotaes. - -A pena, diz Bossuet, está na ordem, porque ella mette na ordem aquelles -que se desviaram d’ella. De feito a palavra _delicto_ vem do verbo -latino _delinquere_ «deixar», «abandonar»; o delicto etymologicamente -é pois um desprezo da regra, ou o que é mais expressivo uma falta -contra a regra. Os codigos penaes definem delicto em geral toda a -infracção, seja de que natureza fôr, que caia sob a alçada da lei -penal.[5] Mas não basta para justificar a intervenção da lei penal -que a acção commettida apresente os caracteres exteriores d’um -delicto; é indispensavel que o auctor a tenha commettido em plena -posse das suas faculdades intellectuaes e moraes. É o que se chama em -nomenclatura juridica imputabilidade e em ethica responsabilidade; -sem este predicado o delicto não existe; em vez d’uma acção a punir -ha uma desgraça a lamentar.[6] É n’estas condições que o criterio da -defeza social tem o seu papel. O agente do acto é um ser irresponsavel -e perigoso para a utilidade commum? é isto que resta determinar com -precisão. Demonstrado scientificamente, sem hypotheses vagas, que este -individuo é um ser nocivo, uma ameaça permanente, cumpre á sociedade o -direito e o dever de sequestral-o. Todavia ninguem justamente ousará -chamar-lhe um criminoso, é apenas uma fera. - -A escola classica inspira-se nos principios que proclamam a dignidade -do homem e a responsabilidade do seu destino; reconhece todavia -muitos principios acceitaveis na escola utilitaria, porque ella no -seu criterio tem um mesmo dogma--o da necessidade do castigo. N’essa -ordem de idéas, rejeita, é claro, os exageros dos utilitarios ou -dos sentimentaes, que declaram todos os delinquentes enfermos e -irresponsaveis, porque seria fomentar a impunidade, e fomentar a -impunidade é o mesmo que multiplicar os crimes. - -O nosso distincto publicista sr. Oliveira Martins escreve: - -«Novos doutrinarios veem affirmar _ex cathedra_, não só que a sociedade -não tem o direito de punir, mas que o criminoso é apenas um enfermo. -Onde está o livre arbitrio? dizem. Não ha vontades deliberadas: -tudo obedece a um determinismo cego. Um é victima do atavismo ou da -hereditariedade, outro é victima do desejo, outro da allucinação. -Em vez de cadeias, hospitaes; em vez de forca, hydrotherapia. -Evidentemente, tudo é condicionado n’esta vida de relação de que nós -proprios somos apenas um aspecto; mas evidentemente tambem sob pena de -um cahos absoluto, a determinação da responsabilidade só póde dar-se -quando se formule a equação entre o acto e o motivo determinante. -N’estes termos, e só n’estes termos, a questão metaphysica da liberdade -póde trazer-se para o foro pratico da justiça. - -E não ha duvida que o criterio classico está prejudicado. Se a -medicina de hoje diz que ha doentes e não doenças, tambem a justiça -deve dizer que ha criminosos e não ha crimes. Os quadros systematicos, -organisados abstractamente são tão inacceitaveis na nosologia como na -criminologia. É precisamente o que os juristas reconhecem, dando cada -vez um papel mais dicisivo ás circumstancias accessorias, attenuantes -ou aggravantes, e pondo acima do antigo mytho de Themis, cega como tudo -o que é absoluto, o juizo de facto, em que o jury procede humanamente, -isto é, inductivamente. Não póde, porém, ver-se n’isto a negação do -direito de punir--na mais lata accepção da palavra. A sociedade não se -defende apenas, nem se vinga, como nos tempos barbaros. A vingança -fez-se justiça. Punição traduz-se por protecção. Julgar, proteger e -castigar--eis a suprema funcção d’este ser abstracto, em cujo seio -vivemos e fóra do qual nos degradariamos regressando aos primordios -obscuros da historia. Se a sociedade não póde punir, força é que o -individuo se defenda e se vingue. E que é isto senão a volta ao talião -barbaro--exactamente á doutrina que o anarchismo prega e pratica? - -Ha, por tanto, acima das doutrinas desvairadas que endoidecem as plebes -fanatisadas, doutrinas inconsequentes que uma sciencia, incompleta por -ser fria e secca diariamente prega, e de cujas ultimas conclusões tira -a allucinação dos energumenos. E é por isso que a instrucção por si só -não consegue mitigar a criminalidade, embora a civilisação altere a -proporção e a natureza dos crimes. - -Não basta falar á intelligencia analytica, é mister comprehender a -synthese chamada povo, na sua realidade positiva, nos seus sentimentos -e nos seus instinctos de justiça; é necessario affirmar de um modo -categorico a auctoridade social e o direito de punir, para que cada -qual veja e venere sempre acima de si proprio esse outro ser maior, -mais nobre, que se chama--todos.» - -O criterio do direito classico não se acha prejudicado pelos ataques -das escolas contemporaneas, porque elle reconhece quando applica -justiça, como no systema da utilidade publica, acima do individuo -o respeito por esse outro ser maior, que se chama--todos. A escola -utilitaria baseando-se no determinismo defende a sociedade, mas elimina -o sentimento de justiça. Póde aspirar a defender a collectividade, -mas nunca a intimidar, a corrigir, ou a regenerar o criminoso. A idéa -do castigo, na escola classica, reclama antes da satisfação dada á -sociedade, a idéa d’uma satisfação mais pura, dada á justiça. «O -castigo, diz Kant, deve justificar-se em completo, _independentemente -das suas consequencias_, por considerações tiradas do procedimento -d’aquelle que o soffre. Nada de similhante é possivel desde que não -existe já a liberdade. - -O que succede então? Impellido pela fatalidade, um homem commette um -assassinio, impellida pela mesma fatalidade, a sociedade prende-o e -mata-o. Se este homem fosse o mais forte a sua resistencia á sociedade -era legitima, porque o mesmo motivo que armou a sociedade contra elle, -a necessidade de defender-se, justificava a sua rebellião. - -Das duas partes o direito era egual, a justiça egual. O seu unico -prejuizo é ter sido um só contra todos. Na verdade pois não ha no -determinismo outra justificação possivel para a pena senão esta: «a -razão do mais forte é sempre a melhor.» Quanto á justiça entre agentes -moraes subsiste um conflicto brutal de forças fataes, em que o mais -poderoso esmaga o mais fraco, mas onde não ha direito em nenhum dos -lados. Se, pelo contrario, se admittir que a sociedade punindo, pratica -um acto de justiça, se quizermos, como manda Kant, que o criminoso, -em vez de se rebellar contra o mal que o fere, «confesse elle mesmo -que mereceu a sua punição, e que a sua sorte se adapta ao seu -procedimento,» é mister tambem reconhecer a existencia da liberdade.[7] - -Nos homens extremamente inveterados no vicio, a consciencia depois -de cançada de ultrages e de desprezos, cala-se e o sentimento moral -desapparece. O remorso extingue-se como a dôr prolongada, a liberdade -subsiste ainda, mas quasi inactiva, como a faculdade visual quando -uma espessa cataracta intercepta os raios luminosos que outr’ora -atravessavam os olhos. Este criminoso, se não é já livre em tal -estado, foi-o quando iniciou a escura senda do crime, porque todo o -acto psychologico antes de se tornar habitual foi voluntario. Esta -circumstancia justifica o cabimento da punição. Não succede o mesmo se -o delinquente é instinctivo, se a tendencia para o mal é congenita, -porque n’este caso o crime não existe. Este monstro está para o senso -moral como o cego e o surdo de nascimento estão para a luz e para o -som. Não ha pharol educativo que lhe illumine a intelligencia, nem -penitenciarias que lhe regenerem o coração adormecido. A difficuldade -está na demonstração evidente da existencia d’este _homo criminalis_. - -Ha duas theses sobrepostas e contradictorias no _Homem delinquente_ de -Lombroso. A primeira usada no começo dos seus estudos--a do criminoso -aproximado do selvagem primitivo, do crime explicado pelo atavismo -e pela hereditariedade; e a segunda, que na ultima edição do livro -coexiste com a primeira,--a do crime-loucura. Ellas alternam-se na -obra e pretendem reciprocamente auxiliar-se. A contradicção todavia -é obvia como lh’o demonstra Tarde e H. Joly. A loucura é um producto -da civilisação, rara nas classes indoutas e quasi desconhecida entre -os selvagens. Portanto, se o criminoso é um selvagem não póde ser -um louco, do mesmo modo se é um louco não póde ser um selvagem. Das -duas theorias é preciso optar por uma, a primeira é mais seductora, -mais intelligivel e mais conforme com os principios biologicos do -transformismo.[8] Não póde negar-se o merito e o notavel valor -dos estudos da escola anthropologica italiana, que elles proprios -denominam _escola penal positiva_, especialmente no que diz respeito -ás origens do crime, aos caracteres do criminoso reincidente e ás -origens hereditarias. Estuda o delinquente como o zoologo estuda um -animal e este methodo de naturalista tem sido applicado com vantagem, -na taxonomia de Ferri, aos delinquentes da 1.ͣ categoria e aos da 4.ᵃ, -isto é aos criminosos natos e aos alienados. - -O alvo a que mira, nas reformas juridicas, a escola penal positiva -é substituir pela responsabilidade moral a responsabilidade social, -fundada sobre a utilidade geral. Ora as duas não formam senão uma, -porque a responsabilidade chamada social, prescripta nos codigos, -está comprehendida nos preceitos da moral. A ordem moral, como diz -Innamorati, excede mas abrange a ordem social, como um pequeno circulo -n’um circulo maior. - -O verdadeiro direito de punir não deve preoccupar-se com a excitação -publica, nem com a opinião: julga o criminoso em relação ao delicto -e á ordem moral e dispensa as outras considerações extranhas. Émile -Beaussire, no seu ultimo livro _Principes du droit_, aventa uma -concepção original e funda o direito de punir sobre o _dever de ser -punido_. É acção do moralista em toda a sua integridade. - -Topinard, n’um celebre artigo da _Revue d’Anthropologie_, combateu -a hypothese de Lombroso do _crime atavismo_, assim como a do _crime -loucura_, defendendo com valiosos argumentos a hypothese do criminoso -considerado _profissional_. Feré não admitte os typos profissionaes e -combate com dialectica vigorosa a explicação atavica do delicto, mas -admitte a explicação pathologica; sem todavia se ligar á escola d’alem -dos Alpes, filia-se na escola psychopathica de Morel. A criminalidade -nativa é para elle uma fórma da degenerescencia inferior, porque nunca -se associa ao genio. Como se vê a criminologia revolucionaria está -ainda no periodo hypothetico da sua constituição como sciencia. - -A velha affirmação de que o crime e a loucura são irmãos gemeos, tem -sido batida em brecha até ao ultimo reducto. Os loucos são seres -isolados, que vivem n’um mundo á parte. As suas concepções não teem -convivio com as concepções dos outros. É um ser accentuadamente -individual, que vive a vida interior do seu delirio. - -Os alienados, diz o dr. A. S. Taylor, não teem nunca cumplices nos -actos que commettem, em quanto que o criminoso é um ser sociavel -que se concerta com os outros, fazendo do latrocinio uma profissão. -As associações de malfeitores apparecem e multiplicam-se por -toda a parte. Nos actos do criminoso existe sempre no crime o -encadeamento das causas moraes, em quanto que no louco ha soluções -de continuidade inconscientes. Nenhuma pessoa familiarisada -com os estudos da psychologia morbida confunde nas suas fórmas -geraes os actos do delinquente com os actos dos epilepticos, dos -dipsomaniacos, kleptomaniacos, dos pyromaniacos e de outras fórmas -nosologico-mentaes. Se todos os criminosos fossem natos ou alienados, -isto é, irresponsaveis segundo a classificação de Ferri, o mais -suave e humanitario direito repressivo seria a eliminação; mas as -penitenciarias aspiram á correcção e á morigeração dos delinquentes, -o que implica a crença na liberdade quanto á maioria dos delictos. Em -nenhum caso todavia o nosso espirito admitte a pena de morte, só por um -motivo--é uma pena irreparavel. - -Ha individuos que na pratica do crime, ou sejam instinctivos ou -loucos, são destituidos por uma anomalia psychologica do sentimento -ethico-juridico. Ninguem com boas razões deixará de acceitar, que -estes anomalos, posto que extranhos á acção da justiça, devem ser -sequestrados perpetua ou temporariamente do convivio social porque são -perigosos para a segurança publica. Proclamar porém em nome de qualquer -hypothese todo o delinquente irresponsavel é uma phantasia e uma -iniquidade, que nenhum codigo positivo póde acceitar. - -Escreve o publicista a que já nos referimos: - -«Perversos são os degenerados: essa legião escura de bandidos que -acampa no seio das sociedades cultas, como as hordas de zingaros, e em -que a ferocidade das edades remotas se transmitte por atavismo ou por -hereditariedade. São esses que Lombroso, o grande naturalista do crime, -considera como restos miseraveis das raças mongoloides, os finnios que -ficaram esmagados sob os stratos successivos da população aryana da -Europa. N’essas tribus obscuras, envenenadas por um satanismo organico, -ha glorias e orgulhos, ha servos e patriarchas, ha dynastias e ha -heroes. O céo que nós vemos azul, vêem-no elles vermelho de sangue; e o -calor doirado do sol não lhes excita piedade, senão um borbulhar ferino -de instinctos bestiaes. De homens teem apenas o aspecto. Barbaros, -mas barbaros abastardados no meio da civilisação, perderam a nobreza -ingenita da vida natural. São os auctores dos attentados medonhos: -os parricidios (tão vulgares nas edades primitivas) os morticinios -de familias inteiras, como na tragedia de Mattos Lobo, o assassinato -a frio, como em Diogo Alves que encheu de pavores a nossa infancia, -o decepamento dos cadaveres, com os braços tintos em sangue os olhos -esgazeados, a face imberbe; a fronte achatada e na bocca um _rictus_ -demoniaco. - -O exterminio é o unico recurso contra essa casta em que os instinctos -humanos, não podendo envolver, apodreceram. São féras; e se a -hereditariedade é, como os especialistas affirmam, um facto comprovado, -a morte é tambem sem duvida o processo mais humanitario. - -Mas esta cathegoria de criminosos, qualquer que seja a sua origem e o -seu recrutamento, não é decerto exclusiva, nem talvez predominante. -O grosso exercito do crime compõe-se das victimas do desejo. São os -que na ladeira escorregadia da existencia claudicaram uma vez para -se não levantar mais. É a gente faminta que diariamente accorda sem -saber a que mesa se sentar; a gente miseravel tiritando com frio nas -longas noites do inverno; são os incontinentes que o espectaculo do -bem-estar azeda; são os revoltados que no seu vicio encontram sancção -á ociosidade; são as mulheres que, sacrificada a pureza no altar de -alguma illusão afogam os filhos, ou para os sustentar se fazem ladras; -são todos os simples, desde o desgraçado que rouba um pão para matar -a fome, até ao velhaco, ladrão por habito, por arte, por vaidade ou -por capricho; desde o miseravel vestido de andrajos e analphabeto, -até ao _dandy_ jogador e falsario; desde a meretriz ladra dos beccos -enlameados, até á que opera nos salões entre lustres e chrystaes. O -crime egualisa tanto como a morte. - -O homem é fraco, a vida é dura, a pobreza cruel e a sociedade -madrasta. A legião dos engeitados que toda a colonia humana expelle de -si; essa eterna léva de parias com que outr’ora se formavam Romas, eis -ahi onde se recruta a peonagem do crime. É a espuma cuspida pelas ondas -agitadas da sociedade. - -Todos esses que um dia escorregaram no plano inclinado da vida ao -inverso, pendem fatalmente para o inferno vermelho onde se agitam as -feras. Pela ociosidade chega-se ao roubo, pelo roubo ao assassinato. -Ha outros caminhos, mas esta é a vereda mais trilhada. O homicidio não -é para elles uma fatalidade organica, nem uma embriaguez de sangue; -é sempre uma consequencia imposta pelas circumstancias. A esta plebe -profunda, espessa, fertil, como as alluviões da Terra-Negra, é que a -sociedade, sob pena de morte, tem de applicar a charrua possante da -protecção e da caridade, para lhe dar ar, desinçando-a das grammas -parasitas. É para ahi que todas as instituições salvadoras da infancia, -todas as instituições protectoras da adolescencia: todo o amparo ás -mulheres, todo o escrupulo dos tribunaes, se hão de voltar com esse -mixto de carinho e firmeza, de integridade e amor que são o segredo da -ordem social. Porque são estes os criminosos regeneraveis.» - -É innegavel para estes o influxo salutar da instrucção intellectual e -moral, do ensino profissional e de todas as instituições beneficas que -possam melhorar a sua condição. - -Os discipulos da escola anthropologica criminal italiana pretendem já -reformar os codigos penaes quanto ás idéas e quanto á linguagem. Tudo, -em seu entender, está velho, erroneo e anachronico. É para notar, que -nem na anthropologia criminal, nem na nosologia mental ha classificação -rigorosamente scientifica dos delinquentes, nem dos alienados. As que -existem são provisorias. - -Estas sciencias acham-se ainda no campo do recolhimento das -investigações e da explicação hypothetica. Não se citam dois alienistas -ou dois anthropologos d’accordo no que ha de mais essencial e de mais -fundamental. Para haver sciencia é mister que se dê uma organisação -systematica de conhecimentos, tendo como condição a unidade e a -harmonia. Emquanto os productos multiplos das investigações e os -modos de ver dos escriptores, se contradizem, não temos sciencia -rigorosamente constituida, temos apenas materiaes para uma futura -synthese. - -Até hoje ainda os alienistas não conseguiram elaborar uma taxonomia -verdadeiramente scientifica das doenças mentaes. O seu desiderato é -com a hypothese das localisações cerebraes, baseada na anatomia e na -psychologia morbida, organisar uma classificação que, para a escola -materialista, seja a unica scientifica. Ora o estudo funccional e -somatico do cerebro não contêm conhecimentos completos nem seguros. Das -funcções intimas cerebraes nada se conhece; mas ainda assim assentam-se -sobre ellas explicações phantasticas. As formas nosologico-psychicas -até hoje estabelecidas assentam nas observações symptomatologicas -e nos dados fornecidos pelas perturbações psychologicas. E d’estas -adopta cada medico uma differente. Confrontem-se para prova as dos -medicos allemães, francezes e inglezes. Das classificações francezas -comparem-se a de Pinel com a de Esquirol, a da commissão nomeada pelo -congresso de Antuerpia em 1885 com a de Magnan; a de Morel com a de -Ball. São por ora repartições ou arrumações contradictorias e de modo -algum classificações scientificas. - -Para bem evidenciar a imperfeição d’estas tentativas de classificação, -basta coteja-las com as classificações chimicas, geologicas, botanicas, -zoologicas, etc. Em anthropologia criminal não estamos a este respeito -mais adiantados, como passamos a ver. - -Escreve o sr. A. d’Azevedo Castello Branco:[9] - -«Uma das theses propostas ao 1.ᵒ congresso de anthropologia criminal -foi a seguinte: Em que cathegorias se devem dividir os delinquentes -e quaes são os caracteres essenciaes, organicos e psychicos que os -distinguem? Os egregios anthropologistas Lombroso, Marro e Ferri -apresentaram os seus relatorios, que, na essencia, são conformes no -reconhecimento de certas variedades de criminosos. A classificação -de Ferri, que é a mais desenvolvida, comprehende: 1.ᵒ O delinquente -nato ou instinctivo, que se distingue pela _falta congenita do senso -moral_ e pela _imprevidencia_ das consequencias das suas acções. -Os assassinos e ladrões são os typos mais communs d’esta classe. A -falta de senso moral denuncia-se pela insensibilidade manifestada -perante os soffrimentos e os damnos causados ás victimas e perante -os seus proprios soffrimentos e dos cumplices, e denuncia-se -tambem pelo cynismo ou apathia do criminoso no correr do processo -e nas Penitenciarias, facto que determina muitos outros symptomas -psychologicos secundarios, como a nenhuma repugnancia á ideia do -delicto e falta de remorsos depois de perpetrado. Da imprevidencia -resultam as manifestações imprudentes anteriores e posteriores ao crime -e a indifferença pelas penas comminadas na lei.--2.ᵒ O delinquente -por impeto d’uma paixão social, como o amor, a honra, etc. Este, -relativamente ao senso moral, apresenta um quadro psychologicamente -opposto ao do criminoso instinctivo. Revela imprevidencia tambem, -esta, porém, não nasce de uma falta hereditaria de senso moral, mas -sim da momentanea anesthesia d’este sentimento.--3.ᵒ O criminoso de -occasião, que é caracterisado pela _debilidade do senso moral_; mas -este pode converter-se no criminoso habitual, isto é, n’um individuo -que faz do delicto a sua industria, em consequencia da obliteração -progressiva do senso moral e das circumstancias menos favoraveis á -sua existencia.--4.ᵒ O criminoso alienado. Anthropologicamente é -identico ao delinquente-nato, como nos casos de loucura ou imbecilidade -moral e epilepsia, e n’outros casos differe, não só pela desordem -intellectual, como por muitos symptomas psychologicos. A _precocidade_ -e a _reincidencia_ servem para distinguir as tres primeiras variedades. -O criminoso instinctivo é sempre precoce, e pode, ou não, reincidir -consoante a duração da pena que se lhe applique. O criminoso por -habito é frequentemente precoce e reincidente chronico. Todos os -delinquentes, qualquer que seja o seu typo anthropologico, apresentam -este caracter psychologico commum:--uma anormal força impulsiva para os -actos criminosos, que provêm de uma degeneração hereditaria, ou de uma -condição psycho-pathologica successiva, ou de uma perturbação psychica -transitoria, mais ou menos violenta. Entre estes varios typos não ha -uma separação absoluta, e por consequencia existem typos intermedios. -O congresso acceitou o relatorio de Ferri nas suas partes essenciaes, -como foi declarado por Benedikt, que apresentára a classificação -seguinte: 1.ᵒ _o delinquente accidental_; 2.ᵒ _o profissional_; -3.ᵒ _o delinquente por molestia, por intoxicação temporaria ou -permanente_; 4.ᵒ _os delinquentes degenerados_. Esta classificação é -substancialmente identica á de Ferri.»[10] - -No _Anomalo, gazzetino antropologico, psychiatrico, Medico-legal_ -do dr. Angelo Zuccarelli di Napoli, numero de abril ultimo, vem -um trecho d’uma lição de A. de Bella, illustre advogado, feita -em Nicotera no seu curso de Sociologia sobre a classificação dos -delinquentes de Cesare Lombroso. Pergunta Bella: «Os delinquentes teem -na sociedade importancia identica, igual, analoga, dissimilhante? -não, senhores. Diversas são as causas do crime e por isso a sciencia -indica uma classificação dos criminosos. Pode acceitar-se a seguinte: -a) delinquentes loucos; b) delinquentes natos, incorregiveis; c) -delinquentes habituaes; d) delinquentes por paixão; e) delinquentes -occasionaes». Tal é a norma de dividir os criminosos para a maior parte -dos anthropologos criminalistas de Italia. A estas porém, prefere -Bella outra, a qual em seu parecer tem vantagens sobre todas as que a -sciencia até hoje perfilhou. É a seguinte: - -«A atypia e a anomalia são no fundo sempre uma degeneração e por -isso pode haver delinquentes: a) por degeneração congenita; b) por -degeneração adquirida; c) por psychonevrose; d) por habito; e) por -semidegeneração congenita; f) por occasião. - -A degeneração congenita é: a) physiologica ou atavica; b) teratologica -ou atypica; c) pathologica. O atavismo é _prehumano ou humano_. O -delinquente por degeneração congenita nada deve ao ambiente, é producto -exclusivo do organismo. O ambiente influiu sobre o organismo dos -seus antepassados que lhe communicaram as proprias degenerações, mas -_pessoalmente sobre elle_ o mundo externo não exerceu nenhuma acção, -porque o criminoso traz de nascença, impressos em todos os orgãos e -sobretudo no cerebro os signaes biopathologicos da sua triste natureza. -Sociologicamente distingue-se dos outros homens pela ausencia de senso -moral, anthropologicamente não lhe faltam os signaes distinctivos. -Nem todos os que carecem de senso moral podem dizer-se delinquentes. -O pae de familia, que consome na taberna o salario do seu trabalho, -deixando os filhos e a mulher desfallecendo na miseria por não poderem -satisfazer as primeiras necessidades da vida, não tem certamente -completo o senso moral, e o juiz que sem o minimo remorso, absolva em -má fé um reu ou em pessima fé condemne um innocente, apresenta com -certeza muitas deficiencias no seu _senso moral_. Nem um nem outro -podem dizer-se delinquentes, ainda que ambos sejam, sem duvida, -individuos um pouco degenerados e ethicamente maus; nem aquelle -nem este é juridicamente reu. No entretanto a sua degeneração pode -muito bem ser adquirida. Quando uma degeneração physiologica é assaz -manifesta ha em vez d’um delinquente no rigor da palavra um enfermo e -este pode ser um ladrão ou um incendiario, ou um homem inclinado ao -sangue e a outros crimes. Esta especie de degeneração pode dizer-se -tambem atavica, e os que a padecem em parte apresentam um ou muitos -signaes degenerativos. Se não são completamente curaveis, são talvez -susceptiveis d’alguma melhora. Porem o verdadeiro delinquente nato anda -sempre atacado de degeneração teratologica ou atypica. Não é um homem -mas um monstro e vive em absoluta pobreza de senso moral. É incapaz de -qualquer melhoramento, e a sua vida ordinaria acaba no assassinio ou -nos crimes, sem fito, sem nexo, sem attenuantes. - -Existe uma terceira especie de degeneração congenita--a pathologica. Os -epilepticos natos pertencem a esta cathegoria de delinquentes, e podem -curar-se por meio das suggestões hypnoticas ou com a trepanação do -craneo, do qual se extrairá um bolbo em que talvez resida a doença.[11] -Os degenerados por atavismo podem com o tempo vir a ser n’um ambiente -enfermo, degenerados por atypia, e então tornam-se incapazes tambem de -regeneração.» - -Para que se estabeleça qualquer classificação scientifica, uma -das funcções indispensaveis do processo synthetico, precisa-se de -definições claras e divisões perfeitas, tanto das ideas como dos -termos. Ora a anthropologia criminal ainda está na phase descriptiva -que é a infancia da sciencia; não tem nomenclatura severa, nem -definições exactas, nem taxonomia uniformemente acceita, não passa -por emquanto d’um valioso repositorio de factos para serem depurados -no crisol da discussão e na arena da critica puramente especulactiva. -Mas pretenderem já os seus sectarios, arrebatados por conjecturas -imaginosas e seductoras, trazer estas soluções hypotheticas para -o campo pratico da reforma completa da administração da justiça, -parece-nos por ora temeridade. Certamente nenhum homem de estado, -reflectido e circumspeto, quando se trate da melindrosa e alta -funcção da justiça social, quererá, por fortuna, assumir a grave -responsabilidade de substituir o direito tradicional, que tem por -base a responsabilidade juridica do delinquente, pelo criterio da -vindicta publica, que é um sentimento tão mesquinho, tão ignobil, como -a vingança ou como o rancor individual nas raças civilisadas ou nas -tribus selvagens. A justiça social que deve ser a superior encarnação -da consciencia moral, acaso póde rebaixar-se, para defender a ordem -juridica, á ignominia d’uma aleivosa vingança em que são todos contra -um? - -É obvio, como já o affirmamos em outra parte, que admittimos o -criterio da defeza social para os homens perigosos, a quem chamamos -porem delinquentes e não culpados. Para estes exigimos da sociedade a -obrigação de trata los com piedade, mas reconhecemos-lhe o direito da -sequestração, temporaria ou perpectua, segundo a possibilidade da cura -da affecção psychopatica. - -Para os delinquentes communs, para os verdadeiros criminosos que estão -de posse de suas faculdades mentaes e que constituem a grande maioria, -não se deve admittir outro criterio senão o da justiça baseado na -responsabilidade moral. - -O principio da responsabilidade moral e penal que tem por unica base -a crença no livre arbitrio, não pode ser abalado; é dogma nascido na -consciencia, e consagrado pelo tempo e pela legislação de todos os -povos civilisados. - -O direito criminal moderno não deve, como até hoje, limitar-se nas -faculdades ao estudo das regras juridicas e á explicação dos artigos do -codigo. Faz-se mister introduzir no ensino as investigações recentes -da sciencia criminal e penitenciaria. Segundo Henri Joly a sciencia -criminal e penitenciaria é para o direito criminal o que a economia -politica e a sciencia financeira são para o direito civil. Adoptada a -technologia moderna, a sciencia criminal comprehenderá: a anthropologia -criminal, a psychologia criminal e a sociologia criminal. - -A anthropologia criminal consiste no estudo da organisação physica dos -malfeitores. A psychologia criminal é o estudo dos desvios mentaes e -affectivos que precedem o crime ou que o seguem, e que o crime suppõe -ou attrahe. A sociologia criminal trata das condições de ordem social, -isto é, das condições industriaes, religiosas, politicas que favorecem -ou enfraquecem a tendencia para o crime. - -Accrescenta Joly que cada uma d’estas subdivisões se soccorre dos -documentos da estatistica, e que esta, interpretada pela psychologia -individual, fornece os principaes elementos da psychologia social. -A psychologia social, a que a sciencia criminal se liga por laços os -mais estreitos, estuda como as paixões humanas se modificam passando da -vida individual á vida commum e o que ellas devem á acção das causas -que sobrescitam ou acalmam as necessidades das massas, á influencia das -polemicas ou propagandas que fazem e desfazem os preconceitos. Para -attingir tal resultado calcula as principaes variações dos factos que -interessam á prosperidade, á felicidade e á moralidade das nações. Nota -sobretudo as relações que estes varios graus teem entre si; procura -segundo que leis o crime parece augmentar ou diminuir nas diversas -condições em cujo meio se desinvolve a individualidade humana. Depois -esforça-se por encontrar os motivos de crença e de acção que residem -no fundo da nossa natureza; vê os effeitos que produz aqui o contagio -das idéas ou dos arrebatamentos collectivos da imaginação popular, ali -os conflictos gerados pelas invejas das classes ou pelos vicios das -instituições e das leis. - -Henri Joly depois d’assim delinear o horisonte d’este novo ramo de -saber define sciencia criminal e penitenciaria a sciencia das relações -que existem entre o homem criminoso e a sociedade.[12] - -A resolução do problema da criminalidade não póde vir da analyse -physica do exterior do delinquente, da assimetria facial, do -estrabismo, da tatuagem, da desproporção na dynomemetria e no calor, -do prognatismo, e d’outras anomalias somaticas. Estes materiaes -terão valor como elemento indirectamente subsidiario para o estudo -da natureza psychica, da sua forma e da sua evolução, mas a luz hade -nascer do conhecimento dos phenomenos da consciencia e dos factos -externos e internos que sobre ella actuam. - -Lilienfeld provou que o desinvolvimento do individuo reproduz -psychologicamente as phases do desinvolvimento da especie. Estudar -cuidadosamente o individuo na sua evolução psychologica, desde o berço -ao tumulo, e analysar a nossa especie nas diversas phases de vida, é -tarefa de cuja execução depende, a nosso ver, a resolução do problema -da criminalidade. E n’esta difficil tarefa a quem cabe o maior quinhão -é ao psychologo. - - -NOTAS DE RODAPÉ: - -[1] _La Philosophie de Hamilton_, pag. 538, por J. Stuart Mill. - -[2] _Philosophie du Droit Pénal_, pag. 11, Ad. Franck. - -[3] _Beccaria et le Droit Pénal_, par Cesar Cantu. Introduction. 1885. - -[4] _L’Ancien Droit_, Henry Summer Maine. - -[5] _Les délits et les peines_, Emile Acollas. - -[6] _Philosophie du Droit pénal_, pag. 157, Ad. Franck. - -[7] _Leçons de Philosophie_, E. Rabier. - -[8] La criminalité comparée par G. Tarde. - -[9] _Estudos Penitenciarios e Criminaes_, pag. 117. - -[10] Esta classificação não está ao abrigo da critica, como o demonstra -n’uma discussão sensata e profunda H. Joly, _Le crime_, pag. 62. - -[11] Achamos verdadeiramente extraordinario! - -[12] Estas indicações sobre a divisão e papel da sciencia, são tiradas -da oração de abertura de H. Joly nas suas licções de sciencia criminal -e penitenciaria, curso recentemente creado. _Revue Internationale de -L’Enseignement_, 15 mai, 1889. - - - - -II - -A liberdade moral e o determinismo. A ethica. Os criminosos segundo os -trabalhos recentes - - La liberté du franc arbitre est si grande en moi, que je ne conçois - point l’idée d’aucune autre plus ample ni plus étendue. - - DESCARTES. - - ...Il est prouvé, que les «moindres forces» introduites, troublant - des états d’équilibre, out le pouvoir de produire les révolutions - mécaniques les plus considérables. Il se peut donc qu’une place - demeure toujours pour les effets matériels de la liberté, dans un - organisme donné, et de lá dans le monde. Le contraire n’est pas et - ne deviendra jamais demonstrable. (Esquisse d’une classification - systèmatique des doctrines philosophiques, pag. 289, tome 1.ᵒ) - - CH. RENOUVIER. - - -Toda a philosophia procura a explicação do universo e n’esse intento -precisa achar um elemento irreductivel, necessario, que nos certifique -da existencia da harmonia entre o mundo subjectivo e o objectivo. Para -o monismo materialista este elemento é a materia, que abrange toda -a extensão das experiencias realisadas. É claro que tal elemento se -considera absoluto porque d’outro modo fôra reductivel, o que seria -contradictorio. O materialismo arvora-se pois n’uma das concepções -metaphysicas mais antigas e mais grosseiras. Confunde todos os seres -em um só, a materia, mas sobre a sua natureza nada nos diz; limita-se -a affirmar com o vulgo que é o que se vê, o que se apalpa, o que cae -debaixo dos sentidos. O typo do conhecimento para o materialista é -a percepção externa.--A experiencia verifica que não ha creação nem -desapparecimento da materia, que ha só transformação de phenomenos. -A substancia permanente é activa, tem as suas leis; é uma força. A -materia identifica-se com a força. As manifestações d’esta força -constituem todos os phenomenos do universo.--A contradicção é -flagrante, como hade conhecer a idéa de força uma philosophia, que tem -por unica origem de conhecimentos os sentidos? - -Pela observação dos factos physicos, em que é obvio o principio da -conservação da força, o materialista generalisou este principio a toda -a forma de existencia. Ora exactamente o que resta provar é se toda a -cathegoria de existencia se reduz a uma força physica. - -Metaphysica monista muito mais elevada, mais concludente e mais logica -é o idealismo. Spencer, mecanista mais subtil que os defensores do -materialismo vulgar, acceita a correlação entre os objectos e a -representação psychica, mas entende que esta correlação não pode -dar-nos senão symbolos da realidade, isto é, imagens imperfeitas das -cousas. Na sua theoria do symbolismo Spencer aproxima-se do idealismo, -posto que se mantenha mecanista. Entretanto e conseguintemente a -doutrina que elle perfilha merece o qualificativo de determinista; -porque a evolução, como necessaria, torna-se independente da liberdade. -Todavia, quanto á evolução sociologica o sabio inglez tenta provar que -a liberdade individual é compativel com a necessidade historica. N’este -ponto apropinqua-se do _neocriticismo_. - -A evolução universal mecanista, não a teleologica, destroe o livre -arbitrio. É este um dos caracteres que a separam da lei do progresso. -Segundo Proudhon e segundo os philosophos classicos o progresso não -existe sem a liberdade. N’esta doutrina a aspiração crescente da -especie humana para uma maior elevação intellectual e moral, determina -a desenvolução social, objecto da historia, a qual é a realisação -progressiva da liberdade na humanidade. Quem governa o homem é a lei -do dever, augusta divisa, impressa na consciencia; quem o dirige é o -ideal, concepção intellectual, ligada pelo sentimento á acção imperiosa -e decisiva da vontade. - -Os deterministas modernos ligam-se á metaphysica fatalista e á -theologia, identificando como Leibnitz a força com a propria -existencia e considerando as substancias como outras tantas forças -cuja acção se exerce unica e precisamente no meio dos proprios entes -a que pertencem. A vida psychica segundo o systema da _harmonia -prestabelecida_ não passa d’uma monada isolada em si mesma, no seio da -qual se fazem reflectir todas as modalidades da existencia. - -O determinismo moderno prende-se com a metaphysica e com o fatalismo -pagão e mussulmano, mas colloca-se ao lado da doutrina theologica da -predestinação e do dogma da graça invencivel. O determinista está ao -lado de Luthero contra Erasmo, de Calvino contra Servet, da tyrannia -contra a independencia, da fatalidade contra a liberdade. Da crença no -destino cego dos deuses passou o fatalismo para a crença nas forças -cegas da natureza. - -O fim supremo da metaphysica consiste em achar a origem unica da -torrente eterna dos factos, do mar infinito das cousas, o que é -inattingivel nos limites da sciencia positiva. - -Os physicos e os naturalistas concebem um ser substancial ou phenomenal -que não pode subtrahir-se ao determinismo da mecanica. Extranhos pela -maior parte aos processos de observação psychologica, não penetram -na essencia da força, medem-na pelas suas manifestações. Na volição -consideram os motivos como forças e não como condições e influencias, o -que os leva em consequencia do seu monismo á negação da liberdade. - -A força é um dos termos mais metaphysicos, mais mysteriosos e mais -difficilmente comprehensiveis da linguagem humana. Por ella exprimem -a idéa do absoluto materialistas e positivistas. Na nomenclatura das -escolas metaphysicas do materialismo esta idea é o principio universal -de toda a existencia. Alguns moralistas e sociologos sustentam, que -tanto nos individuos como nos povos, a força é a expressão do bem e -a fraqueza a companheira do mal. Nos individuos o excesso de força -na lucta pode gerar a crueldade; nos povos gera ás vezes a perfidia. -Segundo uma philosophia theologicamente fatalista a força será uma -manifestação da vontade divina e resistir lhe fôra para os seus crentes -uma verdadeira impiedade. No mundo ethico, de uma phase já progressiva, -a força é filha de Themis, encarnação da justiça e irmã da deusa da -temperança. No mundo social rudimentar a força considera-se a primeira -virtude do chefe; estabelece-se, como caracteristica ainda hoje, que -a força e o costume regulavam a sociedade antiga e que as leis e os -principios regulam a sociedade moderna, mas na essencia este progresso -resulta sempre da interpretação multiforme da idea de força. Na região -do amor o aguilhão genesico desperta o culto da força e do amor. Nas -cosmogonias primitivas a força identifica-se com a virtude; outras -vezes toma a forma dualista que n’uns phenomenos symbolisa o bem e -n’outros o mal. A vida theogonica das primitivas religiões encerra-se -n’esta formidavel lucta. - -Em toda a evolução religiosa a força recebeu culto da alma humana, -diversamente symbolisado no feiticismo, no pantheismo, no polytheismo e -no proprio monothesmo que faz da unidade a sua expressão. - -O systema do determinismo mecanista fundado na necessidade continua do -movimento allia-se por um lado ao materialismo de Democrito e de Th. -Hobbes, por outro ao pantheismo e idealismo, de Spinosa e de Leibnitz. -Como se vê, esta concepção determinista é um dos aspectos menos -elevados da metaphysica. - -Causa grande extranheza que penologos e philosophos positivistas -alcunhem desdenhosamente de metaphysica a doutrina do _livre arbitrio_, -quando esta doutrina é na philosophia moderna defendida pelos geniaes -demolidores da metaphysica. Quem, fazendo a analyse profunda do -entendimento humano, examinando com raciocinio subtil as condições -do conhecimento, vendo por todos os aspectos a idea do absoluto, -demonstrou a impossibilidade da metaphysica como sciencia? Foram Kant, -W. Hamilton e Mansel, exactamente os grandes pensadores que, ao lado -d’outros, defendem como realidade positiva e evidente a iniciativa -propria ou livre arbitrio. Quaes são pois, os metaphysico-determinista -por herança e por systema? São Augusto Comte e os criminalistas -modernos. Dizemos por herança porque seguem evolutivamente os -metaphysicos fatalistas, e por systema, porque são uns dogmatistas, que -affirmam com o empirismo a fé no conhecimento objectivo das cousas sem -fazerem previamente a analyse logica das condições possiveis do saber, -dos seus lemites e do seu alcance. A esta analyse procederam Kant, -o maior pensador dos tempos modernos, e os dois maiores logicos da -Inglaterra W. Hamilton e o illustre Mansel. - -Augusto Comte affirmando que a metaphysica é uma chimera sem o -demonstrar ontologica, nem logicamente, limitando-se a affirmar que os -systemas existentes são contradictorios, o que não constitue argumento -valioso, porque ha possibilidade de chegarem a um accordo, não póde -de modo nenhum conceder-se-lhe as honras de eversor da metaphysica. -Além de tudo faz liga intima com o materialismo, systema metaphysico, -construindo uma ontologia _a posteriori_, baseada sobre as sciencias -particulares. Não offerece duvida que o ensaio de synthese e de -explicação universal das cousas tentado por Comte é uma metaphysica -empirista tão illegitima em face da critica, como qualquer metaphysica -racional. O verdadeiro e intrepido demolidor da metaphysica foi Manuel -Kant, como diz Alfredo Weber. - -Kant demonstrou pela analyse da intelligencia na critica da _razão -pura_ a impossibilidade de conhecer nada absolutamente e fundou a -doutrina da relatividade do conhecimento ou relativismo subjectivo, -hoje amplamente desenvolvida pelos logicos inglezes, e aproveitada pelo -positivismo. - -A philosophia _neo kantiana_ defendendo a liberdade e a personalidade -proclama todavia a unidade harmonica e systematica do mundo cosmico -e da natureza moral. Esta doutrina tem sido avivada na Allemanha por -Eugenio Dühring, Ernesto Laas, Kirchmann, Alberto Lange, em França por -Ch. Renouvier, Scherer, Lachelier, Liard, etc. - -Ainda que Comte com o seu systema não fizesse mais, como sustentam -alguns philosophos, do que um dogmatismo metaphysico, renunciando á -critica, a nossa admiração pelo eminente pensador mantem-se intemerata -e firme. Não deverão prestar-lhe a mesma homenagem os criminalistas -contemporaneos, porque suppõem a metaphysica um monstro horrendo. -Nós obedecendo á doutrina do _neo-criticismo_ julgamos as concepções -metaphysicas extranhas ao dominio restricto da sciencia positiva, -mas entendemos que a especulação na sua esphera de actividade se faz -tão legitima, tão interessante e tão digna de ser cultivada como a -concepção esthetica ou como a concepção religiosa. Não temos por ella -nem odio, nem desprezo; pelo contrario, temos até veneração. A sciencia -não deve fechar-se nos preconceitos de systema, procura a verdade pelos -caminhos onde póde encontra-la. - -É á psychologia experimental e á observação positiva da consciencia, -que os philosophos partidarios do livre arbitrio, vão procurar a idea -da liberdade e os argumentos para a sua demonstração, em quanto os -deterministas negam a liberdade, subordinando todos os phenomenos -noologicos a systemas metaphysicos, quer da cosmologia racional, -isto é, da materia, do movimento ou da força; quer da metaphysica -do absoluto, ou da theologia racional, como muitos theologos tambem -pensam. A doutrina da liberdade é scientifica, emquanto a concepção -fatalista ou determinista é metaphysica.[13] - -Os escriptores criminalistas portuguezes confundem a liberdade absoluta -com o livre arbitrio, a liberdade de indifferença com a verdadeira -liberdade moral. Escreve o sr. Julio de Mattos: - -«Mas, para que as conclusões da nova escóla penetrem nos espiritos e -fructifiquem praticamente, é indispensavel desfazer de uma vez para -sempre a miragem da absoluta liberdade psychologica, diffundindo -largamente a doutrina determinista. O livre arbitrio--eis o inimigo! -Destruil-o, espurgal-o da consciencia, eliminal-o da educação, banil-o -dos diccionarios, enterral-o fundo na historia dos erros humanos e -pôr-lhe em cima uma lousa de esquecimento bem pezada e bem impenetravel -é a primeira de todas as tarefas a cumprir para assegurar o exito de -qualquer doutrina séria nos dominios assim da psychologia como das -sciencias sociaes. Ora, o auctor tocou muito ao de leve este ponto -capital sobre que, a meu vêr, deveria ter-se demorado, pondo em -evidencia que a _noção da responsabilidade não se comprehende fóra da -doutrina determinista_ e que a pena, applicada como meio de correcção, -suppõe da parte do _criminoso a possibilidade de obedecer a motivos -d’ordem moral, o que é contrario á idéa do livre arbitro_. A punição, -como meio correctivo, só pode applicar se ao delinquente fortuito ou de -occasião; imposta aos criminosos alienados é um não-senso.» - -N’este trecho faz-se necessario distinguir duas partes: a primeira é -a declamação trivial contra o livre arbitrio, declamação impropria do -talento do sr. Julio de Mattos. A doutrina do livre arbitrio em nenhum -modo póde prejudicar a constituição da psychologia ou das sciencias -sociaes. Suppondo, sem todavia o conceder, que esta doutrina seja uma -ficção ou miragem, ainda assim ella torna-se inoffensiva sob o ponto de -vista de que se trata, porque a conciliação da liberdade individual com -a necessidade historica ou social é um facto demonstrado por diversos -psychologos e sociologos. A segunda parte é a confusão inacceitavel da -liberdade de indifferença, a que o sr. Julio de Mattos chama liberdade -absoluta, com a doutrina do livre arbitrio, ou de posse de iniciativa -propria e antecedida por motivos. Hoje nenhum partidario do livre -arbitrio defende a liberdade de indifferença, porque essa doutrina -importa a negação da propria liberdade. Se tal concepção philosophica -tem partidarios, esses devem ser os fatalistas ou deterministas, unicos -a quem aproveita. - -O que affirma a liberdade da indifferença? que a vontade actua sem -motivos. Esta doutrina partilhada por Bossuet, Fenelon, Reid e -Clarke, não conta proselytos nas escolas actuaes. O acto sem movel, -sem causa antecedente a que se ligue, não é uma resolução, é um -phenomeno reflexo ou instinctivo. Os que defendem a liberdade na -psychologia moderna, sustentam que os motivos dirigem em todos os -casos a vontade, que actuam em todo o phenomeno volitivo, mas não o -determinam; a determinação em todas as resoluções depende da autonomia -da consciencia. A intelligencia peza os moveis, analysa os motivos, mas -só a vontade tem o poder inviolavel e discricionario de resolver-se. - -O determinista affirma, pelo contrario, que os motivos imperam -fatalmente sobre a vontade, sendo o homem o escravo do motivo mais -forte pelo que a resolução não existe. Logo o homem não é livre quando -obedece ao dever e a bondade das acções conseguintemente reduz-se a -um producto sem valor moral. N’esta hypothese a justiça arvora-se em -vingança social. - -O sr. Julio de Mattos diz que «a noção de responsabilidade não -se comprehende fóra da doutrina determinista» mas a verdade está -exactamente no contrario. Para os deterministas a vontade é o effeito -da causalidade personificada no motivo; por tanto o homem aqui não -passa do joguete de forças extranhas. - -Na doutrina do livre arbitrio, a vontade constitue a causa unica das -nossas acções. Os motivos são apenas a condição para o exercicio da -causalidade. - -O mais simples e o mais commodo para os penologos revolucionarios, -nas questões da base do direito de punir é julgar _a priori_ todos -os delinquentes irresponsaveis em nome da negação do livre arbitrio, -como diz com superior ironia e admiravel bom senso o dr. A. Riant[14] -que possue além da auctoridade do seu talento e do seu saber, a de -ser ao mesmo tempo um medico eminente e um jurisconsulto distincto. -Parece extraordinario que a escola determinista, que deve acceitar como -consequencia, logicamente necessaria, a irresponsabilidade, queira -estabelecer cathegorias de irresponsaveis. - -O principio unico em que pode assentar a responsabilidade, moralidade e -a justiça é o livre arbitrio; regeitada a doutrina do livre arbitrio ou -da liberdade, todos estes sentimentos e todas estas ideas desapparecem, -e subsiste, como unica base do direito repressivo não a justiça, mas -a defeza social. Taes theorias já são um elemento perturbador na -administração da justiça, porque o advogado rabula, sabendo que os -codigos assentam sobre a responsabilidade, aproveita qualquer tara -psychopatica do reu para lhe negar a imputabilidade. - -No prefacio escripto por Ch. Letourneau, na versão franceza do livro de -Lombroso _O homem delinquente_, lê-se o seguinte: - -«Os nossos criminalistas _enragés_, os nossos legisladores -inexperientes, para quem o castigo do criminoso é uma reprezalia, uma -vingança social, todos esses espiritos acanhados e levianos, a quem -se deve repetir sem cessar a expressão de Quételet--que a sociedade é -quem prepara os crimes, todos esses pilotos cegos dos estados modernos, -para quem o homem não é susceptivel de modificação, que no logar da -utilidade social collocam a sentimentalidade e a rotina, poderiam vêr -o que na penitenciaria de Neuchâtel se obtém pelo systema tão humano e -tão scientifico de W. Crofton. Ali, em vez de considerarem o condemnado -como um réprobo, applicam-se em despertar-lhe a esperança no coração, -a provar-lhe que nenhum sentimento de colera, nem de odio, se nutre -contra elle, a persuadil o, emfim, que elle é, n’uma larga acepção, -o arbitro da sua sorte. Tratam-n’o, não como a um monstro que deve -soffrer e expiar, mas como um doente, como um amigo transviado, a quem -se busca chamar ao bom caminho. Instruem-n’o, educam-n’o moralmente, -dão-lhe uma profissão, fazem-n’o passar gradualmente da prisão cellular -á libertação condicional, com bemfazeja vigilancia. N’uma palavra, -faz-se d’elle um homem. Ha apenas uma differença: é que para tal tarefa -são indispensaveis philantropos esclarecidos, e é mais commodo ter -apenas carcereiros.»[15] - -N’esta pequena amostra acotovelam-se as contradicções e evidenceia-se -a ausencia de disciplina philosophica. Primeiro diz-se discipulo de -Quételét e de Victor Hugo, asseverando que a sociedade prepara os -crimes, e pouco depois affirma que o criminoso é n’uma ampla acepção -o arbitro da sua sorte. A contradicção sobe de grau, sabendo-se que o -dr. Letourneau professa o determinismo materialista, e n’este prefacio -advoga um sentimentalismo quasi mystico em favor do delinquente. - -No seu livro _Physiologie des passions_, pag. 389, diz elle que é -mister «bater em brecha a fortaleza gothica do livre arbitrio» e que -a feição do caracter e a violencia das inclinações dependem só da -organisação physiologica e do temperamento do individuo. Appella para -a craniologia e despreza a observação scientifica; prefere a hypothese -materialista á luz fiel da observação introspectiva e da experiencia. - -A solução do problema da liberdade está para os metaphysicos fatalistas -subordinada a outras questões metaphysicas; assim o materialismo nega -a liberdade em nome d’uma lei mecanica universal que rege igualmente -o mundo cosmico e o mundo psychologico. Os que defendem a doutrina do -livre arbitrio devem considerar suspeitas todas as escolas metaphysicas -tendo o cuidado de encerrar as suas demonstrações dentro da sciencia -positiva. - -O fatalismo chamado das _cousas occasionaes_ propagado por Mallebranche -attribue a Deus a causa unica de todos os effeitos sendo os motivos -somente as occasiões para a realisação da causalidade theologica. A -intervenção de Deus é continua no exercicio da actividade psychologica -sobre o organismo e d’este sobre os phenomenos de consciencia. - -Os fatalistas modernos apoiados na physica _a priori_ de Descartes, -renovada e generalisada pelo principio da conservação da energia, -hypothese hoje admittida no dominio das sciencias cosmologicas, -proclamam um determinismo mecanico universal. O determinismo de -Mallebranche inspira-se n’um principio providencial, em quanto o dos -mecanistas n’uma força cega, occulta na substancia cosmica. O primeiro -é mais elevado, mas as consequencias são em ambos igualmente funestas. - -A liberdade é o poder de querer actos motivados, encadeados ao estado -presente do nosso entendimento e da nossa sensibilidade. Toda a -resolução tem a sua causa em phenomenos que a precederam. A liberdade -tendo todavia condições e possuindo graus d’ordem sensivel, mental e -ethologica, permanece sempre a faculdade de praticar ou não praticar um -acto e ainda depois de praticado fica a idéa da possibilidade em ter -praticado o contrario. O caracter não explica absolutamente as acções, -como pretende, por um circulo vicioso, o determinismo physiologico, -porque a energia de vontade modifica e transforma a seu talante o -proprio caracter, e até o meio social. - -O homem attribue á fatalidade os seus revezes e nunca lhe attribue -a sua fortuna. Assim o criminoso, o negligente, o insufficiente de -vontade desculpa o seu crime, a sua pobreza, a sua desgraça, com -a fatalidade, a sorte ou o destino, emquanto o homem trabalhador, -diligente e prospero attribue a sua fortuna, o seu bem estar social, -á energia da sua vontade. A mulher que desceu á escravidão a mais -aviltante, o homem que jaz no carcere expiando os seus crimes, quando -interrogados respondem ambos, que foi a sua sorte. Ao contrario, o -homem que de berço humilde sobe ás altas funcções sociaes, que da -escassez chegou á riqueza, affirma que deve esse melhoramento de -situação á constancia no trabalho e á rectidão do seu proceder que lhe -grangeou honra, fazenda e credito. Póde pois dizer-se que o fatalismo -vulgar é a trincheira covarde onde se escondem os ignorantes, os -preguiçosos e os maus. Para as pessoas illustradas e boas o fatalismo -philosophico é uma concepção theorica, que não influe nas relações da -vida pratica. O procedimento d’esses sectarios está sempre d’accordo -com a dignidade humana, sentimento que tem por base o livre arbitrio. - -O espirito possue a consciencia da sua força volitiva deante da -influencia do meio e do incitamento do desejo; reconhece que da -sua actividade e da sua liberdade resulta o altivo sentimento da -sua personalidade. A crença na liberdade é para nós d’uma evidencia -intuitiva no dominio da psychologia; só uma metaphysica bastarda poderá -sophismar tão luminosa verdade. Sem o poder de iniciativa quanto ás -proprias determinações o homem seria um automato cogitante e sensivel, -igual em cathegoria ás alimarias, incapaz de merito ou demerito, e -nivelaria a honestidade com a vileza. A ordem ethologica desappareceria -e a ordem social seria defendida pela cega vingança. Não mais justiça; -o louvor fôra tão digno como o vituperio; no pleito social venceria o -mais forte. - -Quem consultar sem preconceitos metaphysicos a sua consciencia concebe -por intuição a possibilidade de adoptar um motivo contrario áquelle que -resolveu seguir, e que o poder d’esta determinação reside n’uma força -irresistivel interna. É evidente que a determinação póde subsistir sem -prejuizo de qualquer coacção externa em contrario. - -Alfredo Weber o distincto professor da universidade de Strasburgo, no -prefacio da 4.ᵃ edição da sua _Historia da philosophia europea_, sem -duvida a condensação mais limpida e mais brilhante que modernamente -se tem feito da desenvolução do pensamento humano, escreveu: «Estamos -persuadidos que o crer não é somente a essencia da alma, mas a essencia -universal. A nossos olhos o monismo da vontade é o pensamento intimo -de Kant, a linha de união da sua critica e da sua moral, o unico -systema que possa explicar simultaneamente a natureza e o phenomeno -moral, o unico emfim que possa satisfazer ao mesmo tempo o pensamento -especulativo e o espirito de observação: porque a suprema necessidade -da rasão é a _unidade_, e o unico caracter commum á materia e ao -espirito, o unico denominador commum ao qual seja possivel reduzi-los, -é o esforço, isto é a vontade. Um esforço de expansão, eis a materia, -um esforço de concentração eis o espirito... Qualquer que seja a parte -do anthropomorphismo no vocabulario da moral kantiana, é mister convir -que esta forma é imperativa, que no fundo do nosso querer-viver ha como -uma reservada esperança, e alem da nossa vontade individual como uma -vontade mais elevada e mais excellente que tende para o ideal (_Wille -zum Guten_).» - -É evidente que não acceitamos a vontade pura, de Schopenhauer, -inspirada no buddhismo, um dos lados da sua metaphisica, mas acceitamos -o outro aspecto porque elle considera a vontade, ligada ao phenomeno -intellectual--é o livre arbitrio. - -O saber comprehende duas partes: uma regulada pelas leis da natureza -que se desenvolve por evolução, em virtude d’um determinismo universal: -a outra com a consciencia por ponto de partida, que architecta um -universo segundo as suas formas e as suas leis. A primeira abrange o -mundo material, a segunda refere-se ao mundo moral. - -Parece-nos que posta a questão em evidencia como a apresenta a -philosophia neo-critica o problema da liberdade está resolvido -triumphantemente em face da sciencia. Pode a metaphysica do -determinismo monista reduzir o homem a um automato espiritual ou -material que a psychologia considerada como sciencia positiva -continuará a asseverar em nome da sciencia e dos seus direitos -imprescriptiveis a autonomia da consciencia do _eu_ como centro commum -de iniciativa, de acção e de potencia. Apresentado assim o problema -dispensam-se os notaveis esforços de dialectica empregados por Alfredo -Fouillée no intuito de conciliar o determinismo com a doutrina da -liberdade, dois systemas contendores em cuja lucta recente elle vê já -uma directriz para a convergencia. - -O que se faz mister é destruir a lenda dos criminalistas extranhos á -alta cultura philosophica, os quaes propagam que o determinismo se -inclue no saber positivo emquanto o livre arbitrio não passa d’uma -concepção metaphysica. - -Nenhum dos argumentos apresentados em favor da liberdade moral -tem o valor logico do que nos é dado pelo testemunho immediato da -consciencia. Cada um de nós, ao consultar-se, sente-se livre, e -este sentimento é inaccessivel a toda a duvida, porque a certeza da -consciencia é absoluta. Quem delibera não assiste á lucta dos motivos -como simples espectador, sente que a decisão final reside intemerata em -seu poder. - -As leis sociaes seriam inuteis e absurdas se o homem carecesse da -possibilidade de lhes obedecer; mas respondem os deterministas que -as leis são tambem motivos influentes sobre a vontade humana pelo -receio dos castigos. Todavia, esses mesmos castigos applicados em -nome da justiça provam a liberdade. Onde estaria a justiça das penas -inflingidas pelos tribunaes, se os reus não houvessem a faculdade de -evitar o crime? - -Castigam-se os criminosos, respondem os deterministas, para correcção, -intimidação e defeza. Mas se o accusado não fôr livre, a pena é iniqua, -e a justiça quer que a pena seja merecida, e só n’este caso a sociedade -está auctorisada a punir. A justiça assim satisfeita, corrige, intimida -e defende simultaneamente a sociedade. Para os irresponsaveis não ha -justiça, ha a protecção ao mesmo tempo defensora da sociedade ou póde -haver a eliminação. - -O fundamento do direito de punir tem atravessado differentes phases -na evolução juridica dos diversos povos. A vingança é um sentimento -natural, instinctivo, nascido para nos fazer respeitar uns aos -outros, e segundo lord Kaimes e Luden a sociedade quando pune não -faz senão dirigir este instincto contra o verdadeiro culpado. -Eis a primeira theoria--a da _vingança_.[16] Originariamente nas -sociedades rudimentares assim foi, e confundem ainda hoje os -criminalistas-utilitarios esta vingança, convertida em utilidade -social, com o direito. Das theorias penaes baseadas no sentimento e não -na idea de justiça dimanam as concepções da prevenção, da intimidação, -da advertencia, da emenda do culpado, as quaes teem aspectos -aproveitaveis para o melhoramento social, mas nenhuma d’ellas encerra -o legitimo principio do direito de punir:--a remuneração da justiça. -O principio do direito de punir não pode ser puramente correctivo ou -preventivo. Escreveu Romagnosi, citado por Ortolan, «se depois do -primeiro delicto houvesse a certeza que se não succedia nenhum outro a -sociedade não teria nenhum direito de punir.» - -As desastrosas consequencias do materialismo determinista expulsam -da sociedade o sentimento da justiça e substituem-no pelo principio -da defeza social. O materialismo em psychologia nem chega a ser uma -theoria, é uma deserção do criterio scientifico. Onde podia ter uma -apparencia, ainda que grosseira, de systema scientifico, era no mundo -biologico ora o grande mestre Claude Bernarde disse que «em physologia -o materialismo não conduz a nada e nada explica.»[17] - -Julgar todos os delinquentes perigosos, supposto não culpados, e -puni-los em nome da defeza social, é suspender as garantias individuaes -e promulgar leis em nome da salvação publica. - -Quinet liga a idea de justiça ao sentimento de amor na sua -desenvolução primordial, mas sustenta que até os ladrões teem um -codigo de justiça distribuitiva para entre si e os selvagens outro que -observam na tribu. - -A philosophia que identifica a virtude com a utilidade offerece a quem -a pratica vantagens sociaes. O homem que não tem senão a apparencia -da virtude sobrepuja externamente o que a pratica a serio. Quem uza -alternadamente do verdadeiro e do falso segundo o interesse do momento -vence o que emprega só o verdadeiro, porque tem dois caminhos abertos -emquanto os outros estão confinados n’um. - -Mesquinha philosophia e desconsoladora moral que tem por unico movel a -utilidade! - -Nem todas as violações moraes da lei do imperativo cathegorico podem -ser incursas no direito penal positivo, porque a sua esphera é mais -ampla e mais recondita, os codigos não a attingem. - -Escreveu um grande jurisconsulto: «quanto aos deveres para com -os outros, a lei penal não deve, pelo mesmo principio, exigir -imperativamente senão o cumprimento dos que são correlativos aos -direitos, cuja protecção poderia legitimar o emprego da força. Fica -pois por considerar se a violação d’um dever _exigivel_, quando ella -não sahe dos limites do mal puramente moral, cahe sobre o imperio -d’esta lei. É o mesmo que procurar, por outros termos, se o pensamento, -se a resolução criminosa pode tornar-se o objecto da justiça humana. -Porque a violação d’um dever exigivel não permanece encerrada nos -limites do mal puramente moral, senão emquanto o projecto criminoso, -não tendo sido seguido de nenhum acto material, não tenha ainda -produzido soffrimento directo, clamor ou perigo. Ora, é evidente que em -these geral nada poderia ainda legitimar o emprego da força contra uma -perturbação qualquer trazida á ordem moral. Os individuos e a sociedade -não tem ainda sido impedidos no exercicio dos seus direitos, no livre -desenvolvimento da sua legitima actividade. A defeza não foi fundada -para reagir contra o mal puramente moral: a justiça social não pode -pois applicar-lhe o castigo[18]. - -A liberdade moral não deve ser confundida com a liberdade juridica. -Aquella é o poder que o homem tem de se determinar, emquanto esta é -o direito de desenvolver as faculdades n’uma medida que não exclue -o desenvolvimento da liberdade ou do direito de outrem. Os seus -limites são a base e o objecto do direito considerado como a regra -das relações sociaes. Em todos os casos porem a liberdade moral é uma -condição essencial da existencia do direito[19]. Negar portanto o livre -arbitrio é destruir o direito, é suprimir a justiça. Nenhuma sociedade -civilisada podia assentar no determinismo mecanista de Democrito -ou de Hobbes. Se esta theoria é hoje renovada pelos criminalistas -revolucionarios, será por honra e fortuna da civilisação justamente -posta de parte pelos jurisconsultos circumspectos. - -Como somos humilde discipulo da philosophia neo-critica e ardente -e sincero adepto da grandiosa moral kantiana, julgamos util dar -aqui a conhecer, ainda que summariamente, seguindo um seu illustre -commentador, a solução original e profunda que o genial pensador deu -ao problema da liberdade. Kant affirma o determinismo em nome da -sciencia e proclama a liberdade em nome da moral. Por um lado Kant é -determinista tão rigoroso como o proprio Leibnitz. Em nome do principio -da causalidade affirma o encadeamento necessario de todos os phenomenos. - -Este determinismo absoluto é a condição da sciencia, a propria condição -do pensamento. Mas por outro lado Kant é o mais puro e o mais sincero -dos moralistas. Acceita a noção do dever, da moralidade em toda a sua -plenitude. O dever, diz Kant, implica poder e é em nome do dever que -affirma a liberdade. Como conciliar estas duas affirmações? - -Kant resolveu a difficuldade pela sua theoria do conhecimento. -Distinguiu dois mundos, o mundo dos _phenomenos_, isto é, o mundo -das apparencias sensiveis, que é objecto da sciencia, e o mundo dos -_nomenos_, isto é, o das realidades absolutas, ou intelligiveis, onde a -metaphysica tenta, mas em vão, fazer nos penetrar. A grande differença -entre estes dois mundos, resulta do espaço e do tempo, que são a lei do -mundo apparente ou sensivel e não a lei do mundo real ou intelligivel. -O mundo sensivel é a apparencia que torna o mundo intelligivel -projectado e refractado no espaço e no tempo. Como ha dois mundos, ha -tambem duas especies de causalidades. Ha a causalidade empirica que se -realisa no tempo e ha a causalidade intelligivel que se realisa fóra -do tempo. A causalidade empirica é o determinismo. No tempo os factos -são antecedentes e consequentes, succedem-se e determinam-se como os -momentos do tempo. Mas onde se exerce a causalidade intelligivel, -não ha antes nem depois, não ha antecedente nem consequente: esta -causalidade é, pois, a propria liberdade. - -Assim se resolve a antinomia: o determinismo e a liberdade são -verdadeiros um e outro, mas para dois mundos differentes: o -determinismo é verdadeiro para o mundo sensivel para o homem phenomeno, -a liberdade é verdadeira para o mundo intelligivel, para o homem -_nomeno_. - -No absoluto a nossa vontade pronuncia um _fiat_ eterno e como tal -livre, este _fiat_ faz-nos ser o que somos; constitue a nossa essencia, -o nosso caracter _intelligivel_. D’este caracter _intelligivel_ -deriva o nosso caracter empirico que é a manifestação do primeiro na -vida phenomenal, e que assignala com o seu cunho as nossas diversas -acções. Tudo em nós resulta necessariamente d’estes dois factores. -Tam grandiosa e profunda concepção satisfaz a razão especulativa e a -consciencia moral; põe ao abrigo de todas as contingencias os direitos -da sciencia, e os direitos da ethica[20]. Devia satisfazer a um tempo -os partidarios do fatalismo e os do determinismo salvaguardando no -entanto a liberdade. Os phenomenos do mundo cosmico podem ser, como -pretendem os fatalistas, subjeitos a uma causa unica sobrenatural, -ou como querem os deterministas, attribuidos a causas multiplas -ou naturaes. Fatalistas, pantheistas e theistas, deterministas -psychologicos e materialistas, todos deviam applaudir uma solução, -que reconhece nas suas theorias uma parcella de verdade. Não acontece -assim, todavia. O determinismo nos seus cambiantes continua affirmando -que, o homem se resolve _sem motivos_, ou sem _vontade_, ou que a -_vontade segue sempre o motivo mais forte_. - -Todos os argumentos do determinismo são já bem conhecidos:--do -principio da causalidade e da analyse do acto volitivo, da estatistica -e da theoria mecanica das relações da vida psychica com a physiologica. - -A asserção de que todo o phenomeno tem a mesma razão n’uma força, não -é de modo nenhum incompativel com a liberdade; o acto livre tem por -causa não só os motivos, mas ainda a vontade. Objectam que a vontade -segue sempre o motivo mais forte, mas esse motivo não é mais forte por -si mesmo, senão porque a nossa vontade o torna tal determinando-se por -elle, e determinou-se por elle, porque o julgou melhor. - -O argumento da estatistica não tem valor, porque a estatistica só -determina medias, devidas a causas geraes, e de modo algum os factos -particulares ou individuaes. Nenhum demographo nos diz pelas suas leis -que tal individuo em tal anno ha-de ser necessariamente homicida. - -A theoria da conservação da força, applicada aos seres vivos, não passa -ainda d’uma hypothese. Todavia, é evidente que a vontade não cria os -movimentos que imprime aos orgãos, mas quando é sã e energica, serve-se -a seu talante das forças preexistentes. A liberdade fica sempre o poder -de tomar a iniciativa da sua actividade. - -As escolas fatalistas não podem constituir a moral. Augusto Comte -pretende na esteira do fatalismo metaphysico, com o altruismo, -imagem truncada do sentimento do amor, architectar uma ethica para -seu governo. O altruismo é uma tendencia irresistivel para outrem, -considerado esse outrem como ponto de convergencia, e o egoismo é uma -tendencia fatal para o _eu_ como centro. Na essencia o movel é sempre e -absolutamente o interesse, ou do eu ou de outrem. Os inglezes reduzem -justamente esta escola a uma variante da moral egoista. Que importa -á consciencia que o desejo seja de expansão ou de concentração, se o -impulso é sempre interesseiro? N’um e n’outro caso a lei do dever que é -o distinctivo mais nobre da humanidade fica vergonhosamente esquecida. -O positivismo, como temos visto, sempre que faz metaphysica tem o mau -gosto de ligar-se por um lado ao fatalismo deprimente e por outro ao -materialismo grosseiro. - -A moral é a sciencia que traça a linha directora do homem no -cumprimento do dever. Todos reconhecem, de um modo intuitivo, que, -quem nos esclarece na investigação ou na pratica dos actos moraes, -é a consciencia. Ella o juiz seguro e o juiz unico que nos ensina a -conhecer exactamente a natureza da acção e a intenção do seu auctor. -A intenção, porém, que unicamente se limita a um simples desejo e que -não é seguida de nenhum esforço para a execução, não chega a ser um -acto moral. A intenção dá valor ethico ao acto, mas tambem o proprio -acto serve para apreciar indirectamente a natureza e a sinceridade -pura das intenções do agente. O methodo para estudar esta sciencia -consiste em examinar qual a noção moral e quaes os resultados que a -constituem. A consciencia moral, não a psychologica, é quem fornece á -razão a concepção de uma lei que absolutamente devemos seguir. Se a lei -moral se convertesse na applicação em alguma cousa de material teriamos -necessidade de despi-la dos elementos exteriores, e mostrar que ella -não se revela nunca em nós como um effeito, mas sim como antecedente. -A lei moral é um principio noologico para elle proprio e parece ter um -dominio transhumano. - -A lei do bem impõe-se absolutamente; quer o conteudo d’esse bem -seja a paz da alma, o prazer sensivel, a utilidade, ella é sempre o -centro organico de todos os nossos actos. Ninguem póde renunciar a -este imperio universal; os proprios adversarios de Kant, que chamam -ao imperativo, desdenhosamente, o _despotismo da regra_, não podem -esquivar-lhe a sua consciencia. - -É preciso comprehender a moral formalista de Kant para pôr de accordo -o seu dogmatismo pratico com o seu scepticismo especulativo. A -moral formal não depende das condições da vida real e concreta das -sociedades, assim como as mathematicas puras não dependem em nada das -applicações ás sciencias experimentaes e ás artes bellas ou mecanicas. -A moral, tal como Kant procurou estabelece-la, resume-se na idéa -de uma vontade livre, cuja existencia intima não depende de nenhum -movel empirico. Por isso tal concepção é apparentemente extranha a -muitos espiritos e se acha affastada das idéas communs. Para Kant, a -liberdade da vontade é uma autonomia que faz por si só a lei moral. -Este caracter de independencia absoluta não póde encontrar-se senão -n’uma lei formal, tomada esta palavra no sentido philosophico. Kant não -procura a essencia do bem na ordem universal; é no facto subjectivo da -obrigação que tem a sua origem objectiva. Uma cousa não é obrigatoria -porque é boa, é boa porque é obrigatoria. A essencia do bem está _na -conformidade d’uma vontade com uma lei que impera_. A necessidade -d’esta lei é completa e absoluta e tem ao mesmo tempo um caracter ideal -e real, racional e empirico, como as leis logicas e mathematicas. -Ha por isso quem chame á ethica kantiana, a moral da mathematica. A -obrigação moral é uma especie de necessidade, mas dizer que qualquer -é obrigado a fazer uma cousa, não é dizer que qualquer é forçado a -faze-la, porque a obrigação assim entendida excluia a liberdade e -aniquilava a moral. O verdadeiro principio da ethica não póde ser -um ideal de perfeição, mas um ideal formal que tem o seu fundamento -no conjuncto das faculdades que constituem a natureza superior do -homem e cuja realisação é independente da evolução da humanidade -atravez das differentes phases da vida individual e social. A moral -pratica que dá normas ás acções humanas é que varia com as diversas -condições externas. A força e a firmeza da vontade, a clareza e o -alinho do espirito imprimem cunho ao caracter moral, a paz e a pureza -do coração são a saude da alma, a origem da felicidade. Muitas veem -a ser as causas pathologicas que podem influir na determinação dos -phenomenos volitivos, como o demonstra Ribot no seu interessante livro -_Les maladies de la volonté_. É obvio que sem livre arbitrio não ha -moralidade. - -A tendencia das paixões, muitas vezes, converte-se n’uma ideopathia, -cuja força se traduz em actos de um caracter duplamente forte. É esta -a feição de certos sentimentos--ir recto ao fim, e, á maneira das -acções reflexas, ter uma adaptação em um unico sentido, unilateral, ao -contrario da adaptação originada n’um principio racional, que é, na -deliberação, multilateral. - -O dever é muitas vezes pela consciencia humana mal entendido, e a -maneira de o entender varia com as condições mesologicas e com a -ideosyncrasia individual. A obrigação moral póde ser vivamente sentida -e muito mal entendida, facto que se observa a cada instante na vida -historica da humanidade. Cada epoca da evolução humana apresenta uma -série de factos que imprimem caracter, isto é, que são a expressão -psychologica de um certo modo de sentir com côr propria e com tom -particular, sem comtudo deixar de ser a mesma lei do dever que -constantemente os inspira. Toda esta diversidade na historia do mundo -moral é puramente externa; os phenomenos sociaes que principalmente -influem sobre ella são a sympathia, a imitação, o contagio moral, a -opinião, o costume, etc. É mister, na apreciação das acções moraes, -distinguir duas cousas: 1.ᵃ a intenção com que nós praticamos o -acto, 2.ᵃ o valor d’esse mesmo acto. Apreciar cada um a sua intenção -é facilimo, porque é de uma clareza evidente. Não succede o mesmo -com a apreciação do valor das acções sociaes que sendo difficil, -é precisamente o que explica a variedade e o progresso da moral. -A interpretação do bem e do mal no tempo e no espaço não é sempre -identica, soffre profundas variações e differentes vicissitudes na -evolução social, mas o que não soffre vicissitudes é a lei em virtude -da qual a consciencia affirma a distincção entre as idéas do bem e do -mal, á evidencia das quaes ninguem póde eximir-se. - -Perante a consciencia a idéa do bem garante-nos que a sua pratica é -meritória, se é livre, independentemente das suas consequencias, porque -a consciencia moral implica a idéa de uma lei e a obediencia livre -a essa lei. Segundo Kant, o dever é um mandato que se nos apresenta -imperioso sem que possamos perguntar-lhe pelos seus titulos e pela sua -razão de ser. O seu valor intrinseco é para nós desconhecido. - ---[21]Julgam os criminalistas italianos dever admittir a existencia -d’um typo criminal; esta opinião é adoptada por um grande numero de -criminalistas francezes. Segundo esta escola, distinguem-se claramente -os criminosos, por seus caracteres physicos e psychicos, dos homens -que pertencem ao mesmo meio e que vivem no mesmo tempo. Por esta arte, -seria a maior parte dos criminosos fatalmente condemnada de nascimento, -pela sua organisação physica e mental, ao latrocinio e ao assassinato, -á violação ou ao incendio. O que são estes criminosos de nascimento? - -Serão loucos, por ventura, ou os representantes, no meio da civilisação -actual, d’um estado social mais remoto, de costumes mais grosseiros -e mais crueis? Estas duas theses já foram sustentadas, e até ambas o -foram por Lombroso, o chefe da escola, que, depois de ter feito do -criminoso um selvagem, foi levado a consideral-o como um alienado, -como um louco moral, sem renunciar todavia completamente á opinião que -abraçara o principio. - -Foi para reagir contra estas theorias que M. Tarde[22] escreveu e -colligiu em volume ha tres annos, os seus brilhantes e profundos -estudos. Sem rejeitar absolutamente a existencia d’um typo criminal, -procurava demonstrar que este typo profissional e que os traços communs -aos malfeitores se explicavam, na maior parte, pela communidade de seus -costumes. M. Joly, tomando entre mãos e por sua conta esta these, -percorreu cuidadosamente as estatisticas e os inqueritos officiaes, -interrogou medicos, administradores e magistrados, conversou com os -inspectores de policia e com os directores de prisão, consultou as -melhores obras d’anthropologia criminal, e mercê a todos os factos que -recolheu, analysou e classificou, fez dos criminosos um retrato que -pouco se assemelha ao que delineou Lombroso.[23] Todavia os factos são -os mesmos, mas vistos por outros olhos. - -Antes de procurar qual a interpretação que convem dar ao typo criminal, -cumpre saber se ha realmente um typo criminal. Ora, é precisamente isso -que parece contestavel. É de crer que a escola italiana haja ligado -demasiada importancia aos caracteres physicos dos criminosos; porém -estes caracteres não teem nem tanta constancia nem tanto valor como -se imagina. As anomalias cranianas e cerebraes que foram verificadas -nos criminosos são pelo menos tão frequentes nos homens de bem. Tem os -primeiros os cerebros frequentemente asymetricos; a verdadeira razão -d’isto é que os cerebros perfeitamente regulares são muito raros. - -Segundo os estudos de M. Bordier, resulta com effeito, que, -ordinariamente, a curva frontal está reduzida nos craneos de -assassinos, ao passo que a curva parietal antero-posterior se acha -desenvolvida; mas d’esta estructura craneana só se deprehende que, para -volume cerebral igual, ha uma certa inferioridade intellectual e uma -certa exageração da actividade motora; o que é facil encontrar-se nos -individuos que não praticaram crime algum nem teem tendencias para o -praticar. - -Não podem entender-se os criminalistas ácerca dos traços distinctivos -que attribuem aos criminosos: são de parecer alguns auctores que o -criminoso é mais a miudo trigueiro que louro, mas estes auctores são -italianos. A importancia que querem attribuir á grande frequencia da -covinha media nos criminosos é muito diminuida pelo facto de se achar -esta covinha nos judeus, e nos arabes, povos de criminalidade inferior -com relação aos europeus, quatro vezes mais frequentemente do que nos -não-criminosos. Não se póde, por outra parte, duvidar de que o genero -de vida, a que se devem submetter os criminosos, exerça uma acção mais -ou menos profunda sobre a sua organisação, por isso que muitos ladrões -e até assassinos começam de muito novos a sua vida de aventureiros. - -É fóra de duvida que os criminosos teem uma physionomia adquirida; -nem todos, aliás, teem esta physionomia, bem longe d’isso, e custaria -muito constituir um typo unico a que se adaptassem igualmente os -pick-pockets e os vagabundos, os fallidos, os moedeiros falsos e os -assassinos de profissão. De resto, todos os que se teem occupado dos -presos de pouca edade, M. Roukavichnikoff, por exemplo, teem ficado -espantados da rapidez com que a sua expressão habitual se modifica, -quando os collocam n’um meio differente d’aquelle em que até ali tinham -vivido. O criminoso preso não se parece com o criminoso livre; tem uma -physionomia muito caracteristica, que perde ao deixar a prisão, e é -nos presos, não se deve esquecer, que foram feitas, na maior parte, -as observações dos criminalistas. Parece pois prematuro, pelo menos, -falar d’um typo criminal hereditario: os caracteres anatomicos dos -criminosos, aquelles mesmos que parecem mais salientes (as orelhas -volumosas, em fórma de azelhas, a barba rara, o prognatismo, o -desenvolvimento exagerado dos queixos) não lhes são particulares. - -Terão, pelo menos, os criminosos, caracteres psychicos que os -separem claramente dos outros homens? É tambem com a negativa que -responde M. Joly. Ficamos perplexos quando, depois de ter lido os -conscienciosos e profundos capitulos, que este escriptor consagrou á -imaginação, intelligencia, sensibilidade, vontade e sentimentos moraes -dos criminosos, perguntamos a nós mesmos se ha motivos para dar um -logar á parte, á psychologia do criminoso, ao lado da psychologia do -selvagem e da creança. Não se deprehende que os criminosos formem, -como os alienados, uma familia natural; por mais sensivel que seja -a differença entre um maniaco e um degenerado ou um melancolico, ha -porém entre todos os loucos similhanças de tal fórma, que se poderia -quasi constituir, ao lado da psychologia geral normal, uma psychologia -morbida geral. - -As dissimilhanças, pelo contrario, são extremas, sob o ponto de vista -psychologico, entre os criminosos e talvez fosse necessario reconhecer -que o termo «crime» só tem uma significação social e moral. Se achamos -symptomas de alienação mental n’um contemporaneo de Alcibiades, podemos -affirmar que era louco; não podemos no entanto tratar de criminoso -um Grego da mesma epoca por ter praticado actos que as nossas leis -qualificam de crimes. Estamos no direito de inferir a existencia d’um -mesmo estado mental em dois alienados, se estiverem sob o domínio -de obsessões d’um caracter identico, por termos observado que estas -obsessões são os symptomas d’uma doença que segue um andamento regular -e que está ligada a perturbações psychicas determinadas. - -Mas que ha de commum entre o operario que alterca com o seu collega -n’uma taberna, e entre o ladrão que assassina o homem que despoja -para o impedir de gritar, e o marido que mata a mulher por ciumes ou -pelo respeito á sua honra? O acto exterior é identico, os motivos que -determinaram este acto são absolutamente differentes d’um homem para -outro. Serão iguaes as razões que determinam ao roubo todos os ladrões? -Não terá sido antes, para este, o mau exemplo que o impellisse, ao -passo que para est’outro influisse a preguiça, e para aquelle o desejo -de satisfazer ás exigencias d’uma amante? Existem outras semelhanças -a não serem exteriores e grosseiras entre o especulador velhaco e o -regateiro ladrão? - -Os actos d’um alienado, seja qual fôr o meio em que viva este alienado, -teem um caracter muito pronunciado que permitte distingui-los dos actos -d’um homem de juizo são; mas não podemos ajuizar se um acto é criminoso -ou não, a não ser que conheçamos ao mesmo tempo o meio social a que -pertence o auctor do acto e os motivos que o levaram a pratica-lo. - -Cumpre pois, a nosso vêr, não fallar em criminoso: é um ente de razão, -uma entidade abstracta. Ha um grande numero de alienados entre os -criminosos; mas a psychologia dos alienados criminosos é a mesma que a -dos outros alienados: o degenerado que tem impulso para o assassinato -ou para a violação não se differença em nada do onamatomano ou do -dipsomano; um epileptico não merece por modo algum ser separado dos -outros epilepticos por ter morto a sua mãe com um machado, e um idiota -não deixa de ser idiota por ter deitado fogo, para se divertir, a uma -meda de feno. - -Quanto aos criminosos que não são enfermos, poucas particularidades -apresentam a sua intelligencia e a sua sensibilidade, que se não possam -facilmente explicar pelo genero de vida a que a maior parte d’elles se -entregam. A difficuldade de admittir um typo criminal congenito é tanto -maior quanto não ha nada que prove nos factos escolhidos por Lombroso -e sua escola, que esse typo seja hereditario; ha poucas familias de -criminosos, e são causas sociaes e não psychologicas as que produziram -as raras «dynastias» de assassinos que teem havido occasião de -observar. A intelligencia dos criminosos de profissão é ordinariamente -pouco desenvolvida; não devemos deixarmo-nos illudir pelo engenho -muitas vezes maravilhoso com que combinam e executam os «lances» que -projectam, e pela manha que empregam para se subtrahirem ás pesquisas -da policia. Em geral, os malfeitores só teem um numero de idéas muito -restricto; estas idéas occupam constantemente o seu espirito, todos os -esforços da sua intelligencia convergem para essas idéas; fóra d’este -circulo limitado de preoccupações, são quasi sempre de espirito tardo e -mediocre; excessivamente rotineiros, teem uma certa tendencia para se -servirem indefinidamente dos mesmos meios. Cada ladrão acostuma-se aos -processos que escolhe e deshabitua-se de todos os outros. - -«O conjuncto das astucias de todos os ladrões reunidos é uma cousa -prodigiosa, como o conjuncto das astucias dos animaes; mas na -realidade, cada um só emprega uma»[24] de resto, se estas astucias -são a miudo frustradas, é porque geralmente, os criminosos carecem -de sequencia nas idéas; cançam-se depressa, teem confiança no acaso, -acreditam estupidamente na fatalidade, apressam-se em tirar proveito do -crime que commetteram; e tal é a sede de gozos que os aperta, que para -satisfazerem os seus appetites breve chegam a descurar toda a sorte -de precauções. As mais das vezes a imaginação dos criminosos é muito -mediocre. - -Se as imagens que os perseguem de vez em quando e os arrastam ao -crime teem uma intensidade tão forte, é mesmo por causa da pobreza, -da esterilidade da sua imaginação: toda a imagem, isolada, adquire um -poder extremo. A litteratura e a arte dos criminosos nenhum caracter -especial apresentam: se o ladrão ou o assassino ignorante compõe ás -vezes versos, é porque é «povo»,[25] porque a situação d’elle o torna -scismador, porque tem ocios que é forçoso encher. A tatuagem não é -unicamente costume dos criminosos; é um facto de sobrevivencia, um -costume que persistiu muito tempo nas classes inferiores e que se vae -apagando: as meretrizes, os marinheiros, alguns operarios, pintam-se -como os criminosos. «Se os criminosos se distinguem dos homens do povo -não é pelo amor aos letreiros, ás imagens, ás tatuagens e á linguagem -da imaginação: é pela natureza das cousas que gostam desenhar, de -recordar e de exprimir.»[26] - -A sensibilidade physica dos malfeitores não parece ser tão -profundamente alterada como o sustenta a escola italiana: convem, -talvez, deixar uma boa parte á simulação. Nada ha menos demonstrativo -do que a approximação que faz Lombroso do criminoso e do selvagem, -tanto mais quanto que parece que se exagerou demasiadamente a -insensibilidade dos proprios selvagens. Encontram-se factos -interessantes a este respeito nas _Cartas edificantes e curiosas_. Toda -a sensibilidade dos criminosos está pervertida e enferma, eis toda a -verdade; a vida irrequieta que levam, a ociosidade, a depravação, e -principalmente a depravação contra a natureza, tão frequentes entre -elles, os excessos alcoolicos, são motivos sufficientes para isso. O -carcere tem quasi sempre sobre elles uma acção calmante e deprimente -ao mesmo tempo; a sua sensibilidade aquieta-se e adormece. Chegam, -gradualmente, a uma indifferença profunda, a um verdadeiro horror da -acção e da lucta que faz com que muitos d’elles encarem com terror o -momento de deixar a prisão. A vontade dos criminosos enfraquece-se -e exalta-se ao mesmo tempo, é o resultado necessario dos actos que -praticam e dos costumes que contrahem fatalmente; mas a sua vontade -nem por isso deixa de ser uma vontade normal. Os desejos que impellem -para o crime os malfeitores nada teem de commum com os impulsos -irresistiveis dos epilepticos e dos degenerados. Nem tão pouco devemos -considerar os criminosos como uns «abulicos», isto é como joguetes -irresponsaveis e semi-inconscientes das circumstancias em que o -acaso os collocou. O que é certo é que a sua vontade em geral nem é -aniquilada nem fortificada pela vida que levam; torna-se desigual -e caprichosa, ora desfallecida ora arrebatada. Porém, com o tempo, -enfraquece; gasto pela existencia aventureira a que está condemnado, -o criminoso já nem força tem para querer o crime, não podendo pois -commetter crimes, desforra-se em commetter delictos. - -O sentimento moral não desappareceu, na maior parte dos criminosos, e -quero aqui falar dos criminosos de profissão; raras vezes se deixa de -encontrar consciencia alguma da culpabilidade dos actos que praticaram. - -Os accusados que mostram esse cynismo e essa impassibilidade que nos -espanta por vezes nos interrogatorios, são quasi sempre individuos -feridos de debilidade mental ou degenerados. - -A maior parte dos criminosos «seduziram-se» a si proprios para -se arrastarem ao crime; tiveram que sustentar verdadeiras luctas -interiores. Os malfeitores ainda novos tratam de justificar os seus -actos com arrazoados declamatorios contra a sociedade; os presos velhos -não gostam de fallar no que teem feito. - -Raro é que os criminosos não se perturbem deante da morte e que não -manifestem nos derradeiros momentos sentimentos de arrependimento e de -fé religiosa: quasi todos accolhem com prazer as visitas do capellão. -É verdade que é preciso deixar uma boa parte á hypocrisia e ás crenças -supersticiosas; mas o que não é menos certo é que observadores, poucos -dispostos a illudir-se, ficaram muitas vezes assombrados da fé sincera -que parecia acordar no coração de certos malfeitores no fim de seus -dias. Não tem isto nada que admirar. - -No silencio da prisão, calam-se as paixões, e os que nada já tem que -temer ou que esperar da vida podem frequentemente voltar inconscientes -ás crenças que a educação lhe tinha dado; podem ouvir, no mais -recondito do peito, como que um echo enfraquecido d’estes sentimentos -moraes e sociaes que lentamente se formavam na especie com o andar da -evolução. - -Não são geralmente sem duvida motivos desinteressados que os inclinam -para o arrependimento, mas convém que sejamos menos exigente que M. -Despine: não nos causa admiração o não achar-se nos criminosos esse -puro respeito do dever que o proprio Kant considerava superior á -natureza humana. - -Não é necessario reflectir muito para ver a differença extrema que -existe entre este estado de espirito e o dos alienados criminosos; não -parece possivel a confusão, a não ser entre alguns debeis e certos -criminosos, muito ignorantes, inintelligentes e grosseiros. - -Segundo as estatisticas, as mulheres commettem em proporção muito -menos crimes do que os homens; mas essas estatisticas precisam muito -de ser interpretadas. Um grande numero de crimes ha que as mulheres -não teem occasião nem força de commetter, e quando se tracta de actos -ao seu alcance, as proporções mudam logo; sobre 100 envenenamentos, -ha 70 commettidos por mulheres. De resto, ellas são com frequencia -as instigadoras, as cumplices secretas de crimes que não querem -executar ellas mesmas. A sua consciencia se perverte mais completa e -rapidamente; são mais capazes que o homem de actos de crueza fria e -reflectida. Ora hypocritas, ora ousadas e cynicas, gostam de mentir e -de enganar; menos capazes do que o homem de verdadeiro arrependimento, -são mais estreitamente do que elle aferradas ás practicas -supersticiosas. É muito difficil de as fazer voltar para o caminho -recto depois de se terem transviado. Não nos devemos admirar d’isso; -emquanto a sua sensibilidade seja instavel, a mulher é tyrannicamente -subjugada pelos seus habitos; as idéas, as razões teem pouca influencia -sobre ellas; a vida da prisão, silenciosa e regular, custa-lhe mais a -supportar que ao homem; não póde prescindir de sympathia e de ternura á -roda d’ella; depressa se corrompe quando não se sente amada. - -É evidente que, se o typo criminal não existe, a questão de saber se -esse typo é anastral não se póde formular. Mas M. Joly vae mais além, -quando affirma que, admittindo a hypothese da existencia d’um typo -criminal, é impossivel explical-a pelo atavismo. O criminoso não se -parece com o selvagem, apezar das affirmações da escola italiana; o -roubo dos moveis é castigado com rigor nos povos primitivos; todos -sabem que castigos terriveis attrahe sobre si o culpado de violação das -prescripções religiosas; ha para os casamentos, para todos os actos -de vida regras precisas ás quaes é obrigatorio submetter-se e que de -facto, raras vezes são violadas. Os proprios australios, segundo o -testemunho de Perron d’Arc, sabem distinguir entre uma vingança justa e -em acto de brutalidade; o rapto, o adulterio, o incesto, as offensas a -um chefe são castigadas com a morte.[27] - -Na realidade, muitas ideas que, lentamente se foram deslindando, estão -ainda confusos na mente d’uns selvagens: a idéa do peccado, a idéa -do crime e a do prejuizo praticado contra alguem, estão estreitamente -ligadas; foi preciso uma longa evolução social para permittir ao -direito criminal constituir-se separadamente do direito civil e da lei -religiosa. O que, em summa, faz falta ao selvagem, é a noção juridica -do crime; e não devemos ficar muito surprehendidos com isso. - -Tratou-se de explicar o crime por uma falta de adaptação mutua do -criminoso e da sociedade; mas isso não é mais do que uma definição -do crime, ou melhor, a constatação d’um facto, todavia não é uma -explicação. O que seria preciso explicar é porque o criminoso é incapaz -de se adaptar ao meio social em que vive. Ha para isso duas especies -de causas: causas sociaes e causas individuaes. As causas sociaes são -as que M. Joly se propõe estudar detidamente no seu proximo volume. -As causas individuaes são os appetites, os desejos, as maneiras de -sentir e de querer, em summa, todo o caracter do criminoso; o crime é -o resultado d’um conflicto entre uma sociedade que está submettida a -certas regras e um homem que não póde ou não quer, em conformidade com -a structura do seu caracter, sujeitar-se a observal-as. - -Todas as vezes que o conflicto se torna agudo e que o individuo -está resolvido a praticar actos de certa gravidade, estes actos são -qualificados de crimes; mas uma grande serie de actos cabem entre -actos socialmente bons e os crimes; não ha fronteira alguma social -que separe os crimes e os delictos das faltas contra a honra ou a -delicadeza, a distincção é uma distincção juridica, imposta pelas -necessidades practicas. O limite entre os crimes e os actos que a -justiça deixa impunes é um limite arbitrario; varia d’uma legislação -para outra. O criminoso é um homem como os mais; mas tem paixões muito -fortes, não sabe resistir-lhes nem satisfazel-as por meios legaes; não -tem a coragem de se resignar nem a de trabalhar e luctar, quer gozar, -mas sem esforços, quer por fraude, quer pela força, apoderar-se-ha -do que deseja. Talvez achasse meio, em outra sociedade, de empregar -utilmente a fórma de actividade que possue; mas prefere resignar-se ao -crime, que sujeitar-se a um officio que o aborrece. Cumpre notar que é -principalmente do verdadeiro criminoso, do criminoso de profissão que -se trata aqui, mas não serão tambem criminosos, criminosos incompletos, -bem entendido, os negociantes pouco escrupulosos, os jornalistas mal -reputados, os seductores de meninas, os operarios ebrios e brigões, -promptos a fazerem uso da faca? O criminoso é essencialmente um -preguiçoso, mas é um preguiçoso dotado por vezes de alguma energia; se -não tiver essa energia de curta duração, se tiver paixões menos vivas -e alguns escrupulos ainda, o preguiçoso sem dinheiro é incapaz de o -ganhar, ficará sendo toda a vida um vagabundo sem se tornar jámais -um criminoso, é sobre tudo entre os vagabundos que se recrutam os -criminosos de profissão, mas a vagabundagem está longe de conduzir ao -crime. «O crime do homem póde começar pela vagabundagem da creança, -como tambem póde principiar pela falta de delicadeza, pela intriga, -pela immoralidade elegante, pelo espirito de lucro. Nada prova que -d’ahi resulte inevitavel e necessariamente.»[28] A prostituição da -mulher corresponde á vagabundagem do homem: da mesma fórma essa não -constitue por si mesma crime nem delicto, como tão pouco conduz -necessariamente ao crime, ha meretrizes muito probas, muito capazes -de conceber amizades desinteressadas, muito affectuosas para com seus -filhos, muito sinceras; ha até varias que conservaram sentimentos -religiosos, mas todavia é no mundo das prostitutas que se recrutam -a maioria das ladras. A vida que levam predispõe as ao crime, mas -está bem longe de as condemnar necessariamente a isso; para a maior -parte d’ellas, o seu officio é um officio verdadeiro que exercem com -probidade; não fallam das ladras senão com desprezo, e das más mães com -uma especie de horror. - -As classes criminosas não teem maior estabilidade do que as outras; -renovam-se incessantemente; ha poucas familias de malfeitores. Apenas -existe uma classe, para dizermos a verdade, que é este montão instavel -de seres cahidos; mil motivos diversos dão origem aos criminosos, por -isso é que ha muitos typos de criminosos, muito distinctos entre si; -as unicas semelhanças são semelhanças exteriores que teem as suas -causas no mesmo genero de vida e costumes communs. Eis os typos que M. -Joly julgou dever distinguir: os inertes, os violentos, os viciosos, -os calculadores ferozes; facilmente achariamos na vida ordinaria quem -lhes fique parallelo. Mas a distincção que domina todas as mais é a do -criminoso por accidente e a do criminoso por habito. Entre os crimes, -ha alguns que são verdadeiros accidentes; os que os praticaram apenas -são responsaveis, o acto que commetteram lhes é decerto modo extranho; -convem necessariamente castiga-los, elles não tornarão a fazer o mesmo, -tem-se a certeza d’isso antecipadamente. Mas em compensação, quantos -crimes ha que parecem ser accidentaes, e que foram preparados por toda -a vida anterior pelos que d’elles se tornaram culpaveis. Um crime póde -não ser premeditado, não ter sido desejado sem deixar por isso de -ser a obra verdadeira d’aquelle que o praticou. O accidente acontece -quasi sempre áquelle que se expoz para succumbir, que não tratou de -fugir ás tentações demasiado fortes; semelhante acto é o producto -d’uma vontade, mas d’uma vontade que se abandona. Para um homem -accidentalmente culpavel, o verdadeiro perigo, é que o seu crime fique -impune; o medo do castigo se embota, o remorso do crime se acalma, -o culpado é orgulhoso da sua habilidade, acostuma-se a contar com o -acaso como um jogador que começou por ganhar. Pouco a pouco deixa-se -arrastar a um novo crime. Se se deixar então prender, se fôr condemnado -a prisão, o contacto com os presos, as horas pesadas e vazias que passa -nos dormitorios e nos pateos, acabam a obra que a vida de aventuras -começou, a vida inquieta e perturbada que levou por muito tempo. -A situação difficil que é propria do homem livre, lhe torna quasi -impossivel voltar para o seu officio, a não ser que tenha uma rara -energia; um unico officio fica aberto deante d’elle o de malfeitor: o -criminoso de costume, tornou-se criminoso de profissão. - -O que estabelece uma linha de separação bem clara entre os criminosos e -alienados, é precisamente que, para um grande numero de criminosos, o -roubo é uma profissão; é um officio de que vivem. Isolado, o criminoso -não póde senão com custo exercer a sua industria, precisa forçosamente -cumplices. Parece, segundo as estatisticas que as associações -criminosas se tenham tornado muito mais raras do que out’ora; mas é -uma pura apparencia; o Estado mais perfeitamente armado, a policia -melhor organisada, as communicações mais faceis e rapidas tornaram mais -difficil a formação de quadrilhas regulares, de associações submettidas -a um chefe; mas contrariamente ás affirmações dos relatorios officiaes, -o espirito de associação dos malfeitores não tem diminuido; não ha -ladrão sem encobridor; os malfeitores precisam ser informados dos -ataques que podem realisar, é necessario que os indicadores preparem -o terreno, «alimentem o negocio» antes de se atreverem a tentar. Uns -são muito habeis na execução d’um plano que não saberiam imaginar; -outros carecem da força e da destreza que se precisam para executar os -planos que elles proprios traçaram; d’ahi resulta uma divisão natural -do trabalho. Ha certas especies de delictos e de crimes que só se podem -commetter com gente bastante. Para pôr em circulação a moeda falsa, -é preciso serem tres pelo menos, um fabricante e dois emissores; é -a forma mais habitual da associação criminosa: Ha trios de ladrões -á roleta e de salteadores de casas, como os ha tambem de moedeiros -falsos. O trio geralmente forma-se entre vadios, os frequentadores de -bailes publicos, dos botequins baratos, de casas mobiladas suspeitas, e -das tabernas pobres; durante o verão, é vadiando nos parques, ao longo -do caes, ou sentado nos bancos dos passeios exteriores que o ladrão -tem a probabilidade de encontrar socios. Estas associações fazem-se e -desfazem-se facilmente; são frequentes vezes ligadas umas ás outras -por laços mais ou menos estreitos. É nas prisões que estes laços se -apertam ainda mais, que os bandos tomam uma organisação mais forte; os -roubos bem feitos são os que se meditam na prisão. Todos os presos se -conhecem, quando estão em liberdade sabem encontrar-se. - -Uma fórma de associação ainda mais geral, é a da meretriz e do seu -rufião. A burla é n’esse meio a fórma de expoliação que está mais -em voga; é principalmente no mundo da prostituição anti-physica que -grassa, e ahi o rufião é quasi sempre um assassino. Ao lado d’estas -associações restrictas começam a organisar se vastas associações -internacionaes que estão destinadas, se a repressão se descuida, a -estenderem-se sobre o mundo inteiro: M. Joly dá interessantissimos -exemplos d’este facto que lhe foram fornecidos pelo serviço policial. - -Tal é, em resumo, a ideia que se póde fazer dos criminosos, segundo o -livro de M. Joly. Não estamos muito longe de compartilhar esta ideia; -parece-nos porém que M. Joly não determinou com exactidão as relações -que existem entre o crime e a alienação mental. Não ha duvida que o -criminoso e o alienado sejam muito differentes um do outro; mas existe, -entre os reus que os tribunaes condemnam, uma proporção mais importante -de alienados do que julga M. Joly, e se tomasse conta dos absolvidos -por incompetencia do tribunal e por falta de provas, ver-se-hia que -n’uma grande parte os crimes contra as pessoas, e sobre tudo os crimes -sexuaes são commettidos por irresponsaveis. Os idiotas, os imbecis, -os debeis, os degenerados, os epilepticos, os delirantes chronicos -podem em certas occasiões tornar-se todos criminosos em razão das -perturbações psychicas que apresentam; esta occasião apresenta-se-lhes -com frequencia e em geral sabem aproveital-a. Os paralyticos geraes -povoam os tribunaes correccionaes, e muitos negocios de «chantage» -não teem outra origem senão as concepções delirantes d’um degenerado -perseguidor. A loucura não é desgraçadamente uma doença rara, e -não admira que seja entre os seres cuja vontade está enferma, a -sensibilidade pervertida e a imaginação exaltada, que os criminosos se -recrutem mais facilmente. - - -NOTAS DE RODAPÉ: - -[13] É para notar como os poucos escriptores que recentemente em -Portugal teem tratado de criminologia se revellam todos contra a idea -da liberdade individual, dizendo-se positivistas e enfileirando-se -confusamente na escola metaphysica do determinismo materialista. -Vejam-se as obras dos srs. A. Azevedo Castello Branco, Julio de Mattos, -e até certo ponto ainda os trabalhos dos srs. Bernardo Lucas e dr. -Basilio Freire. - -[14] _Les irresponsables devant la justice_, par A. Riant, Docteur en -médecine, licencié en droit, lauriat de la Faculté de droit de Paris, -ancien secrétaire de la Société de Médecine legale de France, etc. - -[15] Este trecho já serviu de argumento sentimental a um illustre -jornalista portuguez. - -[16] _Élements du droit pénal_, pag. 80 par M. Ortolan. - -[17] Cl. Bernard, _La science experimentale_, Physologie du coeur, pag. -361. - -[18] _Tratado do Direito Penal_, por P. Rossi. Pag. 260-261. - -[19] _L’ordre social et l’ordre moral_ por A. Bertauld, pag. 18. - -[20] Elie Rabier, op. cit. - -[21] O trecho que segue é devido á penna de L. Marillier, publicado em -artigo na _Revue Scientifique_. n.ᵒ 16, de 1889. - -[22] J. Tarde, _La criminalité comparée_, 1886. - -[23] H. Joly, _Le crime_, étude sociale, 1888. - -[24] _Le crime_, pag. 171. - -[25] _Le crime_, pag. 177. - -[26] _Le crime_, pag. 188. - -[27] _Le crime_, pag. 13. - -[28] _Le crime_, pag. 42. - - - - -III - - A base do direito de punir. O papel da psychopathia na - responsabilidade legal. O fanatismo, a suggestão hypnotica e a pena - capital. A influencia legitima da consciencia moral em direito penal. - - Les crimes purement moreaux, et qui ne laissent aucune prise à la - justice humaine, sont les plus infâmes. - - H. BALZAC. - - -O direito ideal com o seu caracter de inviolavel, de absoluto, de -universal, não póde ter por principio o _desejo_ de Helvetius, a -_necessidade_ de Tracy, a _força_ de Hobbes, ou a _utilidade social_ -de Spinosa, o unico fundamento legitimo do direito é a liberdade ou -a _autonomia da pessoa_, segundo a expressão de Kant: «O dever e o -direito são irmãos, diz Victor Cousin, a sua mãe commum é a liberdade.» - -O direito penal classico estudou perante a psychologia normal e perante -a ethica a base do direito de punir, com muito mais profundidade e -alteza de vistas, do que as escolas revolucionarias contemporaneas. -Tissot e Romagnosi fizeram a analyse completa das condições -indispensaveis sobre que assenta o direito de repressão. É preciso -reconhecer todavia que ha uma porção de verdade em todas as opiniões, -pois que elles teem todas uma certa razão de ser, quer em nossos -instinctos apaixonados, quer na nossa consciencia. «Assim,[29] em -nome dos principios precedentemente estabelecidos podemos dizer com -verdade que ao homem não toca mais o _dever de punir para punir_, do -que missão e meios de manter a ordem absoluta do mundo moral; tão pouco -lhe toca o _direito de punir para punir_ ou com o fim de restabelecer -embora a ordem juridica, e só pela consideração da necessidade moral, -ou d’essa ordem em si; mas tem o direito de _punir para se defender_ ou -no interesse da sua conservação. A sociedade investida, no interesse -geral, do exercicio d’este direito, vendo, aliás, na lesão praticada -em um dos seus membros um perigo e uma ameaça para todos os outros, -com razão se preoccupa pelo futuro, e procura prevenir, com uma pena -aliás justa a repetição da injustiça. O direito de defesa não se -applica (sómente) ao individuo desarmado, preso, algemado e desde -então impotente; o direito da defesa applica-se ao futuro, applica-se -á intimidação, e quando a sociedade fere para se defender, é menos -para se defender contra aquelle a quem fere, do que para se defender -contra a repetição, contra a renovação dos crimes que ella prescreveu -e puniu.[30] Ninguem contesta o direito de defesa; negá-lo seria negar -o direito de existir. E como se reconheceria por isso mesmo o direito -de vida e de morte a uns homens sobre outros homens, seria faltar ao -mesmo tempo á justiça e á logica. Fica pois estabelecido que o direito -de punir, se por isso se entende o direito de defesa, existe e até -como existencia necessaria, pois que da sua negação resultaria uma -contradicção, isto é, o impossivel. Toda a difficuldade consiste, pois, -em saber se o direito de punir, no sentido de expiação, de retribuição -do mal pelo mal, de meio de correcção ou de reparação moral, é um -direito para o homem, e até o deve exercer, que isso lhe cumpre. Ora, -suppondo que seja de justiça fazer a outrem o mal que se recebeu, -haveria n’isso um problema de uma difficuldade quasi insoluvel para o -homem. Bem podemos, sem duvida, apreciar comparativamente as cousas -materiaes da mesma especie; é assim que uma moeda de cobre ou prata -equivale a outra do mesmo peso e do mesmo metal e feitio, ou que um -metro de tecido de uma certa qualidade conhecida póde equivaler ainda -a um outro, ainda que n’estes já se apresentam differenças que se não -percebem facilmente. Mas as difficuldades são notavelmente grandes e -embaraçosas se compararmos não já materia com materia, mas cada materia -susceptivel de ser um objecto de direito em relação a um proprietario -ou a outro, se considerarmos a acção culpada em relação ao grau de -intelligencia, de liberdade e de moralidade do agente. Para exercer -exacta e boa justiça não basta conhecer mais ou menos perfeitamente o -corpo de delicto, a natureza do mal commettido; é necessario apreciar -além d’isso o grau de maldade que presidiu á acção, e o grau de -soffrimento d’ahi resultante. - -Ora nós temos como certo que não ha homem, nem tribunal no mundo no -caso de proferir uma sentença sobre qualquer delicto revestida d’esta -precisão necessaria. Ainda mais, nem os mesmos agentes ou pacientes -são capazes de se julgar perfeitamente a este respeito, cada um no que -pessoalmente lhe diz respeito; com mais forte razão mal poderão elles -ser bem julgados um pelo outro ou ambos por terceiros. Assim, n’este -ponto de vista, é o homem absolutamente incapaz de administrar boa -justiça. Isto ainda assim na supposição de que o homem emprehendesse -esta temivel empreitada, era tão perspicaz, tão attento, tão amigo -da justiça quanto o póde ser um mortal. Que seria se as paixões, os -preconceitos, a preguiça, a ignorancia viessem a turvar ainda um -julgamento aliás tão difficil de proferir! Felizmente é isso antes um -problema moral, que um problema juridico, e o legislador, o principe, o -juiz, não sómente não estão obrigados a resolvê-lo, porque não é essa -a sua missão, mas bem pelo contrario deveria impor-se-lhes a obrigação -de se absterem de tal. Não podendo absolutamente fazer reinar a ordem -moral pura nos corações, cumpre-lhe deixar esse cuidado áquelle que só -póde penetrar em tal abysmo, ao unico poder capaz de lhe dar remedio. - -Que seria, por outro lado, esta retribuição do mal pelo mal, suppondo -que ella fosse possivel no homem? Qual o seu fim? Justa é que nós -desejamos que seja e isso basta para que seja sabia. Só Deus é assaz -intelligente e assás poderoso para fazer com que um criminoso passe -pela justa medida de soffrimento que merece a sua maldade considerada -em relação ao soffrimento occasionado. Mas esta retribuição de um mal -physico por um outro mal da mesma natureza reparará, póde acaso reparar -o mal moral, a culpabilidade? Póde fazer como que não tenha existido? -Esta virtude nem mesmo Deus lh’a póde dar. Não destroe pois em nada -absolutamente o mal moral do delicto; não o apaga de modo algum, e se -a expiação se definisse «a reparação do mal moral pelo mal physico,» a -expiação seria absurda e impossivel. Entender-se-ha, ao contrario, por -expiação a reparação do mal physico, de um pelo mal physico d’outro? -Nenhuma expiação possivel ainda n’este sentido, pois que o mal physico -occasionado pelo delicto não foi por isso menos soffrido, quer o -delinquente soffra ou não soffra um mal igual. Só a reparação civil, -que não devemos confundir com a pena, só ella poderia operar ás vezes -uma compensação mais ou menos sufficiente. Mas a pena propriamente dita -não póde absolutamente produzir nada semelhante, a menos, todavia que a -necessidade e a satisfação da vingança não sejam aqui dadas como base -do direito de punir, o que não é sem duvida o pensamento d’aquelles -que sustentam a existencia d’um semelhante direito. Mas ainda que -esses sentimentos podessem ser tomados em mui séria consideração e que -se podesse definir a expiação «o direito de vingança» seguir-se-hia -que bastaria aggravar todo o delicto pelo assassinato para tirar toda -a razão de punir o criminoso; bastaria avultar o crime para obter a -impunidade; ou antes ainda bastaria, para desarmar a justiça, que a -victima quizesse perdoar ao algoz. Finalmente, se a expiação é «um -meio physico de fazer nascer no criminoso o arrependimento, o respeito -da justiça, a sympathia e o amor da humanidade», em presença d’esta -definição tambem o homem não tem direito a punir: 1.ᵒ porque n’isso -se trata d’um estado moral interno que não tem missão de estabelecer, -pelo menos em nome do direito; 2.ᵒ porque não conhece esse estado; -3.ᵒ porque não ignora os meios proprios de o procurar; 4.ᵒ porque se -privaria da applicação do principio de reciprocidade no caso do crime -capital, pois que não poderia exercel-o, quer houvesse arrependimento, -quer não: se o houvesse, seria inutil a pena; se o não houvesse, -seria necessario não o tornar impossivel com a morte do criminoso; -5.ᵒ porque em todo o caso o arrependimento tornaria a pena inutil e, -portanto, injusta; 6.ᵒ porque a hypocrisia surprehenderia muitas vezes -a justiça; 7.ᵒ porque a pena seria antes uma occasião de fraude; 8.ᵒ -porque se a pena só fosse um meio de trazer o arrependimento, haveria -o direito de a prolongar ou de a aggravar indefinidamente até obter -se o fim; 9.ᵒ porque todas as penas do mundo, principalmente quando -excedem a culpabilidade, são meios mui poucos seguros de trazer ao -reconhecimento da falta commettida; podem reter, mas não converter. A -mudança moral do criminoso não póde ser portanto o fim essencial da -pena, ou, se o é, está nas mãos de Deus, que só póde saber fazer o que -convem a este respeito. Mas não poderia Deus delegar nos homens, nos -soberanos o direito de punir? Eis o que se tem discutido muitas vezes -e discute ainda. Nós seriamos d’este parecer se elle ao mesmo tempo -se dignasse delegar-lhes a sua sabedoria; de outro modo não podemos -comprehender que lhes confira um direito que elles são naturalmente -incapazes de exercer. A melhor prova portanto, a nosso ver, de que -elle deixou ficar para si só o direito de punir, é que elle recusou ao -homem as luzes e o poder necessarios para exercê-lo justa e utilmente. -Esta impossibilidade de uma plena justiça n’este mundo é um dos mais -poderosos argumentos em favor de uma vida futura, se é que admittimos, -como não podemos deixar de admittir, um Deus santo e providente. - -O homem está tão longe de poder punir, como vulgarmente se entende esta -parte da justiça; é tão duvidoso que tenha recebido este direito por -delegação celeste, que o mesmo Deus não poderia exercel-o, a menos que -não repugnasse á sua bondade e á sua santidade suprema fazer soffrer -a uma creatura um mal physico sem outro resultado que esse mesmo -soffrimento, motivado somente n’um soffrimento igual supportado por uma -outra creatura em consequencia da acção punida. Nós reconhecemos que a -justiça absoluta não parece reclamar contra esta penalidade vingadora, -que até parece reclamá-la; sabemos que a justiça não tem necessidade -de ser util para ser legitima, que tem em si mesma sua propria razão -de ser, que faz parte da ordem moral, da ordem do direito. Mas, visto -que acima da ordem juridica, que é puramente negativa, ha no mundo -moral ainda um grau superior de perfeição, a de um bem moral positivo, -porque não seria a pena, restabelecendo a ordem negativa, corrigindo -a desordem, um meio para uma ordem melhor, um encaminhamento para o -bem? E se Deus tem a intelligencia e o poder necessario para assim -fazer sair o bem do mal, porque o não faria? Porque deixaria elle aos -homens o direito de corromper as suas disposições, de separar os meios -do fim, de aggravar o estado moral do mau tornando-o peor pela pena? -Acautelemo-nos todavia de cair n’uma vã disputa de palavras visto que -fica assente chamar direito de punir o direito de se proteger, de se -defender, seria pelo menos pueril disputar a tal respeito; mas para -não disputar mais, é necessario entendermo-nos. Em resumo: o homem -não tem missão de punir, para punir, isto é para restabelecer a ordem -moral perturbada pelo delicto, para fazer reinar a justiça absoluta, -applicando ao deliquente a lei por que elle se torna culpado. Não; e -posto que haja n’isso uma justiça, absoluta, objectiva a restabelecer; -ainda que o direito de punir propriamente dito só esteja n’isso e não -em outra causa; posto que o principio da reciprocidade, seja mystico, -falso, absurdo e fanatico, sem regra como sem medida; ainda que pareça -que o homem tem não sómente o direito, mas ainda o dever de fazer -reinar a justiça, encarada assim, pertence á ordem absoluta das cousas, -ao bem ou á moral em si, e o homem não tem a missão de fazer reinar -esta ordem senão na sua pessoa individual e não na sociedade; porque -lhe é aliás impossivel estabelecer este reinado da justiça absoluta -de uma maneira perfeita, visto que elle não conhece sufficientemente -os caracteres moraes do delicto, a natureza e o grau de soffrimento -d’aquelle a quem lesou, visto que não possue os meios mais proprios -para operar perfeitamente perante a reciprocidade pela escolha perfeita -da natureza e da medida da pena; o direito de punir que lhe resta não -é, fallando com propriedade, senão o direito de suavisar até um certo -ponto o soffrimento que elle sente pelo delicto, de entrar na paz de -uma segurança um instante perturbada, e de ter para o futuro uma certa -segurança. A pena tem pois, _para o homem_, sua razão n’este interesse; -razão subjectiva, relativa, mas indispensavel; estranha até ahi todavia -á necessidade moral absoluta de reparar a desordem levada pelo delicto -ao mundo moral. Mas se a pena, tal como o homem tem o direito, senão -o dever de a applicar, tem sua razão relativa ou humana no interesse -privado e publico, tem sua regra e sua medida na justiça absoluta, -justiça que o interesse, um interesse qualquer, não tem o direito de -violar.»[31] - -É importante o papel do pensamento, perante a responsabilidade moral -e legal no crime e na loucura, por isso a psychologia sobreleva -aqui a todas as sciencias. «É essencial precisar a funcção do ser -_psychico_ do pensamento sob os modos de ver da responsabilidade -moral e legal, e n’esta parte ainda nós nos encontraremos em presença -de dois systemas exclusivos. «A cellula cerebral, diz o dr. Voisin, -é a officina do pensamento». Logo, a alteração do pensamento, -isto é, a loucura resultaria do desarranjo do tecido cerebral; o -que é a traducção d’este principio materialista: o pensamento é -uma secreção do cerebro. Por outra parte, dizem grande numero de -espiritualistas que a loucura é a doença da alma. Um abysmo separa -estas duas doutrinas; mas não se vê bem o que cada uma d’ellas tem de -exagerada? Não existe nenhum laço entre o estado physico e os factos -de consciencia? É preciso desconhecer inteiramente o valor intrinseco -das faculdades intellectuaes e naturaes, o estado do cerebro e dos -nervos, negar a influencia do temperamento sobre a determinação do -caracter? Se não foi possivel ainda elucidar a contento de todos -estes mysterios scientificos, se o problema das origens e das -manifestações do pensamento permanece á beira d’uma solução, a culpa -d’isto é sobretudo d’aquelles que, em campos oppostos, se recusam -a toda e qualquer concessão e paralysam por preconceito de eschola -os progressos da sciencia. Negar ao cerebro toda a acção sobre o -pensamento, não ver n’elle senão um simples intermediario, senão um -agente de transmissão, é tão exagerado como considerá-lo o grande -motor e o unico centro intellectual. Para nós, o pensamento, é um -trabalho cerebral manifestando-se á consciencia, seu director e seu -juiz, isto é, o ser psychico dominando em principio o ser organico. -Póde o pensamento ser inconsciente, e o trabalho cerebral estar -latente para o sujeito em si como o está muitas vezes para os que o -cercam? Não hesitamos em responder affirmativamente. A formula do -_automatismo_, que devemos ao genio de Descartes, estabelece a lei -geral que regula a maior parte das manifestações exteriores da vida; -e está hoje reconhecido que os centros nervosos e certos grupos de -cellulas transformam as sensações em movimentos. Tomemos ao acaso -o exemplo mais commum, o do _andar_, no qual a potencia automatica -se revela tão manifestamente. Aqui a _vontade_ dá as suas ordens os -orgãos seguem-nas, e não cuida ao menos na execução; o servo substituiu -o senhor, e o senhor não intervirá senão em momento opportuno; a -vontade não obra senão para ir ou ficar. Contestar-se-nos-ha além -d’isto que o concurso da vontade seja necessario para o cumprimento -de certos actos apparentemente espontaneos? É evidente emfim, que -em certos momentos não podemos affastar jámais do nosso espirito as -idéas que nos cercam, que não podemos mandar como soberanos os nossos -pensamentos, que não podemos fazer reviver factos que outr’ora nos -commoveram, e cuja lembrança se revelará um dia inesperadamente, sem -causa apparente. Basta só este ultimo phenomeno para estabelecer que o -pensamento póde ser inconsciente, porque não se tem manifestado; aqui, -o trabalho intellectual não se tem operado sob o impulso da vontade. -Se escrevessemos um trabalho sobre este assumpto, poderiamos citar em -nosso apoio exemplos numerosos a que Carpenter chamou a _cerebração -inconsciente_. O philosopho, o jurisconsulto, o poeta, depois de terem -procurado em vão uma formula, uma solução, uma idéa, encontram-na -muitas vezes quando o seu pensamento menos o pensa, outras, sem a -procurar são postos em posse d’uma idéa nova. - -Um mathematico, depois de ter renunciado á solução d’um problema -difficil, encontral-o-ha subitamente e de improviso. Mas nós voltaremos -ao automatismo, quando fallarmos dos sonhos e do somnambulismo, e -veremos então a influencia que póde ter o trabalho involuntario do -espirito sobre as acções humanas ácerca da responsabilidade. Basta-nos -indicar agora que o pensamento póde ser inconsciente, que não é sempre -o escravo docil da vontade, que pode subtrahir-se ao seu imperio. E -não se póde dizer que este estado de que fallamos seja loucura porque -estes phenomenos dão-se em todos os homens, são geraes e soffrem-nos as -naturezas mais completas. Por isso mesmo, a existencia do pensamento -não incommoda o ser organico; o que incommoda é a sua manifestação -exterior, é a acção que imprime aos orgãos e suas funcções. O _ser -psychico_, isto é, a consciencia, a razão, a vontade e o ser organico, -isto é, a materia, o instrumento, o servidor, são os dois elementos que -constituem o homem e fundem-se em uma admiravel e mysteriosa unidade. -Cada um d’estes elementos tem o seu destino. No principio e no estado -normal, o primeiro manda e o segundo obedece. Do desenvolvimento -regular e completo d’aquelle, da sua potencia sobre as faculdades, da -sua acção sobre os orgãos dimana o _livre arbitrio_, que se manifesta -sempre que o ser psychico exerça um acto de soberania sobre as forças -humanas. A lei que é a vida vegetativa ou instinctiva na escala -inferior da natureza é para o homem substituida por uma outra lei, o -livre arbitrio; e este será a vida moral, intelligente, consciente, -responsavel. Se eu não visse na sua origem seres psychicos differentes -uns dos outros, se m’os representasse todos da mesma essencia e da -mesma natureza, se suppuzesse que esta parte immaterial de nosso ser -está collocada n’um involucro corporeo sempre identico, não é menos -certo que a alma póde modificar-se, passar reciprocamente do bem ao -mal, desenvolver-se ou abortar. Tanto a alma, como o corpo tem as suas -doenças, as suas debilidades, os seus descaimentos; mas, como o corpo, -ella pode curar-se, se o mal não tem feito já taes progressos que torne -todo o meio curativo impraticavel. A alma mal formada, mal dirigida do -principio, não saberia exercer sobre o ser um imperio sufficiente e -moralisador, não saberia operar sobre as paixões e reformar os defeitos -da nossa organisação. Progressivamente, o mal augmenta, e chega um -momento em que as proprias paixões, em logar de serem dominadas, -dominam ellas. A força moral superior é anniquilada, o escravo -revolta-se, e, destruindo a auctoridade do amo, triumpha. O poder da -alma sobre as sensações, as idéas e os sentimentos desapparecem, ficam -escravisados. A usurpação é sempre a consequencia da impotencia. Por -mais que diga a escola positivista, a alma, o merito e o demerito, a -noção do bem e do mal, o livre arbitrio, a responsabilidade, não são -chimeras. «Tirae a liberdade, disse Fénelon, toda a vida humana é -destruida, não fica sobre a terra nem vicio, nem virtude, nem merito.» -Mas na propria duvida, na impotencia em que esta escola se encontra em -demonstrar a verdade dos seus principios, pois que de boa fé se deve -reconhecer que tem phenomenos inexplicaveis, porque não se refugiar -pois, n’esta doutrina espiritualista que restitue ao homem a sua -dignidade, que é consoladora, que eleva? O principio do merito e do -demerito, o principio eterno de toda a moralidade humana, será pois o -ponto de partida d’este estudo; elle deve ser nossa luz e nosso guia, -atravez das obscuridades da materia e dos systemas contradictorios dos -auctores. Ora, encontraremos nas duas origens, nos dois elementos, -a alma e o corpo, os mesmos principios da responsabilidade e da -penalidade.»[32] - -Para fazer a hypotypose rigorosa do delinquente, não basta ser -psychologo, é preciso tambem ser escriptor. Nem todos os tratadistas -teem na sua intelligencia um telescopio cujo diametro de objectiva e -distancia focal possam adequar-se a estudos de natureza tão melindrosa -e tão complexa. É menos difficil talvez com um cosmolabio medir o mundo -do que com um psychometro medir e pesar a intensidade dos attributos -moraes do homem delinquente. Por mais que os aristarchos enthusiastas -da anthropologia apregoem em estylo farfalhudo a acephalocardia moral -do criminoso, o estudo introspectivo e experimental da consciencia -pouquissimo a esse respeito nos diz por ora de positivo. - -Escreve o sr. Oliveira Martins: - -«Se esta camada movediça assenta sobre a rocha ignea da ferocidade -primitiva na stratificação geologica do crime, outra cathegoria -de criminosos apparece como na terra surgem as massas eruptivas. -Aos crimes do sangue e aos crimes do desejo, sommam-se os crimes -do fanatismo. Profundo, candente, satanico, o criminoso fanatico -irrompe com a violencia teimosa de um barbaro, mas trazendo comsigo -ao mesmo tempo a fé, a abnegação, a candura de um martyr. O que faz -chamar-se-lhe doido é que os outros crimes são expressões anormaes ou -mostruosas do egoismo individual; ao passo que este se apresenta como a -monstruosidade da paixão collectiva, que tanto armou os regicidas, como -decidiu os martyres a ganharem a palma viridente. O que impressiona -de um modo extranho e apparentemente inexplicavel, é que nos outros -criminosos a razão do crime está n’uma fatalidade positiva; organica -ou social, n’uma fatalidade em todo o caso inconsciente; ao passo -que n’estes se encontra uma consciencia completa das causas e dos -fins, e a par da lucidez quanto aos motivos, uma aberração total -quanto á criminalidade dos actos. Os crimes da paixão segundo o typo -classico de Othello, podem reduzir-se á mesma cathegoria dos crimes -do fanatismo religioso ou politico. O attentado typico d’esta especie -é o homicidio; porque uma critica nebulosa ou crepuscular denuncia -ao fanatico um certo homem como causa; quando sempre, pode dizer-se -assim, os homens são apenas effeitos de causas muito mais complexas. -Bruto assassinou Cesar, mas nem por isso a republica se restaurou em -Roma, Judith decapitou Holophernes, mas nem por isso Jerusalem deixou -de cahir. Os nihilistas russos mataram Alexandre II, mas o cesarismo -moscovita mantem-se. O regicidio é o typo historico moderno do crime -por fanatismo. Hoje que aos absolutismos succederam as democracias são -verdadeiros reis os centos de homens que em cada paiz dictam as leis -e imperam sobre a opinião. Sobre elles impende a responsabilidade que -outr’ora pesava sobre a cabeça dos tyrannos; e são, como elles eram, -o alvo de todos os anathemas. As erupções do fanatismo religioso ou -politico surgem nos periodos de commoção social. Approximar estes dois -factos, fazendo resaltar o seu parallelismo constante seria longo e -desnecessario. Toda a gente reconhece isto. A historia das allucinações -collectivas tem a mesma extensão que a das podridões sociaes: são as -flores venenosas que brotam do esterquilinio, ou os tortulhos molles -que na sombra humida vão minando o palacio dourado da sociedade -venturosa.» - -A ambição é uma tendencia congenita fortificada por inclinações -exaggeradas e pervertidas a mór parte das vezes nascidas de -predisposições organicas para a paixão ou de funestas influencias -moraes. É assim que o fanatico encubado consente que a paixão vença a -vontade. - -Os grandes alienistas e abalisados jurisconsultos formulam, como -postulados da responsabilidade legal, o livre arbitrio, não confundem -nunca o alienado com o criminoso, estabelecem como caracter distinctivo -do criminoso a posse da liberdade. O alienado, diz o dr. Ball, -auctoridade em psychopathia, é um homem que, em consequencia d’uma -perturbação profunda das faculdades intellectuaes, perdeu mais ou menos -completamente a sua liberdade moral e cessou, por emquanto, de ser -responsavel das suas acções perante a justiça.» Esta definição admitte -a liberdade como a essencia _mater_ da alma, mas é incompleta, porque -se esquece das perturbações da ordem _affectiva_, tão numerosas e as -quaes podem levar o agente á irresponsabilidade. - -O dr. Dally sustentou a these seguinte: que no ponto de vista dos -interesses da sociedade e da sciencia, alienados e sãos d’espirito, -são responsaveis pelo mesmo titulo e que nada varia senão a fórma -das responsabilidades: para o criminoso o castigo, para o alienado o -asylo; «a utilidade, unico fundamento da pena exige que a sociedade se -preserve do alienado criminoso como do criminoso, pois que os actos dos -alienados não são menos perigosos que os dos delinquentes.[33]» Isto -escrevia o dr. Dally, já em 1863, e os criminalistas da escola italiana -chamam-lhe pomposamente a theoria hodierna. Um alienado que commetteu -um assassino póde-se curar, com que direito se conserva preso depois -da cura? Tal captiveiro não seria nem racional nem util.[34] N’outro -capitulo já demonstramos a falsidade de tal criterio de punir. - -A suggestão hypnotica em medicina legal é já um problema discutido -nas escolas alienistas de Paris e de Nancy, e cuja importancia urge -reconhecer. O individuo no estado hypnotico é inteiramente despojado -das prerogativas da sua personalidade, que ficam sendo exercidas pelo -agente que veiu installar-se na vida psychica, condicionada pelo seu -systema nervoso. É indispensavel admittir a possibilidade de suggestões -criminosas, e a investigação juridica do seu auctor, sempre que o -hypnotisado não foi a causa livre da sua hypnose, porque na hypothese -contraria, quem consentiu em ser hypnotisado e que commette um crime -por suggestão tem a responsabilidade penal do acto que praticou.[35] - -Os trabalhos de Gilles de la Tourette, Ladame, Puglieri, Bernheime, -Liégeois, Brouardel, Motet, etc., teem evidenciado os inconvenientes -da pratica do hypnotismo.[36] Apresentada essa allegação juridica nos -tribunaes, a irresponsabilidade em nome da suggestão criminosa, e -admittida a hypothese de que todos os individuos são susceptiveis do -estado da hypnose, é de presumir que todos os reus se apresentassem -como victimas de mysteriosa ou vingadora suggestão criminal; e como -ha uma difficuldade quasi insuperavel de verificar esta simulação, os -accusados deviam ser absolvidos, ficando ainda com o direito de se -vingarem de qualquer inimigo, attribuindo-lhe a suggestão, como já teem -feito alguns hystericos. Muitas mulheres nevropathas teem attribuido a -violação e o rouço a homens que nunca se approximaram d’ellas. - -Lombroso, como diz Tarde, quer que a criminalidade seja devida a uma -suggestão posthuma, exercida sobre os vivos pelos nossos antepassados -prehistoricos. - -Podemos dizer como o dr. Culerre: o crime hypnotico é possivel, mas -devemos apressar-nos a accrescentar que os progressos da sciencia nunca -crearam um criminoso e que o hypnotismo não augmentará o numero dos -scelerados.[37] Ha quem pretenda aproveitar o estado da hypnose para -extorquir o segredo do crime. Em nosso entender privar um individuo da -sua liberdade moral, que é a mais alta prerogativa da especie humana, -para lhe devassar os arcanos da sua consciencia, é um attentado contra -o qual a razão e a dignidade conclamam. Porém quando até tal processo -levasse ao reconhecimento do delinquente, as suas revelações não podiam -merecer séria confiança do tribunal, porque podiam ser falsas como -succede com muitas denuncias da hypnose, sobre tudo na fórma hysterica. -Tão perigoso caminho seria um retrocesso aos tempos da tortura, em que -a justiça queria arrancar segredos com o supplicio da intensidade da -dôr e muitas vezes obtinha apenas angustiosas falsidades. - -Um dos tristes serviços que o hypnotismo podia prestar á humanidade, -era nas execuções de pena de morte, substituir os actuaes processos -pela eliminação instantanea e sem soffrimento. Admittida a hypothese de -se poder fazer parar o coração durante a somniação hypnotica é evidente -que se póde matar um individuo até sob uma suggestão agradavel, dado -o caso do hypnotisado ser suggestionavel. Uma grande emoção provocada -pela suggestão durante a hypnose seria o sufficiente talvez. Broca e -Ward sob o influxo da anesthesia hypnotica e da somniação plena da -hypnose fizeram notaveis operações cirurgicas. Estando todavia, o -condemnado de posse da idéa do dia fatal em que o querem matar, será -talvez difficil que a hypnose se realise. Em qualquer caso tambem a -acção do acido prussico, por exemplo, applicado a distancia durante -a hypnose em solução concentrada e dose forte, deve segundo Borru, -Burot e Luys produzir a morte. É evidente que os envenenadores por -este processo podem exercer a sua profissão sem que no organismo -fiquem vestigios do crime, o que é um novo e difficil problema para a -medicina legal. O dr. Ch. Vibert, Liégeois e outros medicos legistas já -estudaram o problema sob este aspecto. - -Joseph Kimmler será o primeiro condemnado a ser justiçado pela -electricidade. Esta invenção vem da America do Norte. Vão ser postos -de parte os cepos, os cestos as guilhotinas, as forcas e todos os -grosseiros apparelhos do supplicio inventados pelo homem para se dar o -logar ás correntes electricas. - -O machinismo está recebendo a ultima demão. Foi já experimentado -com animaes corpulentos: e as experiencias deram optimo resultado. -O programma para as ultimas horas do paciente é como segue: -Será prevenido do que o espera na manhã do supplicio. Terá, se -quizer, consolações da Egreja. Depois d’isso os ajudantes do... da -electricidade, entrarão no carcere, para darem principio á _toilette_ -funebre. Calçam-lhe uns sapatos que teem nas solas duas chapas de -metal, em communicação com fios metallicos que atravessam os tacões. -As mãos do paciente são amarradas sobre o peito. O tronco é apertado -por uma correia com fivela, e tendo a cada um dos lados uma chapa -com gancho. Na cabeça põem-lhe um capacete, com um disco do metal ao -alto, e de que parte um fio de cobre em espiral, que rodeia a cabeça. -No momento de lhe collocarem o capacete, põe-se sob o fio uma esponja -pequena embebida em agua salgada boa conductora da electricidade, como -se sabe. - -Feito isto levam-o para a cella das execuções, onde se encontram os -magistrados que tenham de assistir ao acto. Sentam o condemnado n’uma -cadeira de pau, costas inclinadas. Os ganchos da correia que a liga -prendem-se a duas argolas de outras correias que se apertam, até -immobilisar o paciente. - -Em frente da cadeira ha um tamborete onde os pés do condemnado se -apoiam e se fixam. Do tecto pendem dois fios conductores isolados. E na -parede um mostrador indicará a intensidade da corrente electrica. No -aposento immediato estão todas as peças de machinismo executor. Findos -estes preparativos prende-se um dos fios que pendem do tecto ao disco -metallico do capacete. O outro liga-se aos fios dos tacões. - -Em seguida lança-se sobre a cabeça do paciente um veu negro e toca-se -no botão fatal, o misero terá tempo de sobejo para morrer de terror. - -O resto é instantaneo. O cerebro cessará entre a mór parte dos -infelizes de funccionar antes, muito antes de lá chegar a sensação do -choque. - -Só a descripção é um monte de torturas. - -De todas as funcções sociaes é o direito penal aquella que provoca mais -graves questões:[38] - -1.ᵒ Com que direito e com que fim se apodera o homem do seu semelhante, -para lhe infligir, a sangue frio e de caso pensado, o mal que se -denomina pena? - -2.ᵒ D’esta fórma procede elle apenas na qualidade de ministro d’uma -justiça superior, cuja execução lhe foi commettida? - -3.ᵒ Deve, pelo contrario, quando pune, propor-se unicamente manter a -ordem social, fazendo respeitar o direito; e por meio de que processos -póde attingir este fim? - -4.ᵒ Não lhe correria o dever de combinar estes dois principios, -restringindo a sua acção aos limites que cada um impõe? - -É á solução parcial d’estes problemas que consagramos este trabalho, -estudando-os, muito particularmente, sob o ponto de vista das relações -que cumpre reconhecer entre o direito e a moral. - -Estes problemas provocaram grande numero de systemas, que, apesar das -suas quasi infinitas variedades, podem, segundo parece, classificar-se -em tres grandes categorias principaes, que tendem a approximar-se, e -mesmo por vezes a confundir-se nos seus desenvolvimentos, sem comtudo -menos se ficarem distinguindo quanto ao especial ponto de partida de -cada uma d’ellas. - -Os primeiros não vêem no direito penal mais do que o exercicio d’uma -justiça superior pelo poder social revestido d’esta terrivel missão. -Consideram geralmente esta justiça como uma necessaria retribuição do -mal pelo mal, especie de expiação, que se tem a si propria como seu fim -unico; o que fez com que se lhes conferisse a denominação de theorias -absolutas. - -Os segundos, muito pelo contrario, não vêem na actividade penal mais -do que um meio de fundar e manter uma certa ordem social tida como -necessaria para fazer respeitar o direito. Divergem consideravelmente -entre si pelos meios de que se servem para attingir este fim. -Qualificam-nos de theorias relativas, porque não justificam a acção -penal senão pelo fim externo que deve attingir, e porque a encerram -nos limites do que uma tal acção reclama. - -Os terceiros tentam combinar os dois principios, limitando-os, e, alem -d’isso talvez, fortificando-os um pelo outro. Por uma parte, pretendem -exercer a justiça superior nos limites apenas do que as exigencias -sociaes reclamam. Por outra, esforçam-se por satisfazer estas, mas -unicamente dentro dos limites do que essa justiça auctorisa. - -Levar-nos-hia em demasia longe o expor e criticar minuciosamente estes -numerosos systemas.[39] Devemos restringir-nos ao que seja necessario -para expor e motivar convenientemente as idéas em que se nos afigura -que devemos demorar-nos; e trataremos seguidamente do que respeita ás -relações do direito e da moral. - -Não existe, nem póde existir, senão uma base unica sobre que estas duas -leis possam solidamente apoiar-se. Esta base é o destino da humanidade -considerado em seu conjuncto, na collectividade e em cada um dos -individuos que a compõem.[40] - -A mira commum d’essas leis, que teem d’esse modo uma origem commum e um -fim commum, parece-nos ser a realisação d’um tal destino; mas nem por -isso menos lhes impendem missões distinctas, pelo que respeita tanto ao -que a cada uma d’ellas cumpre realisar, como aos processos a que devem -recorrer. - -Sentir-se ao mesmo tempo livre e obrigado a conformar-se -espontaneamente com as exigencias d’uma norma superior é o que -constitue a base e o ponto de partida da lei moral ao revelar-se na -consciencia. Estes dois sentimentos estão indissoluvelmente unidos; -suppõem-se reciprocamente, e cada um d’elles communica ao outro o -unico valor verdadeiro que o póde revestir: uma liberdade, de que nada -houvesse a fazer, seria uma força sem emprego, uma bem mysteriosa -inutilidade, que a si propria se aniquillaria tornando-se escrava de -brutaes instinctos; uma lei que fatalmente a si propria se executasse -seria um mechanismo degradante, sob cuja acção a dignidade humana -desappareceria totalmente. - -Accrescentemos, se tanto é preciso, que a conformidade com uma regra, -sem outro motivo que não seja o temor, não levaria a resultados muito -diversos. - -Temos até aqui fallado apenas d’uma lei cuja existencia se revela pelos -sentimentos da consciencia. Precisamos agora indagar a que fonte deve -recorrer-se para se obter o conhecimento d’essa lei. Cifra-se a questão -em investigar onde podem encontrar se os indicios do destino de que -fallamos. - -A regra a seguir é a que por este destino, tanto individual, como -geral, se impõe. Pode haver-se tal conhecimento pelo attento estudo -do homem considerado na natureza e na historia, quer em si proprio, -em suas necessidades, instinctos physicos e aspirações mais elevadas, -quer em suas relações com o mundo social ou physico em que deve -desenvolver-se. A existencia tem um fim que, á custa de esforços, é -preciso attingir, ou o procuremos nas manifestações d’uma suprema -intelligencia e d’uma suprema vontade, ou paremos na contemplação -de certas leis, cuja acção parece revelar-se em um demorado -desenvolvimento; leis a respeito das quaes talvez se devesse perguntar, -mais do que é costume, se em si mesmas não são as manifestações ou os -orgãos d’um Deus pessoal. - -A vida moral está, as mais das vezes, occulta nos arcanos do mundo -interno; não se manifesta exteriormente senão por indicios ácerca de -cuja apreciação é facil haver enganos. Por um lado, ella domina toda -a existencia, os sentimentos, os desejos, as vontades, tanto como as -acções. Por outro, só actua por convicção. Não podendo viver senão de -liberdade, retrae se ou expande-se segundo as influencias externas mais -ou menos fortes. - -As caracteristicas do direito mostram-no-lo bem diverso. É no exterior -que se produz e que actua por meio de um organismo completo para este -effeito destinado. Só o deve comtudo fazer nos limites do que seja -necessario para acudir, e, muitas vezes, para resistir á acção da -liberdade individual, nos casos em que isso é preciso para a manutenção -da ordem. Serve-se do constrangimento e exerce-o por meios materiaes. -O homem exterior e social é que faz objecto das suas mais directas -preoccupações; o homem interior e individual subtrae-se-lhe geralmente, -salvo nas relações que pode ter com certos factos externos e sociaes. - -A sua principal missão parece ser o garantir a cada um o que lhe deve -pertencer, crear e manter a ordem precisa ao desenvolvimento physico, -intellectual e moral, prevenir e reparar, quanto possivel, qualquer mal -que provenha de ataques ou de infracções contra essa ordem. - -Se fosse absolutamente necessario fixar o grao d’importancia respectiva -do direito e da moral, fariamos predominar esta ultima; é ella que -mais directamente tende a tornar-nos o que devemos ser. O direito -parece figurar mais como meio do que como fim na economia geral do -nosso desenvolvimento. Apressemo-nos a acrescentar que figura como -elemento indispensavel. Cumpre, alem d’isto, observar que estas -duas leis, embora separadas pela divergencia das attribuições e dos -processos, nem por isso conservam menos profundos vestigios da sua -origem commum e do fim superior para que devem tender os seus communs -esforços. Devem respeitar-se e auxiliar-se reciprocamente. Compete ao -direito restringir-se ao campo de actividade que especialmente lhe -está destinado; deve, tanto quanto possivel, respeitar a liberdade -necessaria para o desenvolvimento moral; deve evitar o que possa -offender as bases sobre que este assenta. A moral, pela sua parte, deve -respeitar as exigencias do direito e os processos que lhe são proprios. - -Parece que estes principios resultam da natureza das cousas; -poder-se-hia suppor facil fazer derivar d’elles consequencias cuja -auctoridade se fizesse geralmente reconhecer. Mas não é assim; questões -são aquellas a respeito das quaes se está longe da harmonia; achamo-nos -em presença de tres grandes categorias de systemas mencionados acima; -talvez que melhor os possamos apreciar, agora que enunciamos alguns -principios que nos dirigirão. Pode o assumpto dividir-se commodamente -em quatro paragraphos que tratem successivamente: 1.ᵒ das doutrinas -absolutas e das suas degenerescencias; 2.ᵒ das doutrinas mixtas; 3.ᵒ -das doutrinas relativas taes quaes as concebemos; 4.ᵒ d’uma comparação -entre estas ultimas e as doutrinas mixtas. - -§ 1.ᵒ Segundo os sectarios das theorias absolutas, á acção penal está -reservado um desenvolvimento muito maior do que aquelle de que dariam -idéa os principios acima enunciados. «Ha n’ella, dizem, mais do que -um direito, é um verdadeiro dever cuja observancia se exige d’um modo -imperativo.» - -«Embora a sociedade humana se dissolvesse pelo unanime consenso de -todos os seus membros, dizia Kant, deveria ser executado o ultimo -assassino que se achasse preso, afim de que cada um soffresse o castigo -dos seus actos, e de que o sangue vertido não cahisse sobre o povo que -não tivesse reclamado essa punição.[41]» - -Em um tal systema, o fim social e juridico da pena desapparece e -absorve-se n’uma ordem d’idéas muito mais vasta: já se não tracta de -defesa e de protecção, mas de expiação. É certo que se nos diz que os -processos d’esta justiça superior realisam accessoriamente o fim social -e humano da pena.[42] - -Não nos demoraremos a indagar o que n’esta ultima asserção, que nos -parece muito contestavel, póde haver de verdadeiro. É evidente que -isso depende muito das idéas que se formam ácerca da ordem que convem -realisar. Julgamos poder limitar-nos a dirigir as seguintes perguntas -aos sectarios d’estas doutrinas: Tendes sufficientes provas de que uma -tão terrivel missão haja sido confiada ao Estado? Não seria natural -pensar que, se o soberano legislador, de quem esta justiça dimana, -a não exerce por si proprio na economia actual, é porque julgou -conveniente reserval-a para outros tempos? Não póde ter querido que -nós caminhemos n’esta vida, mais pela fé do que pela vista, em uma tal -ordem de idéas? - -Estaes bem certos de que formaes noções exactas ácerca da natureza -d’esta justiça suprema? Não poderia haver n’isso mysteriosos arcanos -que escapem aos nossos olhos? O Estado, que encarregaes d’esta missão, -possue sufficientemente as faculdades intellectuaes e moraes que ella -suppõe? Possue o necessario poder de observação? Disporia, alem d’isso, -de penalidades bastante flexiveis e divisiveis para corresponderem ás -gradações tão variadas da culpabilidade moral? Se se arroga o direito -de infligir todas as penas, não deverá conceder egualmente todas as -recompensas merecidas? Não haveria n’isto uma fonte de dificuldades e -até de novas impossibilidades? - -Fazer seguir immediatamente todas as acções das penas ou das -recompensas que devam corresponder-lhes, não seria despojar a vida -moral da auréola de desinteresse ou de fé que constitue a nobreza -d’ella? Sempre comprimida no exterior, não acabaria por succumbir nas -profundezas intimas que pareceria deverem ser o seu ultimo refugio? - -Taes são as idéas que mais frequentemente se encontram na base do -que se chama--theorias absolutas; e taes as objecções que suscitam. -Enganar-nos-hiamos comtudo, se suppozessemos identicos entre si todos -os systemas que nasceram d’estas theorias ou que a ellas se prendem. -Nelles se encontram, muito pelo contrario, differenças, e até graos. - -Uns abrangem todo o dominio da moral em suas vastas concepções, -salvo em recuar ante as resistencias e as impossibilidades que se -levantariam, se se tratasse de fazer uma applicação completa d’estas -ultimas. - -Outras circumscrevem-se ao campo mais restricto do direito. -Subdividem-se porque uns submettem os factos que os preoccupam ás -regras da sancção moral, ao passo que outros buscam uma sancção -especial. - -As bases em que se firmam estes systemas não são sempre as mesmas; -uns não vão além dos sentimentos, quasi somos levados a dizer, dos -instinctos da consciencia. D’isto achamos um notavel exemplo no -discurso com que D. Cirilo Alvarez, então presidente da Academia de -Jurisprudencia e de Legislação de Madrid, inaugurava, em 26 de outubro -de 1872, o curso annual das deliberações d’esta sociedade. - -Eis o que se lê n’esse discurso destinado a justificar a pena de morte: - -«O fim da justiça penal não é a emenda e a correcção dos culpados. A -lei penal corresponde a um fim social mais elevado: ao restabelecimento -da ordem moral, abalada pelo crime, á lei de responsabilidade que pesa -sobre o homem por motivo de suas más acções, a essa lei inexoravel da -expiação e da penitencia que tem origem no remorso, n’esse phenomeno -interno do nosso espirito a que não podemos subtrahir-nos... É n’essa -lei de responsabilidade, n’essas manifestações da consciencia, n’esses -soffrimentos da alma, que se produzem sempre conforme a gravidade dos -factos, que se encontra a base da lei penal em todas as gradações -fixadas pela legislação e pela sciencia, para distinguir a fraqueza do -vicio, o vicio do crime.» - -«É também n’esses phenomenos moraes, e unicamente n’elles, que se -encontra a explicação philosophica d’essas palpitações da consciencia -universal em presença do crime, palpitações que se revelam pela -inquietação e pela agitação dos espiritos, pela indignação e pela -colera das multidões contra o criminoso.[43]» - -Outros recorrem a um mais profundo estudo da vida, ou a certas -combinações logicas das idéas. Diz-se, por exemplo, que a pena é uma -nova afirmação da lei, que a negação implicitamente resultante do crime -ou do delicto torna indispensavel. Quer isto dizer, em termos mais -simples, que a pena é uma sancção necessaria da lei. - -Outros ainda, elevando-se, segundo a nossa opinião, a uma concepção -mais digna da justiça divina, attribuem-lhe um fim de regeneração do -culpado. Collocam-se assim, desde o começo, fóra do absoluto completo, -de que se afastam a distancias muito diversas segundo as applicações -que fazem do seu principio superior. Póde-se effectivamente attender á -moral no seu conjuncto, ou apenas ao direito. Póde-se, n’esta ultima -hypothese, procurar uma verdadeira regeneração moral, mudando até o -fundo do caracter, ou, pelo contrario, não se ir alem do que se poderia -chamar uma regeneração social, que tenda unicamente a conseguir que o -culpado deixe de ser um perigoso membro da sociedade, ainda que não -fosse senão pelo temor dos castigos. Assim reentra-se no dominio das -theorias relativas. - -Consagramos certissimamente todas as nossas sympathias aos esforços -empregados para obter a regeneração moral do culpado; mas não suppomos -possivel tomal-a para principal base do direito penal. É um fim que se -precisa recommendar ao zelo dos philantropos; mas, se o considerassemos -como entrando directamente nas attribuições do Estado, suscitaria -isto, em parte ao menos, as objecções por nós apresentadas contra as -verdadeiras theorias absolutas; o Estado não possue nem as faculdades, -nem os meios que presuppõe o exercicio d’uma tal missão. Para elle só -póde haver n’isto um fim necessario e occasional, mas deve zelosamente -procurar attingil-o nos limites do que cabe á sua natural competencia. - -§ 2.ᵒ--As theorias absolutas teem ainda muitos adeptos; mas, como -dissemos, offerecem numerosas variedades. Podemos até dizer que os -costumes juridicos das nossas civilisações occidentaes haviam de -oppor-se a que se fizesse d’ellas completa applicação. Era para -desejar que se fixassem limites precisos ao seu desenvolvimento. Foi -o que as doutrinas que chamámos mixtas se esforçaram por conseguir, -encerrando-as no ambito marcado pelas necessidades da ordem social. -Conciliar e limitar um pelo outro os dois principios que parecem -disputar-se o campo do direito penal era, certissimamente, uma bella -idéa; teria prestado grandes serviços, se tivesse podido realisar-se. -Vejamos o que ha a tal respeito. - -Julgamos poder citar o nosso antigo compatriota Rossi como tendo -apresentado o typo mais explicito, mais nitido e melhor conhecido -d’esta categoria de systemas. Seja qual fôr o futuro reservado á sua -obra, sempre terá de reconhecer se n’ella a manifestação d’um grande -talento: «M. Rossi é, no seu genero, o primeiro jurisconsulto do -seculo» dizia-nos um dia o nosso illustre mestre, De Savigny. - -Entendemos dever accrescentar que, mesmo que se viesse a abandonar esta -obra, não se lhe diminuiria o merito de ter exposto as questões com uma -precisão completa, sem nenhuma d’essas obscuridades, que dão muitas -vezes logar a que se interpretem conforme convem as idéas apresentadas -como fundamentaes. - -Perdoar-se-nos-hão estas linhas dictadas pelo reconhecimento. Tanto -mais justificaveis nos pareceram ellas, quanto suppomos dever combater -uma corrente de idéas muito respeitaveis, e que foram revestidas d’uma -grandissima auctoridade. Ha muitissimo tempo que nos apartámos d’ellas. -Este trabalho póde a muitos respeitos ser tido como uma nova edição -das theses que publicámos em 1836 para solicitar o grao de licenceado. -Confirmaram-nos em grande parte na nossa maneira de ver mais de 40 -annos de estudo e de experiencia. - -«O fim da justiça absoluta, dizia Rossi, consiste no proprio -cumprimento d’ella; é porque é; attinge todas as infracções da lei -moral; assenta nos principios eternos do justo e do injusto; é um -attributo do Ser infinito. O mal merece o mal; o homem injusto deve -reparação á justiça; é uma sancção necessaria; a ordem moral deve ser -restabelecida pela pena. Esta justiça comtudo não desenvolve toda a -sua acção n’este mundo. O direito penal compõe-se d’uma parte absoluta -e d’uma parte relativa, de principios de justiça e de regras de -utilidade. - -A justiça do homem não deve ultrapassar a justiça absoluta; não deve -mesmo absorvel-a; não deve castigar senão no interesse da ordem social, -e nos limites apenas da culpabilidade moral. Acha-se ella, por assim -dizer, encerrada em tres circulos concentricos: o da justiça intrinseca -da punição, o da manutenção da ordem social, o de meios proprios para -attingir com utilidade esse fim pela acção penal. É uma delegação -parcial da justiça divina confiada a seres imperfeitos e falliveis, -que d’elle só devem fazer uso para um fim restricto e determinado, a -garantia dos elementos constitutivos da ordem social.[44]» - -N’esta categoria de systemas observa-se naturalmente uma variedade -maior ainda do que nas doutrinas absolutas, porque se complica com -elementos mais numerosos. De pleno accordo ácerca da necessidade de -se não ir além do que as exigencias sociaes reclamam, adoptam uns -as regras applicaveis á responsabilidade moral, demandam outros uma -sancção mais apropriada á natureza especial do direito. Carrara, -senador do reino de Italia e professor de direito penal na Universidade -de Pisa, parece-nos dever citar-se como exemplo d’esta ultima -tendencia. Affigura-se-nos que a sua doutrina deve ser classificada -no numero das que chamámos mixtas, porque invoca, diversas vezes, -uma cessão parcial da justiça absoluta como base do direito penal, -criticando, com grande vivacidade, as idéas que professa Rossi. Cremos -que o seu systema póde consubstanciar-se em algumas proposições -fundamentaes: - -«Existe uma justiça absoluta, de que só uma parte foi cedida ao poder -social para manter a ordem e proteger o direito. Esta justiça penal -deve reparar o mal proveniente do delicto; deve, n’este intuito, -combater os impulsos que podem resultar do máo exemplo dado pelo -culpado, e restabelecer no espirito dos innocentes os sentimentos -de segurança, d’elle afugentados pelo facto punivel.» Não é á -culpabilidade moral que tem de ir buscar se a gradação das penas, mas -ao que Carrara qualifica de força ou intensidade do delicto, ou seja -ao _quantum_ de vontade livre manifestada pelo facto e á influencia -exercida por este sobre os resultados produzidos. - -Os escriptos de Carrara offerecem provas numerosas d’uma grande -erudição e d’um notavel talento d’analyse. Não hesitamos em collocal-o -á frente dos criminalistas da epocha actual. É uma posição adquirida -por consideraveis trabalhos, pela veneração de que os muitos -discipulos o cercam, e pela inesgotavel fonte de ensinamentos que os -escriptos d’elle fornecem, mesmo quando se divirja do seu modo de ver. -Inclinamo-nos a pensar que o seu systema poderia dispensar a idéa d’uma -delegação parcial da justiça absoluta, porque o auctor firma-se em -bases que se esforça por fazer derivar da natureza do direito.[45] - -Outros auctores, embora dizendo-se partidarios das theorias relativas, -não podem comtudo deixar de fazer concessões ao elemento moral, o que -dá em resultado a necessidade de indagar qual a justificação d’estas -concessões, e, sendo possivel, até onde devem chegar. - -Citaremos como exemplo Franck, que, depois de ter repellido toda e -qualquer idéa d’uma expiação confiada ao poder social, e vivamente -refutado o systema de Rossi, parece apresentar-se resolutamente -como partidario das theorias relativas, mas sem que attribua menos -importancia ao elemento moral na fixação das penas. Não é fácil, -parece-nos, encontrar no livro d’elle os meios de se reconhecer -sufficientemente este facto pela applicação de algum principio -superior. O systema afigura-se-nos conseguintemente affecto d’uma -especie de dualidade.[46] - -A mesma ordem de idéas revelam os escriptos de Bertauld.[47] Reconhece -que a doutrina d’um direito de punir fundado na justiça moral, limitada -pela utilidade social, ganhou, durante a primeira metade do nosso -seculo, um largo campo na philosophia do direito. Adquiriu, diz elle, -uma verdadeira supremacia. Guizot, de Broglie, Rossi, de Rémousat -defenderam-na, e, graças a elles, está escripta em nossas leis, e -especialmente na reforma do Codigo Penal de 28 d’abril de 1832. -Comtudo, acrescenta, encontra ella hoje contradictores. - -Bertauld expõe d’esta maneira as suas idéas, depois de ter lembrado e -criticado as professadas por Franck: - -«Inflige-se o castigo ao infractor por motivo da sua infracção e não -em virtude das infracções que se temem para o futuro... Houvesse -certeza de que a infracção não poderia repetir-se, tanto da parte do -agente como de quaesquer outros, e a lei violada poderia legitimamente, -porque é uma lei, executar-se... A sociedade reclama do seu chefe, por -força do seu proprio direito, uma expiação: não a reclama em nome e -em virtude d’uma delegação de Deus... O direito de punir em si, não -deriva d’uma vontade superior.» O auctor acrescenta mais adiante: «O -poder social que não póde ordenar cousa alguma immoral, e que nem -mesmo tem rasões para ordenar tudo o que é moralmente obrigatorio, -gosa do direito de impor, com a sua sancção penal, quando o interesse -collectivo que representa e reclama, acções ou abstenções que a lei -moral não prescreve nem condemna. Eu quero que a penalidade social -seja uma expiação e a liquidação d’uma divida, mas é uma expiação e a -liquidação d’uma divida não para com Deus, mas para com a sociedade.» - -Não fazemos uma obra de critica; poremos de lado qualquer discussão; -diremos unicamente que é impossivel não ficar desejando explicações -mais amplas ácerca do _porquê_ e do _como_ d’este systema, e, muito -particularmente, ácerca da medida das penas, teremos de abstrahir -completamente dos graos de culpabilidade moral? - -O auctor em outro logar acrescenta ainda: Se se diz, segundo a nossa -opinião, que o direito de punir deriva do direito de auctoridade, a -questão unica será saber o que é que o soberano pode legitimamente -prescrever ou ordenar, e regular a importancia das sancções pela -importancia das prescripções. - -O soberano poderá preceituar tudo o que exigir a conservação e -o desenvolvimento da ordem social e nunca preceituará cousa -alguma incompativel com a lei moral, porque não ha ordem social em -contradicção com esta lei.[48] Quereriamos saber até onde deve chegar -esta harmonia entre o direito e a moral. Trata-se apenas do que -cumpre preceituar, ou tem ella de ampliar-se até ao grao das penas? -Perguntaremos, se se nos responder n’este segundo sentido, quaes são as -differenças praticas entre este systema e o de Rossi. - -Lendo as numerosas criticas actualmente dirigidas contra este ultimo, -necessariamente se nos depara com frequencia esta observação: -repellindo tal systema, é-se, comtudo, levado, ao que parece, n’uma -corrente de idéas não sem analogia com as que acabamos de combater. -Não haveria, em tal caso, legitimas aspirações da consciencia? Seria -possivel satisfazel-as com uma suficiente precisão? - -É o problema que quereriamos resolver, quanto possivel, na fraca medida -das nossas forças. - -A maior dificuldade com que luctam os verdadeiros systemas mixtos -consiste na conciliação de dois elementos que parecem excluir-se -reciprocamente: o relativo e o absoluto. Estão alem d’isto naturalmente -expostos ás objecções que se oppõem a cada um dos dois principios -que se esforçam por combinar. A grande superioridade que se arrogam -consiste em evitar os excessos a que poderia levar cada um d’estes -principios tomado isoladamente. Duvidamos de que realmente possam -conseguir esse fim; entendemos, de mais a mais, que nas theorias -puramente relativas, quando sensatamente entendidas, podem encontrar-se -garantias analogas, sem que offereçam eguaes perigos. Parece-nos que -os receios suscitados por estas ultimas, e as accusações que se lhes -dirigem, respeitam muito menos aos principios que lhes servem de base, -do que ás idéas frequentissimamente incompletas, mesquinhas e parciaes -que d’ellas se teem formado. Não o escondemos a nós mesmos: ha contra -ellas bastantes prejuizos que queremos combater, porque nos parece isto -indispensavel para attingirmos o fim que nos propomos. - -Em nossa opinião, prestar-se-hia um grande serviço á sciencia do -direito penal, se a desembaraçassem, d’uma vez para sempre, das velhas -idéas d’uma delegação total ou parcial da justiça de Deus. Não é que -resolvamos inclinar-nos sem reservas ante as soberanias d’este mundo. -Julgamol-as, a ellas proprias, subordinadas a uma regra superior; uma -regra, porém, especial e humana, não porque deixe de ter uma origem -superior, mas porque respeita á nossa existencia terrena, á missão que -impõe aos representantes da ordem social. - -Cumpre não nos illudirmos: novas criticas que se dirigissem contra -as theorias mixtas não teriam provavelmente resultados diversos dos -precedentes; se se quer que desappareçam, é preciso satisfazer, em -parte, ao menos, ás necessidades e aos sentimentos que as determinaram. -Vejamos se, sem ir além das theorias puramente relativas, não é -possivel conseguir aquelle fim. - -Digamol-o desde já; não temos a pretensão de haver descoberto fosse -o que fosse; nada mais fizemos do que tratar de apontar phenomenos -geralmente conhecidos, perguntando a nós mesmos se não é possivel achar -n’elles a solução desejada; é o resultado d’este estudo que vimos -submetter á critica. - -Quando acaba de commetter-se um crime, é natural preoccupar-nos com os -meios pelos quaes se poderia evitar a repetição d’elle. - -Parece que é o auctor do facto a primeira pessoa contra quem deve -proceder-se; como impedil-o, porém, de o renovar? Só por tempo, -relativamente breve, podem collocal-o na impossibilidade physica de -recomeçar. Seria louvavel e não deveria certamente perder-se de vista o -trabalhar para o seu aperfeiçoamento moral; mas é uma empreza de largo -folego e cujos resultados são muito incertos. Recorre-se geralmente á -intimidação; oppõe-se o temor da pena ás seducções do crime. - -Tudo isto póde justificar-se; mas resta saber se são medidas -sufficientes. Póde considerar-se o perigo social como inteiramente -concentrado na pessoa do criminoso? O facto que acaba de dar-se não é, -pelo contrario, o indicio e a consequencia d’um phenomeno mais geral, -que exige uma reacção mais ampla. - -É bem certo que o perigo que é preciso combater existia antes da -realisação do facto, porque o facto produziu-se. Basta, além d’isto, -estudar, pouco que seja, o movimento da vida social, para reconhecer -que as infracções que se trata de prevenir teem a sua origem n’um -conjuncto de impulsos mais ou menos poderosos. Estas forças perigosas -são, no fundo, as mesmas, antes e depois da perpretação do crime; -apparecem como o objecto principal da reacção necessaria: é dos -delinquentes futuros que principalmente é preciso tractar. O facto de -se delinquir sob a acção d’estas forças é apenas uma circumstancia -especial que não deve ser completamente despresada, mas que só póde -exercer uma influencia restricta. - -Os principaes partidarios d’esta acção geral d’uma força preventiva, -servem-se de expressões muito energicas para significarem o modo -como esta acção deve exercer-se. Falam d’um constrangimento ou d’uma -dynamica psychologica[49], do temor tendente a reprimir as tentações -perigosas[50], do mal que excede o proveito que o criminoso deve colher -do delicto[51]. Parecem-nos, em si, exactas estas expressões, salvos os -correctivos de que adiante falaremos. - -Este conjuncto de systemas justifica-se, em principio, pela absoluta -necessidade de fazer respeitar o direito, recorrendo em caso de -necessidade, ao constrangimento. Assenta n’um facto de observação -facil de verificar, e que leva a um conjuncto de regras geraes quanto -á ponderação das penas; tracta-se apenas de estudar o meio social em -que se quer actuar, e de preceituar penas correlativas ou á importancia -dos interesses a proteger, ou á força dos impulsos contra que é -preciso luctar. Pode-se frequentemente recorrer á experiencia em tal -assumpto. Os outros systemas levam quasi necessariamente a uma especie -de casuistica em que é preciso conceder muito á livre apreciação dos -tribunaes. - -A acção preventiva[52], cujos principaes caracteristicos acabamos -de apontar, tem sido objecto de criticas muito asperas; diz-se que -ha n’ella alguma cousa de degradante e de brutal; é um recurso ao -terror; maltractam o culpado como um instrumento destinado a servir de -exemplo. O legislador torna-o uma victima dos proprios erros; elle é -que é culpado; devia prescrever penas bastantes para que não houvesse -contravenções; enganou-se nas observações e nos calculos; não satisfez -á missão de que se incumbira. Chega-se mesmo a dizer que, em um tal -systema, não é necessario provar a culpabilidade para se infligir -uma pena, visto que o supplicio d’um innocente póde produzir o mesmo -effeito preventivo que o de um criminoso. Acrescenta-se que cada nova -infracção deveria augmentar as severidades da lei, por ficar assim -demonstrada a insufficiencia das antigas penalidades. - -Digamol-o desde já: Não ha principio que não conduza a consequencias -inaceitaveis, logo que, separando-o d’aquelles com que devia -combinar-se, o levem, n’esse estado de isolamento, até aos seus -ultimos desenvolvimentos logicos. Cumpre, alem d’isso, reconhecel-o: -os proprios partidarios d’uma acção preventiva não estão isentos de -defeito no modo por que diligenciaram definil-a e justifical-a. - -Fala-se d’uma maneira demasiadamente directa e exclusiva d’uma -protecção da sociedade contra os attentados a que está exposta. Faz-se -nascer assim a idéa d’uma lucta de todos contra cada um, lucta em que -este seria quasi necessariamente sacrificado. - -É preciso renunciar a taes formulas, e proclamar em alta voz: A ordem -social não se justifica e não tem rasão de ser senão como meio de fazer -reinar o direito. Esta regra superior impõe-se a todos, tanto aos -estados como aos individuos; dá a cada um o que lhe compete, e cobre -com a sua protecção o accusado e o culpado mesmo, tanto como o queixoso -e a victima. É um dos principaes merecimentos de Carrara ter muito -particularmente insistido na idéa d’uma defesa do direito como base da -sociedade.[53] - -Com demasiada frequencia se considera que o estado desempenha -unicamente o papel d’um gendarme encarregado de vigiar por que os -individuos se não invadam reciprocamente o campo de actividade que -lhes é destinado. Esta doutrina, favorecida pelo systema de Kant, -devia levar ao individualismo que hoje predomina; póde egualmente -fazer considerar exclusivamente exterior em demasia a ordem que ao -direito incumbe manter. É preciso não o esquecer: esta ordem exterior -não é mais do que uma base sobre que deve produzir-se um completo -desenvolvimento intellectual e moral; n’isto é que está o principal -fim: não haveria senão mentira em qualquer ordem exterior que, para se -produzir, offendesse esse desenvolvimento superior. - -São de molde a tranquillisar os espiritos as observações que -precedem, porque reduzem ao seu justo valor os defeitos invocados -pelos adversarios d’uma acção preventiva em direito penal. O accusado -certamente achará garantias sob um regimen em que deve ser protegido o -direito de todos. - -Não é ser tratado como um instrumento, e sacrificado a um fim estranho, -o soffrer um regimen a cujos rigores deu causa a negligencia e a -vontade culposa. É isto tanto mais verdadeiro, quanto este facto é uma -condição necessaria para a manutenção d’uma ordem de cousas com que -cada um aproveita, e que deve cada um respeitar como uma lei da sua -natureza. - -O temor de um materialismo exagerado, quer pelo que respeita ás -tendencias contra que julgam dever luctar, quer pelo que respeita aos -reagentes que procuram oppor-lhes, não se justifica sufficientemente -pelos principios do systema; nada ha n’esses principios que -necessariamente conduza a um tal materialismo; os impulsos que devem -combater-se para se satisfazer a esta doutrina são de diversas -naturezas, bem como o são os meios de se lhes resistir. - -A acção preventiva do direito penal tambem não tem necessariamente -como consequencia levar a exaggeradas severidades, sacrificando tudo a -uma certa ordem exterior, e redobrando de rigor a cada nova infracção. -N’este systema, como nos outros, não se poderia ter a pretensão de -manter a ordem d’uma maneira absoluta: não pode esquecer-se que é -precisa, tendo em vista um fim superior, a sujeição a certos limites, -e o respeito pela maior somma possivel de liberdade. Leva-nos isto ao -estudo das relações que devem existir entre o direito e a moral. Chegou -o momento de melhor profundarmos as particularidades d’este assumpto; -esse é, como já vimos, o fim principal do presente estudo. - -Convem fazer notar que, propondo-nos oppor o reagente da pena ás -seducções do delicto, é sobre a vontade, isto é, sobre um elemento -essencial da vida moral, que procuramos actuar. - -Se falta completamente esta liberdade, não pode tratar-se da pena, -porque o elemento sobre que esta devia exercer influencia não existe. -Chegamos assim aos mesmos resultados a que chegariamos, se unicamente -nos preoccupassemos com uma culpabilidade moral que não poderia dar-se -em tal hypothese. Mas esta ausencia e esta diminuição de liberdade -podem apresentar gradações e provir de causas diversas, por uma parte -de violentos impulsos, e, por outra, d’um estado normal e doentio. -Occupemo-nos successivamente d’estes dois casos, attendendo ás relações -do direito e da moral. - -1.ᵒ Quanto ao obstaculo proveniente dos fortes impulsos, é preciso -distinguir entre duas hypotheses:--a) Esses impulsos são de tal ordem -que fazem desapparecer completamente a liberdade. Parece que, sendo -assim, deve desapparecer qualquer imputabilidade segundo uma e outra -lei, resalvando-se os casos em que esses impulsos proviessem d’um -desenvolvimento de paixão contra o qual teria sido possivel luctar. -Pode acontecer, todavia, que o direito se declare impotente em casos -em que a moral não haja perdido toda a competencia; tal seria o de -dois naufragos que se disputassem um destroço insufficiente para -salvar ambos. Em geral seria difficil recusar um tributo de louvor e -de admiração áquelle dos dois que se sacrificasse pelo outro. Podia -egualmente succeder que devesse infligir-se uma censura mais ou menos -severa a um ou a outro, conforme as circumstancias. - -Poderia até dar-se uma verdadeira violação de direito. Mas, n’uma -tal posição, o estado de natureza e os instinctos vitaes predominam -com tamanha força, que não seria escutada a ameaça d’uma pena, e que -dificilmente se justificaria a imposição d’ella--b) Esses impulsos -deixam subsistir um certo grau de liberdade reconhecido por uma e -outra lei. A moral distinguirá: verá circumstancias attenuantes na -acção d’essas causas, se, em si, forem innocentes ou louvaveis; verá -circumstancias aggravantes, se forem condemnaveis. E o que será feito -do direito penal? Não deveriam calcular-se unicamente pela força de -taes impulsos as exigencias da acção preventiva? Não se poderia mesmo -avançar que é preciso proceder com rigor, tanto maior quanto maior é -a falta de reacção moral? Não se poderia citar como exemplo um pae de -familia que a miseria impelle até o roubo para prover á sustentação da -mulher e dos filhos? Não pode parecer necessario redobrar de severidade -para luctar contra impulsos taes? - -2.ᵒ A mesma dissidencia e as mesmas questões se levantam quanto -aos obstaculos que um estado anormal ou doentio póde impor ao -desenvolvimento da liberdade. N’elle verá geralmente a moral -circumstancias attenuantes. Póde, ao contrario, pensar-se que em -direito penal, é necessario ferir com tanta maior força quanto mais -obtuso e quasi embrutecido fôr o individuo de que se trate. - -Escusamos de o dissimular: estes conflictos e estas questões -apresentam-se nitidamente ao espirito, se apenas se attende á ordem -material, e á necessidade de a manter estrictamente e rigorosamente. -Talvez se fosse tentado a acceitar, a tal respeito, o dilemma admittido -pelo criminalista italiano Giuliani, ferveroso discipulo de Romagnosi: - -«_Se se admitte um principio differente d’aquelle segundo o qual as -penas devem ser graduadas em conformidade com a força dos impulsos -que conduzem ao mal, esse principio deverá conduzir a differentes -resultados; exigirá uma pena mais ou menos forte. Essa pena será -excessiva ou insufficiente. Seria injusta n’este ultimo caso, tanto -para com a sociedade, que tem o direito de ser efficazmente protegida, -como em relação ao culpado, que se veria atormentado sem que d’isto -resultasse nenhum bem publico._»[54] Vejamos comtudo se não deve -resultar uma outra resposta d’um estudo mais profundo do assumpto. - -Vimos quaes podem afigurar-se ser as exigencias d’uma ordem puramente -material; cumpre-nos indagar quaes devem ser as da ordem moral, e qual -a influencia que sobre as primeiras são chamadas a exercer. - -A consciencia é, como o dissemos já, o elemento primordial e -necessario de todo o desenvolvimento moral. Cada um de nós escuta, -nas profundidades do seu ser, uma voz que lhe diz: Tu és livre; mas -este nobre privilegio traz comsigo mesmo o principio d’uma austera e -terrivel responsabilidade, porque é preciso fazer d’elle o uso exigido -por uma lei superior. Ha entre o bem e o mal uma distincção que, -nem por ser algumas vezes offuscada pela ignorancia ou pela paixão, -deixará de se fazer reconhecer: é preciso procurar o primeiro e evitar -o segundo. Degrada-se e compromette-se quem não obedece a esta regra, -porque se colloca voluntariamente fóra do caminho que devia trilhar. - -Esta voz faz-se perpetuamente ouvir para nos evocar á realidade das -cousas. Tem-se visto luctar com vantagem contra o septicismo d’uma -escola que um espiritualismo exagerado levava a desconhecer o mundo -externo.[55] Lucta actualmente contra o materialismo e o fatalismo: -confiamos em que não será suffocada. É bem certo que não se poderia -abstrahir d’este testemunho directo da nossa natureza superior: -não é sem motivos e não deve ser em vão que se faz ouvir com tal -persistencia. Vejamos agora que influencia deve exercer no direito -penal. - -Faremos observar, em primeiro logar, que não é unicamente um elemento -individual: apresenta-se tambem debaixo d’uma fórma collectiva e -social. Cada nação vive d’uma vida moral que lhe é mais ou menos -propria e que se manifestou por muito tempo no direito consuetudinario -cuja origem só póde explicar-se por uma auctoridade expontaneamente -reconhecida. Mudaram os tempos: parece não bastar este modo de -proceder, e substitue-se-lhe um largo desenvolvimento do poder -legislativo; mas não conserva menos cada povo um fundo de vida moral -que lhe é propria, e que lhe constitue uma das linhas principaes do -caracter nacional. - -Occupemo-nos agora de cada um d’esses dois aspectos da consciencia em -face do direito penal. - -Qualquer acto da vida moral é seguido, na consciencia individual, -d’um sentimento de approvação ou de reprovação que, em si mesmo, -constitue já uma especie de sancção pela impressão de contentamento -ou de descontentamento que deriva d’elle. Esta manifestação primeira -póde parecer que não está directamente em relação com o direito; mas -ainda vae alem; como precedentemente dissemos, vem juntar-se-lhe -uma impressão de merito ou de demerito. A felicidade promettida aos -bons não provoca geralmente nenhuma pretensão directa relativamente -ao direito: seria impossivel encarregar o Estado de directamente -satisfazer a tanto, d’uma maneira ampla. Mas exercendo de facto o -Estado o poder de infligir penas, pergunta-se se não deveriam seguir-se -os avisos da consciencia no exercicio d’essas funcções, e até que ponto -póde convir o embrenhar-se n’esse caminho. - -O mao merece ser desgraçado! Estas austeras vozes repercutem-se -de edade em edade com demasiada persistencia para que seja licito -abstrahirmos d’ellas completamente. Parece, alem de tudo, muito -difficil que um ser intelligente e sensivel não soffra fora do caminho -que deve trilhar. Deve-se comtudo ter cautella em não materialisar este -sentimento exigindo que o Estado o satisfaça directamente. Não temos -de repetir aqui os argumentos que apresentámos acerca das doutrinas -absolutas, quer consideradas em si, quer nas diversas combinações que -se tem tentado effectuar entre o principio da expiação e as exigencias -d’uma protecção social. Quanto mais estudamos essas combinações, mais -nos convencemos da impossibilidade de as conseguir, e dos perigos que -se correm, tentando-o. D’aqui não resulta comtudo que o direito penal -possa abstrahir completamente dos juizos da consciencia. É verdade -que nenhuma medida commum existe entre o sentimento abstracto de -demerito que se prende á culpabilidade moral, e as penas geralmente -physicas infligidas pelo Estado; mas seria engano concluir que nunca -podem levantar-se conflictos entre estes dois elementos. Já o vimos: -as exigencias sociaes parecem algumas vezes reclamar severidades que -se não harmonisam com a verdadeira culpabilidade moral; deriva d’ahi -certissimamente um sentimento doloroso para a consciencia. Qual deve -ser a influencia d’um tal facto sobre a pratica do direito? - -Digamol-o em primeiro logar: esse sentimento é, em si, natural e -legitimo. Soffrer quando se vê exercer uma demasiada severidade, não é -o mesmo que reclamar penas mais rigorosas. É mais grave infligir um mal -immerecido do que abster-se ou restringir-se dentro de limites tidos -por estreitos em demasia. Para preencher lacunas taes, eis ahi sempre -a auctoridade superior, de cuja justiça se quereria ver o exercicio. -Acrescentemos que, sendo a consciencia moral um dos principaes -elementos do progresso individual e social, não pode admittir-se que o -Estado não tenha de preoccupar-se com elle, ainda que não fosse senão -para respeitar e deixar que se cumprisse uma obra tal. - -O que dissemos ácerca das relações que devem existir entre as duas leis -indica sufficientemente que a vida humana não pode dividir-se em duas -partes; uma puramente juridica e outra puramente moral; existe entre -estes dois elementos uma acção e uma reacção necessarias e reciprocas; -demonstra-o a natureza das cousas, e confirma-o a historia: se tem -de viver n’um mundo em demasia contrario ás suas crenças e ás suas -aspirações, o homem moral tende a insurgir-se ou a degradar-se; as mais -das vezes, succede-lhe uma e outra cousa ao mesmo tempo. A demasiada -severidade das penas dá muito particularmente este resultado. Deriva -d’ella um sentimento de incerteza e de mal-estar; o accusado parece ser -uma victima que cumpre lastimar e tractar de subtrahir á sorte injusta -que a ameaça. É assim que a impunidade tende a produzir-se no meio da -anarchia e d’uma desmoralisação geral. O proprio Feuerbach, um dos mais -rigorosos partidarios do constrangimento psychologico, reconhecia a -necessidade de nos curvarmos perante um poder tal.[56] Digamos ainda -que os sentimentos da consciencia não podem senão embotar-se n’um meio -social que os não considera sufficientemente. Vendo-os desconhecer com -demasiada frequencia, fica-se em duvida se não seriam vãs illusões. - -Ha, pois, que fazer concessões á consciencia moral. Comparando com as -doutrinas mixtas as idéas cujos traços principaes acabamos de expor, -é que veremos qual a natureza d’essas concessões, e até onde devem -ir. Taes idéas não offerecem aliás nenhuma novidade: são apenas a -maneira de viver cada vez mais consagrada pelos factos. O systema das -circumstancias attenuantes reconhecidas pelo jury, no fundo não é mais -do que a realisação pratica de taes concepções. - -§ 4.ᵒ--As differenças caracteristicas que distinguem estas theorias das -antigas theorias mixtas parecem-nos evidentes; mas não é menos preciso -resumil-as e pol-as em relevo com toda a exactidão e precisão possiveis. - -Assentam estas doutrinas mixtas, no fundo, sobre a combinação de -quatro idéas que apresentam como principios, cuja estricta observancia -é necessaria em vista das garantias e dos limites que para o direito -penal d’elles devem resultar: - -1.ᵒ Ha uma justiça absoluta que retribue o mal com o mal, tendo em -vista uma expiação que tem a causa em si propria; - -2.ᵒ A ordem social exige, para se conservar, que se inflijam certas -penas aos que a perturbem; - -3.ᵒ Esta penalidade exerce-se em virtude e em execução d’uma delegação -parcial da justiça absoluta; - -4.ᵒ Esta delegação não é admissivel senão nos limites do que é -necessario e possivel para a manutenção da ordem social. - -A idéa d’uma expiação absoluta, como base unica da justiça suprema, é, -como já dissemos, mais ou menos difficil de conceber. - -A delegação parcial d’esta justiça não parece nem justificada -nem exequivel. Afiguram-se taes doutrinas, em todos os casos, -demasiadamente superiores ás nossas faculdades e demasiadamente -discutiveis, para que seja possivel tomal-as como base d’um poder tão -temivel. - -Acrescentaremos que as garantias e os limites que se procuram n’esta -combinação bem poderiam ser illusorios, e que não deixariam de -offerecer perigo. - -Expor-se-hia a bastantes decepções quem buscasse na justiça absoluta -garantias e limites contra os rigores da justiça social; porque esta, -para justificar as severidades que julga necessarias, apenas tem de -elevar um ou muitos graos toda a escala da penalidade moral. O que é -facil na falta de qualquer medida commum aos dois generos de penas -e em presença da infinita grandeza do soberano legislador cujas -determinações foram violadas. Não se tem já pretendido que todas as -medidas e todas as gradações desapparecem em presença do infinito? - -Offerece este systema duas fontes de perigos: 1.ᵒ Não é impossivel que -n’elle se encontre, em vez d’uma diminuição um augmento da penalidade; -2.ᵒ é possivel tambem que n’elle se encontrem limites que não permittam -satisfazer as exigencias sociaes. - -a) Já o dissemos: é uma ardua tarefa conciliar as regras absolutas da -expiação moral, tal qual se concebe geralmente n’essas doutrinas, com -as necessidades puramente relativas da ordem social. - -Nem sempre será facil fugir ao que ha de naturalmente imperioso na -primeira ordem de idéas; poderá ser-se levado a elevar tal ou tal -pena sem verdadeira necessidade social, unicamente para manter uma -certa harmonia na gradação reclamada pela lei moral. Poderia conduzir -a consequencias semelhantes o desejo de evitar um mao exemplo que -parecesse resultar de taes contrasensos. - -Se se admitte um só principio justificativo da pena, unicamente se -applicará esta depois de rigorosamente verificado se esse principio a -reclama. - -Se se admittem dois, poderá succeder que se seja mais facil na -applicação d’um, em virtude da evidencia que se manifeste quanto á -applicação do outro. Uma culpabilidade moral n’um alto grao de certeza -poderá fazer com que se attenda mais ou menos de leve á verificação das -necessidades sociaes. Adquirir-se-ha pelo pensamento a segurança de -que, no fim de tudo, o accusado, soffrendo a pena, unicamente soffrerá -o que mereceu. - -O systema não terá, sem duvida, sido estrictamente observado n’estes -dois casos; mas não é superfluo attender ás possiveis fraquezas da -nossa pobre humanidade. - -b) Cumpre reconhecer que, muito frequentemente, as penas que parecem -necessarias pelo que respeita á segurança social, parecem exceder a -culpabilidade moral, no sentido, ao menos, de que tal circumstancia -póde reclamar uma elevação da acção repressiva, sem que o facto -represente em si um correspondente aggravo moral. A justiça militar em -tempo de guerra e certas medidas de salubridade e de ordem publicas -parece terem taes exigencias. - -É interessante notar a attitude de M. Rossi ao fallar das medidas -tendentes a prevenir a invasão das doenças epidemicas ou contagiosas. -Depois de ter provado a severidade muito rigorosa a que se costuma -recorrer em taes circumstancias, esforça-se por justifical-a dizendo -que se é moralmente muito culpado quando, por imprudencia, se expõe um -paiz aos ataques d’um semelhante flagello.[57] - -É o que geralmente se faz: accommoda-se a culpabilidade moral ao perigo -social. Offerecem-se aqui duas observações: - -1.ᵃ se devesse sempre existir uma tal proporção, não vemos que -accrescimo de garantias e que limites se obteriam combinando os dois -principios. - -2.ᵃ Já vimos, falando dos obstaculos que se oppõem ao pleno -desenvolvimento da liberdade, que uma tal harmonia nem sempre existe. -Parece alem d’isso ser preciso ir mais longe, e reconhecer a este -respeito um motivo quasi permanente de desaccordo. O direito carece -de apoiar-se em principios abstratos conducentes a regras geraes; a -moral depende frequentemente de convicções individuaes que transfiguram -algumas vezes as regras sociaes em formulas mais ou menos importunas, -cuja conveniencia se não justifica sufficientemente quer em si mesma, e -d’um modo geral, quer em attenção a taes circumstancias particulares. - -Estas regras podem até afigurar-se manifestamente injustas e nocivas. -Nem por isso devem respeitar-se menos em direito estricto e rigoroso. -É o que demandam as exigencias da ordem. Mas, collocadas no ponto -de vista puramente moral, seria difficil abstrahir completamente -dos escrupulos e até das extravagancias e dos erros da consciencia -individual. A opinião publica não se engana: sem criticar uma certa -pena como em demasia severa, longe está ella de a tomar sempre como -medida da censura que dirige contra o agente. Dá-se certamente alguma -cousa semelhante no tocante ás medidas sanitarias. É-se sem duvida -culpado de expor um paiz aos ataques d’um mal que se teme, mas é -facil haver illusões a este respeito. Póde alem de tudo acontecer que -imperiosos deveres venham combater e diminuir a auctoridade da lei. - -Vejamos o que, sob este ponto de vista, deve pensar-se das idéas que -defendemos como base do direito penal. Não temos aqui mais do que -um principio unico que tenta proteger todos os direitos e todos os -interesses commettidos á sollicitude do Estado. São as necessidades -sociaes que devem predominar em um tal systema; mas não se referem só á -ordem material; devem attender á ordem superior a que esta servirá de -ponto de partida e de meio. - -O elemento moral figura n’elle sob um aspecto inteiramente diverso do -que tem nas theorias mixtas. Não se trata d’uma doutrina nascida de -locubrações scientificas e impondo-se imperativamente: consideramos -a consciencia um facto que é preciso respeitar, e a que é preciso -attender, em vista da sua grande importancia moral e da influencia -que exerce na auctoridade e na verdadeira efficacia da lei penal. -Apresenta-se, como já vimos, sob dois aspectos. Vejamos que papel é -necessario distribuir-lhe no desenvolvimento da actividade repressiva. - -Compõe-se esta actividade de dois elementos: 1.ᵒ um certo numero de -regras mais ou menos abstractas e geraes, preceituadas pelo poder -legislativo; 2.ᵒ a applicação d’essas regras aos casos particulares -n’ellas previstos. - -1.ᵒ Quanto ao primeiro d’esses dois elementos, não devemos -certissimamente, ir além do que chamamos moral publica ou consciencia -nacional. É n’isso, n’esse conjuncto de tradicções, de convicções e de -sentimentos derivados da historia de cada povo, que bem manifestamente -se encontram as bases da vida collectiva e social d’elle; é ahi que ao -mesmo tempo deve procurar-se a obra do seu passado e o ponto de apoio -sobre que deve desenvolver-se o seu futuro. É um poder que só com -respeito deve considerar-se em attenção á origem e á sua importancia. -Não é preciso lisongear ninguem, e o povo, ainda menos talvez do que -os individuos. Mas todo o povo, de que não deve desesperar-se, tem -na sua vida intima um certo numero de idéas moraes reconhecidas mais -ou menos sãs. É isso que constitue o lado bello do caracter nacional -e da moral publica. É esse fundo commum que o legislador deve tomar -para base da sua obra, se quer que o povo se desenvolva livremente e -viva de vida propria. É n’esse facto d’uma consciencia nacional que é -preciso attentar, no que tem de verdadeiramente acceitavel. É n’elle -que convem buscar apoio para combater os impulsos perigosos que são o -objecto da acção penal. É d’elle que se torna necessario respeitar as -susceptibilidades. - -Ha um nucleo de vida moral, uma base de progresso futuro que é preciso -manter cuidadosamente. Digamol-o comtudo: esta parte sã da consciencia -nacional é muito affectada por um sentimento doloroso quando assiste -a condemnações que lhe parecem em demasia severas, mas geralmente não -leva tão longe as suas exigencias como deveriam fazel-o as doutrinas -mixtas, para se manterem verdadeiramente fieis aos seus principios. - -Ha necessidades sociaes que cada um deve acceitar porque se impõem -imperiosamente. Quem voluntariamente abriu lucta com a lei reconhece -ter justamente incorrido nas penas que ella preceitua, embora -procedesse com as mais honrosas intenções. Ha muito que este facto -se aponta: um dos homens que a historia mais cercou de respeito, -Washington, era regularmente um rebelde. Quem ousaria accusal-o de -culpabilidade moral, e, se tivesse succumbido na sua empreza, quem se -molestaria com uma condemnação proferida contra elle? Quaes teriam -sido, em semelhante hypothese, os sentimentos d’um partidario das -doutrinas mixtas? - -2.ᵒ--A influencia da consciencia nacional reapparece ainda, mas d’um -modo menos directo, no exercicio da acção judiciaria. É d’um facto -individual que se tracta; é o que se passou na consciencia do agente -que cumpre apreciar moralmente. Se se quer ser justo e equitativo, -não é possivel abstrair das circumstancias do facto, dos impulsos e -das convicções especiaes sob cuja influencia o acto se produziu. Mas -o meio moral predominante no paiz deverá necessariamente exercer uma -larga influencia em tal apreciação. O que de resto é justo, porque são -em geral esses principios de moral publica que actuaram, deveram ou -poderam actuar na perpretação do facto; são elles que o juiz deve tomar -em consideração, mais do que as suas convicções individuaes, que podem -afastar-se muito da corrente geral. - -Acrescentemos que deve haver harmonia entre a acção legislativa e a -judiciaria, d’onde resulta que esta ultima deve, como a primeira, fazer -concessões á consciencia racional. Que nós, se se nos perguntar até -onde se deve ir n’este caminho, diremos que seria difficil formular a -tal respeito regras absolutas; são questões essas a respeito das quaes -o legislador e o juiz devem ter um certo poder d’apreciação. - -Tudo o que podemos dizer é que, se fosse preciso escolher entre -os effeitos d’uma ordem material que só assentasse no temor, e a -auctoridade moral d’uma pena acceite pela consciencia, não hesitariamos -em nos inclinarmos para esta ultima. Estamos persuadidos de que, -satisfazendo ás mais altas aspirações da nossa natureza, essa escolha -estaria bem longe de comprometter a ordem tal qual deve reinar. - -Ainda uma vez, a ordem material deve ser considerada como condição -d’uma ordem superior que se lhe não deve sacrificar. É ahi que se -encontra a solução do problema que nos propozemos. É pela elevação da -ordem social á sua verdadeira altura, sem perder de vista o fim ultimo -para que deve tender, fazendo entrar n’ella todos os elementos que deve -conter, que se dá satisfação, tanto quanto possivel, aos sentimentos -moraes que n’ella podem achar-se mais ou menos offendidos. - -É certo que esta corrente d’ideias apenas conduz a uma especie de -transacção, e que em tal assumpto, mais que em qualquer outro, sente-se -a necessidade d’um apoio em principios fixos. É a objecção que nos -apresentava um dos mais distinctos dos nossos antigos magistrados, que -desempenhava então as funcções de procurador geral, e que morreu ha -pouco. Todas as nossas sympathias seriam votadas a taes sentimentos, se -fosse possivel dar-lhes uma conveniente satisfação. A questão é essa, -e cremos tel-a estudado com uma conscienciosa perplexidade. - -Não basta crear principios, é preciso que assentem n’uma base solida -e possam combinar-se sem se chegar a resultados incompativeis. É -necessario encarar a vida tal qual se nos apresenta, e quanto mais -observamos, mais nos parece demonstrado que as complicações sociaes são -difficeis de se reger por meio de regras abstractas, que se desenvolvam -com um rigor mathematico. Devemos dar-nos por felizes quando podemos -reconhecer certos principios dirigentes. Julgamos tel-o conseguido no -presente estudo, sem deixarmos de dar aos factos toda a importancia que -devem ter. - - -NOTAS DE RODAPÉ: - -[29] Tissot, _Le droit pénal, etudié dans ses principes_, t. I, pag. -197. - -[30] Boitard, _Leçons sur le Code pénal_, pag. 66. - -[31] Cf. entre outras obras sobre o direito de punir em geral, F. J. -Goebel, _De legitima sui defensione_. - -[32] _Revue générale du droit, de la législation et de la jurisprudence -en France et de l’étranger_, Echn. Labotat--Paris, pag. 32 e 35. - -[33] _Ann. médic, psych._, tome II, pag. 273. - -[34] Lelorrain, _De l’aliené au point de vue de la responsabilité -pénale_, pag. 90. - -[35] Dr. Giulio Belfiore, _L’ipnotismo e gli stati affini_, pag. 299. - -[36] Ferreira-Deusdado, _Ensaios de philosophia actual_, pag. 179. - -[37] A. Culerre, _Magnetisme et Hypnotisme_, pag. 372. - -[38] _Étude sur l’influence légitime de la conscience morale en -droit pénal_, par Charles Brocher, professeur á l’Université de -Genéve.--Paris. Este trabalho, que vae até ao fim do cap., foi -traduzido por indicação nossa, na _Revista de Educação e Ensino_, 4.ᵒ -anno, pag. 339 e seguintes, pelo nosso illustre amigo o sr. Alfredo da -Cunha, talentoso advogado e distincto homem de lettras. - -[39] Julgamos poder indicar especialmente as obras seguintes: Hepp, -_Darstellung und Beùrtheilung der deutschen Strafrechtssysteme. Ueber -die Gerechtigkeits, und Nutzungstheorien des Auslandes_--Rœder, -_Verbrechen und Strafe_. - -[40] V. tambem a introducção do nosso _Etude sur la légitime et les -réserves_. Paris et Genève, 1868. V. tambem os nossos _Etudes sur le -droit naturel_ na _Revue générale du droit_. Paris, 1877 (_Exposé -critique des Institutes de droit naturel_, de M. Lorimer). - -[41] _Droit Naturel_, traducção Barni, p. 197. - -[42] V. especialmente Abegg, _Die verschiedenen Strafrechtstheorien_. - -[43] Este discurso acha-se entre os documentos da dita Academia. - -[44] _Traité du droit pénal._ V. especialmente: Introducção, Livro I, -cap. 9, 12, 13; Livro III, cap. 4.--V. em sentido proximamente analogo, -o artigo publicado pelo Duque de Broglie na _Revue française_, 1828, e -a obra de Guizot sobre _La peine de mort_, cap. 6. - -[45] V. especialmente o _Programme d’un cours de droit criminel_, cujo -1.ᵒ volume foi traduzido por M. Baret, em 1876. Expozemos e criticamos -os principios geraes d’esta doutrina n’um artigo que se imprimia quasi -simultaneamente com estas linhas na _Revue de droit international de -Gand_ (1878). - -[46] Franck, _Philosophie du droit pénal_, cap. V, pag. 189 e seguintes. - -[47] V. especialmente _La liberté civile_, pag. 457, 475 e seguintes, -pag. 486. - -[48] _Cours de code pénal_, Append. pag. 652, da edição de 1864. - -[49] Feuerbach, _Lehrbuch des peinlichen Rechts_, § 12. Romagnosi, -_Genesi del diritto penale_, §§ 334 a 336, 339, 1273. - -[50] Carmignani, _Teoria delle leggi delia sicurezza sociale_, t. III, -ap. 22, 65, 69, 75, 87, 94, 176; t. IV, p. 5. - -[51] Bentham, _Théorie des peines_, ch. 5. - -[52] V. especialmente, no que respeita á prevenção individual, Roeder -_Verbrechenund Strafe_, p. 73; e a mesma obra, p. 105 e seguintes, pelo -que respeita aos systemas que se propõem á regeneração do criminoso. - -[53] V. o _Programme_ anteriormente citado, t. 1.ᵒ § 611, e _passim_, e -_Prolusione al corso accademico di diritto penale_, anno 1873-1874. - -[54] _Instituzioni di diritto criminale_, 2.ᵃ ed., pag. 116 do t. I. - -[55] Alludimos especialmente á escola de Kant e ás derivadas d’ella. -V. o que a este respeito dissemos em o nosso _Étude sur la vie et les -oeuvres de K.--S. Zachariæ_. - -[56] _Lehrbuch des gemeinen peinlichen Rechts_, § 18, notas. - -[57] _Droit constitutionel_, t. II, p. 267 e 282. - - - - -IV - - A existencia congenita do sentimento religioso. A utilidade da - sua acção disciplinadora. Vantagens d’este elemento na educação - correcional. A opinião dos criminalistas italianos e d’um notavel - principe da Egreja. - - A religião é o problema por excellencia dos tempos modernos. - - JOHN TYNDALL. - - Si la religion n’est pas le fondement de la morale, elle est le - fondement de son efficacité pratique. - - PAUL JANET. - - -A crise que está atravessando a moral e o sentimento religioso é um -problema grave. O nosso seculo é a epoca de transição entre um passado -insufficiente e um futuro prenhe de audaciosos acontecimentos, que os -espiritos circumspectos e que veem largo, não ousam encarar sem um -grande espanto ou um justo receio. - -Os revolucionarios e os innovadores não se inquietam, porque esperam -ver um dia o genio do homem sair victorioso do combate titanico, que -a sciencia travou contra as forças da natureza, escondidas ainda na -intelligencia humana. Mas o conteudo do decimetro cubico da nossa massa -encephalica fica absolutamente satisfeito com a sciencia positiva? A -religião é uma fórma transitoria da evolução humana como pretendem os -positivistas? É uma invenção dos sacerdotes como queriam os philosophos -do seculo passado? Tem origem n’um sentimento passageiro, como dizia o -poeta romano: _primus in orbe deos fecit timor_? - -Ao estudarmos as religiões na sua continuidade historica, na filiação -dos cultos, no encadeamento logico das concepções, vemos que o passado -é a génese inexgotavel do futuro. Ainda que a civilisação verta sobre -a alma da humanidade muitos gozos e beneficios a razão achal-os-ha -impotentes para a satisfazer. A religião é, na vida humana sensivel, -comtemporanea da dôr e durará tanto como ella. O seu objecto ficará -sempre como sublime aspiração para um ideal que não abranje só este -mundo, e que como uma columna de fogo illuminará nas crises dolorosas -a senda mysteriosa da consciencia humana. O homem dirige-se pelas -idéas verdadeiras ou falsas, mas dirige-se e consola-se tambem pelo -sentimento. Póde affirmar-se que são principalmente os sentimentos -os moveis da nossa actividade e que a nossa vida moral, no que ella -tem de externo á lei do dever, dimana sempre d’um sentimento ou d’uma -emoção a procurar ou a evitar. É possivel que n’um futuro longinquo, -a sciencia acabe sobre a terra por substituir completamente o cerebro -ao coração, o raciocinio ao sentimento, tornando a alma humana inane -ao aguilhão do desejo e indifferente ás emoções da sensibilidade. No -momento evolucionario em que não houver nem amor, nem dedicação, nem -piedade, nem ternura, nem sinceridade, n’esse dia a vida humana, tal -como a concebemos, terá desapparecido n’um horror de tristeza, na -profundissima treva cantada por Byron. As puras abstracções da sciencia -não podem dirigir, nem satisfazer a humana aspiração. Nenhuma realidade -contingente póde encher a vida immensa da nossa alma. - -Penetrando pela analyse nos factos passados da humanidade, reconhecemos -em grande parte, que muitas das suas concepções mais consoladoras e -mais queridas, com as quaes ella explicava a natureza das cousas, -cairam á luz das investigações severas da sciencia como phantasmagorias -enganosas. Aos velhos deuses, ainda que invejosos e crueis, -susceptiveis ao menos de misericordia, succedeu a fatalidade inexoravel -da lei, que é surda á supplica do crente e inaccessivel á esperança do -afflicto. Alguns espiritos demasiado positivos promettem á humanidade -pela sciencia um futuro reinado de Astrêa, quando em verdade nunca -durante o imperio incontestado dos deuses o homem foi tão escravo -como é hoje em frente das leis desapiedadas e brutaes da natureza. São -todas as religiões positivas uma illusão, uma chimera? Supponhamos, sem -o conceder todavia, que sim. Mas não ha na sciencia muita hypothese -gratuita, muita theoria enganosa? Eu prefiro a crença na doutrina que -tem servido de doce abrigo e de suave conforto á humanidade desditosa, -á explicação hypothetica fornecida pela dura realidade da sciencia, mas -que rouba ao coração humano o sentimento augusto da esperança, que é -mais verdadeiro que o da propria felicidade. - -Não póde negar-se que todo o sentimento religioso tem um fundo de -verdade. É-nos desconhecida a natureza intima, o principio que inspira -essas manifestações, mas essa ignorancia existe a proposito de muitos -phenomenos scientificos. Por ventura conhecemos, por exemplo, a -natureza intima da electricidade? - -Se o sentimento religioso tem sempre um fundo de verdade, resulta -até perante a sciencia que a religião é evidentemente util. A -especulação religiosa foi o primeiro factor intellectual que elevou a -alma humana acima da animalidade «sendo, como diz Littré, necessario -e indispensavel um systema philosophico ou conjuncto de idéas por -meio das quaes tudo seja explicado; na ausencia do verdadeiro que -estava ainda na sombra de um longinquo futuro, os homens crearam-no -hypothetico, mas não arbitrario; transitorio, mas conforme ao estado -intellectual do momento. Estes systemas foram a theologia e a -metaphysica.» - -Esta affirmação de que o estado theologico é transitorio é o reflexo da -falsa lei comteana dos tres estados. Não ha tres methodos radicalmente -oppostos de philosophar, o methodo é essencialmente o mesmo, a -integração das causas é que progressivamente converte principios -explicativos menos geraes n’uma lei universal. Escreveu Diderot na -sua _Carta sobre os cegos para uso dos que vêem_. «Se a natureza nos -offerece um nó difficil de desfazer, deixemol-o pelo que vale e não -empreguemos a cortal-o a mão de um ser que em seguida se torna para nós -um novo nó mais indissoluvel que o primeiro. Perguntaes a um indio como -está o mundo suspenso nos ares; responder-vos-ha que descança no dorso -de um elephante; e o elephante sobre que assenta? Sobre uma tartaruga. -E esta quem a sustenta?... O indio causa-vos dó!» - -A existencia do homem, diz J. Stuart Mill, apresenta-se primeiro -envolta no mysterio: a estreita região da nossa experiencia é como uma -pequena ilha perdida n’um mar immenso que eleva os nossos sentimentos -ao mesmo tempo que estimula a nossa imaginação pela sua immensidade e -pela sua obscuridade. - -O que obscure mais o mysterio, é que o dominio da nossa existencia -terrestre não é sómente uma ilha no espaço infinito, mas tambem -no tempo infinito. O passado e o futuro furtam-se egualmente ás -nossas vistas: não sabemos nem a origem, nem o fim de nenhuma cousa -existente.[58] A religião e a poesia pelas suas concepções idealmente -bellas e grandiosas é que mitigam em parte a sêde da nossa alma. A -influencia da religião melhora e ennobrece no individuo a natureza -humana. As religiões da humanidade civilisada, incluiram nos seus -preceitos os melhores principios de moral, que a razão e a bondade -poderam crear com elementos tirados quer da philosophia, quer da -historia heroica, quer d’outra parte.[59] - -A religião na sua pureza ideal é o refugio das almas superiormente -delicadas, e nas suas fórmas regularmente cultuaes e dogmaticas é -a philosophia das massas, cujo influxo pesa salutarmente no seu -espirito pelo amor ou pelo receio. Não desprezemos nada do que póde -melhorar-nos, porque a nossa felicidade é a hypothese, emquanto o -infortunio é a realidade. - -Não temos a certeza positiva de ser immortaes, mas temos a consciencia -de ser feitos para a immortalidade. Nutrimos o horror pelo nada e -o amor pela idéa de viver eternamente. Quando offerecemos o nosso -coração, quando dedicamos o nosso affecto, é para sempre, cada uma -das nossas faculdades aspira a fins que não attingem só este mundo. -Esta vida é preludio d’uma tarefa immensa que tem por guia a visão -do infinito. A razão almeja constantemente por uma verdade absoluta, -a vontade aspira a uma virtude perfeita. A natureza indestructivel -da alma deve ser acceite por todos os que admittem a permanencia -de força, substancia que não póde cessar. Mas esta immortalidade é -irrisoria porque não salva a bondade do nosso esforço, nem assegura o -desenvolvimento da nossa perfectibilidade. Viver e mudar são synonimos, -todavia viver é triumphar da mudança, reconhecendo a personalidade. O -homem deve ser immortal, porque tudo é immortal e indestructivel, desde -o imperceptivel verme, desde o grão de areia, desde a gota d’agua até -ao astro o mais colossal e o mais radiante. Mas a vida na immortalidade -humana, deve recordar a personalidade. A religião e a poesia são as -duas fórmas mais elevadas que reveste esta modalidade do nosso ser, -por isso o vago sentimento poetico e o indefinido sentimento religioso -serão eternos. O caminhar da civilisação póde mudar a corrente do -sentimento religioso, mas jámais poderá esgotar-lhe a nascente.[60] A -religião é uma necessidade do coração e uma necessidade racional. - -Magistratura civil e magistratura espiritual na sua funcção sociologica -completam-se mutuamente. O juiz pune, o professor e o sacerdote -podem emendar o delinquente. Diz S. João Chrysostomo, fallando dos -magistrados: «quanto a vós se deixaes o criminoso impune contribuis -para que elle se torne peior; se o condemnaes ao supplicio, não -conseguis emendal-o. Eu não o deixo ir impune, mas nem por isso o -castiguei ao vosso modo; procuro-lhe a penitencia que me parece justa e -assim faço com que elle por si mesmo se corrija do mal que praticou.» É -innegavel que o sentimento religioso é uma mordaça para o delinquente. -Se em certas comarcas e em dadas regiões, apezar da influencia do -sentimento religioso o crime existe em grande escala, qual não seria a -progressão criminosa se a crença religiosa não existisse? Attribuir á -religião n’este caso o augmento da estatistica do crime, seria o mesmo -que attribuir á medecina a morte pelo cholera, onde elle é endemico. - -Ha entre a crença religiosa e a lei do dever uma ligação assás -estreita, intima; o imperio da primeira avigora e fortalece a -segunda. Não queremos com isto dizer que o principio da obrigação -moral não tenha um valor proprio, como todas as idéas racionaes, -independentemente da idéa religiosa, mas como é inoculada geralmente -em nome do sentimento religioso, é pela sua acção, como diz Javary, -que se tem espalhado e que se mantem, em grande parte, na sociedade. -Nos individuos ignorantes e de paixões brutaes a concepção abstracta -da lei moral, separada da religião, é incapaz de exercer praticamente -o seu imperio. Não ha a possibilidade de fazer philosophos de todos os -homens, por isso é mister que os desherdados da luz recebam na sua -alma a moral pela religião e a metaphysica pela theogonia. A religião -é, como pensa Kant, não o fundamento da moral, é antes a moral que -nos conduz á religião; a philosophia aprecia a alteza e o valor das -religiões pela moral que ellas pregam. Qualquer organisação religiosa, -por pouco que ella valha, serve sempre de disciplina ás consciencias e -tem a vantagem d’exercer uma acção reguladora na ordem social. Já Vico -disse que sob a influencia da religião se formaram as mais illustres -sociedades do mundo, o atheismo não fez nada. - -De vez em quando o luar da historia humana apparece tragicamente -avivado pela revelação d’um grande crime. O psychologo e o jurista -estudam o delinquente e o delicto. Esta ordem de phenomenos ainda -está n’um periodo de discussão e de elaboração. Ha muito a esperar da -educação moral e religiosa no seio da familia, ministrada com carinhosa -intensidade e dirigida por elevados preceitos confirmados por bellos -exemplos. Regeitemos por isso as exaggerações pessimistas da parte da -escola anthropologica italiana, que crê toda a educação esteril para -melhorar o criminoso. - -A este respeito escreve Garofalo em defeza da educação religiosa: - -«Sem duvida as emoções religiosas tem grande influencia quando tem sido -excitadas desde os primeiros annos. Deixam sempre vestigios que embora -enfraquecidos pelo tempo, não desapparecem nunca, até no abysmo da -fé. A impressão dos mysterios religiosos sobre a imaginação é de tal -modo viva que as regras de procedimento impostas em nome da divindade -podem tornar-se instinctivas, porque,--como disse Darwin,--«uma crença -_inculcada_ constantemente durante os primeiros annos da vida quando -o cerebro é mais impressionavel, parece quasi adquirir a natureza -d’um instincto, é a que se produz independentemente da razão.»[61] A -influencia d’um codigo de moral--accrescenta Spencer--defende antes -das _emoções_ provocadas por seus imperativos, que do sentimento de -utilidade em lhe obedecer. Os sentimentos inspirados na infancia _pelo -espectaculo da sancção social e religiosa_ dos principios moraes, -exercem sobre o procedimento uma influencia _muito maior_ ainda que a -idéa do bem-estar, que se obtém pela obediencia aos principios d’este -genero. Quando os sentimentos, que o espectaculo d’estas sancções faz -nascer, chegam a faltar, a fé utilitaria _não basta_ ordinariamente -para levar á obediencia.--_Até nas raças melhor educadas_,--accrescenta -elle, entre os homens superiores, nos quaes as _sympathias_, tornadas -_organicas_, são a causa de que elles se conformem espontaneamente com -os preceitos altruistas, a sancção social, derivada em parte da sancção -religiosa, adquire uma certa importancia sobre a influencia d’estes -preceitos; pois, ella a tem muito grande sobre as acções das pessoas -d’um espirito menos elevado. - -«O mesmo auctor reconhece uma influencia perniciosa no preconceito -irreligioso ou anti-theologico.--Diz áquelles que creem que a sociedade -póde conformar-se em tudo com os principios da moral: «Como se poderia -avaliar a quantidade de espirito de direcção necessaria, sem regras -recebidas hereditariamente e que constituem auctoridade, para obrigar -os homens a comprehender porque, sendo dada a natureza das cousas, -seja pernicioso um certo modo de obrar e aproveitavel outro; para as -forçar a ver além do resultado immediato, e a discernir claramente os -resultados indirectos e affastados, taes como se produzem sobre elles -mesmos, sobre os outros, e sobre a sociedade? - -«Não é pois duvidoso, para os positivistas, que a religião seja uma das -mais activas entre as forças da educação. Mas para isto são necessarias -duas condições,--a primeira quando se trata d’uma creança,--a segunda, -que o ensino da moral seja o verdadeiro alvo do ensino religioso, o que -desgraçadamente não acontece quasi nunca em muitos paizes catholicos, -onde um clero ignorante, sobretudo nas parochias ruraes, se occupa -geralmente de praticas completamente vasias de significação para a -direcção moral, e cujo fim visa a assegurar a mais inteira obediencia -dos fieis, que entretanto desamparam as paginas sublimes do Evangelho. -Ha ainda uma outra cousa a notar: é que o poder da religião sobre a -moralidade individual parece deter-se precisamente nos casos mais -graves, isto é, quando elle encontra _inclinações criminosas_. Nada -mais natural. Com effeito, se o ensino para tornar-se util, deve ser -acompanhado da _emoção_, como se póde esperar que esta emoção seja -excitada nos homens, que, por um defeito de organisação physica tem -_uma sensibilidade moral muito menor que_ a normal? E como se póde -pensar então que elles cheguem nunca á pura idealidade da religião? - -«Que importa isso, dir-nos-hão. O temor do castigo na outra vida -será sempre um freio assaz poderoso para bem dos individuos que não -teem podido elevar-se ao verdadeiro ideal religioso. Isto póde ser -verdadeiro para homens d’um espirito pratico, tranquillo, e calculador, -não seguramente para aquelles que tem um _caracter criminoso_, porque -a imprudencia, a imprevidencia, a leviandade, distinguem sobre tudo -este caracter. Se, em todas as occasiões, para a satisfação immediata, -de suas paixões, elles não olham para o dia immediato, como se ha de -esperar d’elles que olhem para o fim da vida? Outros delinquentes -formam esta classe que se chama dos _impulsivos_. Elles obram por -impulso do seu temperamento colerico ou nevropathico, ou pelo do -alcoolismo; é pois pouco provavel que no momento de offender as -sancções religiosas lhe venham ao espirito. Outros emfim encontram-se -na condição de _névrosthenia moral_ que os torna impotentes para -resistir ás influencias do meio: pode-se porventura imaginar que a sua -instrucção seja sufficiente para lhe dar iniciativa e energia? - -«É assim que o estudo experimental do criminoso destroe muitas -illusões, e que confirma a conclusão que já demos, fallando da educação -em geral, isto é, que se um caracter póde ser por ella aperfeiçoado, -é muito duvidoso que possa jámais supprir uma lacuna da organisação -psychica, tal como a ausencia dos sentimentos altruistas. Emfim, é -verdade que esta especie de religião, que está ao alcance do maior -numero, ameaça espantosamente o criminoso? Não, porque se lhe tem -fallado ao mesmo tempo da misericordia Divina, e elle crê que um -acto de arrependimento em qualquer tempo e logar, será uma reparação -sufficiente para uma vida passada inteiramente no vicio. É assim que se -póde explicar o facto muitas vezes verificado em ladrões e assassinos, -muito devotos da Virgem e dos Santos. Um caso muito differente póde -explicar-se do mesmo modo: senhoras muito crentes podem passar toda -a sua vida no adulterio, e, na egreja, chorarem ajoelhadas ao pé da -cruz. Porque a luxuria é um peccado mortal, como o odio e a cholera, -mas a benção d’um padre póde egualmente absolvel-os a todos. Parece-me -ouvir responder; é que estas pessoas não teem o verdadeiro sentimento -religioso; é que a sua religião não é senão superstição! Mas póde a -religião do maior numero ser outra cousa? Nas pessoas vulgares, em -todas as religiões, encontra-se a idéa do anthropomorphismo de Deus. -É assim como se tem muito bem notado--«que o homem brando e honrado -adora um Deus de amor e de perdão; e que o homem perverso e immoral -fórma um Deus cruel e odiento.»[62] E se o verdadeiro sentimento -religioso é cousa de tal modo rara que bem poucos espiritos nobres -podem pretendel-o, será temerario dizer que estes mesmos espiritos não -teriam tido necessidade d’elle para não commetter crimes; que, embora -elles não tivessem sido crentes, teriam sido da mesma fórma pessoas de -bem? Apezar de tudo, é preciso admittir que, _nos mesmos limites em que -a educação póde ser operante_, a religião é um seu auxiliar, porque -ella póde desenvolver bons principios e reforçar caracteres fracos. Um -governo esclarecido deveria, pois, fornecer esta força moralisadora, -ou pelo menos não lhe crear obstaculos. Em quanto ao mais, o que póde -fazer não é grande coisa. Em um paiz sceptico todos os seus esforços -seriam inuteis, e no seio de uma nação animada da fé dispensa-se a -sua approvação. Tem-se visto religiões do Estado decairem e morrerem; -o christianismo invadir irresistivelmente o Imperio romano, da mesma -fórma que o budhismo a Asia Oriental. Em nossos tempos um governo só -tem a religião que encontra na nação. Da mesma fórma que no seio d’uma -familia todo o ensino será nullo sobre o coração dos filhos se seus -pais não lhes patenteiam a todos os momentos a sua inteira submissão a -estes mesmos preceitos, o Estado não poderá moralisar nunca senão _pelo -exemplo_, e o melhor exemplo que pode dar é _a justiça_ a mais severa, -a mais imparcial, a mais facil de obter.»[63] - -Sobre o mesmo assumpto escreve Tarde: - -«Limitemo-nos á estatistica criminal e concluamos mais esta vez ainda -que o mal crescente, indicio aliás de um melhoramento occulto, que -ella expõe aos nossos olhos, não se póde imputar nem á policia, nem -á justiça, nem á civilisação, nem tão pouco á lei penal, mas antes -quem sabe, ao retrocesso dos instinctos caritativos e á exaltação -das paixões revolucionarias. Sem embargo, desconheceremos nós a -acção favoravel, ou não favoravel á criminalidade, de cousas taes -como a instrucção, o trabalho, a riqueza e a indifferença nas crenças -religiosas? Indiquemos em poucas palavras qual a resposta que temos -a dar a estas interrogações. Pelo que respeita á ultima, é fóra de -duvida que o medo do inferno, demos-lhe o seu nome, por mais que tenha -enfraquecido e ainda que venha até a extinguir-se inteiramente, ao -menos nos adultos, assim como o desejo do ceo e o amor de Deus, as -regras e os habitos moraes de nossos paes, bem como de nossa infancia, -para cuja formação contribuiram aquelles sentimentos, nem por isso -subsistem ou subsistirão menos, mas cada dia mais abalados, mais -incapazes de resistir aos embates das tentações. Para que o havemos -de dissimular, o diabo tem talvez contribuido tanto como o carrasco -para _formar o coração_ dos europeus passados e presentes inclusive -os d’aquelles a quem a pena de morte e as superstições mais revoltam. -Christã ou não, a França permanecerá ainda muito tempo christianisada, -do mesmo modo que bonapartista ou não, desde a idade organica do -Consulado, está ella, queira ou não queira bonapartisada e até á -medulla dos ossos. Todavia esta sobrevivencia da moral religiosa aos -dogmas, como a das instituições a seus principios, só tem um tempo? -e onde irão as gerações vindouras beber a sua moralidade quando -estiver esgotada a antiga fonte? N’outros termos, para luctar contra -as tendencias destruidoras, que sentimentos fecundos differentes dos -precedentes nutrirão essas gerações, ou se deverá fortificar n’ellas? -Porque, são sentimentos, e diremos melhor principios, isto é restos de -convicções estaveis, inconscientes, definitivas, e não ideias, isto é -convicções em via de se formarem e prestes a descerem do espirito ao -coração e do coração ao caracter, o que se trata de suscitar aqui.» - -Sobre o mesmo assumpto Dupanloup, o egregio prelado faz as seguintes -considerações:[64] - -«Todos sabem quanto a _Instrucção_ e a _Disciplina_ devem á Religião, e -bem poucos deixarão de ter experimentado quanto é profunda a influencia -da Religião e da virtude sobre a _Educação intellectual_. O coração -mais puro purifica o espirito, torna-o mais sensivel ás impressões do -bello, mais docil aos ensinamentos do verdadeiro e fal-o saborear com -vivacidade o doce e nobre prazer de escutar a rasão. - -Sob os auspicios da Religião, a verdade penetra na intelligencia, não -como uma secca theoria que apenas conquista uma especie de adhesão -passiva, mas como que alguma cousa de vivente, de substancial, que -fecunda o espirito e o eleva e por elle chega á alma para a vevificar -toda inteira. - -Pela Religião, sente-se o Espirito fortemente appoiado n’um principio -de fé e não vai chocar-se com todas as incertezas humanas; eleva-se ao -ponto de vista divino, para ver de mais alto e mais longe que viram os -mais sabios. - -Eliminai a _Religião_, e a Instrucção não será mais que um vão -pasto offerecido á curiosidade ou ao orgulho, ella não fará amar -profundamente o verdadeiro; os mais elevados pensamentos perdem-se -em ambitos acanhados; a verdade fria e inanimada pára no espirito e -não sabe ir até ao coração. Ella exalta sobremaneira a intelligencia, -como por vezes o tenho visto, e é um dos maiores perigos da Educação -puramente humana, ella exalta a intelligencia em detrimento do caracter -e da consciencia, em certas naturezas avidas de conhecer; ou então a -deixa inerte e esteril em outras, cuja intelligencia só poderia ser -chamada ao movimento e á vida pelo grito da consciencia ou pelas ternas -insinuações da Religião. N’estas naturezas mediocres, a Instrucção -reduzida a si mesma, não é nada, ou, quando muito, apenas é um deposito -confiado á guarda inactiva da memoria, uma serie de conhecimentos, -uma avida nomenclatura, um montão indigestivo de sciencia sem luz, de -factos sem ligação e sem vida. - -A _Disciplina_ é a seu turno ennobrecida pela instrucção: deve ser -elevada á dignidade de guarda da intelligencia; mas é sobre tudo pela -_Religião_ que a disciplina se torna uma verdadeira potencia moral na -Educação. - -Pela _Religião_, a Disciplina não é sómente o olho do superior e a -garantia da obediencia material; é o olho de Deus e a inspiração de uma -nobre docilidade. - -É sob os auspicios da Religião sómente que a disciplina se torna a -protectora dos costumes e a guarda da innocencia; o penhor dos grandes -estudos; a inspiração do bom espirito; a dispensadora e a thesoureira -do tempo; e nervo do regulamento interior e a mola poderosa de toda a -Educação. - -Sem Religião, pelo contrario, a Disciplina não é mais que uma policia -de caserna, aviltante para aquelles que a soffrem, mais aviltante ainda -para aquelles que a fazem soffrer. - -Por mais severa que seja, nunca poderá chegar ás almas e a isso -desafio. Logo apesar da severidade, nenhuma consciencia, intratavel, -sem freio nas paixões secretas e menos respeito. - -Jámais conseguirá esta disciplina toda material, toda exterior, educar -o homem, a não ser que se queira fazer da sociedade uma colonia -militar, para a qual seria a Educação encarregada de formar conscriptos! - -Fique-se bem sabendo, nada ha de commum entre o regimen despotico de -alguns collegios e esta nobre Disciplina das almas, que é a verdadeira -_Educação_ da mocidade. - -Na Educação, não basta que se obedeça, é necessario que haja gosto na -obediencia. E o que faz amar a obediencia? a Religião, só a Religião. - -Oh! sem duvida é muito mais facil de exercer a Disciplina militar, -a Disciplina de mão armada: será sempre mais facil commandar corpos -que almas. Dispõe-se da força, os corpos humilham-se, mas as almas -resistem; ou se se humilham, é porque foram embrutecidas por uma -obediencia servil. - -Que notavel differença na Educação christã! Para esta ha mister uma -arte profunda; e é d’esta arte que se disse: _Ars artium, regimen -animarum_. - -Ás almas se applicam todos os esforços da direcção christã: a ordem -moral eis o fim a que se pretende chegar. A ordem material tem sua -importancia, não ha duvida, mas estabelece-se naturalmente, por uma -simples consequencia e como um reflexo exterior da ordem moral; em -quanto que n’essas outras escolas, onde se ostentam pomposamente os -rigores de uma inflexivel disciplina, muitas vezes não ha no intimo do -seu organismo, senão desordem e anarchia. Tudo quanto ahi se quer é que -essa anarchia e essa desordem não constem cá fóra. Que, depois d’isso, -as creanças ignorem o que é a virtude e a felicidade, pouco importa! -Que não haja Educação para o coração, para a consciencia, tambem pouco -importa! Ah! eu não conto aqui, senão o que todos sabem e foi com a -auctoridade de mais de um exemplo que se disseram estas palavras -bem verdadeiras; _A mais severa Disciplina pode esconder vicios -medonhos_.[65] - -Desgraçados dos paes que n’este ponto, se descuidam, elles chorarão um -dia amargamente! Desgraçado do paiz onde a Educação publica chegou a -este ponto: serão ahi raros os bons cidadãos! - -As sagradas Escripturas disseram uma bella e profunda verdade quando -definiram a _Disciplina--a guarda das leis, Disciplina, costodia legum_. - -É com effeito o que deve ser e o que nós temos visto. Mas como póde -a disciplina cumprir dignamente esta grande e augusta missão? É -inspirando o respeito e o amor d’essas mesmas leis que são confiadas -á sua guarda. Se ella é toda material, só ensina o respeito da força, -isto é, o medo servil que fana as almas sem lhes tirar a tendencia para -a revolta; se é religioso e moral, ensinará a respeitar o principio -da auctoridade e a lei que é a expressão das mesmas; submetterá as -almas ao imperio d’essas santas noções sobre as quaes repousa a ordem -social, quer se trate da grande sociedade humana, que é a patria, quer -se trate d’essa outra sociedade mais circumscripta e mais humilde, mas -depositaria dos destinos da primeira, do collegio: ahi onde se faz -a aprendizagem das virtudes ou dos vicios, pelos quaes serão um dia -rebustecida ou perturbada, a paz e a prosperidade publicas. - -Perdoem ter-me deixado arrastar pela importancia d’esta questão. -Limitar-me-hei, pois, a repetil-o: é necessario na Educação que a -Disciplina não seja observada á força, mas respeitada e amada de -coração. De outro modo, as almas soffrem e a Educação não passa de uma -obra de violencia, algumas vezes cheia de horror. - -Mas, se nada póde egualar a influencia da Religião sobre a disciplina, -ao mesmo tempo que sobre os estudos e o desenvolvimento natural do -espirito; sobre o caracter e os defeitos da creança, e sobre os -destinos da sua vida inteira, a _Religião_, do seu lado, reclama o -concurso dos dois outros grandes meios d’Educação. - -Sem a _Instrucção_ e sem a _Disciplina_, não formaria a Religião homens -dignos d’ella. - -A Religião quer ser esclarecida: gosta dos caracteres firmes e rectos: -espiritos imbecis ou caracteres abatidos e indolentes sómente seriam -bons para a deshonrar. - -Em vão experimentaria formar-lhes coração e intelligencia. - -A Disciplina que, como se deixa perceber, é, sem a Religião, o quer -que seja de material e triste, é a seu turno para a Religião um -indispensavel auxilio. - -Pelo silencio e pela paz mantem a concentração; prepara o caminho ás -lições da sabedoria christã ou ás impressões da graça. - -Conter ou reprimir os desmandos da vontade arrastada para longe do -dever pelas paixões ou pela inexperiencia da idade; submetter sem -humilhar, mandar sem aviltar, elevar abatendo, fortalecer e fazer -avançar detendo impedir que as faculdades se não desvairam e se -não enfraqueçam dissipando-se: proteger ao mesmo tempo a piedade, -os estudos e os costumes; tal é a obra, _tal é o dever da educação -disciplinar_. - -Como poderia a _Religião_ dispensar o auxilio da Disciplina? - -A _Instrucção_, da sua parte, offerece á _Religião_ o seu poderoso -concurso. - -Abrir e desenvolver a intelligencia da creança, despertar-lhe -o pensamento, fazer nascer n’ella ideias sãs, formar-lhe e -desenvolver-lhe a penetração, o bom senso, a applicação do espirito; -enriquecer-lhe a memoria, formar-lhe a razão e a palavra, fecundar-lhe -a imaginação, polir-lhe o gosto, exercitar-lhe o juizo; _é o dever da -Educação intellectual e a gloria da Instrucção_. - -Quem poderá desconhecer todo o bem que a _Religião_ póde d’ella esperar? - -Espiritos assim preparados, engrandecidos, elevados, fortalecidos, -comprehenderão melhor as altas verdades christãs. - -O joven que cultivou convenientemente o seu espirito terá um coração -mais delicado, uma alma mais generosa, ao mesmo tempo que uma razão -mais elevada. - -Nos estudos classicos encontrou elle o bello e o verdadeiro sob suas -fórmas litterarias; quando com a Religião elles lhe apparecem no seu -mais alto esplendor, com que enthusiasmo os não acolhe? - -Vê-se por tanto, como a _Disciplina_ e a Instrucção não podem passar -sem a _Religião_, a Religião não póde passar sem ambas para attingir o -grande fim da Educação. - -Emfim conservar a força da creança, velar pela sua vida, auxiliar sua -constituição physica em se fortificar, desenvolvendo-se, proceder de -fórma que seus membros sejam sempre flexiveis e vigorosos, que um -sangue generoso e puro lhe circule nas veias, que esta chamma celeste, -que brilha em seus olhares, não amorteça nem se extinga mais: que este -amavel colorido, este encanto inexprimivel que embelleza a fronte da -infancia virtuosa, este não sei que de feliz que vem dos dons do ceo, -não desappareça sob tristes nuvens; é o dever da _Educação physica_; -e este dever não se cumpre senão pelos cuidados mais attentos, mais -delicados, mais respeitosos. Mas não vemos nós, sem necessidade de que -nol-o demonstrem, que influencia têem estes cuidados preciosos, n’uma -casa d’Educação, sobre a disciplina, sobre o bom ou mau exito dos -estudos, sobre a mesma piedade? - -E não se comprehende ao mesmo tempo o que a Instrucção e o trabalho, -o que a Ordem e a Disciplina, e sobre tudo o que a Religião, podem -em troca, para a conservação da saude e das forças, conservando os -costumes? Já o têem dito, a Religião é o aroma que não deixa corromper -a sciencia. Nós tambem o dissemos: a verdade é o balsamo divino que -conserva a vida e a frescura da creança. E é só a disciplina moral e -religiosa que guarda a virtude. - -Acabarei tudo isto por algumas explicações que não deixam de ter -interesse e dar luz: assim, por exemplo, é a _Educação physica_, -hygienica que conserva por todas as partes, n’uma casa de Educação, -com um cuidado e uma vigilancia infatigaveis, o _aceio_, que todos os -mestres da moral e da virtude christã, com razão e d’um sentido muito -verdadeiro têem chamado uma virtude: e é o _aceio_ que contribue para -dar e para conservar um certo vigor corporal, uma certa dignidade -exterior que mantém a dignidade e o vigor da alma. - -E no entanto a Religião impede que o aceio degenere em _fatuidade_ em -mollesa e que cessa a virtude onde começa o excesso. - -É ainda a _Educação physica_ que dá uma justa medida de repouso á -_Educação intellectual_, concede ao espirito o descanço conveniente, -faz succeder ás horas do estudo as horas do recreio; mas, do lado, a -prudente e firme _Disciplina_ não permitte que se dêem de mais; não tem -nada de austero nem de affectado; mas prepara o prazer pelo trabalho -e desenfada do trabalho pelo prazer e, sob sua prudente direcção, as -folgas e os brinquedos convenientemente se entremeia com as occupações -graves e sérias. - -Finalmente a _administração economica_ de uma casa procura para todos, -mestres e discipulos, uma certa independencia intellectual, uma nobre -segurança, um feliz esquecimento dos cuidados materiaes da vida, cuja -isempção é favoravel ao recolhimento da piedade e das lettras. - -É com este fim que ella escolhe um bello local; uma casa vasta, bem -accommodada ás necessidades da Disciplina; sallas espaçosas, grandes -dormitorios, aulas bem arejadas, uma bella capella, magnificos jardins. -É tambem ella que admitte professores convenientes não só pela saude, -como pela decencia e dignidade litteraria; que dispõe tudo como é -necessario á idade dos alumnos, a essa idade tão tenra, tão viva, tão -ardente e tão admiravelmente applicada, que sabe ser silenciosa e -immovel, doze horas em cada dia, durante dez annos! - -E entretanto a _Religião_, que é o bom senso superior de todas as -cousas, requer que esta casa esteja sem luxo, que seja de uma nobre -simplicidade, magnifica somente pela elevação, pela boa ordem e pelo -espaço conveniente ao grande numero dos seus jovens habitantes. - -Quer ver banidos os moveis faustuosos, as ninharias deslumbrantes, os -ornamentos superfluos e tudo que respire vaidade e molleza, reserva -para o sanctuario os vasos de ouro e de prata, os estofos ornados de -enfeites, as pedras preciosas, os perfumes exquisitos. - -Não multiplicarei mais estes pormenores; os indicados bastam para o -meu designio, eram-lhe necessarios. Nada importava tanto como lançar -assim algumas luzes sobre a influencia, que cada um dos grandes meios -d’Educação exerce sobre a Educação inteira e tambem revelar a estreita -união que as deve fazer concorrer para o mesmo fim, se quizermos que -este fim seja completo e efficazmente attingido, se quizermos que a -educação seja uma realidade. - -Ora, pois que é tempo de concluir, inspirar a tenras almas o gosto de -uma vida seria e applicada, que ha-de produzir um dia a gravidade dos -costumes e a fidelidade aos deveres; - -Excitar ao amor do trabalho, o gosto intelligente das lettras, das -sciencias, das artes, da industria, da agricultura e do commercio, -segundo as differentes especialidades da Educação, e o ardor por todos -os conhecimentos bellos, pelos nobres progressos, que desde tantos -seculos se tornaram o apanagio da nossa patria; - -Sob os auspicios da Religião, submetter, regularisar, dirigir as -paixões no tempo conveniente, de modo que se deixem senhorear e que, -longe de serem um obstaculo ao bem, sejam o instrumento util das -grandes cousas; - -Formar para este saber-viver, que consiste em se constranger uma pessoa -a si mesma, sem constranger os outros e que deslumbra menos pela bellas -maneiras, que encanta pela simplicidade e impõe pelo respeito; - -Em uma palavra sob a Direcção de uma disciplina igualmente suave e -firme, pelo ascendente de uma auctoridade sempre querida e respeitada -constituir e manter solidos e brilhantes estudos litterarios, ou -industriaes, agriculas e commerciaes, ao mesmo tempo que costumes -puros, uma docilidade generosa, uma fé esclarecida e uma piedade -profunda; - -Estabelecer, emfim, por isso mesmo, entre mestres e discipulos esses -doces e poderosos laços que nunca se quebram, essas lembranças de -dedicação e de reconhecimento, d’affeição e de respeito, que são a -mais suave recompensa dos professores, como se tornam, no coração -dos discipulos, uma d’essas felizes e inolvidaveis impressões que -sobrevivem a tudo; - -Formar assim por meio simples e poderosos, esses jovens espiritos para -a intelligencia do verdadeiro, que é a luz mesma de Deus; esses jovens -corações ao amor do bem, que é o esplendor da verdade, e a sua vida -inteira á pratica do bem; fazer-lhes sentir por isso nas impressões e -nas recordações da sua Educação, a felecidade, a verdade e a virtude, e -ao mesmo tempo a mais alta dignidade de sua natureza. - -Repito-o, tal é a grande obra, tal é o fim essencial da Educação; tal é -a alta e santa missão dos professores da mocidade. - -Eis a _Educação geral essencial_ a quem tem direito todo o homem que -vem a este mundo. - -É a Educação humana por excellencia! Mas proclamo-o de novo, e agora -se comprehenderá melhor que nunca: é isto essencialmente, e superior a -tudo, uma obra de religioso respeito. - - -NOTAS DE RODAPÉ: - -[58] _Essais sur la religion_, pag. 95, J. Stuart Mill. - -[59] Ob. cit. J. Stuart Mill. - -[60] Ferreira-Deusdado, _Ensaios de philosophia actual_, pag. 79. - -[61] Darwin, _L’Origine de l’homme_, ch. III. - -[62] E. Ferri, _Le Sentiment religieux chez les meurtiers_--Tuima Fr. -Bocca--vol. III pag. 276, 282. - -[63] _La Criminologie_, par R. Garofalo, Paris 1888--pag. 137, 142. - -[64] Este excerpto foi traduzido por indicação nossa pelo sr. A. A. de -Almeida Netto e publicado na _Revista de Educação e Ensino_, n.ᵒ 7, p. -331 e seguintes. - -[65] _Lettre sur l’Education_, por M. Laurentie. - - - - -V - - Educação e criminalidade. Relação entre o elemento moral e o elemento - intellectual. O progresso. Buckle, Spencer e F. Bouillier. Perigos da - instrucção sem educação moral ou religiosa. A cultura intellectual é - um instrumento, que não fórma directamente o caracter. Necessidade de - fortificar o espirito pela recta direcção do sentimento moral e dos - principios do dever. O criminalista G. Tarde e a educação litteraria e - esthetica. - - Não se esconde, antes pelo contrario se mostra já claramente visivel - até aos poucos amigos de ver, como a primeira educação constitue um - poderosissimo factor, ao mesmo tempo de disciplina e desinvolvimento, - de ordem e de progresso; como em seu encalço a pessoa e a propriedade - sobem em segurança e dispensam em protecção, medram e prosperam - os interesses ethicos e politicos, a justiça é menos difficil e o - consenso para a administração mais intelligente.--(Relatorio geral do - Conselho Superior de Instrucção Publica, pag. 34, 1885). - - JAYME MONIZ. - - -Cumpre ao pedagogo indagar se a virtude, se o bem moral augmenta no -individuo á medida que a intelligencia se esclarece pela instrucção, -e na sociedade á medida que a sciencia, a arte e a industria se -desenvolvem. Trata-se de saber se o homem instruido, ou se os -individuos mais cultos nas sociedades mais adiantadas, formam uma -idéa mais clara da justiça e comprehendem melhor o principio dos -seus deveres e se os praticam d’um modo mais desinteressado e mais -completo. Para saber se ha progresso moral no individuo ou nas -sociedades é preciso distinguir o que é immutavel do que é perfectivel -na natureza psychica do homem. As faculdades e as leis do nosso -espirito, as inclinações fundamentaes do nosso coração, todos os -elementos psychicos essenciaes da nossa natureza, não se alteram com -a constancia da actividade reflectida, nem com o desenvolvimento da -civilisação. Cada homem, como diz Montaigne, leva em si a fórma inteira -da condição humana. O individuo da nossa especie estudado por Laucio -ou por Platão é o mesmo que estudado por Kant ou por H. Spencer. Assim -como na natureza cosmica as leis e os agentes permanecem os mesmos, -qualquer que seja o augmento dos productos que d’ella tira a cultura -scientifica, do mesmo modo os elementos primordiaes da natureza -psychica são immutaveis, embora sejam diversos os seus productos nas -mudanças da civilisação. - -O progresso, diz Proudhon «tem a sua base de operações na justiça -e a sua força motriz na liberdade. De feito nada existe de elevado -no desinvolvimento social sem o sentimento do dever e sem o uso da -liberdade. - -Ha dois aspectos sob os quaes póde ser considerado o progresso da -consciencia moral--um theorico, outro pratico. Ao estudarmos o complexo -de idéas moraes n’um individuo ou n’uma epocha, a variedade dos juizos -sobre as acções justas ou injustas, reconhecemos que ha um fundo -inalteravel de principios absolutos que se manifestam no sentimento -que cada homem tem a respeito do que o eleva acima da animalidade. Na -analyse dos elementos moraes, d’um instante do tempo ou d’um ponto -do espaço, observamos que ha alguma cousa de fixo e alguma cousa de -progressivo. O primeiro é o elemento theorico, o segundo é o pratico. - -O que constitue o valor moral das acções permanece invariavel, isto é -o dever absoluto, que se impõe a cada um de actuar conforme o que elle -crê o bem e de evitar o que elle crê o mal, procedendo com inteira boa -fé e completa sinceridade. - -A existencia e o uso da energia moral é indispensavel em toda a -condição de vida sociologica; não se póde conceber um estado da -humanidade, sem que n’elle tenha logar a virtude. - -O desenvolvimento da civilisação favorece o progresso da ethica geral, -porque alarga cada vez mais a area dos deveres reciprocos. O selvagem -não sente obrigações senão dentro da sua pequena tribu. A vida e -a propriedade alheia são para elle uma variedade da caça. O grego -ante-socratico só percebe a idéa de probidade no sentido autochtono -da palavra e dentro das fronteiras da Hellade. O romano do imperio -inspirado na philosophia estoica e educado na sociedade romana já -estende as suas relações até aos limites dominadores do codigo e do -gladio latino. O christão medieval obedece á acção moral do evangelho -e n’uma esphera já assaz ampla, illuminada pelo sentimento radioso -da caridade, reconhece a egualdade de todos os homens perante Deus. -Não obstante o seu horror sagrado pelos pagãos e pelos infieis sente -deveres a cumprir para com todos. - -Não ha descobrimentos nem invenções em moral, em quanto aos seus -principios fundamentaes, mas póde have-los nas suas consequencias e -nas suas applicações. Como diz Francisco Bouillier, é o progresso -das luzes na moral que se traduz nas instituições, nas leis e nos -costumes. Na ordem intellectual o progresso demonstra se por uma -especie de inventario do desenvolvimento de conhecimentos. O progresso -moral do individuo não póde verificar-se, porque se dá no segredo da -consciencia, no amago do coração ou no arcano da vontade. A obrigação -de proceder segundo a lei do bem exige por toda a parte, em todas as -condições do tempo, os mesmos principios e os mesmos fins. O valor -moral deve medir-se unicamente pelo grau da intenção, do esforço e -do sacrificio. A intenção moral é tão veneravel em qualquer selvagem -como em Socrates, em D. João de Castro ou em Washington. O tempo ou a -condição não influem sobre o valor intimo da acção ethica. - -As virtudes sociaes são mais cultivadas nas relações pequenas, em -que os homens vivem em mais intima connexão, do que nos grandes -centros, onde as relações são mais vastas. A concepção moral d’um typo -idealisado varia segundo as circumstancias do tempo e do espaço, posto -que o principio ethologico seja sempre substancialmente o mesmo. Um -typo de virtude forma-se primeiro pelas circumstancias da nação ou -da epoca, depois constitue-se em modelo sobre o qual se architectam -theorias. Aristides ou Catão são dois typos de virtude creados pelo -meio atheniense e romano. É assim que os povos organisados teem -uma ethica nacional differente, posto que o principio que a inspire -seja substancialmente o mesmo. Assim as circumstancias geographicas, -ethicas, religiosas ou outras, que fazem uma nação militar e outra -industrial, produzirão em cada uma um typo de exellencia moral -differente. Os heroes nacionaes da historia da França ou da Inglaterra, -são na sua psychologia moral assás differentes por numerosos caracteres. - -A moral ensinada nos livros tende a unificar-se, mas a ensinada na -familia conserva um caracter mais multiplo. Ora é exactamente a moral -da familia a que prevalece. Os paes, os irmãos, os companheiros de -creanças são quem mais influe sobre a formação do caracter. A escola -ministra a cultura intellectual e ethica, mas esta vem sobre tudo do -lar, fonte dos prazeres mais puros, doce refugio e salva-guarda da -honra, da familia e da nação. - -Na humanidade inculta as paixões são mais violentas e mais grosseiras, -e a vontade é mais energica tanto para o vicio como para a virtude. -São grandes na virtude e no crime. Basta comparar a historia antiga -com a historia contemporanea. Em certo grau de progresso intellectual -a violencia repugna, mas é substituida pela corrupção; se a violencia -humilha, todavia não avilta nem desmoralisa como a corrupção. Com o -desinvolvimento pacifico das sociedades, a vontade enerva-se e as -paixões recebem em vez d’uma expansão violenta, que gera as acções -epicas, uma concentração suave que não é mais do que o egoismo. - -Os malfeitores de dada cathegoria entregam-se a actos selvagens e -barbaros em sociedades policiadas, porque se inspiram n’uma athmosphera -permanentemente cheia de sentimentos de odio e de vingança, nascidos -d’um juizo perturbado que tem uma falsa noção das conveniencias e do -dever. - -Nas revoluções e na guerra das sociedades modernas, os homens de -faculdades normaes, sem ser em legitima defeza, esquecem todos os -precedentes moraes da civilisação para se entregarem á barbaria. -Aquelle ambiente em que o horisonte está tingido de sangue fa-los -retrogradar dezenas de seculos. Os biologos explicam este phenomeno -pela hereditariedade, os theologos explicam-no pelo peccado original; -as concepções divergem, mas a explicação do facto é a mesma. A guerra -foi durante muitos seculos a principal fórma da actividade humana, e -este habito repetido durante muito tempo, passou a instincto, vindo -conseguintemente a ser hereditario. Hoje o mesmo instincto ergue-se -sempre que as circumstancias o reclamam, passando uma esponja pelas -acquisições moraes nascidas da civilisação. - -O espirito humano tem em todos os phenomenos moraes a faculdade de -recusar a sua adhesão a qualquer tendencia que o solicite. Nos proprios -phenomenos de sensibilidade o imperio da vontade possue o poder de -intervir e a sua acção póde, dirigida pelas idéas, disciplinada pelo -habito e fortalecida pelo exemplo, contrahir sentimentos nobres e -amortecer inclinações ruins. Ainda que a existencia do senso moral no -criminoso seja demasiado tenue, a instrucção ampliando as relações -funestas que resultam da pratica do crime, veem mostrar ao criminoso -as tristes consequencias do delicto e os nobres estimulos e delicados -prazeres que gera a obra da virtude. Toda a educação resulta de bem -dirigir a acquisição dos habitos. A vontade é o mobil das nossas acções -e a força civilisadora por excellencia. Fortalece-la pois com exemplos -elevados, deve ser o destino da educação. - -Apezar da absoluta independencia intima da liberdade, os habitos e os -outros moveis fornecidos pela sensibilidade ou pela intelligencia, que -se modificam com a educação, actuam constantemente como objecto das -resoluções. A noção clara do dever moral que se aviva com a instrucção, -não determina necessariamente a sua pratica, todavia é mais um grau de -probabilidade para a execução do bem. - -A cultura intellectual dilata o poder da liberdade e modifica por -tanto o genero do crime, porém não o supprime; mas a cultura do -sentimento moral, inoculando o principio do dever, desvia o homem da -senda do crime, e se o homem é como cremos até certo ponto o artista -do seu destino, póde, pela educação com afinco obstinado e inflexivel, -aniquilar na sua alma as inclinações ruins e substitui-las por -aspirações d’uma ethica elevada. - -É evidente que nós defendemos a necessidade da cultura moral, pondo -como fundamento a liberdade; declarar que o homem não é livre nos seus -actos, é não só destruir o sentimento do merito, mas ferir a nossa -especie na sua dignidade. - -Os mais esplendidos productos de enthusiasmo moral que se referem a uma -força suprema de convicções, raras vezes existem em espiritos muito -cultivados, porque são vehementemente sensiveis á possibilidade do -erro, ao peso das circumstancias e á collisão dos argumentos. A alta -cultura intellectual, que disperta novas concepções do dever, é menos -alimentadora do fanatismo do que a ignorancia e a mediocridade mental. - -Thomaz Buckle prefere no governo dos povos os homens illustrados e -corrompidos aos ignorantes e austeros; diz que em todos os tempos os -homens mais sinceros e mais puros teem sido os que fizeram derramar -mais sangue innocente com menos escrupulo e com menos piedade. Os mais -crueis inquisidores de Hespanha foram homens de intenções puras, o que -os tornou mais nefastos por inaccessiveis á corrupção ou á ameaça. O -melhor dos imperadores romanos Marco Aurelio,[66] foi um dos que mais -perseguiu os christãos, em quanto Commodo e Elagabalo os deixaram viver -em paz. - -Buckle julga esteril o elemento moral como causa do progresso da -civilisação. Defende este paradoxo, levado pela idéa de que houve -fanaticos sinceros e desinteressados que foram um flagello da -sociedade, emquanto homens engolphados na corrupção moral e falhos de -convicções serviram a civilisação. É evidente para encurtar razões, -que o mais alto progresso intellectual, desajudado do elemento moral, -não podia constituir uma sociedade, porque se desapparecessem da -consciencia a probidade, a honra, a virtude publica e privada, não -podia subsistir a familia alicerce e cellula da vida social. - -Para Buckle toda a superioridade social se encerra na fecundidade -do elemento intellectual. O elemento moral é esteril no progresso -da civilisação. As proprias virtudes resultam da cultura mental. O -illustre escriptor inglez adduz muitos exemplos para comprovar o seu -paradoxo, mas não explicou a baixeza de caracter do seu compatriota -o genial F. Bacon, os seus crimes de concussão, e o seu vilissimo -procedimento para com o seu bemfeitor, o desditoso conde de Essex. - -Como explica egualmente as fraquezas de Seneca, que é ao mesmo tempo -philosopho e auctor aviltado da _Consolatio ad Polybium_, e defensor de -Nero, accusado perante o senado de parricidio? Por ventura, nem Bacon, -nem Seneca tinham bastante clareza de entendimento para comprehenderem -os seus deveres ethicos? Porque é que o seu altissimo talento os não -salvou d’estas fraquezas? - -Faltava-lhe a energia do sentimento do dever que é a augusta -superioridade que distingue o homem no mundo e o individuo na -sociedade. Seneca não foi um perverso, mas foi um suicida moral a -quem falleceu, durante parte da sua vida publica, a coragem que até -certo ponto resgatou no final com o heroico suicidio physico. Não ha -progresso, não ha verdadeira civilisação sem a virtude. Os sonhos do -homem sobre a terra são a esperança do reinado da justiça. O amor -individual da justiça converte-se para a humanidade no sentimento que a -eleva e que a engrandece; ora a justiça social é a expressão intensa do -bem e o bem é a finalidade d’este mundo. - -É uma these difficultosa saber até que ponto, a educação moral, -ministrada na familia e na escola pelo sentimento, pelos principios -e pelo exemplo, póde moralisar aquelle que a recebe. Apresenta-se a -alguns psychologos como duvidoso se a instrucção considerada em si, -restringida exclusivamente á receptividade de conhecimentos, desinvolve -maior inclinação para enfraquecer os elementos viciosos do espirito do -que para mudar a direcção e a qualidade do crime. - -É obvio que n’este caso se entende sómente a cultura intellectual e -technica e de modo nenhum se adapta á educação moral e religiosa. -Cerebro sem coração, penetração intellectual sem bondade, talento -sem moralidade, são poderes que mais podem servir para a execução da -perversidade do que para a pratica do bem. - -As faculdades intellectuaes e as aptidões technicas são valiosissimas -na vida social, mas encaminhadas para fitos maus podem trazer para a -humanidade em vez do progresso a destruição, em logar da felicidade a -desgraça. É obvio que não fallamos dos delinquentes cujo delicto nasceu -de más circumstancias economicas, da inaptidão para ganhar a vida, -porque para estes a cultura technica teria evitado a senda do crime, -visto que este não é proveniente da ausencia ou perversão do senso -moral. - -Assim a nossa antiga policia secreta recrutava os seus guardas e os -seus chefes entre os gatunos mais astutos e mais dextros. Depois de -membros do corpo de policia faziam-se homens probos e empregados -zelosos, o que demonstra que não eram seres incorrigiveis e que não -abraçavam a vida do furto por inclinação congenita, mas por necessidade -economica do meio em que tinham vivido. - -É pela educação moral que os individuos e as gerações se formam e -constituem um typo social. A acção suggestiva do ambiente começa para -o homem antes de despertarem os primeiros clarões do entendimento. De -instante a instante, de dia a dia os que cercam a creança, formam-lhe o -sentimento e as inclinações, de modo que a sua vida moral ao attingir o -pleno desenvolvimento, é quasi a summula das idéas e dos sentimentos, -que hauriu nas condições mesologicas em que germinou, cresceu e floriu. - -Não queremos com isto dizer que a idéa da personalidade fica aniquilada -deante do influxo do meio; ha muitos individuos que se revoltam contra -o existente e que são refractarios ás suggestões provocadas desde a -infancia, mas póde dizer-se que todos conservam a sua individualidade -em maior ou menor grau, exercendo a sua acção sobre a familia, sobre -os amigos e sobre os visinhos. Os de faculdades mais poderosas, ou de -vontade mais energica fazem irradiar a sua acção sobre uma esphera mais -ampla no tempo e no espaço; pela força como por exemplo Alexandre Magno -ou Cezar, pelo livro como Platão ou Aristoteles, pela palavra como -Demosthenes ou S. Paulo. Estes que teem assim uma acção decisiva na -historia são justamente chamados grandes homens. - -O pedagogo cuidando do ensino intellectivo deve antes de tudo applicar -a sua attenção ao lado moral, inoculando o sentimento do dever, -ensinando a supremacia do direito, desenvolvendo a concepção do bem, -a consciencia da vontade livre e o sentimento da responsabilidade.--O -primeiro dever do educador é capacitar a creança de que ella vem a ser -a senhora do seu destino. - -Na ordem do ensino deve inspirar-se-lhe primeiramente um elevado -principio religioso, alliado ao sentimento moral, depois o -desenvolvimento da habilidade intellectual no ponto de vista do -raciocinio e da applicação pratica. Só mais tarde pelo conhecimento das -operações intellectuaes, é que pela abstração, póde isolar o principio -religioso da idéa moral, desenvolvendo todavia harmonicamente as tres -syntheses da actividade psychologica, a synthese affectiva ou do -sentimento, a synthese especulativa ou da intelligencia e a synthese -activa ou da vontade. - -A cultura intellectual separada da educação moral é insufficiente -senão nociva para a formação do caracter. Mudança no entendimento póde -produzir mudança na moral, mas uma alteração d’essa natureza póde -despertar tanto disposições elevadas como deprimentes. É facto corrente -na historia dos individuos e das nações, encontrar homens e epocas -brilhantes pelas manifestações especulativas e estheticas, coexistindo -com uma grande depressão moral. - -A cultura moral, diz Baudrillard, ainda com uma luz muito minguada vale -mais do que o desenvolvimento intellectual, mal dirigido, tam frequente -em os nossos grandes centros.[67] A decadencia dos costumes no -proletariado das grandes cidades vem sobretudo da descrença religiosa e -da ausencia de educação moral. - -A cultura intellectual é sem duvida um grande bem e todos os apostolos -que lhe dedicam os seus sinceros esforços devem merecer ardentes -applausos dos bons cidadãos. - -Mas a instrucção sem o respeito da disciplina hierarchica, sem o -sentimento da honra, sem a idéa do dever, n’uma palavra, sem educação -moral, póde tornar-se mais nociva do que a propria ignorancia. - -Quando o saber ler e escrever serve apenas, para adquirir noções -perigosas, chamariz de direitos phantasticos sem obrigações, quando -serve para aprender o desprezo das leis, o irrespeito e o odio pela -auctoridade, quando serve para falsificar firmas, para macular em -pasquins anonymos a honra alheia teria sido muito melhor para a -sociedade o não haver-lhe ministrado esse instrumento desajudado -da educação do caracter. É uma illusão suppor-se que a cultura da -intelligencia só por si basta para melhorar o caracter; essa cultura -sem o sentimento do dever acompanhado d’um cortejo de crenças que o -tornem mais sensivel, mais vivo e mais poderoso, será um deserviço -feito á sociedade. - -Não ha felicidade sem a continencia e a moderação nas ambições, -segundo as circumstancias de cada um. Escreve um distincto jornalista: -«O anarchismo faz hoje _pendant_ ao epicurismo. Por cima estala -o Champagne, por baixo o anathema; por cima rodam caleches, por -baixo nas viellas tenebrosas rola obscuramente o trovão surdo de -um protesto odiento. Em cima goza-se, em baixo nos subterraneos -sociaes, cubiça-se. E como efflorescencia morbida d’estes dois estados -egualmente doentios, apparecem nas livrarias elegantes os productos de -uma litteratura requintada até á pornographia, e correm pelos sotãos -lobregos dos proletarios as folhas soltas da propaganda anarchista, -como outr’ora--bons tempos ingenuos!--a historia da imperatriz Porcina -e os romances de cordel. Essas folhas lêem-se como evangelhos que a -desordem epicurista dos que estão por cima commenta e sublinha. São -ellas que ensinam os oradores dos clubs e que arrastam ao crime os -fanaticos, por temperamento, por misanthropia, por genio ás vezes--por -_pose_ tambem, n’esta epocha singular em que o delirio do _reclame_ -faz com que a novidade seja cultivada com amor, e mereçam attenção e -curiosidade egual um bandido como Pranzini, ou um grande homem como -Bismarck. É que no regimen do epicurismo reinante, as coisas perdem -a significação moral, e só vale o que impressiona imaginações de -sybaritas, constantemente em procura de sensações novas. Um crime -é picante, especialmente se reveste circumstancias dramaticas ou -romanticas; uma boa acção, um acto simples e digno, são semsaborias. -Que admira, portanto, a _pose_ e a petulancia dos actores da comedia do -crime? São, como os actores de todos os palcos, os queridos da gente -_blasée_. Ás vezes, porém, toma ares tragicos, e n’esses momentos a -sociedade estremece de medo. É por isso que os crimes do fanatismo -são os que mais aggravam, e aquelles para que se reclama a maxima -punição; ao passo que os crimes bestiaes teem por vezes um encanto -morbido. É que estes exprimem apenas casos individuaes, emquanto -os primeiros abalam visceralmente a propria estructura social. O -instincto da conservação manifesta-se ás vezes d’um modo brutal, -sempre falho da serenidade critica e comprehensiva. Pensem n’isto os -que negam á sociedade uma vida, um temperamento, sentimentos e nervos -proprios, capazes de commoção e paixões. Pensem, e tirem as illações -consequentes. Uma das illusões dos doutrinarios individualistas foi a -distincção entre crimes civis e crimes politicos. Para os primeiros, -toda a severidade; para os segundos, toda a indulgencia. Imaginava-se -que acima do nós pairava uma atmosphera de bem e de harmonia, dentro da -qual apenas se podiam dar divergencias do opinião, confessaveis sempre, -embora violentas por vezes. Essa illusão passou, como tantas outras, -para dar, porém, logar a uma verdadeira aberração; ao criminoso por -fanatismo ou por paixão chama-se doido, e declara-se irresponsavel.» - -A instrucção é um instrumento de que se póde fazer bom ou mau uso. Ha -proletarios que só lêem o cathecismo d’um socialismo barato ou uma -imprensa que serve para apostolar a calumnia, o erro, a iniquidade e -todas as paixões ruins. Ha individuos que se aperfeiçoam na escripta -para poder falsificar firmas, ha quem estude chimica toxicologica para -envenenar o seu similhante. Porém d’estes factos podemos concluir que o -aprendizado da escripta e da chimica são um mal? N’esse caso deviamos -supprimir a agua e o fogo que produzem o horror das inundações e dos -incendios. - -A instrucção é sempre um elemento para a satisfação de necessidades -organicas e artisticas, e o ensino moral é uma nascente inspiradora do -bem. - -O desequilibrio entre o capital e o trabalho gera muitas paixões e -produz numerosos crimes. Se compararmos o presente com o passado, -apezar das crises industriaes e commerciaes, do sentimento de -imprevidencia, é innegavel que a pobreza diminuiu. O bem material tem -consideravelmente augmentado, mas o desejo da commodidade tem excedido -os meios de a satisfazer. O que se faz mister é uma energica educação -da vontade que imponha o seu imperio salutar aos apetites desregrados, -ás ambições que excedem a condição social do individuo e aos maus -conselheiros nascidos da inveja e da vaidade. Sem a temperança dos -desejos, segundo as circumstancias não ha na alma humana felicidade nem -paz. - -Escreve H. Spencer: - -«Persuade-se muita gente, imbuida de certos erros de estatistica, de -que a educação do Estado devia reprimir o crime. Estão os jornaes -cheios de comparações entre o numero dos criminosos que sabem -ler e escrever e o dos analphabetos; e, como este ultimo é muito -superior áquelle, acceita-se a conclusão de que a ignorancia é a -causa dos crimes. Não acode ao espirito a idéa de inquirir se outras -estatisticas, baseadas no mesmo systema, não provariam com a mesma -força que o crime é causado pela falta de lavagem de corpo e de roupa -ou pela má ventilação das habitações ou por não se dormir em quartos -separados. Entrem em uma cadeia e perguntem quantos são os presos que -tinham o habito de se lavar de manhã. Ver-se-ha que a criminalidade -está ordinariamente a par da falta de limpeza do corpo. Contem-se -os que tinham mais de uma andaina de fato; a comparação das sommas -ha de mostrar que é bem diminuto o numero dos que tinham roupa para -mudar. Pergunte-se se elles moravam em ruas largas ou dentro do -pateos; saber-se-ha que quasi todos os criminosos das cidades saem das -habitações immundas. Assim acharia tambem na estatistica a justificação -não menos completa da sua crença o partidario fanatico da absoluta -abstinencia de bebidas espirituosas ou dos melhoramentos hygienicos. -Se, porém, não acceitais a fortuita conclusão de que a ignorancia e o -crime são causa e effeito; se tomais conta em que, como acabais de ver, -com egual fundamento era facil attribuir o crime a outras causas muito -diversas,--podeis achar que existe uma relação real entre o crime e um -modo inferior de vida, filho geralmente de uma inferioridade original -de natureza; que, emfim, a ignorancia não passa de um concomitante, que -póde tanto ser a causa do crime como muitas outras cousas. Os auctores -de quebras fraudulentas, os fundadores de companhias phantasticas, -os fabricantes de generos falsificados, os que empregam marcas -falsas, os que vendem com pesos falsos, os proprietarios de navio sem -condições de navegações, os que roubam as companhias de seguros, os -traficantes, a maior parte dos jogadores--são todos gente educada. Ou, -para irmos ao extremo do rebaixamento moral, entre os envenenadores -de todas as epochas não ha porventura um numero consideravel de -pessoas bem educadas, um numero tão grande, em proporção com as -classes illustradas, como é o numero total dos assassinos comparado -com a população total? Mas é até absurda _a priori_ esta confiança -nos resultados moralizadores da cultura intellectual, negados tão -categoricamente pelos factos. - -E em verdade que especie de relação póde existir entre o saber que -certos grupos de caracteres representam umas certas palavras e o -adquirir um sentimento mais nobre do dever? Como é que a facilidade -de formar signaes que representam sons póde fortalecer a vontade de -fazer bem? De que modo póde o conhecimento da taboada da multiplicação -ou a pratica das addições e das divisões desenvolver os sentimentos -de sympathia a ponto de reprimir a tendencia de offender o proximo? -Como é possivel que os themas de orthographia e de analyse grammatical -nutram o sentimento da justiça, e por que razão emfim os apontamentos -sobre geographia colligidos com toda a perseverança hão de augmentar -o respeito pela verdade? O parentesco de taes causas com taes effeitos -não é maior do que o da gymnastica que exercita os dedos com a que -robustece as pernas. Quem esperasse ensinar geometria com licções de -latim, ou piano com as regras de desenho, todos o julgariam no caso de -entrar para uma casa de orates: e comtudo não seria mais disparatado do -que aquelles que, disciplinando as faculdades intellectuaes, imaginam -crear sentimentos melhores.» - -Spencer escolhe de proposito as formas da cultura intellectual que -menos se podem aproveitar para ensinamentos moraes. No entanto o -professor póde, em nosso entender, achar em qualquer cathegoria de -ensino scientifico uma relação que influa no sentimento do alumno. - -Não póde dizer-se nunca, como pretende Spencer, que haja _irrelação_ -entre o conhecimento especulativo e a pratica do bem. A imaginação e -a sensibilidade elaboram productos psychicos que tem a sua origem na -intelligencia, os quaes veem a ser condições de volição. O entendimento -nas suas funcções de acquisição de idéas, da sua conservação, da sua -elaboração e do principio racional que as dirige tem necessariamente -muitas vezes de lhe communicar emoções que influem directa ou -indirectamente sobre a vontade. A imaginação é a faculdade do ideal, a -intelligencia a do real, a primeira conhece, a segunda inventa. É pela -imaginação que o homem se distrae e se consola das vicissitudes da vida -real, creando um mundo subjectivo que é o principal impulsionador da -vontade. - -As sciencias mathematicas, physico-chimicas, biologicas e grammaticaes, -teem na verdade uma influencia muito longiqua na vida moral. O mesmo -não póde dizer-se das sciencias historicas e da litteratura. Ninguem -desconhece a influencia moral notavelmente fecunda, nascida das -lettras-classicas, da leitura por exemplo das _Vidas parallelas dos -homens illustres_ de Plutarcho, que é ao mesmo tempo historiador e -moralista, fazendo da historia um verdadeiro ensinamento moral. As -estatisticas registam todos os dias a influencia perniciosa dos maus -romances sobre o crime e o suicidio. É bem conhecido o influxo moral -da cultura helleno-romana sobre os espiritos directores da revolução -franceza. As circumstancias e os principios philosophicos deram o -motivo, mas Roma deu-lhe principalmente a inspiração. - -O effeito da cultura intellectual poderá ser para a formação do -caracter favoravel ou deprimente, excellente ou detestavel, o que de -modo nenhum será, é indifferente e sem relação, como quer Spencer. -A dependencia em que estão as nossas funcções psychicas é tal que -pensamos porque sentimos, e queremos porque o sentimento e o pensamento -são a materia prima da nossa actividade volitiva. Não ha volição, -por conseguinte não ha acto moral sem motivo sensivel, intellectivo -ou racional, e todos estes actos se refletem na consciencia; logo é -evidente que ha relações reciprocas e influencias mutuas entre a vida -intellectual e o desenvolvimento moral. - -Para Spencer não ha relações entre a acção e as lições moraes e -intellectuaes, ha sómente entre a acção e o sentimento; entre a cultura -intellectual e o sentimento moral ha uma _irrelação_. Diz com razão F. -Bouillier que não existe tal _irrelação_, ainda que a relação não seja -sempre proporcional e constante. Não póde negar-se que entre todos os -phenomenos psychologicos existe uma connexão intima que se encontra -sobretudo na unidade da consciencia. A vida moral tem necessariamente -relações com a vida sensivel e intellectiva. - -Mas no que de modo nenhum, se póde seguir Herbert Spencer, é em -restringir a educação moral ao exercicio do sentimento, pondo fóra -por conseguinte como esteril, a acção emotiva de elevados principios -ethicos, de bellas maximas moraes e de sublimes exemplos em holocausto -do dever. Não só estes factos geram no espirito por uma elaboração -consciente ou automatica novas emoções e fecundas idéas moraes, mas -ficam como motivos para dirigirem a vontade. Uma das sciencias que deve -ser para o bom professor um fecundo meio de ensino moral é a historia. - -A opinião, o costume, a imitação instinctiva, o influxo moral são os -principaes factores do caracter, especialmente no periodo psychologico -de maior plasticidade mental. Os movimentos da nossa vontade seguem os -sentimentos e tambem os pensamentos. - -É frequente ver publicistas, apostolos d’uma democracia barata, -prégarem como remedio infallivel e salvador de todos os males a -diffusão da instrucção primaria, mas secular. O sentimento que os -anima é mais um odio cego contra as idéas religiosas, um fanatismo de -intolerancia contra as doutrinas christãs, do que a convicção profunda -dos beneficios do estudo e da sciencia.[68] - -Entre nós apparecem quotidianamente periodicos e pamphletos, propagando -o fanatismo irreligioso, mais nocivo e nefasto que o pernicioso -fanatismo de religião. - -São esses democratas de cultura superficial e viciada que proclamam -a falsa banalidade «abrir uma escola é fechar uma prisão» querendo -desterrar ao mesmo tempo do lar e do ensino publico a educação moral e -religiosa. - -Diz F. Bouillier: «o fim de todos os hereticos e de todos os fanaticos -foi até ao presente introduzir uma crença, uma fé ardente no lugar -d’outra crença e d’outra fé; fanatismo e scepticismo eram dois termos -contradictorios. As cousas mudaram; é um fanatismo puramente negativo -e sceptico, um fanatismo do vacuo, por assim dizer, que pretende -exterminar em pretendido proveito da democracia e da moral, o que resta -das idéas religiosas nas cidades e nos campos. Temos horror a estes -tristes fanaticos que com o odio na alma, sem nenhuma outra crença, sem -nenhuma outra fé para desculpa, incitam á destruição dos templos e até, -o temos nós visto, á matança dos sacerdotes.» - -Ha uma necessidade secreta e imperiosa na vida espiritual da fé -philosophica e da fé religiosa. Só os individuos que rastejam pela alma -dos brutos, é que se suppõem isentos d’esta mysteriosa necessidade. -A falta do sentimento religioso é condição dos individuos de cultura -inferior e de mediocre talento viciosamente dirigido. O sabio, o -homem de genio profundo, a alma popular singella e penetrante são por -natureza seres religiosos. Tudo na terra está na inter-dependencia do -universo e a cada instante a nossa razão descobre relações com outros -mundos, cada vez mais longinquos, o que prova que o espirito não exgota -n’este mundo a a sua essencia. - -Escreve o distincto criminalista G. Tarde: - -«Não nos admiremos pois de se não descobrir na estatistica criminal -o vestigio de nenhuma influencia benefica exercida pelo progresso -da instrucção primaria na criminalidade. É bem visivel a acção da -instrucção sobre a loucura e sobre o suicidio que augmentam a par dos -seus progressos; de modo algum se percebe a sua acção nomeadamente -restrictiva na criminalidade. O relatorio oficial bem o manifesta e -deplora. Mostra-se n’um mappa que os departamentos onde a população -dos illitteratos é maior, esses estão sempre longe de mostrar -maior numero de accusados comparativamente com o numero dos seus -habitantes. Por outro lado, nos campos, onde ha menos instruidos, -contam-se oito accusados por anno em cem mil habitantes, e nas cidades -desaseis. Exactamente o dobro. E todavia deverá inferir-se que o grau -d’instrucção d’um povo é indifferente no ponto de vista criminal? -Não. Em primeiro logar influe evidentemente na qualidade, senão na -quantidade dos delictos. E o mesmo succede com o grau da riqueza. -Algumas luzes mais, o goso de mais algumas commodidades desenvolvem -certos appetites, comprimem outros, transtornam emfim a hierarchia -interior dos nossos desejos, origem de todos os crimes e delictos. -Nos departamentos pobres, são eguaes em numero os crimes contra as -pessoas aos crimes contra as propriedades. Nos departamentos ricos -excede muito a proporção d’estes ultimos. Se a estatistica comparada -dos roubos esmiuçasse este artigo conforme a natureza dos objectos -roubados,--menção sociologicamente mais util que as indicações -relativas á idade dos roubadores,--ver-se-ia sem duvida que, de ha 40 -ou 50 annos a esta parte, desde que a França enriqueceu, tem diminuido -o numero proporcional dos roubos de colheitas e que pelo contrario tem -augmentado e augmenta ainda o de joias, de dinheiro, etc. Assim succede -com a proporção dos delictos contra os costumes, das rebelliões, -gatunices, etc., que tem crescido espantosamente, effeito provavel da -emancipação e da subtileza dos espiritos. - -Mas se apreciarmos a questão pelo lado da instrucção simplesmente -primaria, forçoso será reconhecer que a quantidade dos crimes e -dos delictos tomados em globo, de nenhum modo é influenciada pela -sua diffusão. Pelo contrario, a acção beneficiadora da instrucção -secundaria e sobre tudo superior não é duvidosa. A prova d’isto está na -fraquissima contribuição das profissões liberaes, das classes lettradas -para o contingente criminal da acção: resultado, notemol-o, que não -é devido á riqueza relativa d’estas classes porque a menos rica, a -dos agricultores participa d’este privilegio por qualquer outra causa -por indagar, provavelmente por ser a mais laboriosa, e a classe dos -commerciantes, de todas porventura a mais rica apresenta phenomeno -inverso. Não é certamente a fé religiosa a que mais actua nas classes, -mais instruidas. Actúa n’ellas muito menos. Não é emfim porque estas -classes tenham pelo trabalho mais decidida energia; n’este ponto -excede-lhes tanto a classe dos commerciantes e dos industriaes, quanto -a classe agricola excede á d’estes. É pois, creio eu, á sua instrucção -levada a um certo grau ou antes á sua educação de uma natureza especial -que havemos de attribuir a moralidade relativa d’estas differentes -classes sociaes. É para notar que a influencia moralisadora do saber -começa no momento em que elle deixa de ser uma ferramenta apenas e se -torna um objecto d’arte. Se a instrucção, pois, viesse a ser sómente -profissional, se deixasse de ser esthetica, quando não classica, -perderia sem duvida alguma a sua virtude de ennobrecimento. Porque? -Porque o bem não póde ser concebido senão como o _util social_ ou o -_bello interior_, e porque d’estes dois unicos fundamentos da moral -(postos de parte os preceitos divinos,) o primeiro, o fundamento -utilitario, implica necessariamente o segundo; porque nos conflictos -tão frequentes do interesse geral e do interesse particular, sobre -que se ha-de appoiar o individuo para sacrificar este áquelle, para -amar aquelle mais do que este? Unicamente sobre o amor do bello, desde -muito tempo cultivado por uma educação apropriada e sobre a persuação -de que se embelleza interiormente por este sacrificio, louvado ou -não, conhecido de todos ou somente de si mesmo. Este motivo bastaria -para recommendar ao porvir os estudos litterarios, a arte e tambem -as especulações philosophicas, todas as cousas que, interessando o -homem ao seu objecto por este objecto, o desinteressam por si mesmo e -lhe revelam no fundo d’este desinteresse o seu supremo interesse, no -fundo do inutil o bello. Quando elle sabe conhecer certas impressões -delicadas, toma-lhe gosto e o desejo de as tornar a achar fal-o -repellir as satisfações baixas que lhe fechem o caminho que d’ellas o -approximam. Porque, se a alta cultura moralisa, é porque a moralidade -é a primeira condição subentendida da alta cultura, como a primeira -condição da flora alpestre é um ar puro. Eu sei que poucos são os -bons pelo amor da arte, os estheticos da moral, os novos mysticos, em -quanto que é crescido o numero d’aquelles que hoje o são com medo da -policia ou da deshonra, como outr’ora o eram com medo do diabo ou -da excommunhão. Mas emquanto, á imitação d’estes ultimos, se pensa -em aperfeiçoar o Codigo penal, não seria mais urgente augmentar a -minoria dos primeiros, espalhando por todos e principalmente levantando -entre as primeiras familias humanas, d’onde dimana o exemplo, o culto -das bellas inutilidades indispensaveis? Em summa, tão raros são os -homens que, por sentimento da sua dignidade pessoal, especie de gosto -esthetico reflectido e chamado sciencia, são corajosos, francos, -dedicados, apesar da vantagem evidente que elles encontrariam as mais -das vezes em ser cobardes, egoistas e mentirosos? Conforme o modelo, -assim o valor das copias. Felizmente para nós os nossos modelos -invisiveis, os semi deuses venerados na educação dos collegios, grandes -theoricos, grandes artistas, inventores de genio, eram a flor da -honestidade humana e a logica assim o queria, porque teria sido para -elles uma contradicção nos termos ter sido da verdade pura por exemplo -e procurar illudir a outrem, em quanto que não é contradictorio por -fórma alguma aprender a chimica para envenenar uma pessoa, estudar -o direito para usurpar os bens do visinho, d’onde se conclue que a -honestidade dos chimicos, dos jurisconsultos, dos medicos, dos sabios, -é incompativel com os seus estudos propriamente scientificos no sentido -profissional e utilitario da palavra. Mas os grandes homens de que -eu fallo foram moraes por necessidade intellectual d’abnegação e de -franqueza e posto que esta necessidade se não faça sentir na media -das pessoas instruidas, elles dão-lhe tom, imprimem-se mais ou menos -em cada novo alumno e propagados assim em innumeraveis exemplares, -recommendam-se por sua estampa ás naturezas mais vulgares como um bello -cunho liso e brilhante em moedas de cobre. - -Tem-se zombado tanto dos nossos estudos classicos! Todavia é para notar -que, onde elles se cultivam melhor, ahi florescem as virtudes sociaes, -e que, apezar das mais avultadas tentações, das mais vivas paixões, das -mais variadas necessidades, da mais completa emancipação do pensamento, -apesar emfim dos maiores recursos para o crime e das facilidades -relativas que tem o criminoso de se subtrair á acção das leis, não -obstante tudo isso, a criminalidade ahi está no seu _minimum_. Não é -talvez sem uma rasão profunda que, precisamente quando o catholicismo -recebeu o seu primeiro grande abalo, no decimo sexto seculo, teve -nascimento o _humanismo_, como por uma especie de contrapeso. Não -tenho pois de que me admirar vendo no decimo oitavo seculo, ao segundo -grande assalto do dogma, entre os encyclopedistas ou outros, o respeito -singular das tradições litterarias e dos typos consagrados da arte, -a admiração quasi supersticiosa de Virgilio e de Racine crescerem á -medida dos progressos da sua irreligião irreverenciosa para tudo o -mais. Pelo contrario, tem-se notado que os romancistas do Imperio -e de 1830, luctando contra as tradições litterarias e o culto da -arte classica, se tinham apoiado no sentimento christão reanimado ou -galvanisado, conservadores aqui tanto, quanto innovadores além. Todos -estes contrastes têem parecido estranhos aos que não têem feito caso -de descobrir n’isto a instinctiva compensação de uma fonte de fé e -de moralidade em substituição de uma outra.--Apparentes inutilidades -ha que são funcções superiores. Dá-se por isso, quando ellas são -cortadas. De que servem, dizia-se, as bellas florestas inexploradas -das montanhas? E deitaram-nas abaixo para cultivar o solo inclinado -que ellas sustinham; e desde então as inundações dos rios têem causado -estragos de que os antigos nunca ouviram fallar. Como se uma pouca -de verdura sombreando a sua nascente fosse bastante para moderar -o seu primeiro impulso.--Outro tanto podemos talvez dizer d’essas -outras superfluidades que se chamam _lettras_, artes, e d’aquellas -que para o vulgo têem valor identico, as festas tradicionaes, -populares, domesticas ou religiosas, os folguedos, os anniversarios -costumeiros, como altas florestas de pinheiros. Um povo que n’um -pensamento utilitario, sacrifica as suas alegrias puras, virá a -deplorar a sua perda; e quando nos corações desencadeados não houver -já cousa que no seu declive sustenha a ambição, o amor, a inveja, -o odio, a cubiça, ninguem deverá admirar-se de ver cada anno subir -a maré da sua criminalidade transbordante. A minha conclusão é que -seria grande o perigo de enfraquecer nos collegios o lado esthetico -da educação, que convem fortificar ali de preferencia, depois de se -ter supprimido na escola o ensino religioso. O momento seria tanto -mais mal escolhido, quanto pela primeira vez o poder politico, d’onde -acaba sempre com o tempo por derivar a força proselytica, o prestigio -exemplar, o verdadeiro poder social em uma palavra, é tirado aos -professores liberaes, onde a criminalidade é de 9 accusados por anno -para 100:000 pessoas d’estas cathegorias e conferido, não ás classes -agricolas, onde é de 8 para o mesmo numero de agricultores, mas na -realidade ás populações industriaes e commerciantes das cidades, onde -é de 14 e 18 para um igual numero de industriaes e commerciantes. -Porque não é com exactidão que se diz que o nosso paiz se democratiza. -Democratizar-se não é termo que sirva para uma nação onde tres quartas -partes do povo são camponezes, assentaria melhor, permittam-me o verbo, -_rustificar-se_, ou, para exprimir a cousa com justa conveniencia, -estender e fortalecer os costumes, as preocupações, as idéas agricolas -e ruraes. Mas o contrario succede pela emigração espantosa dos campos -para as cidades, e ainda mais pela importação dos costumes urbanos, das -idéas urbanas, para o centro dos campos. A França commercializa-se, -industrializa-se, se o querem; não se democratiza. A cousa tem o seu -lado bom, o seu lado excellente, tenho-a applaudido a muitos respeitos -mas tinha de mostrar aqui tambem o reverso da medalha. Se, como eu -julguei mostral-o em outro logar a origem da criminalidade profissional -só póde ser estancada em primeiro logar por uma expansão maior de -beneficencia e pela creação de numerosas sociedades de patronato, -importa que as novas classes dirigentes, tanto e mais que as antigas, -tenham aprendido a praticar o culto do bem, do bello para o bello. -E se, em segundo logar, o remedio para o mal da criminalidade geral -se acha em parte na estabilidade do poder politico, é preciso não -esquecer que sem uma forte dose de dedicação da parte dos governos e de -confiança da parte dos governados, não ha governo de possivel duração. -A concorrencia d’estas duas condições é rara! Ora é um povo sincero que -se confia cegamente a um despota, a um egoista de talento ou de genio, -ora é um homem de Estado dedicado aos interesses do paiz que se esbarra -com uma desconfiança geral que o paralysa; mas ha esta differença a -notar que, muitas vezes com o tempo, a dedicação dos chefes leva a -confiança ás massas, emquanto que nunca se viu a confiança dos povos -fazer nascer a abnegação no coração dos seus governantes. É pois -primeiro que tudo o desinteresse, a generosidade, o amor intelligente -do bem publico, que se deseja encontrar nos homens chamados a -governarem, pois que o resto póde vir como consequencia. D’aqui resulta -que as nossas duas precedentes conclusões concordam igualmente para -proclamarmos a necessidade do sacrificio, a insufficiencia do mobil -do interesse pessoal, e a opportunidade de elevar por consequencia a -educação esthetica o mais possivel, tanto como diffundir a instrucção -profissional o mais longe que possa ser.» - -Tarde (G.) dá grande importancia á cultura do sentimento esthetico -nos effeitos da criminalidade. De feito, a emoção do prazer e o -sentimento de admiração, que resultam da contemplação do bello, elevam -os nossos juizos e melhoram a nossa alma. Kant resumiu os caracteres -subjectivos do bello, definindo-o o objecto d’uma satisfação, -desinteressada, universal e necessaria. É grande a sua analogia com o -bem, porém distingue-se, porque este mira não só á perfeição geral mas -essencialmente á perfeição moral. - -O sentimento esthetico como criterio moral é incompleto; posto que toda -a moralidade seja bella e que o ideal esthetico nos excite á pratica -do honesto e nos inspire o desejo de o realisar; não nos obriga como o -principio do bem, ao cumprimento do dever. A moralidade deve existir -sempre na arte, porém não a absorver, visto que tem por especial -missão, crear o bello, não ensinar o bem. No entanto ella carece sempre -do attributo moral porque a immoralidade fere a consciencia e altera -o prazer esthetico. Ninguem póde negar, que o bello, exercendo a -sympathia desinteressada, é um alliado do bem, mas este conserva a sua -individualidade. - -Na escola a educação esthetica não póde supprir a educação do -sentimento moral e religioso. Os italianos têem como nenhum outro povo -notaveis aptidões estheticas e afamados monumentos artisticos, onde -pódem beber as grandes e delicadas emoções da belleza e todavia são -o povo onde a estatistica criminal mais avulta. A renascença é uma -das idades mais esplenderosas e mais fecundas na creação do bello e -todavia apresenta se ao historiador como um periodo de aviltamento e de -depravação moral tanto nos grandes crimes como em detestaveis vicios, o -que prova a coexistencia d’uma alta civilisação intellectual e material -com a depravação. - -A approximação excessiva das idéas do bello e do bem provêm da theoria -da escola escoceza, que reduz a consciencia moral a um sentido, que nos -deu a natureza, similhante ao do gosto e ao do paladar. O homem segundo -este systema aprecia o bem como o bello, não pela razão, mas pelo -sentimento immediato que experimenta. H. Spencer, que é n’este ponto -discipulo de Reid e de Darwin considera o _sentido moral_ como um -legado hereditario na especie. O prazer moral n’este caso não differe -dos outros prazeres, não ha motivos de preferencia. Como se vê é uma -forma do empirismo moral. - -É extremamente benefico para a alma o sentimento d’uma belleza moral, -placida, serena e vigorosa, inspirada por um ser que goza de todas as -forças; que se encerram nas condições d’um typo poetico, que preenche -completamente a sua grandiosa missão no mundo. Esta belleza, quando -real, filha da natureza ou da sociedade, como diz Krause, tem mais -_plenitude_, porque a natureza cria as suas obras d’um modo integral -com todas as peças nas suas relações mutuas emquanto o bello ideal -tem mais _expressão_, porque o espirito cria as suas obras de um modo -independente, dispondo dos elementos de representação á sua vontade. -A primeira belleza é o fim da arte naturalista, a segunda o da arte -classica. - -O egregio criminalista Tarde quando se refere á educação esthetica, -sollicita a attenção para as vantagens da educação litteraria. -Certamente a poesia, o drama, a eloquencia escripta, a historia -narrativa occupam o primeiro lugar na cultura do sentimento moral, da -imaginação e do gosto, não só pela intensidade da emoção, que produzem, -mas porque communicam idéas d’um valor mais preciso e mais nitido. -Depois da educação religiosa e da educação moral, aquella que mais -enriquece, eleva e fortalece o coração, é a educação artistica. Todavia -é certo tambem, que em todas as formas da actividade psychologica se -póde utilisar adequadamente o elemento moral. - - -NOTAS DE RODAPÉ: - -[66] É para notar contra a opinião de Buckle que Marco Aurelio foi -talvez o homem de estado mais esclarecido da antiguidade. O exemplo -parece mal escolhido. - -[67] _De la Famille et de la éducation_, pag. 74. - -[68] Veja-se _Morale et Progrès_ por Francisco Bouillier, Inspector -Geral de Instrucção Publica, pag. 291. É uma analyse profunda d’este -estado que se póde applicar a todas as nações neo-latinas. - - - - -VI - - Os effeitos da acção educativa. A hereditariedade, o meio; Garofalo. O - gosto pelo adorno é na mulher como sustenta B. Perez uma manifestação - esthetica e nunca uma approximação do typo criminoso. A arte e a - moral. Educação physica, a escola e a doença. - - Toda a despeza que os paes fizerem na educação de seus filhos será - frustrada se elles não tomarem sobre si a maior parte da obrigação de - mestres e ayos com preceitos e com exemplo. - - MARTINHO DE MENDONÇA. - - -É innegavel que a educação, o meio social e a hereditariedade são os -guias principaes que dirigem o individuo durante toda a sua vida. Se a -acção educativa não é, como pretendem alguns sociologos, efficaz para -reformar os sentimentos do individuo, porque elles são o resultado -hereditario de lentas elaborações, é o todavia para reformar uma -geração, para criar uma sociedade futura, mais justa, mais moralisada -e mais cheia de sentimentos bons e generosos. O sentimento é um dos -factos psychologicos, que maior influencia exerce sobre o caracter; -insuflar pois na alma o sentimento religioso, o sentimento esthetico, o -sentimento moral, é melhorar o individuo, é engrandecer a sociedade. - -A educação em alguns casos possue relativamente pouco poder -para modificar os sentimentos e tem de exercer a sua acção pela -intelligencia afim de dirigir a acquesição dos habitos. A acção -volitiva sobre a intelligencia começa hesitante, disciplinando as -numerosas associações de movimentos reflexos necessarios para dirigir -certos musculos em determinado sentido. Por ultimo basta que os nervos -sensitivos levem aos centros nervosos o grau determinado de impressões -para a excitação ser immediatamente produzida. É assim que os habitos -se adquirem e que transmittidos pela hereditariedade se convertem em -instinctos. Se a acção educativa é pouco efficaz no individuo, ficará -de reserva para os seus descendentes. - -Como é sabido a associação das idéas é uma das operações mais -importantes na formação da estructura intellectual. Ha necessidade -de habituar o espirito a formar juizos segundo certas relações das -cousas, no intuito de tirar do valor d’essas relações todo o partido -possivel em favor da educação do caracter. É preciso ensinar a -creança a ligar na sua consciencia d’uma maneira irreductivel, ás más -obras sentimentos de vergonhosa reprovação e de dôr, e ás boas obras -sentimentos de honra, de merito e de respeito para que se habitue -a aborrecer os primeiros e a amar os segundos. Estas associações -tornadas indissoluveis e ás vezes inconscientes é que formam o nosso -caracter e regulam o nosso procedimento na vida moral. O exercicio -intensivamente repetido das nossas operações intellectuaes torna-se -com a frequencia cada vez mais automatico, e como os actos automaticos -são inconscientes, parece que a humanidade caminha a passos rapidos -para o inconsciente, porém não succede assim, porque os resultados das -operações não se tornam inconscientes, o que se torna inconsciente são -estas associações mechanicas dos elementos adquiridos pela experiencia -e transmittidos pela hereditariedade. É claro que a consciencia a que -nos acabamos de referir não é a consciencia moral, porque essa não -augmenta nem diminue com a herança accumulada, permanece inalteravel, -impondo á vontade a necessidade de executar uma acção em obediencia -á lei do dever. A intelligencia culta esclarece melhor o valor dos -motivos actuantes, mas a verdadeira superioridade moral d’um individuo -ou d’uma nação está em respeitar a lei. - -No caracter é preciso distinguir o que é congenito e o que vem pela -influencia do meio e da educação. Para as disposições nativas é -difficilimo alcançar extirpação radical, mas para as adquiridas toda -a formação do caracter depende de bem dirigir os habitos, sobretudo, -no periodo psychogenico. As inclinações innatas podem ser attenuadas -dentro de certos limites e até vencidas por considerações de interesse -proprio ou pela inoculação d’uma paixão elevada que lucte contra uma -paixão ruim. - -Punir é uma triste necessidade social, evitar que o crime exista é que -deve ser a principal funcção das sociedades que aspiram á tranquilidade -e á segurança economica. Pretender a extincção total do crime seria uma -aspiração chimerica, mas diminuir a sua frequencia pela acção educativa -e por outros melhoramentos e circumstancias, que desinvolvem o bem -estar social, é _desideratum_, que progressivamente póde converter-se -em realidade. - -O grande contingente dos criminosos é recrutado entre os menores -abandonados, filhos de paes crapulosos, que no alvorecer da vida lhes -deram tristes exemplos. Para estes a rapinagem converte-se n’uma -profissão, primeiro impellidos pela necessidade, depois atrahidos pelo -habito. A ausencia de educação moral faz com que tenham por unicos -prazeres o ocio, a embriaguez, a libertinagem, a vãgloria, o jogo, -que são outros tantos incentivos para a pratica do crime. É já um -aphorismo em jurisprudencia que muito mais vale prevenir os crimes do -que punil-os. A educação posta ao serviço da sciencia social preventiva -do crime, é a alavanca mais poderosamente salutar, para destruir as más -inclinações e converter em habito o amor do bem e a pratica do justo. A -acção educativa é muito mais efficaz na creança que no adulto, por isso -são preferiveis os asylos de imfancia ás penitenciarias correccionaes; -os primeiros evitam em parte as segundas. - -Sobre a influencia da educação nos instinctos criminaes escreve -Garofalo, o porta-bandeira da jurisprudencia anthropologica: «Muitos -philosophos crêem na possibilidade de modificar os sentimentos moraes -pela educação ou pelas influencias do meio e na possibilidade de -transformar o meio social mediante o poder do Estado. Duas questões -se seguem, uma psychologica, outra social e sobretudo economica, e -ambas merecem um detido exame. Começaremos pela questão da influencia -que pode ter a educação sobre as tendencias dos criminosos afim de -podermos apreciar o que ha de verdadeiro e de acceitavel na theoria -penal, chamada correccionalista. O problema da educação seria, com -effeito, da maior importancia para a sciencia penal se, por meio de -ensinamentos fosse possivel transformar o caracter do individuo _já -vindo da infancia_. Desgraçadamente parece demonstrado que a educação -só representa uma d’essas influencias actuantes _nos primeiros annos -da vida_ e que, como a herança e a tradição contribuem para formar -o caracter. Estando este fixado como a physionomia no physico, fica -o que hade ser toda a vida. Ponho até em duvida que um instincto -moral ausente se possa criar pela educação no periodo da primeira -infancia. Em primeiro logar, quando se trata da infancia, a palavra -educação não deve ser tomada em sentido pedagogico, significa antes -um conjuncto inteiro de influencias exteriores, uma serie completa -de scenas que a creança vê desenrolarem-se continuadamente e que lhe -imprimem habitos moraes, ensinando-lhe experimentalmente, e quasi -inconscientemente, qual é o procedimento a seguir nos differentes -casos. São os exemplos da familia, ainda mais que os ensinamentos -que actuam em seu espirito e em seu coração. Mas dando-se á palavra -_educação_ uma significação extensa, não havemos a certeza do seu -effeito, ou ao menos, esse effeito de modo algum se pode medir.[69] -Podem-nos fazer notar que quasi todas as creanças parecem privadas -de senso moral nos primeiros annos da sua vida; a sua crueldade -para com os animaes é conhecida assim como a sua tendencia para se -apoderarem do que pertence aos outros; são inteiramente egoistas, e -quando se trata de satisfazer os seus desejos, nada absolutamente se -preoccupam com os desgostos que os outros soffrem. Na maior parte -dos casos, tudo isto muda em chegando a adolescencia; mas podem-nos -objectar que esta transformação psychologica é o effeito da educação -ou sómente se hade ver n’isto um phenomeno d’evolução organica, -semelhante á evolução embryogenica, que faz percorrer o feto pelas -differentes formas da animalidade, desde as mais rudimentares até ás -do homem? Tem-se dito que a evolução do individuo reproduz em ponto -pequeno a da especie. Assim no organismo psychico, os instinctos que -primeiro apparecem, seriam os do animal, depois os mais egoistas, -os do homem primitivo, aos quaes viriam ajuntar-se successivamente -os sentimentos ego-altruistas, e altruistas, adquiridos pela raça -primeiramente, em seguida pela familia e finalmente pelos paes da -creança. Seriam outras tantas juxtasposições d’instinctos e de -sentimentos, que todavia não seriam devidos á educação, ou á influencia -do meio ambiente, mas simplesmente á herança. «A consciencia, diz M. -Espinas, cresce como o organismo e parallelamente a elle, encerrando -aptidões, fórmas predeterminadas de pensamento e de acção, que são -emanações directas de consciencia, anteriores _eclipsadas um instante -é certo na obscuridade da transmissão organica_, mas reapparecendo -um dia com caracteres de semelhança não equivocas, que logo se -confirmam cada vez mais pelo exemplo e pela educação. _Uma geração -é um phenomeno de fissiparidade transportado na consciencia._ Esta -hypothese não é inverosimil, ainda que seja impossivel demonstral-a -rigorosamente porque seria para isso necessario poder distinguir, no -desenvolvimento moral d’uma creança, o que é devido á herança do que é -devido á educação. E como o conseguiriamos, tanto mais que estas duas -influencias actuam ordinariamente na mesma direcção, porque, quasi -sempre _derivam das mesmas pessoas, dos paes? A educação domestica -não é senão a continuação da herança_; o que não foi transmittido -organicamente, sel-o-ha pela força dos exemplos e de uma maneira -igualmente inconsciente. Nunca se poderá calcular a que ponto chegaria -uma d’estas duas forças sem o soccorro da outra. É por isso que -Darwin, d’um lado, tem o direito de dizer que se se transportasse a -um mesmo paiz um certo numero de irlandezes e de escocezes, passado -algum tempo, seriam aquelles dez vezes mais numerosas que estes, mas -os escocezes, por causa de suas qualidades hereditarias, estariam á -frente do governo e das industrias.--E Fouillée póde tambem replicar: -«deitae nos berços de amas escocezas crianças irlandezas, sem que os -paes possam dar pela substituição: fazei-os educar como escocezes e -talvez vejais com a maior admiração identico resultado.» Mas, esta -segunda experiencia ainda não foi ensaiada e é até provavel que nunca -se cheguem a fazer experiencias taes. Ha sem duvida milhares de -crianças que não são educadas por seus paes, mas de ordinario são -desconhecidos estes ultimos. Emfim, é sempre preciso dar informações -dos phenomenos d’atavismo, que permanecem ainda na obscuridade e que -se não podem determinar; de sorte que tudo conspirava para que o -problema fique sem solução. Muitas vezes succede que os instinctos -paternos são abafados ou attenuados pelos exemplos maternos; outras -vezes dá-se o contrario. Mas isto nada prova em favor da efficacia -educativa, porque pode-se sustentar com igual apparencia de verdade -que o effeito é simplesmente devido á superioridade final de uma -das duas heranças. O que bem se póde affirmar é que a influencia -_hereditaria_ nos instinctos moraes está _demonstrada_, emquanto que -o da educação é _duvidosa_, mas _provavel_ uma vez que se tome no -sentido dos _exemplos_ e dos _habitos_; que a considerem como sempre -cada vez mais _fraca, á medida que a idade avança_ e que simplesmente -se lhe attribue uma acção _capaz de modificar_ o caracter, isto é -podendo, mas não extirpar os instinctos perversos, que ficariam sempre -latentes no organismo psychico. É o que explica como a perversidade, -talvez atavica, revelada por algumas crianças em tenra idade, jámais -pôde ser corrigida em toda a sua vida, apesar do procedimento mais -exemplar de seus paes e das pessoas que com ellas vivem em contacto e a -despeito dos cuidados mais assiduos e dos melhores ensinamentos. Pelo -contrario, parece incontestavel que a _influencia deleteria_ de uma _má -educação_ ou de um meio ambiente depravado, pôde abafar inteiramente -o senso moral transmittido e substituil-o pelos maus instinctos. De -sorte que a _criação artificial de um bom caracter seria sempre pouco -estavel, emquanto a de um mau caracter seria completa_. Isto explica-se -facilmente, segundo M. Ferri, quando pensamos que os germens maus -ou instinctos anti-sociaes, que correspondem á idade primitiva da -humanidade, estão mais profundamente enraizados no organismo psychico, -precisamente porque elles remontam a uma data mais affastada na raça. -São pois mais fortes do que aquelles que foram substituidos pela -evolução. Por isso, é que os instinctos selvagens «não sómente não -podem ser nunca inteiramente abafados; mas apenas o meio ambiente e as -circumstancias da vida, favorecem a sua expansão, brotam com violencia, -porque, dizia Carlyle, a civilisação não é mais que um involucro sob o -qual pode sempre arder em fogo infernal a natureza selvagem do homem.» - -Agora se a influencia da educação _pelo que respeita ao sentido -moral_, é duvidosa, _mesmo durante a infancia_, o que será ao sahir -d’este periodo? M. Sergi crê que o caracter é formado por camadas -sobrepostas, que podem cobrir e esconder inteiramente o caracter -congenital; o meio ambiente a educação experimental, os mesmos -ensinamentos poderiam produzir uma nova camada, não só durante a -infancia, mas durante toda a vida do homem. Esta hypothese não é -admissivel, a meu ver, salvo se supposermos que as camadas mais -recentes nunca alteram o typo já formado do caracter. Ninguem duvida -de que o organismo psychico não tenha o seu periodo de formação e -de desenvolvimento tanto como o organismo physico. O caracter, como -a physionomia, declara-se desde a mais tenra idade. Póde tornar-se -mais docil ou mais rispido, amaciar, embotar as unhas ou aguçal-as, -disfarçar-se na vida ordinaria; mas, como poderia elle perder o seu -typo? Ora um typo differente do caracter, e do homem desprovido dos -mais elementares sentimentos moraes, é um defeito organica que deriva -da herança, do atavismo ou d’um estado pathologico. Como poderiamos -suppor que influencias exteriores reparem este defeito congenital? -Seria uma criação _ex nihilo_, a producção _artificial do sentido -moral_ pertencente á _raça_, mas de que o _individuo_ se encontra -_excepcionalmente_ desprovido! Eis o que é dificil de conceber, o que -parece até impossivel, quando se não trata já de uma criança. Isto -não é negar o poder da educação. Quem póde duvidar dos seus prodigios -quando se trata de aperfeiçoar um caracter, de tornar mais delicados -os sentimentos já existentes, de trabalhar no estofo, n’uma palavra? -O que lhe não reconhecemos é o poder de tirar alguma cousa do nada. -É sobre este ponto que um illustre psychologo, o dr. Despine, se -contradiz, me parece a mim, da maneira mais espantosa. É certamente -a elle que nós devemos uma serie de observações sobre os criminosos -confirmando a sua anomalia; foi elle até que formulou uma theoria -muito approximada á nossa, sobre a ausencia do sentido moral, não -sómente entre os assassinos a sangue frio, mas tambem nos grandes -criminosos violentos. Foi ainda elle quem affirmou que «a educação -mais diffusa não pode crear faculdades, só póde cultivar as que -existem ao menos em germen. As faculdades intellectuaes por si sós não -procuram os conhecimentos instinctivos dados pelas faculdades moraes; -não teem esse poder,» que «é facil reconhecer nas faculdades moraes -a origem dos motivos d’acção que devem apresentar-se ao espirito do -homem nas diversas circumstancias em que este pode encontrar-se» e, -emfim que «todos os raciocinios, todos os actos intellectuaes, não -provarão já o sentimento do dever, não provarão as affeições, o medo, -a esperança o sentimento do bello.» E apesar d’isto é este mesmo -auctor quem propõe um _tratamento moral palliativo e curativo_ para os -criminosos, tratamento que elle resumiu da maneira seguinte: Impedir -toda a communicação entre os individuos moralmente imperfeitos.--Não -os deixar na solidão, porque elles não possuem na sua consciencia, -nenhum meio de emenda.--Conserval-os constantemente em contacto com -pessoas moraes, capazes de os vigiar, de estudar a sua natureza -instinctiva, de imprimir n’esta e dar aos seus pensamentos uma boa -direcção, inspirando-lhes ideias d’ordem, e fazendo nascer n’elles o -gosto e o habito do trabalho. O estado deveria pois tomar a seu cargo -estes cuidados assiduos, constantes pelos encarcerados; vigiar os seus -progressos, como se pratica n’um collegio de pequenos; tentar, por -meio de exemplos, pela experiencia, pela instrucção, suavisar-lhes -o caracter, tornal-os affectuosos, probos, cheios de caridade e de -zelo. A ideia da applicação de uma semelhante therapia moral a muitos -milhares de criminosos é, praticamente, uma utopia. Não fazia falta -collocar ao lado de cada prezo um anjo consolador, por assim dizer? -As pessoas chamadas para um semelhante emprego deveriam ser dotadas -das mais nobres qualidades, das mais raras no homem; a paciencia, a -vigilancia, a severidade e com um conhecimento profundo do coração -humano, deveriam ter instrucção e dedicação. Onde se encontrariam em -numero suficiente medicos das almas nas condições requeridas? Quaes -seriam as finanças que poderiam supportar semelhantes despezas? Mas, -suppondo por um pouco que as dificuldades praticas não levantariam -um obstaculo insuperavel a este systema, quaes seriam os effeitos do -seu emprego? O individuo, uma vez separado de toda a sociedade e não -tendo já sob os olhos as tentações continuas da vida ordinaria, não -experimentaria já em seu coração as impulsões criminosas. A causa -occasional essa faltar-lhe-hia, mas o germen criminal continuaria a -residir n’elle em estado latente, prompto a mostrar-se, assim que as -condições precedentes da sua existencia normal viessem a reproduzir-se. -A emenda pois seria apenas apparente, se é que não era fingida. -Poder-se-hia acaso fallar de uma pedagogia experimental? Mas, se -é certo que os instinctos moraes da humanidade foram criados por -milhões de experiencias utilitarias feitas por nossos antepassados -durante milhares de seculos, como se poderá imaginar a sua repetição -artificial n’um espaço de tempo tão curto como a vida d’um individuo, -cujo instincto não herdou, fructo d’estas experiencias das gerações -passadas? É evidente que nada podemos tentar fóra do raciocinio. Tem-se -tratado depois de fazer propostas mais praticas. Em primeiro logar -seria inutil applicar a cura moral de um modo _directo_, conforme a -utopia de Despine; mas effectuar-se-hia por si mesma, mediante um -bom regime penitenciario. O isolamento, o silencio, o trabalho, a -instrucção traziam a reconsideração e as boas resoluções, capazes de -regenerar o condemnado. Mas, quanto ao isolamento «para o pobre e para -o desgraçado, para o homem que tudo perdeu e cahiu,--diz eloquentemente -Mittelstad,--não é a separação da sociedade humana que lhe faz falta -é sim o amor e o contacto d’esta...» E quanto ao trabalho diz ainda o -mesmo auctor: «Não resta presentemente para nós humanistas da escola -correccionalista, senão o vago desesperador d’este dilemma, a ouvir-se -n’estas palavras: «_trabalho educativo dos presos_». Querem elles -o effeito benefico do trabalho sobre os costumes? Então é preciso -que elle se exerça sem coerção e que se substitua a detenção pela -liberdade ou antes querem elles a coerção ao trabalho? Então eil-os -de novo no campo da dor penal, e o fim da emenda, que é d’elle?![70] -Mas ao trabalho obrigatorio, respondem os correccionalistas, deve -alliar-se a educação do espirito e do coração com o auxilio de escolas, -onde os condemnados, ordinariamente grosseiros e ignorantes, podem -adquirir os conhecimentos do bem e da verdade, que lhes fazem falta. -Desgraçadamente, como nós o veremos em breve, a experiencia tem -demonstrado que a efficacia da escola é ordinariamente nulla sobre a -moral individual. Tem-se um delinquente adulto, privado de uma parte -do senso moral, o instincto da piedade; pretende-se inculcar-lhe este -instincto por meio do ensino, isto é repetindo-lhe que um dos deveres -do homem é ser compassivo, que a moral prohibe fazer mal aos nossos -semelhantes e assim outras cousas muito bonitas... O delinquente -porem só adquirirá, se o não tiver já, um certo criterio para saber -conduzir-se mais seguramente conforme os principios da moral. N’uma -palavra, adquirir ideias, não sentimentos. E depois? O homem é bom não -pela reflexão, mas por instincto que lhe falta. Como proceder para -supprir este defeito organico? Elle verá o bem, mas fará o mal, quando -o mal lhe convir e lhe causar prazer. - - _Vejo e approvo o que é melhor - Mas sigo o peior._[71] - -Por mais que se lhe repita que o interesse social tem muito mais -importancia que o interesse individual; que este, no fim de contas, -se confunde até com aquelle: que, como membros da sociedade, nós -devemos, em certos casos, sacrificar o nosso egoismo, para que assim -procedam comnosco. Ou antes tomando por base um principio religioso, -falle-se-lhe da felicidade de uma vida futura para o homem justo e de -condemnação eterna que espera os perversos. Na essencia, tudo se reduz -a um raciocinio: se tu praticares uma tal acção, advir-te-ha mal. _Logo -para evitar isto, não deverás praticar aquillo._ Mas, se o delinquente -prefere satisfazer antes a sua propria paixão, que entregar-se a -qualquer outro prazer, a qualquer outra esperança, o raciocinio então -já não tem valor para elle, o que poderia impedil-o de commetter -um novo crime, não é ver claramente o que os outros, e não elle, -consideram como um interesse predominante,--mas seria necessario que -elle _experimentasse a mesma repugnancia_ que os outros experimentam -pelo crime; porque o que explica toda a acção humana, é, em ultima -analyse, o caracter do individuo e sua maneira geral de sentir. - -Ora um raciocinio não poderá nunca criar um instincto. Este não póde -ser senão natural ou transmittido, ou antes adquirido inconscientemente -por um effeito do meio ambiente. Eis-nos pois novamente em face dos -dois agentes principaes a herança e o meio. A educação, uma vez que -ella não represente senão ensinamentos, é de um effeito nullo, ou -pouco menos, se o meio continúa o mesmo, isto é se o criminoso, depois -da expiação da sua pena ou culpa se tornar a achar no mesmo meio -que d’antes occupava. É conhecida a historia d’aquelles negrinhos -que depois de terem sido educados e instruidos na Europa, foram -reconduzidos aos seus respectivos paizes para _civilisarem_ os seus -compatriotas. Assim que elles se viram de novo entre estes, tudo -esqueceram, tanto a grammatica e as suas regras como as boas maneiras -que tinham aprendido; despojaram-se dos seus vestidos, retiraram-se -para as florestas e eil-os outra vez selvagens como seus paes, que -aliás nem tinham conhecido! Eis aqui precisamente a que chegaria o -systema correccionalista; julgue-se do resto pelos ensaios que já se -teem tentado: o systema cellular, o de Auburn, o systema Irlandez, etc. -O numero das reincidencias por toda a parte tem augmentado, á medida -que se teem suavisado as penas e abreviado a sua duração. Em França -na proporção de 21 p. c. em 1851, chegou a 44 p. c. em 1882 para os -_delictos_ e de 23 a 52 p. c. para os _crimes_. A reincidencia--dizia -o Ministro--continua a sua marcha invasora... O augmento do numero -dos malfeitores em estado de reincidencia legal é, em dez annos de 39 -p. c., perto de 2 quintas partes. A maré da reincidencia continua a -subir. Relatorio de 28 de março de 1886 onde se deplora o mesmo facto. -Na Belgica a reincidencia attingira a proporção de 56 p. c. em 1870 e -de 52 p. c. em 1873. Houvera diminuição desde 1874 até 1876, mas em -1879 chegou a proporções assustadoras (49 p. c.!) Na Italia, desde -1876 até 1885, a reincidencia dos condemnados pelos tribunaes subiu -de 10¹⁄₂ p. c. A mesma progressão em Hespanha. Ha tambem augmento, -ainda que menos pronunciado, na Austria e na Carinthia. Tudo isto -prova experimentalmente o absurdo da theoria correccionalista, das -suas applicações pelo menos. Nem podia deixar de ser assim, porque nos -seus principios ha contradicção flagrante. Com effeito, emquanto que -de um lado se declara que o fim da pena é a _correcção_ do culpado do -outro lado estabelece-se uma _medida fixa_ de pena para cada delicto, -isto é um certo numero de mezes ou de annos de detensão n’uma casa do -Estado; o que--como o disse o juiz Wilert--se parece com o tratamento -que um medico prescrevesse ao seu doente, com a indicação do dia em -que lhe deveria dar alta do hospital, quer elle estivesse curado ou -não. Tudo quanto se póde saber do naufragio d’esta theoria são as -instituições para a infancia abandonada e para os adolescentes que -começaram a mostrar más inclinações. Quanto aos adultos, apenas se -póde tentar fazel-os adquirir o _habito_ de um genero de vida que -elles _deveriam desejar poder continuar sempre_, porque será mais util -_para elles_ que qualquer outra actividade em o novo ambiente para -onde os transportarem. É assim que aquelles d’entre os criminosos que -não são inteiramente homens degenerados poderão deixar de ser nocivos -á sociedade. Isso só é realisavel pela deportação ou por colonias -agricolas que se estabeleçam nas regiões pouco habitadas da mãe-patria, -com a condição de que esta especie de exilio seja perpetuo, ou que ao -menos se não fixe d’antemão o tempo da sua duração, afim de que se -não libertem senão os raros individuos cuja regeneração pelo trabalho -possa realmente ser verificada. São casos excepcionaes. Mas nos casos -ordinarios é absurdo pensar que depois de uma ausencia mais ou menos -longa, um delinquente possa reapparecer no meio que é sua pequena -patria sem ahi passar pelas mesmas influencias que o tinham impellido -para o crime.» - -Em toda a critica feita por Garofalo á escola correccionalista ha -excellentes argumentos, muitos preconceitos systematicos e algumas -contradicções. Nos capitulos anteriores já nós combatemos muitas das -hypotheses d’esta escola. Os seus defeitos nascem por um lado d’uma -funesta e erronea orientação philosophica, por outro lado da exagerada -extensão generalisadora, dada aos factos sommaticos, generalisação que -de modo nenhum scientificamente elles abrangem. O principal argumento -é--que a educação é impotente para vencer os instinctos hereditarios, -quando em boa psychologia se póde demonstrar, que a acção educativa, -quando efficaz, aniquilla as más qualidades herdadas, substituindo-as -pelos salutares beneficios adquiridos pela civilisação. - -A má educação na familia é um influxo mais corruptor e mais profundo do -que o meio social. O instincto de imitação actua como importantissimo -elemento para a formação do caracter. - -A educação segundo a anthropologia franceza modifica o encephalo, o -seu influxo faz augmentar ou diminuir a capacidade da caixa craneana, -apressar ou retardar o encerramento das soturas e a sua ossificação. É -innegavel que o cerebro é a condição do pensamento e sendo modificado -por factos exteriores ou internos, vem a ser ainda que indirectamente, -tambem modificadas as suas faculdades. - -Paulo Broca affirma que segundo o costume de Taiti os indigenas crêem -poder fabricar, á vontade, homens de conselho ou homens de guerra -achatando nas creanças a parte posterior da cabeça no primeiro caso e o -frontal no segundo.[72] - -Não póde nenhum penologo deixar de prestar justiça aos meritos e -de reconhecer os esforços da escola italiana, comtudo é impossivel -acceitar a extraordinaria affirmação de que todos os malfeitores são o -reapparecimento do homem primitivo e que o meio de verificar este typo -são especialmente os caracteres externos. - -A theoria biologica do transformismo está invadindo d’um modo -anti-scientifico os principios explicativos dos phenomenos -psychologicos e sociaes, é preciso na sua applicação um pouco mais de -logica. - -«Os nossos anthropologos consideram como herança da antiga barbarie a -predilecção que a mulher tem pelos adornos, que Isaias e Plauto, antes -dos nossos prégadores e dos nossos comicos, reprehenderam como um senão -e como um vicio. - -A arte dos adornos, na opinião d’elles, é uma das primeiras que o -homem conheceu. Precedeu o vestuario. O selvagem de pelle aspera e -cabelluda, de costumes bestiaes, não sentia nenhuma necessidade de -se vestir. Mas o orgulho, o cuidado de se defender, o desejo sempre -crescente de se differençar e de metter medo, fizeram com que elle -pintasse e ornasse o corpo conforme o seu ideal rudimentar de belleza. -O adorno é mais que tudo a insignia do guerreiro, que quer fazer maior -e exagerar o seu typo. «Na origem das sociedades, é o homem que traz -os braceletes, manilhas, brincos, collares, pinjentes, alfinetes para -o cabello, plumas de cores vivas; é elle que se pinta, que emprega a -tatuagem, para chamar a vista, para fascinar o inimigo, affirmar a -sua cathegoria entre os seus eguaes, e excedel-os se póde; um penacho -é uma coroa.[73]» Mais tarde com o progresso relativo das artes e -da abastança, o nivel da mulher, destinado a ficar sempre inferior -ao homem, alevantou-se um nada, o senhor, que primeiramente fiava, -tecia e ennastrava permittiu-lhe que se occupasse n’esses humildes -trabalhos, não lhe desagradou vel-a adornar-se para elle, o luxo em -torno do senhor era com effeito apenas a amplificação da sua propria -magnificencia. Como elle achava de continuo meios novos de assignalar -a sua superioridade, deixou para a mulher os adornos que já não eram o -seu prestigio unico, o progresso da civilisação, é realisado sobretudo -pelo homem e para o homem, e o apartamento faz-se cada vez mais -sensivel entre os dois sexos. - -É por isso que a mulher conforme dizem os anthropologos representa o -typo inferior da especie, adorna-se e enfeita-se ainda com melhor gosto -sem duvida, mas com a mesma paixão que o selvagem e o homem primitivo. -Do selvagem ao criminoso innato a distancia é pequena, e a assimilação -d’um ao outro reflectiu-se na mulher. Se o criminoso representa nas -nossas sociedades civilisadas, a selvageria primitiva, encontra-se -entre elle e a mulher semelhanças notaveis. «Ellas são mais prognathas -que os homens, tem o craneo menos volumoso (Topinard) e o cerebro menos -pesado, mesmo com estatura egual e as fórmas cerebraes tem o que quer -que seja infantil, e embryonario; são mais que os homens canhotas ou -ambisdextras; tem, se é licito dizer-lho a ellas, o pé mais chato e -menos arqueado; emfim, ellas são menos musculosas e tão completamente -imberbes como abundantes de cabêllo. São estes outros tantos traços -communs com os nossos malfeitores. Mas isto ainda não é tudo. A mesma -imprevidencia, a mesma vaidade, dois caracteres que Ferri assignala -com razão como dominantes no criminoso».[74] Paro aqui n’esta ultima -parecença. Não poderia admittir em nenhum ponto de vista a assimilação -do typo feminino ao typo selvagem ou criminoso. Com os mesmos titulos -que o homem, mas com um feitio proprio, a mulher é um ente civilisado. -Cada um tem aproveitado o progresso e collaborado com o seu quinhão, -conforme o seu destino social. - -O papel da mulher é sobretudo «agradar ao homem» diz Rousseau; «e a -belleza da mulher é o signal da sua missão,» diz Proudhon; Renan poude -portanto dizer com razão que adornando, aperfeiçoando, idealisando a -sua belleza, «ella pratica uma arte, arte especial, em certo sentido a -mais encantadora das artes.» - -Tenham paciencia os anthropologos extremos, a predilecção pelos -adornos, restringida pelo pudor e o bom senso, assignala antes uma -perfeição do typo humano na mulher. Mas nós precisamos defender tambem -a creança contra as pretensões abusivas de certos philosophos. Se a -mulher, reproduz em certas proporções o typo selvagem e primitivo, -a creança reproduz-lhe as differentes phases. O desenvolvimento -individual não é senão uma fórma abreviada do desenvolvimento da -especie desde o seio da mãe e durante muitos annos, a creança repete -a serie da evolução prehistorica. Aos seis mezes, ao anno, aos dois -annos, mesmo aos tres, o que domina n’elle é o selvagem. Conheço -transformista a quem não custaria mostrar-nos no «Bébé» primeiro o -selvagem da pedra lascada, depois o da pedra polida, e emfim o da edade -de bronze, tudo isto muito exactamente. - -Admittamos a theoria por hypothese e verifiquemos. - -O encommodo que o contacto e a pressão da roupa, produz no recemnascido -lembrará, estou d’accôrdo, a feliz e livre nudez do velho antepassado. -O curioso é que este mimo primordial persiste entre muitas creanças, -aliás, muito bem dotadas, e que a insensibilidade da pelle é um -dos caracteres attribuidos ao typo criminoso «ou selvagem». Não me -encarrego de explicar a contradicção. Mas lá vae outra: desde o decimo -segundo ao decimo quinto mez, a predilecção nascente pelo adorno -coexiste com o prazer de estar nuazinha. Deveriamos vêr n’isto duas -phases successivas de selvageria que se fundiam? - -Nós chegamos, despresando as transições á edade de tres ou quatro annos -e podemos suppôr-nos no limiar da pedra polida. Ora n’esta épocha, e -sobretudo na epocha do bronze, o adorno era em geral o privilegio do -sexo forte. Deveriamos pois, achar a predilecção mais precoce e mais -viva nos rapazes que nas meninas; sem o que a doutrina da repetição -historica nos parece estar em perigo. A não ser que se supponha tambem -(uma hypothese a mais ou a menos, não é coisa de grande monta) n’essas -edades distantes a paixão pela argola de metal e por um trapo não fosse -um desejo bastante violento para se assemelhar ao sentimento da posse. -Mas vamos aos factos e estudemos sem idéa antecipada as creanças dos -dois sexos.[75]» - -Póde affirmar-se[76] que as bellas artes indirectamente concorreram -para o desenvolvimento moral da humanidade. As faculdades estheticas -são até certo ponto intermediarias entre as faculdades puramente moraes -e as faculdades puramente intellectuaes. Ha homens para quem não é -possivel despertar uma certa actividade especulativa sem submetter -a sua intelligencia a um regimen esthetico previo. Este influxo é -salutar e reage sobre o espirito e sobre o coração, podendo constituir -espontaneamente um dos processos mais poderosos da pedagogia. É -incontestavel que o convivio com as bellezas da natureza ou da arte -purifica a sensibilidade, eleva o espirito, engrandece o horisonte -onde a alma se move, torna o sentimento da dignidade mais vivo e mais -delicado, expungindo do coração o que é vil e miseravel, senão para -sempre ao menos emquanto dura a vibração do enthusiasmo. Estes são os -fins indirectos, mas o fim essencial da arte é interpretar idealmente -as bellezas da natureza e com ellas deleitar-nos. - -É uma das glorias mais formosas dos espiritos d’escol na civilisação -moderna, dar um logar cada vez mais amplo á sensibilidade humana -no banquete dos prazeres intellectuaes. H. Spencer, levado por um -preconceito nacional que caracterisa exclusivamente o espirito -inglez, antepoz d’um modo particular a utilidade ao sentimento -esthetico, a sciencia á arte. Propugna este paradoxo com a finura do -seu immenso talento,--representando uma inconsolavel mãe que perde o -seu filho, cuja saude comprometteu pela ignorancia da hygiene, e a -quem não consolará uma leitura da Divina Comedia de Dante no texto -original.--Podem saber-se umas noções de hygiene e conhecer o italiano, -sem que estas duas ordens de idéas se excluam, pelo contrario podem -harmonisar-se e completar-se. Seria revoltantemente injusto privar o -espirito da mulher de emoções tão delicadas e tão latificantes como o -attractivo da poesia e os encantos da arte. - -As obras litterarias, d’um requinte subtil, são unicamente para os -espiritos excepcionalmente cultos e delicados, mas as universaes -bellezas da arte grega e latina, e muitas ha n’este genero, estão ao -alcance de todas as intelligencias. Ao ler, por exemplo, o dialogo do -divino Platão, o _Criton_, onde se narra pormenorisadamente a morte -sublime de Socrates, ou a descripção que Herodoto faz da passagem -do desfiladeiro das Termopylas, ou da batalha de Marathona, ninguem -deixará de sentir uma emoção benefica e consoladora, pela belleza da -narrativa e pela grandiosidade heroica dos factos. A circumstancia -de obrigar o nosso espirito a pensar e a fallar da vida do mundo -hellenico-romano não só nos incute aquelle delicado sabor esthetico, -mas imprime ao nosso caracter aquella energia moral intemerata e -athletica, que parecia feita do bronze da lança de Minerva. Meditamos -n’aquella unidade e harmonia, que tanto distingue a civilisação grega -e de que tanto carece a sociedade moderna. O nosso espirito chega a -sentir saudades d’esse passado, vendo como essa unidade e essa harmonia -foram impostas pelo sentimento artistico, cujo esplendor foi a funcção -historica d’esse glorioso povo. Nenhuma nação do mundo, em tão limitado -espaço e em tão pouco tempo, fez tanto e tão bem. O que nos resta da -formosa Hellade, passados mais de dois mil annos, ainda nos maravilha -e nos encanta, as deliciosas reliquias da sua alma são um lenitivo aos -nossos desgostos, como o capitoso _nepenthes_ de que falla Homero. - -Não é meu intuito fazer n’esta occasião um curso de sciencia da -educação; porém não será fóra de proposito mostrar de modo rapido -como a cultura esthetica do espirito humano pela litteratura e pelas -bellas artes póde contribuir para o seu aperfeiçoamento moral. Querendo -esclarecer esta questão basta analysar as relações que unem o bem e -o bello, visto que as lettras e as bellas artes são as expressões do -bello, e que a idéa do bem serve de guia a tudo o que póde contribuir -para o nosso aperfeiçoamento. Ha quem sustente a these opposta, J. J. -Rousseau trata com desamor as sciencias e as artes porque vê n’ellas um -instrumento não de progresso moral mas de corrupção. O genio grego e -romano era d’uma opinião opposta, admittindo quasi a identidade do bem -e do bello, e confundindo muitas vezes as duas idéas. O bello e o bem -dimanam d’uma unica idéa, a idéa de ordem que é tão precisa á esthetica -como á moral. Evidentemente o bello não poderia existir na arte sem -a harmonia, a regularidade; em pintura as leis da perspectiva, da -proporção, impõem-se ao artista; a musica tem como condição, a medida e -o rhythmo; o drama não poderá libertar-se das tres unidades no tempo, -no espaço e na acção: ora é obvio que é sempre a idéa de ordem que se -manifesta n’estas concepções sob aspectos diversos. Succede o mesmo em -moral, a ordem é uma condição da virtude. O homem honesto carece da -razão, do senso commum e da medida que regula todos os seus actos. - -Ha uma relação intima entre o bem e o bello; porque teem um principio -commum, poder-se-hia mesmo, dentro de certos limites, substituir o -gosto esthetico á consciencia moral. A harmonia reinaria em todos os -nossos actos tendo o bello invariavelmente, na sua significação mais -grandiosa, como norma do procedimento. O bello repelle a grosseria -e a bruteza, é sempre fiel á honra, á pollidez e á virtude. É além -d’isso desinteressado, não serve senão para deleitar a alma; perante um -objecto bello não somos egoistas, satisfazemo-nos em contemplal-o, não -desejamos appropriar-nos d’elle para uso exclusivo. - -O gozo esthetico affasta as paixões ruins e depura a alma; com effeito -depois de um homem ter passado horas na comtemplação ou leitura das -grandes obras onde ha opulencia de belleza, não poderá entregar-se ás -brutalidades da embriaguez e das paixões degradantes. - -Ha distracção mais fina e mais delicada, conforto moral mais consolador -do que a leitura do _Prometheu_ de Eschylo, da _Antigone_ de Sophocles, -ou da _Historia da guerra do Peleponeso_ de Thucydides? - -As bellas lettras não corrompem o homem, o que o corrompe é a riqueza, -e esta coincide quasi sempre com as epochas de desenvolvimento -artistico e litterario: d’ahi vem a confusão de se attribuir, como -na _renascença_, a decadencia moral ás artes, quando ella provém do -excesso de riqueza. Com effeito o bello tem fórmas que são estranhas -ao bem; Cesar, ás vezes, fez uso immoral do seu genio, mas a nossa -admiração e o nosso criterio distingue bem dos seus vicios o seu -extraordinario heroismo. - -Ha homens d’uma grande inferioridade moral que manifestam grande -admiração pelas artes. Ludovico de More, duque de Milão, que passou -politica e estheticamente por um grande principe, e que protegeu -copiosamente as artes, chegando a fundar uma academia na sua côrte, -retribuindo largamente os grandes artistas Bramante e Leonardo de Vinci -tem uma vida de tyranno cheia de perversidades e de crimes. Outro -exemplo assaz saliente é Nero. Modernamente póde citar-se Napoleão I -que é um todo extraordinario e de quem de Candolle, fazendo-lhe um -retrato moral execravel diz que tinha um fraco sentimento das artes -plasticas e nenhuma disposição para a musica, sem embargo de ter -ostentado que as amou. Sem duvida todos os tyrannos, que protegem -as artes é mais pela vaidade propria e como chamariz da admiração -alheia, do que pelo sentimento intimo da contemplação do bello. -Conseguintemente estes não podem servir de norma para apreciar a acção -moral do sentimento artistico. - -«Na transmissão educativa transformada ao impulso da civilisação -moderna ha, como consequencia de grandes causas de erro, -alterações pathologicas individuaes que se podem grupar em duas -classes--_alterações anatomicas e alterações funccionaes_.[77] - -Este segundo grupo ainda convem dividil-o em _perturbações da vida -animal e perturbações da mentalidade_. - -Não é que estas differentes anomalias se destaquem realmente e possam -apparecer exclusivamente sós n’um dado individuo, mas pela razão de -todas as classificações--a commodidade e o methodo de estudo. - -O typo normal especifico do homem actual soffre, em virtude da -adaptação escolar um desvio bastante notavel e importante, no ponto -de vista anthropologico que comprehende o individuo, a especie e as -sociedades. - -A alteração d’este typo é o resultado das deformações a que o individuo -é sujeito durante a actividade escolar. Estas deformações são o -producto das posições viciosas que tomam os alumnos ou que lhes fazem -tomar no exercicio quotidiano de desenvolvimento intellectual e de -acquisição scientifica. - -Este exercicio prolongado por mezes e annos, nas más condições -mesologicas que ordinariamente se encontram na escola, e sem a devida -compensação do exercicio physico, bem pensado e dirigido, constitue -um agente poderoso de transformação individual que a hereditariedade -reforça e fixa, já pela tendencia transmittida, já pela transmissão de -mudança que o habito operou no individuo. - -N’estas considerações abrangemos com a maxima generalisação todas as -modificações de que é susceptivel o individuo humano convencionalmente -adaptado ao meio escolar. - -Especialisando convenientemente, encontramos no primeiro grupo definido -os desvios da columna vertebral. - -D’esta classe só pretendemos estudar, conforme o nosso ponto de vista -particular, os desvios _não symptomathicos_ de qualquer affecção. - -Excluidos estes apresentam-se-nos na escola dois generos de incurvações -rachidianas:--_incurvações antero-posteriores e incurvações -lateraes_.--Pertencem ao primeiro genero a _cyphose_ e a _lordose_ e -ao segundo a _scoliose_ como especie unica, mas com variedades mais ou -menos accentuadas. - -A cyphose dá uma incurvação exagerada á espinha dorsal e é -ordinariamente limitada á região dorsal, pelo que póde considerar-se -como uma ampliação da curvatura d’essa região. É produzida pelas -attitudes demoradas, com o dorso curvado, lendo, escrevendo ou -costurando, e devida, em parte, á necessidade creada pela myopia -de inclinar muito o tronco para approximar os olhos do trabalho em -execução. - -Esta especie de desvio encontra-se mais frequentemente do que parece e -nem sempre se torna notavel. Mas observa-se vulgarmente nas modernas -gerações que passam a sua adolescencia na escola um arqueamento -pronunciado no dorso e a saliencia posterior anormal dos hombros, -projectando para diante a cabeça e o pescoço. É o que se encontra mais -frizantemente na velhice mais adiantada, principalmente nos individuos -cuja profissão ou habito obriga á incurvação prolongada do tronco, por -exemplo, escrivães, costureiras, cavadores. Na outra especie d’este -genero--a lordose--a convexidade da curvatura é anterior e dá-se na -região lombar e quando muito na cervical. É uma incurvação que tem mais -geralmente logar nas mulheres e que, como deformação escolar tem a sua -etiologia na attitude forçada a que são obrigadas as alumnas para se -manterem direitos em assentos sem espaldar. - -Por muito distantes que pareçam estar estas ideias, ha entre ellas uma -relação mais proxima, infelizmente do que entre escola e educação; -porque tal como educação e escola se consideram hoje, o que se adquire -mais facilmente do que uma educação bem dirigida e equilibrada é um -certo grau de morbidez caracteristico dos individuos que vivem em -logares restrictos e que são adaptados a um modo de vida artificial e -anomalo. - -A escola, como equivalente de estufa ou de viveiro, dá productos -de degenerescencia que são o resultado mais contraproducente da -civilisação moderna, d’este pretendido progresso humano que nos leva -por vezes a um pessimismo doloroso e desolador em vez de nos conduzir a -um aperfeiçoamento a que já teria decerto chegado a nossa especie, se -varios elementos perturbadores não influissem na sua evolução. - -É que realmente tem-se desenvolvido mais a intelligencia do que a -energia physica e alcançou-se com este desequilibrio uma tal devassidão -dos elementos psychicos na educação que se obtem frequentes resultados -negativos, agora, isto é, na epoca em que os programmas attingiram o -maximo desenvolvimento. - -Se collocarmos em parallelo esta exhuberancia dos programmas e do -ensino intellectual com a marcha evolutiva da educação physica e -moral e com a nosographia, particularmente na applicação á escola, -tornar-se-ha bem avultante, apesar de todos os aperfeiçoamentos -apparentes, o amesquinhamento das raças, mesmo nas manifestações -intellectuaes, que tanto se obstinam as boas sociedades em fazer -realçar, embora á custa da salubridade individuar e collectiva, -produzindo a final um definhamento cujos signaes se pronunciam cada -vez mais nas descendentes das velhas raças europeas civilisadas, mas -decadentes. - -Esta conclusão é tanto mais legitima quanto maior numero de exemplos a -Historia apresenta de genios, de sabios, de celebridades de diversos -typos, que representam em grande parte a negação da escola, e foram -comtudo grandes, livres na sua expansibilidade genial, e vieram a -occupar as culminancias sociaes, como as aguias e os açores nas -eminencias dos rochedos olhando o mundo com o desprezo que lhe permitte -a potencia das suas azas e das suas garras. - -Justamente, muitos genios, precisaram, para mais largamente exercitarem -o seu vôo, forçar os gradeamentos tristonhos das gaiolas de educação -a que em vão pretenderam sujeital-os e para alguns, como Darwin, por -exemplo, só depois de passado o tempo escolar poderam manifestar as -suas aptidões, porque na escola eram tidos como menos aptos. - -O que é tristemente certo e independente de qualquer pessimismo é -que, apesar da extraordinaria ampliação dos programmas de ensino, -os sabios que ainda hoje ha e os que ainda são robustos pertencem á -geração anterior, contemporaneos de Chevreul, e anteriores ainda ao -movimento escolar moderno, emquanto que da geração actual, sahida da -estufa educativa não se distinguem, proporcionalmente, na quantidade -e na qualidade, os genios, os sabios, por estudos, por descobertas -que possam tornal-as equivalentes a Pasteur, a Trousseau, a Broca, a -Lombroso, a V. Hugo, a Tourgueneff, a Wagner, a Delacroix, e a tantos -outros que, por assim dizer, monopolisaram a originalidade, o poder -descobridor e inventivo que tem apenas um echo nas sociedades hodiernas. - -O ensino collectivo, escolar, restricto, apenas mais complicado, -mas não muito mais vasto do que nas epochas passadas, fornece á -vida pratica productos de fabrica, industriaes levando a respectiva -marca--os stigmas da degenerescencia. São resultados de tentativas -frustres, talvez typos de transição, mas a sociedade não se acha -realmente mais adiantada, menos viciosa, antes pelo contrario. E se, -nas revelações exteriores da actividade commum, ainda se admira alguma -obra grandiosa como a celebração do centenario da Republica franceza, -essa maravilha é feita de passadas glorias, é obra de adultos e de -velhos experimentados e sabedores, é resultante de exforços conduzidos -scientificamente de outras eras, o aproveitamento de descobertas -anteriores; o que tem de novo é a fórma e a applicação. Tal é, por -exemplo, o phonographo Tainter--Edison. É preciso lembrar que a torre -Eiffel não se ensina a construir na escola. - -Seria de certo exigir muito, mas por isso bastam á escola principios, -noções, idéas, e a escola de hoje, moldada nas reformas recentes, tem -pouco d’esse indispensavel material, por muito que lá se trabalhe; -porque ha sensivelmente falta de ordem, de equilibrio, de methodo, -e d’este trabalho desordenado sae, como no poema surprehendente de -V. Hugo--_Puissance egale bonté_--um _gafanhoto brilhante_ mas... -destruidor de culturas. Será isto uma consequencia da degeneração das -raças que habitam o velho continente ou simplesmente o resultado da -educação como até aqui tem sido dirigida? É o que tratamos de estudar. - -Em primeiro logar as nações arrastadas por uma corrente de -industrialismo teem hoje o triplo fim--industria, commercio e luxo. -Desde muito tempo que a actividade civilisada se reduz totalmente -á industria, tendencia que mais se accentuou desde o começo d’este -seculo. O principio é a fabrica, o meio é o commercio e o fim é o luxo. - -De modo que cada vez é mais pequena a esphera da actividade -desinteressada, scientifica ou artistica. Hoje tudo quanto trabalha não -tem singelamente como fim a existencia e o bem estar normal, primitivo; -ha em vista o luxo e a gloria, que é tambem um luxo. - -Na consecução d’este fim multiplo a humanidade desviada da sua linha -natural de aperfeiçoamento entra no dominio da pathologia. Esta -explica-nos como, a despeito do progresso de todas as epochas, dos -seculos passados e do presente, as raças que se chamam civilisadas vão -cahindo n’uma degeneração tristissima, porque, como dizia Theophilo -Gautier, a ruina humana é a mais triste das ruinas. - -As sociedades tem ainda os grandes contagios, a tuberculose, o -arthritismo, o crime, o alcoolismo e variadas fórmas de nevrose que -constituem um grupo nosologico á parte e o assumpto de um vasto estudo, -porque o industrialismo usurpa em seu favor os mais generosos exforços -e arrasta até os artistas e os homens de sciencia, e os hygienistas -mal podem vibrar a sua palavra auctorisada no meio do ruidoso labor -dos tantos industriaes e mal conseguem vencer a astucia de tantos -_industriosos_. - -Obedecendo á mesma lei, a escola é tambem uma fabrica onde se trabalha -em _alta pressão_ conforme a phrase do dr. J. Rochard, produzindo o -que este illustre hygienista francez chama _petits savants à lunettes, -myopes, chétifs bourrés de chiffres et de formules_... - -Esta adulteração não póde passar sem reparo perante aquelles que prezam -sinceramente a sciencia e as legitimas manifestações intellectuaes, -visto que a cultura, como ella é presentemente feita, dá productos -analogos aos que uma horticultura banal obtem pela transformação de -plantas naturalmente simples e bellas em monstros botanicos para -admiração do vulgo e vaidade do jardineiro. - -Com os primeiros exercicios escolares começam as deformações anatomicas -e consequentemente as alterações funccionaes que tomam facilmente um -feitio peculiar de modo que a escola, fóra dos preceitos, muitas vezes -da hygiene mais elementar, entra largamente na secção etiologica da -pathologia geral, onde, com sentimento, não vemos a menor adhesão -especifica a este grupo de causas, a não ser muito largamente. - -Este esquecimento admira-nos tanto mais quanto achamos o parentesco -pathogenico de muitas lesões e desvios anatomico-physiologicos na -nosologia escolar. - -É preciso não esquecer um só momento que é dos primeiros annos que -depende o resto da existencia de cada homem e que abandonado ou mal -dirigido n’esses primordios da vida fica vitaliciamente entregue á sua -hereditariedade e ás commoções do meio social e climaterico. - -Fallámos da hereditariedade e parece-nos dever declarar aqui que este -importantissimo factor não fica por nós posto de parte no estudo da -nosographia escolar a que nos dedicamos. Mas se effectivamente a -creança vem para a escola na posse de uma herança morbida qualquer, -a escola não modifica vantajosamente, nem no physico nem no moral, e -muitas vezes, nem no intellecto, o individuo que lhe foi confiado. - -Pelo contrario, as mais das vezes, a escolariedade imprime á creança ou -ao adolescente os caracteres morbidos que mais se accentuam de geração -em geração, pela hereditariedade. - -N’um precedente estudo indicamos as alterações anatomicas de que o -individuo humano é passivel na escola[78] e dividimos as alterações -funccionaes em dois grupos:--perturbações da vida animal e perturbações -mentaes. - -Procuraremos por ora occupar-nos um pouco d’esta primeira sub-divisão. - -O que se nos impõe logo como defeito escolar é a insanidade commum a -todas as acumulações humanas, como de quaesquer reuniões de animaes em -espaço limitado e sempre demasiadamente acanhado. - -Todas as vezes que ha agglomeração de individuos que precisam de ar -para viver, e teem de ficar encerrados n’um recinto mal ventilado, -ou de, modo nenhum ventilado, é claro que vão cerceiando uns aos -outros o ar de que cada um carece. Ao cabo de uma hora ou ainda menos, -acha-se a atmosphera sensivelmente modificada, diminuida no seu -oxygenio e augmentada no gaz carbonico, alem de outros productos de -desassimilação que se eliminam pelos pulmões e pela pelle. Herscher -demonstrou pelo calculo que n’uma aula tendo 8 metros cubicos por -alumno a viciação de ²⁄₁₀₀₀ de anhydrido carbonatico é attingida em -uma hora, se não se estabelece a ventilação. Attendendo a que a maior -parte dos estabelecimentos escolares não fornecem, mesmo dada alguma -ventilação, aquelles 8 metros cubicos a cada alumno, principalmente nos -dormitorios, póde concluir-se, embora grosseiramente, que a viciação -da atmosphera n’estes institutos é mais consideravel do que a media -fornecida pelo calculo de Herscher. - -O anhydrido carbonico vae-se diluindo no ar e, logo que exceda a -proporção de 3 a 4 por 1000, este torna-se irrespiravel. Ora a -ventilação tem sido um problema de solução delicada e ordinariamente -não se faz bem, porque quasi nunca as edificações escolares satisfazem -a esta exigencia, entre nós e mesmo n’outros paizes, se prestarmos fé -ás queixas de hygienistas e visitadores de escolas do estrangeiro. - -O collegial soffre, pois, durante grande parte do dia e portanto -durante grande parte da sua vida, a influencia do ar deleterio, e -patenteia-se ao observador mais especialmente instruido a anemia -caracteristica dos individuos que persistem muito tempo em logares mal -arejados. - -Combinando a falta do ar com a falta de movimentos necessarios ao -regular desenvolvimento do organismo tem-se uma grande diminuição da -vitalidade geral, uma diminuição da capacidade total respiratoria, e -portanto uma debilidade que predispõe para qualquer estado morbido -determinado pela incidencia das causas pathogenicas. De facto a vida -escolar predispõe para a tysica, já pela falta de ar livre, já pelas -attitudes contrafeitas que originam deformações da espinha dorsal e -do thorax e dão perturbações da respiração, o que, conjunctamente com -a mobilidade demasiado restricta que traz a atrophia dos orgãos, dá a -apparencia estiolada e o fundo morbido correspondente. - -Além d’isto, ha uma actividade cerebral forçada, exaggerada que rouba -aos outros orgãos o fluido nutritivo, fatiga os centros nervosos e -contribue para o desequilibrio funccional que de ordinario se observa -nos escolares. - -A este respeito diz o professor Peter: «Não ha só trabalho excessivo -e reparação insufficiente, ha ruminação do ar nas salas de estudo mal -ventiladas durante a estação quente e de modo algum na estação fria, -ruminação do ar nos dormitorios menos arejados do que as salas de -estudo, ha durante a maior parte do dia a clausura longe do sol, isto -é o estiolamento, a immobilisação nos bancos, isto é, os musculos em -repouso e o cerebro em trabalho forçado. E tal que tinha nascido para -bom cultivador saudavel, torna-se um tuberculoso forte em themas.» - -Quando tudo isto fosse apenas previsão do nosso espirito ou exhalação -acrimoniosa de um pessimismo da moda, não seriam confirmadas estas -observações pelos resultados da estatistica. - -Assim, conforme a estatistica de Finkelnburg, em Berlim por 100 -creanças que morrem tysicas ha 4,81 de 5 a 10 annos de idade; 12,96 -de 10 a 15 annos e 31,88 de 15 a 20 annos. Vê-se que esta mortalidade -augmenta com o numero de annos e como o ensino é mais desenvolvido e -complicado quanto maior é a idade escolar, póde concluir-se, tendo -em vista a situação da creança e do adolescente na escola, que esta -favorece a evolução da terrivel doença. - -Quando menos encontram-se nos escolares, e com certa frequencia -as congestões abdominaes, produzidas pela estação sentada durante -muito tempo e as congestões de cabeça, que se traduzem ás vezes por -expistaxis e ordinariamente por cephalalgias repetidas e cujo numero de -casos varia de 20 a 40 por 100 conforme os estabelecimentos (Arnould). -Michel Levy conta 104 vezes cephalalgia nos alumnos da Escola -Polytechnica, sobre 360 casos de doença. - -Estes accidentes são attribuidos ao mau funccionamento pulmonar nas -posições contrafeitas que os alumnos tomam nas salas de estudo. - -Serão muitas vezes attribuiveis á fadiga cerebral, principalmente -quando se trata de preparar os exames. - -O estudo nocturno, alem da demorada applicação da vista de dia, é -causa não só da myopia tão vulgar na classe escolar, mas de varias -doenças oculares determinadas pelo excesso de funcção, estando ou -não predisposto o alumno para taes desvios pathologicos que são -tambem muitos frequentes nos escolares. Ordinariamente acontece que -o trabalho de leitura e escripta muito prolongado e feito em más -condições com a cabeça inclinada para a frente, circulação viciosa e -luz insuficiente, produz uma tensão vascular das membranas do olho, -estase sanguinea e muitas vezes inflamações, atrophia da choroidea que -durante a acomodação forçada comprime as arterias, diminuindo as trocas -nutritivas pelo obstaculo posto á circulação. - -É incontestavel a perturbação da physiologia da retina pelo cançaço -do orgão, pela illuminação intensa, que deslumbra em certas salas -d’estudo e que é em geral defeituosamente conduzida, sendo notavel -que, precisamente porque o orgão visual por muito melindroso carece de -numerosos e delicados cuidados, faltam quasi ou absoluto nas escolas. - -Iriamos longe se descrevessemos minuciosamente com as suas relações -de causalidade todas as modificações pathologicas que a bem dizer -se fabricam na escola, por isso limitamo-nos a uma exposição breve, -abrangendo nos seus contornos geraes a nosologia escolar. - -Pondo de parte conforme nosso plano, as alterações physico-mechanicas -cujas principaes tracejamos n’outro estudo, podem reduzir-se todas as -perturbações mencionadas a erros de circulação e nutrição. - -Viciadas simultaneamente estas actividades organicas, a constituição do -sangue altera se consequentemente e amplia o movimento de dessimilação, -a depauperação do organismo determinada pela adaptação a condições -anormaes de existencia. - -D’ahi resulta para o systema dominante de toda a organisação -superior--para o systema nervoso--a incorrecção que nos individuos -affectos da escolaridade, toma uma fórma particular, caracterisada, em -geral por uma demasiada susceptibilidade dos orgãos, dores nevralgicas -visceraes, nauseas lypothimias, palpitações e, finalmente, por -modificações da personalidade, e da mentalidade que serão objecto de -outro estudo.» - - -NOTAS DE RODAPÉ: - -[69] Para que a educação tenha toda a sua influencia, é preciso que -nenhum vicio de conformação, nenhum estado pathologico, nenhuma -condição hereditaria transmittida por uma longa série de gerações -tenham tornado certos centros (nervosos) absolutamente inexcitaveis. -Relatorio de M. Sciamanna nos actos do 1.ᵒ congresso d’anthropologia -criminal p. 201--Roma, 1887. - -[70] A este respeito diz Spencer (_Morale des Prisons_) «É um signal -de vistas limitadas obrigar o condemnado ao trabalho; assim que elle -se vir livre, voltará a ser o que era d’antes. A impulsão deve ser -interior, para que possa continuar a sentil-a fóra da prisão.» E lord -Stanley em um discurso parlamentar, exclama: _A regeneração do homem -nunca póde ser um processo mecanico_. - -[71] Video meliora proboque, deteriora sequor--_Ovidio_. - -[72] _Les irresponsables devant la justice_, pag. 212, A. Riant. - -[73] Dr. Saffray, _Histoire de l’homme_, pag. 134. - -[74] E. Ferri, citado por E. Tarde no seu artigo sobre o typo criminal. -_Rev. philos._, junho, 1885. - -[75] _A arte a poesia na creança_, por Bernardo Perez. - -[76] Trecho já publicado d’uma lição, feita no Curso Superior de -Lettras, quando tivemos a honra de reger a cadeira de Litteraturas -classicas (1887). - -[77] _Revista de Educação e Ensino_, n.ᵒ6 e 8, IV anno, por J. B. -Ferreira. - -[78] _Revista de Educação e Ensino_, 4.ᵒ anno, n.ᵒ 6. - - - - -VII - - Os ensinamentos e o crime. A idéa da responsabilidade criminal na - historia. O alcool perante a hygiene physica e moral. O suicidio. - Observações psychologicas em condemnados á morte. A estatistica - criminal portugueza. A educação como elemento psychogenico e - correccional. - - Patenteei com veneração o facto civilisador das escolas nas cadeias - e ainda mais do que o facto, saudei sobretudo o grande principio que - representa o germen da moralisação dos condemnados. - - D. ANTONIO DA COSTA. - - -Das medidas prophylaticas contra o crime, com o fito na innocuidade -dos delinquentes, aquella de que ha mais a esperar, é sem duvida da -educação. Se as inclinações para o crime são devidas á idiosyncrasia -ou a lesões somaticas, podem em parte combater-se pela educação -physica. Diz o proverbio que a boa mão de rocim faz cavallo, e a ruim -de cavallo faz rocim. Não póde negar-se que a educação é o primeiro -factor na acquisição dos habitos e que são estas influencias d’origem, -que formam quasi por completo o nosso caracter. É nos exemplos dos -paes, nas acções beneficas do lar que bebemos o que ha de mais eficaz -em o governo da nossa alma. Ao contrario, o que damnifica mais o -coração é a influencia da familia, quando é deleteria e má. Diz -um adagio portuguez que passarinho que n’agua se cria sempre por -ella pia. É esta agua psychogenica que sobretudo faz do individuo -um innocuo, um cidadão prestabilissimo ou um perverso. A perversão -póde ser muitas vezes hereditaria, mas é mister desviar quanto -possivel essa hypothese, acceita-la discricionariamente e sempre, -equivale a submetter-nos passivos ao seu imperio bruto e fatal. E -hoje está-se abusando desmesuradamente, na propria sciencia, da -explicação hereditaria, muitos escriptores sempre que não podem -explicar na psychologia corrente certos factos abrigam-se sob a egide -da hypothese--hereditariedade. Mas tal expediente é uma deserção do -criterio scientifico. É obvio que ha inclinações herdadas, mas a sua -origem está na educação e nas influencias mesologicas. Enriquecer -pois pela educação o espirito é ampliar o campo dos motivos elevados -sobre que vem a actuar a vontade. Menandro disse «que dar educação -á mulher é augmentar o veneno d’uma vibora» paraphraseando podem -dizer os penologos determinantes «dar instrucção ao delinquente é -augmentar o veneno d’uma vibora.» E de feito, admittida a existencia -do perverso congenito e incorregivel, a instrucção era um instrumento -que vinha augmentar a peçonha da sua deprimente acção social. Porém o -que não póde acceitar-se é que todos os criminosos sejam congenitos e -incorrigiveis. - -A estatistica criminal com referencia á instrucção primaria tem -illudido muita gente, porque tem visto no numero dos criminosos -augmentar a lista dos que sabem ler e escrever, ora esse augmento é -natural consequencia de ter crescido o numero de escolas. Se todos os -cidadãos do paiz soubessem ler e escrever como era muito de desejar, -nenhum criminoso era analphabeto. O que prova tudo isto, é que a -instrucção primaria tem sido felizmente cada vez mais diffundida. - -A etiologia do crime tem de procurar-se nas condições biologicas e -nas circumstancias sociaes. A escola anthropologica é incompleta e -exagerada, incompleta porque descura os factores sociaes e desdenha o -estudo do direito criminal jurisprudente; exagerada, porque pretende -explicar, fóra dos justos limites scientificos, tudo pela biologia e -pela pathologia. - -O attentado contra a propriedade é ordinariamente um producto de -factores sociaes, o attentado contra a honra e contra a vida é muitas -vezes determinado por factores pathologicos, porém o crime é sobretudo -um phenomeno social. O que a escola anthropologica juridica chama -factores pathologicos do crime, como o alcoolismo, a degenerescencia -physica, não são mais do que effeitos das deprimentas condições sociaes -do delinquente. Se ministraram ao ser humano desde a vida intra-uterina -todas as condições hygienicas favoraveis á creança, todos os fecundos -elementos d’uma salutar educação physica, d’uma boa educação -intellectual e d’uma solida educação moral, ver-se-ha ao fim de poucas -gerações com a sensivel rehabilitação de homem animal e com a elevação -do homem moral, a deminuição relativa do crime. - -Não ha anthropologicamente o chamado _typo criminoso_, os caracteres -anatomicos encontrados são communs a muito homem probo e honesto. A -_tatuagem_, por exemplo, encontra-se tanto nos marinheiros, soldados, -pastores como nos criminosos, é um ornato esthetico que nasce do ocio e -no occidente europeu é tradicional esse costume na raça celtica. Hoje -a tatuagem nos criminosos tende até a desapparecer, porque é para os -tribunaes um signal de reconhecimento de identidade e sabem já quanto -os prejudica na pratica do seu triste mister. - -É difficil corrigir o criminoso habitual e reincidente, desde que -inveterado na perversidade, mas era provavel com boa direcção do -sentimento moral desvia-lo d’essa senda, antes de a ter encetado. E -esta emenda era tão possivel no criminoso habitual, como no criminoso -d’accidente ou de occasião, porque ambos contrahiram livremente -esse habito, ou aproveitaram a occasião. O enfermo epileptico ou -dipsomaniaco, apezar d’uma rigorosa educação physica ou acção -therapeutica é difficil de rehabilitar. Os actos violentos d’elle não -são verdadeiros crimes, porque rouba ou mata, seja a quem fôr quando o -seu accesso o ataca, em quanto o criminoso rouba ou mata, quando tem -occasião opportuna. O primeiro é um doente que urge sequestrar até á -cura, o segundo é um delinquente que é mister punir. - -A má educação exerce sobre o delinquente uma influencia mais corruptora -do que o proprio meio social. Mas o criminoso não é inteiramente -victima da fatalidade da educação nem da hereditariedade, elle tem -o poder de reagir contra os impulsos internos da hereditariedade -ou externos da educação, e qualquer mestre escola nos dá centenas -d’exemplos que provam que o homem é por natureza livre. - -Nunca a educação deixará de influir sobre o caracter, porque o seu -fim é a acquisição dos habitos e segundo Rosmini Serbati, «habito -considerado em relação á essencia da alma é o que accrescenta alguma -cousa de bom ou de mau ao seu estado natural e por conseguinte põe a -alma n’um estado melhor ou peior.»[79] - -Admittida a _cerebração inconsciente_ ou melhor o automatismo -psychologico, gerado pelo habito originario ou adquirido o homem -póde commetter um crime, porque o principio da justiça que podia -salva-lo póde ter permanecido como sepultado na noite silenciosa da -vida directa. As theorias biologicas e hypnoticas explicam a seu modo -este phenomeno, mas o principio scientifico que o governa ainda é -desconhecido. - -O direito criminal, como funcção social importantissima, que é, não -póde ser modificado em nome de hypotheses tam vagas. - -O sentimento da responsabilidade é tão fundo na consciencia humana -que a ignorancia e a ingenuidade d’outras épocas tem levado o homem a -estender de modo extravagante o sentimento da justiça e do castigo a -actos de animaes. - -Nos seculos XIV e XV ainda o espirito humano teve uma curiosissima -jurisprudencia criminal. Foi a que se referiu aos processos instaurados -aos animaes. Se o animal podia ser preso e levado ao tribunal, o -processo corria, em geral, no foro civil. Se os animaes não podiam ser -capturados, então o tribunal ecclesiastico tomava conta da questão. No -eleitorado de Moguncia houve um d’estes processos instaurado contra -uma alluvião de moscas, que infestaram aquella localidade, o qual se -tornou muito notavel por um despacho do juiz, que é do theor seguinte: -...Vista a pequenez do seu corpo, e attendendo principalmente á sua -tenra idade, entendemos por bem nomear ás rés curador e defensor para -os fins convenientes. Este magistrado _ex-officio_ defendeu com calor -as suas clientes, não negou os estragos, demonstrou a criminalidade -devida a causa de força maior, e pediu em conclusão um local para -onde as moscas podessem ir viver tranquilamente sem causar prejuizo a -ninguem. Instauraram-se processos similhantes a pardaes, por habitarem -os telhados d’uma egreja e perturbarem os fieis nas suas orações, ás -sanguesugas por corromperem as aguas do lago de Genebra, ás lagartas, -aos gafanhotos e ás lesmas, por fazerem mal ás plantas. Na Suissa até -os gallos eram sentenciados no tribunal e queimados em publico. Havia -então a crença popular de que os gallos punham ovos, e que d’estes ovos -malditos saiam serpentes e basiliscos. Os cavallos, burros, touros e -porcos, accusados de homicidio voluntario, eram sentenciados á morte -ou a soffrer diversas mutilações. Muitas vezes vestiam-lhes um facto -de homem, para executarem com todo o rigor a pena de Talião. Os bodes, -cabras e gatos que eram accusados de magia, eram condemnados, em geral, -a morrer na fogueira com os seus donos, e, passaram negra vida n’essas -épochas medievaes em que dominava a ignorancia e a feitiçaria. - -Esta extravagante jurisprudencia nasceu d’uma inducção -illegitima--estender o que existe em nós a todo o ser vivo. O -espirito tende a confundir a ordem da genese das suas idéas ácerca -dos objectos extranhos com a ordem da genese dos proprios objectos. -Ha uma disposição innata em dar realidade objectiva ao que é -puramente subjectivo. Principalmente no espirito dos homens incultos, -a familiaridade é geralmente confundida com a simplicidade, e na -explicação de qualquer phenomeno seguem o caminho traçado pela evolução -das suas idéas, imaginando d’este modo haverem explicado o facto que -os preoccupava. Effectivamente, perante o seu espirito individual, -o problema está resolvido, mas não o está perante a verdade logica, -que carece do ser impessoal para se tornar scientifica. Illuminado o -espirito pelo criterio da evidencia, todos os homens se sobmettem á -verdade scientifica, porque entre a intelligencia de um sabio e a de um -ignorante não ha differença de natureza é apenas uma differença de grau. - -Ninguem hoje ignora que o alcoolismo é uma das causas dominantes da -pobreza moral e physiologica das classes populares. - -O doutor Delannoy, n’uma conferencia de physiologia e pathologia em -que tratou do alcool, demonstrou que as bebidas espirituosas não são -nem tonicas nem alimenticias. Constituem, apenas, excitantes que podem -ser uteis, em certos casos, e dos quaes se deve usar com moderação. -A excitação procurada produz-se á custa do estado geral; impede a -nutrição, diminuindo o acido carbonio exhalado e a quantidade de -urina emittida. Ora, está demonstrado que estes productos marcam a -intensidade da nutrição organica. A sua diminuição, sob a influencia -do alcool, enfraquece o organismo e traduz-se, entre os bebedores, por -um estado de enfraquecimento vital que não tem analogo sob o ponto -de vista physico, senão no que se encontra nos individuos affectados -de tysica pulmonar. Por isso os bebedos offerecem pouca resistencia -aos agentes morbificos e dão um largo contingente para as doenças -epidemicas. O conferente demonstrou que o uso immoderado das bebidas -espirituosas produz um grande numero de doenças, a maior parte das -quaes são mortaes. Entre outras apparecem: a ulcera e o cancro do -estomago, a gastrite chronica, a cirrhose, a hydropesia, a apoplexia, a -albuminuria o _delirium tremens_, a demencia paralytica, etc. O doutor -Delonnoy affirma que o abuso do alcool constitue uma das causas mais -frequentes da miseria, da loucura e do crime. - -A embriaguez não é uma condição excepcional da especie humana, é -commum a outros animaes, que igualmente são modificados no seu systema -nervoso pela ingestão de substancias toxicas. Na dynamica do crime e -na degenerescencia physica o alcoolismo é uma causa determinante e -predisponente. É mister não o confundir nunca com a dipsomania. - -Ha dez annos que vive na Penitenciaria de Buenos Ayres um recluso -de nome Ulisses Paganno. Este infeliz conta actualmente 36 annos de -edade e entrou no carcere pouco antes de completar 26 annos, isto é, -na plenitude da vida e possuindo medianas condições intellectuaes -e aptidões artisticas, nos periodos tranquillos intermediarios da -sua existencia procellosa. Levaram-o ao presidio cinco homicidios, -praticados successivamente em momentos de embriaguez. Pouco tempo -depois de se encontrar na Penitenciaria, tendo já dado signaes -inequivocos de bons sentimentos e de costumes irreprehensiveis, um dia, -e sem que pessoa alguma suspeitasse dos meios de que poude valer-se, -visto que não tinha dinheiro, poude adquirir uma garrafa de aguardente. - -Quando ao fim da tarde Paganno sahiu da cella para ir trabalhar com os -outros presos, a primeira coisa que fez foi approximar-se de um d’estes -e cravar-lhe no coração um punhal que levava escondido. Dava-se porém, -a circumstancia de que Paganno não conhecia a victima, comprovando-se -tambem que ao commetter o crime se achava completamente embriagado. -Pouco mezes mais tarde, tendo-se-lhe proporcionado tambem outro licor, -na visita da manhã, ao ir um empregado inspeccionar a sua cella, -Paganno, aproveitando um descuido, precipitou-se sobre elle, ferindo-o -gravemente nas costas. Esta segunda punhalada ia tambem dirigida ao -coração, mas por fortuna resvalou em uma das falsas costellas. Desde -então empregam-se todas as precauções e é rara a occasião em que se lhe -permitte sahir da cella. É necessario insistir em uma circumstancia: -Paganno, não embriagado é um dos reclusos mais trataveis, inoffensivos -e affectuosos que existem na Penitenciaria. Em 10 annos que conta -de prisão ainda não perdeu os seus habitos de trabalhador, e vae -para quatro annos entretem-se a domesticar e ensinar ratos. Ulisses -é italiano de nacionalidade, porém falla correctamente o hespanhol. -O seu estado de saude physica é relativamente satisfactorio e não -apresenta nenhum symptoma accentuado de doença mental. A physionomia, -porém, é repulsiva; tem grande mobilidade nos olhos, cerra os dentes -com frequencia e o seu rosto toma em certas occasiões uma côr sombria -e fatidica, que não inspira, na verdade, confiança alguma. Todos os -que o observam ficam na crença de que Paganno é um desventurado louco -que padece a monomania que podia chamar-se «homicida.» A sua pena -será indifinida, dada a horrivel historia dos seus crimes e a feroz -propensão para dar punhaladas no seu semelhante, emquanto experimenta -os effeitos do alcool. Paganno está comdemnado a não gosar jámais -liberdade, o que não lhe dá o minimo cuidado, pois, segundo affirmam -os periodicos da localidade, é dos poucos reclusos que tem logrado -identificar-se com a triste condição da soledade e retiro perpetuos. - -No dia 29 de julho a 1 de agosto realisou-se em Paris o congresso -internacional para o estudo das questões relativas ao alcoolismo. As -questões propostas pela commissão respectiva foram as seguintes: 1.ᵒ -Consumo de bebidas e de alcooes. Estatistica comparada das vendas -de bebidas nos differentes paizes. Relações entre o augmento do -consumo do alcool e o desenvolvimento da criminalidade e da alienação -mental. Meios de restringir o consumo de bebidas e de combater a sua -influencia funesta. Quaes os resultados que teem produzido os dois -systemas em vigor nos differentes paizes: o da liberdade concedida -sob certas condições á venda de bebidas e o da auctorização previa? -2.ᵒ Influencia nefasta do abuso das bebidas alcoolicas. Considerações -medico-legaes sobre os delictos e crimes commettidos debaixo da -influencia do alcoolismo. Meios legaes de prevenir as desgraças -causadas pelo alcoolismo, como assassinios, incendios, suicidios, etc. -3.ᵒ Bebidas sãs que se devem dar ás classes populares. Estabelecimento, -pelas sociedades de temperança, de bufetes ou cantinas na proximidade -das grandes officinas onde se reunam temporariamente muitos operarios. -Meios de reconhecer rapidamente as falsificações das bebidas alcoolicas. - -Os moralistas attribuem principalmente á falta de crenças o suicidio -e o crime, mas a essa causa é mister accrescentar a falta de recursos -economicos. Para os que teem fome e miseria são insufficientes as -consolações espirituaes, é mister que a civilisação ministre remedios -materiaes. Alem dos factores pathologico-mentaes, a miseria, a ausencia -do sentimento religioso, e as leituras d’uma litteratura dissolvente -são principalmente a causa do crime e do suicidio. Estes dois productos -da pathologia social são em maior numero nas cidades que nos campos, -nos homens do que nas mulheres. Nos habitantes dos campos e nas -mulheres, as crenças religiosas tem-se conservado mais vivas, emquanto -que o operario da cidade deixou extinguir essa luz d’esperança e de -consolo, sem que ponha outro sentimento equivalente na sua alma. - -Não se torna notavel pelos nomes esse longo obituario, mas torna-se -horroroso pelos numeros. Na estatistica dos suicidios na França, -durante o anno de 1887, encontra-se um numero horrivel--8:202. D’estes -emigrados voluntarios da vida 6:434 eram homens e 1:768 mulheres. - -Entre os 6:434 homens, suicidados em 1887, conta-se 2:381 celibatarios, -2:910 casados e 928 viuvos, e entre as 1:768 mulheres contam-se 513 -celibatarias, 796 casadas e 427 viuvas. A classe dos agricultores -contribuiu n’esse mesmo anno com 2:020 homens e 594 mulheres para o -suicidio. Sendo essa a classe mais numerosa da França, é esse numero -proporcionalmente muito menor do que 1:772 homens e 504 mulheres que -deu a classe operaria. Entre os proprietarios houve 591 suicidios de -homens e 140 de mulheres, e nas profissões liberaes registaram se 340 -suicidios, sendo 197 de homens e 143 de mulheres. De todas as classes, -a que proporcionalmente concorreu menos para o suicidio foi a dos -criados de servir, que são realmente os menos accessiveis ás causas que -deixamos apontadas. - -As utopias sociaes e a idealisação exaggerada de sentimentos -phantasticos dando ao espirito como alimento planos irrealizaveis e ao -coração aspirações chimericas são motivos frequentes do suicidio. - -Em primeiro logar é necessario expor as proporções em que se produzem -em cada nacionalidade, formando o typo de um milhão, e consignando o -numero de suicidios que lhe correspondem. - - Casos de suicidio - Nações Habitantes por milhão - - Russia 93:000:000 31 - Austria-Hungria 40:500:000 174 - França 38:500:000 150 - Grã-Bretanha 37:200:000 70 - Italia 30:200:000 37 - Hespanha 16:900:000 18 - Suissa 7:900:000 220 - Belgica 5:850:000 79 - Romania 5:400:000 52 - Turquia 5:900:000 40 - Suecia 4:700:000 99 - Hollanda 4:400:000 45 - Portugal 4:410:000 22 - Dinamarca 2:190:000 290 - Servia 2:000:000 66 - Noruega 1:990:000 194 - Prussia 20:000:000 181 - Baviera 5:300:000 127 - Saxonia 3:000:000 373 - Wurtemberg 2:000:000 104 - Hannover 2:500.000 300 - -A execução capital, além de ser uma pena irreparavel não influe -beneficamente na moralidade social. - -Um jornal francez publicou a seguinte relação das execuções em França -desde 1813: 22 de junho de 1813: na praça da Gréve, Perchette e sua -mulher, crime de assassinio; 27 de julho de 1816, na praça de Gréve, -Pleignier, Tolleron e Carbonneau; 23 de agosto de 1822: na praça -da Gréve, Raoulx, Pommier, Goublin e Bories, os quatro sargentos -da Rochella; 24 de janeiro de 1824, na praça da Gréve, Lecouffe e -sua mãe--crimes de assassinio e roubo; 20 de abril de 1824: na praça -de Gréve, Renaud, Delaporte e Ochard, os ultimos salteadores da -floresta de Bondy; 26 de maio de 1826: na praça de Gréve, Ratta e -Malagutti--crime de homicidio; 27 de julho de 1830: na praça de Greve, -Bardon, Guérin e Chandellet, crimes do assassinio e roubo; 9 de janeiro -de 1836: na barreira de R. Jacques, Fleschi, Pépin e Morin, n’esta -epocha as execuções passaram a ser na praça da Roquette; 24 de março -1843: na praça de Roquette, Norbert, e Deprá, crimes de assassinio -de um operario e roubo de 32 francos! Pormenor curioso: a execução -foi no dia da _Serração da velha_ e a guilhotina esteve durante ella -cercada de mascaras; 13 de março de 1858: na praça da Roquette, Orsini -e Pietri, anarchistas; 13 de março de 1874: na praça da Roquette, -Moreau e Bondas, crime de assassinio; 8 de setembro de 1878: na praça -da Roquette, Barré e Lebiez, assassinio de uma leiteira; 10 de agosto -de 1885: na praça da Roquette, Gaspard, o assassino do padre Delannay, -e Marchandon, o amante de Joanna Blin, e assassino da sr.ᵃ Carnet; 3 -de outubro de 1886: na praça do Roquette, as execuções de Sallier e -Allorto. - -Esta estatistica é incompletisissima, não menciona muitos -guilhotinados, entre outros, os celebres Pranzini e Prado. - -Damos em seguida um extracto do relatorio que o abbade Faure, capellão -da Grande-Roquete, dirigiu ultimamente ao ministro francez, e onde -relata as observações que tem feito nos condemnados á morte. Ha seis -annos que o abbade Faure exerce o referido cargo, e tem assistido -a treze condemnados á morte, comprehendendo os dois assassinos de -Auteil, executados ainda ultimamente.--Desde que principiei a exercer -as minhas funcções como capellão do deposito de condemnados, tenho -estado em contacto com um grande numero de condemnados á morte, que -visitei durante um lapso do tempo variando entre quarenta e oitenta -e sete dias. Todos, menos um, que pertencia á religião protestante, -reclamaram os soccorros da religião com signaes mais ou menos -assignalados de convicção ou de indifferença, conforme a educação -que haviam recebido. Posso, pois, apresentar-vos os resultados das -minhas observações sobre esta cathegoria de criminosos. O condemnado -á morte, desde a sua entrada na cellula é preso de uma prostração -profunda e que não desapparece senão depois de um espaço de tempo -assaz prolongado. Todavia essa energia revela-se pouco a pouco, e a -esperança de uma commutação de pena dissipa o terrivel effeito de -sentença condemnatoria. O dever do capellão é alimentar esta esperança, -fazer acreditar na possibilidade da annulação de uma sentença de -morte, na clemencia do chefe do Estado. O infeliz aferra-se a todas -essas esperanças de salvação, atem-se antecipadamente a este beneficio -e compraz-se de boa vontade em esperar que a sua vida seja salva, -mesmo depois dos delictos mais monstruosos. É facil então fazer-lhe -entrever a sorte que o espera depois de uma commutação de pena. A -grilheta perpetua perde todos os seus horrores para aquelle cuja -cabeça está ameaçada, e é todo offegante que o miseravel, á medida que -o termo fatal se approxima, interroga aquelles que o visitam sobre a -esperança que elle póde ter. Os dias são penosos apesar das distracções -que os guardas se esforçam em proporcionar aos infelizes. Os jogos, -as leituras, o recreio, as visitas alteram um pouco a monotonia da -cellula e algumas vezes parece que o condemnado se illude ácerca da -sua terrivel situação. Mas a noite!... Quantas vezes eu tenho sido o -confidente das torturas moraes que soffre o desgraçado! Se o somno -chega por fim a fazer-lhe sentir a sua benefica influencia, quanto -esse repouso é agitado, febril, penoso. Alguns confessaram me que -prolongavam as suas vigilias muito pela noite adiante, esperando d’este -modo não accordarem senão bastante tarde no dia seguinte. Vã esperança! -O despertar chegava sempre á hora em que é dado o terrivel signal. -Em onze condemnados a cujos ultimos momentos assisti, tres sómente -estavam adormecidos quando se lhes foi dar a terrivel nova. Um unico -condemnado á morte dos que eu visitei recusou assignar o pedido de -indulto, e ainda sou levado a crer que elle conhecia esta formalidade -inutil para dictar o procedimento do chefe do Estado. Para apreciar -bem o effeito que produz a pena de morte sobre os grandes criminosos, -basta comparar a attitude do condemnado na vespera e no dia seguinte -ao da sua commutação. Houve tal, que eu vi durante os quarenta dias da -sua reclusão na cella da Roquete constantemente doente, arquejando com -febre, sem appetite, sem somno, transfigurar-se no dia em que lhe foi -annunciada a commutação. Fallava da sua viagem a Numéa como de uma -viagem de prazer, fazia projectos, referia-se ao seu bom procedimento -futuro em proveito de uma graça que elle se esforçaria por merecer. -Tive muitas vezes occasião de verificar o mesmo phenomeno n’aquelles -que escapavam á pena capital, e creio estar no direito de concluir, que -é a unica pena que inspira um verdadeiro terror. Quanto áquelles que -a soffrem, a sua vista sómente basta a um espirito não prevenido para -lhes fazer conhecer os sentimentos e o terror. Parece-me impossivel -achar um espectaculo mais commovedor que o do infeliz, até o mais -resignado, o mais christãmente preparado, durante o tempo tão curto -e ao mesmo tempo tão espantosamente longo de que se precisa para os -aprestos do supplicio. Eu não hesito em crêr que qualquer que seja -a pena que se possa substituir á pena de morte, será impotente para -inspirar um terror mais legitimo e mais horrivel. - -Ha poucos annos ainda, não havia entre nós nenhum trabalho systematico -e completo sobre este assumpto, tão importante como elemento de -investigação scientifica e de proveitosa vantagem social. Não começámos -cedo, mas ainda vamos a tempo de avaliar a vitalidade d’uma nação que -alguns julgam, senão moribunda, pelo menos profundamente enferma. -É a estatistica a base para poder formular leis dynamicas d’uma -sociedade, nas quaes apoiado o homem de Estado e o homem de sciencia -podem dar solução aos complexos problemas economicos e politicos. Na -multiplicidade dos phenomenos sociologicos reveladores das differentes -fórmas da actividade humana póde estudar-se a vida psychologica, -objectivamente, sob todos os seus aspectos. A demographia póde fornecer -ao psychologo dados preciosos para estudar a mentalidade humana nas -cathegorias sociaes da moral, do direito, da religião, da sciencia, da -arte e da industria. A estatistica é um ramo de actividade scientifica -relativamente moderno, remonta ao seculo XVIII, foi Achenwall, -professor de direito publico na universidade de Gottinga quem lhe -deu este nome. Desde esse momento este ramo de saber tem caminhado -pasmosamente e o registo dos seus phenomenos sociaes, expressos -em numeros, tem sido o material que fornece ao sociologo os dados -das suas inducções scientificas. A estatistica, como expressão dos -numeros fornecidos pelos cadastros dos systemas tributarios e pelos -recenseamentos é muito antiga, remonta á historia da antiguidade -oriental, encontra-se sobretudo entre os assyrios, os judeus, os -persas, mas com o caracter scientifico expresso pela demographia -moderna no intuito de penetrar na vida de um povo, é de data recente. -Os seus resultados são devidos especialmente aos fatigantes, pacientes -e aridos trabalhos de Quetelet na Belgica e do dr. Bertillon em França. -A estatistica de numeros é um elemento precioso e essencial para sobre -elle architectar as grandes generalisações sociologicas, mas sem tirar -das premissas nascidas d’aquelle estudo estas consequencias, aquelle -trabalho tem relativamente pouca utilidade. Para organisar devidamente -estes serviços, ha em Portugal apenas duas repartições regularmente -constituidas--uma no ministerio da justiça e negocios ecclesiasticos, -direcção geral do registo civil e estatistica, outra é a repartição -respectiva do ministerio de obras publicas. - -Outro funesto resultado do nosso deploravel atraso em publicações de -estatistica, são os deficientissimos documentos que a respeito da -estatistica de Portugal, se encontram nas estantes dos demographos -estrangeiros e nas repartições publicas correlativas, o que impede que -muitos productos da nossa actividade social, não tenham podido entrar -no estudo comparado da demographia das principaes nações da Europa e da -America como mais um elemento de comprovação sociologica. - -«Todos sabem como elemento de comprovação sociologica o enorme -interesse que hoje se liga á questão palpitante da penalidade. Abolição -da pena de morte, abolição de todas as penas corporaes e irreparaveis, -novos systemas de detenção, moderação nos castigos, etc., etc., são -problemas a um tempo sociologicos e humanitarios que trazem agitados -e commovidos a grande somma dos pensadores que se dedicam com amor ao -bem estar dos seus concidadãos e a alliviar os soffrimentos dos seus -semelhantes.»[80] - -A estatistica, diz o illustre Alphonse de Candolle, não é uma sciencia, -é um methodo. O que se faz mister é fazer bom uso d’ella e até ao -presente tem sido algumas vezes victima de má hermneutica. - -«Uma observação de natureza a dissipar muitas illusões--escreve -o distincto publicista sr. Oliveira Martins--é o movimento da -criminalidade comparado com o grau de instrucção e cultura das -sociedades: os homicidios diminuem com a civilisação, os roubos -augmentam. Na especie do assassinato a Italia tem o primeiro logar -(8,12 homicidio por 100 mil habitantes), a Hespanha o segundo, -depois a Hungria, depois a Austria, depois Portugal, e em seguida, -successivamente, a Belgica, a França, a Allemanha e por fim a -Inglaterra (0,69). Mas a Allemanha, que tem o penultimo logar no -assassino, occupa o primeiro no roubo: e a Inglaterra que é a ultima -na primeira série vem logo apoz na segunda. A illação por muitas vezes -tirada d’estas observações é que, se a instrucção amacia os costumes, -nem por isso corrige a perversidade; ou por outra, que por si só é -insufficiente para formar esse estado de equilibrio inacessivel ou -refratario ás tentações do crime. Os crimes dos barbaros, o talião e -a vendetta ou _revendeyta_ dos nossos foraes, proveem de uma energia -de paixões conciliavel com a nobreza de instinctos que se agitam na -atmosphera crepuscular de cerebros infantis. As creanças são crueis, -mas não são perversas, e como creanças são os barbaros--meigos, -ingenuos, espontaneos, mas terriveis. A sua alma é como a onda fluida -e mobil que passa n’um instante da serenidade limpida de um espelho á -convulsão espumante de uma tempestade.» - -Os dados fornecidos pela estatistica não fornecem argumentos contra a -liberdade individual: «Os numeros exprimem simplesmente factos por meio -dos quaes se póde apreciar uma probabilidade para o futuro, e o livre -arbitrio de cada individuo é totalmente independente d’estas cifras. -A demonstração d’isto é facil. Basta raciocinar, sem commetter erro -sobre os casos particulares... A vontade do homem é uma causa de acção. -Os numeros ao contrario e as medias são effeitos. É destruida a ordem -logica se se suppozer que um effeito possa influir sobre uma causa. -Direi pois de bom grado com Quetelet que o livre arbitrio desempenha -nos phenomenos sociaes o papel d’uma causa, mas accrescentarei: os -seus effeitos são sensiveis, pode-se muitas vezes contar e servir-se -do seu numero para apreciar ou a volta de effeitos semelhantes ou a -intensidade variavel da causa.»[81] - -Só com a theoria da regeneração moral dos delinquentes se tem -generalisado e diversificado o regimen penitenciario. Para a escola -fatalista do criminoso nato, não póde haver regeneração, porque não -existe o sentimento da liberdade individual. Desde que não existe a -probabilidade da emenda moral do criminoso, o systema correccionalista -é uma burla ou uma chimera e como consequencia não mais educação moral -nem profissional do condemnado. Felizmente nenhum estado ensaiou -a execução d’estas theorias que são as consequencias da escola -anthropologica italiana. - -As escolas penaes que não teem por base do direito de punir o -sentimento da justiça, fazem responsaveis dos crimes, diversos -factores sociaes ou pathologicos exceptuando sempre o delinquente que -o commetteu. É verdadeiramente extraordinario. O delinquente, não o -louco, é a unica causa do crime, o meio social póde fornecer-lhe apenas -as circumstancias. - -Parece que o crime caminha com os progressos da instrucção primaria: -«mas este facto é uma consequencia necessaria da diffusão geral -da instrucção em França, se ella fosse diffundida como era de -desejar, todos os francezes saberiam, pelo menos, ler e escrever -e, por conseguinte todos os criminosos francezes seriam contados -como lettrados. Quer o numero total dos criminosos tenha diminuido -ou augmentado, a estatistica não accusaria todavia um augmento de -lettrados muito maior. Haveria 100 sobre100, emquanto que agora ha -somente 69, e havia 39 no fim da Restauração. A mudança nas relações -conduz a uma conclusão certa: que a instrucção tem feito progressos. -É as mais das vezes nas baixas camadas da sociedade que se recruta o -triste contingente da criminalidade. Se a instrucção primaria estivesse -suficientemente derramada, teria penetrado até n’estas cavernas, e -todos os criminosos saberiam, como o resto da nação, pelo menos ler -e escrever. Em consequencia d’isto, a estatistica judiciaria, é uma -maneira de lançar a sonda n’estas camadas inferiores e de ver quaes são -os progressos da instrucção primaria n’estas mesmas camadas onde só -difficilmente chega a sondagem.»[82] - -O criminoso é imprevidente, é leviano e é preguiçoso. A diffusão do -ensino e do amor ao trabalho, aconselhado na familia e ministrado na -escola faz nascer no espirito o desejo d’uma occupação honrosa. Os -ladrões francezes, como diz Lombroso, chamam-se no calão _pègres_ -(preguiçosos). O vadio é hoje aos olhos da lei em todos os paizes -uma variedade do typo criminoso, detesta o trabalho e é nas grandes -cidades quem mais contribue para povoar as cadeias. Não teem -constancia, nem persistencia, nem energia senão para o mal. Os ladrões, -segundo Vidocque, não são aptos para nada do que reclama energia ou -assiduidade. Não podem e não sabem fazer outra cousa senão roubar.[83] - -Entre nós o soldado reservista que volta para os campos depois de -se ter habituado á ociosidade da caserna, é um grande elemento de -desmoralisação, em geral vem vicioso e ocioso, e fica o frequentador -assiduo da taberna da aldeia. - -Os elementos estatisticos de que vamos servirnos são extrahidos da -_Estatistica da Administração da Justiça Criminal nos Tribunaes de -Primeira Instancia do reino de Portugal e Ilhas Adjacentes_. Egualmente -aproveitamos as notaveis considerações, verdadeira novidade scientifica -entre nós, que sobre o assumpto faz o primoroso escriptor e esclarecido -demographo o sr. Silveira da Motta, dignissimo conselheiro director -geral do ministerio da justiça. - -Quanto ao grau de instrucção verificou-se que sabiam ler 4:099 réus -(30,71 por %); que não sabiam ler 9.156 (68,60 por %), e não se -obtiveram informações sufficientes ácerca de 90 (0,67 por %). - -A civilisação gradual e continua das sociedades pela educação popular é -uma das momentosas questões que convem examinar sob todos os aspectos. -Se ha, comtudo, algum por que deve com preferencia ser estudada, é -de certo o concernente á acção benefica nos seus progressos, ha de -diminuir a pouco e pouco a existencia de alguns crimes; cuido que -outros se acommodarão a qualquer estado de cultura; isto, porém são -apenas conjecturas, e não bastam ellas para que o desenvolvimento -do ensino possa indisputavelmente ser considerado dynamometro da -progressiva reducção da criminalidade. Tal é o motivo porque eu quizera -ao menos poder agora confrontar o grau de illustração dos réus com a -somma dos habitantes do reino e ilhas, que, bem ou mal, sabem ler. -Infelizmente não está ainda publicado, em todas as suas divisões e -subdivisões, o ultimo recenseamento da população, onde é de esperar -appareçam os esclarecimentos essenciaes sobre esse importantissimo -assumpto. - -N’estas circumstancias restrinjo-me a apresentar no seguinte epitome -a proporção média que, conforme averiguei, existe n’outras nações com -referencia ao grau de instrucção dos réus. - - -------------+--------------------------------------- - | Numero dos réus - | - | | | De que - | Que | Que não | se ignorou - | saibam ler |saibam ler | o grau - | | | de instrucção - +------------+-----------+-------------- - Allemanha | 95 por % | 5 por % | -- - França | 68 » | 32 » | -- - Inglaterra | 66 » | 33 » | 1 por % - Belgica | 61 » | 37 » | 2 » - Italia | 31 » | 69 » | -- - Hespanha | 27 » | 70 » | 3 » - -------------+------------+-----------+-------------- - -Com relação ás profissões podem incluir-se nas seguintes categorias: - - --------------------------------------+---------+-------------- - | | Proporção - Profissão ou occupação | Numero | com - |dos réus |o numero total - | | dos réus - --------------------------------------+---------+-------------- - Agricultor (_a_) |5:485 |41,10 por % - Industrial (_b_) |4:569 |34,23 » - Negociante (_c_) | 543 | 4,06 » - Proprietario |1:323 | 9,91 » - Empregado civil ou militar | 234 | 1,75 » - Creado de servir | 514 | 3,85 » - Qualquer outra profissão ou occupação | 277 | 2,07 » - Nenhuma profissão | 220 | 1,64 » - Ignora-se | 180 | 1,34 » - --------------------------------------+---------+-------------- - - (_a_) Abrange esta classe os cultivadores não proprietarios, os - hortelãos, jardineiros, pastores, lenhadores, mineiros, - valladores, creados de lavoura, jornaleiros, etc. - - (_b_) Comprehendem-se n’esta classe os directores e empregados de - qualquer empreza, que não seja agricola ou restrictamente commercial - e todos os operarios em artes fabris ou manufactureiras, quer - trabalhem em officinas quer fóra d’ellas. - - (_c_) Incluem-se tambem n’esta classe os caixeiros ou empregados de - commercio. - -Do resumo antecedente poder-se-iam inferir deducções valiosas, se -tivessemos elementos bastantes para o comparar com a população -dividida em identica escala de profissões e occupações. Na falta de -taes elementos offerece pouco interesse o exame d’essa condição dos -réus, e só no futuro poderá de algum modo servir para que se conheça -a influencia das profissões, se não sobre o numero, ao menos sobre -a natureza dos crimes. É isto o que já acontece nos paizes que se -encontram na dianteira da civilisação. Ahi, por exemplo, longas series -de estatisticas parece demonstrarem que o numero proporcional dos -crimes contra as pessoas é notavelmente avultado nos individuos que -se entregam aos trabalhos e habitos da vida rural, ao passo que nos -negociantes, nos industriaes, nos creados de servir, predominam os -crimes contra a propriedade. - -No seguinte quadro que exara os dados estatisticos correspondentes -ao anno de 1879 procuramos comparar a criminalidade com o estado da -instrucção elementar no reino e ilhas adjacentes. - - ---------------+------------------+-----+----+-----+----+-------+----- - | Habitantes de | | | | | | - | facto | | | | | | - Districtos +--------+---------| | | | | | - | Que | Que não | | | | | | - | saibam | sabem | A | B | C | D | E | F - | ler | ler | | | | | | - | | | | | | | | - ---------------+--------+---------+-----+----+-----+----+-------+----- - Angra | 13.217 | 58.412 | 18|0,02| 19|0,02| 1 |0,001 - Aveiro | 38.864 | 218.185 | 210|0,08| 351|0,13| 3 |0,001 - Beja | 18.265 | 123.854 | 80|0,05| 255|0,17| 21 |0,014 - Braga | 60.438 | 259.026 | 250|0,07| 254|0,14| 19 |0,005 - Bragança | 24.930 | 143.721 | 183|0,10| 607|0,35| 4 |0,002 - Castello Branco| 19.167 | 154.816 | 82|0,04| 268|0,15| -- | -- - Coimbra | 36.403 | 255.634 | 179|0,06| 343|0,11| 7 |0,002 - Evora | 17.034 | 89.821 | 83|0,07| 276|0,25| 2 | -- - Faro | 28.544 | 170.598 | 77|0,03| 175|0,08| -- | -- - Funchal | 12.284 | 117.700 | 49|0,03| 167|0,12| -- | -- - Guarda | 31.541 | 196.953 | 206|0,09| 546|0,23| 4 |0,001 - Horta | 11.066 | 50.834 | 11|0,01| 39|0,06| -- | -- - Leiria | 21.471 | 171.511 | 60|0,03| 200|0,10| 18 |0,009 - Lisboa |146.093 | 351.966 |1.174|0,23|2.224|0,40| 95 |0,019 - Ponta Delgada | 22.176 | 104.095 | 44|0,03| 155|0,12| 1 | -- - Portalegre | 13.755 | 87.371 | 50|0,04| 193|0,19| -- | -- - Porto |110.414 | 351.467 | 290|0,06| 586|0,12| 3 | -- - Santarem | 30.371 | 190.510 | 117|0,05| 359|0,16| 11 |0,005 - Vianna | 40.418 | 160.972 | 156|0,07| 219|0,10| -- | -- - Villa Real | 48.508 | 176.120 | 271|0,12| 393|0,17| 2 | -- - Vizeu | 53.363 | 318.208 | 245|0,06| 641|0,17| 2 | -- - +--------+---------+-----+----+-----+----+-------+----- - Total |798.925 |3.751.774|3.835|0,08|8.469|0,18| 193 |0,005 - ---------------+--------+---------+-----+----+-----+----+-------+----- - - A Numero dos réus que sabem ler - B Proporção por 100 habitantes - C Numero dos réus que não sabem ler - D Proporção por 100 habitantes - E Numero dos réus de que se ignorou a instrucção - F Proporção por 100 habitantes - -Para que se possa com algum proveito comparar o estado da instrucção -com o da criminalidade, deve abater-se da massa total da população -a parcella respectiva aos menores até 10 annos, os quaes, na maxima -parte, nem podem ter alcançado qualquer instrucção litteraria, nem -ter commettido crimes. Reduzida d’este modo em numeros redondos a -3:500:000 a somma dos habitantes do reino e ilhas, fica de O,10 a -percentagem dos réus que sabem ler, e de O,24 a dos réus que não -sabem ler. Não é porém ainda a esta luz que deve ser considerado o -assumpto. A proporção só póde estabelecer-se logicamente, cotejando -nas classes respectivas o numero dos réus que sabem ler com o dos -habitantes que sabem ler, o numero dos réus que não sabem com o dos -habitantes que não sabem ler. Posto assim o problema, a quota dos réus -que sabem ler é de O,48 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos réus -analphabetos é de O,31 por 100 habitantes analphabetos. Applicando -o mesmo methodo aos crimes julgados em 1878, a quota dos réus que -sabem ler é de O,51 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos réus -analphabetos é de O,33 por 100 habitantes analphabetos. Com relação -ao anno de 1880 ainda não ha informações completas, mas em vista dos -documentos já examinados deve fundadamente presumir-se uma proporção -quasi identica. Se não me illudo sobre a exacção do calculo, que -conclusões se podem inferir? Contribuirá o derramamento da instrucção -para o acrescimo da criminalidade? Será nocivo o simples e deficiente -ensino primario? Constituirão os factos colligidos n’estes poucos -annos uma situação anormal, em que não possam estribar-se quaesquer -illações ou conjecturas? São questões do futuro, cuja decisiva solução -está ainda longe. Á estatistica cumpre por emquanto agrupar e ordenar -methodicamente os factos: só longas series de trabalho d’esta ordem -descobrirão o valor d’esses factos e os corollarios que d’elles devam -deduzir-se. - -Ahi fica a estatistica criminal portugueza no anno de 1879 e vamos em -seguida beber na mesma fonte os dados estatisticos com respeito ao anno -de 1880. - -Quanto ao grau de instrucção verificou-se que sabiam ler 3:882 réus -(31,59 por c.), que não sabiam ler 8:239 (67,06 por c.), e não se -obtiveram informações sufficientes ácerca de 164 (1,32 por c.). - -Conforme o systema que experimentei no precedente volume busco no -quadro immediato comparar a criminalidade com o estado da instrucção -elementar no reino e ilhas adjacentes. - - ------------------+------------------+-----+----+-----+----+----- - | Habitantes de | | | | | - | facto | | | | | - Districtos | | | | | | - | Que | Que não | A | B | C | D | E - | saibam | sabem | | | | | - | ler | ler | | | | | - ------------------+--------+---------+-----+----+-----+----+----- - Angra | 13.217| 58.412| 9|0,01| 73|0,10| 1 - Aveiro | 38.864| 218.185| 189|0,07| 312|0,12| 15 - Beja | 18.265| 123.854| 100|0,07| 289|0,26| 6 - Braga | 60.438| 259.026| 282|0,08| 394|0,12| 6 - Bragança | 24.930| 143.721| 150|0,08| 557|0,33| 2 - Castello Branco | 19.167| 154.816| 99|0,05| 369|0,21| -- - Coimbra | 36.403| 255.634| 188|0,06| 403|0,13| 4 - Evora | 17.034| 89.821| 81|0,07| 260|0,24| 2 - Faro | 28.544| 170.598| 87|0,04| 216|0,10| -- - Funchal | 12.284| 117.700| 46|0,03| 172|0,13| -- - Guarda | 31.541| 196.953| 247|0,10| 546|0,23| 3 - Horta | 11.066| 50.834| 17|0,02| 18|0,02| 6 - Leiria | 21.471| 171.511| 91|0,04| 212|0,10| 2 - Lisboa | 146.093| 351.966|1.119|0,22|1.799|0,36| 94 - Ponta Delgada | 22.176| 104.095| 52|0,04| 141|0,11| 1 - Portalegre | 13.755| 87.371| 57|0,04| 205|0,20| -- - Porto | 110.414| 351.467| 212|0,06| 523|0,11| 1 - Santarem | 30.371| 190.510| 149|0,06| 378|0,17| 3 - Vianna do Castello| 40.418| 160.972| 121|0,06| 170|0,08| 15 - Villa Real | 48.508| 176.120| 336|9,14| 539|0,23| -- - Vizeu | 53.363| 318.208| 260|0,06| 663|0,17| 3 - +--------+---------+-----+----+-----+----+----- - | 798.925|3.751.774|3.882|0,08|8.239|0,18| 164 - ------------------+--------+---------+-----+----+-----+----+----- - - A Numero dos réos que sabem ler - B Proporção por 100 habitantes - C Réos que não sabem ler - D Proporção por 100 habitantes - E Réos de que se ignorou a instrucção - -Abatida da massa total da população a parcella respectiva aos menores -até 10 annos, os quaes na maxima parte nem podem ter alcançado qualquer -instrucção litteraria, nem haver commettido crimes, e reduzida d’este -modo a 3.500:000 a somma dos habitantes do reino e ilhas, a quota dos -réus que sabem ler é de O,48 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos -réus analphabetos é de O,30 por 100 habitantes analphabetos. Sobre este -importante assumpto dou como reproduzidas as considerações expostas no -volume antecedente. Os factos colligidos com relação ao anno, a que o -actual trabalho se refere, offerecem caracter identico ao dos annos -anteriores. Estes factos, porém, têm tal alcance, e podem ser tão -significativos que me pareceu util, a proposito dos crimes mais graves -commettidos durante o anno de 1880, e durante o triennio de 1878 a -1880, cotejar no epitome immediato o numero dos réus que sabem ler com -o dos habitantes que sabem ler, e o numero dos réus analphabetos com o -dos habitantes analphabetos. - - ------------+------+------+---------+-----------+---------+----------- - | | | C | D - | | +---------+-----------+---------+----------- - Crimes | A | B | Em 1880 |No triennio| Em 1880 |No triennio - ------------+------+------+---------+-----------+---------+---------- - Infanticidio| 26 | 23 | 0,24 por| 0,16 |0,83 por | 0,79 por - | | | 100.000 |por 100.000| 100.000 | 100.000 - Homicidio | 155 | 175 | 5,89 » | 8,02 » | 3,84 » | 3,91 » - voluntario| | | | | | - Estupro | 51 | 44 | 2,88 » | 2,50 » | 1,01 » | 0,83 » - Ferimentos |2.416 |2.401 |88,84 » |89,34 » |61,19 » |66,29 » - Contrab.ᵒ | 62 | 54 | 1,37 » | 1,21 » | 1,84 » | 1,59 » - Roubo | 311 | 308 | 9,89 » |10,35 » | 8,15 » | 8,07 » - Furto |1.840 |1.868 |43,23 » |44,23 » |52,93 » |54,23 » - Fogo posto | 57 | 52 | 1,12 » | 1,25 » | 1,17 » | 1,32 » - ------------+------+------+---------+-----------+---------+---------- - - A: Numero dos réos em 1880 - B: Média dos réos no triennio - C: Proporção dos réos que sabem ler com os habitantes que sabem ler - D: Proporção dos réos que não sabem ler com os habitantes que não - sabem ler - -Quanto ás profissões, os réus julgados em 1880 podem classificar-se da -seguinte fórma: agricultores 5:102, industriaes 4:386, negociantes 463, -proprietarios 1:244, empregados publicos 175, creados de servir 392, -com profissão scientifica ou litteraria 100, com outras occupações 22 -e sem profissão alguma 271. Ignorou-se a profissão ou occupação de 130 -réus. A proporção entre os reus julgados e os individuos pertencentes -a estas differentes classes não se distanceia importantemente da dos -annos anteriores; e não offerece por ora esclarecimentos que bastem -para avaliar o predominio do estado ou posição social na somma, na -qualidade ou na aggravação dos crimes.»[84] - -A Penitenciaria costuma publicar um relatorio interessante sobre o -estado moral e intellectual dos reclusos. Em 1888 diz: - -Pelo grau de instrucção litteraria vemos: - -1.ᵃ classe--Analphabetos 127; 2.ᵃ classe--Sabendo ler e escrever alguma -cousa, mas não sabendo contar 36; 3.ᵃ classe--Sabendo ler, escrever e -contar 15--Total 178. - -Na tabella seguinte damos a classificação dos crimes em relação aos -temperamentos, constituição physica e grau de instrucção litteraria dos -presos entrados na Penitenciaria Central de Lisboa no anno de 1886:[85] - - +-------------------------------+-----------------+---------+--------- - | | 1 | 2 | 3 - |Crimes em geral |--------+--------+----+----+----+---- - | Crimes em especial |A |B |C |D |E |F |G | H |I | J |K |L - +-------------------------------+--+--+--+--+--+--+--+---+--+---+--+-- - |Crimes contra a religião - | Desacato e profanação |--|--|--|--|--| 1| 1| --|--| 1|--|-- - |Crimes contra a ordem e tranquilidade publica - | Moeda falsa |--|--|--|--|--| 2|--| 2|--| 2|--|-- - | Falsificação | 1|--|--|--|--|--|--| --| 1| --|--| 1 - |Crimes contra as pessoas - | Usurpação do estado civil | 1|--|--|--|--|--|--| --| 1| 1|--|-- - | Homicidio voluntario |19|--| 8| 6| 2|34|16| 37|16| 49|14| 6 - | Infanticidio |--|--|--|--| 1| 3|--| 2| 1| 2| 1|-- - | Ferimentos resultando | 7| 1| 1|--|--| 6| 1| 11| 4| 12| 4|-- - | a morte - | Homicidio frustrado | 2|--|--|--|--| 3|--| 4| 1| 2| 1| 2 - | Offensas corporaes | 1|--|--|--|--| 2|--| 2| 1| 2| 1|-- - | Tentativa de offensas |--|--|--|--|--| 1|--| 1|--| 1|--|-- - | corporaes - | Ferimentos | 2|--|--|--|--| 3| 1| 4|--| 4|--| 1 - | Attentado ao pudor | 2| 1| 1|--|--| 3|--| 3| 4| 5|--| 2 - | Estupro | 1|--| 1|--|--| 6| 3| 4| 1| 5| 3|-- - | Violação | 2|--|--|--|--|--|--| --| 2| 2|--|-- - |Crimes contra a propriedade - | Furto | 6|--| 1| 1|--|12| 2| 11| 7| 15| 4| 1 - | Roubo |10|--| 2| 1|--| 8|--| 15| 6| 14| 6| 1 - | Subtracção fraudulenta | 1|--|--| 1|--| 8|--| 9| 1| 8| 1| 1 - | Tentativa de roubo |--|--| 1|--|--| 1|--| 2|--| 1| 1|-- - | Collocação de pedras na |--|--| 1|--|--|--|--| 1|--| 1|--|-- - | via ferrea - | +--+--+--+--+--+--+--+---+--+---+--+-- - | |55| 2|16| 9| 3|93|24|108|46|127|36|15 - | +--------+--------+----+----+----+---- - | | 178 | 178 | 178 - +-------------------------------+-----------------+---------+--------- - - 1: Temperamento - 2: Constit. physica - 3: Grau d’instrucção litteraria - - A: Lymphatico - B: Nervoso - C: Sanguineo - D: Bilioso - E: Lymphatico bilioso - F: Mixto - G: Robusta - H: Regular - I: Fraca - J: 1.ᵃ classe - K: 2.ᵃ classe - L: 3.ᵃ classe - -A instrucção puramente intellectual é uma aptidão que póde tanto pôr-se -ao serviço da virtude como do crime. O lado efficaz da instrucção é a -cultura do sentimento moral e do sentimento religioso. O lado puramente -intellectual ministrado em pequeno quinhão dá a certos individuos o -cunho da vaidade e da insubordinação, fallando com desprezo das crenças -dos outros e explicando tudo ao sabor do seu caracter. Urge combater -este funesto estado, tanto na escola primaria como nas prisões. - -Recolhem ás prisões de Paris annualmente cerca de 110 a 120 mil -delinquentes. Ha a casa de detenção junta á Prefeitura de policia; -as casas de correcção cellulares de Mazas e da La Santé; a casa de -correcção de _Saint-Pelagie_ para rapazes; a de _Saint-Lazare_ para -prostitutas; a grande prisão chamada _La Conciergerie_; o deposito de -condemnados _Grande Roquette_, e a casa de detenção correccional, e -_Petite Roquette_. - -Além d’estas, ha o estabelecimento de educação correccional da rua -de Vaugirard destinada ás filhas de familia; o convento das damas -Saint-Michel na rua de Saint-Jacques, destinado ás donzellas da -religião catholica e ali detidas por correcção paternal; a instituição -das damas preladas, estabelecida em Paris na rua de Meuilly, onde estão -enclausuradas as jovens protestantes submettidas á correcção por ordem -paternal, e emfim o refugio das jovens israelitas, situado no boulevard -de la Saussaye, em Neuilly, para raparigas judias. - -Para rapazes sujeitos á correcção por familias decentes, ha apenas em -Paris a escola industrial da rua Clevel. É dirigida por protestantes e -notavel pela sua austeridade. - -Para repressão da mendicidade tambem ha a casa do Saint-Dinis, para -onde se levam presos os vadios, que se encontram a pedir esmola. - -Entre nós não ha educação correccional, se exceptuarmos a modestissima -casa de correcção de Lisboa. As cadeias do paiz são em geral um foco -de desmoralisação. Não existe n’ellas nem professor nem capellão. A -Penitenciaria de Lisboa é a primeira e unica escola correccional. - -Precisavamos derramar a mãos largas a instrucção que ensina a discernir -e a educação ministrada no lar, na escola, que corrige os defeitos e -fórma o caracter, contrariando desde o berço as inclinações ruins. -Algumas nações tornam justamente responsaveis os paes ou tutores pelo -mau exito da educação de seus filhos. Procuremos melhorar as condições -da sociedade pela creação de instituições de previdencia, para prevenir -accidentes de ordem material e moral. - -«Vê-se pois, affirma um interessante documento official, que os crimes -que mais predominam foram furtos e vadiagem. - -A criminalidade, como diz o citado visconde de Hanssonville, tem -duas causas unicas, a miseria e as paixões; porém na infancia tem -uma terceira causa especial, que é o abandono e a ausencia de toda a -educação moral. - -Os menores abandonados pelos pais, ou pessoas d’elles encarregados, -começam pela vadiagem, passam depois aos crimes contra a propriedade, -d’onde muitas vezes chegam ao de homicidio. - -É indispensavel, pois, affastal-os d’aquelles, que pela sua falta do -conhecimentos ou pela sua desmoralisação o não podem educar. - -Grande parte dos menores condemnados pelo crime de furto, já tinham -sido presos pelo crime de vadiagem, e alguns exemplos podia apresentar -de menores, que entraram na casa de correcção por mais de uma vez como -vadios, sendo-lhes imposta a pena de prisão só por poucos dias, e -quando passavam dos dezoito annos foram processados por crime de roubo -e condemnados a degredo. - -Pelo mappa das reincidencias vê-se que desde a installação d’este -estabelecimento sessenta menores entraram alli duas vezes, trinta e um -tres vezes, nove quatro vezes, sete cinco vezes, um seis vezes e um -sete vezes.»[86] - -Os crimes contra a propriedade são actualmente em maior numero do -que os crimes contra as pessoas, devido ao progresso na brandura dos -costumes, ao desenvolvimento da policia e á progressiva vigilancia -que fez apparecer nos tribunaes maior numero de certos crimes, como -attentados contra o pudor, que a maior parte das vezes passavam -desapercebidos. - -Sendo hoje maior a riqueza, aguça mais o sentimento da cubiça e da -inveja, gera o alcoolismo que prepara o nevrotico e o degenerado para o -crime contra as pessoas. - -O infanticido parece ter augmentado, mas o augmento no numero d’esse -crime é, como dissemos acima, devido á mór vigilancia da policia. - -Ha delinquentes effectivamente irregeneraveis, todavia por isso -devemos desprezar a educação? N’esse caso tambem devemos condemnar a -therapeutica e a hygiene. Uma das causas por que o crime, registado nas -estatisticas, parece augmentar com a instrucção é porque a população -urbana dá maior contingente que os campos e as cidades e estas tentam -mais o malfeitor pela facilidade da fuga e abundancia do roubo.[87] - -«Condemnado o prezo, escreve o nosso illustre jurisconsulto Silvestre -Pinheiro Ferreira, a uma isolação e a um silencio absolutos, e -forçando-o a concentrar-se em si mesmo; que esperavam podesse elle -achar no fundo de sua alma corrompida, que houvesse de o trazer a -sentimentos honestos? Que noções de resignação, de moderação, de -virtude, de amor aos seus similhantes julgavam elle podesse achar em -uma alma tal? Quanto ao passado, as suas recordações só lhe apresentam -devassidão e crimes. O presente só lhe offerece a perspectiva de -uma immensa e odiosa tortura. O futuro, não lhe promette senão a -continuação d’essa tortura até á expiação da pena; e, a partir d’esse -ponto, a fatal alternativa ou de perecer na miseria, ou de se lançar de -novo nos caminhos do crime. - -E que ha ahi que o possa arrancar a estas funebres meditações? Nada, -absolutamente nada, porque o systema da isolação e de mudismo não lhe -permitte distracção alguma. E poude com effeito, alguem persuadir-se -seriamente que um espirito sumido em taes ideias poderia abrir-se á -linguagem da religião e da moral? Seria não conhecer o coração humano. -O espirito para poder escutar com attenção as lições da moral ha de -achar n’ellas attractivos: para que essas lições se gravem no coração -e se tornem sentimentos, é necessario que a alma procure consolação -e prazer encantador em as escutar. Mas que prazer e encanto poderão -provar as almas embrutecidas no vicio ouvindo a linguagem da virtude? - -Não ha mais que um meio para o conseguir,--é illuminal-as. Comtudo, -essa é outra grande difficuldade a vencer. Espiritos preguiçosos, -a quem o mais leve pensar fatiga e aborrece, precisam de um movel -poderoso para se determinarem a receber a menor instrucção. Este movel -deve achar-se na esperança de alliviar a immensa tortura moral do -silencio. - -Saiba, pois, o preso que se elle prestar ouvidos doceis ao ensino e -instrucção, elle se achará admittido ás conferencias que, segundo -os regulamentos, deverão ter logar entre as pessoas a esse objecto -commissionadas, e aquelles dos presos que d’ellas se fizerem dignos. -Estas conferencias não devem versar unicamente sobre a moral, porque -(e ainda outra vez e muitas o repito) o que for semear n’um campo por -arrotear, só deve esperar ver perdido o seu trabalho, colhendo sómente -espinhos. É preciso pois habituar o espirito do preso a dirigir a sua -attenção a objectos, que, ao mesmo que instructivos, puxem e convidem, -a objectos que, tendo pouca ou nenhuma ligação com os seus habitos de -vicio, não o indisponham a dar-lhes attenção. - -Assim como nos conservatorios das artes se tem creado cursos -scientificos ao alcance das classes operarias, alguns d’estes deveriam -tambem estabelecer-se no centro das casas de correcção. Porque então o -espirito dos presos, desenvolvendo-se e dilatando-se por meio do estudo -d’estas diversas sciencias, viria a tornar-se diariamente sempre mais -disposto a subir da consideração dos phenomenos da natureza até ao Ente -Supremo, de onde ella tira a sua origem; e então os seus corações, -abrindo-se insensivelmente aos sentimentos religiosos, principiavam -acceitando sem custo e acabariam acolhendo com gosto essas mesmas -lições de moral, que ao principio os seus espiritos ainda enlodados no -vicio, por ventura repudiaram com tedio e desdem. Alem da inapreciavel -vantagem de adoçar illuminando estes caracteres selvaticos; além da -utilidade que elles não menos que a sociedade hão-de deduzir desta -longa carreira de estudos graduaes e proporcionados á capacidade de -cada um d’elles eu apontarei ainda outra vantagem, a meus olhos muito -mais importante; e é a de preservar os contrictos já soltos, de cahirem -n’aquellas perigosas sociedades que antes frequentavam.[88]» - -O nosso illustre tratadista de litteratura pedagogica D. Antonio da -Costa escreve: - -«N’aquelle mesmo anno de 1879 achava-se na cadeia de Braga, condemnado -tambem a prisão perpetua, Albino de Sá Carneiro, que havia annos -creára e regia dentro dos ferros uma escola primaria para os presos -e para creanças. Estas aprenderam ali ás centenas. Presos, mais de -cem. Quatorze annos de carcere imprimiram no preso professor aquella -tristeza resignada, que é um dos caracteristicos mais dolorosos dos que -padecem. O dia estava triste como elle; e o carcere, se é possivel, -ainda mais triste do que nós ambos. Entretanto, como n’um dia tenebroso -e por entre o ribombar dos trovões despede o sol por sobre a natureza -um raio fugitivo, e por isso mais brilhante, não sei que raios formosos -reflectiam sobre a escuridão do carcere os livros dos alumnos, -dispersos por aquella carunchosa mesa, e os quadros da leitura nas -paredes silenciosas. - -Na larga conversação que tivemos, perguntei-lhe: - ---E quaes são os presos mais difficeis de regenerar? - ---Os ladrões; inquestionavelmente os ladrões. - -Ó ladroeira eterna! como o teu reinado, alem de universal, é sobretudo -incorrigivel! Bem te conhecia Pedro I, que te cortava pela raiz! - ---Quantos presos teem saído instruidos da sua escola? - ---Nem todos podem completar a instrucção, porque uns acabam de cumprir -a sentença; outros, quando já se vão adiantando, são removidos. Mas -posso calcular que um cento de analphabetos e desmoralisados tem levado -d’aqui mais ou menos instrucção. - ---E só instrucção? - ---Não só; mais e melhor, a educação. Sem esta escola, como é que um -João da Silva, preso e analphabeto durante quarenta annos, seria hoje -procurador em Barcellos? como é que o pedreiro Soutello saíria apto -para dirigir os seus negocios? como é que um José Pereira Barbosa, -vendo-se instruido ao reentrar na sociedade, poderia partir para o -Brazil: ganhar ali a sua vida, começar logo um commercio, fazel-o -progredir, mandar dinheiro á familia, e em seguida regressar á patria -com o fructo do seu trabalho? como é que um Manuel Rodrigues e um -José Gomes teriam apresentado, depois de soltos, um comportamento -exemplar, correspondendo-se com o seu professor por meio da escripta -que elle lhes ensinara, narrando-lhe as suas vidas, e protestando-lhe -a transformação completa que n’elles se operou?--porque, proseguiu Sá -Carneiro, fico-me interessando por todos esses que eduquei, como se -fossem meus filhos. - -Que exemplos, e que formosura!»[89] - -«Acerca dos meios preventivos contra a criminalidade[90] importante -e vasto assumpto tem os mais distinctos moralistas escripto grossos -volumes, em que se discutem as divergencias, opinião sobre a -criminalidade e sobre os meios praticos que a sociedade tem a empregar -não só para punir o crime, mas tambem para o evitar, materia a que -ligeiramente nos referiremos n’este limitadissimo esboço. Um dos -mais distinctos alienistas, Maudsley, estabelece com quasi todos os -physiologistas modernos que assim como para haver uma regularidade nas -funcções dos differentes orgãos, sob o ponto de vista da organisação -physica, é necessario e indispensavel o exercicio d’esses mesmos -orgãos, principio formulado por Lamarck, assim tambem para se -desenvolver a potencia psychica da coordenação mental, é necessario -o mesmo exercicio funccional do cerebro, o que mesmo se póde chamar -_um exercicio gymnastico_ pela sua analogia com a gymnastica cujo fim -salutar consiste em operar o desenvolvimento organico do individuo, em -qualquer dos casos trata-se de aperfeiçoar orgãos que na inactividade, -como já vimos, se esterilisam, chegando mesmo a deformar-se, o que -tanto sob este ponto de vista mental, como sob o propriamente chamado -organico, tem consequencias gravissimas para a constituição social, -por isso que este atrophiamento é a origem da loucura e do crime, -e da degenerescencia physica a que tambem corresponde a decadencia -mental. A falta de exercicio muscular produz n’uma serie de gerações, -mais ou menos longa, segundo as circumstancias mesologicas, uma raça -esteril d’elementos anemicos, cheios de vicios e defeitos e por -isso incapazes para a vida, condemnados a occuparem o ultimo logar -na concorrencia vital pela sua inferioridade attestada não só pela -deficiencia de construcção, como tambem nas luctas do pensamento pela -deficiencia mental. Por outro lado a hygiene physica sem a gymnastica -mental, com quanto produza uma raça forte, está longe de produzir uma -raça perfeita, muito longe mesmo de produzir uma raça medianamente -aproveitavel e util no estado actual da sociedade; traz comsigo a -inaptidão para que o individuo aprecie em toda a sua complexidade e -com a clareza necessaria, as circumstancias que sobre si proprio -actuam por isso que lhe não é possivel subordinar os seus actos ao -imperio de uma vontade indisciplinada, pela falta d’ideias fixas sobre -as necessidades individuaes e collectivas. N’este caso a desordem -funccional é a causa, a origem immediata da loucura ou do crime, -cujos prodromos a maior parte das vezes começam a manifestarem-se no -desregramento que arrasta os futuros criminosos aos focos infectantes -e immundos. Ahi pelo contacto com individuos semelhantes e com -certas affinidades justificadas pela sua organisação a que não podem -ser superiores, acabam de se cretinisar tanto pelo abuso do alcool -como pelos prazeres vulgares, em que muitas vezes chegam tambem a -inutilisar-se outros bem conformados, ou pelo menos com predisposições -organicas para obter um logar na concorrencia da vida, e isto em -consequencia de um vicio de educação, apesar de comprehenderem, ou -terem pelo estudo, adquirido as noções coordenativas da actividade -social de cada individuo. Estes casos são todavia pouco vulgares, por -isso que, existindo uma profunda convicção scientifica tirada do estudo -methodico dos factores sociaes e da analyse dos factos succedidos, -essa convicção arrasta o individuo para o campo das investigações -philosophicas onde sobretudo se adquire uma disciplina superior, -que constitue um preservativo contra todos esses vicios sociaes. -Ha comtudo casos que não vem a proposito citar e por isso abrimos -esta excepção. Como já vimos o crime e a loucura são por assim dizer -_duas doenças_ analogas tanto no caso da sua origem ser meramente -accidental, como n’aquelle em que a incapacidade e o desregramente -se manifesta em consequencia de um vicio organico, a maior parte das -vezes hereditariamente transmittido, como o attestam innumeros casos -observados nos hospitaes de alienados, onde tantas vezes vão parar -muitos membros d’uma mesma geração, ou ainda nas prisões pela repetição -do mesmo phenomeno, para que é necessario se dirijam as attenções dos -legisladores a fim de estatuirem leis concernentes ao humanitario fim -de evitar tanto quanto possivel as causas da degenerescencia physica -e mental. Ha pois dois casos distinctos que devemos considerar em -separado apesar da intima correlação que entre elles existe e são o da -perturbação e deficiencia funccional que é susceptivel de modificar-se -com um regimen hygienico, e o da constituição propria do cerebro em -qualquer d’estes os meios a empregar são approximadamente os mesmos e -consistem em procurar n’uma educação scientificamente dirigida, o modo -de lhes desenvolver a potencia determinativa. Ha porém uma differença -entre estes casos que consiste em que sendo muitas mais vezes -impossivel obter d’um individuo defeituoso uma certa tendencia para -ser util, cumpre á sociedade empregar medidas radicaes sobre o destino -d’estes que as conveniencias geraes da maioria obrigam a sacrificar -condemnando-os ao hospital no caso d’idiotia, loucura ou monomania, -caracterisadas por um forte desarranjo das faculdades intellectuaes, -ou com o desterro quando esse mesmo desarranjo se manifesta pela -perversidade de sentimentos, isto é, por uma tendencia irresistivel -para ser prejudicial á collectividade ainda que o criminoso esteja -certo das consequencias dos actos que pratica, como muitas vezes -succede. Estabelecidas estas differenças vejamos em resumo os meios -que a sciencia aconselha como preventivos e que em um futuro não muito -remoto, hão-de ter produzido resultados satisfatorios, se os poderes -publicos dos estados mais civilisados se resolverem a attender a esta -questão a que está affecto o bem-estar social, como necessariamente hão -de ser obrigados pelas exigencias progressivamente accentuadas pela -corrente scientifica que actualmente se dirige em todos os sentidos. E -isto apesar das graves difficuldades do problema para cuja solução, a -par d’uma grande liberdade cujas garantias estão estabelecidas por este -mesmo desenvolvimento scientifico, é necessario mais estabelecerem-se -certas e determinadas restricções tendentes a impedir a degenerescencia -organica e mental pelos cruzamentos indevidos. Prende-se tambem com -este problema a momentosa questão economica que exige ainda muito -trabalho dos philosophos para que se cheguem a estabelecer e a fazer -comprehender no publico um certo numero de doutrinas já debatidas e -aceitas, contra que ainda se levantam graves attrictos apesar de se -não poder conseguir por emquanto a sua resolução definitiva para o que -o maior trabalho ainda está por fazer e nem mesmo se sabe quando se -fará. Leibnitz escreveu «dae-nos educação e nós mudaremos em menos d’um -seculo a face da Europa.» Na primeira linha dos meios preventivos a -que nos temos referido depara-se logo com a _Educação_. É este o mais -pratico, o mais efficaz e o primeiro a empregar, por isso mesmo que é -principio assente de que só por meio d’uma instrucção publica ampla -e obrigatoria, racional e methodica, junta a uma educação dirigida -segundo as necessidades contemporaes se póde obter a revivescencia -da actividade popular, isto é, a sua preparação para a vida social, -livremente dos actuaes preconceitos e contingencias, que são como que -uma negativa da civilisação. Já Leibnitz dizia que quem reformasse a -educação, reformaria tambem o genero humano, e o sabio Spencer no seu -livro sobre este assumpto a que dedica o maximo interesse diz que o seu -fim é preparar o individuo para a vida completa. Em poucas palavras -traçou este philosopho o fim da educação moral, intellectual e physica -até hoje crivada de preconceitos estereis que lhe transtornam a acção, -que chegam mesmo a esterilisar as intelligencias nascentes opprimidas -pelo jugo terrivel de uma direcção anarchica. Não procura acompanhar -o desenvolvimento das faculdades intellectuaes, partindo do mais -concreto para o mais abstracto, seguindo o processo do desenvolvimento -do espirito humano, de cuja marcha o desenvolvimento individual é como -que uma momentanea repetição das differentes phases que atravessou -durante os longos periodos da vida. É como diz também Espinas[91] -«mudando as idéas que se mudarão as instituições e os costumes, sendo -portanto a educação o instrumento da reconstituição social». Mas -para que este meio preventivo de todas as calamidades sociaes dê os -resultados satisfatorios que os philosophos lhe attribuem é necessario -mais que proclamar o ensino obrigatorio de que resulta simplesmente o -ensino da leitura e da escripta. É necessario mais do que instituir -escolas por toda a parte, regidas por professores pouco instruidos -que não podem ultrapassar os limites de um ensino esterilisador... -Devendo a educação ter um caracter scientifico, exclusivamente -scientifico e obedecer nas suas regras a leis determinadas pelo estudo -physio-psychologico do individuo, nós vemos que realmente a escola -primaria, em que reside o futuro das sociedades, não satisfaz ao fim -que é destinada. Limita-se exclusivamente a ensinar materialmente as -creanças a ler e escrever, atrophiando-lhes as faculdades intellectuaes -pelo abuso da fixação absurda de certos conhecimentos superiores que -desenvolvendo a memoria, condemnam o desenvolvimento do raciocinio. -E ante este estado da instrucção publica, parece ser este o seu fim -principal e não preparar cidadãos uteis e prestantes. Ainda as classes -dirigentes não chegaram a comprehender que a sciencia e a verdadeira -interpretação do dever social, é a mais solida disciplina em que póde -assentar a solidariedade por isso que, como diz Espinas, a sciencia é -o patrimonio commum da humanidade por toda a parte onde se encontram -sufficientes luzes. Ella bastará com a arte porque a imaginação -encontra mais abundantes recursos nas suas grandiosas concepções, que -nas invenções mesquinhas da fabula. Bastará não menos á industria -que em todos os tempos tem sido a sua obra, e mais, ella chegará a -organisar os differentes elementos de producção prevenindo as soluções -artificiaes e revolucionarias; chegará a estabelecer a harmonia entre -o capital e o trabalho. Desenvolver por todos os meios a educação -imprimindo-lhe um caracter verdadeiramente concorde com as aspirações -hodiernas dos grandes philosophos, que por meio da investigação e da -experiencia têem descoberto as leis do desenvolvimento humano tanto sob -o ponto de vista physiogenetico como anthropogenetico, eis a primeira -necessidade de todos os organismos sociaes empenhados em estabelecer -o bem-estar geral. É este um trabalho complexo enormemente grandioso -quando comparado sob todos os seus aspectos de prosperidade social, -e que se prende não só com a familia onde a creança recebe não só as -predisposições organicas e as primeiras sensações, as primeiras idéas -cujos vestigios quasi sempre se manifestam atravez de todos os periodos -da nossa existencia. Para terminarmos sobre este ponto essencialissimo -de prevenção do crime e da loucura, citaremos a opinião de Maudsley -que diz: «Abstraindo do dever positivo de todo o homem em adquirir -a mais completa intelligencia, e estabelecer relações com o meio -ambiente, a fim de tirar d’elle o melhor partido em proveito do seu -desenvolvimento pessoal, o estudo e a pratica das sciencias naturaes, -constitue a gymnastica a mais favoravel ás faculdades intellectuaes. -Nenhum outro estudo póde no mesmo grau ensinar a observar com maior -exactidão e a raciocinar com melhor criterio»[92]. A melhor garantia -d’uma clara percepção, d’um sentimento justo, d’um entendimento -vigoroso e d’uma vontade intelligente, em qualquer circumstancia da -vida, é o habito contrahido nas circumstancias procedentes d’uma -percepção sã, d’um sentimento justo, d’um entendimento vigoroso e -d’uma vontade intelligente; por outros termos, é o desenvolvimento -completo da natureza intellectual e moral. Na maioria dos homens, -diz ainda Maudsley, a formação de caracter qualquer que seja, é o -resultado do acaso e nunca o effeito da premeditação; é o producto -accidental da disciplina e da educação que o individuo recebe. Este -facto presenceia-se a todos os momentos, entre esses individuos que -por circumstancias fortuitas são educados n’um meio corrupto, ou mesmo -ainda entre aquelles que prematuramente são pela sociedade arremessados -para essas escolas de desmoralisação chamadas as prisões, onde muitas -vezes se estiolam intelligencias aproveitaveis e espiritos susceptiveis -de receberem uma orientação util, se se não votasse o maior despreso -a esta serie de miserias sociaes que são uma affirmativa do estado de -rudimentos da nossa civilisação. Quanto mais estudamos a criminalidade -e vemos os meios preventivos, alguns de grande facilidade no seu -emprego, tanto mais nos convencemos como Quetelet de que exactamente -essa sociedade que tanto odio vota aos criminosos é a unica responsavel -por actos detestaveis e ainda mais pela perda d’um grande numero dos -individuos que os praticam. Onde ella vê criminosos perigosissimos -para quem o desterro se póde applicar, teria cidadãos uteis se tivesse -tratado de os formar. A educação, dissemos, é o grande meio preventivo -contra a criminalidade, mas ainda não é tudo e ha mesmo outras medidas -concernentes ao mesmo fim que é necessario empregarem-se.» - -A educação carece d’uma actividade constante na vida exterior, que -forneça elementos de elaboração á vida psychologica, directa ou -automatica. A sensibilidade, a intelligencia, a vontade modificam-se -inconscientemente pelo trabalho educativo. O pensamento na phase -psychogenica é essencialmente receptivo, alimenta-se das circumstancias -que o rodeiam. Existe, é verdade, congenitamente um peculio de força -psychica, proveniente da mesma natureza humana e da hereditariedade, -mas a energia da educação póde imprimir a essa força, quasi no estado -nascente, certa linha directriz. É por isso que o eminente psychologo -contemporaneo Bernard Perez, faz nos seus interessantes estudos a -alliança da psychologia infantil com a pedagogia. A educação criminal -nas prisões para adultos, é já apenas um remedio, quando no lar deve -ser um alimento vivificante. - -O distincto psychologo a que acima nos referimos, escreve: - -«O mêdo é um dos sentimentos que mais se oppõem ao bem estar physico -e moral da creança, e, conseguintemente, ao seu desenvolvimento -intellectual. É um instincto innato que pela perturbação geral do -organismo, pela rapidez da circulação e respiração reage, mesmo -inconscientemente, contra um mal presente ou proximo. Corresponde -a um consideravel affluxo de sangue para os centros nervosos, aos -quaes desperta e prepara logo para a lucta, para o ataque ou defeza. -É hereditario nas suas manifestações geraes; apparece geralmente -durante o somno, reagindo por tal modo contra o perigo imminente. -Muitos physiologistas e psychologos consideram-n’o como que hereditario -nas suas differentes especies, taes como o mêdo das impressões -bruscas, intensas e insolitas, o receio de certos animaes, o pavôr -da escuridão e da solidão, e até o proprio mêdo da morte. Haja porém -o que houver ácerca de taes affirmações, que por mais d’uma vez tive -occasião de discutir, certo é que alguns sustos especiaes, como mêdo -dos cães, dos ursos, dos elephantes, das serpentes, precizam, para -reproduzir-se no herdeiro das gerações antigas, que se dê a repetição -frequente das causas que outr’ora os produziram. Se esses objectos -não se apresentam na primeira edade, a predisposição hereditaria -poderá não manifestar-se, ou demorar-se a sua manifestação. Mais -tarde encontrariam no ser já desenvolvido, formado, aguerrido, mais -obstaculos para produzir os seus effeitos. - -Coragem e mêdo são sentimentos por egual innatos. A mãe parece -grandemente apta, em virtude dos effeitos duraveis da incubação -physica e moral, para transmittir o instincto da coragem ou do mêdo. -É porém, especialmente, pela incubação artificial da creança, que as -mães medrosas ou corajosas, produzem, como se tem dito, filhos que se -lhes assimilham. O mêdo é uma susceptibilidade enferma, que attinge -os filhos de paes pouco sãos de corpo e de espirito, mas em diversos -graus e todos na proporção da sua fraqueza. Nos primeiros tempos, -especialmente, a cura d’uma tal nevrose depende quasi totalmente do -regimen e da hygiene. Uma prova do facto é que os homens mais senhores -de si tornam-se algumas vezes sensiveis e timoratos como creanças, -quando a doença os debilita. E de mais, não esqueçamos que se o mêdo -nasce da fraqueza, esta origina aquelle. «Isso constitue, diz Mosso, -um circulo fatal nas funcções do organismo... A excitação do systema -nervoso predispõe o individuo para o mêdo, o qual actuando por seu -turno sobre a excitabilidade augmenta-a indefinidamente[93].» - -Locke e Rousseau escreveram bellissimas e sensatissimas paginas -sobre a necessidade de ir habituando progressivamente a creança a -não temer demasiado o perigo verdadeiro, e sobretudo a temer o menos -possivel o perigo afastado. Locke dá-nos até um conselho precioso a -respeito da creancinha. «É conveniente afastar da vista da creancinha -de peito tudo quanto possa assustal-a; porque até que ella possa -fallar e comprehender o que se lhe diz, seria inutil apresentar-lhe -razões para a convencer de que não tem nada a temer da parte d’essas -cousas assustadoras, que nós quereriamos tornar-lhe familiares -approximando-lh’as cada vez mais n’uma gradação insensivel. Mas, -se, não obstante, acontece que uma creancinha ainda de peito se -sensibilisa ao ver cousas que não podem commodamente furtar-se-lhe -á sua apreciação, e que manifesta repugnancia sempre que ellas lhe -apparecem á vista, é preciso n’esse caso empregar todos os meios -para lhe diminuir esse mêdo, desviando-lhe o pensamento d’esses -objectos, ou juntando-lhes imagens graciosas e agradaveis, até que -se lhe tornem tão familiares que a não incommodem[94].» Na edade dos -dois ou tres annos notam-se na creança umas certas aprehensões, a -proposito da côr ou da fórma dos objectos que não conhece ou cujas -analogias lhe não são muito familiares. Creio que é preciso, já o -disse n’outro logar, uma como especie de transformação imaginativa -das experiencias pessoaes n’essas vagas aprehensões do mal que podem -causar lhe esses objectos desconhecidos. Seja qual fôr a origem d’essas -antipathias ou d’esses sustos, que se não explicam, o que mais nos -deve aqui importar, é a faculdade de desapparecerem após repetidas -experiencias que tornaram familiares ás creanças os objectos que a -principio lhes eram terriveis. Locke e Rousseau deram a proposito da -cura d’esta especie de receio conselhos quasi similhantes, alguns -dos quaes podem mui bem seguir-se na educação da creança. «O vosso -filho, diz Locke, estremece e foge ao ver uma rã: mandae a uma outra -pessoa que pegue n’ella, e determinae-lhe que a colloque a distancia. -Acostumae-o primeiro a encaral-a, e quando elle puder fital-a sem -constrangimento, a consentil-a mais perto do si, a vel-a saltar sem se -impressionar; depois mandae que lhe toque ao de leve, em quanto alguem -a segura com as mãos; continuando assim gradualmente a tornar-lhe -familiar o animal, de modo que elle possa tocar-lhe como toca n’uma -borboleta ou n’um passaro. Assim se procurará disciplinar este -juvenil soldado...[95]» Rousseau desenvolve mais minuciosamente este -preceito: «Quero que o habituemos a ver objectos novos, animaes feios, -repugnantes, extravagantes, mas a pouco e pouco, de longe, até que se -acostume, e que á força de ver os outros mecherem-lhe, elle mesmo lhes -mecha. Se, em creança, viu sem temor sapos, cobras, lagostas, verá -sem horror, quando fôr maior, qualquer outro animal. A impressão dos -objectos horrorosos desapparece para quem se habitua a vêl-os.» Assim -a creança habitua-se a não se assustar das mascaras e a rir d’ellas, -quando outras pessoas as põem na cara á sua vista. Acostuma-se tambem -aos tiros de espingarda, bombas, tiros de peça, e mais terriveis -detonações, se se começa por se queimar uma simples escorva e se passa -a mais fortes cargas. Depressa se acostumam tambem a ver pessoas -vestidas de preto que lhe fallam com meiguice, ás caras estranhas, ás -vozes estrondosas ou cavernosas, que a principio tanto a assustavam. -Estes processos, d’uma facil applicação, preparam as transições, o -que é essencial em materia d’educação. Convém porém evitar o excesso, -e, por exemplo, não familiarisar a creança com o perigo ficticio a -ponto de a entregar sem defesa ao verdadeiro perigo. Muitas vezes a -valentia da creança é simplesmente ignorancia ou falta d’imaginação. -Devemos saber e prever por ella. Que se mostrem todos esses horrores -zoologicos á creança, mas na sua presença mexa-se-lhes com todas as -cautellas. Deve saber que um sapo é immundo, uma serpente venenosa, uma -lagosta picante, e como deve usar-se para lhes pegar ou approximar-se -d’elles. Quando tem dois annos podem explicar-se-lhe estas cousas, mas -de sorriso nos labios, e nunca manifestando um receio muito serio. É -preciso disciplinar mas não supprimir este util instincto o do receio. -Desde os tres annos e mesmo ainda antes, uma creança bem educada póde -comprehender por ver os seus educadores, que se póde ser valente sem -temeridade, e prudente sem fraqueza. Os nossos leitores poderão ler no -_Emilio_ as mais interessantes paginas que se teem escripto a respeito -dos meios de corrigir o mêdo das trevas, Darwin julga-o hereditario, -e Rousseau, julga-o natural em todos os homens; e em certos animaes, -dá-se, segundo Buffon, uma explicação scientifica do caso. Este tão -commum espanto não deve attribuir-se só ás historias das amas; os -phantasmas da escuridão não nos estão apenas na imaginação, mas tambem -d’algum modo nos olhos. Levados naturalmente a julgar dos objectos -segundo a grandeza da imagem que formam em nossos olhos, nós povoamos -a meia escuridão da noite de figuras gigantescas, ou medonhas, em -virtude d’aquella illusão que em certos casos nos levará a tomar uma -mosca que passa junto de nós por um passaro que estivesse a grande -distancia. Os objectos assim transformados espantam como tudo o que -se desconhece ou não vê bem. «É tambem muito provavel que a ausencia -d’impressões visuaes concorra para augmentar outras sensações, -especialmente a audição e o tacto, como é facil de experimentar -observando as proprias sensações em condições identicas[96]» Ajunte-se -a esta causa natural do erro a influencia dos contos phantasticos, -e a imaginação trabalhará do mais deploravel modo. As impressões -penosas, os maus tratos, uma sensibilidade doentia, predispõem para -o susto. Este genero de fraqueza, tão funesto á creança, tem causas -immediatas, que são mais faceis de prevenir do que as remotas, seriam -de eliminar. O mêdo de que fallamos é sobretudo devido á educação. Se -os selvagens, segundo narrativas de certos viajantes, teem algumas -vezes medo das trevas, é porque a sua imaginação supersticiosa as povôa -de espiritos invisiveis. O animal não tem mêdo das trevas, por causa -das proprias trevas. Conheci creanças que por um effeito evidente de -educação não manifestavam tal fraqueza. O meu sobrinho Carlos, assim -como o seu irmão Fernando, nunca mostraram mêdo da escuridão. Todavia -Fernando chora quando o deixam só ás escuras, e Carlos pede muitas -vezes á ama para lhe alumiar na escada. Será mêdo? Não é. Fernando -chora porque se julga abandonado, porque já não vê a mãe, como chora -de dia, quando ella sóbe sem esperar por elle, e como fica a gritar -na escada quando ella parte. Carlos tambem fazia assim n’outro tempo. -Este faz-se alumiar, porque só assim vê para andar, e para dirigir-se -melhor. Fernando chora algumas vezes na cama quando o vão deitar e -deixam só. Carlos hoje já não chora, e adormece logo, não se importando -para nada com a escuridão. Um e outro sahem sós da casa de jantar para -atravessarem o corredor ou irem para a cosinha. Quando foram escriptas -estas linhas, o mais velho tinha sete annos, o outro quasi cinco. - -Nada vejo que haja a accrescentar aos excellentes preceitos de -Rousseau, com respeito ao mêdo da escuridão e do que elle póde ter -de hereditario, e de mais ou menos espalhado na nossa especie. Elle -aconselha muitos brinquedos de noite, e especialmente brinquedos -alegres, de modo que a creança se acostume a estar ás escuras, a -servir-se das mãos e dos pés tateando os objectos que não vê. Mas não -é «com surprezas» que devem «acostumar-se as creanças a não terem, de -noite, susto de cousa alguma. Este methodo é contraproducente, dá um -resultado inteiramente contrario ao que se deseja, e serve só para as -tornar mais medrosas. Não podem a razão nem o habito socegar-nos o -espirito com respeito á idéa d’um perigo presente de que se não conhece -o grau ou a especie, nem ainda com respeito ao receio de surprezas -tantas vezes experimentadas[97].» Em caso nenhum, convém brincar com o -medo presente d’uma creança. Creio até que, passado o susto, o habito -dos exercicios proprios a darem-lhe serenidade actuariam melhor no seu -amor proprio para o corrigir d’essa enfermidade do que a zombaria. -O inverno é propicio para isso; aproveitemol-o; disponhamos os seus -prazeres para as horas da noite. Ensinemos-lhe a reconhecer por si -mesma os objectos que a escuridão nos faz tomar por muito differentes -do que são. Approximemo-nos de todos que passarem ao nosso alcance, e -prolonguemos á vontade a conversação, permitindo á creança que fique -junto de nós ou que se afaste, nada perdendo das suas impressões. -Façamos que naturalmente se habitue aos mil pequenos rumores que se -ouvem particularmente de noite, e que saiba rindo e sem o esquecer, -que as cousas só para os ignorantes são mysteriosas; que os phantasmas -outra cousa não são mais do que a obra do medo que perturba a -imaginação, ou dos maus farcistas que por mais d’uma vez tem pagado -caro a sua phantasia[98]. Quanto á creança de berço que está quasi -inteiramente á mercê das influencias hereditarias, deveria habituar-se -a dormir com e sem luz, a ouvir fallar, a sentir-se amimada, a ouvir -ralhar-se-lhe, ora de perto, ora de longe, a escutar na escuridão -todas as especies de rumores, a ver a luz e os objectos apparecerem e -desapparecerem repentinamente. São optimas precauções para tomar antes -da epocha em que as primeiras experiencias das coisas, e o perigo -quasi inevitavel dos contos absurdos, hão de começar a desenvolver o -instincto innato do susto. Até á idade de quatro ou cinco annos, a -creança tem apenas uma idéa muito vaga da morte: não póde portanto -causar-lhe mêdo ou horror. Ella assimilhar-se-ia por isso á maior parte -dos animaes superiores, porque não está provado, como o disse Caro, -que estes tenham uma concepção similhante á do homem adulto. Quando -muito teem o vago instincto d’um perigo supremo, que excede todos os -conhecidos[99].» O argumento tirado dos cães que gemem e se deixam -morrer de fome sobre o tumulo do dono não é absolutamente decisivo: -a tristeza de ver-se privado d’um dono affeiçoado póde produzir esta -prostração das forças physicas e moraes terminando pela impossibilidade -de viver. O suicidio das creanças provaria muito mais, e sabe-se que -não é elle rarissimo nas creanças muito infelizes, muito susceptiveis, -d’uma sensibilidade doentia. De resto, esta mania nunca affecta -creanças de menos de seis annos. Foi com certeza n’uma epocha posterior -que se deu o seguinte facto. «Eu conheço o caso d’uma creança que por -tal modo se tinha impressionado com o mêdo da morte que não dormia de -noite; não era isto effeito de descripções horrorosas da morte que -lhe tivessem incutido, mas o resultado das suas proprias reflexões -sobre o assumpto[100].» Devia haver alguma cousa de anormal n’aquella -tenra cabeça e nas condições exteriores do seu desenvolvimento -moral. Certo é que a creança tem uma qualquer idéa da morte. Como é -impossivel que ella não oiça fallar d’esse grande pavor dos adultos, -convém familiarisal-a com o caso e apresentar-lh’o só sob a fórma -d’um repouso eterno ou d’um somno tranquillo. Póde, por exemplo, -apresentarem-se-lhe animaes mortos, como fizeram ao filho de Taine. -«Ante-hontem o jardineiro matou uma pêga que dependurou por uma perna -do esgalho d’uma arvore, em ar de espantalho; disseram-lhe que a pêga -estava morta, ella quiz vêl-a.--Que é que faz a pêga?--Não faz nada, já -não meche, está morta.--Ah!--Pela primeira vez a idéa da immobilidade -final entra em seu espirito.» Poucas creanças, é certo, se assimilham -a esta menina, a quem uma resposta satisfaz, e que tem apenas um ah! -para replicar. Aquelle ah! aquella interjeição ali posta como fecho de -objecção não é d’uma creança, ou a menina do que falla Taine era dotada -d’uma imaginação muito pacifica. E de mais, assim é que se deve fallar -da morte a uma creança. - -Quando uma creança está de saude não ha inconveniente, a meu ver, em -lhe mostrar pessoas mortas ou ossadas humanas. A pallidez e a rigidez -cadaverica, e com mais forte razão os restos osseos não teem nada de -pavoroso. Uma creança de tres annos fallava da morte como d’um estado -em que já se não soffre do estomago nem da cabeça; de noite fallava dos -parentes mortos, como de qualquer outra coisa. É porque seu pae, sabio -livre de prejuizos, mostrava-lhe diversas vezes animaes ou pessoas -mortas, dizendo-lhe: «Vê lá, quando se está morto, não se meche, não -se falla, não se ouve e não se vê nada; é como uma arvore, uma pedra, -uma cadeira, uma meza; não se move perna ou braço, não se sente bem ou -mal, não se precisa comer nem beber.» Estas imagens e estas explicações -haviam dado á creança uma idéa assaz justa, assaz desassombrada da -morte. Perguntou um dia para que se mettiam os mortos n’uma grande -caixa e se levavam para muito longe: o pae não lhe respondeu nada -mais senão que se levavam para o cemiterio, e que iria com elle -visital-o. Levou-o lá effectivamente, no dia seguinte; approximou-se -d’uma cova aberta de fresco e disse-lhe:--«Vês aquelle buraco, é ali -que se depositam a caixa e o morto, para sempre; cobrem-se com terra -porque os mortos apodrecem como a fructa ou a carne, e cheirariam -muito mal.» Fel-o depois reparar n’alguns ossos desenterrados pela -enxada do coveiro; mecheu sem dizer nada n’uma tibia, n’uma vertebra, -n’um craneo; a creança fez logo o mesmo. Ás perguntas seguiram-se as -perguntas. O pae respondia-lhe simplesmente. «Quando se está morto e -corrupto, tornamo-nos bocados do ossos.--Succeder-me-ha o mesmo a mim -quando eu morrer?--Sim, e a mim tambem e a tua mãe. Mas, meu filho, não -havemos de morrer ámanhã, nem depois de ámanhã, nem por muito tempo -ainda.--Ha de chorar muito quando eu morrer?--Oh! não morrerás antes -de mim, assim o espero. Não se sabe quando se ha de morrer.--E porque -choraria, diga?--Porque te amo, e desejaria viver sempre comtigo. De -resto, quando se está morto, não se é desgraçado, pelo contrario, não -mais se soffre. Somos ossos mettidos na terra. Vamo-nos embora.» A -creança pegou na mão do pae, mas largou-a logo para seguir rindo, uma -borboleta que acabava de voar d’uns arbustos. O insecto levou mais -longe o seu vôo, e a creança voltou logo a dizer ao pae: «Havemos de -voltar aqui, sim, papá?» Se esta creança tivesse ouvido alguma tola -ama fallar com seriedade de phantasmas, de lobis-homens, a scena que -reproduzimos deixal-a ia tão tranquilla? É assim que se consegue, sem -empregar equivocos ou uma falsa sentimentalidade, mostrar á creança -a verdade que póde comprehender. «Um remedio directo para um temor -particular, disse a judiciosa madame Necker de Saussure, é substituir -pela presença do objecto temido a idéa que se formava d’elle. Não -figuramos aquillo que vemos, e a realidade por mais desagradavel e -ingrata que seja produz um effeito calmante nos sentidos. Este meio, -podendo praticar-se, é efficacissimo, mas devemos servir-nos d’elle -cautellosamente.»[101] - -O nosso codigo penal abrange nas circumstancias dirimentes da -responsabilidade criminal, a falta da imputabilidade e a justificação -do facto, e julga não susceptiveis de imputação os menores de 10 -annos e os loucos que não tiverem intervallos lucidos, ou os loucos -que, embora tenham intervallos lucidos, praticarem o facto no estado -de loucura. O nosso codigo penal previu claramente as hypotheses -acceitaveis da escola anthropologica quando affirma que os loucos que, -praticando o facto, forem isentos de responsabilidade criminal, serão -entregues á sua familia para os guardarem ou recolhidos em hospitaes de -alienados, se a mania fôr criminosa ou se o seu estado o exigir para -maior segurança. Entende egualmente que os menores, que, praticando -o facto forem isentos de responsabilidade criminal por não terem 10 -annos ou por terem obrado sem discernimento sendo maiores de 10 annos -e menos de 14, serão entregues a seus paes ou tutores, ou a qualquer -estabelecimento de correcção ou colonia penitenciaria se a houver no -continente. É obvio que n’esta legislação criminal está assignalada a -idéa de hospitaes de alienados para os perigosos á ordem publica e a -idéa de estabelecimento de casas de correcção. O fundamento do direito -de punir no codigo penal portuguez é a responsabilidade criminal que -consiste, segundo, a sua bella definição no dever em reparar o damno -causado na ordem moral da sociedade, cumprindo a pena estabelecida na -lei, e applicada pelo tribunal competente. - -A responsabilidade criminal é ainda aggravada ou attenuada quando -concorrem no crime, ou no agente d’elle, circumstancias attenuantes -ou aggravantes e dada a aggravação da pena. O alcoolismo é, perante -o nosso codigo penal muitas vezes um crime, outras vezes uma -circumstancia attenuante e nunca uma circumstancias dirimente. O artigo -40 diz o seguinte: a privação voluntaria e accidental do exercicio da -intelligencia e inclusivamente a embriaguez voluntaria e completa no -momento da perpetração do facto punivel, não dirime a responsabilidade -criminal, apezar de não ter sido adquirida no proposito do perpetrar, -mas constitue circumstancia attenuante de natureza especial, quando -signifique alguns dos seguintes casos: 1.ᵒ ser a privação ou a -embriaguez completa e imprevista, seja ou não posterior ao projecto -do crime; 2.ᵒ ser completa e procurada sem proposito criminoso e não -posterior ao projecto do crime. Em qualquer dos casos a isenção de -responsabilidade criminal não envolve a responsabilidade civil, quando -esta se dê. Todo o nosso direito criminal tem por base a intenção, -visto que são puniveis não só o crime consumado, mas tambem frustrado -e a tentativa, assim o artigo 6.ᵒ diz que ha crime frustrado quando o -agente pratica com intenção todos os actos de execução que deveriam -produzir-se, como resultado do crime consummado, e todavia não se -produzem por circumstancias independentes da sua vontade. Egualmente, -ainda que a tentativa não seja punivel os actos que entram na sua -constituição são puniveis, se forem classificados como crimes pela lei -ou como contravenções por lei ou regulamento. É evidente que todos -estes principios se applicam a todos os agentes do crime nas suas -differentes condições, quer sejam auctores, cumplices ou encobridores. - -É erro corrente da escola italiana suppor que o caracter do -delinquente, resulta apenas de uma fatal causalidade organica. Ainda -porém ultimamente um illustre psychologo francez, Fr. Paulhan, publicou -um vasto livro[102] no qual fez, segundo o seu ponto de vista, uma -analyse profunda das fórmas da actividade mental e dos elementos -psychicos tendo por fim demonstrar que o espirito é a resultante d’uma -synthese de productos sociaes, formada sobre uma synthese de productos -organicos. Estudando os elementos psychicos, reconhece que ha uma -actividade propria, relativamente independente, analoga á dos homens, -das familias e dos partidos, que constituem uma sociedade, estando -porém tudo unificado por uma lei principal, que é a lei da finalidade. - -Paulhan, fazendo o estudo da personalidade psychologica, indaga como -as sensações e as percepções são systemas de elementos, como as -ideias são systemas de elementos tirados de numerosas percepções, as -tendencias são associações coordenadas de ideias, de percepções reaes -ou possiveis, de imagens motrizes, de elementos reaes, associando-se -progressivamente a systemas cada vez mais vastos. Cada traço de -caracter resulta da coordenação, segundo dada maneira, de um certo -numero de tendencias. A avareza, por exemplo, é uma systematisação n’um -sentido muito determinado d’estas tendencias, que fazem trabalhar para -ganhar dinheiro, fazendo sacrificios de toda a especie. A personalidade -póde ser modificada por uma d’estas tendencias, que fazem do agente um -heroe ou um criminoso, e a sua formação póde ter uma origem hereditaria -ou adquirida. - -A mór parte das qualidades do nosso caracter vem do habito. Ha quem -diga, por exemplo, que o medico alienista vê facilmente em todo o -delinquente um louco, impellido pelo habito de lidar com loucos. -Egualmente se affirma que os juizes habituados a lidar com criminosos, -estão sempre dispostos a ver em cada accusado um criminoso. De facto o -juiz adquire na pratica do seu officio um caracter insensivel e duro. -Desde os legistas dos fins da idade média até ao seculo XVIII, todos os -tribunaes da Europa adoptaram a tortura como processo de julgamento. O -juiz, levado por uma simples denuncia, sujeitava o infeliz accusado, -muitas vezes era um innocente, aos _tratos pela agua_, _pela apoleação_ -ou pelos _borzeguins_. Jámais, como Alexandre Magno, o juiz _guardava -um ouvido para o accusado_. Debalde o reu no supplicio podia exorar: -_appello para Philippe em jejum_. - -É um aphorismo em psychologia, que a intensidade dos phenomenos -sensiveis, dolorosos ou agradaveis diminue com o habito, em quanto os -phenomenos da intelligencia se avigoram e fortalecem. - -Escreve o grande jurisconsulto Charles Comte: «... no estado actual dos -nossos conhecimentos, é impossível determinar as differenças essenciaes -que existem entre as diversas especies de homens, relativamente ás -suas faculdades intellectuaes e moraes; um systema que explique todas -as differenças que se observam entre as nações, por uma differença nas -faculdades intellectuaes, não é mais conforme á verdade que aquelle -que explica todos os phenomenos physicos, moraes e intellectuaes pela -temperatura da atmosphera, se existisse alguma differença em a natureza -das diversas especies, essas differenças podem ser comparadas por um -grande numero de circumstancias, de sorte que o povo, que por sua -natureza fosse menos susceptivel de desenvolvimento, poderia comtudo -estar mais desenvolvido que aquelle que fosse melhor organisado, mas -que estivesse collocado em circumstancias mais favoraveis.[103]» - -Os crimes que resultam da transgressão de leis positivas das -sociedades, estão diminuindo constantemente com o progresso -intellectual, como por exemplo, muitos dos delictos de religião, os -quaes vão desapparecendo com o incremento do sentimento do tolerancia -e de respeito pela consciencia individual; igualmente os crimes de -contrabando, que, com os largos principios economicos da abolição -das barreiras e sumiço de outros estorvos que impedem a liberdade -de commercio, tendem a ser considerados n’um futuro mais ou menos -longinquo actos legitimos. Não succede o mesmo com os crimes que violam -os principios moraes, como os ataques contra a propriedade, contra as -pessoas e contra o pudor, os quaes constituem a grande fraqueza moral -ou estado pathologico da nossa natureza. - -O congresso de anthropologia criminal, realisado na epoca da exposição -em Paris, deixou, por parte dos francezes e dos allemães, habilmente -ferida a escola anthropologica juridica italiana. O egregio professor -Cesar Lombroso, que pontifica na universidade de Turim, encontrou na -_dieta_ anthropologico-criminal de Paris, muitos protestantes que lhe -demonstraram a phantasia dos mais queridos dogmas da escola penal -positiva. Benedikt, Manouvrier, Tarde, etc., pozeram bem em evidencia, -a qual não póde negar-se, que devem existir disposições organicas para -o crime, como devem existir para o genio, mas o que de modo nenhum póde -scientificamente affirmar-se, como quer a escola de Lombroso, é que -essas disposições organicas sejam reveladas por caracteres anatomicos. -Em todo o decurso d’este nosso trabalho, elaborado antes do congresso -de Paris, combatemos com sincera convicção esta peregrina escola. -A doutrina que nós ardentemente temos defendido com referencia ao -crime:--educação moral, religiosa, intellectual, artistica, physica, -economica, profissional, acha-se até certo ponto comprehendida na -interessante communicação sobre _anthropologia juridica e criminal_, -ultimamente apresentada ao congresso pelo dr. Manouvrier, sob o nome de -anthropotechnia, isto é, o conjuncto das artes que teem por fim dirigir -o homem--medicina, hygiene, moral, educação, direito e politica. Com -este fim é que effectivamente o criminoso deve ser estudado, e sob este -aspecto é que elle deve ser praticamente combatido. - -Cada escola pedagogica ou correccionalista inventa um remedio para -combater o crime. Para uns é educação moral, para outros religiosa, -para muitos intellectual e profissional. Quasi todas as theorias são -exclusivistas. Nós hasteamos humildemente o nosso pendão, affirmando -que as diversas fórmas educativas não se hostilisam nem se refutam, -partindo de diversas origens, estabelecem a harmonia e chegam ao mesmo -fim--a elevação da especie humana. - -Pela educação moral adquirimos a noção clara do dever; pela educação -religiosa elevamo-nos á idéa sublime do perfeito, pela educação -artistica sentimos penetrar em nossa alma os encantos do bello, pela -educação intellectual tomamos posse dos dominios da verdade; pela -educação physica conquistamos o dom precioso da robustez e da saude; -pela educação economica aprendemos a ser felizes, dispendendo só o -capital sufficiente e sempre menos do que o que produzimos; pela -educação profissional preparamos as nossas faculdades para crear o que -é util no meio social em que vivemos. - -A cultura harmonica d’estes multiplices aspectos da vida humana, se -não conseguir fazer de cada individuo uma actividade equilibrada, -despertará uma vocação que redima o ser pelas suas fecundas -manifestações. - -Os homens de faculdades especulativas viveriam tranquillos pela -sciencia, e enlevados pela verdade; os homens de imaginação viveriam -contentes pela arte e pela litteratura; os homens de acção viveriam -satisfeitos pelas emprezas guerreiras, especulações industriaes, ou -intrigas politicas. - -A desordem na educação nacional desenfreou a ambição e a cubiça e poz a -descoberto todas as miserias humanas. Na vida externa lida-se pela sede -da riqueza, na vida intima trabalha-se pelo repouso egoista. - -São tristes os dias que atravessamos, pela indifferença e pelo -scepticismo, que se apossou da consciencia social. Que valor moral tem -hoje para muitos o sentimento da abnegação, a elevada crença christã ou -os principios de justiça, que foram o nó vital dos grandiosos dramas da -historia? Nenhum, isso é uma ingenuidade de que os espiritos enervados -e os modernos utilitarios se riem. - -Esta descrença, este desprezo pelos grandes principios que outr’ora -exaltavam as almas, tornou hoje a sociedade egoista, e a imprensa -propaga diariamente estas ideas, que calam em geral, porque a cubiça -e o interesse tomou logar soberano entre as consciencias faceis. A -dolorida reflexão e a anciosa indagação, sobre a vida contemporanea, -exprimem na alma dos que teem ainda fé n’alguma cousa superior, um -intenso desconsolo, que só póde encontrar lenitivo no mais candidamente -humano e divinamente grandioso dos sentimentos--a esperança. - - -NOTAS DE RODAPÉ: - -[79] Psychologia T. II pag. 94, Rosmini. - -[80] Consiglieri Pedroso, _Revista de Educação e Ensino_, anno II, p. -39. - -[81] _Histoire des sciences et das savants_, pag. 18 e 20, A. de -Candolle. - -[82] Relatorio do ministro sobre a estatistica comparada do ensino -primario em França, cit. _Dictionnaire Pedagogique_. - -[83] L’Homme criminel, pag. 424, Cesar Lombroso. - -[84] _Estatistica da administração da justiça criminal_, 1878, 1879 e -1880. - -[85] Jeronymo da Cunha Pimentel, _Relatorio da Penitenciaria_, 1886. - -[86] Relatorio ácerca da casa da correcção de Lisboa--pag. 17, 1887. - -[87] Dictionnaire pedagogique. - -[88] Memoria sobre a administração da justiça criminal--por Silvestre -Pinheiro Ferreira--pag. 25, 26. - -[89] D. Antonio da Costa, _Auroras da Instrucção_, pag. 358. - -[90] _Era Nova_ (revista), n.ᵒ 12, 1881, N. A. Correia. - -[91] _La philosophie experimentale en Italie._ - -[92] _Le crime et la folie._ - -[93] A. Mosso, _La Peur_, ouvr. traduit en français par M. F. Hément, -et publié chez Alcan, 1886. - -[94] Section XIV, p. 261. - -[95] _Loc._ cit., p. 264. - -[96] Sikorski, _L’Évolution psychique de l’enfant_, Rev. phil., mars -1885, 3.ᵒ article. - - (B. PEREZ--_L’éducation morale_). - - -[97] _L’Emile_, pag. 134. - -[98] _L’Éducation populaire_, Alexis Robert, pag. 62. - -[99] _Revue Bleue_, du 23 octobre 1886, 2ᵒ article sur _la Peur_, de -Mosso, pag. 521. - -[100] James Sully, _Mind_. avril 1887. - -[101] _L’Éducation progressive_, t. I, p. 193. - -[102] Fr. Paulhan--_L’Activité mentale et les elements de l’esprit_. - -[103] _Traité de legislation_, pag. 448, t. III, Ch. Comte. - - - - -INDICE - - - I--Uma these penologica do Congresso Juridico de Lisboa. O - direito criminal italiano na escola anthropologica. A taxonomia - em psychologia morbida e em anthropologia criminal. - A divisão pedagogica da sciencia penal. 5 - - II--A liberdade moral e o determinismo. A ethica. Os criminosos - segundo os trabalhos recentes. 25 - - III--A base do direito de punir. O papel da psychopathia na - responsabilidade legal. O fanatismo, a suggestão hypnotica - e a pena capital. A influencia legitima da consciencia moral - em direito penal. 57 - - IV--A existencia congenita do sentimento religioso. A utilidade - da sua acção disciplinadora. Vantagens d’este elemento - na educação correccional. A opinião dos criminalistas italianos - e d’um notavel principe da Egreja. 99 - - V--Educação e criminalidade. Relação entre o elemento moral - e o elemento intellectual. O progresso. Buckle, Spencer e - F. Bouillier. Perigos da instrucção sem educação moral ou - religiosa. A cultura intellectual é um instrumento, que não - fórma directamente o caracter. Necessidade de fortificar o - espirito pela recta direcção do sentimento moral e dos principios - do dever. O criminalista G. Tarde e a educação litteraria - e esthetica. 117 - - VI--Os effeitos da acção educativa. A hereditariedade, o meio; - Garofalo. O gosto pelo adorno é na mulher como sustenta B. - Perez uma manifestação esthetica e nunca uma approximação - do typo criminoso. A arte e a moral. Educação physica, - a escola e a doença. 139 - - VII--Os ensinamentos e o crime. A idéa da responsabilidade - criminal na historia. O alcool perante a hygiene physica e - moral. O suicidio. Observações psychologicas em condemnados - á morte. A estatistica criminal portugueza. A educação - como elemento psychogenico e correccional. 167 - - - - -ERRATAS - - - Na pag. 58, linha 11, onde se lê--em--deve lêr-se--um. - - » » 69, linha 34, » » »--envenenados--deve - lêr-se--envenenadores. - - Na pag. 103, linha 2, onde se lê--indistinctivel--deve - lêr-se--indestructivel. - - Mais alguns se encontram, faceis de corrigir e que julgamos - desnecessario emendar. - - - - -Notas - -As erratas do livro original foram corrigidos. - -Os problemas com a pontuação e a ortografia foram corrigidos. - -*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ESTUDOS SOBRE CRIMINALIDADE E -EDUCAÇÃO *** - -Updated editions will replace the previous one--the old editions will -be renamed. - -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the -United States without permission and without paying copyright -royalties. 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Redistribution is subject to the trademark -license, especially commercial redistribution. - -START: FULL LICENSE - -THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE -PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK - -To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase "Project -Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg-tm License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. - -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project -Gutenberg-tm electronic works - -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. 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Hart was the originator of the Project -Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be -freely shared with anyone. For forty years, he produced and -distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of -volunteer support. - -Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed -editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in -the U.S. unless a copyright notice is included. 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You may copy it, give it away or re-use it under the terms -of the Project Gutenberg License included with this eBook or online -at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. 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O direito -criminal italiano na escola anthropologica. A taxonomia em psychologia -morbida e em anthropologia criminal. A divisão pedagogica da sciencia -penal</p> -</div> - - -<p>Em sessão de 1 de maio de 1889 no congresso juridico discutiu-se a -these n.ᵒ 19 que é do theor seguinte:</p> - -<p>«Em que sentido é urgente reformar os codigos penaes, na parte -relativa ás condições da responsabilidade criminal do agente do facto -incriminado e aos effeitos das circumstancias dirimentes, para que a -doutrina da lei fique de accordo com as affirmações da psychologia -contemporanea, da anthropologia criminal e da pathologia alienista, e -satisfaça ás necessidades de possivel segurança contra o crime?»</p> - -<p>É este assumpto profundamente complexo e deveras importante, porque -n’elle se encerra uma das questões mais debatidas e mais melindrosas -da psychologia humana. A these da responsabilidade é d’altissimo -valor ethico e social, porque importa o fundamento da moral e a base -do direito de punir. Todos os codigos penaes das nações civilisadas -assentam no principio da responsabilidade moral, incluindo o -proprio codigo italiano, no qual já influiram assás os trabalhos de -anthropologia criminal e de psychologia morbida. Os<span class="pagenum" id="Page_6">[Pg 6]</span> exageros d’esta -escola juridica, chamada anthropologica, são subversivos da ordem -social e attentatorios para a dignidade humana. Os seus principios -geraes quanto a irresponsabilidade não são novos; appareceram -na infancia da philosophia, envoltos de mistura com os systemas -theologicamente fatalistas, mas por fortuna nunca tiveram senão -um caracter theorico. O determinismo contemporaneo traz as mesmas -consequencias moraes e sociaes do fatalismo, mas ostenta uma fórma -de demonstração mais apparatosa e modernamente ornada com trajos -scientificos. A geração nova, durante as discussões do congresso, -mostrou-se determinista, porém as conclusões do parecer da secção penal -acceitam a responsabilidade, como se deduz do trecho seguinte:</p> - -<p>«As leis penaes devem attender, não só aos criminosos completamente -loucos, mas tambem áquelles, que, sem terem as faculdades intellectuaes -perfeitamente regulares, tambem não podem dizer-se completamente -irresponsaveis.</p> - -<p>Os criminosos completamente irresponsaveis pelo facto que practicaram, -e cuja liberdade é perigosa para a sociedade devem ser para sempre -recolhidos em um hospital ou asylo expressamente fundado para elles, -sem as formalidades do julgamento; mas depois de verificada a sua -irresponsabilidade por meio de peritos, e de ser ouvido o representante -do ministerio publico e a defeza, por despacho do juiz, do qual deve -caber sempre recurso para os tribunaes superiores.</p> - -<p>Os criminosos não completamente loucos, e portanto com mais ou menos -responsabilidade pelo crime que commetteram, deverão, depois tambem -de examinados pelos respectivos peritos, ser julgados e condemnados a -reclusão no asylo indicado por tanto tempo quanto deveria durar a pena -que lhes caberia, caso gozassem d’um funccionamento perfeito das suas -faculdades mentaes.»</p> - -<p>Nem todos os membros do congresso acharam este parecer satisfactorio, -o que motivou divergencias no seio da secção e depois na assembléa -plenaria. Um grupo de congressistas apresentou uma proposta tendente a -serem substituidas pelas seguintes, as conclusões do relatorio sobre a -these 19.ᵃ:</p> - -<p>«1.ᵃ É urgente reformar os codigos penaes, prescrevendo-se n’elles -que o delinquente affectado de doença mental, que por um processo -especial fôr julgado irresponsavel, mas perigoso, seja recolhido n’um -estabelecimento adequado por<span class="pagenum" id="Page_7">[Pg 7]</span> tempo indefinido, conforme a natureza -da sua affecção, não podendo d’elle sair sem precedencia d’um novo -processo, em que intervenham as mesmas entidades e pelo mesmo modo que -no da reclusão.</p> - -<p>2.ᵃ Para que o processo, a que deve ser submettido o delinquente -affectado ou suspeito de doença mental, offereça todas as garantias, -devem n’elle interferir, além dos juizes e representantes do ministerio -publico, peritos alienistas e os interessados pelo lado do delinquente -e da parte offendida, quando esta não possa; devendo a resolução ser -confirmada pelos tribunaes da 2.ᵃ instancia, podendo ainda levar -recurso para os tribunaes de revisão.</p> - -<p>3.ᵃ É indispensavel organizar convenientemente o serviço medico legal e -crear juizes instructores do processo.</p> - -<p>(Assignados) Jeronymo da Cunha Pimentel, Cesar Silio y Cortés, Antonio -Azevedo Castello Branco, João Jacintho Tavares de Medeiros, Caldazo -Monzano.</p> - -<p>Tem o voto dos srs. Alberto de Sousa Larcher, João A. Sousa Queiroz, A. -Arthur de Carvalho.»</p> - -<p>Houve quem sustentasse integralmente os principios classicos do direito -de punir, baseado sómente no livre arbitrio, não admittindo por tanto a -existencia de criminosos loucos nem distincção entre criminosos loucos -e criminosos meio loucos.</p> - -<p>Estes congressistas foram os srs. Pinto Coelho, Xavier Cordeiro, Torres -Campos, e dr. Avelino Calixto.</p> - -<p>O sr. Pinto Coelho formulou com grande nitidez o argumento: ou o -accusado é responsavel pelo acto que commetteu e n’essa hypothese -é um criminoso que a justiça precisa punir, ou é irresponsavel, é -louco, e então temos uma questão exclusivamente da alçada do direito -civil, que não compete ao direito penal porque não existe crime. O sr. -Pinto Coelho acceita as conclusões do parecer da commissão, todavia -não como principio novo, visto que de ha muito esse principio figura -na legislação do nosso paiz. Não crê que em sciencia juridica haja -revoluções, mas evoluções.</p> - -<p>Os srs. Antonio Azevedo Castello Branco, Jeronymo Pimentel, Osorio -Sarmento, Taladriz, combateram a existencia do livre arbitrio e -propugnaram o determinismo com os argumentos tirados da Escola -anthropologica, e negam como principio geral a responsabilidade do -delinquente. Parece que a sua doutrina consiste em estudar o crime pelo -que<span class="pagenum" id="Page_8">[Pg 8]</span> elle significa, como offensa á sociedade, e graduar a applicação -das penas conforme a gravidade da offensa, visando até a eliminação do -offensor. Como póde verificar-se em face da historia do direito penal, -esta theoria não é novissima, é velhissima.</p> - -<p>Ao mesmo tempo que parte da jurisprudencia indigena defende tal -criterio do direito de punir, o que equivale á passagem d’uma esponja -pelo que ha de mais elevadamente puro na especie humana, contradiz-se -ingenuamente, protestando contra os ataques dos que professam o -sentimento da liberdade e defendendo o principio da lei moral e os -beneficios da acção educativa e correccional.</p> - -<p>Os trabalhos de Lombroso, Garofalo, Marro, Navarra, Beltrani Scalia, -F. Puglia, Maudsley, Ch. Feré, Tarde, Adolphe Prins, as discussões -sobre o codigo penal italiano como os <i lang="it" xml:lang="it">Studi sull ultimo progetto -del nuovo codice penale italiano per Innocenzo Fanti; Les Études sur -le nouveau projet de code penal d’Italie</i>, por Victor Molinier, -chegaram ás mãos d’alguns juristas estudiosos portuguezes entre os -quaes se distingue o sr. Antonio Azevedo Castello Branco, que tem feito -uma infatigavel propaganda da anthropologia criminal italiana, cujos -primeiros symptomas já se manifestaram no congresso juridico.</p> - -<p>Muitos dos jovens bachareis recentemente saidos da nossa faculdade -juridica crêem a metaphysica um termo insultuoso, um verdadeiro doesto -philosophico; dizem-se depois da leitura d’um livro de propaganda, -adeptos calorosos da negação absoluta do livre arbitrio e das outras -conclusões exageradas da pathologia criminal. A verdadeira causa -d’esta situação mental nasce da falta de estudo psychologico e da -carencia de vigorosa disciplina no conhecimento das outras sciencias -moraes. Inclinam-se pois para a escola avançada, porque lhe dá o tom -de espiritos modernos e de audazes revolucionarios, assim como por ora -em philosophia se dizem <i>positivistas comteanos</i>, suppondo essa -escola ainda uma novidade, quando é um fossil pouco interessante na -fauna da sua epoca e já sem representantes na nossa fauna dominante. -A perissologia, com que a adornam, amesquinha-a ainda mais. Póde -applicar-se-lhe o conceito horaciano: <i lang="la" xml:lang="la">Solve senescentem</i>.</p> - -<p>O homem não é um agente moral se não for responsavel pelas suas acções, -e não é tal se não for susceptivel de obrar ou não obrar conforme a uma -regra de dever que<span class="pagenum" id="Page_9">[Pg 9]</span> está prescripta na consciencia. A possibilidade -da moralidade, depende pois da possibilidade da liberdade; porque se -o homem não é um agente livre, não é o auctor das acções que pratica, -e não tem conseguintemente responsabilidade, e nem personalidade -moral<a id="FNanchor_1" href="#Footnote_1" class="fnanchor">[1]</a>. Para demonstrar estes principios não se faz mister recorrer -á intervenção divina, basta o raciocinio operando sobre os elementos -fornecidos pela psychologia humana.</p> - -<p>O direito é um principio puramente humano, que se deduz da liberdade e -da sociabilidade, assegurando-lhe ao mesmo tempo o reconhecimento e a -protecção.</p> - -<p>As escolas philosophicas estão ainda longe d’um accordo em quanto á -determinação do fundamento, sobre o qual repousa o direito de punir. -Para uns tem origem na utilidade publica, para outros na religião, -que o considera como uma consequencia do principio de expiação, do -principio da justiça absoluta que exige a retribuição do mal pelo mal; -para outros como uma applicação do direito de legitima defeza e até -como uma fórma da caridade que pede, não o castigo, mas a emenda do -culpado.<a id="FNanchor_2" href="#Footnote_2" class="fnanchor">[2]</a></p> - -<p>Victor Hugo nos <i xml:lang="fr" lang="fr">Miseraveis</i> defende a these de que a sociedade, -sobretudo, é a responsavel pelos crimes que os seus membros -commetteram, porque tudo é fructo das instituições e das opiniões, as -quaes, para nós, representam a ordem social.</p> - -<p>Beccaria interrogou o seu espirito sobre o fundamento do direito de -punir e encontrou a base na <em>utilidade commum</em>, na necessidade -da <em>conservação social</em>, acompanhando todavia esta affirmação da -confissão formal de que era mister que o fito desejado fosse conforme -com as exigencias da lei moral. A verdade é que o direito penal é -fundado, não sobre a ordem de idéas assignaladas por Beccaria, mas -sobre a noção superior de justiça applicada pela sociedade, na medida -do que ella crê necessario para a sua conservação<a id="FNanchor_3" href="#Footnote_3" class="fnanchor">[3]</a>.</p> - -<p>Rousseau no <i>Contracto social</i> tambem sustentou que o direito de -punir saiu do direito de defeza, theoria sustentada por Locke. Todas as -theorias contemporaneas teem o seu germen na Historia da Philosophia.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_10">[Pg 10]</span></p> - -<p>No direito criminal antigo não havia distincção entre a violação das -prescripções divinas e humanas; punia-se o delicto e o peccado. A idéa -d’uma offensa contra a divindade fez surgir as primeiras leis penaes; -a idéa d’uma offensa contra o proximo fez apparecer as segundas, mas -a idéa d’uma offensa contra o Estado, ou a collecção de cidadãos não -produziu primeiro um direito criminal. Parece que esta idéa só apparece -regularmente na Grecia, e em Roma subiu até á exageração.</p> - -<p>Hoje o encargo mais difficil no juiz consiste em distinguir até que -ponto o accusado seja moralmente culpado, visto como as leis modernas -evitam as definições n’esta materia. Deixam ao jury ou ao julgador o -cuidado de decidir.<a id="FNanchor_4" href="#Footnote_4" class="fnanchor">[4]</a></p> - -<p>A interpretação da idéa de direito e a suavidade ou o rigor da pena -dependem do desenvolvimento intellectual da sociedade, posto que o -caracter do principio seja invariavel em todas as condições de tempo e -de espaço.</p> - -<p>Era legitima a pena de morte nos tempos em que a escravidão foi -considerada como uma instituição de direito geral das nações. Era -igualmente legitima nos sacrificios humanos praticados nas idades -sacerdotaes.</p> - -<p>A pena, diz Bossuet, está na ordem, porque ella mette na ordem -aquelles que se desviaram d’ella. De feito a palavra <i>delicto</i> -vem do verbo latino <i lang="la" xml:lang="la">delinquere</i> «deixar», «abandonar»; o -delicto etymologicamente é pois um desprezo da regra, ou o que é mais -expressivo uma falta contra a regra. Os codigos penaes definem delicto -em geral toda a infracção, seja de que natureza fôr, que caia sob a -alçada da lei penal.<a id="FNanchor_5" href="#Footnote_5" class="fnanchor">[5]</a> Mas não basta para justificar a intervenção da -lei penal que a acção commettida apresente os caracteres exteriores -d’um delicto; é indispensavel que o auctor a tenha commettido em plena -posse das suas faculdades intellectuaes e moraes. É o que se chama em -nomenclatura juridica imputabilidade e em ethica responsabilidade; -sem este predicado o delicto não existe; em vez d’uma acção a punir -ha uma desgraça a lamentar.<a id="FNanchor_6" href="#Footnote_6" class="fnanchor">[6]</a> É n’estas condições que o criterio da -defeza social tem o seu papel. O agente do acto é um ser irresponsavel -e perigoso para a utilidade commum? é isto que resta determinar<span class="pagenum" id="Page_11">[Pg 11]</span> com -precisão. Demonstrado scientificamente, sem hypotheses vagas, que este -individuo é um ser nocivo, uma ameaça permanente, cumpre á sociedade o -direito e o dever de sequestral-o. Todavia ninguem justamente ousará -chamar-lhe um criminoso, é apenas uma fera.</p> - -<p>A escola classica inspira-se nos principios que proclamam a dignidade -do homem e a responsabilidade do seu destino; reconhece todavia -muitos principios acceitaveis na escola utilitaria, porque ella no -seu criterio tem um mesmo dogma—o da necessidade do castigo. N’essa -ordem de idéas, rejeita, é claro, os exageros dos utilitarios ou -dos sentimentaes, que declaram todos os delinquentes enfermos e -irresponsaveis, porque seria fomentar a impunidade, e fomentar a -impunidade é o mesmo que multiplicar os crimes.</p> - -<p>O nosso distincto publicista sr. Oliveira Martins escreve:</p> - -<p>«Novos doutrinarios veem affirmar <i lang="la" xml:lang="la">ex cathedra</i>, não só que a -sociedade não tem o direito de punir, mas que o criminoso é apenas -um enfermo. Onde está o livre arbitrio? dizem. Não ha vontades -deliberadas: tudo obedece a um determinismo cego. Um é victima -do atavismo ou da hereditariedade, outro é victima do desejo, -outro da allucinação. Em vez de cadeias, hospitaes; em vez de -forca, hydrotherapia. Evidentemente, tudo é condicionado n’esta -vida de relação de que nós proprios somos apenas um aspecto; mas -evidentemente tambem sob pena de um cahos absoluto, a determinação da -responsabilidade só póde dar-se quando se formule a equação entre o -acto e o motivo determinante. N’estes termos, e só n’estes termos, a -questão metaphysica da liberdade póde trazer-se para o foro pratico da -justiça.</p> - -<p>E não ha duvida que o criterio classico está prejudicado. Se a -medicina de hoje diz que ha doentes e não doenças, tambem a justiça -deve dizer que ha criminosos e não ha crimes. Os quadros systematicos, -organisados abstractamente são tão inacceitaveis na nosologia como na -criminologia. É precisamente o que os juristas reconhecem, dando cada -vez um papel mais dicisivo ás circumstancias accessorias, attenuantes -ou aggravantes, e pondo acima do antigo mytho de Themis, cega como tudo -o que é absoluto, o juizo de facto, em que o jury procede humanamente, -isto é, inductivamente. Não póde, porém, ver-se n’isto a negação do -direito de punir—na mais lata accepção da palavra. A sociedade não se -defende apenas, nem se vinga, como nos tempos barbaros.<span class="pagenum" id="Page_12">[Pg 12]</span> A vingança -fez-se justiça. Punição traduz-se por protecção. Julgar, proteger e -castigar—eis a suprema funcção d’este ser abstracto, em cujo seio -vivemos e fóra do qual nos degradariamos regressando aos primordios -obscuros da historia. Se a sociedade não póde punir, força é que o -individuo se defenda e se vingue. E que é isto senão a volta ao talião -barbaro—exactamente á doutrina que o anarchismo prega e pratica?</p> - -<p>Ha, por tanto, acima das doutrinas desvairadas que endoidecem as plebes -fanatisadas, doutrinas inconsequentes que uma sciencia, incompleta por -ser fria e secca diariamente prega, e de cujas ultimas conclusões tira -a allucinação dos energumenos. E é por isso que a instrucção por si só -não consegue mitigar a criminalidade, embora a civilisação altere a -proporção e a natureza dos crimes.</p> - -<p>Não basta falar á intelligencia analytica, é mister comprehender a -synthese chamada povo, na sua realidade positiva, nos seus sentimentos -e nos seus instinctos de justiça; é necessario affirmar de um modo -categorico a auctoridade social e o direito de punir, para que cada -qual veja e venere sempre acima de si proprio esse outro ser maior, -mais nobre, que se chama—todos.»</p> - -<p>O criterio do direito classico não se acha prejudicado pelos ataques -das escolas contemporaneas, porque elle reconhece quando applica -justiça, como no systema da utilidade publica, acima do individuo -o respeito por esse outro ser maior, que se chama—todos. A escola -utilitaria baseando-se no determinismo defende a sociedade, mas elimina -o sentimento de justiça. Póde aspirar a defender a collectividade, -mas nunca a intimidar, a corrigir, ou a regenerar o criminoso. A idéa -do castigo, na escola classica, reclama antes da satisfação dada á -sociedade, a idéa d’uma satisfação mais pura, dada á justiça. «O -castigo, diz Kant, deve justificar-se em completo, <em>independentemente -das suas consequencias</em>, por considerações tiradas do procedimento -d’aquelle que o soffre. Nada de similhante é possivel desde que não -existe já a liberdade.</p> - -<p>O que succede então? Impellido pela fatalidade, um homem commette um -assassinio, impellida pela mesma fatalidade, a sociedade prende-o e -mata-o. Se este homem fosse o mais forte a sua resistencia á sociedade -era legitima, porque o mesmo motivo que armou a sociedade contra elle, -a necessidade de defender-se, justificava a sua rebellião.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_13">[Pg 13]</span></p> - -<p>Das duas partes o direito era egual, a justiça egual. O seu unico -prejuizo é ter sido um só contra todos. Na verdade pois não ha no -determinismo outra justificação possivel para a pena senão esta: «a -razão do mais forte é sempre a melhor.» Quanto á justiça entre agentes -moraes subsiste um conflicto brutal de forças fataes, em que o mais -poderoso esmaga o mais fraco, mas onde não ha direito em nenhum dos -lados. Se, pelo contrario, se admittir que a sociedade punindo, pratica -um acto de justiça, se quizermos, como manda Kant, que o criminoso, -em vez de se rebellar contra o mal que o fere, «confesse elle mesmo -que mereceu a sua punição, e que a sua sorte se adapta ao seu -procedimento,» é mister tambem reconhecer a existencia da liberdade.<a id="FNanchor_7" href="#Footnote_7" class="fnanchor">[7]</a></p> - -<p>Nos homens extremamente inveterados no vicio, a consciencia depois -de cançada de ultrages e de desprezos, cala-se e o sentimento moral -desapparece. O remorso extingue-se como a dôr prolongada, a liberdade -subsiste ainda, mas quasi inactiva, como a faculdade visual quando -uma espessa cataracta intercepta os raios luminosos que outr’ora -atravessavam os olhos. Este criminoso, se não é já livre em tal -estado, foi-o quando iniciou a escura senda do crime, porque todo o -acto psychologico antes de se tornar habitual foi voluntario. Esta -circumstancia justifica o cabimento da punição. Não succede o mesmo se -o delinquente é instinctivo, se a tendencia para o mal é congenita, -porque n’este caso o crime não existe. Este monstro está para o senso -moral como o cego e o surdo de nascimento estão para a luz e para -o som. Não ha pharol educativo que lhe illumine a intelligencia, -nem penitenciarias que lhe regenerem o coração adormecido. A -difficuldade está na demonstração evidente da existencia d’este <i lang="la" xml:lang="la">homo -criminalis</i>.</p> - -<p>Ha duas theses sobrepostas e contradictorias no <i lang="la" xml:lang="la">Homem -delinquente</i> de Lombroso. A primeira usada no começo dos seus -estudos—a do criminoso aproximado do selvagem primitivo, do crime -explicado pelo atavismo e pela hereditariedade; e a segunda, que na -ultima edição do livro coexiste com a primeira,—a do crime-loucura. -Ellas alternam-se na obra e pretendem reciprocamente auxiliar-se. A -contradicção todavia é obvia como lh’o demonstra Tarde e H. Joly. A -loucura é um producto da civilisação, rara nas classes indoutas<span class="pagenum" id="Page_14">[Pg 14]</span> e -quasi desconhecida entre os selvagens. Portanto, se o criminoso é um -selvagem não póde ser um louco, do mesmo modo se é um louco não póde -ser um selvagem. Das duas theorias é preciso optar por uma, a primeira -é mais seductora, mais intelligivel e mais conforme com os principios -biologicos do transformismo.<a id="FNanchor_8" href="#Footnote_8" class="fnanchor">[8]</a> Não póde negar-se o merito e o notavel -valor dos estudos da escola anthropologica italiana, que elles proprios -denominam <i lang="it" xml:lang="it">escola penal positiva</i>, especialmente no que diz -respeito ás origens do crime, aos caracteres do criminoso reincidente e -ás origens hereditarias. Estuda o delinquente como o zoologo estuda um -animal e este methodo de naturalista tem sido applicado com vantagem, -na taxonomia de Ferri, aos delinquentes da 1.ͣ categoria e aos da 4.ᵃ, -isto é aos criminosos natos e aos alienados.</p> - -<p>O alvo a que mira, nas reformas juridicas, a escola penal positiva -é substituir pela responsabilidade moral a responsabilidade social, -fundada sobre a utilidade geral. Ora as duas não formam senão uma, -porque a responsabilidade chamada social, prescripta nos codigos, -está comprehendida nos preceitos da moral. A ordem moral, como diz -Innamorati, excede mas abrange a ordem social, como um pequeno circulo -n’um circulo maior.</p> - -<p>O verdadeiro direito de punir não deve preoccupar-se com a excitação -publica, nem com a opinião: julga o criminoso em relação ao delicto -e á ordem moral e dispensa as outras considerações extranhas. Émile -Beaussire, no seu ultimo livro <i xml:lang="fr" lang="fr">Principes du droit</i>, aventa uma -concepção original e funda o direito de punir sobre o <em>dever de ser -punido</em>. É acção do moralista em toda a sua integridade.</p> - -<p>Topinard, n’um celebre artigo da <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue d’Anthropologie</i>, combateu -a hypothese de Lombroso do <i>crime atavismo</i>, assim como a do -<i>crime loucura</i>, defendendo com valiosos argumentos a hypothese -do criminoso considerado <em>profissional</em>. Feré não admitte os -typos profissionaes e combate com dialectica vigorosa a explicação -atavica do delicto, mas admitte a explicação pathologica; sem todavia -se ligar á escola d’alem dos Alpes, filia-se na escola psychopathica de -Morel. A criminalidade nativa é para elle uma fórma da degenerescencia -inferior, porque nunca se associa ao genio. Como se vê a<span class="pagenum" id="Page_15">[Pg 15]</span> criminologia -revolucionaria está ainda no periodo hypothetico da sua constituição -como sciencia.</p> - -<p>A velha affirmação de que o crime e a loucura são irmãos gemeos, tem -sido batida em brecha até ao ultimo reducto. Os loucos são seres -isolados, que vivem n’um mundo á parte. As suas concepções não teem -convivio com as concepções dos outros. É um ser accentuadamente -individual, que vive a vida interior do seu delirio.</p> - -<p>Os alienados, diz o dr. A. S. Taylor, não teem nunca cumplices nos -actos que commettem, em quanto que o criminoso é um ser sociavel -que se concerta com os outros, fazendo do latrocinio uma profissão. -As associações de malfeitores apparecem e multiplicam-se por -toda a parte. Nos actos do criminoso existe sempre no crime o -encadeamento das causas moraes, em quanto que no louco ha soluções -de continuidade inconscientes. Nenhuma pessoa familiarisada -com os estudos da psychologia morbida confunde nas suas fórmas -geraes os actos do delinquente com os actos dos epilepticos, dos -dipsomaniacos, kleptomaniacos, dos pyromaniacos e de outras fórmas -nosologico-mentaes. Se todos os criminosos fossem natos ou alienados, -isto é, irresponsaveis segundo a classificação de Ferri, o mais -suave e humanitario direito repressivo seria a eliminação; mas as -penitenciarias aspiram á correcção e á morigeração dos delinquentes, -o que implica a crença na liberdade quanto á maioria dos delictos. Em -nenhum caso todavia o nosso espirito admitte a pena de morte, só por um -motivo—é uma pena irreparavel.</p> - -<p>Ha individuos que na pratica do crime, ou sejam instinctivos ou -loucos, são destituidos por uma anomalia psychologica do sentimento -ethico-juridico. Ninguem com boas razões deixará de acceitar, que -estes anomalos, posto que extranhos á acção da justiça, devem ser -sequestrados perpetua ou temporariamente do convivio social porque são -perigosos para a segurança publica. Proclamar porém em nome de qualquer -hypothese todo o delinquente irresponsavel é uma phantasia e uma -iniquidade, que nenhum codigo positivo póde acceitar.</p> - -<p>Escreve o publicista a que já nos referimos:</p> - -<p>«Perversos são os degenerados: essa legião escura de bandidos que -acampa no seio das sociedades cultas, como as hordas de zingaros, e em -que a ferocidade das edades remotas se transmitte por atavismo ou por -hereditariedade. São esses que Lombroso, o grande naturalista do crime, -considera<span class="pagenum" id="Page_16">[Pg 16]</span> como restos miseraveis das raças mongoloides, os finnios que -ficaram esmagados sob os stratos successivos da população aryana da -Europa. N’essas tribus obscuras, envenenadas por um satanismo organico, -ha glorias e orgulhos, ha servos e patriarchas, ha dynastias e ha -heroes. O céo que nós vemos azul, vêem-no elles vermelho de sangue; -e o calor doirado do sol não lhes excita piedade, senão um borbulhar -ferino de instinctos bestiaes. De homens teem apenas o aspecto. -Barbaros, mas barbaros abastardados no meio da civilisação, perderam -a nobreza ingenita da vida natural. São os auctores dos attentados -medonhos: os parricidios (tão vulgares nas edades primitivas) os -morticinios de familias inteiras, como na tragedia de Mattos Lobo, o -assassinato a frio, como em Diogo Alves que encheu de pavores a nossa -infancia, o decepamento dos cadaveres, com os braços tintos em sangue -os olhos esgazeados, a face imberbe; a fronte achatada e na bocca um -<i lang="la" xml:lang="la">rictus</i> demoniaco.</p> - -<p>O exterminio é o unico recurso contra essa casta em que os instinctos -humanos, não podendo envolver, apodreceram. São féras; e se a -hereditariedade é, como os especialistas affirmam, um facto comprovado, -a morte é tambem sem duvida o processo mais humanitario.</p> - -<p>Mas esta cathegoria de criminosos, qualquer que seja a sua origem e o -seu recrutamento, não é decerto exclusiva, nem talvez predominante. -O grosso exercito do crime compõe-se das victimas do desejo. São os -que na ladeira escorregadia da existencia claudicaram uma vez para -se não levantar mais. É a gente faminta que diariamente accorda sem -saber a que mesa se sentar; a gente miseravel tiritando com frio nas -longas noites do inverno; são os incontinentes que o espectaculo do -bem-estar azeda; são os revoltados que no seu vicio encontram sancção -á ociosidade; são as mulheres que, sacrificada a pureza no altar de -alguma illusão afogam os filhos, ou para os sustentar se fazem ladras; -são todos os simples, desde o desgraçado que rouba um pão para matar -a fome, até ao velhaco, ladrão por habito, por arte, por vaidade ou -por capricho; desde o miseravel vestido de andrajos e analphabeto, até -ao <i>dandy</i> jogador e falsario; desde a meretriz ladra dos beccos -enlameados, até á que opera nos salões entre lustres e chrystaes. O -crime egualisa tanto como a morte.</p> - -<p>O homem é fraco, a vida é dura, a pobreza cruel e a sociedade<span class="pagenum" id="Page_17">[Pg 17]</span> -madrasta. A legião dos engeitados que toda a colonia humana expelle de -si; essa eterna léva de parias com que outr’ora se formavam Romas, eis -ahi onde se recruta a peonagem do crime. É a espuma cuspida pelas ondas -agitadas da sociedade.</p> - -<p>Todos esses que um dia escorregaram no plano inclinado da vida ao -inverso, pendem fatalmente para o inferno vermelho onde se agitam as -feras. Pela ociosidade chega-se ao roubo, pelo roubo ao assassinato. -Ha outros caminhos, mas esta é a vereda mais trilhada. O homicidio não -é para elles uma fatalidade organica, nem uma embriaguez de sangue; -é sempre uma consequencia imposta pelas circumstancias. A esta plebe -profunda, espessa, fertil, como as alluviões da Terra-Negra, é que a -sociedade, sob pena de morte, tem de applicar a charrua possante da -protecção e da caridade, para lhe dar ar, desinçando-a das grammas -parasitas. É para ahi que todas as instituições salvadoras da infancia, -todas as instituições protectoras da adolescencia: todo o amparo ás -mulheres, todo o escrupulo dos tribunaes, se hão de voltar com esse -mixto de carinho e firmeza, de integridade e amor que são o segredo da -ordem social. Porque são estes os criminosos regeneraveis.»</p> - -<p>É innegavel para estes o influxo salutar da instrucção intellectual e -moral, do ensino profissional e de todas as instituições beneficas que -possam melhorar a sua condição.</p> - -<p>Os discipulos da escola anthropologica criminal italiana pretendem já -reformar os codigos penaes quanto ás idéas e quanto á linguagem. Tudo, -em seu entender, está velho, erroneo e anachronico. É para notar, que -nem na anthropologia criminal, nem na nosologia mental ha classificação -rigorosamente scientifica dos delinquentes, nem dos alienados. As que -existem são provisorias.</p> - -<p>Estas sciencias acham-se ainda no campo do recolhimento das -investigações e da explicação hypothetica. Não se citam dois alienistas -ou dois anthropologos d’accordo no que ha de mais essencial e de mais -fundamental. Para haver sciencia é mister que se dê uma organisação -systematica de conhecimentos, tendo como condição a unidade e a -harmonia. Emquanto os productos multiplos das investigações e os -modos de ver dos escriptores, se contradizem, não temos sciencia -rigorosamente constituida, temos apenas materiaes para uma futura -synthese.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_18">[Pg 18]</span></p> - -<p>Até hoje ainda os alienistas não conseguiram elaborar uma taxonomia -verdadeiramente scientifica das doenças mentaes. O seu desiderato é -com a hypothese das localisações cerebraes, baseada na anatomia e na -psychologia morbida, organisar uma classificação que, para a escola -materialista, seja a unica scientifica. Ora o estudo funccional e -somatico do cerebro não contêm conhecimentos completos nem seguros. Das -funcções intimas cerebraes nada se conhece; mas ainda assim assentam-se -sobre ellas explicações phantasticas. As formas nosologico-psychicas -até hoje estabelecidas assentam nas observações symptomatologicas -e nos dados fornecidos pelas perturbações psychologicas. E d’estas -adopta cada medico uma differente. Confrontem-se para prova as dos -medicos allemães, francezes e inglezes. Das classificações francezas -comparem-se a de Pinel com a de Esquirol, a da commissão nomeada pelo -congresso de Antuerpia em 1885 com a de Magnan; a de Morel com a de -Ball. São por ora repartições ou arrumações contradictorias e de modo -algum classificações scientificas.</p> - -<p>Para bem evidenciar a imperfeição d’estas tentativas de classificação, -basta coteja-las com as classificações chimicas, geologicas, botanicas, -zoologicas, etc. Em anthropologia criminal não estamos a este respeito -mais adiantados, como passamos a ver.</p> - -<p>Escreve o sr. A. d’Azevedo Castello Branco:<a id="FNanchor_9" href="#Footnote_9" class="fnanchor">[9]</a></p> - -<p>«Uma das theses propostas ao 1.ᵒ congresso de anthropologia criminal -foi a seguinte: Em que cathegorias se devem dividir os delinquentes -e quaes são os caracteres essenciaes, organicos e psychicos que os -distinguem? Os egregios anthropologistas Lombroso, Marro e Ferri -apresentaram os seus relatorios, que, na essencia, são conformes no -reconhecimento de certas variedades de criminosos. A classificação -de Ferri, que é a mais desenvolvida, comprehende: 1.ᵒ O delinquente -nato ou instinctivo, que se distingue pela <em>falta congenita do -senso moral</em> e pela <em>imprevidencia</em> das consequencias das -suas acções. Os assassinos e ladrões são os typos mais communs d’esta -classe. A falta de senso moral denuncia-se pela insensibilidade -manifestada perante os soffrimentos e os damnos causados ás victimas e -perante os seus proprios soffrimentos e dos cumplices, e denuncia-se -tambem<span class="pagenum" id="Page_19">[Pg 19]</span> pelo cynismo ou apathia do criminoso no correr do processo -e nas Penitenciarias, facto que determina muitos outros symptomas -psychologicos secundarios, como a nenhuma repugnancia á ideia do -delicto e falta de remorsos depois de perpetrado. Da imprevidencia -resultam as manifestações imprudentes anteriores e posteriores ao crime -e a indifferença pelas penas comminadas na lei.—2.ᵒ O delinquente -por impeto d’uma paixão social, como o amor, a honra, etc. Este, -relativamente ao senso moral, apresenta um quadro psychologicamente -opposto ao do criminoso instinctivo. Revela imprevidencia tambem, esta, -porém, não nasce de uma falta hereditaria de senso moral, mas sim da -momentanea anesthesia d’este sentimento.—3.ᵒ O criminoso de occasião, -que é caracterisado pela <em>debilidade do senso moral</em>; mas este -pode converter-se no criminoso habitual, isto é, n’um individuo -que faz do delicto a sua industria, em consequencia da obliteração -progressiva do senso moral e das circumstancias menos favoraveis á sua -existencia.—4.ᵒ O criminoso alienado. Anthropologicamente é identico -ao delinquente-nato, como nos casos de loucura ou imbecilidade moral e -epilepsia, e n’outros casos differe, não só pela desordem intellectual, -como por muitos symptomas psychologicos. A <em>precocidade</em> e -a <em>reincidencia</em> servem para distinguir as tres primeiras -variedades. O criminoso instinctivo é sempre precoce, e pode, ou não, -reincidir consoante a duração da pena que se lhe applique. O criminoso -por habito é frequentemente precoce e reincidente chronico. Todos os -delinquentes, qualquer que seja o seu typo anthropologico, apresentam -este caracter psychologico commum:—uma anormal força impulsiva para -os actos criminosos, que provêm de uma degeneração hereditaria, ou -de uma condição psycho-pathologica successiva, ou de uma perturbação -psychica transitoria, mais ou menos violenta. Entre estes varios -typos não ha uma separação absoluta, e por consequencia existem typos -intermedios. O congresso acceitou o relatorio de Ferri nas suas -partes essenciaes, como foi declarado por Benedikt, que apresentára a -classificação seguinte: 1.ᵒ <i>o delinquente accidental</i>; 2.ᵒ <i>o -profissional</i>; 3.ᵒ <i>o delinquente por molestia, por intoxicação -temporaria ou permanente</i>; 4.ᵒ <i>os delinquentes degenerados</i>. -Esta classificação é substancialmente identica á de Ferri.»<a id="FNanchor_10" href="#Footnote_10" class="fnanchor">[10]</a></p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_20">[Pg 20]</span></p> - -<p>No <i>Anomalo, gazzetino antropologico, psychiatrico, Medico-legal</i> -do dr. Angelo Zuccarelli di Napoli, numero de abril ultimo, vem -um trecho d’uma lição de A. de Bella, illustre advogado, feita -em Nicotera no seu curso de Sociologia sobre a classificação dos -delinquentes de Cesare Lombroso. Pergunta Bella: «Os delinquentes teem -na sociedade importancia identica, igual, analoga, dissimilhante? -não, senhores. Diversas são as causas do crime e por isso a sciencia -indica uma classificação dos criminosos. Pode acceitar-se a seguinte: -a) delinquentes loucos; b) delinquentes natos, incorregiveis; c) -delinquentes habituaes; d) delinquentes por paixão; e) delinquentes -occasionaes». Tal é a norma de dividir os criminosos para a maior parte -dos anthropologos criminalistas de Italia. A estas porém, prefere -Bella outra, a qual em seu parecer tem vantagens sobre todas as que a -sciencia até hoje perfilhou. É a seguinte:</p> - -<p>«A atypia e a anomalia são no fundo sempre uma degeneração e por -isso pode haver delinquentes: a) por degeneração congenita; b) por -degeneração adquirida; c) por psychonevrose; d) por habito; e) por -semidegeneração congenita; f) por occasião.</p> - -<p>A degeneração congenita é: a) physiologica ou atavica; b) teratologica -ou atypica; c) pathologica. O atavismo é <em>prehumano ou humano</em>. -O delinquente por degeneração congenita nada deve ao ambiente, é -producto exclusivo do organismo. O ambiente influiu sobre o organismo -dos seus antepassados que lhe communicaram as proprias degenerações, -mas <em>pessoalmente sobre elle</em> o mundo externo não exerceu nenhuma -acção, porque o criminoso traz de nascença, impressos em todos os -orgãos e sobretudo no cerebro os signaes biopathologicos da sua -triste natureza. Sociologicamente distingue-se dos outros homens pela -ausencia de senso moral, anthropologicamente não lhe faltam os signaes -distinctivos. Nem todos os que carecem de senso moral podem dizer-se -delinquentes. O pae de familia, que consome na taberna o salario do -seu trabalho, deixando os filhos e a mulher desfallecendo na miseria -por não poderem satisfazer as primeiras necessidades da vida, não tem -certamente completo o senso moral, e o juiz que sem o minimo remorso, -absolva em má fé um reu ou em pessima fé condemne um innocente, -apresenta com certeza muitas deficiencias no seu <em>senso moral</em>. -Nem um nem outro podem dizer-se delinquentes, ainda<span class="pagenum" id="Page_21">[Pg 21]</span> que ambos sejam, -sem duvida, individuos um pouco degenerados e ethicamente maus; nem -aquelle nem este é juridicamente reu. No entretanto a sua degeneração -pode muito bem ser adquirida. Quando uma degeneração physiologica é -assaz manifesta ha em vez d’um delinquente no rigor da palavra um -enfermo e este pode ser um ladrão ou um incendiario, ou um homem -inclinado ao sangue e a outros crimes. Esta especie de degeneração pode -dizer-se tambem atavica, e os que a padecem em parte apresentam um ou -muitos signaes degenerativos. Se não são completamente curaveis, são -talvez susceptiveis d’alguma melhora. Porem o verdadeiro delinquente -nato anda sempre atacado de degeneração teratologica ou atypica. Não -é um homem mas um monstro e vive em absoluta pobreza de senso moral. -É incapaz de qualquer melhoramento, e a sua vida ordinaria acaba no -assassinio ou nos crimes, sem fito, sem nexo, sem attenuantes.</p> - -<p>Existe uma terceira especie de degeneração congenita—a pathologica. Os -epilepticos natos pertencem a esta cathegoria de delinquentes, e podem -curar-se por meio das suggestões hypnoticas ou com a trepanação do -craneo, do qual se extrairá um bolbo em que talvez resida a doença.<a id="FNanchor_11" href="#Footnote_11" class="fnanchor">[11]</a> -Os degenerados por atavismo podem com o tempo vir a ser n’um ambiente -enfermo, degenerados por atypia, e então tornam-se incapazes tambem de -regeneração.»</p> - -<p>Para que se estabeleça qualquer classificação scientifica, uma -das funcções indispensaveis do processo synthetico, precisa-se de -definições claras e divisões perfeitas, tanto das ideas como dos -termos. Ora a anthropologia criminal ainda está na phase descriptiva -que é a infancia da sciencia; não tem nomenclatura severa, nem -definições exactas, nem taxonomia uniformemente acceita, não passa -por emquanto d’um valioso repositorio de factos para serem depurados -no crisol da discussão e na arena da critica puramente especulactiva. -Mas pretenderem já os seus sectarios, arrebatados por conjecturas -imaginosas e seductoras, trazer estas soluções hypotheticas para -o campo pratico da reforma completa da administração da justiça, -parece-nos por ora temeridade. Certamente nenhum homem de estado, -reflectido e circumspeto, quando se trate da melindrosa e alta -funcção da justiça social, quererá, por fortuna, assumir a grave -responsabilidade de substituir o direito<span class="pagenum" id="Page_22">[Pg 22]</span> tradicional, que tem por -base a responsabilidade juridica do delinquente, pelo criterio da -vindicta publica, que é um sentimento tão mesquinho, tão ignobil, como -a vingança ou como o rancor individual nas raças civilisadas ou nas -tribus selvagens. A justiça social que deve ser a superior encarnação -da consciencia moral, acaso póde rebaixar-se, para defender a ordem -juridica, á ignominia d’uma aleivosa vingança em que são todos contra -um?</p> - -<p>É obvio, como já o affirmamos em outra parte, que admittimos o -criterio da defeza social para os homens perigosos, a quem chamamos -porem delinquentes e não culpados. Para estes exigimos da sociedade a -obrigação de trata los com piedade, mas reconhecemos-lhe o direito da -sequestração, temporaria ou perpectua, segundo a possibilidade da cura -da affecção psychopatica.</p> - -<p>Para os delinquentes communs, para os verdadeiros criminosos que estão -de posse de suas faculdades mentaes e que constituem a grande maioria, -não se deve admittir outro criterio senão o da justiça baseado na -responsabilidade moral.</p> - -<p>O principio da responsabilidade moral e penal que tem por unica base -a crença no livre arbitrio, não pode ser abalado; é dogma nascido na -consciencia, e consagrado pelo tempo e pela legislação de todos os -povos civilisados.</p> - -<p>O direito criminal moderno não deve, como até hoje, limitar-se nas -faculdades ao estudo das regras juridicas e á explicação dos artigos do -codigo. Faz-se mister introduzir no ensino as investigações recentes -da sciencia criminal e penitenciaria. Segundo Henri Joly a sciencia -criminal e penitenciaria é para o direito criminal o que a economia -politica e a sciencia financeira são para o direito civil. Adoptada a -technologia moderna, a sciencia criminal comprehenderá: a anthropologia -criminal, a psychologia criminal e a sociologia criminal.</p> - -<p>A anthropologia criminal consiste no estudo da organisação physica dos -malfeitores. A psychologia criminal é o estudo dos desvios mentaes e -affectivos que precedem o crime ou que o seguem, e que o crime suppõe -ou attrahe. A sociologia criminal trata das condições de ordem social, -isto é, das condições industriaes, religiosas, politicas que favorecem -ou enfraquecem a tendencia para o crime.</p> - -<p>Accrescenta Joly que cada uma d’estas subdivisões se soccorre dos -documentos da estatistica, e que esta, interpretada pela psychologia -individual, fornece os principaes elementos<span class="pagenum" id="Page_23">[Pg 23]</span> da psychologia social. -A psychologia social, a que a sciencia criminal se liga por laços os -mais estreitos, estuda como as paixões humanas se modificam passando da -vida individual á vida commum e o que ellas devem á acção das causas -que sobrescitam ou acalmam as necessidades das massas, á influencia das -polemicas ou propagandas que fazem e desfazem os preconceitos. Para -attingir tal resultado calcula as principaes variações dos factos que -interessam á prosperidade, á felicidade e á moralidade das nações. Nota -sobretudo as relações que estes varios graus teem entre si; procura -segundo que leis o crime parece augmentar ou diminuir nas diversas -condições em cujo meio se desinvolve a individualidade humana. Depois -esforça-se por encontrar os motivos de crença e de acção que residem -no fundo da nossa natureza; vê os effeitos que produz aqui o contagio -das idéas ou dos arrebatamentos collectivos da imaginação popular, ali -os conflictos gerados pelas invejas das classes ou pelos vicios das -instituições e das leis.</p> - -<p>Henri Joly depois d’assim delinear o horisonte d’este novo ramo de -saber define sciencia criminal e penitenciaria a sciencia das relações -que existem entre o homem criminoso e a sociedade.<a id="FNanchor_12" href="#Footnote_12" class="fnanchor">[12]</a></p> - -<p>A resolução do problema da criminalidade não póde vir da analyse -physica do exterior do delinquente, da assimetria facial, do -estrabismo, da tatuagem, da desproporção na dynomemetria e no calor, -do prognatismo, e d’outras anomalias somaticas. Estes materiaes -terão valor como elemento indirectamente subsidiario para o estudo -da natureza psychica, da sua forma e da sua evolução, mas a luz hade -nascer do conhecimento dos phenomenos da consciencia e dos factos -externos e internos que sobre ella actuam.</p> - -<p>Lilienfeld provou que o desinvolvimento do individuo reproduz -psychologicamente as phases do desinvolvimento da especie. Estudar -cuidadosamente o individuo na sua evolução psychologica, desde o berço -ao tumulo, e analysar a nossa especie nas diversas phases de vida, é -tarefa de cuja execução depende, a nosso ver, a resolução do problema -da criminalidade. E n’esta difficil tarefa a quem cabe o maior quinhão -é ao psychologo.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_24">[Pg 24]</span></p> - - -<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_1" href="#FNanchor_1" class="label">[1]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">La Philosophie de Hamilton</i>, pag. 538, por J. Stuart -Mill.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_2" href="#FNanchor_2" class="label">[2]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Philosophie du Droit Pénal</i>, pag. 11, Ad. Franck.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_3" href="#FNanchor_3" class="label">[3]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Beccaria et le Droit Pénal</i>, par Cesar Cantu. -Introduction. 1885.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_4" href="#FNanchor_4" class="label">[4]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Ancien Droit</i>, Henry Summer Maine.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_5" href="#FNanchor_5" class="label">[5]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Les délits et les peines</i>, Emile Acollas.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_6" href="#FNanchor_6" class="label">[6]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Philosophie du Droit pénal</i>, pag. 157, Ad. Franck.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_7" href="#FNanchor_7" class="label">[7]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Leçons de Philosophie</i>, E. Rabier.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_8" href="#FNanchor_8" class="label">[8]</a> La criminalité comparée par G. Tarde.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_9" href="#FNanchor_9" class="label">[9]</a> <i>Estudos Penitenciarios e Criminaes</i>, pag. 117.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_10" href="#FNanchor_10" class="label">[10]</a> Esta classificação não está ao abrigo da critica, como o -demonstra n’uma discussão sensata e profunda H. Joly, <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, -pag. 62.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_11" href="#FNanchor_11" class="label">[11]</a> Achamos verdadeiramente extraordinario!</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_12" href="#FNanchor_12" class="label">[12]</a> Estas indicações sobre a divisão e papel da sciencia, -são tiradas da oração de abertura de H. Joly nas suas licções de -sciencia criminal e penitenciaria, curso recentemente creado. <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue -Internationale de L’Enseignement</i>, 15 mai, 1889.</p> - -</div> -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_25">[Pg 25]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="II">II</h2> -</div> - -<p class="section">A liberdade moral e o determinismo. A ethica. Os criminosos segundo os -trabalhos recentes</p> - -<div class="blockquot"> - -<p xml:lang="fr" lang="fr">La liberté du franc arbitre est si grande en moi, que je ne conçois -point l’idée d’aucune autre plus ample ni plus étendue.</p> - -<p class="right"> -DESCARTES.<br /> -</p> -</div> - -<div class="blockquot"> - -<p>...Il est prouvé, que les «moindres forces» introduites, troublant -des états d’équilibre, out le pouvoir de produire les révolutions -mécaniques les plus considérables. Il se peut donc qu’une place -demeure toujours pour les effets matériels de la liberté, dans un -organisme donné, et de lá dans le monde. Le contraire n’est pas et -ne deviendra jamais demonstrable. (Esquisse d’une classification -systèmatique des doctrines philosophiques, pag. 289, tome 1.ᵒ)</p> - -<p class="right"> -CH. RENOUVIER.<br /> -</p> -</div> - - -<p>Toda a philosophia procura a explicação do universo e n’esse intento -precisa achar um elemento irreductivel, necessario, que nos certifique -da existencia da harmonia entre o mundo subjectivo e o objectivo. Para -o monismo materialista este elemento é a materia, que abrange toda -a extensão das experiencias realisadas. É claro que tal elemento se -considera absoluto porque d’outro modo fôra reductivel, o que seria -contradictorio. O materialismo arvora-se pois n’uma das concepções -metaphysicas mais antigas e mais grosseiras. Confunde todos os seres -em um só, a materia, mas sobre a sua natureza nada nos diz; limita-se -a affirmar com o vulgo<span class="pagenum" id="Page_26">[Pg 26]</span> que é o que se vê, o que se apalpa, o que cae -debaixo dos sentidos. O typo do conhecimento para o materialista é -a percepção externa.—A experiencia verifica que não ha creação nem -desapparecimento da materia, que ha só transformação de phenomenos. -A substancia permanente é activa, tem as suas leis; é uma força. A -materia identifica-se com a força. As manifestações d’esta força -constituem todos os phenomenos do universo.—A contradicção é -flagrante, como hade conhecer a idéa de força uma philosophia, que tem -por unica origem de conhecimentos os sentidos?</p> - -<p>Pela observação dos factos physicos, em que é obvio o principio da -conservação da força, o materialista generalisou este principio a toda -a forma de existencia. Ora exactamente o que resta provar é se toda a -cathegoria de existencia se reduz a uma força physica.</p> - -<p>Metaphysica monista muito mais elevada, mais concludente e mais logica -é o idealismo. Spencer, mecanista mais subtil que os defensores do -materialismo vulgar, acceita a correlação entre os objectos e a -representação psychica, mas entende que esta correlação não pode -dar-nos senão symbolos da realidade, isto é, imagens imperfeitas das -cousas. Na sua theoria do symbolismo Spencer aproxima-se do idealismo, -posto que se mantenha mecanista. Entretanto e conseguintemente a -doutrina que elle perfilha merece o qualificativo de determinista; -porque a evolução, como necessaria, torna-se independente da liberdade. -Todavia, quanto á evolução sociologica o sabio inglez tenta provar que -a liberdade individual é compativel com a necessidade historica. N’este -ponto apropinqua-se do <i>neocriticismo</i>.</p> - -<p>A evolução universal mecanista, não a teleologica, destroe o livre -arbitrio. É este um dos caracteres que a separam da lei do progresso. -Segundo Proudhon e segundo os philosophos classicos o progresso não -existe sem a liberdade. N’esta doutrina a aspiração crescente da -especie humana para uma maior elevação intellectual e moral, determina -a desenvolução social, objecto da historia, a qual é a realisação -progressiva da liberdade na humanidade. Quem governa o homem é a lei -do dever, augusta divisa, impressa na consciencia; quem o dirige é o -ideal, concepção intellectual, ligada pelo sentimento á acção imperiosa -e decisiva da vontade.</p> - -<p>Os deterministas modernos ligam-se á metaphysica fatalista e á -theologia, identificando como Leibnitz a força com<span class="pagenum" id="Page_27">[Pg 27]</span> a propria -existencia e considerando as substancias como outras tantas forças -cuja acção se exerce unica e precisamente no meio dos proprios entes -a que pertencem. A vida psychica segundo o systema da <i>harmonia -prestabelecida</i> não passa d’uma monada isolada em si mesma, no seio -da qual se fazem reflectir todas as modalidades da existencia.</p> - -<p>O determinismo moderno prende-se com a metaphysica e com o fatalismo -pagão e mussulmano, mas colloca-se ao lado da doutrina theologica da -predestinação e do dogma da graça invencivel. O determinista está ao -lado de Luthero contra Erasmo, de Calvino contra Servet, da tyrannia -contra a independencia, da fatalidade contra a liberdade. Da crença no -destino cego dos deuses passou o fatalismo para a crença nas forças -cegas da natureza.</p> - -<p>O fim supremo da metaphysica consiste em achar a origem unica da -torrente eterna dos factos, do mar infinito das cousas, o que é -inattingivel nos limites da sciencia positiva.</p> - -<p>Os physicos e os naturalistas concebem um ser substancial ou phenomenal -que não pode subtrahir-se ao determinismo da mecanica. Extranhos pela -maior parte aos processos de observação psychologica, não penetram -na essencia da força, medem-na pelas suas manifestações. Na volição -consideram os motivos como forças e não como condições e influencias, o -que os leva em consequencia do seu monismo á negação da liberdade.</p> - -<p>A força é um dos termos mais metaphysicos, mais mysteriosos e mais -difficilmente comprehensiveis da linguagem humana. Por ella exprimem -a idéa do absoluto materialistas e positivistas. Na nomenclatura das -escolas metaphysicas do materialismo esta idea é o principio universal -de toda a existencia. Alguns moralistas e sociologos sustentam, que -tanto nos individuos como nos povos, a força é a expressão do bem e -a fraqueza a companheira do mal. Nos individuos o excesso de força -na lucta pode gerar a crueldade; nos povos gera ás vezes a perfidia. -Segundo uma philosophia theologicamente fatalista a força será uma -manifestação da vontade divina e resistir lhe fôra para os seus crentes -uma verdadeira impiedade. No mundo ethico, de uma phase já progressiva, -a força é filha de Themis, encarnação da justiça e irmã da deusa da -temperança. No mundo social rudimentar a força considera-se a primeira -virtude do chefe; estabelece-se, como caracteristica ainda hoje, que -a força e o<span class="pagenum" id="Page_28">[Pg 28]</span> costume regulavam a sociedade antiga e que as leis e os -principios regulam a sociedade moderna, mas na essencia este progresso -resulta sempre da interpretação multiforme da idea de força. Na região -do amor o aguilhão genesico desperta o culto da força e do amor. Nas -cosmogonias primitivas a força identifica-se com a virtude; outras -vezes toma a forma dualista que n’uns phenomenos symbolisa o bem e -n’outros o mal. A vida theogonica das primitivas religiões encerra-se -n’esta formidavel lucta.</p> - -<p>Em toda a evolução religiosa a força recebeu culto da alma humana, -diversamente symbolisado no feiticismo, no pantheismo, no polytheismo e -no proprio monothesmo que faz da unidade a sua expressão.</p> - -<p>O systema do determinismo mecanista fundado na necessidade continua do -movimento allia-se por um lado ao materialismo de Democrito e de Th. -Hobbes, por outro ao pantheismo e idealismo, de Spinosa e de Leibnitz. -Como se vê, esta concepção determinista é um dos aspectos menos -elevados da metaphysica.</p> - -<p>Causa grande extranheza que penologos e philosophos positivistas -alcunhem desdenhosamente de metaphysica a doutrina do <i>livre -arbitrio</i>, quando esta doutrina é na philosophia moderna defendida -pelos geniaes demolidores da metaphysica. Quem, fazendo a analyse -profunda do entendimento humano, examinando com raciocinio subtil -as condições do conhecimento, vendo por todos os aspectos a idea -do absoluto, demonstrou a impossibilidade da metaphysica como -sciencia? Foram Kant, W. Hamilton e Mansel, exactamente os grandes -pensadores que, ao lado d’outros, defendem como realidade positiva -e evidente a iniciativa propria ou livre arbitrio. Quaes são pois, -os metaphysico-determinista por herança e por systema? São Augusto -Comte e os criminalistas modernos. Dizemos por herança porque seguem -evolutivamente os metaphysicos fatalistas, e por systema, porque são -uns dogmatistas, que affirmam com o empirismo a fé no conhecimento -objectivo das cousas sem fazerem previamente a analyse logica das -condições possiveis do saber, dos seus lemites e do seu alcance. A esta -analyse procederam Kant, o maior pensador dos tempos modernos, e os -dois maiores logicos da Inglaterra W. Hamilton e o illustre Mansel.</p> - -<p>Augusto Comte affirmando que a metaphysica é uma chimera sem o -demonstrar ontologica, nem logicamente, limitando-se<span class="pagenum" id="Page_29">[Pg 29]</span> a affirmar que os -systemas existentes são contradictorios, o que não constitue argumento -valioso, porque ha possibilidade de chegarem a um accordo, não póde -de modo nenhum conceder-se-lhe as honras de eversor da metaphysica. -Além de tudo faz liga intima com o materialismo, systema metaphysico, -construindo uma ontologia <i lang="la" xml:lang="la">a posteriori</i>, baseada sobre as -sciencias particulares. Não offerece duvida que o ensaio de synthese e -de explicação universal das cousas tentado por Comte é uma metaphysica -empirista tão illegitima em face da critica, como qualquer metaphysica -racional. O verdadeiro e intrepido demolidor da metaphysica foi Manuel -Kant, como diz Alfredo Weber.</p> - -<p>Kant demonstrou pela analyse da intelligencia na critica da <i>razão -pura</i> a impossibilidade de conhecer nada absolutamente e fundou a -doutrina da relatividade do conhecimento ou relativismo subjectivo, -hoje amplamente desenvolvida pelos logicos inglezes, e aproveitada pelo -positivismo.</p> - -<p>A philosophia <i>neo kantiana</i> defendendo a liberdade e a -personalidade proclama todavia a unidade harmonica e systematica do -mundo cosmico e da natureza moral. Esta doutrina tem sido avivada na -Allemanha por Eugenio Dühring, Ernesto Laas, Kirchmann, Alberto Lange, -em França por Ch. Renouvier, Scherer, Lachelier, Liard, etc.</p> - -<p>Ainda que Comte com o seu systema não fizesse mais, como sustentam -alguns philosophos, do que um dogmatismo metaphysico, renunciando á -critica, a nossa admiração pelo eminente pensador mantem-se intemerata -e firme. Não deverão prestar-lhe a mesma homenagem os criminalistas -contemporaneos, porque suppõem a metaphysica um monstro horrendo. Nós -obedecendo á doutrina do <i>neo-criticismo</i> julgamos as concepções -metaphysicas extranhas ao dominio restricto da sciencia positiva, -mas entendemos que a especulação na sua esphera de actividade se faz -tão legitima, tão interessante e tão digna de ser cultivada como a -concepção esthetica ou como a concepção religiosa. Não temos por ella -nem odio, nem desprezo; pelo contrario, temos até veneração. A sciencia -não deve fechar-se nos preconceitos de systema, procura a verdade pelos -caminhos onde póde encontra-la.</p> - -<p>É á psychologia experimental e á observação positiva da consciencia, -que os philosophos partidarios do livre arbitrio, vão procurar a idea -da liberdade e os argumentos para a sua demonstração, em quanto os -deterministas negam a liberdade,<span class="pagenum" id="Page_30">[Pg 30]</span> subordinando todos os phenomenos -noologicos a systemas metaphysicos, quer da cosmologia racional, -isto é, da materia, do movimento ou da força; quer da metaphysica -do absoluto, ou da theologia racional, como muitos theologos tambem -pensam. A doutrina da liberdade é scientifica, emquanto a concepção -fatalista ou determinista é metaphysica.<a id="FNanchor_13" href="#Footnote_13" class="fnanchor">[13]</a></p> - -<p>Os escriptores criminalistas portuguezes confundem a liberdade absoluta -com o livre arbitrio, a liberdade de indifferença com a verdadeira -liberdade moral. Escreve o sr. Julio de Mattos:</p> - -<p>«Mas, para que as conclusões da nova escóla penetrem nos espiritos e -fructifiquem praticamente, é indispensavel desfazer de uma vez para -sempre a miragem da absoluta liberdade psychologica, diffundindo -largamente a doutrina determinista. O livre arbitrio—eis o inimigo! -Destruil-o, espurgal-o da consciencia, eliminal-o da educação, banil-o -dos diccionarios, enterral-o fundo na historia dos erros humanos e -pôr-lhe em cima uma lousa de esquecimento bem pezada e bem impenetravel -é a primeira de todas as tarefas a cumprir para assegurar o exito -de qualquer doutrina séria nos dominios assim da psychologia como -das sciencias sociaes. Ora, o auctor tocou muito ao de leve este -ponto capital sobre que, a meu vêr, deveria ter-se demorado, pondo -em evidencia que a <em>noção da responsabilidade não se comprehende -fóra da doutrina determinista</em> e que a pena, applicada como meio -de correcção, suppõe da parte do <em>criminoso a possibilidade de -obedecer a motivos d’ordem moral, o que é contrario á idéa do livre -arbitro</em>. A punição, como meio correctivo, só pode applicar se ao -delinquente fortuito ou de occasião; imposta aos criminosos alienados é -um não-senso.»</p> - -<p>N’este trecho faz-se necessario distinguir duas partes: a primeira é -a declamação trivial contra o livre arbitrio, declamação impropria do -talento do sr. Julio de Mattos. A doutrina do livre arbitrio em nenhum -modo póde prejudicar a constituição da psychologia ou das sciencias -sociaes. Suppondo,<span class="pagenum" id="Page_31">[Pg 31]</span> sem todavia o conceder, que esta doutrina seja uma -ficção ou miragem, ainda assim ella torna-se inoffensiva sob o ponto de -vista de que se trata, porque a conciliação da liberdade individual com -a necessidade historica ou social é um facto demonstrado por diversos -psychologos e sociologos. A segunda parte é a confusão inacceitavel da -liberdade de indifferença, a que o sr. Julio de Mattos chama liberdade -absoluta, com a doutrina do livre arbitrio, ou de posse de iniciativa -propria e antecedida por motivos. Hoje nenhum partidario do livre -arbitrio defende a liberdade de indifferença, porque essa doutrina -importa a negação da propria liberdade. Se tal concepção philosophica -tem partidarios, esses devem ser os fatalistas ou deterministas, unicos -a quem aproveita.</p> - -<p>O que affirma a liberdade da indifferença? que a vontade actua sem -motivos. Esta doutrina partilhada por Bossuet, Fenelon, Reid e -Clarke, não conta proselytos nas escolas actuaes. O acto sem movel, -sem causa antecedente a que se ligue, não é uma resolução, é um -phenomeno reflexo ou instinctivo. Os que defendem a liberdade na -psychologia moderna, sustentam que os motivos dirigem em todos os -casos a vontade, que actuam em todo o phenomeno volitivo, mas não o -determinam; a determinação em todas as resoluções depende da autonomia -da consciencia. A intelligencia peza os moveis, analysa os motivos, mas -só a vontade tem o poder inviolavel e discricionario de resolver-se.</p> - -<p>O determinista affirma, pelo contrario, que os motivos imperam -fatalmente sobre a vontade, sendo o homem o escravo do motivo mais -forte pelo que a resolução não existe. Logo o homem não é livre quando -obedece ao dever e a bondade das acções conseguintemente reduz-se a -um producto sem valor moral. N’esta hypothese a justiça arvora-se em -vingança social.</p> - -<p>O sr. Julio de Mattos diz que «a noção de responsabilidade não -se comprehende fóra da doutrina determinista» mas a verdade está -exactamente no contrario. Para os deterministas a vontade é o effeito -da causalidade personificada no motivo; por tanto o homem aqui não -passa do joguete de forças extranhas.</p> - -<p>Na doutrina do livre arbitrio, a vontade constitue a causa unica das -nossas acções. Os motivos são apenas a condição para o exercicio da -causalidade.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_32">[Pg 32]</span></p> - -<p>O mais simples e o mais commodo para os penologos revolucionarios, nas -questões da base do direito de punir é julgar <i lang="la" xml:lang="la">a priori</i> todos -os delinquentes irresponsaveis em nome da negação do livre arbitrio, -como diz com superior ironia e admiravel bom senso o dr. A. Riant<a id="FNanchor_14" href="#Footnote_14" class="fnanchor">[14]</a> -que possue além da auctoridade do seu talento e do seu saber, a de -ser ao mesmo tempo um medico eminente e um jurisconsulto distincto. -Parece extraordinario que a escola determinista, que deve acceitar como -consequencia, logicamente necessaria, a irresponsabilidade, queira -estabelecer cathegorias de irresponsaveis.</p> - -<p>O principio unico em que pode assentar a responsabilidade, moralidade e -a justiça é o livre arbitrio; regeitada a doutrina do livre arbitrio ou -da liberdade, todos estes sentimentos e todas estas ideas desapparecem, -e subsiste, como unica base do direito repressivo não a justiça, mas -a defeza social. Taes theorias já são um elemento perturbador na -administração da justiça, porque o advogado rabula, sabendo que os -codigos assentam sobre a responsabilidade, aproveita qualquer tara -psychopatica do reu para lhe negar a imputabilidade.</p> - -<p>No prefacio escripto por Ch. Letourneau, na versão franceza do livro de -Lombroso <i>O homem delinquente</i>, lê-se o seguinte:</p> - -<p>«Os nossos criminalistas <i xml:lang="fr" lang="fr">enragés</i>, os nossos legisladores -inexperientes, para quem o castigo do criminoso é uma reprezalia, uma -vingança social, todos esses espiritos acanhados e levianos, a quem -se deve repetir sem cessar a expressão de Quételet—que a sociedade é -quem prepara os crimes, todos esses pilotos cegos dos estados modernos, -para quem o homem não é susceptivel de modificação, que no logar da -utilidade social collocam a sentimentalidade e a rotina, poderiam vêr -o que na penitenciaria de Neuchâtel se obtém pelo systema tão humano e -tão scientifico de W. Crofton. Ali, em vez de considerarem o condemnado -como um réprobo, applicam-se em despertar-lhe a esperança no coração, -a provar-lhe que nenhum sentimento de colera, nem de odio, se nutre -contra elle, a persuadil o, emfim, que elle é, n’uma larga acepção, -o arbitro da sua sorte. Tratam-n’o, não como a um monstro que deve -soffrer e expiar, mas como um doente,<span class="pagenum" id="Page_33">[Pg 33]</span> como um amigo transviado, a quem -se busca chamar ao bom caminho. Instruem-n’o, educam-n’o moralmente, -dão-lhe uma profissão, fazem-n’o passar gradualmente da prisão cellular -á libertação condicional, com bemfazeja vigilancia. N’uma palavra, -faz-se d’elle um homem. Ha apenas uma differença: é que para tal tarefa -são indispensaveis philantropos esclarecidos, e é mais commodo ter -apenas carcereiros.»<a id="FNanchor_15" href="#Footnote_15" class="fnanchor">[15]</a></p> - -<p>N’esta pequena amostra acotovelam-se as contradicções e evidenceia-se -a ausencia de disciplina philosophica. Primeiro diz-se discipulo de -Quételét e de Victor Hugo, asseverando que a sociedade prepara os -crimes, e pouco depois affirma que o criminoso é n’uma ampla acepção -o arbitro da sua sorte. A contradicção sobe de grau, sabendo-se que o -dr. Letourneau professa o determinismo materialista, e n’este prefacio -advoga um sentimentalismo quasi mystico em favor do delinquente.</p> - -<p>No seu livro <i xml:lang="fr" lang="fr">Physiologie des passions</i>, pag. 389, diz elle que -é mister «bater em brecha a fortaleza gothica do livre arbitrio» e -que a feição do caracter e a violencia das inclinações dependem só da -organisação physiologica e do temperamento do individuo. Appella para -a craniologia e despreza a observação scientifica; prefere a hypothese -materialista á luz fiel da observação introspectiva e da experiencia.</p> - -<p>A solução do problema da liberdade está para os metaphysicos fatalistas -subordinada a outras questões metaphysicas; assim o materialismo nega -a liberdade em nome d’uma lei mecanica universal que rege igualmente -o mundo cosmico e o mundo psychologico. Os que defendem a doutrina do -livre arbitrio devem considerar suspeitas todas as escolas metaphysicas -tendo o cuidado de encerrar as suas demonstrações dentro da sciencia -positiva.</p> - -<p>O fatalismo chamado das <i>cousas occasionaes</i> propagado por -Mallebranche attribue a Deus a causa unica de todos os effeitos sendo -os motivos somente as occasiões para a realisação da causalidade -theologica. A intervenção de Deus é continua no exercicio da actividade -psychologica sobre o organismo e d’este sobre os phenomenos de -consciencia.</p> - -<p>Os fatalistas modernos apoiados na physica <i lang="la" xml:lang="la">a priori</i> de<span class="pagenum" id="Page_34">[Pg 34]</span> -Descartes, renovada e generalisada pelo principio da conservação -da energia, hypothese hoje admittida no dominio das sciencias -cosmologicas, proclamam um determinismo mecanico universal. O -determinismo de Mallebranche inspira-se n’um principio providencial, -em quanto o dos mecanistas n’uma força cega, occulta na substancia -cosmica. O primeiro é mais elevado, mas as consequencias são em ambos -igualmente funestas.</p> - -<p>A liberdade é o poder de querer actos motivados, encadeados ao estado -presente do nosso entendimento e da nossa sensibilidade. Toda a -resolução tem a sua causa em phenomenos que a precederam. A liberdade -tendo todavia condições e possuindo graus d’ordem sensivel, mental e -ethologica, permanece sempre a faculdade de praticar ou não praticar um -acto e ainda depois de praticado fica a idéa da possibilidade em ter -praticado o contrario. O caracter não explica absolutamente as acções, -como pretende, por um circulo vicioso, o determinismo physiologico, -porque a energia de vontade modifica e transforma a seu talante o -proprio caracter, e até o meio social.</p> - -<p>O homem attribue á fatalidade os seus revezes e nunca lhe attribue -a sua fortuna. Assim o criminoso, o negligente, o insufficiente de -vontade desculpa o seu crime, a sua pobreza, a sua desgraça, com -a fatalidade, a sorte ou o destino, emquanto o homem trabalhador, -diligente e prospero attribue a sua fortuna, o seu bem estar social, -á energia da sua vontade. A mulher que desceu á escravidão a mais -aviltante, o homem que jaz no carcere expiando os seus crimes, quando -interrogados respondem ambos, que foi a sua sorte. Ao contrario, o -homem que de berço humilde sobe ás altas funcções sociaes, que da -escassez chegou á riqueza, affirma que deve esse melhoramento de -situação á constancia no trabalho e á rectidão do seu proceder que lhe -grangeou honra, fazenda e credito. Póde pois dizer-se que o fatalismo -vulgar é a trincheira covarde onde se escondem os ignorantes, os -preguiçosos e os maus. Para as pessoas illustradas e boas o fatalismo -philosophico é uma concepção theorica, que não influe nas relações da -vida pratica. O procedimento d’esses sectarios está sempre d’accordo -com a dignidade humana, sentimento que tem por base o livre arbitrio.</p> - -<p>O espirito possue a consciencia da sua força volitiva deante da -influencia do meio e do incitamento do desejo; reconhece<span class="pagenum" id="Page_35">[Pg 35]</span> que da -sua actividade e da sua liberdade resulta o altivo sentimento da -sua personalidade. A crença na liberdade é para nós d’uma evidencia -intuitiva no dominio da psychologia; só uma metaphysica bastarda poderá -sophismar tão luminosa verdade. Sem o poder de iniciativa quanto ás -proprias determinações o homem seria um automato cogitante e sensivel, -igual em cathegoria ás alimarias, incapaz de merito ou demerito, e -nivelaria a honestidade com a vileza. A ordem ethologica desappareceria -e a ordem social seria defendida pela cega vingança. Não mais justiça; -o louvor fôra tão digno como o vituperio; no pleito social venceria o -mais forte.</p> - -<p>Quem consultar sem preconceitos metaphysicos a sua consciencia concebe -por intuição a possibilidade de adoptar um motivo contrario áquelle que -resolveu seguir, e que o poder d’esta determinação reside n’uma força -irresistivel interna. É evidente que a determinação póde subsistir sem -prejuizo de qualquer coacção externa em contrario.</p> - -<p>Alfredo Weber o distincto professor da universidade de Strasburgo, no -prefacio da 4.ᵃ edição da sua <i>Historia da philosophia europea</i>, -sem duvida a condensação mais limpida e mais brilhante que modernamente -se tem feito da desenvolução do pensamento humano, escreveu: «Estamos -persuadidos que o crer não é somente a essencia da alma, mas a essencia -universal. A nossos olhos o monismo da vontade é o pensamento intimo -de Kant, a linha de união da sua critica e da sua moral, o unico -systema que possa explicar simultaneamente a natureza e o phenomeno -moral, o unico emfim que possa satisfazer ao mesmo tempo o pensamento -especulativo e o espirito de observação: porque a suprema necessidade -da rasão é a <em>unidade</em>, e o unico caracter commum á materia e ao -espirito, o unico denominador commum ao qual seja possivel reduzi-los, -é o esforço, isto é a vontade. Um esforço de expansão, eis a materia, -um esforço de concentração eis o espirito... Qualquer que seja a parte -do anthropomorphismo no vocabulario da moral kantiana, é mister convir -que esta forma é imperativa, que no fundo do nosso querer-viver ha como -uma reservada esperança, e alem da nossa vontade individual como uma -vontade mais elevada e mais excellente que tende para o ideal (<i lang="de" xml:lang="de">Wille -zum Guten</i>).»</p> - -<p>É evidente que não acceitamos a vontade pura, de Schopenhauer, -inspirada no buddhismo, um dos lados da sua metaphisica, mas acceitamos -o outro aspecto porque elle considera<span class="pagenum" id="Page_36">[Pg 36]</span> a vontade, ligada ao phenomeno -intellectual—é o livre arbitrio.</p> - -<p>O saber comprehende duas partes: uma regulada pelas leis da natureza -que se desenvolve por evolução, em virtude d’um determinismo universal: -a outra com a consciencia por ponto de partida, que architecta um -universo segundo as suas formas e as suas leis. A primeira abrange o -mundo material, a segunda refere-se ao mundo moral.</p> - -<p>Parece-nos que posta a questão em evidencia como a apresenta a -philosophia neo-critica o problema da liberdade está resolvido -triumphantemente em face da sciencia. Pode a metaphysica do -determinismo monista reduzir o homem a um automato espiritual ou -material que a psychologia considerada como sciencia positiva -continuará a asseverar em nome da sciencia e dos seus direitos -imprescriptiveis a autonomia da consciencia do <em>eu</em> como centro -commum de iniciativa, de acção e de potencia. Apresentado assim o -problema dispensam-se os notaveis esforços de dialectica empregados por -Alfredo Fouillée no intuito de conciliar o determinismo com a doutrina -da liberdade, dois systemas contendores em cuja lucta recente elle vê -já uma directriz para a convergencia.</p> - -<p>O que se faz mister é destruir a lenda dos criminalistas extranhos á -alta cultura philosophica, os quaes propagam que o determinismo se -inclue no saber positivo emquanto o livre arbitrio não passa d’uma -concepção metaphysica.</p> - -<p>Nenhum dos argumentos apresentados em favor da liberdade moral -tem o valor logico do que nos é dado pelo testemunho immediato da -consciencia. Cada um de nós, ao consultar-se, sente-se livre, e -este sentimento é inaccessivel a toda a duvida, porque a certeza da -consciencia é absoluta. Quem delibera não assiste á lucta dos motivos -como simples espectador, sente que a decisão final reside intemerata em -seu poder.</p> - -<p>As leis sociaes seriam inuteis e absurdas se o homem carecesse da -possibilidade de lhes obedecer; mas respondem os deterministas que -as leis são tambem motivos influentes sobre a vontade humana pelo -receio dos castigos. Todavia, esses mesmos castigos applicados em -nome da justiça provam a liberdade. Onde estaria a justiça das penas -inflingidas pelos tribunaes, se os reus não houvessem a faculdade de -evitar o crime?</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_37">[Pg 37]</span></p> - -<p>Castigam-se os criminosos, respondem os deterministas, para correcção, -intimidação e defeza. Mas se o accusado não fôr livre, a pena é iniqua, -e a justiça quer que a pena seja merecida, e só n’este caso a sociedade -está auctorisada a punir. A justiça assim satisfeita, corrige, intimida -e defende simultaneamente a sociedade. Para os irresponsaveis não ha -justiça, ha a protecção ao mesmo tempo defensora da sociedade ou póde -haver a eliminação.</p> - -<p>O fundamento do direito de punir tem atravessado differentes phases -na evolução juridica dos diversos povos. A vingança é um sentimento -natural, instinctivo, nascido para nos fazer respeitar uns aos -outros, e segundo lord Kaimes e Luden a sociedade quando pune não -faz senão dirigir este instincto contra o verdadeiro culpado. Eis -a primeira theoria—a da <em>vingança</em>.<a id="FNanchor_16" href="#Footnote_16" class="fnanchor">[16]</a> Originariamente -nas sociedades rudimentares assim foi, e confundem ainda hoje os -criminalistas-utilitarios esta vingança, convertida em utilidade -social, com o direito. Das theorias penaes baseadas no sentimento e não -na idea de justiça dimanam as concepções da prevenção, da intimidação, -da advertencia, da emenda do culpado, as quaes teem aspectos -aproveitaveis para o melhoramento social, mas nenhuma d’ellas encerra -o legitimo principio do direito de punir:—a remuneração da justiça. -O principio do direito de punir não pode ser puramente correctivo ou -preventivo. Escreveu Romagnosi, citado por Ortolan, «se depois do -primeiro delicto houvesse a certeza que se não succedia nenhum outro a -sociedade não teria nenhum direito de punir.»</p> - -<p>As desastrosas consequencias do materialismo determinista expulsam -da sociedade o sentimento da justiça e substituem-no pelo principio -da defeza social. O materialismo em psychologia nem chega a ser uma -theoria, é uma deserção do criterio scientifico. Onde podia ter uma -apparencia, ainda que grosseira, de systema scientifico, era no mundo -biologico ora o grande mestre Claude Bernarde disse que «em physologia -o materialismo não conduz a nada e nada explica.»<a id="FNanchor_17" href="#Footnote_17" class="fnanchor">[17]</a></p> - -<p>Julgar todos os delinquentes perigosos, supposto não culpados, e -puni-los em nome da defeza social, é suspender as garantias individuaes -e promulgar leis em nome da salvação publica.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_38">[Pg 38]</span></p> - -<p>Quinet liga a idea de justiça ao sentimento de amor na sua -desenvolução primordial, mas sustenta que até os ladrões teem um -codigo de justiça distribuitiva para entre si e os selvagens outro que -observam na tribu.</p> - -<p>A philosophia que identifica a virtude com a utilidade offerece a quem -a pratica vantagens sociaes. O homem que não tem senão a apparencia -da virtude sobrepuja externamente o que a pratica a serio. Quem uza -alternadamente do verdadeiro e do falso segundo o interesse do momento -vence o que emprega só o verdadeiro, porque tem dois caminhos abertos -emquanto os outros estão confinados n’um.</p> - -<p>Mesquinha philosophia e desconsoladora moral que tem por unico movel a -utilidade!</p> - -<p>Nem todas as violações moraes da lei do imperativo cathegorico podem -ser incursas no direito penal positivo, porque a sua esphera é mais -ampla e mais recondita, os codigos não a attingem.</p> - -<p>Escreveu um grande jurisconsulto: «quanto aos deveres para com -os outros, a lei penal não deve, pelo mesmo principio, exigir -imperativamente senão o cumprimento dos que são correlativos aos -direitos, cuja protecção poderia legitimar o emprego da força. Fica -pois por considerar se a violação d’um dever <em>exigivel</em>, quando -ella não sahe dos limites do mal puramente moral, cahe sobre o imperio -d’esta lei. É o mesmo que procurar, por outros termos, se o pensamento, -se a resolução criminosa pode tornar-se o objecto da justiça humana. -Porque a violação d’um dever exigivel não permanece encerrada nos -limites do mal puramente moral, senão emquanto o projecto criminoso, -não tendo sido seguido de nenhum acto material, não tenha ainda -produzido soffrimento directo, clamor ou perigo. Ora, é evidente que em -these geral nada poderia ainda legitimar o emprego da força contra uma -perturbação qualquer trazida á ordem moral. Os individuos e a sociedade -não tem ainda sido impedidos no exercicio dos seus direitos, no livre -desenvolvimento da sua legitima actividade. A defeza não foi fundada -para reagir contra o mal puramente moral: a justiça social não pode -pois applicar-lhe o castigo<a id="FNanchor_18" href="#Footnote_18" class="fnanchor">[18]</a>.</p> - -<p>A liberdade moral não deve ser confundida com a liberdade juridica. -Aquella é o poder que o homem tem de se determinar,<span class="pagenum" id="Page_39">[Pg 39]</span> emquanto esta é -o direito de desenvolver as faculdades n’uma medida que não exclue -o desenvolvimento da liberdade ou do direito de outrem. Os seus -limites são a base e o objecto do direito considerado como a regra -das relações sociaes. Em todos os casos porem a liberdade moral é uma -condição essencial da existencia do direito<a id="FNanchor_19" href="#Footnote_19" class="fnanchor">[19]</a>. Negar portanto o livre -arbitrio é destruir o direito, é suprimir a justiça. Nenhuma sociedade -civilisada podia assentar no determinismo mecanista de Democrito -ou de Hobbes. Se esta theoria é hoje renovada pelos criminalistas -revolucionarios, será por honra e fortuna da civilisação justamente -posta de parte pelos jurisconsultos circumspectos.</p> - -<p>Como somos humilde discipulo da philosophia neo-critica e ardente -e sincero adepto da grandiosa moral kantiana, julgamos util dar -aqui a conhecer, ainda que summariamente, seguindo um seu illustre -commentador, a solução original e profunda que o genial pensador deu -ao problema da liberdade. Kant affirma o determinismo em nome da -sciencia e proclama a liberdade em nome da moral. Por um lado Kant é -determinista tão rigoroso como o proprio Leibnitz. Em nome do principio -da causalidade affirma o encadeamento necessario de todos os phenomenos.</p> - -<p>Este determinismo absoluto é a condição da sciencia, a propria condição -do pensamento. Mas por outro lado Kant é o mais puro e o mais sincero -dos moralistas. Acceita a noção do dever, da moralidade em toda a sua -plenitude. O dever, diz Kant, implica poder e é em nome do dever que -affirma a liberdade. Como conciliar estas duas affirmações?</p> - -<p>Kant resolveu a difficuldade pela sua theoria do conhecimento. -Distinguiu dois mundos, o mundo dos <em>phenomenos</em>, isto é, o mundo -das apparencias sensiveis, que é objecto da sciencia, e o mundo dos -<em>nomenos</em>, isto é, o das realidades absolutas, ou intelligiveis, -onde a metaphysica tenta, mas em vão, fazer nos penetrar. A grande -differença entre estes dois mundos, resulta do espaço e do tempo, que -são a lei do mundo apparente ou sensivel e não a lei do mundo real -ou intelligivel. O mundo sensivel é a apparencia que torna o mundo -intelligivel projectado e refractado no espaço e no tempo. Como ha -dois mundos, ha tambem duas especies de causalidades. Ha a causalidade -empirica que se realisa no<span class="pagenum" id="Page_40">[Pg 40]</span> tempo e ha a causalidade intelligivel que -se realisa fóra do tempo. A causalidade empirica é o determinismo. -No tempo os factos são antecedentes e consequentes, succedem-se -e determinam-se como os momentos do tempo. Mas onde se exerce a -causalidade intelligivel, não ha antes nem depois, não ha antecedente -nem consequente: esta causalidade é, pois, a propria liberdade.</p> - -<p>Assim se resolve a antinomia: o determinismo e a liberdade são -verdadeiros um e outro, mas para dois mundos differentes: o -determinismo é verdadeiro para o mundo sensivel para o homem phenomeno, -a liberdade é verdadeira para o mundo intelligivel, para o homem -<em>nomeno</em>.</p> - -<p>No absoluto a nossa vontade pronuncia um <i>fiat</i> eterno e como -tal livre, este <i>fiat</i> faz-nos ser o que somos; constitue -a nossa essencia, o nosso caracter <em>intelligivel</em>. D’este -caracter <em>intelligivel</em> deriva o nosso caracter empirico que é a -manifestação do primeiro na vida phenomenal, e que assignala com o seu -cunho as nossas diversas acções. Tudo em nós resulta necessariamente -d’estes dois factores. Tam grandiosa e profunda concepção satisfaz a -razão especulativa e a consciencia moral; põe ao abrigo de todas as -contingencias os direitos da sciencia, e os direitos da ethica<a id="FNanchor_20" href="#Footnote_20" class="fnanchor">[20]</a>. -Devia satisfazer a um tempo os partidarios do fatalismo e os do -determinismo salvaguardando no entanto a liberdade. Os phenomenos do -mundo cosmico podem ser, como pretendem os fatalistas, subjeitos a uma -causa unica sobrenatural, ou como querem os deterministas, attribuidos -a causas multiplas ou naturaes. Fatalistas, pantheistas e theistas, -deterministas psychologicos e materialistas, todos deviam applaudir -uma solução, que reconhece nas suas theorias uma parcella de verdade. -Não acontece assim, todavia. O determinismo nos seus cambiantes -continua affirmando que, o homem se resolve <em>sem motivos</em>, ou -sem <em>vontade</em>, ou que a <em>vontade segue sempre o motivo mais -forte</em>.</p> - -<p>Todos os argumentos do determinismo são já bem conhecidos:—do -principio da causalidade e da analyse do acto volitivo, da estatistica -e da theoria mecanica das relações da vida psychica com a physiologica.</p> - -<p>A asserção de que todo o phenomeno tem a mesma razão n’uma força, não -é de modo nenhum incompativel com a liberdade;<span class="pagenum" id="Page_41">[Pg 41]</span> o acto livre tem por -causa não só os motivos, mas ainda a vontade. Objectam que a vontade -segue sempre o motivo mais forte, mas esse motivo não é mais forte por -si mesmo, senão porque a nossa vontade o torna tal determinando-se por -elle, e determinou-se por elle, porque o julgou melhor.</p> - -<p>O argumento da estatistica não tem valor, porque a estatistica só -determina medias, devidas a causas geraes, e de modo algum os factos -particulares ou individuaes. Nenhum demographo nos diz pelas suas leis -que tal individuo em tal anno ha-de ser necessariamente homicida.</p> - -<p>A theoria da conservação da força, applicada aos seres vivos, não passa -ainda d’uma hypothese. Todavia, é evidente que a vontade não cria os -movimentos que imprime aos orgãos, mas quando é sã e energica, serve-se -a seu talante das forças preexistentes. A liberdade fica sempre o poder -de tomar a iniciativa da sua actividade.</p> - -<p>As escolas fatalistas não podem constituir a moral. Augusto Comte -pretende na esteira do fatalismo metaphysico, com o altruismo, -imagem truncada do sentimento do amor, architectar uma ethica para -seu governo. O altruismo é uma tendencia irresistivel para outrem, -considerado esse outrem como ponto de convergencia, e o egoismo é uma -tendencia fatal para o <em>eu</em> como centro. Na essencia o movel é -sempre e absolutamente o interesse, ou do eu ou de outrem. Os inglezes -reduzem justamente esta escola a uma variante da moral egoista. Que -importa á consciencia que o desejo seja de expansão ou de concentração, -se o impulso é sempre interesseiro? N’um e n’outro caso a lei do dever -que é o distinctivo mais nobre da humanidade fica vergonhosamente -esquecida. O positivismo, como temos visto, sempre que faz metaphysica -tem o mau gosto de ligar-se por um lado ao fatalismo deprimente e por -outro ao materialismo grosseiro.</p> - -<p>A moral é a sciencia que traça a linha directora do homem no -cumprimento do dever. Todos reconhecem, de um modo intuitivo, que, -quem nos esclarece na investigação ou na pratica dos actos moraes, -é a consciencia. Ella o juiz seguro e o juiz unico que nos ensina a -conhecer exactamente a natureza da acção e a intenção do seu auctor. -A intenção, porém, que unicamente se limita a um simples desejo e que -não é seguida de nenhum esforço para a execução, não chega a ser um -acto moral. A intenção dá valor ethico ao acto, mas<span class="pagenum" id="Page_42">[Pg 42]</span> tambem o proprio -acto serve para apreciar indirectamente a natureza e a sinceridade -pura das intenções do agente. O methodo para estudar esta sciencia -consiste em examinar qual a noção moral e quaes os resultados que a -constituem. A consciencia moral, não a psychologica, é quem fornece á -razão a concepção de uma lei que absolutamente devemos seguir. Se a lei -moral se convertesse na applicação em alguma cousa de material teriamos -necessidade de despi-la dos elementos exteriores, e mostrar que ella -não se revela nunca em nós como um effeito, mas sim como antecedente. -A lei moral é um principio noologico para elle proprio e parece ter um -dominio transhumano.</p> - -<p>A lei do bem impõe-se absolutamente; quer o conteudo d’esse bem seja -a paz da alma, o prazer sensivel, a utilidade, ella é sempre o centro -organico de todos os nossos actos. Ninguem póde renunciar a este -imperio universal; os proprios adversarios de Kant, que chamam ao -imperativo, desdenhosamente, o <em>despotismo da regra</em>, não podem -esquivar-lhe a sua consciencia.</p> - -<p>É preciso comprehender a moral formalista de Kant para pôr de accordo -o seu dogmatismo pratico com o seu scepticismo especulativo. A -moral formal não depende das condições da vida real e concreta das -sociedades, assim como as mathematicas puras não dependem em nada das -applicações ás sciencias experimentaes e ás artes bellas ou mecanicas. -A moral, tal como Kant procurou estabelece-la, resume-se na idéa -de uma vontade livre, cuja existencia intima não depende de nenhum -movel empirico. Por isso tal concepção é apparentemente extranha a -muitos espiritos e se acha affastada das idéas communs. Para Kant, a -liberdade da vontade é uma autonomia que faz por si só a lei moral. -Este caracter de independencia absoluta não póde encontrar-se senão -n’uma lei formal, tomada esta palavra no sentido philosophico. Kant não -procura a essencia do bem na ordem universal; é no facto subjectivo da -obrigação que tem a sua origem objectiva. Uma cousa não é obrigatoria -porque é boa, é boa porque é obrigatoria. A essencia do bem está <em>na -conformidade d’uma vontade com uma lei que impera</em>. A necessidade -d’esta lei é completa e absoluta e tem ao mesmo tempo um caracter ideal -e real, racional e empirico, como as leis logicas e mathematicas. -Ha por isso quem chame á ethica kantiana, a moral da mathematica. A -obrigação moral é uma especie<span class="pagenum" id="Page_43">[Pg 43]</span> de necessidade, mas dizer que qualquer -é obrigado a fazer uma cousa, não é dizer que qualquer é forçado a -faze-la, porque a obrigação assim entendida excluia a liberdade e -aniquilava a moral. O verdadeiro principio da ethica não póde ser um -ideal de perfeição, mas um ideal formal que tem o seu fundamento no -conjuncto das faculdades que constituem a natureza superior do homem -e cuja realisação é independente da evolução da humanidade atravez -das differentes phases da vida individual e social. A moral pratica -que dá normas ás acções humanas é que varia com as diversas condições -externas. A força e a firmeza da vontade, a clareza e o alinho do -espirito imprimem cunho ao caracter moral, a paz e a pureza do coração -são a saude da alma, a origem da felicidade. Muitas veem a ser as -causas pathologicas que podem influir na determinação dos phenomenos -volitivos, como o demonstra Ribot no seu interessante livro <i xml:lang="fr" lang="fr">Les -maladies de la volonté</i>. É obvio que sem livre arbitrio não ha -moralidade.</p> - -<p>A tendencia das paixões, muitas vezes, converte-se n’uma ideopathia, -cuja força se traduz em actos de um caracter duplamente forte. É esta -a feição de certos sentimentos—ir recto ao fim, e, á maneira das -acções reflexas, ter uma adaptação em um unico sentido, unilateral, ao -contrario da adaptação originada n’um principio racional, que é, na -deliberação, multilateral.</p> - -<p>O dever é muitas vezes pela consciencia humana mal entendido, e a -maneira de o entender varia com as condições mesologicas e com a -ideosyncrasia individual. A obrigação moral póde ser vivamente sentida -e muito mal entendida, facto que se observa a cada instante na vida -historica da humanidade. Cada epoca da evolução humana apresenta uma -série de factos que imprimem caracter, isto é, que são a expressão -psychologica de um certo modo de sentir com côr propria e com tom -particular, sem comtudo deixar de ser a mesma lei do dever que -constantemente os inspira. Toda esta diversidade na historia do mundo -moral é puramente externa; os phenomenos sociaes que principalmente -influem sobre ella são a sympathia, a imitação, o contagio moral, a -opinião, o costume, etc. É mister, na apreciação das acções moraes, -distinguir duas cousas: 1.ᵃ a intenção com que nós praticamos o -acto, 2.ᵃ o valor d’esse mesmo acto. Apreciar cada um a sua intenção -é facilimo, porque é de uma clareza evidente. Não succede o mesmo -com a apreciação do valor das acções<span class="pagenum" id="Page_44">[Pg 44]</span> sociaes que sendo difficil, -é precisamente o que explica a variedade e o progresso da moral. -A interpretação do bem e do mal no tempo e no espaço não é sempre -identica, soffre profundas variações e differentes vicissitudes na -evolução social, mas o que não soffre vicissitudes é a lei em virtude -da qual a consciencia affirma a distincção entre as idéas do bem e do -mal, á evidencia das quaes ninguem póde eximir-se.</p> - -<p>Perante a consciencia a idéa do bem garante-nos que a sua pratica é -meritória, se é livre, independentemente das suas consequencias, porque -a consciencia moral implica a idéa de uma lei e a obediencia livre -a essa lei. Segundo Kant, o dever é um mandato que se nos apresenta -imperioso sem que possamos perguntar-lhe pelos seus titulos e pela sua -razão de ser. O seu valor intrinseco é para nós desconhecido.</p> - -<p>—<a id="FNanchor_21" href="#Footnote_21" class="fnanchor">[21]</a>Julgam os criminalistas italianos dever admittir a existencia -d’um typo criminal; esta opinião é adoptada por um grande numero de -criminalistas francezes. Segundo esta escola, distinguem-se claramente -os criminosos, por seus caracteres physicos e psychicos, dos homens -que pertencem ao mesmo meio e que vivem no mesmo tempo. Por esta arte, -seria a maior parte dos criminosos fatalmente condemnada de nascimento, -pela sua organisação physica e mental, ao latrocinio e ao assassinato, -á violação ou ao incendio. O que são estes criminosos de nascimento?</p> - -<p>Serão loucos, por ventura, ou os representantes, no meio da civilisação -actual, d’um estado social mais remoto, de costumes mais grosseiros -e mais crueis? Estas duas theses já foram sustentadas, e até ambas o -foram por Lombroso, o chefe da escola, que, depois de ter feito do -criminoso um selvagem, foi levado a consideral-o como um alienado, -como um louco moral, sem renunciar todavia completamente á opinião que -abraçara o principio.</p> - -<p>Foi para reagir contra estas theorias que M. Tarde<a id="FNanchor_22" href="#Footnote_22" class="fnanchor">[22]</a> escreveu e -colligiu em volume ha tres annos, os seus brilhantes e profundos -estudos. Sem rejeitar absolutamente a existencia d’um typo criminal, -procurava demonstrar que este typo profissional e que os traços communs -aos malfeitores se explicavam, na maior parte, pela communidade de seus -costumes.<span class="pagenum" id="Page_45">[Pg 45]</span> M. Joly, tomando entre mãos e por sua conta esta these, -percorreu cuidadosamente as estatisticas e os inqueritos officiaes, -interrogou medicos, administradores e magistrados, conversou com os -inspectores de policia e com os directores de prisão, consultou as -melhores obras d’anthropologia criminal, e mercê a todos os factos que -recolheu, analysou e classificou, fez dos criminosos um retrato que -pouco se assemelha ao que delineou Lombroso.<a id="FNanchor_23" href="#Footnote_23" class="fnanchor">[23]</a> Todavia os factos são -os mesmos, mas vistos por outros olhos.</p> - -<p>Antes de procurar qual a interpretação que convem dar ao typo criminal, -cumpre saber se ha realmente um typo criminal. Ora, é precisamente isso -que parece contestavel. É de crer que a escola italiana haja ligado -demasiada importancia aos caracteres physicos dos criminosos; porém -estes caracteres não teem nem tanta constancia nem tanto valor como -se imagina. As anomalias cranianas e cerebraes que foram verificadas -nos criminosos são pelo menos tão frequentes nos homens de bem. Tem os -primeiros os cerebros frequentemente asymetricos; a verdadeira razão -d’isto é que os cerebros perfeitamente regulares são muito raros.</p> - -<p>Segundo os estudos de M. Bordier, resulta com effeito, que, -ordinariamente, a curva frontal está reduzida nos craneos de -assassinos, ao passo que a curva parietal antero-posterior se acha -desenvolvida; mas d’esta estructura craneana só se deprehende que, para -volume cerebral igual, ha uma certa inferioridade intellectual e uma -certa exageração da actividade motora; o que é facil encontrar-se nos -individuos que não praticaram crime algum nem teem tendencias para o -praticar.</p> - -<p>Não podem entender-se os criminalistas ácerca dos traços distinctivos -que attribuem aos criminosos: são de parecer alguns auctores que o -criminoso é mais a miudo trigueiro que louro, mas estes auctores são -italianos. A importancia que querem attribuir á grande frequencia da -covinha media nos criminosos é muito diminuida pelo facto de se achar -esta covinha nos judeus, e nos arabes, povos de criminalidade inferior -com relação aos europeus, quatro vezes mais frequentemente do que nos -não-criminosos. Não se póde, por outra parte, duvidar de que o genero -de vida, a que se devem submetter os criminosos, exerça uma acção mais -ou menos profunda sobre a sua organisação, por isso que muitos ladrões<span class="pagenum" id="Page_46">[Pg 46]</span> -e até assassinos começam de muito novos a sua vida de aventureiros.</p> - -<p>É fóra de duvida que os criminosos teem uma physionomia adquirida; -nem todos, aliás, teem esta physionomia, bem longe d’isso, e custaria -muito constituir um typo unico a que se adaptassem igualmente os -pick-pockets e os vagabundos, os fallidos, os moedeiros falsos e os -assassinos de profissão. De resto, todos os que se teem occupado dos -presos de pouca edade, M. Roukavichnikoff, por exemplo, teem ficado -espantados da rapidez com que a sua expressão habitual se modifica, -quando os collocam n’um meio differente d’aquelle em que até ali tinham -vivido. O criminoso preso não se parece com o criminoso livre; tem uma -physionomia muito caracteristica, que perde ao deixar a prisão, e é -nos presos, não se deve esquecer, que foram feitas, na maior parte, -as observações dos criminalistas. Parece pois prematuro, pelo menos, -falar d’um typo criminal hereditario: os caracteres anatomicos dos -criminosos, aquelles mesmos que parecem mais salientes (as orelhas -volumosas, em fórma de azelhas, a barba rara, o prognatismo, o -desenvolvimento exagerado dos queixos) não lhes são particulares.</p> - -<p>Terão, pelo menos, os criminosos, caracteres psychicos que os -separem claramente dos outros homens? É tambem com a negativa que -responde M. Joly. Ficamos perplexos quando, depois de ter lido os -conscienciosos e profundos capitulos, que este escriptor consagrou á -imaginação, intelligencia, sensibilidade, vontade e sentimentos moraes -dos criminosos, perguntamos a nós mesmos se ha motivos para dar um -logar á parte, á psychologia do criminoso, ao lado da psychologia do -selvagem e da creança. Não se deprehende que os criminosos formem, -como os alienados, uma familia natural; por mais sensivel que seja -a differença entre um maniaco e um degenerado ou um melancolico, ha -porém entre todos os loucos similhanças de tal fórma, que se poderia -quasi constituir, ao lado da psychologia geral normal, uma psychologia -morbida geral.</p> - -<p>As dissimilhanças, pelo contrario, são extremas, sob o ponto de vista -psychologico, entre os criminosos e talvez fosse necessario reconhecer -que o termo «crime» só tem uma significação social e moral. Se achamos -symptomas de alienação mental n’um contemporaneo de Alcibiades, podemos -affirmar que era louco; não podemos no entanto tratar de<span class="pagenum" id="Page_47">[Pg 47]</span> criminoso -um Grego da mesma epoca por ter praticado actos que as nossas leis -qualificam de crimes. Estamos no direito de inferir a existencia d’um -mesmo estado mental em dois alienados, se estiverem sob o domínio -de obsessões d’um caracter identico, por termos observado que estas -obsessões são os symptomas d’uma doença que segue um andamento regular -e que está ligada a perturbações psychicas determinadas.</p> - -<p>Mas que ha de commum entre o operario que alterca com o seu collega -n’uma taberna, e entre o ladrão que assassina o homem que despoja -para o impedir de gritar, e o marido que mata a mulher por ciumes ou -pelo respeito á sua honra? O acto exterior é identico, os motivos que -determinaram este acto são absolutamente differentes d’um homem para -outro. Serão iguaes as razões que determinam ao roubo todos os ladrões? -Não terá sido antes, para este, o mau exemplo que o impellisse, ao -passo que para est’outro influisse a preguiça, e para aquelle o desejo -de satisfazer ás exigencias d’uma amante? Existem outras semelhanças -a não serem exteriores e grosseiras entre o especulador velhaco e o -regateiro ladrão?</p> - -<p>Os actos d’um alienado, seja qual fôr o meio em que viva este alienado, -teem um caracter muito pronunciado que permitte distingui-los dos actos -d’um homem de juizo são; mas não podemos ajuizar se um acto é criminoso -ou não, a não ser que conheçamos ao mesmo tempo o meio social a que -pertence o auctor do acto e os motivos que o levaram a pratica-lo.</p> - -<p>Cumpre pois, a nosso vêr, não fallar em criminoso: é um ente de razão, -uma entidade abstracta. Ha um grande numero de alienados entre os -criminosos; mas a psychologia dos alienados criminosos é a mesma que a -dos outros alienados: o degenerado que tem impulso para o assassinato -ou para a violação não se differença em nada do onamatomano ou do -dipsomano; um epileptico não merece por modo algum ser separado dos -outros epilepticos por ter morto a sua mãe com um machado, e um idiota -não deixa de ser idiota por ter deitado fogo, para se divertir, a uma -meda de feno.</p> - -<p>Quanto aos criminosos que não são enfermos, poucas particularidades -apresentam a sua intelligencia e a sua sensibilidade, que se não possam -facilmente explicar pelo genero de vida a que a maior parte d’elles se -entregam. A difficuldade de admittir um typo criminal congenito é tanto -maior<span class="pagenum" id="Page_48">[Pg 48]</span> quanto não ha nada que prove nos factos escolhidos por Lombroso -e sua escola, que esse typo seja hereditario; ha poucas familias de -criminosos, e são causas sociaes e não psychologicas as que produziram -as raras «dynastias» de assassinos que teem havido occasião de -observar. A intelligencia dos criminosos de profissão é ordinariamente -pouco desenvolvida; não devemos deixarmo-nos illudir pelo engenho -muitas vezes maravilhoso com que combinam e executam os «lances» que -projectam, e pela manha que empregam para se subtrahirem ás pesquisas -da policia. Em geral, os malfeitores só teem um numero de idéas muito -restricto; estas idéas occupam constantemente o seu espirito, todos os -esforços da sua intelligencia convergem para essas idéas; fóra d’este -circulo limitado de preoccupações, são quasi sempre de espirito tardo e -mediocre; excessivamente rotineiros, teem uma certa tendencia para se -servirem indefinidamente dos mesmos meios. Cada ladrão acostuma-se aos -processos que escolhe e deshabitua-se de todos os outros.</p> - -<p>«O conjuncto das astucias de todos os ladrões reunidos é uma cousa -prodigiosa, como o conjuncto das astucias dos animaes; mas na -realidade, cada um só emprega uma»<a id="FNanchor_24" href="#Footnote_24" class="fnanchor">[24]</a> de resto, se estas astucias -são a miudo frustradas, é porque geralmente, os criminosos carecem -de sequencia nas idéas; cançam-se depressa, teem confiança no acaso, -acreditam estupidamente na fatalidade, apressam-se em tirar proveito do -crime que commetteram; e tal é a sede de gozos que os aperta, que para -satisfazerem os seus appetites breve chegam a descurar toda a sorte -de precauções. As mais das vezes a imaginação dos criminosos é muito -mediocre.</p> - -<p>Se as imagens que os perseguem de vez em quando e os arrastam ao -crime teem uma intensidade tão forte, é mesmo por causa da pobreza, -da esterilidade da sua imaginação: toda a imagem, isolada, adquire um -poder extremo. A litteratura e a arte dos criminosos nenhum caracter -especial apresentam: se o ladrão ou o assassino ignorante compõe ás -vezes versos, é porque é «povo»,<a id="FNanchor_25" href="#Footnote_25" class="fnanchor">[25]</a> porque a situação d’elle o torna -scismador, porque tem ocios que é forçoso encher. A tatuagem não é -unicamente costume dos criminosos; é um facto de sobrevivencia, um -costume que persistiu muito tempo<span class="pagenum" id="Page_49">[Pg 49]</span> nas classes inferiores e que se vae -apagando: as meretrizes, os marinheiros, alguns operarios, pintam-se -como os criminosos. «Se os criminosos se distinguem dos homens do povo -não é pelo amor aos letreiros, ás imagens, ás tatuagens e á linguagem -da imaginação: é pela natureza das cousas que gostam desenhar, de -recordar e de exprimir.»<a id="FNanchor_26" href="#Footnote_26" class="fnanchor">[26]</a></p> - -<p>A sensibilidade physica dos malfeitores não parece ser tão -profundamente alterada como o sustenta a escola italiana: convem, -talvez, deixar uma boa parte á simulação. Nada ha menos demonstrativo -do que a approximação que faz Lombroso do criminoso e do selvagem, -tanto mais quanto que parece que se exagerou demasiadamente a -insensibilidade dos proprios selvagens. Encontram-se factos -interessantes a este respeito nas <i>Cartas edificantes e curiosas</i>. -Toda a sensibilidade dos criminosos está pervertida e enferma, eis toda -a verdade; a vida irrequieta que levam, a ociosidade, a depravação, e -principalmente a depravação contra a natureza, tão frequentes entre -elles, os excessos alcoolicos, são motivos sufficientes para isso. O -carcere tem quasi sempre sobre elles uma acção calmante e deprimente -ao mesmo tempo; a sua sensibilidade aquieta-se e adormece. Chegam, -gradualmente, a uma indifferença profunda, a um verdadeiro horror da -acção e da lucta que faz com que muitos d’elles encarem com terror o -momento de deixar a prisão. A vontade dos criminosos enfraquece-se -e exalta-se ao mesmo tempo, é o resultado necessario dos actos que -praticam e dos costumes que contrahem fatalmente; mas a sua vontade -nem por isso deixa de ser uma vontade normal. Os desejos que impellem -para o crime os malfeitores nada teem de commum com os impulsos -irresistiveis dos epilepticos e dos degenerados. Nem tão pouco devemos -considerar os criminosos como uns «abulicos», isto é como joguetes -irresponsaveis e semi-inconscientes das circumstancias em que o -acaso os collocou. O que é certo é que a sua vontade em geral nem é -aniquilada nem fortificada pela vida que levam; torna-se desigual -e caprichosa, ora desfallecida ora arrebatada. Porém, com o tempo, -enfraquece; gasto pela existencia aventureira a que está condemnado, -o criminoso já nem força tem para querer o crime, não podendo pois -commetter crimes, desforra-se em commetter delictos.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_50">[Pg 50]</span></p> - -<p>O sentimento moral não desappareceu, na maior parte dos criminosos, e -quero aqui falar dos criminosos de profissão; raras vezes se deixa de -encontrar consciencia alguma da culpabilidade dos actos que praticaram.</p> - -<p>Os accusados que mostram esse cynismo e essa impassibilidade que nos -espanta por vezes nos interrogatorios, são quasi sempre individuos -feridos de debilidade mental ou degenerados.</p> - -<p>A maior parte dos criminosos «seduziram-se» a si proprios para -se arrastarem ao crime; tiveram que sustentar verdadeiras luctas -interiores. Os malfeitores ainda novos tratam de justificar os seus -actos com arrazoados declamatorios contra a sociedade; os presos velhos -não gostam de fallar no que teem feito.</p> - -<p>Raro é que os criminosos não se perturbem deante da morte e que não -manifestem nos derradeiros momentos sentimentos de arrependimento e de -fé religiosa: quasi todos accolhem com prazer as visitas do capellão. -É verdade que é preciso deixar uma boa parte á hypocrisia e ás crenças -supersticiosas; mas o que não é menos certo é que observadores, poucos -dispostos a illudir-se, ficaram muitas vezes assombrados da fé sincera -que parecia acordar no coração de certos malfeitores no fim de seus -dias. Não tem isto nada que admirar.</p> - -<p>No silencio da prisão, calam-se as paixões, e os que nada já tem que -temer ou que esperar da vida podem frequentemente voltar inconscientes -ás crenças que a educação lhe tinha dado; podem ouvir, no mais -recondito do peito, como que um echo enfraquecido d’estes sentimentos -moraes e sociaes que lentamente se formavam na especie com o andar da -evolução.</p> - -<p>Não são geralmente sem duvida motivos desinteressados que os inclinam -para o arrependimento, mas convém que sejamos menos exigente que M. -Despine: não nos causa admiração o não achar-se nos criminosos esse -puro respeito do dever que o proprio Kant considerava superior á -natureza humana.</p> - -<p>Não é necessario reflectir muito para ver a differença extrema que -existe entre este estado de espirito e o dos alienados criminosos; não -parece possivel a confusão, a não ser entre alguns debeis e certos -criminosos, muito ignorantes, inintelligentes e grosseiros.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_51">[Pg 51]</span></p> - -<p>Segundo as estatisticas, as mulheres commettem em proporção muito -menos crimes do que os homens; mas essas estatisticas precisam muito -de ser interpretadas. Um grande numero de crimes ha que as mulheres -não teem occasião nem força de commetter, e quando se tracta de actos -ao seu alcance, as proporções mudam logo; sobre 100 envenenamentos, -ha 70 commettidos por mulheres. De resto, ellas são com frequencia -as instigadoras, as cumplices secretas de crimes que não querem -executar ellas mesmas. A sua consciencia se perverte mais completa e -rapidamente; são mais capazes que o homem de actos de crueza fria e -reflectida. Ora hypocritas, ora ousadas e cynicas, gostam de mentir e -de enganar; menos capazes do que o homem de verdadeiro arrependimento, -são mais estreitamente do que elle aferradas ás practicas -supersticiosas. É muito difficil de as fazer voltar para o caminho -recto depois de se terem transviado. Não nos devemos admirar d’isso; -emquanto a sua sensibilidade seja instavel, a mulher é tyrannicamente -subjugada pelos seus habitos; as idéas, as razões teem pouca influencia -sobre ellas; a vida da prisão, silenciosa e regular, custa-lhe mais a -supportar que ao homem; não póde prescindir de sympathia e de ternura á -roda d’ella; depressa se corrompe quando não se sente amada.</p> - -<p>É evidente que, se o typo criminal não existe, a questão de saber se -esse typo é anastral não se póde formular. Mas M. Joly vae mais além, -quando affirma que, admittindo a hypothese da existencia d’um typo -criminal, é impossivel explical-a pelo atavismo. O criminoso não se -parece com o selvagem, apezar das affirmações da escola italiana; o -roubo dos moveis é castigado com rigor nos povos primitivos; todos -sabem que castigos terriveis attrahe sobre si o culpado de violação das -prescripções religiosas; ha para os casamentos, para todos os actos -de vida regras precisas ás quaes é obrigatorio submetter-se e que de -facto, raras vezes são violadas. Os proprios australios, segundo o -testemunho de Perron d’Arc, sabem distinguir entre uma vingança justa e -em acto de brutalidade; o rapto, o adulterio, o incesto, as offensas a -um chefe são castigadas com a morte.<a id="FNanchor_27" href="#Footnote_27" class="fnanchor">[27]</a></p> - -<p>Na realidade, muitas ideas que, lentamente se foram deslindando, estão -ainda confusos na mente d’uns selvagens: a<span class="pagenum" id="Page_52">[Pg 52]</span> idéa do peccado, a idéa -do crime e a do prejuizo praticado contra alguem, estão estreitamente -ligadas; foi preciso uma longa evolução social para permittir ao -direito criminal constituir-se separadamente do direito civil e da lei -religiosa. O que, em summa, faz falta ao selvagem, é a noção juridica -do crime; e não devemos ficar muito surprehendidos com isso.</p> - -<p>Tratou-se de explicar o crime por uma falta de adaptação mutua do -criminoso e da sociedade; mas isso não é mais do que uma definição -do crime, ou melhor, a constatação d’um facto, todavia não é uma -explicação. O que seria preciso explicar é porque o criminoso é incapaz -de se adaptar ao meio social em que vive. Ha para isso duas especies -de causas: causas sociaes e causas individuaes. As causas sociaes são -as que M. Joly se propõe estudar detidamente no seu proximo volume. -As causas individuaes são os appetites, os desejos, as maneiras de -sentir e de querer, em summa, todo o caracter do criminoso; o crime é -o resultado d’um conflicto entre uma sociedade que está submettida a -certas regras e um homem que não póde ou não quer, em conformidade com -a structura do seu caracter, sujeitar-se a observal-as.</p> - -<p>Todas as vezes que o conflicto se torna agudo e que o individuo -está resolvido a praticar actos de certa gravidade, estes actos são -qualificados de crimes; mas uma grande serie de actos cabem entre -actos socialmente bons e os crimes; não ha fronteira alguma social -que separe os crimes e os delictos das faltas contra a honra ou a -delicadeza, a distincção é uma distincção juridica, imposta pelas -necessidades practicas. O limite entre os crimes e os actos que a -justiça deixa impunes é um limite arbitrario; varia d’uma legislação -para outra. O criminoso é um homem como os mais; mas tem paixões muito -fortes, não sabe resistir-lhes nem satisfazel-as por meios legaes; não -tem a coragem de se resignar nem a de trabalhar e luctar, quer gozar, -mas sem esforços, quer por fraude, quer pela força, apoderar-se-ha -do que deseja. Talvez achasse meio, em outra sociedade, de empregar -utilmente a fórma de actividade que possue; mas prefere resignar-se ao -crime, que sujeitar-se a um officio que o aborrece. Cumpre notar que é -principalmente do verdadeiro criminoso, do criminoso de profissão que -se trata aqui, mas não serão tambem criminosos, criminosos incompletos, -bem entendido, os negociantes pouco escrupulosos, os jornalistas mal -reputados,<span class="pagenum" id="Page_53">[Pg 53]</span> os seductores de meninas, os operarios ebrios e brigões, -promptos a fazerem uso da faca? O criminoso é essencialmente um -preguiçoso, mas é um preguiçoso dotado por vezes de alguma energia; se -não tiver essa energia de curta duração, se tiver paixões menos vivas -e alguns escrupulos ainda, o preguiçoso sem dinheiro é incapaz de o -ganhar, ficará sendo toda a vida um vagabundo sem se tornar jámais -um criminoso, é sobre tudo entre os vagabundos que se recrutam os -criminosos de profissão, mas a vagabundagem está longe de conduzir ao -crime. «O crime do homem póde começar pela vagabundagem da creança, -como tambem póde principiar pela falta de delicadeza, pela intriga, -pela immoralidade elegante, pelo espirito de lucro. Nada prova que -d’ahi resulte inevitavel e necessariamente.»<a id="FNanchor_28" href="#Footnote_28" class="fnanchor">[28]</a> A prostituição da -mulher corresponde á vagabundagem do homem: da mesma fórma essa não -constitue por si mesma crime nem delicto, como tão pouco conduz -necessariamente ao crime, ha meretrizes muito probas, muito capazes -de conceber amizades desinteressadas, muito affectuosas para com seus -filhos, muito sinceras; ha até varias que conservaram sentimentos -religiosos, mas todavia é no mundo das prostitutas que se recrutam -a maioria das ladras. A vida que levam predispõe as ao crime, mas -está bem longe de as condemnar necessariamente a isso; para a maior -parte d’ellas, o seu officio é um officio verdadeiro que exercem com -probidade; não fallam das ladras senão com desprezo, e das más mães com -uma especie de horror.</p> - -<p>As classes criminosas não teem maior estabilidade do que as outras; -renovam-se incessantemente; ha poucas familias de malfeitores. Apenas -existe uma classe, para dizermos a verdade, que é este montão instavel -de seres cahidos; mil motivos diversos dão origem aos criminosos, por -isso é que ha muitos typos de criminosos, muito distinctos entre si; -as unicas semelhanças são semelhanças exteriores que teem as suas -causas no mesmo genero de vida e costumes communs. Eis os typos que M. -Joly julgou dever distinguir: os inertes, os violentos, os viciosos, -os calculadores ferozes; facilmente achariamos na vida ordinaria quem -lhes fique parallelo. Mas a distincção que domina todas as mais é a do -criminoso por accidente e a do criminoso por habito. Entre os crimes,<span class="pagenum" id="Page_54">[Pg 54]</span> -ha alguns que são verdadeiros accidentes; os que os praticaram apenas -são responsaveis, o acto que commetteram lhes é decerto modo extranho; -convem necessariamente castiga-los, elles não tornarão a fazer o mesmo, -tem-se a certeza d’isso antecipadamente. Mas em compensação, quantos -crimes ha que parecem ser accidentaes, e que foram preparados por toda -a vida anterior pelos que d’elles se tornaram culpaveis. Um crime póde -não ser premeditado, não ter sido desejado sem deixar por isso de -ser a obra verdadeira d’aquelle que o praticou. O accidente acontece -quasi sempre áquelle que se expoz para succumbir, que não tratou de -fugir ás tentações demasiado fortes; semelhante acto é o producto -d’uma vontade, mas d’uma vontade que se abandona. Para um homem -accidentalmente culpavel, o verdadeiro perigo, é que o seu crime fique -impune; o medo do castigo se embota, o remorso do crime se acalma, -o culpado é orgulhoso da sua habilidade, acostuma-se a contar com o -acaso como um jogador que começou por ganhar. Pouco a pouco deixa-se -arrastar a um novo crime. Se se deixar então prender, se fôr condemnado -a prisão, o contacto com os presos, as horas pesadas e vazias que passa -nos dormitorios e nos pateos, acabam a obra que a vida de aventuras -começou, a vida inquieta e perturbada que levou por muito tempo. -A situação difficil que é propria do homem livre, lhe torna quasi -impossivel voltar para o seu officio, a não ser que tenha uma rara -energia; um unico officio fica aberto deante d’elle o de malfeitor: o -criminoso de costume, tornou-se criminoso de profissão.</p> - -<p>O que estabelece uma linha de separação bem clara entre os criminosos e -alienados, é precisamente que, para um grande numero de criminosos, o -roubo é uma profissão; é um officio de que vivem. Isolado, o criminoso -não póde senão com custo exercer a sua industria, precisa forçosamente -cumplices. Parece, segundo as estatisticas que as associações -criminosas se tenham tornado muito mais raras do que out’ora; mas é -uma pura apparencia; o Estado mais perfeitamente armado, a policia -melhor organisada, as communicações mais faceis e rapidas tornaram mais -difficil a formação de quadrilhas regulares, de associações submettidas -a um chefe; mas contrariamente ás affirmações dos relatorios officiaes, -o espirito de associação dos malfeitores não tem diminuido; não ha -ladrão sem encobridor; os malfeitores precisam<span class="pagenum" id="Page_55">[Pg 55]</span> ser informados dos -ataques que podem realisar, é necessario que os indicadores preparem -o terreno, «alimentem o negocio» antes de se atreverem a tentar. Uns -são muito habeis na execução d’um plano que não saberiam imaginar; -outros carecem da força e da destreza que se precisam para executar os -planos que elles proprios traçaram; d’ahi resulta uma divisão natural -do trabalho. Ha certas especies de delictos e de crimes que só se podem -commetter com gente bastante. Para pôr em circulação a moeda falsa, -é preciso serem tres pelo menos, um fabricante e dois emissores; é -a forma mais habitual da associação criminosa: Ha trios de ladrões -á roleta e de salteadores de casas, como os ha tambem de moedeiros -falsos. O trio geralmente forma-se entre vadios, os frequentadores de -bailes publicos, dos botequins baratos, de casas mobiladas suspeitas, e -das tabernas pobres; durante o verão, é vadiando nos parques, ao longo -do caes, ou sentado nos bancos dos passeios exteriores que o ladrão -tem a probabilidade de encontrar socios. Estas associações fazem-se e -desfazem-se facilmente; são frequentes vezes ligadas umas ás outras -por laços mais ou menos estreitos. É nas prisões que estes laços se -apertam ainda mais, que os bandos tomam uma organisação mais forte; os -roubos bem feitos são os que se meditam na prisão. Todos os presos se -conhecem, quando estão em liberdade sabem encontrar-se.</p> - -<p>Uma fórma de associação ainda mais geral, é a da meretriz e do seu -rufião. A burla é n’esse meio a fórma de expoliação que está mais -em voga; é principalmente no mundo da prostituição anti-physica que -grassa, e ahi o rufião é quasi sempre um assassino. Ao lado d’estas -associações restrictas começam a organisar se vastas associações -internacionaes que estão destinadas, se a repressão se descuida, a -estenderem-se sobre o mundo inteiro: M. Joly dá interessantissimos -exemplos d’este facto que lhe foram fornecidos pelo serviço policial.</p> - -<p>Tal é, em resumo, a ideia que se póde fazer dos criminosos, segundo o -livro de M. Joly. Não estamos muito longe de compartilhar esta ideia; -parece-nos porém que M. Joly não determinou com exactidão as relações -que existem entre o crime e a alienação mental. Não ha duvida que o -criminoso e o alienado sejam muito differentes um do outro; mas existe, -entre os reus que os tribunaes condemnam, uma proporção mais importante -de alienados do que julga M. Joly,<span class="pagenum" id="Page_56">[Pg 56]</span> e se tomasse conta dos absolvidos -por incompetencia do tribunal e por falta de provas, ver-se-hia que -n’uma grande parte os crimes contra as pessoas, e sobre tudo os crimes -sexuaes são commettidos por irresponsaveis. Os idiotas, os imbecis, -os debeis, os degenerados, os epilepticos, os delirantes chronicos -podem em certas occasiões tornar-se todos criminosos em razão das -perturbações psychicas que apresentam; esta occasião apresenta-se-lhes -com frequencia e em geral sabem aproveital-a. Os paralyticos geraes -povoam os tribunaes correccionaes, e muitos negocios de «chantage» -não teem outra origem senão as concepções delirantes d’um degenerado -perseguidor. A loucura não é desgraçadamente uma doença rara, e -não admira que seja entre os seres cuja vontade está enferma, a -sensibilidade pervertida e a imaginação exaltada, que os criminosos se -recrutem mais facilmente.</p> - - -<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_13" href="#FNanchor_13" class="label">[13]</a> É para notar como os poucos escriptores que recentemente -em Portugal teem tratado de criminologia se revellam todos contra a -idea da liberdade individual, dizendo-se positivistas e enfileirando-se -confusamente na escola metaphysica do determinismo materialista. -Vejam-se as obras dos srs. A. Azevedo Castello Branco, Julio de Mattos, -e até certo ponto ainda os trabalhos dos srs. Bernardo Lucas e dr. -Basilio Freire.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_14" href="#FNanchor_14" class="label">[14]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Les irresponsables devant la justice</i>, par A. -Riant, Docteur en médecine, licencié en droit, lauriat de la Faculté de -droit de Paris, ancien secrétaire de la Société de Médecine legale de -France, etc.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_15" href="#FNanchor_15" class="label">[15]</a> Este trecho já serviu de argumento sentimental a um -illustre jornalista portuguez.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_16" href="#FNanchor_16" class="label">[16]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Élements du droit pénal</i>, pag. 80 par M. Ortolan.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_17" href="#FNanchor_17" class="label">[17]</a> Cl. Bernard, <i xml:lang="fr" lang="fr">La science experimentale</i>, Physologie -du coeur, pag. 361.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_18" href="#FNanchor_18" class="label">[18]</a> <i>Tratado do Direito Penal</i>, por P. Rossi. Pag. -260-261.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_19" href="#FNanchor_19" class="label">[19]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">L’ordre social et l’ordre moral</i> por A. Bertauld, -pag. 18.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_20" href="#FNanchor_20" class="label">[20]</a> Elie Rabier, op. cit.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_21" href="#FNanchor_21" class="label">[21]</a> O trecho que segue é devido á penna de L. Marillier, -publicado em artigo na <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue Scientifique</i>. n.ᵒ 16, de 1889.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_22" href="#FNanchor_22" class="label">[22]</a> J. Tarde, <i xml:lang="fr" lang="fr">La criminalité comparée</i>, 1886.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_23" href="#FNanchor_23" class="label">[23]</a> H. Joly, <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, étude sociale, 1888.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_24" href="#FNanchor_24" class="label">[24]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, pag. 171.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_25" href="#FNanchor_25" class="label">[25]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, pag. 177.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_26" href="#FNanchor_26" class="label">[26]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, pag. 188.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_27" href="#FNanchor_27" class="label">[27]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, pag. 13.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_28" href="#FNanchor_28" class="label">[28]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, pag. 42.</p> - -</div> -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_57">[Pg 57]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="III">III</h2> -</div> - -<div class="section"> - -<p>A base do direito de punir. O papel da psychopathia na -responsabilidade legal. O fanatismo, a suggestão hypnotica e a pena -capital. A influencia legitima da consciencia moral em direito penal.</p> -</div> - -<div class="blockquot"> - -<p xml:lang="fr" lang="fr">Les crimes purement moreaux, et qui ne laissent aucune prise à la -justice humaine, sont les plus infâmes.</p> - -<p class="right"> -H. BALZAC.<br /> -</p> -</div> - - -<p>O direito ideal com o seu caracter de inviolavel, de absoluto, de -universal, não póde ter por principio o <em>desejo</em> de Helvetius, -a <em>necessidade</em> de Tracy, a <em>força</em> de Hobbes, ou a -<em>utilidade social</em> de Spinosa, o unico fundamento legitimo do -direito é a liberdade ou a <em>autonomia da pessoa</em>, segundo a -expressão de Kant: «O dever e o direito são irmãos, diz Victor Cousin, -a sua mãe commum é a liberdade.»</p> - -<p>O direito penal classico estudou perante a psychologia normal e perante -a ethica a base do direito de punir, com muito mais profundidade e -alteza de vistas, do que as escolas revolucionarias contemporaneas. -Tissot e Romagnosi fizeram a analyse completa das condições -indispensaveis sobre que assenta o direito de repressão. É preciso -reconhecer todavia que ha uma porção de verdade em todas as opiniões, -pois que elles teem todas uma certa razão de ser, quer em nossos -instinctos apaixonados, quer na nossa consciencia.<span class="pagenum" id="Page_58">[Pg 58]</span> «Assim,<a id="FNanchor_29" href="#Footnote_29" class="fnanchor">[29]</a> em nome -dos principios precedentemente estabelecidos podemos dizer com verdade -que ao homem não toca mais o <em>dever de punir para punir</em>, do que -missão e meios de manter a ordem absoluta do mundo moral; tão pouco lhe -toca o <em>direito de punir para punir</em> ou com o fim de restabelecer -embora a ordem juridica, e só pela consideração da necessidade -moral, ou d’essa ordem em si; mas tem o direito de <em>punir para se -defender</em> ou no interesse da sua conservação. A sociedade investida, -no interesse geral, do exercicio d’este direito, vendo, aliás, na lesão -praticada em um dos seus membros um perigo e uma ameaça para todos os -outros, com razão se preoccupa pelo futuro, e procura prevenir, com -uma pena aliás justa a repetição da injustiça. O direito de defesa não -se applica (sómente) ao individuo desarmado, preso, algemado e desde -então impotente; o direito da defesa applica-se ao futuro, applica-se -á intimidação, e quando a sociedade fere para se defender, é menos -para se defender contra aquelle a quem fere, do que para se defender -contra a repetição, contra a renovação dos crimes que ella prescreveu -e puniu.<a id="FNanchor_30" href="#Footnote_30" class="fnanchor">[30]</a> Ninguem contesta o direito de defesa; negá-lo seria negar -o direito de existir. E como se reconheceria por isso mesmo o direito -de vida e de morte a uns homens sobre outros homens, seria faltar ao -mesmo tempo á justiça e á logica. Fica pois estabelecido que o direito -de punir, se por isso se entende o direito de defesa, existe e até -como existencia necessaria, pois que da sua negação resultaria uma -contradicção, isto é, o impossivel. Toda a difficuldade consiste, pois, -em saber se o direito de punir, no sentido de expiação, de retribuição -do mal pelo mal, de meio de correcção ou de reparação moral, é um -direito para o homem, e até o deve exercer, que isso lhe cumpre. Ora, -suppondo que seja de justiça fazer a outrem o mal que se recebeu, -haveria n’isso um problema de uma difficuldade quasi insoluvel para o -homem. Bem podemos, sem duvida, apreciar comparativamente as cousas -materiaes da mesma especie; é assim que uma moeda de cobre ou prata -equivale a outra do mesmo peso e do mesmo metal e feitio, ou que um -metro de tecido de uma certa qualidade conhecida póde equivaler ainda -a um outro, ainda que n’estes já se apresentam differenças que se não -percebem facilmente.<span class="pagenum" id="Page_59">[Pg 59]</span> Mas as difficuldades são notavelmente grandes e -embaraçosas se compararmos não já materia com materia, mas cada materia -susceptivel de ser um objecto de direito em relação a um proprietario -ou a outro, se considerarmos a acção culpada em relação ao grau de -intelligencia, de liberdade e de moralidade do agente. Para exercer -exacta e boa justiça não basta conhecer mais ou menos perfeitamente o -corpo de delicto, a natureza do mal commettido; é necessario apreciar -além d’isso o grau de maldade que presidiu á acção, e o grau de -soffrimento d’ahi resultante.</p> - -<p>Ora nós temos como certo que não ha homem, nem tribunal no mundo no -caso de proferir uma sentença sobre qualquer delicto revestida d’esta -precisão necessaria. Ainda mais, nem os mesmos agentes ou pacientes -são capazes de se julgar perfeitamente a este respeito, cada um no que -pessoalmente lhe diz respeito; com mais forte razão mal poderão elles -ser bem julgados um pelo outro ou ambos por terceiros. Assim, n’este -ponto de vista, é o homem absolutamente incapaz de administrar boa -justiça. Isto ainda assim na supposição de que o homem emprehendesse -esta temivel empreitada, era tão perspicaz, tão attento, tão amigo -da justiça quanto o póde ser um mortal. Que seria se as paixões, os -preconceitos, a preguiça, a ignorancia viessem a turvar ainda um -julgamento aliás tão difficil de proferir! Felizmente é isso antes um -problema moral, que um problema juridico, e o legislador, o principe, o -juiz, não sómente não estão obrigados a resolvê-lo, porque não é essa -a sua missão, mas bem pelo contrario deveria impor-se-lhes a obrigação -de se absterem de tal. Não podendo absolutamente fazer reinar a ordem -moral pura nos corações, cumpre-lhe deixar esse cuidado áquelle que só -póde penetrar em tal abysmo, ao unico poder capaz de lhe dar remedio.</p> - -<p>Que seria, por outro lado, esta retribuição do mal pelo mal, suppondo -que ella fosse possivel no homem? Qual o seu fim? Justa é que nós -desejamos que seja e isso basta para que seja sabia. Só Deus é assaz -intelligente e assás poderoso para fazer com que um criminoso passe -pela justa medida de soffrimento que merece a sua maldade considerada -em relação ao soffrimento occasionado. Mas esta retribuição de um mal -physico por um outro mal da mesma natureza reparará, póde acaso reparar -o mal moral, a culpabilidade? Póde fazer como que não tenha existido? -Esta virtude nem<span class="pagenum" id="Page_60">[Pg 60]</span> mesmo Deus lh’a póde dar. Não destroe pois em nada -absolutamente o mal moral do delicto; não o apaga de modo algum, e se -a expiação se definisse «a reparação do mal moral pelo mal physico,» a -expiação seria absurda e impossivel. Entender-se-ha, ao contrario, por -expiação a reparação do mal physico, de um pelo mal physico d’outro? -Nenhuma expiação possivel ainda n’este sentido, pois que o mal physico -occasionado pelo delicto não foi por isso menos soffrido, quer o -delinquente soffra ou não soffra um mal igual. Só a reparação civil, -que não devemos confundir com a pena, só ella poderia operar ás vezes -uma compensação mais ou menos sufficiente. Mas a pena propriamente dita -não póde absolutamente produzir nada semelhante, a menos, todavia que a -necessidade e a satisfação da vingança não sejam aqui dadas como base -do direito de punir, o que não é sem duvida o pensamento d’aquelles -que sustentam a existencia d’um semelhante direito. Mas ainda que -esses sentimentos podessem ser tomados em mui séria consideração e que -se podesse definir a expiação «o direito de vingança» seguir-se-hia -que bastaria aggravar todo o delicto pelo assassinato para tirar toda -a razão de punir o criminoso; bastaria avultar o crime para obter a -impunidade; ou antes ainda bastaria, para desarmar a justiça, que a -victima quizesse perdoar ao algoz. Finalmente, se a expiação é «um -meio physico de fazer nascer no criminoso o arrependimento, o respeito -da justiça, a sympathia e o amor da humanidade», em presença d’esta -definição tambem o homem não tem direito a punir: 1.ᵒ porque n’isso -se trata d’um estado moral interno que não tem missão de estabelecer, -pelo menos em nome do direito; 2.ᵒ porque não conhece esse estado; -3.ᵒ porque não ignora os meios proprios de o procurar; 4.ᵒ porque se -privaria da applicação do principio de reciprocidade no caso do crime -capital, pois que não poderia exercel-o, quer houvesse arrependimento, -quer não: se o houvesse, seria inutil a pena; se o não houvesse, -seria necessario não o tornar impossivel com a morte do criminoso; -5.ᵒ porque em todo o caso o arrependimento tornaria a pena inutil e, -portanto, injusta; 6.ᵒ porque a hypocrisia surprehenderia muitas vezes -a justiça; 7.ᵒ porque a pena seria antes uma occasião de fraude; 8.ᵒ -porque se a pena só fosse um meio de trazer o arrependimento, haveria -o direito de a prolongar ou de a aggravar indefinidamente até obter -se o fim; 9.ᵒ porque todas as penas<span class="pagenum" id="Page_61">[Pg 61]</span> do mundo, principalmente quando -excedem a culpabilidade, são meios mui poucos seguros de trazer ao -reconhecimento da falta commettida; podem reter, mas não converter. A -mudança moral do criminoso não póde ser portanto o fim essencial da -pena, ou, se o é, está nas mãos de Deus, que só póde saber fazer o que -convem a este respeito. Mas não poderia Deus delegar nos homens, nos -soberanos o direito de punir? Eis o que se tem discutido muitas vezes -e discute ainda. Nós seriamos d’este parecer se elle ao mesmo tempo -se dignasse delegar-lhes a sua sabedoria; de outro modo não podemos -comprehender que lhes confira um direito que elles são naturalmente -incapazes de exercer. A melhor prova portanto, a nosso ver, de que -elle deixou ficar para si só o direito de punir, é que elle recusou ao -homem as luzes e o poder necessarios para exercê-lo justa e utilmente. -Esta impossibilidade de uma plena justiça n’este mundo é um dos mais -poderosos argumentos em favor de uma vida futura, se é que admittimos, -como não podemos deixar de admittir, um Deus santo e providente.</p> - -<p>O homem está tão longe de poder punir, como vulgarmente se entende esta -parte da justiça; é tão duvidoso que tenha recebido este direito por -delegação celeste, que o mesmo Deus não poderia exercel-o, a menos que -não repugnasse á sua bondade e á sua santidade suprema fazer soffrer -a uma creatura um mal physico sem outro resultado que esse mesmo -soffrimento, motivado somente n’um soffrimento igual supportado por uma -outra creatura em consequencia da acção punida. Nós reconhecemos que a -justiça absoluta não parece reclamar contra esta penalidade vingadora, -que até parece reclamá-la; sabemos que a justiça não tem necessidade -de ser util para ser legitima, que tem em si mesma sua propria razão -de ser, que faz parte da ordem moral, da ordem do direito. Mas, visto -que acima da ordem juridica, que é puramente negativa, ha no mundo -moral ainda um grau superior de perfeição, a de um bem moral positivo, -porque não seria a pena, restabelecendo a ordem negativa, corrigindo -a desordem, um meio para uma ordem melhor, um encaminhamento para o -bem? E se Deus tem a intelligencia e o poder necessario para assim -fazer sair o bem do mal, porque o não faria? Porque deixaria elle aos -homens o direito de corromper as suas disposições, de separar os meios -do fim, de aggravar o estado moral do mau tornando-o<span class="pagenum" id="Page_62">[Pg 62]</span> peor pela pena? -Acautelemo-nos todavia de cair n’uma vã disputa de palavras visto que -fica assente chamar direito de punir o direito de se proteger, de se -defender, seria pelo menos pueril disputar a tal respeito; mas para -não disputar mais, é necessario entendermo-nos. Em resumo: o homem -não tem missão de punir, para punir, isto é para restabelecer a ordem -moral perturbada pelo delicto, para fazer reinar a justiça absoluta, -applicando ao deliquente a lei por que elle se torna culpado. Não; e -posto que haja n’isso uma justiça, absoluta, objectiva a restabelecer; -ainda que o direito de punir propriamente dito só esteja n’isso e não -em outra causa; posto que o principio da reciprocidade, seja mystico, -falso, absurdo e fanatico, sem regra como sem medida; ainda que pareça -que o homem tem não sómente o direito, mas ainda o dever de fazer -reinar a justiça, encarada assim, pertence á ordem absoluta das cousas, -ao bem ou á moral em si, e o homem não tem a missão de fazer reinar -esta ordem senão na sua pessoa individual e não na sociedade; porque -lhe é aliás impossivel estabelecer este reinado da justiça absoluta -de uma maneira perfeita, visto que elle não conhece sufficientemente -os caracteres moraes do delicto, a natureza e o grau de soffrimento -d’aquelle a quem lesou, visto que não possue os meios mais proprios -para operar perfeitamente perante a reciprocidade pela escolha perfeita -da natureza e da medida da pena; o direito de punir que lhe resta não -é, fallando com propriedade, senão o direito de suavisar até um certo -ponto o soffrimento que elle sente pelo delicto, de entrar na paz de -uma segurança um instante perturbada, e de ter para o futuro uma certa -segurança. A pena tem pois, <em>para o homem</em>, sua razão n’este -interesse; razão subjectiva, relativa, mas indispensavel; estranha até -ahi todavia á necessidade moral absoluta de reparar a desordem levada -pelo delicto ao mundo moral. Mas se a pena, tal como o homem tem o -direito, senão o dever de a applicar, tem sua razão relativa ou humana -no interesse privado e publico, tem sua regra e sua medida na justiça -absoluta, justiça que o interesse, um interesse qualquer, não tem o -direito de violar.»<a id="FNanchor_31" href="#Footnote_31" class="fnanchor">[31]</a></p> - -<p>É importante o papel do pensamento, perante a responsabilidade moral -e legal no crime e na loucura, por isso a<span class="pagenum" id="Page_63">[Pg 63]</span> psychologia sobreleva -aqui a todas as sciencias. «É essencial precisar a funcção do ser -<em>psychico</em> do pensamento sob os modos de ver da responsabilidade -moral e legal, e n’esta parte ainda nós nos encontraremos em presença -de dois systemas exclusivos. «A cellula cerebral, diz o dr. Voisin, -é a officina do pensamento». Logo, a alteração do pensamento, isto -é, a loucura resultaria do desarranjo do tecido cerebral; o que é a -traducção d’este principio materialista: o pensamento é uma secreção do -cerebro. Por outra parte, dizem grande numero de espiritualistas que -a loucura é a doença da alma. Um abysmo separa estas duas doutrinas; -mas não se vê bem o que cada uma d’ellas tem de exagerada? Não existe -nenhum laço entre o estado physico e os factos de consciencia? É -preciso desconhecer inteiramente o valor intrinseco das faculdades -intellectuaes e naturaes, o estado do cerebro e dos nervos, negar -a influencia do temperamento sobre a determinação do caracter? Se -não foi possivel ainda elucidar a contento de todos estes mysterios -scientificos, se o problema das origens e das manifestações do -pensamento permanece á beira d’uma solução, a culpa d’isto é sobretudo -d’aquelles que, em campos oppostos, se recusam a toda e qualquer -concessão e paralysam por preconceito de eschola os progressos da -sciencia. Negar ao cerebro toda a acção sobre o pensamento, não ver -n’elle senão um simples intermediario, senão um agente de transmissão, -é tão exagerado como considerá-lo o grande motor e o unico centro -intellectual. Para nós, o pensamento, é um trabalho cerebral -manifestando-se á consciencia, seu director e seu juiz, isto é, o ser -psychico dominando em principio o ser organico. Póde o pensamento -ser inconsciente, e o trabalho cerebral estar latente para o sujeito -em si como o está muitas vezes para os que o cercam? Não hesitamos -em responder affirmativamente. A formula do <em>automatismo</em>, que -devemos ao genio de Descartes, estabelece a lei geral que regula -a maior parte das manifestações exteriores da vida; e está hoje -reconhecido que os centros nervosos e certos grupos de cellulas -transformam as sensações em movimentos. Tomemos ao acaso o exemplo mais -commum, o do <em>andar</em>, no qual a potencia automatica se revela -tão manifestamente. Aqui a <em>vontade</em> dá as suas ordens os orgãos -seguem-nas, e não cuida ao menos na execução; o servo substituiu -o senhor, e o senhor não intervirá senão em momento opportuno; a -vontade não obra senão para ir ou ficar. Contestar-se-nos-ha<span class="pagenum" id="Page_64">[Pg 64]</span> além -d’isto que o concurso da vontade seja necessario para o cumprimento -de certos actos apparentemente espontaneos? É evidente emfim, que -em certos momentos não podemos affastar jámais do nosso espirito as -idéas que nos cercam, que não podemos mandar como soberanos os nossos -pensamentos, que não podemos fazer reviver factos que outr’ora nos -commoveram, e cuja lembrança se revelará um dia inesperadamente, sem -causa apparente. Basta só este ultimo phenomeno para estabelecer que o -pensamento póde ser inconsciente, porque não se tem manifestado; aqui, -o trabalho intellectual não se tem operado sob o impulso da vontade. -Se escrevessemos um trabalho sobre este assumpto, poderiamos citar em -nosso apoio exemplos numerosos a que Carpenter chamou a <em>cerebração -inconsciente</em>. O philosopho, o jurisconsulto, o poeta, depois de -terem procurado em vão uma formula, uma solução, uma idéa, encontram-na -muitas vezes quando o seu pensamento menos o pensa, outras, sem a -procurar são postos em posse d’uma idéa nova.</p> - -<p>Um mathematico, depois de ter renunciado á solução d’um problema -difficil, encontral-o-ha subitamente e de improviso. Mas nós voltaremos -ao automatismo, quando fallarmos dos sonhos e do somnambulismo, e -veremos então a influencia que póde ter o trabalho involuntario do -espirito sobre as acções humanas ácerca da responsabilidade. Basta-nos -indicar agora que o pensamento póde ser inconsciente, que não é sempre -o escravo docil da vontade, que pode subtrahir-se ao seu imperio. E -não se póde dizer que este estado de que fallamos seja loucura porque -estes phenomenos dão-se em todos os homens, são geraes e soffrem-nos as -naturezas mais completas. Por isso mesmo, a existencia do pensamento -não incommoda o ser organico; o que incommoda é a sua manifestação -exterior, é a acção que imprime aos orgãos e suas funcções. O <em>ser -psychico</em>, isto é, a consciencia, a razão, a vontade e o ser -organico, isto é, a materia, o instrumento, o servidor, são os dois -elementos que constituem o homem e fundem-se em uma admiravel e -mysteriosa unidade. Cada um d’estes elementos tem o seu destino. No -principio e no estado normal, o primeiro manda e o segundo obedece. -Do desenvolvimento regular e completo d’aquelle, da sua potencia -sobre as faculdades, da sua acção sobre os orgãos dimana o <em>livre -arbitrio</em>, que se manifesta sempre que o ser psychico exerça um acto -de soberania sobre as forças humanas. A lei que é<span class="pagenum" id="Page_65">[Pg 65]</span> a vida vegetativa ou -instinctiva na escala inferior da natureza é para o homem substituida -por uma outra lei, o livre arbitrio; e este será a vida moral, -intelligente, consciente, responsavel. Se eu não visse na sua origem -seres psychicos differentes uns dos outros, se m’os representasse -todos da mesma essencia e da mesma natureza, se suppuzesse que esta -parte immaterial de nosso ser está collocada n’um involucro corporeo -sempre identico, não é menos certo que a alma póde modificar-se, -passar reciprocamente do bem ao mal, desenvolver-se ou abortar. Tanto -a alma, como o corpo tem as suas doenças, as suas debilidades, os seus -descaimentos; mas, como o corpo, ella pode curar-se, se o mal não tem -feito já taes progressos que torne todo o meio curativo impraticavel. A -alma mal formada, mal dirigida do principio, não saberia exercer sobre -o ser um imperio sufficiente e moralisador, não saberia operar sobre as -paixões e reformar os defeitos da nossa organisação. Progressivamente, -o mal augmenta, e chega um momento em que as proprias paixões, em -logar de serem dominadas, dominam ellas. A força moral superior é -anniquilada, o escravo revolta-se, e, destruindo a auctoridade do amo, -triumpha. O poder da alma sobre as sensações, as idéas e os sentimentos -desapparecem, ficam escravisados. A usurpação é sempre a consequencia -da impotencia. Por mais que diga a escola positivista, a alma, o -merito e o demerito, a noção do bem e do mal, o livre arbitrio, a -responsabilidade, não são chimeras. «Tirae a liberdade, disse Fénelon, -toda a vida humana é destruida, não fica sobre a terra nem vicio, nem -virtude, nem merito.» Mas na propria duvida, na impotencia em que esta -escola se encontra em demonstrar a verdade dos seus principios, pois -que de boa fé se deve reconhecer que tem phenomenos inexplicaveis, -porque não se refugiar pois, n’esta doutrina espiritualista que -restitue ao homem a sua dignidade, que é consoladora, que eleva? -O principio do merito e do demerito, o principio eterno de toda a -moralidade humana, será pois o ponto de partida d’este estudo; elle -deve ser nossa luz e nosso guia, atravez das obscuridades da materia e -dos systemas contradictorios dos auctores. Ora, encontraremos nas duas -origens, nos dois elementos, a alma e o corpo, os mesmos principios da -responsabilidade e da penalidade.»<a id="FNanchor_32" href="#Footnote_32" class="fnanchor">[32]</a></p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_66">[Pg 66]</span></p> - -<p>Para fazer a hypotypose rigorosa do delinquente, não basta ser -psychologo, é preciso tambem ser escriptor. Nem todos os tratadistas -teem na sua intelligencia um telescopio cujo diametro de objectiva e -distancia focal possam adequar-se a estudos de natureza tão melindrosa -e tão complexa. É menos difficil talvez com um cosmolabio medir o mundo -do que com um psychometro medir e pesar a intensidade dos attributos -moraes do homem delinquente. Por mais que os aristarchos enthusiastas -da anthropologia apregoem em estylo farfalhudo a acephalocardia moral -do criminoso, o estudo introspectivo e experimental da consciencia -pouquissimo a esse respeito nos diz por ora de positivo.</p> - -<p>Escreve o sr. Oliveira Martins:</p> - -<p>«Se esta camada movediça assenta sobre a rocha ignea da ferocidade -primitiva na stratificação geologica do crime, outra cathegoria -de criminosos apparece como na terra surgem as massas eruptivas. -Aos crimes do sangue e aos crimes do desejo, sommam-se os crimes -do fanatismo. Profundo, candente, satanico, o criminoso fanatico -irrompe com a violencia teimosa de um barbaro, mas trazendo comsigo -ao mesmo tempo a fé, a abnegação, a candura de um martyr. O que faz -chamar-se-lhe doido é que os outros crimes são expressões anormaes ou -mostruosas do egoismo individual; ao passo que este se apresenta como a -monstruosidade da paixão collectiva, que tanto armou os regicidas, como -decidiu os martyres a ganharem a palma viridente. O que impressiona -de um modo extranho e apparentemente inexplicavel, é que nos outros -criminosos a razão do crime está n’uma fatalidade positiva; organica -ou social, n’uma fatalidade em todo o caso inconsciente; ao passo -que n’estes se encontra uma consciencia completa das causas e dos -fins, e a par da lucidez quanto aos motivos, uma aberração total -quanto á criminalidade dos actos. Os crimes da paixão segundo o typo -classico de Othello, podem reduzir-se á mesma cathegoria dos crimes -do fanatismo religioso ou politico. O attentado typico d’esta especie -é o homicidio; porque uma critica nebulosa ou crepuscular denuncia -ao fanatico um certo homem como causa; quando sempre, pode dizer-se -assim, os homens são apenas effeitos de causas muito mais complexas. -Bruto assassinou Cesar, mas nem por isso a republica se restaurou em -Roma, Judith decapitou Holophernes, mas nem por isso Jerusalem deixou -de cahir. Os nihilistas russos mataram<span class="pagenum" id="Page_67">[Pg 67]</span> Alexandre II, mas o cesarismo -moscovita mantem-se. O regicidio é o typo historico moderno do crime -por fanatismo. Hoje que aos absolutismos succederam as democracias são -verdadeiros reis os centos de homens que em cada paiz dictam as leis -e imperam sobre a opinião. Sobre elles impende a responsabilidade que -outr’ora pesava sobre a cabeça dos tyrannos; e são, como elles eram, -o alvo de todos os anathemas. As erupções do fanatismo religioso ou -politico surgem nos periodos de commoção social. Approximar estes dois -factos, fazendo resaltar o seu parallelismo constante seria longo e -desnecessario. Toda a gente reconhece isto. A historia das allucinações -collectivas tem a mesma extensão que a das podridões sociaes: são as -flores venenosas que brotam do esterquilinio, ou os tortulhos molles -que na sombra humida vão minando o palacio dourado da sociedade -venturosa.»</p> - -<p>A ambição é uma tendencia congenita fortificada por inclinações -exaggeradas e pervertidas a mór parte das vezes nascidas de -predisposições organicas para a paixão ou de funestas influencias -moraes. É assim que o fanatico encubado consente que a paixão vença a -vontade.</p> - -<p>Os grandes alienistas e abalisados jurisconsultos formulam, como -postulados da responsabilidade legal, o livre arbitrio, não confundem -nunca o alienado com o criminoso, estabelecem como caracter distinctivo -do criminoso a posse da liberdade. O alienado, diz o dr. Ball, -auctoridade em psychopathia, é um homem que, em consequencia d’uma -perturbação profunda das faculdades intellectuaes, perdeu mais ou menos -completamente a sua liberdade moral e cessou, por emquanto, de ser -responsavel das suas acções perante a justiça.» Esta definição admitte -a liberdade como a essencia <em>mater</em> da alma, mas é incompleta, -porque se esquece das perturbações da ordem <em>affectiva</em>, tão -numerosas e as quaes podem levar o agente á irresponsabilidade.</p> - -<p>O dr. Dally sustentou a these seguinte: que no ponto de vista dos -interesses da sociedade e da sciencia, alienados e sãos d’espirito, -são responsaveis pelo mesmo titulo e que nada varia senão a fórma -das responsabilidades: para o criminoso o castigo, para o alienado o -asylo; «a utilidade, unico fundamento da pena exige que a sociedade se -preserve do alienado criminoso como do criminoso, pois que os actos dos -alienados não são menos perigosos que os dos delinquentes.<a id="FNanchor_33" href="#Footnote_33" class="fnanchor">[33]</a>»<span class="pagenum" id="Page_68">[Pg 68]</span> Isto -escrevia o dr. Dally, já em 1863, e os criminalistas da escola italiana -chamam-lhe pomposamente a theoria hodierna. Um alienado que commetteu -um assassino póde-se curar, com que direito se conserva preso depois -da cura? Tal captiveiro não seria nem racional nem util.<a id="FNanchor_34" href="#Footnote_34" class="fnanchor">[34]</a> N’outro -capitulo já demonstramos a falsidade de tal criterio de punir.</p> - -<p>A suggestão hypnotica em medicina legal é já um problema discutido -nas escolas alienistas de Paris e de Nancy, e cuja importancia urge -reconhecer. O individuo no estado hypnotico é inteiramente despojado -das prerogativas da sua personalidade, que ficam sendo exercidas pelo -agente que veiu installar-se na vida psychica, condicionada pelo seu -systema nervoso. É indispensavel admittir a possibilidade de suggestões -criminosas, e a investigação juridica do seu auctor, sempre que o -hypnotisado não foi a causa livre da sua hypnose, porque na hypothese -contraria, quem consentiu em ser hypnotisado e que commette um crime -por suggestão tem a responsabilidade penal do acto que praticou.<a id="FNanchor_35" href="#Footnote_35" class="fnanchor">[35]</a></p> - -<p>Os trabalhos de Gilles de la Tourette, Ladame, Puglieri, Bernheime, -Liégeois, Brouardel, Motet, etc., teem evidenciado os inconvenientes -da pratica do hypnotismo.<a id="FNanchor_36" href="#Footnote_36" class="fnanchor">[36]</a> Apresentada essa allegação juridica nos -tribunaes, a irresponsabilidade em nome da suggestão criminosa, e -admittida a hypothese de que todos os individuos são susceptiveis do -estado da hypnose, é de presumir que todos os reus se apresentassem -como victimas de mysteriosa ou vingadora suggestão criminal; e como -ha uma difficuldade quasi insuperavel de verificar esta simulação, os -accusados deviam ser absolvidos, ficando ainda com o direito de se -vingarem de qualquer inimigo, attribuindo-lhe a suggestão, como já teem -feito alguns hystericos. Muitas mulheres nevropathas teem attribuido a -violação e o rouço a homens que nunca se approximaram d’ellas.</p> - -<p>Lombroso, como diz Tarde, quer que a criminalidade seja devida a uma -suggestão posthuma, exercida sobre os vivos pelos nossos antepassados -prehistoricos.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_69">[Pg 69]</span></p> - -<p>Podemos dizer como o dr. Culerre: o crime hypnotico é possivel, mas -devemos apressar-nos a accrescentar que os progressos da sciencia nunca -crearam um criminoso e que o hypnotismo não augmentará o numero dos -scelerados.<a id="FNanchor_37" href="#Footnote_37" class="fnanchor">[37]</a> Ha quem pretenda aproveitar o estado da hypnose para -extorquir o segredo do crime. Em nosso entender privar um individuo da -sua liberdade moral, que é a mais alta prerogativa da especie humana, -para lhe devassar os arcanos da sua consciencia, é um attentado contra -o qual a razão e a dignidade conclamam. Porém quando até tal processo -levasse ao reconhecimento do delinquente, as suas revelações não podiam -merecer séria confiança do tribunal, porque podiam ser falsas como -succede com muitas denuncias da hypnose, sobre tudo na fórma hysterica. -Tão perigoso caminho seria um retrocesso aos tempos da tortura, em que -a justiça queria arrancar segredos com o supplicio da intensidade da -dôr e muitas vezes obtinha apenas angustiosas falsidades.</p> - -<p>Um dos tristes serviços que o hypnotismo podia prestar á humanidade, -era nas execuções de pena de morte, substituir os actuaes processos -pela eliminação instantanea e sem soffrimento. Admittida a hypothese de -se poder fazer parar o coração durante a somniação hypnotica é evidente -que se póde matar um individuo até sob uma suggestão agradavel, dado -o caso do hypnotisado ser suggestionavel. Uma grande emoção provocada -pela suggestão durante a hypnose seria o sufficiente talvez. Broca e -Ward sob o influxo da anesthesia hypnotica e da somniação plena da -hypnose fizeram notaveis operações cirurgicas. Estando todavia, o -condemnado de posse da idéa do dia fatal em que o querem matar, será -talvez difficil que a hypnose se realise. Em qualquer caso tambem a -acção do acido prussico, por exemplo, applicado a distancia durante -a hypnose em solução concentrada e dose forte, deve segundo Borru, -Burot e Luys produzir a morte. É evidente que os envenenadores por -este processo podem exercer a sua profissão sem que no organismo -fiquem vestigios do crime, o que é um novo e difficil problema para a -medicina legal. O dr. Ch. Vibert, Liégeois e outros medicos legistas já -estudaram o problema sob este aspecto.</p> - -<p>Joseph Kimmler será o primeiro condemnado a ser justiçado pela -electricidade. Esta invenção vem da America do<span class="pagenum" id="Page_70">[Pg 70]</span> Norte. Vão ser postos -de parte os cepos, os cestos as guilhotinas, as forcas e todos os -grosseiros apparelhos do supplicio inventados pelo homem para se dar o -logar ás correntes electricas.</p> - -<p>O machinismo está recebendo a ultima demão. Foi já experimentado -com animaes corpulentos: e as experiencias deram optimo resultado. -O programma para as ultimas horas do paciente é como segue: -Será prevenido do que o espera na manhã do supplicio. Terá, se -quizer, consolações da Egreja. Depois d’isso os ajudantes do... -da electricidade, entrarão no carcere, para darem principio á -<i>toilette</i> funebre. Calçam-lhe uns sapatos que teem nas solas duas -chapas de metal, em communicação com fios metallicos que atravessam -os tacões. As mãos do paciente são amarradas sobre o peito. O tronco -é apertado por uma correia com fivela, e tendo a cada um dos lados -uma chapa com gancho. Na cabeça põem-lhe um capacete, com um disco -do metal ao alto, e de que parte um fio de cobre em espiral, que -rodeia a cabeça. No momento de lhe collocarem o capacete, põe-se sob -o fio uma esponja pequena embebida em agua salgada boa conductora da -electricidade, como se sabe.</p> - -<p>Feito isto levam-o para a cella das execuções, onde se encontram os -magistrados que tenham de assistir ao acto. Sentam o condemnado n’uma -cadeira de pau, costas inclinadas. Os ganchos da correia que a liga -prendem-se a duas argolas de outras correias que se apertam, até -immobilisar o paciente.</p> - -<p>Em frente da cadeira ha um tamborete onde os pés do condemnado se -apoiam e se fixam. Do tecto pendem dois fios conductores isolados. E na -parede um mostrador indicará a intensidade da corrente electrica. No -aposento immediato estão todas as peças de machinismo executor. Findos -estes preparativos prende-se um dos fios que pendem do tecto ao disco -metallico do capacete. O outro liga-se aos fios dos tacões.</p> - -<p>Em seguida lança-se sobre a cabeça do paciente um veu negro e toca-se -no botão fatal, o misero terá tempo de sobejo para morrer de terror.</p> - -<p>O resto é instantaneo. O cerebro cessará entre a mór parte dos -infelizes de funccionar antes, muito antes de lá chegar a sensação do -choque.</p> - -<p>Só a descripção é um monte de torturas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_71">[Pg 71]</span></p> - -<p>De todas as funcções sociaes é o direito penal aquella que provoca mais -graves questões:<a id="FNanchor_38" href="#Footnote_38" class="fnanchor">[38]</a></p> - -<p>1.ᵒ Com que direito e com que fim se apodera o homem do seu semelhante, -para lhe infligir, a sangue frio e de caso pensado, o mal que se -denomina pena?</p> - -<p>2.ᵒ D’esta fórma procede elle apenas na qualidade de ministro d’uma -justiça superior, cuja execução lhe foi commettida?</p> - -<p>3.ᵒ Deve, pelo contrario, quando pune, propor-se unicamente manter a -ordem social, fazendo respeitar o direito; e por meio de que processos -póde attingir este fim?</p> - -<p>4.ᵒ Não lhe correria o dever de combinar estes dois principios, -restringindo a sua acção aos limites que cada um impõe?</p> - -<p>É á solução parcial d’estes problemas que consagramos este trabalho, -estudando-os, muito particularmente, sob o ponto de vista das relações -que cumpre reconhecer entre o direito e a moral.</p> - -<p>Estes problemas provocaram grande numero de systemas, que, apesar das -suas quasi infinitas variedades, podem, segundo parece, classificar-se -em tres grandes categorias principaes, que tendem a approximar-se, e -mesmo por vezes a confundir-se nos seus desenvolvimentos, sem comtudo -menos se ficarem distinguindo quanto ao especial ponto de partida de -cada uma d’ellas.</p> - -<p>Os primeiros não vêem no direito penal mais do que o exercicio d’uma -justiça superior pelo poder social revestido d’esta terrivel missão. -Consideram geralmente esta justiça como uma necessaria retribuição do -mal pelo mal, especie de expiação, que se tem a si propria como seu fim -unico; o que fez com que se lhes conferisse a denominação de theorias -absolutas.</p> - -<p>Os segundos, muito pelo contrario, não vêem na actividade penal mais -do que um meio de fundar e manter uma certa ordem social tida como -necessaria para fazer respeitar o direito. Divergem consideravelmente -entre si pelos meios de que se servem para attingir este fim. -Qualificam-nos de theorias relativas, porque não justificam a acção -penal<span class="pagenum" id="Page_72">[Pg 72]</span> senão pelo fim externo que deve attingir, e porque a encerram -nos limites do que uma tal acção reclama.</p> - -<p>Os terceiros tentam combinar os dois principios, limitando-os, e, alem -d’isso talvez, fortificando-os um pelo outro. Por uma parte, pretendem -exercer a justiça superior nos limites apenas do que as exigencias -sociaes reclamam. Por outra, esforçam-se por satisfazer estas, mas -unicamente dentro dos limites do que essa justiça auctorisa.</p> - -<p>Levar-nos-hia em demasia longe o expor e criticar minuciosamente estes -numerosos systemas.<a id="FNanchor_39" href="#Footnote_39" class="fnanchor">[39]</a> Devemos restringir-nos ao que seja necessario -para expor e motivar convenientemente as idéas em que se nos afigura -que devemos demorar-nos; e trataremos seguidamente do que respeita ás -relações do direito e da moral.</p> - -<p>Não existe, nem póde existir, senão uma base unica sobre que estas duas -leis possam solidamente apoiar-se. Esta base é o destino da humanidade -considerado em seu conjuncto, na collectividade e em cada um dos -individuos que a compõem.<a id="FNanchor_40" href="#Footnote_40" class="fnanchor">[40]</a></p> - -<p>A mira commum d’essas leis, que teem d’esse modo uma origem commum e um -fim commum, parece-nos ser a realisação d’um tal destino; mas nem por -isso menos lhes impendem missões distinctas, pelo que respeita tanto ao -que a cada uma d’ellas cumpre realisar, como aos processos a que devem -recorrer.</p> - -<p>Sentir-se ao mesmo tempo livre e obrigado a conformar-se -espontaneamente com as exigencias d’uma norma superior é o que -constitue a base e o ponto de partida da lei moral ao revelar-se na -consciencia. Estes dois sentimentos estão indissoluvelmente unidos; -suppõem-se reciprocamente, e cada um d’elles communica ao outro o -unico valor verdadeiro que o póde revestir: uma liberdade, de que nada -houvesse a fazer, seria uma força sem emprego, uma bem mysteriosa -inutilidade, que a si propria se aniquillaria tornando-se<span class="pagenum" id="Page_73">[Pg 73]</span> escrava de -brutaes instinctos; uma lei que fatalmente a si propria se executasse -seria um mechanismo degradante, sob cuja acção a dignidade humana -desappareceria totalmente.</p> - -<p>Accrescentemos, se tanto é preciso, que a conformidade com uma regra, -sem outro motivo que não seja o temor, não levaria a resultados muito -diversos.</p> - -<p>Temos até aqui fallado apenas d’uma lei cuja existencia se revela pelos -sentimentos da consciencia. Precisamos agora indagar a que fonte deve -recorrer-se para se obter o conhecimento d’essa lei. Cifra-se a questão -em investigar onde podem encontrar se os indicios do destino de que -fallamos.</p> - -<p>A regra a seguir é a que por este destino, tanto individual, como -geral, se impõe. Pode haver-se tal conhecimento pelo attento estudo -do homem considerado na natureza e na historia, quer em si proprio, -em suas necessidades, instinctos physicos e aspirações mais elevadas, -quer em suas relações com o mundo social ou physico em que deve -desenvolver-se. A existencia tem um fim que, á custa de esforços, é -preciso attingir, ou o procuremos nas manifestações d’uma suprema -intelligencia e d’uma suprema vontade, ou paremos na contemplação -de certas leis, cuja acção parece revelar-se em um demorado -desenvolvimento; leis a respeito das quaes talvez se devesse perguntar, -mais do que é costume, se em si mesmas não são as manifestações ou os -orgãos d’um Deus pessoal.</p> - -<p>A vida moral está, as mais das vezes, occulta nos arcanos do mundo -interno; não se manifesta exteriormente senão por indicios ácerca de -cuja apreciação é facil haver enganos. Por um lado, ella domina toda -a existencia, os sentimentos, os desejos, as vontades, tanto como as -acções. Por outro, só actua por convicção. Não podendo viver senão de -liberdade, retrae se ou expande-se segundo as influencias externas mais -ou menos fortes.</p> - -<p>As caracteristicas do direito mostram-no-lo bem diverso. É no exterior -que se produz e que actua por meio de um organismo completo para este -effeito destinado. Só o deve comtudo fazer nos limites do que seja -necessario para acudir, e, muitas vezes, para resistir á acção da -liberdade individual, nos casos em que isso é preciso para a manutenção -da ordem. Serve-se do constrangimento e exerce-o por meios materiaes. -O homem exterior e social é que faz objecto<span class="pagenum" id="Page_74">[Pg 74]</span> das suas mais directas -preoccupações; o homem interior e individual subtrae-se-lhe geralmente, -salvo nas relações que pode ter com certos factos externos e sociaes.</p> - -<p>A sua principal missão parece ser o garantir a cada um o que lhe deve -pertencer, crear e manter a ordem precisa ao desenvolvimento physico, -intellectual e moral, prevenir e reparar, quanto possivel, qualquer mal -que provenha de ataques ou de infracções contra essa ordem.</p> - -<p>Se fosse absolutamente necessario fixar o grao d’importancia respectiva -do direito e da moral, fariamos predominar esta ultima; é ella que -mais directamente tende a tornar-nos o que devemos ser. O direito -parece figurar mais como meio do que como fim na economia geral do -nosso desenvolvimento. Apressemo-nos a acrescentar que figura como -elemento indispensavel. Cumpre, alem d’isto, observar que estas -duas leis, embora separadas pela divergencia das attribuições e dos -processos, nem por isso conservam menos profundos vestigios da sua -origem commum e do fim superior para que devem tender os seus communs -esforços. Devem respeitar-se e auxiliar-se reciprocamente. Compete ao -direito restringir-se ao campo de actividade que especialmente lhe -está destinado; deve, tanto quanto possivel, respeitar a liberdade -necessaria para o desenvolvimento moral; deve evitar o que possa -offender as bases sobre que este assenta. A moral, pela sua parte, deve -respeitar as exigencias do direito e os processos que lhe são proprios.</p> - -<p>Parece que estes principios resultam da natureza das cousas; -poder-se-hia suppor facil fazer derivar d’elles consequencias cuja -auctoridade se fizesse geralmente reconhecer. Mas não é assim; questões -são aquellas a respeito das quaes se está longe da harmonia; achamo-nos -em presença de tres grandes categorias de systemas mencionados acima; -talvez que melhor os possamos apreciar, agora que enunciamos alguns -principios que nos dirigirão. Pode o assumpto dividir-se commodamente -em quatro paragraphos que tratem successivamente: 1.ᵒ das doutrinas -absolutas e das suas degenerescencias; 2.ᵒ das doutrinas mixtas; 3.ᵒ -das doutrinas relativas taes quaes as concebemos; 4.ᵒ d’uma comparação -entre estas ultimas e as doutrinas mixtas.</p> - -<p>§ 1.ᵒ Segundo os sectarios das theorias absolutas, á acção penal está -reservado um desenvolvimento muito maior do que aquelle de que dariam -idéa os principios acima enunciados.<span class="pagenum" id="Page_75">[Pg 75]</span> «Ha n’ella, dizem, mais do que -um direito, é um verdadeiro dever cuja observancia se exige d’um modo -imperativo.»</p> - -<p>«Embora a sociedade humana se dissolvesse pelo unanime consenso de -todos os seus membros, dizia Kant, deveria ser executado o ultimo -assassino que se achasse preso, afim de que cada um soffresse o castigo -dos seus actos, e de que o sangue vertido não cahisse sobre o povo que -não tivesse reclamado essa punição.<a id="FNanchor_41" href="#Footnote_41" class="fnanchor">[41]</a>»</p> - -<p>Em um tal systema, o fim social e juridico da pena desapparece e -absorve-se n’uma ordem d’idéas muito mais vasta: já se não tracta de -defesa e de protecção, mas de expiação. É certo que se nos diz que os -processos d’esta justiça superior realisam accessoriamente o fim social -e humano da pena.<a id="FNanchor_42" href="#Footnote_42" class="fnanchor">[42]</a></p> - -<p>Não nos demoraremos a indagar o que n’esta ultima asserção, que nos -parece muito contestavel, póde haver de verdadeiro. É evidente que -isso depende muito das idéas que se formam ácerca da ordem que convem -realisar. Julgamos poder limitar-nos a dirigir as seguintes perguntas -aos sectarios d’estas doutrinas: Tendes sufficientes provas de que uma -tão terrivel missão haja sido confiada ao Estado? Não seria natural -pensar que, se o soberano legislador, de quem esta justiça dimana, -a não exerce por si proprio na economia actual, é porque julgou -conveniente reserval-a para outros tempos? Não póde ter querido que -nós caminhemos n’esta vida, mais pela fé do que pela vista, em uma tal -ordem de idéas?</p> - -<p>Estaes bem certos de que formaes noções exactas ácerca da natureza -d’esta justiça suprema? Não poderia haver n’isso mysteriosos arcanos -que escapem aos nossos olhos? O Estado, que encarregaes d’esta missão, -possue sufficientemente as faculdades intellectuaes e moraes que ella -suppõe? Possue o necessario poder de observação? Disporia, alem d’isso, -de penalidades bastante flexiveis e divisiveis para corresponderem ás -gradações tão variadas da culpabilidade moral? Se se arroga o direito -de infligir todas as penas, não deverá conceder egualmente todas as -recompensas merecidas? Não haveria n’isto uma fonte de dificuldades e -até de novas impossibilidades?</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_76">[Pg 76]</span></p> - -<p>Fazer seguir immediatamente todas as acções das penas ou das -recompensas que devam corresponder-lhes, não seria despojar a vida -moral da auréola de desinteresse ou de fé que constitue a nobreza -d’ella? Sempre comprimida no exterior, não acabaria por succumbir nas -profundezas intimas que pareceria deverem ser o seu ultimo refugio?</p> - -<p>Taes são as idéas que mais frequentemente se encontram na base do -que se chama—theorias absolutas; e taes as objecções que suscitam. -Enganar-nos-hiamos comtudo, se suppozessemos identicos entre si todos -os systemas que nasceram d’estas theorias ou que a ellas se prendem. -Nelles se encontram, muito pelo contrario, differenças, e até graos.</p> - -<p>Uns abrangem todo o dominio da moral em suas vastas concepções, -salvo em recuar ante as resistencias e as impossibilidades que se -levantariam, se se tratasse de fazer uma applicação completa d’estas -ultimas.</p> - -<p>Outras circumscrevem-se ao campo mais restricto do direito. -Subdividem-se porque uns submettem os factos que os preoccupam ás -regras da sancção moral, ao passo que outros buscam uma sancção -especial.</p> - -<p>As bases em que se firmam estes systemas não são sempre as mesmas; -uns não vão além dos sentimentos, quasi somos levados a dizer, dos -instinctos da consciencia. D’isto achamos um notavel exemplo no -discurso com que D. Cirilo Alvarez, então presidente da Academia de -Jurisprudencia e de Legislação de Madrid, inaugurava, em 26 de outubro -de 1872, o curso annual das deliberações d’esta sociedade.</p> - -<p>Eis o que se lê n’esse discurso destinado a justificar a pena de morte:</p> - -<p>«O fim da justiça penal não é a emenda e a correcção dos culpados. A -lei penal corresponde a um fim social mais elevado: ao restabelecimento -da ordem moral, abalada pelo crime, á lei de responsabilidade que pesa -sobre o homem por motivo de suas más acções, a essa lei inexoravel da -expiação e da penitencia que tem origem no remorso, n’esse phenomeno -interno do nosso espirito a que não podemos subtrahir-nos... É n’essa -lei de responsabilidade, n’essas manifestações da consciencia, n’esses -soffrimentos da alma, que se produzem sempre conforme a gravidade dos -factos, que se encontra a base da lei penal em todas as gradações -fixadas pela legislação e pela sciencia, para distinguir a fraqueza do -vicio, o vicio do crime.»</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_77">[Pg 77]</span></p> - -<p>«É também n’esses phenomenos moraes, e unicamente n’elles, que se -encontra a explicação philosophica d’essas palpitações da consciencia -universal em presença do crime, palpitações que se revelam pela -inquietação e pela agitação dos espiritos, pela indignação e pela -colera das multidões contra o criminoso.<a id="FNanchor_43" href="#Footnote_43" class="fnanchor">[43]</a>»</p> - -<p>Outros recorrem a um mais profundo estudo da vida, ou a certas -combinações logicas das idéas. Diz-se, por exemplo, que a pena é uma -nova afirmação da lei, que a negação implicitamente resultante do crime -ou do delicto torna indispensavel. Quer isto dizer, em termos mais -simples, que a pena é uma sancção necessaria da lei.</p> - -<p>Outros ainda, elevando-se, segundo a nossa opinião, a uma concepção -mais digna da justiça divina, attribuem-lhe um fim de regeneração do -culpado. Collocam-se assim, desde o começo, fóra do absoluto completo, -de que se afastam a distancias muito diversas segundo as applicações -que fazem do seu principio superior. Póde-se effectivamente attender á -moral no seu conjuncto, ou apenas ao direito. Póde-se, n’esta ultima -hypothese, procurar uma verdadeira regeneração moral, mudando até o -fundo do caracter, ou, pelo contrario, não se ir alem do que se poderia -chamar uma regeneração social, que tenda unicamente a conseguir que o -culpado deixe de ser um perigoso membro da sociedade, ainda que não -fosse senão pelo temor dos castigos. Assim reentra-se no dominio das -theorias relativas.</p> - -<p>Consagramos certissimamente todas as nossas sympathias aos esforços -empregados para obter a regeneração moral do culpado; mas não suppomos -possivel tomal-a para principal base do direito penal. É um fim que se -precisa recommendar ao zelo dos philantropos; mas, se o considerassemos -como entrando directamente nas attribuições do Estado, suscitaria -isto, em parte ao menos, as objecções por nós apresentadas contra as -verdadeiras theorias absolutas; o Estado não possue nem as faculdades, -nem os meios que presuppõe o exercicio d’uma tal missão. Para elle só -póde haver n’isto um fim necessario e occasional, mas deve zelosamente -procurar attingil-o nos limites do que cabe á sua natural competencia.</p> - -<p>§ 2.ᵒ—As theorias absolutas teem ainda muitos adeptos;<span class="pagenum" id="Page_78">[Pg 78]</span> mas, como -dissemos, offerecem numerosas variedades. Podemos até dizer que os -costumes juridicos das nossas civilisações occidentaes haviam de -oppor-se a que se fizesse d’ellas completa applicação. Era para -desejar que se fixassem limites precisos ao seu desenvolvimento. Foi -o que as doutrinas que chamámos mixtas se esforçaram por conseguir, -encerrando-as no ambito marcado pelas necessidades da ordem social. -Conciliar e limitar um pelo outro os dois principios que parecem -disputar-se o campo do direito penal era, certissimamente, uma bella -idéa; teria prestado grandes serviços, se tivesse podido realisar-se. -Vejamos o que ha a tal respeito.</p> - -<p>Julgamos poder citar o nosso antigo compatriota Rossi como tendo -apresentado o typo mais explicito, mais nitido e melhor conhecido -d’esta categoria de systemas. Seja qual fôr o futuro reservado á sua -obra, sempre terá de reconhecer se n’ella a manifestação d’um grande -talento: «M. Rossi é, no seu genero, o primeiro jurisconsulto do -seculo» dizia-nos um dia o nosso illustre mestre, De Savigny.</p> - -<p>Entendemos dever accrescentar que, mesmo que se viesse a abandonar esta -obra, não se lhe diminuiria o merito de ter exposto as questões com uma -precisão completa, sem nenhuma d’essas obscuridades, que dão muitas -vezes logar a que se interpretem conforme convem as idéas apresentadas -como fundamentaes.</p> - -<p>Perdoar-se-nos-hão estas linhas dictadas pelo reconhecimento. Tanto -mais justificaveis nos pareceram ellas, quanto suppomos dever combater -uma corrente de idéas muito respeitaveis, e que foram revestidas d’uma -grandissima auctoridade. Ha muitissimo tempo que nos apartámos d’ellas. -Este trabalho póde a muitos respeitos ser tido como uma nova edição -das theses que publicámos em 1836 para solicitar o grao de licenceado. -Confirmaram-nos em grande parte na nossa maneira de ver mais de 40 -annos de estudo e de experiencia.</p> - -<p>«O fim da justiça absoluta, dizia Rossi, consiste no proprio -cumprimento d’ella; é porque é; attinge todas as infracções da lei -moral; assenta nos principios eternos do justo e do injusto; é um -attributo do Ser infinito. O mal merece o mal; o homem injusto deve -reparação á justiça; é uma sancção necessaria; a ordem moral deve ser -restabelecida pela pena. Esta justiça comtudo não desenvolve toda a<span class="pagenum" id="Page_79">[Pg 79]</span> -sua acção n’este mundo. O direito penal compõe-se d’uma parte absoluta -e d’uma parte relativa, de principios de justiça e de regras de -utilidade.</p> - -<p>A justiça do homem não deve ultrapassar a justiça absoluta; não deve -mesmo absorvel-a; não deve castigar senão no interesse da ordem social, -e nos limites apenas da culpabilidade moral. Acha-se ella, por assim -dizer, encerrada em tres circulos concentricos: o da justiça intrinseca -da punição, o da manutenção da ordem social, o de meios proprios para -attingir com utilidade esse fim pela acção penal. É uma delegação -parcial da justiça divina confiada a seres imperfeitos e falliveis, -que d’elle só devem fazer uso para um fim restricto e determinado, a -garantia dos elementos constitutivos da ordem social.<a id="FNanchor_44" href="#Footnote_44" class="fnanchor">[44]</a>»</p> - -<p>N’esta categoria de systemas observa-se naturalmente uma variedade -maior ainda do que nas doutrinas absolutas, porque se complica com -elementos mais numerosos. De pleno accordo ácerca da necessidade de -se não ir além do que as exigencias sociaes reclamam, adoptam uns -as regras applicaveis á responsabilidade moral, demandam outros uma -sancção mais apropriada á natureza especial do direito. Carrara, -senador do reino de Italia e professor de direito penal na Universidade -de Pisa, parece-nos dever citar-se como exemplo d’esta ultima -tendencia. Affigura-se-nos que a sua doutrina deve ser classificada -no numero das que chamámos mixtas, porque invoca, diversas vezes, -uma cessão parcial da justiça absoluta como base do direito penal, -criticando, com grande vivacidade, as idéas que professa Rossi. Cremos -que o seu systema póde consubstanciar-se em algumas proposições -fundamentaes:</p> - -<p>«Existe uma justiça absoluta, de que só uma parte foi cedida ao poder -social para manter a ordem e proteger o direito. Esta justiça penal -deve reparar o mal proveniente do delicto; deve, n’este intuito, -combater os impulsos que podem resultar do máo exemplo dado pelo -culpado, e restabelecer no espirito dos innocentes os sentimentos -de segurança, d’elle afugentados pelo facto punivel.» Não é á -culpabilidade<span class="pagenum" id="Page_80">[Pg 80]</span> moral que tem de ir buscar se a gradação das penas, mas -ao que Carrara qualifica de força ou intensidade do delicto, ou seja ao -<i>quantum</i> de vontade livre manifestada pelo facto e á influencia -exercida por este sobre os resultados produzidos.</p> - -<p>Os escriptos de Carrara offerecem provas numerosas d’uma grande -erudição e d’um notavel talento d’analyse. Não hesitamos em collocal-o -á frente dos criminalistas da epocha actual. É uma posição adquirida -por consideraveis trabalhos, pela veneração de que os muitos -discipulos o cercam, e pela inesgotavel fonte de ensinamentos que os -escriptos d’elle fornecem, mesmo quando se divirja do seu modo de ver. -Inclinamo-nos a pensar que o seu systema poderia dispensar a idéa d’uma -delegação parcial da justiça absoluta, porque o auctor firma-se em -bases que se esforça por fazer derivar da natureza do direito.<a id="FNanchor_45" href="#Footnote_45" class="fnanchor">[45]</a></p> - -<p>Outros auctores, embora dizendo-se partidarios das theorias relativas, -não podem comtudo deixar de fazer concessões ao elemento moral, o que -dá em resultado a necessidade de indagar qual a justificação d’estas -concessões, e, sendo possivel, até onde devem chegar.</p> - -<p>Citaremos como exemplo Franck, que, depois de ter repellido toda e -qualquer idéa d’uma expiação confiada ao poder social, e vivamente -refutado o systema de Rossi, parece apresentar-se resolutamente -como partidario das theorias relativas, mas sem que attribua menos -importancia ao elemento moral na fixação das penas. Não é fácil, -parece-nos, encontrar no livro d’elle os meios de se reconhecer -sufficientemente este facto pela applicação de algum principio -superior. O systema afigura-se-nos conseguintemente affecto d’uma -especie de dualidade.<a id="FNanchor_46" href="#Footnote_46" class="fnanchor">[46]</a></p> - -<p>A mesma ordem de idéas revelam os escriptos de Bertauld.<a id="FNanchor_47" href="#Footnote_47" class="fnanchor">[47]</a> Reconhece -que a doutrina d’um direito de punir fundado na justiça moral, limitada -pela utilidade social, ganhou,<span class="pagenum" id="Page_81">[Pg 81]</span> durante a primeira metade do nosso -seculo, um largo campo na philosophia do direito. Adquiriu, diz elle, -uma verdadeira supremacia. Guizot, de Broglie, Rossi, de Rémousat -defenderam-na, e, graças a elles, está escripta em nossas leis, e -especialmente na reforma do Codigo Penal de 28 d’abril de 1832. -Comtudo, acrescenta, encontra ella hoje contradictores.</p> - -<p>Bertauld expõe d’esta maneira as suas idéas, depois de ter lembrado e -criticado as professadas por Franck:</p> - -<p>«Inflige-se o castigo ao infractor por motivo da sua infracção e não -em virtude das infracções que se temem para o futuro... Houvesse -certeza de que a infracção não poderia repetir-se, tanto da parte do -agente como de quaesquer outros, e a lei violada poderia legitimamente, -porque é uma lei, executar-se... A sociedade reclama do seu chefe, por -força do seu proprio direito, uma expiação: não a reclama em nome e -em virtude d’uma delegação de Deus... O direito de punir em si, não -deriva d’uma vontade superior.» O auctor acrescenta mais adiante: «O -poder social que não póde ordenar cousa alguma immoral, e que nem -mesmo tem rasões para ordenar tudo o que é moralmente obrigatorio, -gosa do direito de impor, com a sua sancção penal, quando o interesse -collectivo que representa e reclama, acções ou abstenções que a lei -moral não prescreve nem condemna. Eu quero que a penalidade social -seja uma expiação e a liquidação d’uma divida, mas é uma expiação e a -liquidação d’uma divida não para com Deus, mas para com a sociedade.»</p> - -<p>Não fazemos uma obra de critica; poremos de lado qualquer discussão; -diremos unicamente que é impossivel não ficar desejando explicações -mais amplas ácerca do <em>porquê</em> e do <em>como</em> d’este systema, e, -muito particularmente, ácerca da medida das penas, teremos de abstrahir -completamente dos graos de culpabilidade moral?</p> - -<p>O auctor em outro logar acrescenta ainda: Se se diz, segundo a nossa -opinião, que o direito de punir deriva do direito de auctoridade, a -questão unica será saber o que é que o soberano pode legitimamente -prescrever ou ordenar, e regular a importancia das sancções pela -importancia das prescripções.</p> - -<p>O soberano poderá preceituar tudo o que exigir a conservação e -o desenvolvimento da ordem social e nunca preceituará<span class="pagenum" id="Page_82">[Pg 82]</span> cousa -alguma incompativel com a lei moral, porque não ha ordem social em -contradicção com esta lei.<a id="FNanchor_48" href="#Footnote_48" class="fnanchor">[48]</a> Quereriamos saber até onde deve chegar -esta harmonia entre o direito e a moral. Trata-se apenas do que -cumpre preceituar, ou tem ella de ampliar-se até ao grao das penas? -Perguntaremos, se se nos responder n’este segundo sentido, quaes são as -differenças praticas entre este systema e o de Rossi.</p> - -<p>Lendo as numerosas criticas actualmente dirigidas contra este ultimo, -necessariamente se nos depara com frequencia esta observação: -repellindo tal systema, é-se, comtudo, levado, ao que parece, n’uma -corrente de idéas não sem analogia com as que acabamos de combater. -Não haveria, em tal caso, legitimas aspirações da consciencia? Seria -possivel satisfazel-as com uma suficiente precisão?</p> - -<p>É o problema que quereriamos resolver, quanto possivel, na fraca medida -das nossas forças.</p> - -<p>A maior dificuldade com que luctam os verdadeiros systemas mixtos -consiste na conciliação de dois elementos que parecem excluir-se -reciprocamente: o relativo e o absoluto. Estão alem d’isto naturalmente -expostos ás objecções que se oppõem a cada um dos dois principios -que se esforçam por combinar. A grande superioridade que se arrogam -consiste em evitar os excessos a que poderia levar cada um d’estes -principios tomado isoladamente. Duvidamos de que realmente possam -conseguir esse fim; entendemos, de mais a mais, que nas theorias -puramente relativas, quando sensatamente entendidas, podem encontrar-se -garantias analogas, sem que offereçam eguaes perigos. Parece-nos que -os receios suscitados por estas ultimas, e as accusações que se lhes -dirigem, respeitam muito menos aos principios que lhes servem de base, -do que ás idéas frequentissimamente incompletas, mesquinhas e parciaes -que d’ellas se teem formado. Não o escondemos a nós mesmos: ha contra -ellas bastantes prejuizos que queremos combater, porque nos parece isto -indispensavel para attingirmos o fim que nos propomos.</p> - -<p>Em nossa opinião, prestar-se-hia um grande serviço á sciencia do -direito penal, se a desembaraçassem, d’uma vez para sempre, das velhas -idéas d’uma delegação total ou parcial da justiça de Deus. Não é que -resolvamos inclinar-nos<span class="pagenum" id="Page_83">[Pg 83]</span> sem reservas ante as soberanias d’este mundo. -Julgamol-as, a ellas proprias, subordinadas a uma regra superior; uma -regra, porém, especial e humana, não porque deixe de ter uma origem -superior, mas porque respeita á nossa existencia terrena, á missão que -impõe aos representantes da ordem social.</p> - -<p>Cumpre não nos illudirmos: novas criticas que se dirigissem contra -as theorias mixtas não teriam provavelmente resultados diversos dos -precedentes; se se quer que desappareçam, é preciso satisfazer, em -parte, ao menos, ás necessidades e aos sentimentos que as determinaram. -Vejamos se, sem ir além das theorias puramente relativas, não é -possivel conseguir aquelle fim.</p> - -<p>Digamol-o desde já; não temos a pretensão de haver descoberto fosse -o que fosse; nada mais fizemos do que tratar de apontar phenomenos -geralmente conhecidos, perguntando a nós mesmos se não é possivel achar -n’elles a solução desejada; é o resultado d’este estudo que vimos -submetter á critica.</p> - -<p>Quando acaba de commetter-se um crime, é natural preoccupar-nos com os -meios pelos quaes se poderia evitar a repetição d’elle.</p> - -<p>Parece que é o auctor do facto a primeira pessoa contra quem deve -proceder-se; como impedil-o, porém, de o renovar? Só por tempo, -relativamente breve, podem collocal-o na impossibilidade physica de -recomeçar. Seria louvavel e não deveria certamente perder-se de vista o -trabalhar para o seu aperfeiçoamento moral; mas é uma empreza de largo -folego e cujos resultados são muito incertos. Recorre-se geralmente á -intimidação; oppõe-se o temor da pena ás seducções do crime.</p> - -<p>Tudo isto póde justificar-se; mas resta saber se são medidas -sufficientes. Póde considerar-se o perigo social como inteiramente -concentrado na pessoa do criminoso? O facto que acaba de dar-se não é, -pelo contrario, o indicio e a consequencia d’um phenomeno mais geral, -que exige uma reacção mais ampla.</p> - -<p>É bem certo que o perigo que é preciso combater existia antes da -realisação do facto, porque o facto produziu-se. Basta, além d’isto, -estudar, pouco que seja, o movimento da vida social, para reconhecer -que as infracções que se trata de prevenir teem a sua origem n’um -conjuncto de impulsos<span class="pagenum" id="Page_84">[Pg 84]</span> mais ou menos poderosos. Estas forças perigosas -são, no fundo, as mesmas, antes e depois da perpretação do crime; -apparecem como o objecto principal da reacção necessaria: é dos -delinquentes futuros que principalmente é preciso tractar. O facto de -se delinquir sob a acção d’estas forças é apenas uma circumstancia -especial que não deve ser completamente despresada, mas que só póde -exercer uma influencia restricta.</p> - -<p>Os principaes partidarios d’esta acção geral d’uma força preventiva, -servem-se de expressões muito energicas para significarem o modo -como esta acção deve exercer-se. Falam d’um constrangimento ou d’uma -dynamica psychologica<a id="FNanchor_49" href="#Footnote_49" class="fnanchor">[49]</a>, do temor tendente a reprimir as tentações -perigosas<a id="FNanchor_50" href="#Footnote_50" class="fnanchor">[50]</a>, do mal que excede o proveito que o criminoso deve colher -do delicto<a id="FNanchor_51" href="#Footnote_51" class="fnanchor">[51]</a>. Parecem-nos, em si, exactas estas expressões, salvos os -correctivos de que adiante falaremos.</p> - -<p>Este conjuncto de systemas justifica-se, em principio, pela absoluta -necessidade de fazer respeitar o direito, recorrendo em caso de -necessidade, ao constrangimento. Assenta n’um facto de observação -facil de verificar, e que leva a um conjuncto de regras geraes quanto -á ponderação das penas; tracta-se apenas de estudar o meio social em -que se quer actuar, e de preceituar penas correlativas ou á importancia -dos interesses a proteger, ou á força dos impulsos contra que é -preciso luctar. Pode-se frequentemente recorrer á experiencia em tal -assumpto. Os outros systemas levam quasi necessariamente a uma especie -de casuistica em que é preciso conceder muito á livre apreciação dos -tribunaes.</p> - -<p>A acção preventiva<a id="FNanchor_52" href="#Footnote_52" class="fnanchor">[52]</a>, cujos principaes caracteristicos acabamos -de apontar, tem sido objecto de criticas muito asperas; diz-se que -ha n’ella alguma cousa de degradante e de brutal; é um recurso ao -terror; maltractam o culpado como um instrumento destinado a servir de -exemplo. O legislador torna-o uma victima dos proprios erros; elle é -que é culpado;<span class="pagenum" id="Page_85">[Pg 85]</span> devia prescrever penas bastantes para que não houvesse -contravenções; enganou-se nas observações e nos calculos; não satisfez -á missão de que se incumbira. Chega-se mesmo a dizer que, em um tal -systema, não é necessario provar a culpabilidade para se infligir -uma pena, visto que o supplicio d’um innocente póde produzir o mesmo -effeito preventivo que o de um criminoso. Acrescenta-se que cada nova -infracção deveria augmentar as severidades da lei, por ficar assim -demonstrada a insufficiencia das antigas penalidades.</p> - -<p>Digamol-o desde já: Não ha principio que não conduza a consequencias -inaceitaveis, logo que, separando-o d’aquelles com que devia -combinar-se, o levem, n’esse estado de isolamento, até aos seus -ultimos desenvolvimentos logicos. Cumpre, alem d’isso, reconhecel-o: -os proprios partidarios d’uma acção preventiva não estão isentos de -defeito no modo por que diligenciaram definil-a e justifical-a.</p> - -<p>Fala-se d’uma maneira demasiadamente directa e exclusiva d’uma -protecção da sociedade contra os attentados a que está exposta. Faz-se -nascer assim a idéa d’uma lucta de todos contra cada um, lucta em que -este seria quasi necessariamente sacrificado.</p> - -<p>É preciso renunciar a taes formulas, e proclamar em alta voz: A ordem -social não se justifica e não tem rasão de ser senão como meio de fazer -reinar o direito. Esta regra superior impõe-se a todos, tanto aos -estados como aos individuos; dá a cada um o que lhe compete, e cobre -com a sua protecção o accusado e o culpado mesmo, tanto como o queixoso -e a victima. É um dos principaes merecimentos de Carrara ter muito -particularmente insistido na idéa d’uma defesa do direito como base da -sociedade.<a id="FNanchor_53" href="#Footnote_53" class="fnanchor">[53]</a></p> - -<p>Com demasiada frequencia se considera que o estado desempenha -unicamente o papel d’um gendarme encarregado de vigiar por que os -individuos se não invadam reciprocamente o campo de actividade que -lhes é destinado. Esta doutrina, favorecida pelo systema de Kant, -devia levar ao individualismo que hoje predomina; póde egualmente -fazer considerar exclusivamente exterior em demasia a ordem que ao -direito incumbe manter. É preciso não o esquecer: esta ordem exterior -não é mais do que uma base sobre que deve<span class="pagenum" id="Page_86">[Pg 86]</span> produzir-se um completo -desenvolvimento intellectual e moral; n’isto é que está o principal -fim: não haveria senão mentira em qualquer ordem exterior que, para se -produzir, offendesse esse desenvolvimento superior.</p> - -<p>São de molde a tranquillisar os espiritos as observações que -precedem, porque reduzem ao seu justo valor os defeitos invocados -pelos adversarios d’uma acção preventiva em direito penal. O accusado -certamente achará garantias sob um regimen em que deve ser protegido o -direito de todos.</p> - -<p>Não é ser tratado como um instrumento, e sacrificado a um fim estranho, -o soffrer um regimen a cujos rigores deu causa a negligencia e a -vontade culposa. É isto tanto mais verdadeiro, quanto este facto é uma -condição necessaria para a manutenção d’uma ordem de cousas com que -cada um aproveita, e que deve cada um respeitar como uma lei da sua -natureza.</p> - -<p>O temor de um materialismo exagerado, quer pelo que respeita ás -tendencias contra que julgam dever luctar, quer pelo que respeita aos -reagentes que procuram oppor-lhes, não se justifica sufficientemente -pelos principios do systema; nada ha n’esses principios que -necessariamente conduza a um tal materialismo; os impulsos que devem -combater-se para se satisfazer a esta doutrina são de diversas -naturezas, bem como o são os meios de se lhes resistir.</p> - -<p>A acção preventiva do direito penal tambem não tem necessariamente -como consequencia levar a exaggeradas severidades, sacrificando tudo a -uma certa ordem exterior, e redobrando de rigor a cada nova infracção. -N’este systema, como nos outros, não se poderia ter a pretensão de -manter a ordem d’uma maneira absoluta: não pode esquecer-se que é -precisa, tendo em vista um fim superior, a sujeição a certos limites, -e o respeito pela maior somma possivel de liberdade. Leva-nos isto ao -estudo das relações que devem existir entre o direito e a moral. Chegou -o momento de melhor profundarmos as particularidades d’este assumpto; -esse é, como já vimos, o fim principal do presente estudo.</p> - -<p>Convem fazer notar que, propondo-nos oppor o reagente da pena ás -seducções do delicto, é sobre a vontade, isto é, sobre um elemento -essencial da vida moral, que procuramos actuar.</p> - -<p>Se falta completamente esta liberdade, não pode tratar-se da pena, -porque o elemento sobre que esta devia exercer<span class="pagenum" id="Page_87">[Pg 87]</span> influencia não existe. -Chegamos assim aos mesmos resultados a que chegariamos, se unicamente -nos preoccupassemos com uma culpabilidade moral que não poderia dar-se -em tal hypothese. Mas esta ausencia e esta diminuição de liberdade -podem apresentar gradações e provir de causas diversas, por uma parte -de violentos impulsos, e, por outra, d’um estado normal e doentio. -Occupemo-nos successivamente d’estes dois casos, attendendo ás relações -do direito e da moral.</p> - -<p>1.ᵒ Quanto ao obstaculo proveniente dos fortes impulsos, é preciso -distinguir entre duas hypotheses:—a) Esses impulsos são de tal ordem -que fazem desapparecer completamente a liberdade. Parece que, sendo -assim, deve desapparecer qualquer imputabilidade segundo uma e outra -lei, resalvando-se os casos em que esses impulsos proviessem d’um -desenvolvimento de paixão contra o qual teria sido possivel luctar. -Pode acontecer, todavia, que o direito se declare impotente em casos -em que a moral não haja perdido toda a competencia; tal seria o de -dois naufragos que se disputassem um destroço insufficiente para -salvar ambos. Em geral seria difficil recusar um tributo de louvor e -de admiração áquelle dos dois que se sacrificasse pelo outro. Podia -egualmente succeder que devesse infligir-se uma censura mais ou menos -severa a um ou a outro, conforme as circumstancias.</p> - -<p>Poderia até dar-se uma verdadeira violação de direito. Mas, n’uma -tal posição, o estado de natureza e os instinctos vitaes predominam -com tamanha força, que não seria escutada a ameaça d’uma pena, e que -dificilmente se justificaria a imposição d’ella—b) Esses impulsos -deixam subsistir um certo grau de liberdade reconhecido por uma e -outra lei. A moral distinguirá: verá circumstancias attenuantes na -acção d’essas causas, se, em si, forem innocentes ou louvaveis; verá -circumstancias aggravantes, se forem condemnaveis. E o que será feito -do direito penal? Não deveriam calcular-se unicamente pela força de -taes impulsos as exigencias da acção preventiva? Não se poderia mesmo -avançar que é preciso proceder com rigor, tanto maior quanto maior é -a falta de reacção moral? Não se poderia citar como exemplo um pae de -familia que a miseria impelle até o roubo para prover á sustentação da -mulher e dos filhos? Não pode parecer necessario redobrar de severidade -para luctar contra impulsos taes?</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_88">[Pg 88]</span></p> - -<p>2.ᵒ A mesma dissidencia e as mesmas questões se levantam quanto -aos obstaculos que um estado anormal ou doentio póde impor ao -desenvolvimento da liberdade. N’elle verá geralmente a moral -circumstancias attenuantes. Póde, ao contrario, pensar-se que em -direito penal, é necessario ferir com tanta maior força quanto mais -obtuso e quasi embrutecido fôr o individuo de que se trate.</p> - -<p>Escusamos de o dissimular: estes conflictos e estas questões -apresentam-se nitidamente ao espirito, se apenas se attende á ordem -material, e á necessidade de a manter estrictamente e rigorosamente. -Talvez se fosse tentado a acceitar, a tal respeito, o dilemma admittido -pelo criminalista italiano Giuliani, ferveroso discipulo de Romagnosi:</p> - -<p>«<i>Se se admitte um principio differente d’aquelle segundo o qual as -penas devem ser graduadas em conformidade com a força dos impulsos -que conduzem ao mal, esse principio deverá conduzir a differentes -resultados; exigirá uma pena mais ou menos forte. Essa pena será -excessiva ou insufficiente. Seria injusta n’este ultimo caso, tanto -para com a sociedade, que tem o direito de ser efficazmente protegida, -como em relação ao culpado, que se veria atormentado sem que d’isto -resultasse nenhum bem publico.</i>»<a id="FNanchor_54" href="#Footnote_54" class="fnanchor">[54]</a> Vejamos comtudo se não deve -resultar uma outra resposta d’um estudo mais profundo do assumpto.</p> - -<p>Vimos quaes podem afigurar-se ser as exigencias d’uma ordem puramente -material; cumpre-nos indagar quaes devem ser as da ordem moral, e qual -a influencia que sobre as primeiras são chamadas a exercer.</p> - -<p>A consciencia é, como o dissemos já, o elemento primordial e -necessario de todo o desenvolvimento moral. Cada um de nós escuta, -nas profundidades do seu ser, uma voz que lhe diz: Tu és livre; mas -este nobre privilegio traz comsigo mesmo o principio d’uma austera e -terrivel responsabilidade, porque é preciso fazer d’elle o uso exigido -por uma lei superior. Ha entre o bem e o mal uma distincção que, -nem por ser algumas vezes offuscada pela ignorancia ou pela paixão, -deixará de se fazer reconhecer: é preciso procurar o primeiro e evitar -o segundo. Degrada-se e compromette-se quem não obedece a esta regra, -porque se colloca voluntariamente fóra do caminho que devia trilhar.</p> - -<p>Esta voz faz-se perpetuamente ouvir para nos evocar á<span class="pagenum" id="Page_89">[Pg 89]</span> realidade das -cousas. Tem-se visto luctar com vantagem contra o septicismo d’uma -escola que um espiritualismo exagerado levava a desconhecer o mundo -externo.<a id="FNanchor_55" href="#Footnote_55" class="fnanchor">[55]</a> Lucta actualmente contra o materialismo e o fatalismo: -confiamos em que não será suffocada. É bem certo que não se poderia -abstrahir d’este testemunho directo da nossa natureza superior: -não é sem motivos e não deve ser em vão que se faz ouvir com tal -persistencia. Vejamos agora que influencia deve exercer no direito -penal.</p> - -<p>Faremos observar, em primeiro logar, que não é unicamente um elemento -individual: apresenta-se tambem debaixo d’uma fórma collectiva e -social. Cada nação vive d’uma vida moral que lhe é mais ou menos -propria e que se manifestou por muito tempo no direito consuetudinario -cuja origem só póde explicar-se por uma auctoridade expontaneamente -reconhecida. Mudaram os tempos: parece não bastar este modo de -proceder, e substitue-se-lhe um largo desenvolvimento do poder -legislativo; mas não conserva menos cada povo um fundo de vida moral -que lhe é propria, e que lhe constitue uma das linhas principaes do -caracter nacional.</p> - -<p>Occupemo-nos agora de cada um d’esses dois aspectos da consciencia em -face do direito penal.</p> - -<p>Qualquer acto da vida moral é seguido, na consciencia individual, -d’um sentimento de approvação ou de reprovação que, em si mesmo, -constitue já uma especie de sancção pela impressão de contentamento -ou de descontentamento que deriva d’elle. Esta manifestação primeira -póde parecer que não está directamente em relação com o direito; mas -ainda vae alem; como precedentemente dissemos, vem juntar-se-lhe -uma impressão de merito ou de demerito. A felicidade promettida aos -bons não provoca geralmente nenhuma pretensão directa relativamente -ao direito: seria impossivel encarregar o Estado de directamente -satisfazer a tanto, d’uma maneira ampla. Mas exercendo de facto o -Estado o poder de infligir penas, pergunta-se se não deveriam seguir-se -os avisos da consciencia no exercicio d’essas funcções, e até que ponto -póde convir o embrenhar-se n’esse caminho.</p> - -<p>O mao merece ser desgraçado! Estas austeras vozes repercutem-se<span class="pagenum" id="Page_90">[Pg 90]</span> -de edade em edade com demasiada persistencia para que seja licito -abstrahirmos d’ellas completamente. Parece, alem de tudo, muito -difficil que um ser intelligente e sensivel não soffra fora do caminho -que deve trilhar. Deve-se comtudo ter cautella em não materialisar este -sentimento exigindo que o Estado o satisfaça directamente. Não temos -de repetir aqui os argumentos que apresentámos acerca das doutrinas -absolutas, quer consideradas em si, quer nas diversas combinações que -se tem tentado effectuar entre o principio da expiação e as exigencias -d’uma protecção social. Quanto mais estudamos essas combinações, mais -nos convencemos da impossibilidade de as conseguir, e dos perigos que -se correm, tentando-o. D’aqui não resulta comtudo que o direito penal -possa abstrahir completamente dos juizos da consciencia. É verdade -que nenhuma medida commum existe entre o sentimento abstracto de -demerito que se prende á culpabilidade moral, e as penas geralmente -physicas infligidas pelo Estado; mas seria engano concluir que nunca -podem levantar-se conflictos entre estes dois elementos. Já o vimos: -as exigencias sociaes parecem algumas vezes reclamar severidades que -se não harmonisam com a verdadeira culpabilidade moral; deriva d’ahi -certissimamente um sentimento doloroso para a consciencia. Qual deve -ser a influencia d’um tal facto sobre a pratica do direito?</p> - -<p>Digamol-o em primeiro logar: esse sentimento é, em si, natural e -legitimo. Soffrer quando se vê exercer uma demasiada severidade, não é -o mesmo que reclamar penas mais rigorosas. É mais grave infligir um mal -immerecido do que abster-se ou restringir-se dentro de limites tidos -por estreitos em demasia. Para preencher lacunas taes, eis ahi sempre -a auctoridade superior, de cuja justiça se quereria ver o exercicio. -Acrescentemos que, sendo a consciencia moral um dos principaes -elementos do progresso individual e social, não pode admittir-se que o -Estado não tenha de preoccupar-se com elle, ainda que não fosse senão -para respeitar e deixar que se cumprisse uma obra tal.</p> - -<p>O que dissemos ácerca das relações que devem existir entre as duas leis -indica sufficientemente que a vida humana não pode dividir-se em duas -partes; uma puramente juridica e outra puramente moral; existe entre -estes dois elementos uma acção e uma reacção necessarias e reciprocas; -demonstra-o a natureza das cousas, e confirma-o a historia: se tem<span class="pagenum" id="Page_91">[Pg 91]</span> -de viver n’um mundo em demasia contrario ás suas crenças e ás suas -aspirações, o homem moral tende a insurgir-se ou a degradar-se; as mais -das vezes, succede-lhe uma e outra cousa ao mesmo tempo. A demasiada -severidade das penas dá muito particularmente este resultado. Deriva -d’ella um sentimento de incerteza e de mal-estar; o accusado parece ser -uma victima que cumpre lastimar e tractar de subtrahir á sorte injusta -que a ameaça. É assim que a impunidade tende a produzir-se no meio da -anarchia e d’uma desmoralisação geral. O proprio Feuerbach, um dos mais -rigorosos partidarios do constrangimento psychologico, reconhecia a -necessidade de nos curvarmos perante um poder tal.<a id="FNanchor_56" href="#Footnote_56" class="fnanchor">[56]</a> Digamos ainda -que os sentimentos da consciencia não podem senão embotar-se n’um meio -social que os não considera sufficientemente. Vendo-os desconhecer com -demasiada frequencia, fica-se em duvida se não seriam vãs illusões.</p> - -<p>Ha, pois, que fazer concessões á consciencia moral. Comparando com as -doutrinas mixtas as idéas cujos traços principaes acabamos de expor, -é que veremos qual a natureza d’essas concessões, e até onde devem -ir. Taes idéas não offerecem aliás nenhuma novidade: são apenas a -maneira de viver cada vez mais consagrada pelos factos. O systema das -circumstancias attenuantes reconhecidas pelo jury, no fundo não é mais -do que a realisação pratica de taes concepções.</p> - -<p>§ 4.ᵒ—As differenças caracteristicas que distinguem estas theorias das -antigas theorias mixtas parecem-nos evidentes; mas não é menos preciso -resumil-as e pol-as em relevo com toda a exactidão e precisão possiveis.</p> - -<p>Assentam estas doutrinas mixtas, no fundo, sobre a combinação de -quatro idéas que apresentam como principios, cuja estricta observancia -é necessaria em vista das garantias e dos limites que para o direito -penal d’elles devem resultar:</p> - -<p>1.ᵒ Ha uma justiça absoluta que retribue o mal com o mal, tendo em -vista uma expiação que tem a causa em si propria;</p> - -<p>2.ᵒ A ordem social exige, para se conservar, que se inflijam certas -penas aos que a perturbem;</p> - -<p>3.ᵒ Esta penalidade exerce-se em virtude e em execução d’uma delegação -parcial da justiça absoluta;</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_92">[Pg 92]</span></p> - -<p>4.ᵒ Esta delegação não é admissivel senão nos limites do que é -necessario e possivel para a manutenção da ordem social.</p> - -<p>A idéa d’uma expiação absoluta, como base unica da justiça suprema, é, -como já dissemos, mais ou menos difficil de conceber.</p> - -<p>A delegação parcial d’esta justiça não parece nem justificada -nem exequivel. Afiguram-se taes doutrinas, em todos os casos, -demasiadamente superiores ás nossas faculdades e demasiadamente -discutiveis, para que seja possivel tomal-as como base d’um poder tão -temivel.</p> - -<p>Acrescentaremos que as garantias e os limites que se procuram n’esta -combinação bem poderiam ser illusorios, e que não deixariam de -offerecer perigo.</p> - -<p>Expor-se-hia a bastantes decepções quem buscasse na justiça absoluta -garantias e limites contra os rigores da justiça social; porque esta, -para justificar as severidades que julga necessarias, apenas tem de -elevar um ou muitos graos toda a escala da penalidade moral. O que é -facil na falta de qualquer medida commum aos dois generos de penas -e em presença da infinita grandeza do soberano legislador cujas -determinações foram violadas. Não se tem já pretendido que todas as -medidas e todas as gradações desapparecem em presença do infinito?</p> - -<p>Offerece este systema duas fontes de perigos: 1.ᵒ Não é impossivel que -n’elle se encontre, em vez d’uma diminuição um augmento da penalidade; -2.ᵒ é possivel tambem que n’elle se encontrem limites que não permittam -satisfazer as exigencias sociaes.</p> - -<p>a) Já o dissemos: é uma ardua tarefa conciliar as regras absolutas da -expiação moral, tal qual se concebe geralmente n’essas doutrinas, com -as necessidades puramente relativas da ordem social.</p> - -<p>Nem sempre será facil fugir ao que ha de naturalmente imperioso na -primeira ordem de idéas; poderá ser-se levado a elevar tal ou tal -pena sem verdadeira necessidade social, unicamente para manter uma -certa harmonia na gradação reclamada pela lei moral. Poderia conduzir -a consequencias semelhantes o desejo de evitar um mao exemplo que -parecesse resultar de taes contrasensos.</p> - -<p>Se se admitte um só principio justificativo da pena, unicamente se -applicará esta depois de rigorosamente verificado se esse principio a -reclama.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_93">[Pg 93]</span></p> - -<p>Se se admittem dois, poderá succeder que se seja mais facil na -applicação d’um, em virtude da evidencia que se manifeste quanto á -applicação do outro. Uma culpabilidade moral n’um alto grao de certeza -poderá fazer com que se attenda mais ou menos de leve á verificação das -necessidades sociaes. Adquirir-se-ha pelo pensamento a segurança de -que, no fim de tudo, o accusado, soffrendo a pena, unicamente soffrerá -o que mereceu.</p> - -<p>O systema não terá, sem duvida, sido estrictamente observado n’estes -dois casos; mas não é superfluo attender ás possiveis fraquezas da -nossa pobre humanidade.</p> - -<p>b) Cumpre reconhecer que, muito frequentemente, as penas que parecem -necessarias pelo que respeita á segurança social, parecem exceder a -culpabilidade moral, no sentido, ao menos, de que tal circumstancia -póde reclamar uma elevação da acção repressiva, sem que o facto -represente em si um correspondente aggravo moral. A justiça militar em -tempo de guerra e certas medidas de salubridade e de ordem publicas -parece terem taes exigencias.</p> - -<p>É interessante notar a attitude de M. Rossi ao fallar das medidas -tendentes a prevenir a invasão das doenças epidemicas ou contagiosas. -Depois de ter provado a severidade muito rigorosa a que se costuma -recorrer em taes circumstancias, esforça-se por justifical-a dizendo -que se é moralmente muito culpado quando, por imprudencia, se expõe um -paiz aos ataques d’um semelhante flagello.<a id="FNanchor_57" href="#Footnote_57" class="fnanchor">[57]</a></p> - -<p>É o que geralmente se faz: accommoda-se a culpabilidade moral ao perigo -social. Offerecem-se aqui duas observações:</p> - -<p>1.ᵃ se devesse sempre existir uma tal proporção, não vemos que -accrescimo de garantias e que limites se obteriam combinando os dois -principios.</p> - -<p>2.ᵃ Já vimos, falando dos obstaculos que se oppõem ao pleno -desenvolvimento da liberdade, que uma tal harmonia nem sempre existe. -Parece alem d’isso ser preciso ir mais longe, e reconhecer a este -respeito um motivo quasi permanente de desaccordo. O direito carece -de apoiar-se em principios abstratos conducentes a regras geraes; a -moral depende frequentemente de convicções individuaes que transfiguram -algumas vezes as regras sociaes em formulas mais<span class="pagenum" id="Page_94">[Pg 94]</span> ou menos importunas, -cuja conveniencia se não justifica sufficientemente quer em si mesma, e -d’um modo geral, quer em attenção a taes circumstancias particulares.</p> - -<p>Estas regras podem até afigurar-se manifestamente injustas e nocivas. -Nem por isso devem respeitar-se menos em direito estricto e rigoroso. -É o que demandam as exigencias da ordem. Mas, collocadas no ponto -de vista puramente moral, seria difficil abstrahir completamente -dos escrupulos e até das extravagancias e dos erros da consciencia -individual. A opinião publica não se engana: sem criticar uma certa -pena como em demasia severa, longe está ella de a tomar sempre como -medida da censura que dirige contra o agente. Dá-se certamente alguma -cousa semelhante no tocante ás medidas sanitarias. É-se sem duvida -culpado de expor um paiz aos ataques d’um mal que se teme, mas é -facil haver illusões a este respeito. Póde alem de tudo acontecer que -imperiosos deveres venham combater e diminuir a auctoridade da lei.</p> - -<p>Vejamos o que, sob este ponto de vista, deve pensar-se das idéas que -defendemos como base do direito penal. Não temos aqui mais do que -um principio unico que tenta proteger todos os direitos e todos os -interesses commettidos á sollicitude do Estado. São as necessidades -sociaes que devem predominar em um tal systema; mas não se referem só á -ordem material; devem attender á ordem superior a que esta servirá de -ponto de partida e de meio.</p> - -<p>O elemento moral figura n’elle sob um aspecto inteiramente diverso do -que tem nas theorias mixtas. Não se trata d’uma doutrina nascida de -locubrações scientificas e impondo-se imperativamente: consideramos -a consciencia um facto que é preciso respeitar, e a que é preciso -attender, em vista da sua grande importancia moral e da influencia -que exerce na auctoridade e na verdadeira efficacia da lei penal. -Apresenta-se, como já vimos, sob dois aspectos. Vejamos que papel é -necessario distribuir-lhe no desenvolvimento da actividade repressiva.</p> - -<p>Compõe-se esta actividade de dois elementos: 1.ᵒ um certo numero de -regras mais ou menos abstractas e geraes, preceituadas pelo poder -legislativo; 2.ᵒ a applicação d’essas regras aos casos particulares -n’ellas previstos.</p> - -<p>1.ᵒ Quanto ao primeiro d’esses dois elementos, não devemos -certissimamente, ir além do que chamamos moral publica<span class="pagenum" id="Page_95">[Pg 95]</span> ou consciencia -nacional. É n’isso, n’esse conjuncto de tradicções, de convicções e de -sentimentos derivados da historia de cada povo, que bem manifestamente -se encontram as bases da vida collectiva e social d’elle; é ahi que ao -mesmo tempo deve procurar-se a obra do seu passado e o ponto de apoio -sobre que deve desenvolver-se o seu futuro. É um poder que só com -respeito deve considerar-se em attenção á origem e á sua importancia. -Não é preciso lisongear ninguem, e o povo, ainda menos talvez do que -os individuos. Mas todo o povo, de que não deve desesperar-se, tem -na sua vida intima um certo numero de idéas moraes reconhecidas mais -ou menos sãs. É isso que constitue o lado bello do caracter nacional -e da moral publica. É esse fundo commum que o legislador deve tomar -para base da sua obra, se quer que o povo se desenvolva livremente e -viva de vida propria. É n’esse facto d’uma consciencia nacional que é -preciso attentar, no que tem de verdadeiramente acceitavel. É n’elle -que convem buscar apoio para combater os impulsos perigosos que são o -objecto da acção penal. É d’elle que se torna necessario respeitar as -susceptibilidades.</p> - -<p>Ha um nucleo de vida moral, uma base de progresso futuro que é preciso -manter cuidadosamente. Digamol-o comtudo: esta parte sã da consciencia -nacional é muito affectada por um sentimento doloroso quando assiste -a condemnações que lhe parecem em demasia severas, mas geralmente não -leva tão longe as suas exigencias como deveriam fazel-o as doutrinas -mixtas, para se manterem verdadeiramente fieis aos seus principios.</p> - -<p>Ha necessidades sociaes que cada um deve acceitar porque se impõem -imperiosamente. Quem voluntariamente abriu lucta com a lei reconhece -ter justamente incorrido nas penas que ella preceitua, embora -procedesse com as mais honrosas intenções. Ha muito que este facto -se aponta: um dos homens que a historia mais cercou de respeito, -Washington, era regularmente um rebelde. Quem ousaria accusal-o de -culpabilidade moral, e, se tivesse succumbido na sua empreza, quem se -molestaria com uma condemnação proferida contra elle? Quaes teriam -sido, em semelhante hypothese, os sentimentos d’um partidario das -doutrinas mixtas?</p> - -<p>2.ᵒ—A influencia da consciencia nacional reapparece ainda, mas d’um -modo menos directo, no exercicio da acção judiciaria. É d’um facto -individual que se tracta; é o que<span class="pagenum" id="Page_96">[Pg 96]</span> se passou na consciencia do agente -que cumpre apreciar moralmente. Se se quer ser justo e equitativo, -não é possivel abstrair das circumstancias do facto, dos impulsos e -das convicções especiaes sob cuja influencia o acto se produziu. Mas -o meio moral predominante no paiz deverá necessariamente exercer uma -larga influencia em tal apreciação. O que de resto é justo, porque são -em geral esses principios de moral publica que actuaram, deveram ou -poderam actuar na perpretação do facto; são elles que o juiz deve tomar -em consideração, mais do que as suas convicções individuaes, que podem -afastar-se muito da corrente geral.</p> - -<p>Acrescentemos que deve haver harmonia entre a acção legislativa e a -judiciaria, d’onde resulta que esta ultima deve, como a primeira, fazer -concessões á consciencia racional. Que nós, se se nos perguntar até -onde se deve ir n’este caminho, diremos que seria difficil formular a -tal respeito regras absolutas; são questões essas a respeito das quaes -o legislador e o juiz devem ter um certo poder d’apreciação.</p> - -<p>Tudo o que podemos dizer é que, se fosse preciso escolher entre -os effeitos d’uma ordem material que só assentasse no temor, e a -auctoridade moral d’uma pena acceite pela consciencia, não hesitariamos -em nos inclinarmos para esta ultima. Estamos persuadidos de que, -satisfazendo ás mais altas aspirações da nossa natureza, essa escolha -estaria bem longe de comprometter a ordem tal qual deve reinar.</p> - -<p>Ainda uma vez, a ordem material deve ser considerada como condição -d’uma ordem superior que se lhe não deve sacrificar. É ahi que se -encontra a solução do problema que nos propozemos. É pela elevação da -ordem social á sua verdadeira altura, sem perder de vista o fim ultimo -para que deve tender, fazendo entrar n’ella todos os elementos que deve -conter, que se dá satisfação, tanto quanto possivel, aos sentimentos -moraes que n’ella podem achar-se mais ou menos offendidos.</p> - -<p>É certo que esta corrente d’ideias apenas conduz a uma especie de -transacção, e que em tal assumpto, mais que em qualquer outro, sente-se -a necessidade d’um apoio em principios fixos. É a objecção que nos -apresentava um dos mais distinctos dos nossos antigos magistrados, que -desempenhava então as funcções de procurador geral, e que morreu ha -pouco. Todas as nossas sympathias seriam votadas a taes sentimentos, se -fosse possivel dar-lhes uma conveniente satisfação.<span class="pagenum" id="Page_97">[Pg 97]</span> A questão é essa, -e cremos tel-a estudado com uma conscienciosa perplexidade.</p> - -<p>Não basta crear principios, é preciso que assentem n’uma base solida -e possam combinar-se sem se chegar a resultados incompativeis. É -necessario encarar a vida tal qual se nos apresenta, e quanto mais -observamos, mais nos parece demonstrado que as complicações sociaes são -difficeis de se reger por meio de regras abstractas, que se desenvolvam -com um rigor mathematico. Devemos dar-nos por felizes quando podemos -reconhecer certos principios dirigentes. Julgamos tel-o conseguido no -presente estudo, sem deixarmos de dar aos factos toda a importancia que -devem ter.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_98">[Pg 98]</span></p> - - -<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_29" href="#FNanchor_29" class="label">[29]</a> Tissot, <i xml:lang="fr" lang="fr">Le droit pénal, etudié dans ses principes</i>, -t. I, pag. 197.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_30" href="#FNanchor_30" class="label">[30]</a> Boitard, <i xml:lang="fr" lang="fr">Leçons sur le Code pénal</i>, pag. 66.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_31" href="#FNanchor_31" class="label">[31]</a> Cf. entre outras obras sobre o direito de punir em geral, -F. J. Goebel, <i xml:lang="fr" lang="fr">De legitima sui defensione</i>.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_32" href="#FNanchor_32" class="label">[32]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue générale du droit, de la législation et de la -jurisprudence en France et de l’étranger</i>, Echn. Labotat—Paris, -pag. 32 e 35.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_33" href="#FNanchor_33" class="label">[33]</a> <i>Ann. médic, psych.</i>, tome II, pag. 273.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_34" href="#FNanchor_34" class="label">[34]</a> Lelorrain, <i xml:lang="fr" lang="fr">De l’aliené au point de vue de la -responsabilité pénale</i>, pag. 90.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_35" href="#FNanchor_35" class="label">[35]</a> Dr. Giulio Belfiore, <i xml:lang="fr" lang="fr">L’ipnotismo e gli stati -affini</i>, pag. 299.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_36" href="#FNanchor_36" class="label">[36]</a> Ferreira-Deusdado, <i>Ensaios de philosophia actual</i>, -pag. 179.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_37" href="#FNanchor_37" class="label">[37]</a> A. Culerre, <i xml:lang="fr" lang="fr">Magnetisme et Hypnotisme</i>, pag. 372.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_38" href="#FNanchor_38" class="label">[38]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Étude sur l’influence légitime de la conscience morale -en droit pénal</i>, par Charles Brocher, professeur á l’Université -de Genéve.—Paris. Este trabalho, que vae até ao fim do cap., foi -traduzido por indicação nossa, na <i>Revista de Educação e Ensino</i>, -4.ᵒ anno, pag. 339 e seguintes, pelo nosso illustre amigo o sr. Alfredo -da Cunha, talentoso advogado e distincto homem de lettras.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_39" href="#FNanchor_39" class="label">[39]</a> Julgamos poder indicar especialmente as obras -seguintes: Hepp, <i lang="de" xml:lang="de">Darstellung und Beùrtheilung der deutschen -Strafrechtssysteme. Ueber die Gerechtigkeits, und Nutzungstheorien des -Auslandes</i>—Rœder, <i lang="de" xml:lang="de">Verbrechen und Strafe</i>.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_40" href="#FNanchor_40" class="label">[40]</a> V. tambem a introducção do nosso <i xml:lang="fr" lang="fr">Etude sur la légitime -et les réserves</i>. Paris et Genève, 1868. V. tambem os nossos -<i xml:lang="fr" lang="fr">Etudes sur le droit naturel</i> na <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue générale du droit</i>. -Paris, 1877 (<i xml:lang="fr" lang="fr">Exposé critique des Institutes de droit naturel</i>, de -M. Lorimer).</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_41" href="#FNanchor_41" class="label">[41]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Droit Naturel</i>, traducção Barni, p. 197.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_42" href="#FNanchor_42" class="label">[42]</a> V. especialmente Abegg, <i lang="de" xml:lang="de">Die verschiedenen -Strafrechtstheorien</i>.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_43" href="#FNanchor_43" class="label">[43]</a> Este discurso acha-se entre os documentos da dita -Academia.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_44" href="#FNanchor_44" class="label">[44]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Traité du droit pénal.</i> V. especialmente: -Introducção, Livro I, cap. 9, 12, 13; Livro III, cap. 4.—V. em sentido -proximamente analogo, o artigo publicado pelo Duque de Broglie na -<i xml:lang="fr" lang="fr">Revue française</i>, 1828, e a obra de Guizot sobre <i xml:lang="fr" lang="fr">La peine de -mort</i>, cap. 6.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_45" href="#FNanchor_45" class="label">[45]</a> V. especialmente o <i xml:lang="fr" lang="fr">Programme d’un cours de droit -criminel</i>, cujo 1.ᵒ volume foi traduzido por M. Baret, em 1876. -Expozemos e criticamos os principios geraes d’esta doutrina n’um artigo -que se imprimia quasi simultaneamente com estas linhas na <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue de -droit international de Gand</i> (1878).</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_46" href="#FNanchor_46" class="label">[46]</a> Franck, <i xml:lang="fr" lang="fr">Philosophie du droit pénal</i>, cap. V, pag. -189 e seguintes.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_47" href="#FNanchor_47" class="label">[47]</a> V. especialmente <i xml:lang="fr" lang="fr">La liberté civile</i>, pag. 457, 475 -e seguintes, pag. 486.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_48" href="#FNanchor_48" class="label">[48]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Cours de code pénal</i>, Append. pag. 652, da edição -de 1864.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_49" href="#FNanchor_49" class="label">[49]</a> Feuerbach, <i lang="de" xml:lang="de">Lehrbuch des peinlichen Rechts</i>, § 12. -Romagnosi, <i lang="it" xml:lang="it">Genesi del diritto penale</i>, §§ 334 a 336, 339, 1273.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_50" href="#FNanchor_50" class="label">[50]</a> Carmignani, <i lang="it" xml:lang="it">Teoria delle leggi delia sicurezza -sociale</i>, t. III, ap. 22, 65, 69, 75, 87, 94, 176; t. IV, p. 5.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_51" href="#FNanchor_51" class="label">[51]</a> Bentham, <i xml:lang="fr" lang="fr">Théorie des peines</i>, ch. 5.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_52" href="#FNanchor_52" class="label">[52]</a> V. especialmente, no que respeita á prevenção individual, -Roeder <i lang="de" xml:lang="de">Verbrechenund Strafe</i>, p. 73; e a mesma obra, p. 105 e -seguintes, pelo que respeita aos systemas que se propõem á regeneração -do criminoso.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_53" href="#FNanchor_53" class="label">[53]</a> V. o <i xml:lang="fr" lang="fr">Programme</i> anteriormente citado, t. 1.ᵒ § -611, e <i>passim</i>, e <i lang="it" xml:lang="it">Prolusione al corso accademico di diritto -penale</i>, anno 1873-1874.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_54" href="#FNanchor_54" class="label">[54]</a> <i lang="it" xml:lang="it">Instituzioni di diritto criminale</i>, 2.ᵃ ed., pag. -116 do t. I.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_55" href="#FNanchor_55" class="label">[55]</a> Alludimos especialmente á escola de Kant e ás derivadas -d’ella. V. o que a este respeito dissemos em o nosso <i xml:lang="fr" lang="fr">Étude sur la -vie et les oeuvres de K.—S. Zachariæ</i>.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_56" href="#FNanchor_56" class="label">[56]</a> <i lang="de" xml:lang="de">Lehrbuch des gemeinen peinlichen Rechts</i>, § 18, -notas.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_57" href="#FNanchor_57" class="label">[57]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Droit constitutionel</i>, t. II, p. 267 e 282.</p> - -</div> -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_99">[Pg 99]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="IV">IV</h2> -</div> - -<div class="section"> - -<p>A existencia congenita do sentimento religioso. A utilidade da -sua acção disciplinadora. Vantagens d’este elemento na educação -correcional. A opinião dos criminalistas italianos e d’um notavel -principe da Egreja.</p> -</div> - -<div class="blockquot"> - -<p>A religião é o problema por excellencia dos tempos modernos.</p> - -<p class="right"> -JOHN TYNDALL.<br /> -</p> - -<p xml:lang="fr" lang="fr">Si la religion n’est pas le fondement de la morale, elle est le -fondement de son efficacité pratique.</p> - -<p class="right"> -PAUL JANET.<br /> -</p> -</div> - - -<p>A crise que está atravessando a moral e o sentimento religioso é um -problema grave. O nosso seculo é a epoca de transição entre um passado -insufficiente e um futuro prenhe de audaciosos acontecimentos, que os -espiritos circumspectos e que veem largo, não ousam encarar sem um -grande espanto ou um justo receio.</p> - -<p>Os revolucionarios e os innovadores não se inquietam, porque esperam -ver um dia o genio do homem sair victorioso do combate titanico, que -a sciencia travou contra as forças da natureza, escondidas ainda na -intelligencia humana. Mas o conteudo do decimetro cubico da nossa massa -encephalica fica absolutamente satisfeito com a sciencia positiva? A -religião é uma fórma transitoria da evolução humana como<span class="pagenum" id="Page_100">[Pg 100]</span> pretendem os -positivistas? É uma invenção dos sacerdotes como queriam os philosophos -do seculo passado? Tem origem n’um sentimento passageiro, como dizia o -poeta romano: <i lang="la" xml:lang="la">primus in orbe deos fecit timor</i>?</p> - -<p>Ao estudarmos as religiões na sua continuidade historica, na filiação -dos cultos, no encadeamento logico das concepções, vemos que o passado -é a génese inexgotavel do futuro. Ainda que a civilisação verta sobre -a alma da humanidade muitos gozos e beneficios a razão achal-os-ha -impotentes para a satisfazer. A religião é, na vida humana sensivel, -comtemporanea da dôr e durará tanto como ella. O seu objecto ficará -sempre como sublime aspiração para um ideal que não abranje só este -mundo, e que como uma columna de fogo illuminará nas crises dolorosas -a senda mysteriosa da consciencia humana. O homem dirige-se pelas -idéas verdadeiras ou falsas, mas dirige-se e consola-se tambem pelo -sentimento. Póde affirmar-se que são principalmente os sentimentos -os moveis da nossa actividade e que a nossa vida moral, no que ella -tem de externo á lei do dever, dimana sempre d’um sentimento ou d’uma -emoção a procurar ou a evitar. É possivel que n’um futuro longinquo, -a sciencia acabe sobre a terra por substituir completamente o cerebro -ao coração, o raciocinio ao sentimento, tornando a alma humana inane -ao aguilhão do desejo e indifferente ás emoções da sensibilidade. No -momento evolucionario em que não houver nem amor, nem dedicação, nem -piedade, nem ternura, nem sinceridade, n’esse dia a vida humana, tal -como a concebemos, terá desapparecido n’um horror de tristeza, na -profundissima treva cantada por Byron. As puras abstracções da sciencia -não podem dirigir, nem satisfazer a humana aspiração. Nenhuma realidade -contingente póde encher a vida immensa da nossa alma.</p> - -<p>Penetrando pela analyse nos factos passados da humanidade, reconhecemos -em grande parte, que muitas das suas concepções mais consoladoras e -mais queridas, com as quaes ella explicava a natureza das cousas, -cairam á luz das investigações severas da sciencia como phantasmagorias -enganosas. Aos velhos deuses, ainda que invejosos e crueis, -susceptiveis ao menos de misericordia, succedeu a fatalidade inexoravel -da lei, que é surda á supplica do crente e inaccessivel á esperança do -afflicto. Alguns espiritos demasiado positivos promettem á humanidade -pela sciencia um futuro reinado de Astrêa, quando em verdade nunca -durante o imperio incontestado<span class="pagenum" id="Page_101">[Pg 101]</span> dos deuses o homem foi tão escravo -como é hoje em frente das leis desapiedadas e brutaes da natureza. São -todas as religiões positivas uma illusão, uma chimera? Supponhamos, sem -o conceder todavia, que sim. Mas não ha na sciencia muita hypothese -gratuita, muita theoria enganosa? Eu prefiro a crença na doutrina que -tem servido de doce abrigo e de suave conforto á humanidade desditosa, -á explicação hypothetica fornecida pela dura realidade da sciencia, mas -que rouba ao coração humano o sentimento augusto da esperança, que é -mais verdadeiro que o da propria felicidade.</p> - -<p>Não póde negar-se que todo o sentimento religioso tem um fundo de -verdade. É-nos desconhecida a natureza intima, o principio que inspira -essas manifestações, mas essa ignorancia existe a proposito de muitos -phenomenos scientificos. Por ventura conhecemos, por exemplo, a -natureza intima da electricidade?</p> - -<p>Se o sentimento religioso tem sempre um fundo de verdade, resulta -até perante a sciencia que a religião é evidentemente util. A -especulação religiosa foi o primeiro factor intellectual que elevou a -alma humana acima da animalidade «sendo, como diz Littré, necessario -e indispensavel um systema philosophico ou conjuncto de idéas por -meio das quaes tudo seja explicado; na ausencia do verdadeiro que -estava ainda na sombra de um longinquo futuro, os homens crearam-no -hypothetico, mas não arbitrario; transitorio, mas conforme ao estado -intellectual do momento. Estes systemas foram a theologia e a -metaphysica.»</p> - -<p>Esta affirmação de que o estado theologico é transitorio é o reflexo da -falsa lei comteana dos tres estados. Não ha tres methodos radicalmente -oppostos de philosophar, o methodo é essencialmente o mesmo, a -integração das causas é que progressivamente converte principios -explicativos menos geraes n’uma lei universal. Escreveu Diderot na sua -<i>Carta sobre os cegos para uso dos que vêem</i>. «Se a natureza nos -offerece um nó difficil de desfazer, deixemol-o pelo que vale e não -empreguemos a cortal-o a mão de um ser que em seguida se torna para nós -um novo nó mais indissoluvel que o primeiro. Perguntaes a um indio como -está o mundo suspenso nos ares; responder-vos-ha que descança no dorso -de um elephante; e o elephante sobre que assenta? Sobre uma tartaruga. -E esta quem a sustenta?... O indio causa-vos dó!»</p> - -<p>A existencia do homem, diz J. Stuart Mill, apresenta-se<span class="pagenum" id="Page_102">[Pg 102]</span> primeiro -envolta no mysterio: a estreita região da nossa experiencia é como uma -pequena ilha perdida n’um mar immenso que eleva os nossos sentimentos -ao mesmo tempo que estimula a nossa imaginação pela sua immensidade e -pela sua obscuridade.</p> - -<p>O que obscure mais o mysterio, é que o dominio da nossa existencia -terrestre não é sómente uma ilha no espaço infinito, mas tambem -no tempo infinito. O passado e o futuro furtam-se egualmente ás -nossas vistas: não sabemos nem a origem, nem o fim de nenhuma cousa -existente.<a id="FNanchor_58" href="#Footnote_58" class="fnanchor">[58]</a> A religião e a poesia pelas suas concepções idealmente -bellas e grandiosas é que mitigam em parte a sêde da nossa alma. A -influencia da religião melhora e ennobrece no individuo a natureza -humana. As religiões da humanidade civilisada, incluiram nos seus -preceitos os melhores principios de moral, que a razão e a bondade -poderam crear com elementos tirados quer da philosophia, quer da -historia heroica, quer d’outra parte.<a id="FNanchor_59" href="#Footnote_59" class="fnanchor">[59]</a></p> - -<p>A religião na sua pureza ideal é o refugio das almas superiormente -delicadas, e nas suas fórmas regularmente cultuaes e dogmaticas é -a philosophia das massas, cujo influxo pesa salutarmente no seu -espirito pelo amor ou pelo receio. Não desprezemos nada do que póde -melhorar-nos, porque a nossa felicidade é a hypothese, emquanto o -infortunio é a realidade.</p> - -<p>Não temos a certeza positiva de ser immortaes, mas temos a consciencia -de ser feitos para a immortalidade. Nutrimos o horror pelo nada e -o amor pela idéa de viver eternamente. Quando offerecemos o nosso -coração, quando dedicamos o nosso affecto, é para sempre, cada uma -das nossas faculdades aspira a fins que não attingem só este mundo. -Esta vida é preludio d’uma tarefa immensa que tem por guia a visão -do infinito. A razão almeja constantemente por uma verdade absoluta, -a vontade aspira a uma virtude perfeita. A natureza indestructivel -da alma deve ser acceite por todos os que admittem a permanencia -de força, substancia que não póde cessar. Mas esta immortalidade é -irrisoria porque não salva a bondade do nosso esforço, nem assegura o -desenvolvimento da nossa perfectibilidade. Viver e mudar são synonimos, -todavia viver é triumphar da mudança, reconhecendo a personalidade.<span class="pagenum" id="Page_103">[Pg 103]</span> O -homem deve ser immortal, porque tudo é immortal e indestructivel, desde -o imperceptivel verme, desde o grão de areia, desde a gota d’agua até -ao astro o mais colossal e o mais radiante. Mas a vida na immortalidade -humana, deve recordar a personalidade. A religião e a poesia são as -duas fórmas mais elevadas que reveste esta modalidade do nosso ser, -por isso o vago sentimento poetico e o indefinido sentimento religioso -serão eternos. O caminhar da civilisação póde mudar a corrente do -sentimento religioso, mas jámais poderá esgotar-lhe a nascente.<a id="FNanchor_60" href="#Footnote_60" class="fnanchor">[60]</a> A -religião é uma necessidade do coração e uma necessidade racional.</p> - -<p>Magistratura civil e magistratura espiritual na sua funcção sociologica -completam-se mutuamente. O juiz pune, o professor e o sacerdote -podem emendar o delinquente. Diz S. João Chrysostomo, fallando dos -magistrados: «quanto a vós se deixaes o criminoso impune contribuis -para que elle se torne peior; se o condemnaes ao supplicio, não -conseguis emendal-o. Eu não o deixo ir impune, mas nem por isso o -castiguei ao vosso modo; procuro-lhe a penitencia que me parece justa e -assim faço com que elle por si mesmo se corrija do mal que praticou.» É -innegavel que o sentimento religioso é uma mordaça para o delinquente. -Se em certas comarcas e em dadas regiões, apezar da influencia do -sentimento religioso o crime existe em grande escala, qual não seria a -progressão criminosa se a crença religiosa não existisse? Attribuir á -religião n’este caso o augmento da estatistica do crime, seria o mesmo -que attribuir á medecina a morte pelo cholera, onde elle é endemico.</p> - -<p>Ha entre a crença religiosa e a lei do dever uma ligação assás -estreita, intima; o imperio da primeira avigora e fortalece a -segunda. Não queremos com isto dizer que o principio da obrigação -moral não tenha um valor proprio, como todas as idéas racionaes, -independentemente da idéa religiosa, mas como é inoculada geralmente -em nome do sentimento religioso, é pela sua acção, como diz Javary, -que se tem espalhado e que se mantem, em grande parte, na sociedade. -Nos individuos ignorantes e de paixões brutaes a concepção abstracta -da lei moral, separada da religião, é incapaz de exercer praticamente -o seu imperio. Não ha a possibilidade de fazer philosophos de todos os -homens, por isso é mister<span class="pagenum" id="Page_104">[Pg 104]</span> que os desherdados da luz recebam na sua -alma a moral pela religião e a metaphysica pela theogonia. A religião -é, como pensa Kant, não o fundamento da moral, é antes a moral que -nos conduz á religião; a philosophia aprecia a alteza e o valor das -religiões pela moral que ellas pregam. Qualquer organisação religiosa, -por pouco que ella valha, serve sempre de disciplina ás consciencias e -tem a vantagem d’exercer uma acção reguladora na ordem social. Já Vico -disse que sob a influencia da religião se formaram as mais illustres -sociedades do mundo, o atheismo não fez nada.</p> - -<p>De vez em quando o luar da historia humana apparece tragicamente -avivado pela revelação d’um grande crime. O psychologo e o jurista -estudam o delinquente e o delicto. Esta ordem de phenomenos ainda -está n’um periodo de discussão e de elaboração. Ha muito a esperar da -educação moral e religiosa no seio da familia, ministrada com carinhosa -intensidade e dirigida por elevados preceitos confirmados por bellos -exemplos. Regeitemos por isso as exaggerações pessimistas da parte da -escola anthropologica italiana, que crê toda a educação esteril para -melhorar o criminoso.</p> - -<p>A este respeito escreve Garofalo em defeza da educação religiosa:</p> - -<p>«Sem duvida as emoções religiosas tem grande influencia quando tem -sido excitadas desde os primeiros annos. Deixam sempre vestigios -que embora enfraquecidos pelo tempo, não desapparecem nunca, até -no abysmo da fé. A impressão dos mysterios religiosos sobre a -imaginação é de tal modo viva que as regras de procedimento impostas -em nome da divindade podem tornar-se instinctivas, porque,—como -disse Darwin,—«uma crença <em>inculcada</em> constantemente durante -os primeiros annos da vida quando o cerebro é mais impressionavel, -parece quasi adquirir a natureza d’um instincto, é a que se produz -independentemente da razão.»<a id="FNanchor_61" href="#Footnote_61" class="fnanchor">[61]</a> A influencia d’um codigo de -moral—accrescenta Spencer—defende antes das <em>emoções</em> provocadas -por seus imperativos, que do sentimento de utilidade em lhe obedecer. -Os sentimentos inspirados na infancia <em>pelo espectaculo da sancção -social e religiosa</em> dos principios moraes, exercem sobre o -procedimento uma influencia <em>muito maior</em> ainda que a idéa do -bem-estar, que se obtém pela obediencia aos principios<span class="pagenum" id="Page_105">[Pg 105]</span> d’este genero. -Quando os sentimentos, que o espectaculo d’estas sancções faz nascer, -chegam a faltar, a fé utilitaria <em>não basta</em> ordinariamente para -levar á obediencia.—<em>Até nas raças melhor educadas</em>,—accrescenta -elle, entre os homens superiores, nos quaes as <em>sympathias</em>, -tornadas <em>organicas</em>, são a causa de que elles se conformem -espontaneamente com os preceitos altruistas, a sancção social, derivada -em parte da sancção religiosa, adquire uma certa importancia sobre a -influencia d’estes preceitos; pois, ella a tem muito grande sobre as -acções das pessoas d’um espirito menos elevado.</p> - -<p>«O mesmo auctor reconhece uma influencia perniciosa no preconceito -irreligioso ou anti-theologico.—Diz áquelles que creem que a sociedade -póde conformar-se em tudo com os principios da moral: «Como se poderia -avaliar a quantidade de espirito de direcção necessaria, sem regras -recebidas hereditariamente e que constituem auctoridade, para obrigar -os homens a comprehender porque, sendo dada a natureza das cousas, -seja pernicioso um certo modo de obrar e aproveitavel outro; para as -forçar a ver além do resultado immediato, e a discernir claramente os -resultados indirectos e affastados, taes como se produzem sobre elles -mesmos, sobre os outros, e sobre a sociedade?</p> - -<p>«Não é pois duvidoso, para os positivistas, que a religião seja uma das -mais activas entre as forças da educação. Mas para isto são necessarias -duas condições,—a primeira quando se trata d’uma creança,—a segunda, -que o ensino da moral seja o verdadeiro alvo do ensino religioso, o que -desgraçadamente não acontece quasi nunca em muitos paizes catholicos, -onde um clero ignorante, sobretudo nas parochias ruraes, se occupa -geralmente de praticas completamente vasias de significação para a -direcção moral, e cujo fim visa a assegurar a mais inteira obediencia -dos fieis, que entretanto desamparam as paginas sublimes do Evangelho. -Ha ainda uma outra cousa a notar: é que o poder da religião sobre a -moralidade individual parece deter-se precisamente nos casos mais -graves, isto é, quando elle encontra <em>inclinações criminosas</em>. -Nada mais natural. Com effeito, se o ensino para tornar-se util, deve -ser acompanhado da <em>emoção</em>, como se póde esperar que esta emoção -seja excitada nos homens, que, por um defeito de organisação physica -tem <em>uma sensibilidade moral muito menor que</em> a normal? E<span class="pagenum" id="Page_106">[Pg 106]</span> como se -póde pensar então que elles cheguem nunca á pura idealidade da religião?</p> - -<p>«Que importa isso, dir-nos-hão. O temor do castigo na outra vida -será sempre um freio assaz poderoso para bem dos individuos que não -teem podido elevar-se ao verdadeiro ideal religioso. Isto póde ser -verdadeiro para homens d’um espirito pratico, tranquillo, e calculador, -não seguramente para aquelles que tem um <em>caracter criminoso</em>, -porque a imprudencia, a imprevidencia, a leviandade, distinguem sobre -tudo este caracter. Se, em todas as occasiões, para a satisfação -immediata, de suas paixões, elles não olham para o dia immediato, -como se ha de esperar d’elles que olhem para o fim da vida? Outros -delinquentes formam esta classe que se chama dos <em>impulsivos</em>. -Elles obram por impulso do seu temperamento colerico ou nevropathico, -ou pelo do alcoolismo; é pois pouco provavel que no momento de -offender as sancções religiosas lhe venham ao espirito. Outros emfim -encontram-se na condição de <em>névrosthenia moral</em> que os torna -impotentes para resistir ás influencias do meio: pode-se porventura -imaginar que a sua instrucção seja sufficiente para lhe dar iniciativa -e energia?</p> - -<p>«É assim que o estudo experimental do criminoso destroe muitas -illusões, e que confirma a conclusão que já demos, fallando da educação -em geral, isto é, que se um caracter póde ser por ella aperfeiçoado, -é muito duvidoso que possa jámais supprir uma lacuna da organisação -psychica, tal como a ausencia dos sentimentos altruistas. Emfim, é -verdade que esta especie de religião, que está ao alcance do maior -numero, ameaça espantosamente o criminoso? Não, porque se lhe tem -fallado ao mesmo tempo da misericordia Divina, e elle crê que um -acto de arrependimento em qualquer tempo e logar, será uma reparação -sufficiente para uma vida passada inteiramente no vicio. É assim que se -póde explicar o facto muitas vezes verificado em ladrões e assassinos, -muito devotos da Virgem e dos Santos. Um caso muito differente póde -explicar-se do mesmo modo: senhoras muito crentes podem passar toda -a sua vida no adulterio, e, na egreja, chorarem ajoelhadas ao pé da -cruz. Porque a luxuria é um peccado mortal, como o odio e a cholera, -mas a benção d’um padre póde egualmente absolvel-os a todos. Parece-me -ouvir responder; é que estas pessoas não teem o verdadeiro sentimento -religioso; é que a sua religião<span class="pagenum" id="Page_107">[Pg 107]</span> não é senão superstição! Mas póde a -religião do maior numero ser outra cousa? Nas pessoas vulgares, em -todas as religiões, encontra-se a idéa do anthropomorphismo de Deus. É -assim como se tem muito bem notado—«que o homem brando e honrado adora -um Deus de amor e de perdão; e que o homem perverso e immoral fórma -um Deus cruel e odiento.»<a id="FNanchor_62" href="#Footnote_62" class="fnanchor">[62]</a> E se o verdadeiro sentimento religioso -é cousa de tal modo rara que bem poucos espiritos nobres podem -pretendel-o, será temerario dizer que estes mesmos espiritos não teriam -tido necessidade d’elle para não commetter crimes; que, embora elles -não tivessem sido crentes, teriam sido da mesma fórma pessoas de bem? -Apezar de tudo, é preciso admittir que, <em>nos mesmos limites em que a -educação póde ser operante</em>, a religião é um seu auxiliar, porque -ella póde desenvolver bons principios e reforçar caracteres fracos. Um -governo esclarecido deveria, pois, fornecer esta força moralisadora, -ou pelo menos não lhe crear obstaculos. Em quanto ao mais, o que póde -fazer não é grande coisa. Em um paiz sceptico todos os seus esforços -seriam inuteis, e no seio de uma nação animada da fé dispensa-se a -sua approvação. Tem-se visto religiões do Estado decairem e morrerem; -o christianismo invadir irresistivelmente o Imperio romano, da mesma -fórma que o budhismo a Asia Oriental. Em nossos tempos um governo só -tem a religião que encontra na nação. Da mesma fórma que no seio d’uma -familia todo o ensino será nullo sobre o coração dos filhos se seus -pais não lhes patenteiam a todos os momentos a sua inteira submissão -a estes mesmos preceitos, o Estado não poderá moralisar nunca senão -<em>pelo exemplo</em>, e o melhor exemplo que pode dar é <em>a justiça</em> -a mais severa, a mais imparcial, a mais facil de obter.»<a id="FNanchor_63" href="#Footnote_63" class="fnanchor">[63]</a></p> - -<p>Sobre o mesmo assumpto escreve Tarde:</p> - -<p>«Limitemo-nos á estatistica criminal e concluamos mais esta vez ainda -que o mal crescente, indicio aliás de um melhoramento occulto, que -ella expõe aos nossos olhos, não se póde imputar nem á policia, nem -á justiça, nem á civilisação, nem tão pouco á lei penal, mas antes -quem sabe, ao retrocesso dos instinctos caritativos e á exaltação -das paixões<span class="pagenum" id="Page_108">[Pg 108]</span> revolucionarias. Sem embargo, desconheceremos nós a -acção favoravel, ou não favoravel á criminalidade, de cousas taes -como a instrucção, o trabalho, a riqueza e a indifferença nas crenças -religiosas? Indiquemos em poucas palavras qual a resposta que temos -a dar a estas interrogações. Pelo que respeita á ultima, é fóra de -duvida que o medo do inferno, demos-lhe o seu nome, por mais que tenha -enfraquecido e ainda que venha até a extinguir-se inteiramente, ao -menos nos adultos, assim como o desejo do ceo e o amor de Deus, as -regras e os habitos moraes de nossos paes, bem como de nossa infancia, -para cuja formação contribuiram aquelles sentimentos, nem por isso -subsistem ou subsistirão menos, mas cada dia mais abalados, mais -incapazes de resistir aos embates das tentações. Para que o havemos de -dissimular, o diabo tem talvez contribuido tanto como o carrasco para -<em>formar o coração</em> dos europeus passados e presentes inclusive -os d’aquelles a quem a pena de morte e as superstições mais revoltam. -Christã ou não, a França permanecerá ainda muito tempo christianisada, -do mesmo modo que bonapartista ou não, desde a idade organica do -Consulado, está ella, queira ou não queira bonapartisada e até á -medulla dos ossos. Todavia esta sobrevivencia da moral religiosa aos -dogmas, como a das instituições a seus principios, só tem um tempo? -e onde irão as gerações vindouras beber a sua moralidade quando -estiver esgotada a antiga fonte? N’outros termos, para luctar contra -as tendencias destruidoras, que sentimentos fecundos differentes dos -precedentes nutrirão essas gerações, ou se deverá fortificar n’ellas? -Porque, são sentimentos, e diremos melhor principios, isto é restos de -convicções estaveis, inconscientes, definitivas, e não ideias, isto é -convicções em via de se formarem e prestes a descerem do espirito ao -coração e do coração ao caracter, o que se trata de suscitar aqui.»</p> - -<p>Sobre o mesmo assumpto Dupanloup, o egregio prelado faz as seguintes -considerações:<a id="FNanchor_64" href="#Footnote_64" class="fnanchor">[64]</a></p> - -<p>«Todos sabem quanto a <i>Instrucção</i> e a <i>Disciplina</i> devem -á Religião, e bem poucos deixarão de ter experimentado quanto é -profunda a influencia da Religião e da virtude sobre a<span class="pagenum" id="Page_109">[Pg 109]</span> <i>Educação -intellectual</i>. O coração mais puro purifica o espirito, torna-o -mais sensivel ás impressões do bello, mais docil aos ensinamentos do -verdadeiro e fal-o saborear com vivacidade o doce e nobre prazer de -escutar a rasão.</p> - -<p>Sob os auspicios da Religião, a verdade penetra na intelligencia, não -como uma secca theoria que apenas conquista uma especie de adhesão -passiva, mas como que alguma cousa de vivente, de substancial, que -fecunda o espirito e o eleva e por elle chega á alma para a vevificar -toda inteira.</p> - -<p>Pela Religião, sente-se o Espirito fortemente appoiado n’um principio -de fé e não vai chocar-se com todas as incertezas humanas; eleva-se ao -ponto de vista divino, para ver de mais alto e mais longe que viram os -mais sabios.</p> - -<p>Eliminai a <i>Religião</i>, e a Instrucção não será mais que um vão -pasto offerecido á curiosidade ou ao orgulho, ella não fará amar -profundamente o verdadeiro; os mais elevados pensamentos perdem-se -em ambitos acanhados; a verdade fria e inanimada pára no espirito e -não sabe ir até ao coração. Ella exalta sobremaneira a intelligencia, -como por vezes o tenho visto, e é um dos maiores perigos da Educação -puramente humana, ella exalta a intelligencia em detrimento do caracter -e da consciencia, em certas naturezas avidas de conhecer; ou então a -deixa inerte e esteril em outras, cuja intelligencia só poderia ser -chamada ao movimento e á vida pelo grito da consciencia ou pelas ternas -insinuações da Religião. N’estas naturezas mediocres, a Instrucção -reduzida a si mesma, não é nada, ou, quando muito, apenas é um deposito -confiado á guarda inactiva da memoria, uma serie de conhecimentos, -uma avida nomenclatura, um montão indigestivo de sciencia sem luz, de -factos sem ligação e sem vida.</p> - -<p>A <i>Disciplina</i> é a seu turno ennobrecida pela instrucção: deve ser -elevada á dignidade de guarda da intelligencia; mas é sobre tudo pela -<i>Religião</i> que a disciplina se torna uma verdadeira potencia moral -na Educação.</p> - -<p>Pela <i>Religião</i>, a Disciplina não é sómente o olho do superior e a -garantia da obediencia material; é o olho de Deus e a inspiração de uma -nobre docilidade.</p> - -<p>É sob os auspicios da Religião sómente que a disciplina se torna a -protectora dos costumes e a guarda da innocencia; o penhor dos grandes -estudos; a inspiração do bom espirito; a dispensadora e a thesoureira -do tempo; e nervo do regulamento<span class="pagenum" id="Page_110">[Pg 110]</span> interior e a mola poderosa de toda a -Educação.</p> - -<p>Sem Religião, pelo contrario, a Disciplina não é mais que uma policia -de caserna, aviltante para aquelles que a soffrem, mais aviltante ainda -para aquelles que a fazem soffrer.</p> - -<p>Por mais severa que seja, nunca poderá chegar ás almas e a isso -desafio. Logo apesar da severidade, nenhuma consciencia, intratavel, -sem freio nas paixões secretas e menos respeito.</p> - -<p>Jámais conseguirá esta disciplina toda material, toda exterior, educar -o homem, a não ser que se queira fazer da sociedade uma colonia -militar, para a qual seria a Educação encarregada de formar conscriptos!</p> - -<p>Fique-se bem sabendo, nada ha de commum entre o regimen despotico de -alguns collegios e esta nobre Disciplina das almas, que é a verdadeira -<i>Educação</i> da mocidade.</p> - -<p>Na Educação, não basta que se obedeça, é necessario que haja gosto na -obediencia. E o que faz amar a obediencia? a Religião, só a Religião.</p> - -<p>Oh! sem duvida é muito mais facil de exercer a Disciplina militar, -a Disciplina de mão armada: será sempre mais facil commandar corpos -que almas. Dispõe-se da força, os corpos humilham-se, mas as almas -resistem; ou se se humilham, é porque foram embrutecidas por uma -obediencia servil.</p> - -<p>Que notavel differença na Educação christã! Para esta ha mister uma -arte profunda; e é d’esta arte que se disse: <i lang="la" xml:lang="la">Ars artium, regimen -animarum</i>.</p> - -<p>Ás almas se applicam todos os esforços da direcção christã: a ordem -moral eis o fim a que se pretende chegar. A ordem material tem sua -importancia, não ha duvida, mas estabelece-se naturalmente, por uma -simples consequencia e como um reflexo exterior da ordem moral; em -quanto que n’essas outras escolas, onde se ostentam pomposamente os -rigores de uma inflexivel disciplina, muitas vezes não ha no intimo do -seu organismo, senão desordem e anarchia. Tudo quanto ahi se quer é que -essa anarchia e essa desordem não constem cá fóra. Que, depois d’isso, -as creanças ignorem o que é a virtude e a felicidade, pouco importa! -Que não haja Educação para o coração, para a consciencia, tambem pouco -importa! Ah! eu não conto aqui, senão o que todos sabem e foi com a -auctoridade de mais de um exemplo que se disseram<span class="pagenum" id="Page_111">[Pg 111]</span> estas palavras -bem verdadeiras; <i>A mais severa Disciplina pode esconder vicios -medonhos</i>.<a id="FNanchor_65" href="#Footnote_65" class="fnanchor">[65]</a></p> - -<p>Desgraçados dos paes que n’este ponto, se descuidam, elles chorarão um -dia amargamente! Desgraçado do paiz onde a Educação publica chegou a -este ponto: serão ahi raros os bons cidadãos!</p> - -<p>As sagradas Escripturas disseram uma bella e profunda verdade quando -definiram a <i>Disciplina—a guarda das leis, Disciplina, costodia -legum</i>.</p> - -<p>É com effeito o que deve ser e o que nós temos visto. Mas como póde -a disciplina cumprir dignamente esta grande e augusta missão? É -inspirando o respeito e o amor d’essas mesmas leis que são confiadas -á sua guarda. Se ella é toda material, só ensina o respeito da força, -isto é, o medo servil que fana as almas sem lhes tirar a tendencia para -a revolta; se é religioso e moral, ensinará a respeitar o principio -da auctoridade e a lei que é a expressão das mesmas; submetterá as -almas ao imperio d’essas santas noções sobre as quaes repousa a ordem -social, quer se trate da grande sociedade humana, que é a patria, quer -se trate d’essa outra sociedade mais circumscripta e mais humilde, mas -depositaria dos destinos da primeira, do collegio: ahi onde se faz -a aprendizagem das virtudes ou dos vicios, pelos quaes serão um dia -rebustecida ou perturbada, a paz e a prosperidade publicas.</p> - -<p>Perdoem ter-me deixado arrastar pela importancia d’esta questão. -Limitar-me-hei, pois, a repetil-o: é necessario na Educação que a -Disciplina não seja observada á força, mas respeitada e amada de -coração. De outro modo, as almas soffrem e a Educação não passa de uma -obra de violencia, algumas vezes cheia de horror.</p> - -<p>Mas, se nada póde egualar a influencia da Religião sobre a disciplina, -ao mesmo tempo que sobre os estudos e o desenvolvimento natural do -espirito; sobre o caracter e os defeitos da creança, e sobre os -destinos da sua vida inteira, a <i>Religião</i>, do seu lado, reclama o -concurso dos dois outros grandes meios d’Educação.</p> - -<p>Sem a <i>Instrucção</i> e sem a <i>Disciplina</i>, não formaria a -Religião homens dignos d’ella.</p> - -<p>A Religião quer ser esclarecida: gosta dos caracteres firmes<span class="pagenum" id="Page_112">[Pg 112]</span> e rectos: -espiritos imbecis ou caracteres abatidos e indolentes sómente seriam -bons para a deshonrar.</p> - -<p>Em vão experimentaria formar-lhes coração e intelligencia.</p> - -<p>A Disciplina que, como se deixa perceber, é, sem a Religião, o quer -que seja de material e triste, é a seu turno para a Religião um -indispensavel auxilio.</p> - -<p>Pelo silencio e pela paz mantem a concentração; prepara o caminho ás -lições da sabedoria christã ou ás impressões da graça.</p> - -<p>Conter ou reprimir os desmandos da vontade arrastada para longe do -dever pelas paixões ou pela inexperiencia da idade; submetter sem -humilhar, mandar sem aviltar, elevar abatendo, fortalecer e fazer -avançar detendo impedir que as faculdades se não desvairam e se não -enfraqueçam dissipando-se: proteger ao mesmo tempo a piedade, os -estudos e os costumes; tal é a obra, <em>tal é o dever da educação -disciplinar</em>.</p> - -<p>Como poderia a <i>Religião</i> dispensar o auxilio da Disciplina?</p> - -<p>A <i>Instrucção</i>, da sua parte, offerece á <i>Religião</i> o seu -poderoso concurso.</p> - -<p>Abrir e desenvolver a intelligencia da creança, despertar-lhe -o pensamento, fazer nascer n’ella ideias sãs, formar-lhe e -desenvolver-lhe a penetração, o bom senso, a applicação do espirito; -enriquecer-lhe a memoria, formar-lhe a razão e a palavra, fecundar-lhe -a imaginação, polir-lhe o gosto, exercitar-lhe o juizo; <em>é o dever da -Educação intellectual e a gloria da Instrucção</em>.</p> - -<p>Quem poderá desconhecer todo o bem que a <i>Religião</i> póde d’ella -esperar?</p> - -<p>Espiritos assim preparados, engrandecidos, elevados, fortalecidos, -comprehenderão melhor as altas verdades christãs.</p> - -<p>O joven que cultivou convenientemente o seu espirito terá um coração -mais delicado, uma alma mais generosa, ao mesmo tempo que uma razão -mais elevada.</p> - -<p>Nos estudos classicos encontrou elle o bello e o verdadeiro sob suas -fórmas litterarias; quando com a Religião elles lhe apparecem no seu -mais alto esplendor, com que enthusiasmo os não acolhe?</p> - -<p>Vê-se por tanto, como a <i>Disciplina</i> e a Instrucção não podem -passar sem a <i>Religião</i>, a Religião não póde passar sem ambas para -attingir o grande fim da Educação.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_113">[Pg 113]</span></p> - -<p>Emfim conservar a força da creança, velar pela sua vida, auxiliar sua -constituição physica em se fortificar, desenvolvendo-se, proceder de -fórma que seus membros sejam sempre flexiveis e vigorosos, que um -sangue generoso e puro lhe circule nas veias, que esta chamma celeste, -que brilha em seus olhares, não amorteça nem se extinga mais: que este -amavel colorido, este encanto inexprimivel que embelleza a fronte -da infancia virtuosa, este não sei que de feliz que vem dos dons do -ceo, não desappareça sob tristes nuvens; é o dever da <i>Educação -physica</i>; e este dever não se cumpre senão pelos cuidados mais -attentos, mais delicados, mais respeitosos. Mas não vemos nós, sem -necessidade de que nol-o demonstrem, que influencia têem estes cuidados -preciosos, n’uma casa d’Educação, sobre a disciplina, sobre o bom ou -mau exito dos estudos, sobre a mesma piedade?</p> - -<p>E não se comprehende ao mesmo tempo o que a Instrucção e o trabalho, -o que a Ordem e a Disciplina, e sobre tudo o que a Religião, podem -em troca, para a conservação da saude e das forças, conservando os -costumes? Já o têem dito, a Religião é o aroma que não deixa corromper -a sciencia. Nós tambem o dissemos: a verdade é o balsamo divino que -conserva a vida e a frescura da creança. E é só a disciplina moral e -religiosa que guarda a virtude.</p> - -<p>Acabarei tudo isto por algumas explicações que não deixam de ter -interesse e dar luz: assim, por exemplo, é a <i>Educação physica</i>, -hygienica que conserva por todas as partes, n’uma casa de Educação, com -um cuidado e uma vigilancia infatigaveis, o <em>aceio</em>, que todos os -mestres da moral e da virtude christã, com razão e d’um sentido muito -verdadeiro têem chamado uma virtude: e é o <em>aceio</em> que contribue -para dar e para conservar um certo vigor corporal, uma certa dignidade -exterior que mantém a dignidade e o vigor da alma.</p> - -<p>E no entanto a Religião impede que o aceio degenere em <em>fatuidade</em> -em mollesa e que cessa a virtude onde começa o excesso.</p> - -<p>É ainda a <i>Educação physica</i> que dá uma justa medida de repouso -á <i>Educação intellectual</i>, concede ao espirito o descanço -conveniente, faz succeder ás horas do estudo as horas do recreio; mas, -do lado, a prudente e firme <i>Disciplina</i> não permitte que se dêem -de mais; não tem nada de austero nem de affectado; mas prepara o prazer -pelo trabalho e desenfada<span class="pagenum" id="Page_114">[Pg 114]</span> do trabalho pelo prazer e, sob sua prudente -direcção, as folgas e os brinquedos convenientemente se entremeia com -as occupações graves e sérias.</p> - -<p>Finalmente a <em>administração economica</em> de uma casa procura para -todos, mestres e discipulos, uma certa independencia intellectual, uma -nobre segurança, um feliz esquecimento dos cuidados materiaes da vida, -cuja isempção é favoravel ao recolhimento da piedade e das lettras.</p> - -<p>É com este fim que ella escolhe um bello local; uma casa vasta, bem -accommodada ás necessidades da Disciplina; sallas espaçosas, grandes -dormitorios, aulas bem arejadas, uma bella capella, magnificos jardins. -É tambem ella que admitte professores convenientes não só pela saude, -como pela decencia e dignidade litteraria; que dispõe tudo como é -necessario á idade dos alumnos, a essa idade tão tenra, tão viva, tão -ardente e tão admiravelmente applicada, que sabe ser silenciosa e -immovel, doze horas em cada dia, durante dez annos!</p> - -<p>E entretanto a <i>Religião</i>, que é o bom senso superior de todas as -cousas, requer que esta casa esteja sem luxo, que seja de uma nobre -simplicidade, magnifica somente pela elevação, pela boa ordem e pelo -espaço conveniente ao grande numero dos seus jovens habitantes.</p> - -<p>Quer ver banidos os moveis faustuosos, as ninharias deslumbrantes, os -ornamentos superfluos e tudo que respire vaidade e molleza, reserva -para o sanctuario os vasos de ouro e de prata, os estofos ornados de -enfeites, as pedras preciosas, os perfumes exquisitos.</p> - -<p>Não multiplicarei mais estes pormenores; os indicados bastam para o -meu designio, eram-lhe necessarios. Nada importava tanto como lançar -assim algumas luzes sobre a influencia, que cada um dos grandes meios -d’Educação exerce sobre a Educação inteira e tambem revelar a estreita -união que as deve fazer concorrer para o mesmo fim, se quizermos que -este fim seja completo e efficazmente attingido, se quizermos que a -educação seja uma realidade.</p> - -<p>Ora, pois que é tempo de concluir, inspirar a tenras almas o gosto de -uma vida seria e applicada, que ha-de produzir um dia a gravidade dos -costumes e a fidelidade aos deveres;</p> - -<p>Excitar ao amor do trabalho, o gosto intelligente das lettras, das -sciencias, das artes, da industria, da agricultura e<span class="pagenum" id="Page_115">[Pg 115]</span> do commercio, -segundo as differentes especialidades da Educação, e o ardor por todos -os conhecimentos bellos, pelos nobres progressos, que desde tantos -seculos se tornaram o apanagio da nossa patria;</p> - -<p>Sob os auspicios da Religião, submetter, regularisar, dirigir as -paixões no tempo conveniente, de modo que se deixem senhorear e que, -longe de serem um obstaculo ao bem, sejam o instrumento util das -grandes cousas;</p> - -<p>Formar para este saber-viver, que consiste em se constranger uma pessoa -a si mesma, sem constranger os outros e que deslumbra menos pela bellas -maneiras, que encanta pela simplicidade e impõe pelo respeito;</p> - -<p>Em uma palavra sob a Direcção de uma disciplina igualmente suave e -firme, pelo ascendente de uma auctoridade sempre querida e respeitada -constituir e manter solidos e brilhantes estudos litterarios, ou -industriaes, agriculas e commerciaes, ao mesmo tempo que costumes -puros, uma docilidade generosa, uma fé esclarecida e uma piedade -profunda;</p> - -<p>Estabelecer, emfim, por isso mesmo, entre mestres e discipulos esses -doces e poderosos laços que nunca se quebram, essas lembranças de -dedicação e de reconhecimento, d’affeição e de respeito, que são a -mais suave recompensa dos professores, como se tornam, no coração -dos discipulos, uma d’essas felizes e inolvidaveis impressões que -sobrevivem a tudo;</p> - -<p>Formar assim por meio simples e poderosos, esses jovens espiritos para -a intelligencia do verdadeiro, que é a luz mesma de Deus; esses jovens -corações ao amor do bem, que é o esplendor da verdade, e a sua vida -inteira á pratica do bem; fazer-lhes sentir por isso nas impressões e -nas recordações da sua Educação, a felecidade, a verdade e a virtude, e -ao mesmo tempo a mais alta dignidade de sua natureza.</p> - -<p>Repito-o, tal é a grande obra, tal é o fim essencial da Educação; tal é -a alta e santa missão dos professores da mocidade.</p> - -<p>Eis a <i>Educação geral essencial</i> a quem tem direito todo o homem -que vem a este mundo.</p> - -<p>É a Educação humana por excellencia! Mas proclamo-o de novo, e agora -se comprehenderá melhor que nunca: é isto essencialmente, e superior a -tudo, uma obra de religioso respeito.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_116">[Pg 116]</span></p> - - -<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_58" href="#FNanchor_58" class="label">[58]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Essais sur la religion</i>, pag. 95, J. Stuart Mill.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_59" href="#FNanchor_59" class="label">[59]</a> Ob. cit. J. Stuart Mill.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_60" href="#FNanchor_60" class="label">[60]</a> Ferreira-Deusdado, <i>Ensaios de philosophia actual</i>, -pag. 79.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_61" href="#FNanchor_61" class="label">[61]</a> Darwin, <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Origine de l’homme</i>, ch. III.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_62" href="#FNanchor_62" class="label">[62]</a> E. Ferri, <i xml:lang="fr" lang="fr">Le Sentiment religieux chez les -meurtiers</i>—Tuima Fr. Bocca—vol. III pag. 276, 282.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_63" href="#FNanchor_63" class="label">[63]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">La Criminologie</i>, par R. Garofalo, Paris 1888—pag. -137, 142.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_64" href="#FNanchor_64" class="label">[64]</a> Este excerpto foi traduzido por indicação nossa pelo -sr. A. A. de Almeida Netto e publicado na <i>Revista de Educação e -Ensino</i>, n.ᵒ 7, p. 331 e seguintes.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_65" href="#FNanchor_65" class="label">[65]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Lettre sur l’Education</i>, por M. Laurentie.</p> - -</div> -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_117">[Pg 117]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="V">V</h2> -</div> - -<div class="section"> - -<p>Educação e criminalidade. Relação entre o elemento moral e o elemento -intellectual. O progresso. Buckle, Spencer e F. Bouillier. Perigos da -instrucção sem educação moral ou religiosa. A cultura intellectual é -um instrumento, que não fórma directamente o caracter. Necessidade de -fortificar o espirito pela recta direcção do sentimento moral e dos -principios do dever. O criminalista G. Tarde e a educação litteraria e -esthetica.</p> -</div> - -<div class="blockquot"> - -<p>Não se esconde, antes pelo contrario se mostra já claramente visivel -até aos poucos amigos de ver, como a primeira educação constitue um -poderosissimo factor, ao mesmo tempo de disciplina e desinvolvimento, -de ordem e de progresso; como em seu encalço a pessoa e a propriedade -sobem em segurança e dispensam em protecção, medram e prosperam -os interesses ethicos e politicos, a justiça é menos difficil e o -consenso para a administração mais intelligente.—(Relatorio geral do -Conselho Superior de Instrucção Publica, pag. 34, 1885).</p> - -<p class="right"> -JAYME MONIZ.<br /> -</p> -</div> - - -<p>Cumpre ao pedagogo indagar se a virtude, se o bem moral augmenta no -individuo á medida que a intelligencia se esclarece pela instrucção, -e na sociedade á medida que a sciencia, a arte e a industria se -desenvolvem. Trata-se de saber se o homem instruido, ou se os -individuos mais cultos nas sociedades mais adiantadas, formam uma -idéa mais clara da justiça e comprehendem<span class="pagenum" id="Page_118">[Pg 118]</span> melhor o principio dos -seus deveres e se os praticam d’um modo mais desinteressado e mais -completo. Para saber se ha progresso moral no individuo ou nas -sociedades é preciso distinguir o que é immutavel do que é perfectivel -na natureza psychica do homem. As faculdades e as leis do nosso -espirito, as inclinações fundamentaes do nosso coração, todos os -elementos psychicos essenciaes da nossa natureza, não se alteram com -a constancia da actividade reflectida, nem com o desenvolvimento da -civilisação. Cada homem, como diz Montaigne, leva em si a fórma inteira -da condição humana. O individuo da nossa especie estudado por Laucio -ou por Platão é o mesmo que estudado por Kant ou por H. Spencer. Assim -como na natureza cosmica as leis e os agentes permanecem os mesmos, -qualquer que seja o augmento dos productos que d’ella tira a cultura -scientifica, do mesmo modo os elementos primordiaes da natureza -psychica são immutaveis, embora sejam diversos os seus productos nas -mudanças da civilisação.</p> - -<p>O progresso, diz Proudhon «tem a sua base de operações na justiça -e a sua força motriz na liberdade. De feito nada existe de elevado -no desinvolvimento social sem o sentimento do dever e sem o uso da -liberdade.</p> - -<p>Ha dois aspectos sob os quaes póde ser considerado o progresso da -consciencia moral—um theorico, outro pratico. Ao estudarmos o complexo -de idéas moraes n’um individuo ou n’uma epocha, a variedade dos juizos -sobre as acções justas ou injustas, reconhecemos que ha um fundo -inalteravel de principios absolutos que se manifestam no sentimento -que cada homem tem a respeito do que o eleva acima da animalidade. Na -analyse dos elementos moraes, d’um instante do tempo ou d’um ponto -do espaço, observamos que ha alguma cousa de fixo e alguma cousa de -progressivo. O primeiro é o elemento theorico, o segundo é o pratico.</p> - -<p>O que constitue o valor moral das acções permanece invariavel, isto é -o dever absoluto, que se impõe a cada um de actuar conforme o que elle -crê o bem e de evitar o que elle crê o mal, procedendo com inteira boa -fé e completa sinceridade.</p> - -<p>A existencia e o uso da energia moral é indispensavel em toda a -condição de vida sociologica; não se póde conceber um estado da -humanidade, sem que n’elle tenha logar a virtude.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_119">[Pg 119]</span></p> - -<p>O desenvolvimento da civilisação favorece o progresso da ethica geral, -porque alarga cada vez mais a area dos deveres reciprocos. O selvagem -não sente obrigações senão dentro da sua pequena tribu. A vida e -a propriedade alheia são para elle uma variedade da caça. O grego -ante-socratico só percebe a idéa de probidade no sentido autochtono -da palavra e dentro das fronteiras da Hellade. O romano do imperio -inspirado na philosophia estoica e educado na sociedade romana já -estende as suas relações até aos limites dominadores do codigo e do -gladio latino. O christão medieval obedece á acção moral do evangelho -e n’uma esphera já assaz ampla, illuminada pelo sentimento radioso -da caridade, reconhece a egualdade de todos os homens perante Deus. -Não obstante o seu horror sagrado pelos pagãos e pelos infieis sente -deveres a cumprir para com todos.</p> - -<p>Não ha descobrimentos nem invenções em moral, em quanto aos seus -principios fundamentaes, mas póde have-los nas suas consequencias e -nas suas applicações. Como diz Francisco Bouillier, é o progresso -das luzes na moral que se traduz nas instituições, nas leis e nos -costumes. Na ordem intellectual o progresso demonstra se por uma -especie de inventario do desenvolvimento de conhecimentos. O progresso -moral do individuo não póde verificar-se, porque se dá no segredo da -consciencia, no amago do coração ou no arcano da vontade. A obrigação -de proceder segundo a lei do bem exige por toda a parte, em todas as -condições do tempo, os mesmos principios e os mesmos fins. O valor -moral deve medir-se unicamente pelo grau da intenção, do esforço e -do sacrificio. A intenção moral é tão veneravel em qualquer selvagem -como em Socrates, em D. João de Castro ou em Washington. O tempo ou a -condição não influem sobre o valor intimo da acção ethica.</p> - -<p>As virtudes sociaes são mais cultivadas nas relações pequenas, em -que os homens vivem em mais intima connexão, do que nos grandes -centros, onde as relações são mais vastas. A concepção moral d’um typo -idealisado varia segundo as circumstancias do tempo e do espaço, posto -que o principio ethologico seja sempre substancialmente o mesmo. Um -typo de virtude forma-se primeiro pelas circumstancias da nação ou -da epoca, depois constitue-se em modelo sobre o qual se architectam -theorias. Aristides ou Catão são dois typos de virtude creados pelo -meio atheniense e romano. É assim<span class="pagenum" id="Page_120">[Pg 120]</span> que os povos organisados teem -uma ethica nacional differente, posto que o principio que a inspire -seja substancialmente o mesmo. Assim as circumstancias geographicas, -ethicas, religiosas ou outras, que fazem uma nação militar e outra -industrial, produzirão em cada uma um typo de exellencia moral -differente. Os heroes nacionaes da historia da França ou da Inglaterra, -são na sua psychologia moral assás differentes por numerosos caracteres.</p> - -<p>A moral ensinada nos livros tende a unificar-se, mas a ensinada na -familia conserva um caracter mais multiplo. Ora é exactamente a moral -da familia a que prevalece. Os paes, os irmãos, os companheiros de -creanças são quem mais influe sobre a formação do caracter. A escola -ministra a cultura intellectual e ethica, mas esta vem sobre tudo do -lar, fonte dos prazeres mais puros, doce refugio e salva-guarda da -honra, da familia e da nação.</p> - -<p>Na humanidade inculta as paixões são mais violentas e mais grosseiras, -e a vontade é mais energica tanto para o vicio como para a virtude. -São grandes na virtude e no crime. Basta comparar a historia antiga -com a historia contemporanea. Em certo grau de progresso intellectual -a violencia repugna, mas é substituida pela corrupção; se a violencia -humilha, todavia não avilta nem desmoralisa como a corrupção. Com o -desinvolvimento pacifico das sociedades, a vontade enerva-se e as -paixões recebem em vez d’uma expansão violenta, que gera as acções -epicas, uma concentração suave que não é mais do que o egoismo.</p> - -<p>Os malfeitores de dada cathegoria entregam-se a actos selvagens e -barbaros em sociedades policiadas, porque se inspiram n’uma athmosphera -permanentemente cheia de sentimentos de odio e de vingança, nascidos -d’um juizo perturbado que tem uma falsa noção das conveniencias e do -dever.</p> - -<p>Nas revoluções e na guerra das sociedades modernas, os homens de -faculdades normaes, sem ser em legitima defeza, esquecem todos os -precedentes moraes da civilisação para se entregarem á barbaria. -Aquelle ambiente em que o horisonte está tingido de sangue fa-los -retrogradar dezenas de seculos. Os biologos explicam este phenomeno -pela hereditariedade, os theologos explicam-no pelo peccado original; -as concepções divergem, mas a explicação do facto é a mesma. A guerra -foi durante muitos seculos a principal fórma da actividade humana, e -este habito repetido durante muito<span class="pagenum" id="Page_121">[Pg 121]</span> tempo, passou a instincto, vindo -conseguintemente a ser hereditario. Hoje o mesmo instincto ergue-se -sempre que as circumstancias o reclamam, passando uma esponja pelas -acquisições moraes nascidas da civilisação.</p> - -<p>O espirito humano tem em todos os phenomenos moraes a faculdade de -recusar a sua adhesão a qualquer tendencia que o solicite. Nos proprios -phenomenos de sensibilidade o imperio da vontade possue o poder de -intervir e a sua acção póde, dirigida pelas idéas, disciplinada pelo -habito e fortalecida pelo exemplo, contrahir sentimentos nobres e -amortecer inclinações ruins. Ainda que a existencia do senso moral no -criminoso seja demasiado tenue, a instrucção ampliando as relações -funestas que resultam da pratica do crime, veem mostrar ao criminoso -as tristes consequencias do delicto e os nobres estimulos e delicados -prazeres que gera a obra da virtude. Toda a educação resulta de bem -dirigir a acquisição dos habitos. A vontade é o mobil das nossas acções -e a força civilisadora por excellencia. Fortalece-la pois com exemplos -elevados, deve ser o destino da educação.</p> - -<p>Apezar da absoluta independencia intima da liberdade, os habitos e os -outros moveis fornecidos pela sensibilidade ou pela intelligencia, que -se modificam com a educação, actuam constantemente como objecto das -resoluções. A noção clara do dever moral que se aviva com a instrucção, -não determina necessariamente a sua pratica, todavia é mais um grau de -probabilidade para a execução do bem.</p> - -<p>A cultura intellectual dilata o poder da liberdade e modifica por -tanto o genero do crime, porém não o supprime; mas a cultura do -sentimento moral, inoculando o principio do dever, desvia o homem da -senda do crime, e se o homem é como cremos até certo ponto o artista -do seu destino, póde, pela educação com afinco obstinado e inflexivel, -aniquilar na sua alma as inclinações ruins e substitui-las por -aspirações d’uma ethica elevada.</p> - -<p>É evidente que nós defendemos a necessidade da cultura moral, pondo -como fundamento a liberdade; declarar que o homem não é livre nos seus -actos, é não só destruir o sentimento do merito, mas ferir a nossa -especie na sua dignidade.</p> - -<p>Os mais esplendidos productos de enthusiasmo moral que se referem a uma -força suprema de convicções, raras vezes existem em espiritos muito -cultivados, porque são vehementemente sensiveis á possibilidade do -erro, ao peso das circumstancias<span class="pagenum" id="Page_122">[Pg 122]</span> e á collisão dos argumentos. A alta -cultura intellectual, que disperta novas concepções do dever, é menos -alimentadora do fanatismo do que a ignorancia e a mediocridade mental.</p> - -<p>Thomaz Buckle prefere no governo dos povos os homens illustrados e -corrompidos aos ignorantes e austeros; diz que em todos os tempos os -homens mais sinceros e mais puros teem sido os que fizeram derramar -mais sangue innocente com menos escrupulo e com menos piedade. Os mais -crueis inquisidores de Hespanha foram homens de intenções puras, o que -os tornou mais nefastos por inaccessiveis á corrupção ou á ameaça. O -melhor dos imperadores romanos Marco Aurelio,<a id="FNanchor_66" href="#Footnote_66" class="fnanchor">[66]</a> foi um dos que mais -perseguiu os christãos, em quanto Commodo e Elagabalo os deixaram viver -em paz.</p> - -<p>Buckle julga esteril o elemento moral como causa do progresso da -civilisação. Defende este paradoxo, levado pela idéa de que houve -fanaticos sinceros e desinteressados que foram um flagello da -sociedade, emquanto homens engolphados na corrupção moral e falhos de -convicções serviram a civilisação. É evidente para encurtar razões, -que o mais alto progresso intellectual, desajudado do elemento moral, -não podia constituir uma sociedade, porque se desapparecessem da -consciencia a probidade, a honra, a virtude publica e privada, não -podia subsistir a familia alicerce e cellula da vida social.</p> - -<p>Para Buckle toda a superioridade social se encerra na fecundidade -do elemento intellectual. O elemento moral é esteril no progresso -da civilisação. As proprias virtudes resultam da cultura mental. O -illustre escriptor inglez adduz muitos exemplos para comprovar o seu -paradoxo, mas não explicou a baixeza de caracter do seu compatriota -o genial F. Bacon, os seus crimes de concussão, e o seu vilissimo -procedimento para com o seu bemfeitor, o desditoso conde de Essex.</p> - -<p>Como explica egualmente as fraquezas de Seneca, que é ao mesmo tempo -philosopho e auctor aviltado da <i lang="la" xml:lang="la">Consolatio ad Polybium</i>, e -defensor de Nero, accusado perante o senado de parricidio? Por ventura, -nem Bacon, nem Seneca tinham<span class="pagenum" id="Page_123">[Pg 123]</span> bastante clareza de entendimento para -comprehenderem os seus deveres ethicos? Porque é que o seu altissimo -talento os não salvou d’estas fraquezas?</p> - -<p>Faltava-lhe a energia do sentimento do dever que é a augusta -superioridade que distingue o homem no mundo e o individuo na -sociedade. Seneca não foi um perverso, mas foi um suicida moral a -quem falleceu, durante parte da sua vida publica, a coragem que até -certo ponto resgatou no final com o heroico suicidio physico. Não ha -progresso, não ha verdadeira civilisação sem a virtude. Os sonhos do -homem sobre a terra são a esperança do reinado da justiça. O amor -individual da justiça converte-se para a humanidade no sentimento que a -eleva e que a engrandece; ora a justiça social é a expressão intensa do -bem e o bem é a finalidade d’este mundo.</p> - -<p>É uma these difficultosa saber até que ponto, a educação moral, -ministrada na familia e na escola pelo sentimento, pelos principios -e pelo exemplo, póde moralisar aquelle que a recebe. Apresenta-se a -alguns psychologos como duvidoso se a instrucção considerada em si, -restringida exclusivamente á receptividade de conhecimentos, desinvolve -maior inclinação para enfraquecer os elementos viciosos do espirito do -que para mudar a direcção e a qualidade do crime.</p> - -<p>É obvio que n’este caso se entende sómente a cultura intellectual e -technica e de modo nenhum se adapta á educação moral e religiosa. -Cerebro sem coração, penetração intellectual sem bondade, talento -sem moralidade, são poderes que mais podem servir para a execução da -perversidade do que para a pratica do bem.</p> - -<p>As faculdades intellectuaes e as aptidões technicas são valiosissimas -na vida social, mas encaminhadas para fitos maus podem trazer para a -humanidade em vez do progresso a destruição, em logar da felicidade a -desgraça. É obvio que não fallamos dos delinquentes cujo delicto nasceu -de más circumstancias economicas, da inaptidão para ganhar a vida, -porque para estes a cultura technica teria evitado a senda do crime, -visto que este não é proveniente da ausencia ou perversão do senso -moral.</p> - -<p>Assim a nossa antiga policia secreta recrutava os seus guardas e os -seus chefes entre os gatunos mais astutos e mais dextros. Depois de -membros do corpo de policia faziam-se homens probos e empregados -zelosos, o que demonstra<span class="pagenum" id="Page_124">[Pg 124]</span> que não eram seres incorrigiveis e que não -abraçavam a vida do furto por inclinação congenita, mas por necessidade -economica do meio em que tinham vivido.</p> - -<p>É pela educação moral que os individuos e as gerações se formam e -constituem um typo social. A acção suggestiva do ambiente começa para -o homem antes de despertarem os primeiros clarões do entendimento. De -instante a instante, de dia a dia os que cercam a creança, formam-lhe o -sentimento e as inclinações, de modo que a sua vida moral ao attingir o -pleno desenvolvimento, é quasi a summula das idéas e dos sentimentos, -que hauriu nas condições mesologicas em que germinou, cresceu e floriu.</p> - -<p>Não queremos com isto dizer que a idéa da personalidade fica aniquilada -deante do influxo do meio; ha muitos individuos que se revoltam contra -o existente e que são refractarios ás suggestões provocadas desde a -infancia, mas póde dizer-se que todos conservam a sua individualidade -em maior ou menor grau, exercendo a sua acção sobre a familia, sobre -os amigos e sobre os visinhos. Os de faculdades mais poderosas, ou de -vontade mais energica fazem irradiar a sua acção sobre uma esphera mais -ampla no tempo e no espaço; pela força como por exemplo Alexandre Magno -ou Cezar, pelo livro como Platão ou Aristoteles, pela palavra como -Demosthenes ou S. Paulo. Estes que teem assim uma acção decisiva na -historia são justamente chamados grandes homens.</p> - -<p>O pedagogo cuidando do ensino intellectivo deve antes de tudo applicar -a sua attenção ao lado moral, inoculando o sentimento do dever, -ensinando a supremacia do direito, desenvolvendo a concepção do bem, -a consciencia da vontade livre e o sentimento da responsabilidade.—O -primeiro dever do educador é capacitar a creança de que ella vem a ser -a senhora do seu destino.</p> - -<p>Na ordem do ensino deve inspirar-se-lhe primeiramente um elevado -principio religioso, alliado ao sentimento moral, depois o -desenvolvimento da habilidade intellectual no ponto de vista do -raciocinio e da applicação pratica. Só mais tarde pelo conhecimento das -operações intellectuaes, é que pela abstração, póde isolar o principio -religioso da idéa moral, desenvolvendo todavia harmonicamente as tres -syntheses da actividade psychologica, a synthese affectiva ou do -sentimento, a synthese especulativa ou da intelligencia e a synthese -activa ou da vontade.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_125">[Pg 125]</span></p> - -<p>A cultura intellectual separada da educação moral é insufficiente -senão nociva para a formação do caracter. Mudança no entendimento póde -produzir mudança na moral, mas uma alteração d’essa natureza póde -despertar tanto disposições elevadas como deprimentes. É facto corrente -na historia dos individuos e das nações, encontrar homens e epocas -brilhantes pelas manifestações especulativas e estheticas, coexistindo -com uma grande depressão moral.</p> - -<p>A cultura moral, diz Baudrillard, ainda com uma luz muito minguada vale -mais do que o desenvolvimento intellectual, mal dirigido, tam frequente -em os nossos grandes centros.<a id="FNanchor_67" href="#Footnote_67" class="fnanchor">[67]</a> A decadencia dos costumes no -proletariado das grandes cidades vem sobretudo da descrença religiosa e -da ausencia de educação moral.</p> - -<p>A cultura intellectual é sem duvida um grande bem e todos os apostolos -que lhe dedicam os seus sinceros esforços devem merecer ardentes -applausos dos bons cidadãos.</p> - -<p>Mas a instrucção sem o respeito da disciplina hierarchica, sem o -sentimento da honra, sem a idéa do dever, n’uma palavra, sem educação -moral, póde tornar-se mais nociva do que a propria ignorancia.</p> - -<p>Quando o saber ler e escrever serve apenas, para adquirir noções -perigosas, chamariz de direitos phantasticos sem obrigações, quando -serve para aprender o desprezo das leis, o irrespeito e o odio pela -auctoridade, quando serve para falsificar firmas, para macular em -pasquins anonymos a honra alheia teria sido muito melhor para a -sociedade o não haver-lhe ministrado esse instrumento desajudado -da educação do caracter. É uma illusão suppor-se que a cultura da -intelligencia só por si basta para melhorar o caracter; essa cultura -sem o sentimento do dever acompanhado d’um cortejo de crenças que o -tornem mais sensivel, mais vivo e mais poderoso, será um deserviço -feito á sociedade.</p> - -<p>Não ha felicidade sem a continencia e a moderação nas ambições, segundo -as circumstancias de cada um. Escreve um distincto jornalista: «O -anarchismo faz hoje <i>pendant</i> ao epicurismo. Por cima estala -o Champagne, por baixo o anathema; por cima rodam caleches, por -baixo nas viellas tenebrosas rola obscuramente o trovão surdo de -um protesto odiento. Em cima goza-se, em baixo nos subterraneos<span class="pagenum" id="Page_126">[Pg 126]</span> -sociaes, cubiça-se. E como efflorescencia morbida d’estes dois estados -egualmente doentios, apparecem nas livrarias elegantes os productos de -uma litteratura requintada até á pornographia, e correm pelos sotãos -lobregos dos proletarios as folhas soltas da propaganda anarchista, -como outr’ora—bons tempos ingenuos!—a historia da imperatriz Porcina -e os romances de cordel. Essas folhas lêem-se como evangelhos que -a desordem epicurista dos que estão por cima commenta e sublinha. -São ellas que ensinam os oradores dos clubs e que arrastam ao crime -os fanaticos, por temperamento, por misanthropia, por genio ás -vezes—por <i>pose</i> tambem, n’esta epocha singular em que o delirio -do <i>reclame</i> faz com que a novidade seja cultivada com amor, e -mereçam attenção e curiosidade egual um bandido como Pranzini, ou um -grande homem como Bismarck. É que no regimen do epicurismo reinante, -as coisas perdem a significação moral, e só vale o que impressiona -imaginações de sybaritas, constantemente em procura de sensações novas. -Um crime é picante, especialmente se reveste circumstancias dramaticas -ou romanticas; uma boa acção, um acto simples e digno, são semsaborias. -Que admira, portanto, a <i>pose</i> e a petulancia dos actores da -comedia do crime? São, como os actores de todos os palcos, os queridos -da gente <i>blasée</i>. Ás vezes, porém, toma ares tragicos, e n’esses -momentos a sociedade estremece de medo. É por isso que os crimes do -fanatismo são os que mais aggravam, e aquelles para que se reclama -a maxima punição; ao passo que os crimes bestiaes teem por vezes -um encanto morbido. É que estes exprimem apenas casos individuaes, -emquanto os primeiros abalam visceralmente a propria estructura social. -O instincto da conservação manifesta-se ás vezes d’um modo brutal, -sempre falho da serenidade critica e comprehensiva. Pensem n’isto os -que negam á sociedade uma vida, um temperamento, sentimentos e nervos -proprios, capazes de commoção e paixões. Pensem, e tirem as illações -consequentes. Uma das illusões dos doutrinarios individualistas foi a -distincção entre crimes civis e crimes politicos. Para os primeiros, -toda a severidade; para os segundos, toda a indulgencia. Imaginava-se -que acima do nós pairava uma atmosphera de bem e de harmonia, dentro da -qual apenas se podiam dar divergencias do opinião, confessaveis sempre, -embora violentas por vezes. Essa illusão passou, como tantas outras, -para dar,<span class="pagenum" id="Page_127">[Pg 127]</span> porém, logar a uma verdadeira aberração; ao criminoso por -fanatismo ou por paixão chama-se doido, e declara-se irresponsavel.»</p> - -<p>A instrucção é um instrumento de que se póde fazer bom ou mau uso. Ha -proletarios que só lêem o cathecismo d’um socialismo barato ou uma -imprensa que serve para apostolar a calumnia, o erro, a iniquidade e -todas as paixões ruins. Ha individuos que se aperfeiçoam na escripta -para poder falsificar firmas, ha quem estude chimica toxicologica para -envenenar o seu similhante. Porém d’estes factos podemos concluir que o -aprendizado da escripta e da chimica são um mal? N’esse caso deviamos -supprimir a agua e o fogo que produzem o horror das inundações e dos -incendios.</p> - -<p>A instrucção é sempre um elemento para a satisfação de necessidades -organicas e artisticas, e o ensino moral é uma nascente inspiradora do -bem.</p> - -<p>O desequilibrio entre o capital e o trabalho gera muitas paixões e -produz numerosos crimes. Se compararmos o presente com o passado, -apezar das crises industriaes e commerciaes, do sentimento de -imprevidencia, é innegavel que a pobreza diminuiu. O bem material tem -consideravelmente augmentado, mas o desejo da commodidade tem excedido -os meios de a satisfazer. O que se faz mister é uma energica educação -da vontade que imponha o seu imperio salutar aos apetites desregrados, -ás ambições que excedem a condição social do individuo e aos maus -conselheiros nascidos da inveja e da vaidade. Sem a temperança dos -desejos, segundo as circumstancias não ha na alma humana felicidade nem -paz.</p> - -<p>Escreve H. Spencer:</p> - -<p>«Persuade-se muita gente, imbuida de certos erros de estatistica, de -que a educação do Estado devia reprimir o crime. Estão os jornaes -cheios de comparações entre o numero dos criminosos que sabem -ler e escrever e o dos analphabetos; e, como este ultimo é muito -superior áquelle, acceita-se a conclusão de que a ignorancia é a -causa dos crimes. Não acode ao espirito a idéa de inquirir se outras -estatisticas, baseadas no mesmo systema, não provariam com a mesma -força que o crime é causado pela falta de lavagem de corpo e de roupa -ou pela má ventilação das habitações ou por não se dormir em quartos -separados. Entrem em uma cadeia e perguntem quantos são os presos que -tinham o habito de se lavar de manhã. Ver-se-ha que a criminalidade -está ordinariamente a<span class="pagenum" id="Page_128">[Pg 128]</span> par da falta de limpeza do corpo. Contem-se -os que tinham mais de uma andaina de fato; a comparação das sommas -ha de mostrar que é bem diminuto o numero dos que tinham roupa para -mudar. Pergunte-se se elles moravam em ruas largas ou dentro do -pateos; saber-se-ha que quasi todos os criminosos das cidades saem das -habitações immundas. Assim acharia tambem na estatistica a justificação -não menos completa da sua crença o partidario fanatico da absoluta -abstinencia de bebidas espirituosas ou dos melhoramentos hygienicos. -Se, porém, não acceitais a fortuita conclusão de que a ignorancia e o -crime são causa e effeito; se tomais conta em que, como acabais de ver, -com egual fundamento era facil attribuir o crime a outras causas muito -diversas,—podeis achar que existe uma relação real entre o crime e um -modo inferior de vida, filho geralmente de uma inferioridade original -de natureza; que, emfim, a ignorancia não passa de um concomitante, que -póde tanto ser a causa do crime como muitas outras cousas. Os auctores -de quebras fraudulentas, os fundadores de companhias phantasticas, -os fabricantes de generos falsificados, os que empregam marcas -falsas, os que vendem com pesos falsos, os proprietarios de navio sem -condições de navegações, os que roubam as companhias de seguros, os -traficantes, a maior parte dos jogadores—são todos gente educada. Ou, -para irmos ao extremo do rebaixamento moral, entre os envenenadores de -todas as epochas não ha porventura um numero consideravel de pessoas -bem educadas, um numero tão grande, em proporção com as classes -illustradas, como é o numero total dos assassinos comparado com a -população total? Mas é até absurda <i lang="la" xml:lang="la">a priori</i> esta confiança -nos resultados moralizadores da cultura intellectual, negados tão -categoricamente pelos factos.</p> - -<p>E em verdade que especie de relação póde existir entre o saber que -certos grupos de caracteres representam umas certas palavras e o -adquirir um sentimento mais nobre do dever? Como é que a facilidade -de formar signaes que representam sons póde fortalecer a vontade de -fazer bem? De que modo póde o conhecimento da taboada da multiplicação -ou a pratica das addições e das divisões desenvolver os sentimentos -de sympathia a ponto de reprimir a tendencia de offender o proximo? -Como é possivel que os themas de orthographia e de analyse grammatical -nutram o sentimento da justiça, e por que razão emfim os apontamentos -sobre geographia colligidos<span class="pagenum" id="Page_129">[Pg 129]</span> com toda a perseverança hão de augmentar -o respeito pela verdade? O parentesco de taes causas com taes effeitos -não é maior do que o da gymnastica que exercita os dedos com a que -robustece as pernas. Quem esperasse ensinar geometria com licções de -latim, ou piano com as regras de desenho, todos o julgariam no caso de -entrar para uma casa de orates: e comtudo não seria mais disparatado do -que aquelles que, disciplinando as faculdades intellectuaes, imaginam -crear sentimentos melhores.»</p> - -<p>Spencer escolhe de proposito as formas da cultura intellectual que -menos se podem aproveitar para ensinamentos moraes. No entanto o -professor póde, em nosso entender, achar em qualquer cathegoria de -ensino scientifico uma relação que influa no sentimento do alumno.</p> - -<p>Não póde dizer-se nunca, como pretende Spencer, que haja -<i>irrelação</i> entre o conhecimento especulativo e a pratica do -bem. A imaginação e a sensibilidade elaboram productos psychicos que -tem a sua origem na intelligencia, os quaes veem a ser condições de -volição. O entendimento nas suas funcções de acquisição de idéas, da -sua conservação, da sua elaboração e do principio racional que as -dirige tem necessariamente muitas vezes de lhe communicar emoções que -influem directa ou indirectamente sobre a vontade. A imaginação é a -faculdade do ideal, a intelligencia a do real, a primeira conhece, a -segunda inventa. É pela imaginação que o homem se distrae e se consola -das vicissitudes da vida real, creando um mundo subjectivo que é o -principal impulsionador da vontade.</p> - -<p>As sciencias mathematicas, physico-chimicas, biologicas e grammaticaes, -teem na verdade uma influencia muito longiqua na vida moral. O mesmo -não póde dizer-se das sciencias historicas e da litteratura. Ninguem -desconhece a influencia moral notavelmente fecunda, nascida das -lettras-classicas, da leitura por exemplo das <i>Vidas parallelas dos -homens illustres</i> de Plutarcho, que é ao mesmo tempo historiador -e moralista, fazendo da historia um verdadeiro ensinamento moral. As -estatisticas registam todos os dias a influencia perniciosa dos maus -romances sobre o crime e o suicidio. É bem conhecido o influxo moral -da cultura helleno-romana sobre os espiritos directores da revolução -franceza. As circumstancias e os principios philosophicos deram o -motivo, mas Roma deu-lhe principalmente a inspiração.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_130">[Pg 130]</span></p> - -<p>O effeito da cultura intellectual poderá ser para a formação do -caracter favoravel ou deprimente, excellente ou detestavel, o que de -modo nenhum será, é indifferente e sem relação, como quer Spencer. -A dependencia em que estão as nossas funcções psychicas é tal que -pensamos porque sentimos, e queremos porque o sentimento e o pensamento -são a materia prima da nossa actividade volitiva. Não ha volição, -por conseguinte não ha acto moral sem motivo sensivel, intellectivo -ou racional, e todos estes actos se refletem na consciencia; logo é -evidente que ha relações reciprocas e influencias mutuas entre a vida -intellectual e o desenvolvimento moral.</p> - -<p>Para Spencer não ha relações entre a acção e as lições moraes e -intellectuaes, ha sómente entre a acção e o sentimento; entre a cultura -intellectual e o sentimento moral ha uma <em>irrelação</em>. Diz com -razão F. Bouillier que não existe tal <em>irrelação</em>, ainda que a -relação não seja sempre proporcional e constante. Não póde negar-se -que entre todos os phenomenos psychologicos existe uma connexão intima -que se encontra sobretudo na unidade da consciencia. A vida moral tem -necessariamente relações com a vida sensivel e intellectiva.</p> - -<p>Mas no que de modo nenhum, se póde seguir Herbert Spencer, é em -restringir a educação moral ao exercicio do sentimento, pondo fóra -por conseguinte como esteril, a acção emotiva de elevados principios -ethicos, de bellas maximas moraes e de sublimes exemplos em holocausto -do dever. Não só estes factos geram no espirito por uma elaboração -consciente ou automatica novas emoções e fecundas idéas moraes, mas -ficam como motivos para dirigirem a vontade. Uma das sciencias que deve -ser para o bom professor um fecundo meio de ensino moral é a historia.</p> - -<p>A opinião, o costume, a imitação instinctiva, o influxo moral são os -principaes factores do caracter, especialmente no periodo psychologico -de maior plasticidade mental. Os movimentos da nossa vontade seguem os -sentimentos e tambem os pensamentos.</p> - -<p>É frequente ver publicistas, apostolos d’uma democracia barata, -prégarem como remedio infallivel e salvador de todos os males a -diffusão da instrucção primaria, mas secular. O sentimento que os -anima é mais um odio cego contra as idéas religiosas, um fanatismo de -intolerancia contra as doutrinas<span class="pagenum" id="Page_131">[Pg 131]</span> christãs, do que a convicção profunda -dos beneficios do estudo e da sciencia.<a id="FNanchor_68" href="#Footnote_68" class="fnanchor">[68]</a></p> - -<p>Entre nós apparecem quotidianamente periodicos e pamphletos, propagando -o fanatismo irreligioso, mais nocivo e nefasto que o pernicioso -fanatismo de religião.</p> - -<p>São esses democratas de cultura superficial e viciada que proclamam -a falsa banalidade «abrir uma escola é fechar uma prisão» querendo -desterrar ao mesmo tempo do lar e do ensino publico a educação moral e -religiosa.</p> - -<p>Diz F. Bouillier: «o fim de todos os hereticos e de todos os fanaticos -foi até ao presente introduzir uma crença, uma fé ardente no lugar -d’outra crença e d’outra fé; fanatismo e scepticismo eram dois termos -contradictorios. As cousas mudaram; é um fanatismo puramente negativo -e sceptico, um fanatismo do vacuo, por assim dizer, que pretende -exterminar em pretendido proveito da democracia e da moral, o que resta -das idéas religiosas nas cidades e nos campos. Temos horror a estes -tristes fanaticos que com o odio na alma, sem nenhuma outra crença, sem -nenhuma outra fé para desculpa, incitam á destruição dos templos e até, -o temos nós visto, á matança dos sacerdotes.»</p> - -<p>Ha uma necessidade secreta e imperiosa na vida espiritual da fé -philosophica e da fé religiosa. Só os individuos que rastejam pela alma -dos brutos, é que se suppõem isentos d’esta mysteriosa necessidade. -A falta do sentimento religioso é condição dos individuos de cultura -inferior e de mediocre talento viciosamente dirigido. O sabio, o -homem de genio profundo, a alma popular singella e penetrante são por -natureza seres religiosos. Tudo na terra está na inter-dependencia do -universo e a cada instante a nossa razão descobre relações com outros -mundos, cada vez mais longinquos, o que prova que o espirito não exgota -n’este mundo a a sua essencia.</p> - -<p>Escreve o distincto criminalista G. Tarde:</p> - -<p>«Não nos admiremos pois de se não descobrir na estatistica criminal -o vestigio de nenhuma influencia benefica exercida pelo progresso -da instrucção primaria na criminalidade. É bem visivel a acção da -instrucção sobre a loucura e<span class="pagenum" id="Page_132">[Pg 132]</span> sobre o suicidio que augmentam a par dos -seus progressos; de modo algum se percebe a sua acção nomeadamente -restrictiva na criminalidade. O relatorio oficial bem o manifesta e -deplora. Mostra-se n’um mappa que os departamentos onde a população -dos illitteratos é maior, esses estão sempre longe de mostrar -maior numero de accusados comparativamente com o numero dos seus -habitantes. Por outro lado, nos campos, onde ha menos instruidos, -contam-se oito accusados por anno em cem mil habitantes, e nas cidades -desaseis. Exactamente o dobro. E todavia deverá inferir-se que o grau -d’instrucção d’um povo é indifferente no ponto de vista criminal? -Não. Em primeiro logar influe evidentemente na qualidade, senão na -quantidade dos delictos. E o mesmo succede com o grau da riqueza. -Algumas luzes mais, o goso de mais algumas commodidades desenvolvem -certos appetites, comprimem outros, transtornam emfim a hierarchia -interior dos nossos desejos, origem de todos os crimes e delictos. -Nos departamentos pobres, são eguaes em numero os crimes contra as -pessoas aos crimes contra as propriedades. Nos departamentos ricos -excede muito a proporção d’estes ultimos. Se a estatistica comparada -dos roubos esmiuçasse este artigo conforme a natureza dos objectos -roubados,—menção sociologicamente mais util que as indicações -relativas á idade dos roubadores,—ver-se-ia sem duvida que, de ha 40 -ou 50 annos a esta parte, desde que a França enriqueceu, tem diminuido -o numero proporcional dos roubos de colheitas e que pelo contrario tem -augmentado e augmenta ainda o de joias, de dinheiro, etc. Assim succede -com a proporção dos delictos contra os costumes, das rebelliões, -gatunices, etc., que tem crescido espantosamente, effeito provavel da -emancipação e da subtileza dos espiritos.</p> - -<p>Mas se apreciarmos a questão pelo lado da instrucção simplesmente -primaria, forçoso será reconhecer que a quantidade dos crimes e -dos delictos tomados em globo, de nenhum modo é influenciada pela -sua diffusão. Pelo contrario, a acção beneficiadora da instrucção -secundaria e sobre tudo superior não é duvidosa. A prova d’isto está na -fraquissima contribuição das profissões liberaes, das classes lettradas -para o contingente criminal da acção: resultado, notemol-o, que não -é devido á riqueza relativa d’estas classes porque a menos rica, a -dos agricultores participa d’este privilegio por qualquer outra causa -por indagar, provavelmente por ser<span class="pagenum" id="Page_133">[Pg 133]</span> a mais laboriosa, e a classe dos -commerciantes, de todas porventura a mais rica apresenta phenomeno -inverso. Não é certamente a fé religiosa a que mais actua nas classes, -mais instruidas. Actúa n’ellas muito menos. Não é emfim porque estas -classes tenham pelo trabalho mais decidida energia; n’este ponto -excede-lhes tanto a classe dos commerciantes e dos industriaes, quanto -a classe agricola excede á d’estes. É pois, creio eu, á sua instrucção -levada a um certo grau ou antes á sua educação de uma natureza especial -que havemos de attribuir a moralidade relativa d’estas differentes -classes sociaes. É para notar que a influencia moralisadora do saber -começa no momento em que elle deixa de ser uma ferramenta apenas e se -torna um objecto d’arte. Se a instrucção, pois, viesse a ser sómente -profissional, se deixasse de ser esthetica, quando não classica, -perderia sem duvida alguma a sua virtude de ennobrecimento. Porque? -Porque o bem não póde ser concebido senão como o <em>util social</em> ou -o <em>bello interior</em>, e porque d’estes dois unicos fundamentos da -moral (postos de parte os preceitos divinos,) o primeiro, o fundamento -utilitario, implica necessariamente o segundo; porque nos conflictos -tão frequentes do interesse geral e do interesse particular, sobre -que se ha-de appoiar o individuo para sacrificar este áquelle, para -amar aquelle mais do que este? Unicamente sobre o amor do bello, desde -muito tempo cultivado por uma educação apropriada e sobre a persuação -de que se embelleza interiormente por este sacrificio, louvado ou -não, conhecido de todos ou somente de si mesmo. Este motivo bastaria -para recommendar ao porvir os estudos litterarios, a arte e tambem -as especulações philosophicas, todas as cousas que, interessando o -homem ao seu objecto por este objecto, o desinteressam por si mesmo e -lhe revelam no fundo d’este desinteresse o seu supremo interesse, no -fundo do inutil o bello. Quando elle sabe conhecer certas impressões -delicadas, toma-lhe gosto e o desejo de as tornar a achar fal-o -repellir as satisfações baixas que lhe fechem o caminho que d’ellas o -approximam. Porque, se a alta cultura moralisa, é porque a moralidade -é a primeira condição subentendida da alta cultura, como a primeira -condição da flora alpestre é um ar puro. Eu sei que poucos são os -bons pelo amor da arte, os estheticos da moral, os novos mysticos, em -quanto que é crescido o numero d’aquelles que hoje o são com medo da -policia ou da deshonra,<span class="pagenum" id="Page_134">[Pg 134]</span> como outr’ora o eram com medo do diabo ou -da excommunhão. Mas emquanto, á imitação d’estes ultimos, se pensa -em aperfeiçoar o Codigo penal, não seria mais urgente augmentar a -minoria dos primeiros, espalhando por todos e principalmente levantando -entre as primeiras familias humanas, d’onde dimana o exemplo, o culto -das bellas inutilidades indispensaveis? Em summa, tão raros são os -homens que, por sentimento da sua dignidade pessoal, especie de gosto -esthetico reflectido e chamado sciencia, são corajosos, francos, -dedicados, apesar da vantagem evidente que elles encontrariam as mais -das vezes em ser cobardes, egoistas e mentirosos? Conforme o modelo, -assim o valor das copias. Felizmente para nós os nossos modelos -invisiveis, os semi deuses venerados na educação dos collegios, grandes -theoricos, grandes artistas, inventores de genio, eram a flor da -honestidade humana e a logica assim o queria, porque teria sido para -elles uma contradicção nos termos ter sido da verdade pura por exemplo -e procurar illudir a outrem, em quanto que não é contradictorio por -fórma alguma aprender a chimica para envenenar uma pessoa, estudar -o direito para usurpar os bens do visinho, d’onde se conclue que a -honestidade dos chimicos, dos jurisconsultos, dos medicos, dos sabios, -é incompativel com os seus estudos propriamente scientificos no sentido -profissional e utilitario da palavra. Mas os grandes homens de que -eu fallo foram moraes por necessidade intellectual d’abnegação e de -franqueza e posto que esta necessidade se não faça sentir na media -das pessoas instruidas, elles dão-lhe tom, imprimem-se mais ou menos -em cada novo alumno e propagados assim em innumeraveis exemplares, -recommendam-se por sua estampa ás naturezas mais vulgares como um bello -cunho liso e brilhante em moedas de cobre.</p> - -<p>Tem-se zombado tanto dos nossos estudos classicos! Todavia é para notar -que, onde elles se cultivam melhor, ahi florescem as virtudes sociaes, -e que, apezar das mais avultadas tentações, das mais vivas paixões, das -mais variadas necessidades, da mais completa emancipação do pensamento, -apesar emfim dos maiores recursos para o crime e das facilidades -relativas que tem o criminoso de se subtrair á acção das leis, não -obstante tudo isso, a criminalidade ahi está no seu <em>minimum</em>. Não -é talvez sem uma rasão profunda que, precisamente quando o catholicismo -recebeu o seu primeiro<span class="pagenum" id="Page_135">[Pg 135]</span> grande abalo, no decimo sexto seculo, teve -nascimento o <em>humanismo</em>, como por uma especie de contrapeso. -Não tenho pois de que me admirar vendo no decimo oitavo seculo, ao -segundo grande assalto do dogma, entre os encyclopedistas ou outros, -o respeito singular das tradições litterarias e dos typos consagrados -da arte, a admiração quasi supersticiosa de Virgilio e de Racine -crescerem á medida dos progressos da sua irreligião irreverenciosa -para tudo o mais. Pelo contrario, tem-se notado que os romancistas -do Imperio e de 1830, luctando contra as tradições litterarias e o -culto da arte classica, se tinham apoiado no sentimento christão -reanimado ou galvanisado, conservadores aqui tanto, quanto innovadores -além. Todos estes contrastes têem parecido estranhos aos que não -têem feito caso de descobrir n’isto a instinctiva compensação de uma -fonte de fé e de moralidade em substituição de uma outra.—Apparentes -inutilidades ha que são funcções superiores. Dá-se por isso, quando -ellas são cortadas. De que servem, dizia-se, as bellas florestas -inexploradas das montanhas? E deitaram-nas abaixo para cultivar o -solo inclinado que ellas sustinham; e desde então as inundações dos -rios têem causado estragos de que os antigos nunca ouviram fallar. -Como se uma pouca de verdura sombreando a sua nascente fosse bastante -para moderar o seu primeiro impulso.—Outro tanto podemos talvez -dizer d’essas outras superfluidades que se chamam <em>lettras</em>, -artes, e d’aquellas que para o vulgo têem valor identico, as festas -tradicionaes, populares, domesticas ou religiosas, os folguedos, os -anniversarios costumeiros, como altas florestas de pinheiros. Um povo -que n’um pensamento utilitario, sacrifica as suas alegrias puras, virá -a deplorar a sua perda; e quando nos corações desencadeados não houver -já cousa que no seu declive sustenha a ambição, o amor, a inveja, -o odio, a cubiça, ninguem deverá admirar-se de ver cada anno subir -a maré da sua criminalidade transbordante. A minha conclusão é que -seria grande o perigo de enfraquecer nos collegios o lado esthetico -da educação, que convem fortificar ali de preferencia, depois de se -ter supprimido na escola o ensino religioso. O momento seria tanto -mais mal escolhido, quanto pela primeira vez o poder politico, d’onde -acaba sempre com o tempo por derivar a força proselytica, o prestigio -exemplar, o verdadeiro poder social em uma palavra, é tirado aos -professores liberaes, onde a<span class="pagenum" id="Page_136">[Pg 136]</span> criminalidade é de 9 accusados por anno -para 100:000 pessoas d’estas cathegorias e conferido, não ás classes -agricolas, onde é de 8 para o mesmo numero de agricultores, mas na -realidade ás populações industriaes e commerciantes das cidades, onde -é de 14 e 18 para um igual numero de industriaes e commerciantes. -Porque não é com exactidão que se diz que o nosso paiz se democratiza. -Democratizar-se não é termo que sirva para uma nação onde tres quartas -partes do povo são camponezes, assentaria melhor, permittam-me o verbo, -<em>rustificar-se</em>, ou, para exprimir a cousa com justa conveniencia, -estender e fortalecer os costumes, as preocupações, as idéas agricolas -e ruraes. Mas o contrario succede pela emigração espantosa dos campos -para as cidades, e ainda mais pela importação dos costumes urbanos, das -idéas urbanas, para o centro dos campos. A França commercializa-se, -industrializa-se, se o querem; não se democratiza. A cousa tem o seu -lado bom, o seu lado excellente, tenho-a applaudido a muitos respeitos -mas tinha de mostrar aqui tambem o reverso da medalha. Se, como eu -julguei mostral-o em outro logar a origem da criminalidade profissional -só póde ser estancada em primeiro logar por uma expansão maior de -beneficencia e pela creação de numerosas sociedades de patronato, -importa que as novas classes dirigentes, tanto e mais que as antigas, -tenham aprendido a praticar o culto do bem, do bello para o bello. -E se, em segundo logar, o remedio para o mal da criminalidade geral -se acha em parte na estabilidade do poder politico, é preciso não -esquecer que sem uma forte dose de dedicação da parte dos governos e de -confiança da parte dos governados, não ha governo de possivel duração. -A concorrencia d’estas duas condições é rara! Ora é um povo sincero que -se confia cegamente a um despota, a um egoista de talento ou de genio, -ora é um homem de Estado dedicado aos interesses do paiz que se esbarra -com uma desconfiança geral que o paralysa; mas ha esta differença a -notar que, muitas vezes com o tempo, a dedicação dos chefes leva a -confiança ás massas, emquanto que nunca se viu a confiança dos povos -fazer nascer a abnegação no coração dos seus governantes. É pois -primeiro que tudo o desinteresse, a generosidade, o amor intelligente -do bem publico, que se deseja encontrar nos homens chamados a -governarem, pois que o resto póde vir como consequencia. D’aqui resulta -que as nossas duas precedentes conclusões concordam igualmente<span class="pagenum" id="Page_137">[Pg 137]</span> para -proclamarmos a necessidade do sacrificio, a insufficiencia do mobil -do interesse pessoal, e a opportunidade de elevar por consequencia a -educação esthetica o mais possivel, tanto como diffundir a instrucção -profissional o mais longe que possa ser.»</p> - -<p>Tarde (G.) dá grande importancia á cultura do sentimento esthetico -nos effeitos da criminalidade. De feito, a emoção do prazer e o -sentimento de admiração, que resultam da contemplação do bello, elevam -os nossos juizos e melhoram a nossa alma. Kant resumiu os caracteres -subjectivos do bello, definindo-o o objecto d’uma satisfação, -desinteressada, universal e necessaria. É grande a sua analogia com o -bem, porém distingue-se, porque este mira não só á perfeição geral mas -essencialmente á perfeição moral.</p> - -<p>O sentimento esthetico como criterio moral é incompleto; posto que toda -a moralidade seja bella e que o ideal esthetico nos excite á pratica -do honesto e nos inspire o desejo de o realisar; não nos obriga como o -principio do bem, ao cumprimento do dever. A moralidade deve existir -sempre na arte, porém não a absorver, visto que tem por especial -missão, crear o bello, não ensinar o bem. No entanto ella carece sempre -do attributo moral porque a immoralidade fere a consciencia e altera -o prazer esthetico. Ninguem póde negar, que o bello, exercendo a -sympathia desinteressada, é um alliado do bem, mas este conserva a sua -individualidade.</p> - -<p>Na escola a educação esthetica não póde supprir a educação do -sentimento moral e religioso. Os italianos têem como nenhum outro povo -notaveis aptidões estheticas e afamados monumentos artisticos, onde -pódem beber as grandes e delicadas emoções da belleza e todavia são -o povo onde a estatistica criminal mais avulta. A renascença é uma -das idades mais esplenderosas e mais fecundas na creação do bello e -todavia apresenta se ao historiador como um periodo de aviltamento e de -depravação moral tanto nos grandes crimes como em detestaveis vicios, o -que prova a coexistencia d’uma alta civilisação intellectual e material -com a depravação.</p> - -<p>A approximação excessiva das idéas do bello e do bem provêm da theoria -da escola escoceza, que reduz a consciencia moral a um sentido, que nos -deu a natureza, similhante ao do gosto e ao do paladar. O homem segundo -este systema aprecia o bem como o bello, não pela razão, mas pelo -sentimento immediato que experimenta. H. Spencer, que é n’este ponto<span class="pagenum" id="Page_138">[Pg 138]</span> -discipulo de Reid e de Darwin considera o <em>sentido moral</em> como um -legado hereditario na especie. O prazer moral n’este caso não differe -dos outros prazeres, não ha motivos de preferencia. Como se vê é uma -forma do empirismo moral.</p> - -<p>É extremamente benefico para a alma o sentimento d’uma belleza moral, -placida, serena e vigorosa, inspirada por um ser que goza de todas as -forças; que se encerram nas condições d’um typo poetico, que preenche -completamente a sua grandiosa missão no mundo. Esta belleza, quando -real, filha da natureza ou da sociedade, como diz Krause, tem mais -<em>plenitude</em>, porque a natureza cria as suas obras d’um modo -integral com todas as peças nas suas relações mutuas emquanto o bello -ideal tem mais <em>expressão</em>, porque o espirito cria as suas obras -de um modo independente, dispondo dos elementos de representação á sua -vontade. A primeira belleza é o fim da arte naturalista, a segunda o da -arte classica.</p> - -<p>O egregio criminalista Tarde quando se refere á educação esthetica, -sollicita a attenção para as vantagens da educação litteraria. -Certamente a poesia, o drama, a eloquencia escripta, a historia -narrativa occupam o primeiro lugar na cultura do sentimento moral, da -imaginação e do gosto, não só pela intensidade da emoção, que produzem, -mas porque communicam idéas d’um valor mais preciso e mais nitido. -Depois da educação religiosa e da educação moral, aquella que mais -enriquece, eleva e fortalece o coração, é a educação artistica. Todavia -é certo tambem, que em todas as formas da actividade psychologica se -póde utilisar adequadamente o elemento moral.</p> - - -<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_66" href="#FNanchor_66" class="label">[66]</a> É para notar contra a opinião de Buckle que Marco Aurelio -foi talvez o homem de estado mais esclarecido da antiguidade. O exemplo -parece mal escolhido.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_67" href="#FNanchor_67" class="label">[67]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">De la Famille et de la éducation</i>, pag. 74.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_68" href="#FNanchor_68" class="label">[68]</a> Veja-se <i xml:lang="fr" lang="fr">Morale et Progrès</i> por Francisco Bouillier, -Inspector Geral de Instrucção Publica, pag. 291. É uma analyse profunda -d’este estado que se póde applicar a todas as nações neo-latinas.</p> - -</div> -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_139">[Pg 139]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="VI">VI</h2> -</div> - -<div class="section"> - -<p>Os effeitos da acção educativa. A hereditariedade, o meio; Garofalo. O -gosto pelo adorno é na mulher como sustenta B. Perez uma manifestação -esthetica e nunca uma approximação do typo criminoso. A arte e a -moral. Educação physica, a escola e a doença.</p> -</div> - -<div class="blockquot"> - -<p>Toda a despeza que os paes fizerem na educação de seus filhos será -frustrada se elles não tomarem sobre si a maior parte da obrigação de -mestres e ayos com preceitos e com exemplo.</p> - -<p class="right"> -MARTINHO DE MENDONÇA.<br /> -</p> -</div> - - -<p>É innegavel que a educação, o meio social e a hereditariedade são os -guias principaes que dirigem o individuo durante toda a sua vida. Se a -acção educativa não é, como pretendem alguns sociologos, efficaz para -reformar os sentimentos do individuo, porque elles são o resultado -hereditario de lentas elaborações, é o todavia para reformar uma -geração, para criar uma sociedade futura, mais justa, mais moralisada -e mais cheia de sentimentos bons e generosos. O sentimento é um dos -factos psychologicos, que maior influencia exerce sobre o caracter; -insuflar pois na alma o sentimento religioso, o sentimento esthetico, o -sentimento moral, é melhorar o individuo, é engrandecer a sociedade.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_140">[Pg 140]</span></p> - -<p>A educação em alguns casos possue relativamente pouco poder -para modificar os sentimentos e tem de exercer a sua acção pela -intelligencia afim de dirigir a acquesição dos habitos. A acção -volitiva sobre a intelligencia começa hesitante, disciplinando as -numerosas associações de movimentos reflexos necessarios para dirigir -certos musculos em determinado sentido. Por ultimo basta que os nervos -sensitivos levem aos centros nervosos o grau determinado de impressões -para a excitação ser immediatamente produzida. É assim que os habitos -se adquirem e que transmittidos pela hereditariedade se convertem em -instinctos. Se a acção educativa é pouco efficaz no individuo, ficará -de reserva para os seus descendentes.</p> - -<p>Como é sabido a associação das idéas é uma das operações mais -importantes na formação da estructura intellectual. Ha necessidade -de habituar o espirito a formar juizos segundo certas relações das -cousas, no intuito de tirar do valor d’essas relações todo o partido -possivel em favor da educação do caracter. É preciso ensinar a -creança a ligar na sua consciencia d’uma maneira irreductivel, ás más -obras sentimentos de vergonhosa reprovação e de dôr, e ás boas obras -sentimentos de honra, de merito e de respeito para que se habitue -a aborrecer os primeiros e a amar os segundos. Estas associações -tornadas indissoluveis e ás vezes inconscientes é que formam o nosso -caracter e regulam o nosso procedimento na vida moral. O exercicio -intensivamente repetido das nossas operações intellectuaes torna-se -com a frequencia cada vez mais automatico, e como os actos automaticos -são inconscientes, parece que a humanidade caminha a passos rapidos -para o inconsciente, porém não succede assim, porque os resultados das -operações não se tornam inconscientes, o que se torna inconsciente são -estas associações mechanicas dos elementos adquiridos pela experiencia -e transmittidos pela hereditariedade. É claro que a consciencia a que -nos acabamos de referir não é a consciencia moral, porque essa não -augmenta nem diminue com a herança accumulada, permanece inalteravel, -impondo á vontade a necessidade de executar uma acção em obediencia -á lei do dever. A intelligencia culta esclarece melhor o valor dos -motivos actuantes, mas a verdadeira superioridade moral d’um individuo -ou d’uma nação está em respeitar a lei.</p> - -<p>No caracter é preciso distinguir o que é congenito e o que<span class="pagenum" id="Page_141">[Pg 141]</span> vem pela -influencia do meio e da educação. Para as disposições nativas é -difficilimo alcançar extirpação radical, mas para as adquiridas toda -a formação do caracter depende de bem dirigir os habitos, sobretudo, -no periodo psychogenico. As inclinações innatas podem ser attenuadas -dentro de certos limites e até vencidas por considerações de interesse -proprio ou pela inoculação d’uma paixão elevada que lucte contra uma -paixão ruim.</p> - -<p>Punir é uma triste necessidade social, evitar que o crime exista é que -deve ser a principal funcção das sociedades que aspiram á tranquilidade -e á segurança economica. Pretender a extincção total do crime seria -uma aspiração chimerica, mas diminuir a sua frequencia pela acção -educativa e por outros melhoramentos e circumstancias, que desinvolvem -o bem estar social, é <i>desideratum</i>, que progressivamente póde -converter-se em realidade.</p> - -<p>O grande contingente dos criminosos é recrutado entre os menores -abandonados, filhos de paes crapulosos, que no alvorecer da vida lhes -deram tristes exemplos. Para estes a rapinagem converte-se n’uma -profissão, primeiro impellidos pela necessidade, depois atrahidos pelo -habito. A ausencia de educação moral faz com que tenham por unicos -prazeres o ocio, a embriaguez, a libertinagem, a vãgloria, o jogo, -que são outros tantos incentivos para a pratica do crime. É já um -aphorismo em jurisprudencia que muito mais vale prevenir os crimes do -que punil-os. A educação posta ao serviço da sciencia social preventiva -do crime, é a alavanca mais poderosamente salutar, para destruir as más -inclinações e converter em habito o amor do bem e a pratica do justo. A -acção educativa é muito mais efficaz na creança que no adulto, por isso -são preferiveis os asylos de imfancia ás penitenciarias correccionaes; -os primeiros evitam em parte as segundas.</p> - -<p>Sobre a influencia da educação nos instinctos criminaes escreve -Garofalo, o porta-bandeira da jurisprudencia anthropologica: «Muitos -philosophos crêem na possibilidade de modificar os sentimentos moraes -pela educação ou pelas influencias do meio e na possibilidade de -transformar o meio social mediante o poder do Estado. Duas questões se -seguem, uma psychologica, outra social e sobretudo economica, e ambas -merecem um detido exame. Começaremos pela questão da influencia que -pode ter a educação sobre as tendencias dos criminosos afim de podermos -apreciar o que ha de verdadeiro e de<span class="pagenum" id="Page_142">[Pg 142]</span> acceitavel na theoria penal, -chamada correccionalista. O problema da educação seria, com effeito, da -maior importancia para a sciencia penal se, por meio de ensinamentos -fosse possivel transformar o caracter do individuo <em>já vindo da -infancia</em>. Desgraçadamente parece demonstrado que a educação só -representa uma d’essas influencias actuantes <em>nos primeiros annos -da vida</em> e que, como a herança e a tradição contribuem para formar -o caracter. Estando este fixado como a physionomia no physico, fica -o que hade ser toda a vida. Ponho até em duvida que um instincto -moral ausente se possa criar pela educação no periodo da primeira -infancia. Em primeiro logar, quando se trata da infancia, a palavra -educação não deve ser tomada em sentido pedagogico, significa antes -um conjuncto inteiro de influencias exteriores, uma serie completa -de scenas que a creança vê desenrolarem-se continuadamente e que lhe -imprimem habitos moraes, ensinando-lhe experimentalmente, e quasi -inconscientemente, qual é o procedimento a seguir nos differentes -casos. São os exemplos da familia, ainda mais que os ensinamentos -que actuam em seu espirito e em seu coração. Mas dando-se á palavra -<em>educação</em> uma significação extensa, não havemos a certeza do seu -effeito, ou ao menos, esse effeito de modo algum se pode medir.<a id="FNanchor_69" href="#Footnote_69" class="fnanchor">[69]</a> -Podem-nos fazer notar que quasi todas as creanças parecem privadas de -senso moral nos primeiros annos da sua vida; a sua crueldade para com -os animaes é conhecida assim como a sua tendencia para se apoderarem -do que pertence aos outros; são inteiramente egoistas, e quando se -trata de satisfazer os seus desejos, nada absolutamente se preoccupam -com os desgostos que os outros soffrem. Na maior parte dos casos, -tudo isto muda em chegando a adolescencia; mas podem-nos objectar que -esta transformação psychologica é o effeito da educação ou sómente -se hade ver n’isto um phenomeno d’evolução organica, semelhante á -evolução embryogenica, que faz percorrer o feto pelas differentes -formas da animalidade, desde as mais rudimentares até ás do homem? -Tem-se dito que a evolução do individuo reproduz em ponto<span class="pagenum" id="Page_143">[Pg 143]</span> pequeno a -da especie. Assim no organismo psychico, os instinctos que primeiro -apparecem, seriam os do animal, depois os mais egoistas, os do homem -primitivo, aos quaes viriam ajuntar-se successivamente os sentimentos -ego-altruistas, e altruistas, adquiridos pela raça primeiramente, em -seguida pela familia e finalmente pelos paes da creança. Seriam outras -tantas juxtasposições d’instinctos e de sentimentos, que todavia não -seriam devidos á educação, ou á influencia do meio ambiente, mas -simplesmente á herança. «A consciencia, diz M. Espinas, cresce como -o organismo e parallelamente a elle, encerrando aptidões, fórmas -predeterminadas de pensamento e de acção, que são emanações directas -de consciencia, anteriores <em>eclipsadas um instante é certo na -obscuridade da transmissão organica</em>, mas reapparecendo um dia -com caracteres de semelhança não equivocas, que logo se confirmam -cada vez mais pelo exemplo e pela educação. <em>Uma geração é um -phenomeno de fissiparidade transportado na consciencia.</em> Esta -hypothese não é inverosimil, ainda que seja impossivel demonstral-a -rigorosamente porque seria para isso necessario poder distinguir, no -desenvolvimento moral d’uma creança, o que é devido á herança do que -é devido á educação. E como o conseguiriamos, tanto mais que estas -duas influencias actuam ordinariamente na mesma direcção, porque, -quasi sempre <em>derivam das mesmas pessoas, dos paes? A educação -domestica não é senão a continuação da herança</em>; o que não foi -transmittido organicamente, sel-o-ha pela força dos exemplos e de uma -maneira igualmente inconsciente. Nunca se poderá calcular a que ponto -chegaria uma d’estas duas forças sem o soccorro da outra. É por isso -que Darwin, d’um lado, tem o direito de dizer que se se transportasse -a um mesmo paiz um certo numero de irlandezes e de escocezes, passado -algum tempo, seriam aquelles dez vezes mais numerosas que estes, mas -os escocezes, por causa de suas qualidades hereditarias, estariam á -frente do governo e das industrias.—E Fouillée póde tambem replicar: -«deitae nos berços de amas escocezas crianças irlandezas, sem que os -paes possam dar pela substituição: fazei-os educar como escocezes e -talvez vejais com a maior admiração identico resultado.» Mas, esta -segunda experiencia ainda não foi ensaiada e é até provavel que nunca -se cheguem a fazer experiencias taes. Ha sem duvida milhares de -crianças que não são educadas por seus paes, mas de ordinario são<span class="pagenum" id="Page_144">[Pg 144]</span> -desconhecidos estes ultimos. Emfim, é sempre preciso dar informações -dos phenomenos d’atavismo, que permanecem ainda na obscuridade e que se -não podem determinar; de sorte que tudo conspirava para que o problema -fique sem solução. Muitas vezes succede que os instinctos paternos são -abafados ou attenuados pelos exemplos maternos; outras vezes dá-se o -contrario. Mas isto nada prova em favor da efficacia educativa, porque -pode-se sustentar com igual apparencia de verdade que o effeito é -simplesmente devido á superioridade final de uma das duas heranças. -O que bem se póde affirmar é que a influencia <em>hereditaria</em> nos -instinctos moraes está <em>demonstrada</em>, emquanto que o da educação é -<em>duvidosa</em>, mas <em>provavel</em> uma vez que se tome no sentido dos -<em>exemplos</em> e dos <em>habitos</em>; que a considerem como sempre cada -vez mais <em>fraca, á medida que a idade avança</em> e que simplesmente -se lhe attribue uma acção <em>capaz de modificar</em> o caracter, isto é -podendo, mas não extirpar os instinctos perversos, que ficariam sempre -latentes no organismo psychico. É o que explica como a perversidade, -talvez atavica, revelada por algumas crianças em tenra idade, jámais -pôde ser corrigida em toda a sua vida, apesar do procedimento mais -exemplar de seus paes e das pessoas que com ellas vivem em contacto -e a despeito dos cuidados mais assiduos e dos melhores ensinamentos. -Pelo contrario, parece incontestavel que a <em>influencia deleteria</em> -de uma <em>má educação</em> ou de um meio ambiente depravado, pôde -abafar inteiramente o senso moral transmittido e substituil-o pelos -maus instinctos. De sorte que a <em>criação artificial de um bom -caracter seria sempre pouco estavel, emquanto a de um mau caracter -seria completa</em>. Isto explica-se facilmente, segundo M. Ferri, -quando pensamos que os germens maus ou instinctos anti-sociaes, que -correspondem á idade primitiva da humanidade, estão mais profundamente -enraizados no organismo psychico, precisamente porque elles remontam a -uma data mais affastada na raça. São pois mais fortes do que aquelles -que foram substituidos pela evolução. Por isso, é que os instinctos -selvagens «não sómente não podem ser nunca inteiramente abafados; mas -apenas o meio ambiente e as circumstancias da vida, favorecem a sua -expansão, brotam com violencia, porque, dizia Carlyle, a civilisação -não é mais que um involucro sob o qual pode sempre arder em fogo -infernal a natureza selvagem do homem.»</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_145">[Pg 145]</span></p> - -<p>Agora se a influencia da educação <em>pelo que respeita ao sentido -moral</em>, é duvidosa, <em>mesmo durante a infancia</em>, o que será -ao sahir d’este periodo? M. Sergi crê que o caracter é formado por -camadas sobrepostas, que podem cobrir e esconder inteiramente o -caracter congenital; o meio ambiente a educação experimental, os -mesmos ensinamentos poderiam produzir uma nova camada, não só durante -a infancia, mas durante toda a vida do homem. Esta hypothese não -é admissivel, a meu ver, salvo se supposermos que as camadas mais -recentes nunca alteram o typo já formado do caracter. Ninguem duvida -de que o organismo psychico não tenha o seu periodo de formação e -de desenvolvimento tanto como o organismo physico. O caracter, como -a physionomia, declara-se desde a mais tenra idade. Póde tornar-se -mais docil ou mais rispido, amaciar, embotar as unhas ou aguçal-as, -disfarçar-se na vida ordinaria; mas, como poderia elle perder o seu -typo? Ora um typo differente do caracter, e do homem desprovido dos -mais elementares sentimentos moraes, é um defeito organica que deriva -da herança, do atavismo ou d’um estado pathologico. Como poderiamos -suppor que influencias exteriores reparem este defeito congenital? -Seria uma criação <i lang="la" xml:lang="la">ex nihilo</i>, a producção <em>artificial -do sentido moral</em> pertencente á <em>raça</em>, mas de que o -<em>individuo</em> se encontra <em>excepcionalmente</em> desprovido! Eis -o que é dificil de conceber, o que parece até impossivel, quando se -não trata já de uma criança. Isto não é negar o poder da educação. -Quem póde duvidar dos seus prodigios quando se trata de aperfeiçoar -um caracter, de tornar mais delicados os sentimentos já existentes, -de trabalhar no estofo, n’uma palavra? O que lhe não reconhecemos -é o poder de tirar alguma cousa do nada. É sobre este ponto que um -illustre psychologo, o dr. Despine, se contradiz, me parece a mim, -da maneira mais espantosa. É certamente a elle que nós devemos uma -serie de observações sobre os criminosos confirmando a sua anomalia; -foi elle até que formulou uma theoria muito approximada á nossa, -sobre a ausencia do sentido moral, não sómente entre os assassinos -a sangue frio, mas tambem nos grandes criminosos violentos. Foi -ainda elle quem affirmou que «a educação mais diffusa não pode crear -faculdades, só póde cultivar as que existem ao menos em germen. As -faculdades intellectuaes por si sós não procuram os conhecimentos -instinctivos dados pelas faculdades moraes; não teem esse<span class="pagenum" id="Page_146">[Pg 146]</span> poder,» -que «é facil reconhecer nas faculdades moraes a origem dos motivos -d’acção que devem apresentar-se ao espirito do homem nas diversas -circumstancias em que este pode encontrar-se» e, emfim que «todos -os raciocinios, todos os actos intellectuaes, não provarão já o -sentimento do dever, não provarão as affeições, o medo, a esperança -o sentimento do bello.» E apesar d’isto é este mesmo auctor quem -propõe um <em>tratamento moral palliativo e curativo</em> para os -criminosos, tratamento que elle resumiu da maneira seguinte: Impedir -toda a communicação entre os individuos moralmente imperfeitos.—Não -os deixar na solidão, porque elles não possuem na sua consciencia, -nenhum meio de emenda.—Conserval-os constantemente em contacto com -pessoas moraes, capazes de os vigiar, de estudar a sua natureza -instinctiva, de imprimir n’esta e dar aos seus pensamentos uma boa -direcção, inspirando-lhes ideias d’ordem, e fazendo nascer n’elles o -gosto e o habito do trabalho. O estado deveria pois tomar a seu cargo -estes cuidados assiduos, constantes pelos encarcerados; vigiar os seus -progressos, como se pratica n’um collegio de pequenos; tentar, por -meio de exemplos, pela experiencia, pela instrucção, suavisar-lhes -o caracter, tornal-os affectuosos, probos, cheios de caridade e de -zelo. A ideia da applicação de uma semelhante therapia moral a muitos -milhares de criminosos é, praticamente, uma utopia. Não fazia falta -collocar ao lado de cada prezo um anjo consolador, por assim dizer? -As pessoas chamadas para um semelhante emprego deveriam ser dotadas -das mais nobres qualidades, das mais raras no homem; a paciencia, a -vigilancia, a severidade e com um conhecimento profundo do coração -humano, deveriam ter instrucção e dedicação. Onde se encontrariam em -numero suficiente medicos das almas nas condições requeridas? Quaes -seriam as finanças que poderiam supportar semelhantes despezas? Mas, -suppondo por um pouco que as dificuldades praticas não levantariam -um obstaculo insuperavel a este systema, quaes seriam os effeitos do -seu emprego? O individuo, uma vez separado de toda a sociedade e não -tendo já sob os olhos as tentações continuas da vida ordinaria, não -experimentaria já em seu coração as impulsões criminosas. A causa -occasional essa faltar-lhe-hia, mas o germen criminal continuaria a -residir n’elle em estado latente, prompto a mostrar-se, assim que as -condições precedentes da sua existencia normal viessem a reproduzir-se. -A emenda pois seria<span class="pagenum" id="Page_147">[Pg 147]</span> apenas apparente, se é que não era fingida. -Poder-se-hia acaso fallar de uma pedagogia experimental? Mas, se -é certo que os instinctos moraes da humanidade foram criados por -milhões de experiencias utilitarias feitas por nossos antepassados -durante milhares de seculos, como se poderá imaginar a sua repetição -artificial n’um espaço de tempo tão curto como a vida d’um individuo, -cujo instincto não herdou, fructo d’estas experiencias das gerações -passadas? É evidente que nada podemos tentar fóra do raciocinio. Tem-se -tratado depois de fazer propostas mais praticas. Em primeiro logar -seria inutil applicar a cura moral de um modo <em>directo</em>, conforme -a utopia de Despine; mas effectuar-se-hia por si mesma, mediante um -bom regime penitenciario. O isolamento, o silencio, o trabalho, a -instrucção traziam a reconsideração e as boas resoluções, capazes de -regenerar o condemnado. Mas, quanto ao isolamento «para o pobre e para -o desgraçado, para o homem que tudo perdeu e cahiu,—diz eloquentemente -Mittelstad,—não é a separação da sociedade humana que lhe faz falta -é sim o amor e o contacto d’esta...» E quanto ao trabalho diz ainda o -mesmo auctor: «Não resta presentemente para nós humanistas da escola -correccionalista, senão o vago desesperador d’este dilemma, a ouvir-se -n’estas palavras: «<em>trabalho educativo dos presos</em>». Querem elles -o effeito benefico do trabalho sobre os costumes? Então é preciso -que elle se exerça sem coerção e que se substitua a detenção pela -liberdade ou antes querem elles a coerção ao trabalho? Então eil-os -de novo no campo da dor penal, e o fim da emenda, que é d’elle?!<a id="FNanchor_70" href="#Footnote_70" class="fnanchor">[70]</a> -Mas ao trabalho obrigatorio, respondem os correccionalistas, deve -alliar-se a educação do espirito e do coração com o auxilio de escolas, -onde os condemnados, ordinariamente grosseiros e ignorantes, podem -adquirir os conhecimentos do bem e da verdade, que lhes fazem falta. -Desgraçadamente, como nós o veremos em breve, a experiencia tem -demonstrado que a efficacia da escola é ordinariamente nulla sobre a -moral individual. Tem-se um delinquente adulto, privado de uma parte -do senso moral, o<span class="pagenum" id="Page_148">[Pg 148]</span> instincto da piedade; pretende-se inculcar-lhe este -instincto por meio do ensino, isto é repetindo-lhe que um dos deveres -do homem é ser compassivo, que a moral prohibe fazer mal aos nossos -semelhantes e assim outras cousas muito bonitas... O delinquente -porem só adquirirá, se o não tiver já, um certo criterio para saber -conduzir-se mais seguramente conforme os principios da moral. N’uma -palavra, adquirir ideias, não sentimentos. E depois? O homem é bom não -pela reflexão, mas por instincto que lhe falta. Como proceder para -supprir este defeito organico? Elle verá o bem, mas fará o mal, quando -o mal lhe convir e lhe causar prazer.</p> - -<p class="poetry"> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Vejo e approvo o que é melhor</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Mas sigo o peior.</i><a id="FNanchor_71" href="#Footnote_71" class="fnanchor">[71]</a></span><br /> -</p> - -<p>Por mais que se lhe repita que o interesse social tem muito mais -importancia que o interesse individual; que este, no fim de contas, -se confunde até com aquelle: que, como membros da sociedade, nós -devemos, em certos casos, sacrificar o nosso egoismo, para que assim -procedam comnosco. Ou antes tomando por base um principio religioso, -falle-se-lhe da felicidade de uma vida futura para o homem justo e -de condemnação eterna que espera os perversos. Na essencia, tudo se -reduz a um raciocinio: se tu praticares uma tal acção, advir-te-ha -mal. <em>Logo para evitar isto, não deverás praticar aquillo.</em> Mas, -se o delinquente prefere satisfazer antes a sua propria paixão, que -entregar-se a qualquer outro prazer, a qualquer outra esperança, o -raciocinio então já não tem valor para elle, o que poderia impedil-o de -commetter um novo crime, não é ver claramente o que os outros, e não -elle, consideram como um interesse predominante,—mas seria necessario -que elle <em>experimentasse a mesma repugnancia</em> que os outros -experimentam pelo crime; porque o que explica toda a acção humana, -é, em ultima analyse, o caracter do individuo e sua maneira geral de -sentir.</p> - -<p>Ora um raciocinio não poderá nunca criar um instincto. Este não póde -ser senão natural ou transmittido, ou antes adquirido inconscientemente -por um effeito do meio ambiente. Eis-nos pois novamente em face dos -dois agentes principaes a herança e o meio. A educação, uma vez que -ella não represente<span class="pagenum" id="Page_149">[Pg 149]</span> senão ensinamentos, é de um effeito nullo, ou -pouco menos, se o meio continúa o mesmo, isto é se o criminoso, depois -da expiação da sua pena ou culpa se tornar a achar no mesmo meio -que d’antes occupava. É conhecida a historia d’aquelles negrinhos -que depois de terem sido educados e instruidos na Europa, foram -reconduzidos aos seus respectivos paizes para <em>civilisarem</em> os -seus compatriotas. Assim que elles se viram de novo entre estes, tudo -esqueceram, tanto a grammatica e as suas regras como as boas maneiras -que tinham aprendido; despojaram-se dos seus vestidos, retiraram-se -para as florestas e eil-os outra vez selvagens como seus paes, que -aliás nem tinham conhecido! Eis aqui precisamente a que chegaria o -systema correccionalista; julgue-se do resto pelos ensaios que já se -teem tentado: o systema cellular, o de Auburn, o systema Irlandez, -etc. O numero das reincidencias por toda a parte tem augmentado, á -medida que se teem suavisado as penas e abreviado a sua duração. Em -França na proporção de 21 p. c. em 1851, chegou a 44 p. c. em 1882 -para os <em>delictos</em> e de 23 a 52 p. c. para os <em>crimes</em>. A -reincidencia—dizia o Ministro—continua a sua marcha invasora... O -augmento do numero dos malfeitores em estado de reincidencia legal -é, em dez annos de 39 p. c., perto de 2 quintas partes. A maré da -reincidencia continua a subir. Relatorio de 28 de março de 1886 onde se -deplora o mesmo facto. Na Belgica a reincidencia attingira a proporção -de 56 p. c. em 1870 e de 52 p. c. em 1873. Houvera diminuição desde -1874 até 1876, mas em 1879 chegou a proporções assustadoras (49 p. -c.!) Na Italia, desde 1876 até 1885, a reincidencia dos condemnados -pelos tribunaes subiu de 10¹⁄₂ p. c. A mesma progressão em Hespanha. -Ha tambem augmento, ainda que menos pronunciado, na Austria e na -Carinthia. Tudo isto prova experimentalmente o absurdo da theoria -correccionalista, das suas applicações pelo menos. Nem podia deixar -de ser assim, porque nos seus principios ha contradicção flagrante. -Com effeito, emquanto que de um lado se declara que o fim da pena é a -<em>correcção</em> do culpado do outro lado estabelece-se uma <em>medida -fixa</em> de pena para cada delicto, isto é um certo numero de mezes ou -de annos de detensão n’uma casa do Estado; o que—como o disse o juiz -Wilert—se parece com o tratamento que um medico prescrevesse ao seu -doente, com a indicação do dia em que lhe deveria dar alta do hospital, -quer elle estivesse curado ou<span class="pagenum" id="Page_150">[Pg 150]</span> não. Tudo quanto se póde saber do -naufragio d’esta theoria são as instituições para a infancia abandonada -e para os adolescentes que começaram a mostrar más inclinações. Quanto -aos adultos, apenas se póde tentar fazel-os adquirir o <em>habito</em> -de um genero de vida que elles <em>deveriam desejar poder continuar -sempre</em>, porque será mais util <em>para elles</em> que qualquer outra -actividade em o novo ambiente para onde os transportarem. É assim -que aquelles d’entre os criminosos que não são inteiramente homens -degenerados poderão deixar de ser nocivos á sociedade. Isso só é -realisavel pela deportação ou por colonias agricolas que se estabeleçam -nas regiões pouco habitadas da mãe-patria, com a condição de que -esta especie de exilio seja perpetuo, ou que ao menos se não fixe -d’antemão o tempo da sua duração, afim de que se não libertem senão os -raros individuos cuja regeneração pelo trabalho possa realmente ser -verificada. São casos excepcionaes. Mas nos casos ordinarios é absurdo -pensar que depois de uma ausencia mais ou menos longa, um delinquente -possa reapparecer no meio que é sua pequena patria sem ahi passar pelas -mesmas influencias que o tinham impellido para o crime.»</p> - -<p>Em toda a critica feita por Garofalo á escola correccionalista ha -excellentes argumentos, muitos preconceitos systematicos e algumas -contradicções. Nos capitulos anteriores já nós combatemos muitas das -hypotheses d’esta escola. Os seus defeitos nascem por um lado d’uma -funesta e erronea orientação philosophica, por outro lado da exagerada -extensão generalisadora, dada aos factos sommaticos, generalisação que -de modo nenhum scientificamente elles abrangem. O principal argumento -é—que a educação é impotente para vencer os instinctos hereditarios, -quando em boa psychologia se póde demonstrar, que a acção educativa, -quando efficaz, aniquilla as más qualidades herdadas, substituindo-as -pelos salutares beneficios adquiridos pela civilisação.</p> - -<p>A má educação na familia é um influxo mais corruptor e mais profundo do -que o meio social. O instincto de imitação actua como importantissimo -elemento para a formação do caracter.</p> - -<p>A educação segundo a anthropologia franceza modifica o encephalo, o -seu influxo faz augmentar ou diminuir a capacidade da caixa craneana, -apressar ou retardar o encerramento das soturas e a sua ossificação. É -innegavel que o cerebro<span class="pagenum" id="Page_151">[Pg 151]</span> é a condição do pensamento e sendo modificado -por factos exteriores ou internos, vem a ser ainda que indirectamente, -tambem modificadas as suas faculdades.</p> - -<p>Paulo Broca affirma que segundo o costume de Taiti os indigenas crêem -poder fabricar, á vontade, homens de conselho ou homens de guerra -achatando nas creanças a parte posterior da cabeça no primeiro caso e o -frontal no segundo.<a id="FNanchor_72" href="#Footnote_72" class="fnanchor">[72]</a></p> - -<p>Não póde nenhum penologo deixar de prestar justiça aos meritos e -de reconhecer os esforços da escola italiana, comtudo é impossivel -acceitar a extraordinaria affirmação de que todos os malfeitores são o -reapparecimento do homem primitivo e que o meio de verificar este typo -são especialmente os caracteres externos.</p> - -<p>A theoria biologica do transformismo está invadindo d’um modo -anti-scientifico os principios explicativos dos phenomenos -psychologicos e sociaes, é preciso na sua applicação um pouco mais de -logica.</p> - -<p>«Os nossos anthropologos consideram como herança da antiga barbarie a -predilecção que a mulher tem pelos adornos, que Isaias e Plauto, antes -dos nossos prégadores e dos nossos comicos, reprehenderam como um senão -e como um vicio.</p> - -<p>A arte dos adornos, na opinião d’elles, é uma das primeiras que o -homem conheceu. Precedeu o vestuario. O selvagem de pelle aspera e -cabelluda, de costumes bestiaes, não sentia nenhuma necessidade de -se vestir. Mas o orgulho, o cuidado de se defender, o desejo sempre -crescente de se differençar e de metter medo, fizeram com que elle -pintasse e ornasse o corpo conforme o seu ideal rudimentar de belleza. -O adorno é mais que tudo a insignia do guerreiro, que quer fazer maior -e exagerar o seu typo. «Na origem das sociedades, é o homem que traz -os braceletes, manilhas, brincos, collares, pinjentes, alfinetes para -o cabello, plumas de cores vivas; é elle que se pinta, que emprega a -tatuagem, para chamar a vista, para fascinar o inimigo, affirmar a -sua cathegoria entre os seus eguaes, e excedel-os se póde; um penacho -é uma coroa.<a id="FNanchor_73" href="#Footnote_73" class="fnanchor">[73]</a>» Mais tarde com o progresso relativo das artes e -da abastança, o nivel da mulher, destinado a ficar sempre inferior -ao homem, alevantou-se um nada, o senhor, que primeiramente fiava, -tecia e ennastrava permittiu-lhe que se<span class="pagenum" id="Page_152">[Pg 152]</span> occupasse n’esses humildes -trabalhos, não lhe desagradou vel-a adornar-se para elle, o luxo em -torno do senhor era com effeito apenas a amplificação da sua propria -magnificencia. Como elle achava de continuo meios novos de assignalar -a sua superioridade, deixou para a mulher os adornos que já não eram o -seu prestigio unico, o progresso da civilisação, é realisado sobretudo -pelo homem e para o homem, e o apartamento faz-se cada vez mais -sensivel entre os dois sexos.</p> - -<p>É por isso que a mulher conforme dizem os anthropologos representa o -typo inferior da especie, adorna-se e enfeita-se ainda com melhor gosto -sem duvida, mas com a mesma paixão que o selvagem e o homem primitivo. -Do selvagem ao criminoso innato a distancia é pequena, e a assimilação -d’um ao outro reflectiu-se na mulher. Se o criminoso representa nas -nossas sociedades civilisadas, a selvageria primitiva, encontra-se -entre elle e a mulher semelhanças notaveis. «Ellas são mais prognathas -que os homens, tem o craneo menos volumoso (Topinard) e o cerebro menos -pesado, mesmo com estatura egual e as fórmas cerebraes tem o que quer -que seja infantil, e embryonario; são mais que os homens canhotas ou -ambisdextras; tem, se é licito dizer-lho a ellas, o pé mais chato e -menos arqueado; emfim, ellas são menos musculosas e tão completamente -imberbes como abundantes de cabêllo. São estes outros tantos traços -communs com os nossos malfeitores. Mas isto ainda não é tudo. A mesma -imprevidencia, a mesma vaidade, dois caracteres que Ferri assignala -com razão como dominantes no criminoso».<a id="FNanchor_74" href="#Footnote_74" class="fnanchor">[74]</a> Paro aqui n’esta ultima -parecença. Não poderia admittir em nenhum ponto de vista a assimilação -do typo feminino ao typo selvagem ou criminoso. Com os mesmos titulos -que o homem, mas com um feitio proprio, a mulher é um ente civilisado. -Cada um tem aproveitado o progresso e collaborado com o seu quinhão, -conforme o seu destino social.</p> - -<p>O papel da mulher é sobretudo «agradar ao homem» diz Rousseau; «e a -belleza da mulher é o signal da sua missão,» diz Proudhon; Renan poude -portanto dizer com razão que adornando, aperfeiçoando, idealisando a -sua belleza, «ella pratica uma arte, arte especial, em certo sentido a -mais encantadora das artes.»</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_153">[Pg 153]</span></p> - -<p>Tenham paciencia os anthropologos extremos, a predilecção pelos -adornos, restringida pelo pudor e o bom senso, assignala antes uma -perfeição do typo humano na mulher. Mas nós precisamos defender tambem -a creança contra as pretensões abusivas de certos philosophos. Se a -mulher, reproduz em certas proporções o typo selvagem e primitivo, -a creança reproduz-lhe as differentes phases. O desenvolvimento -individual não é senão uma fórma abreviada do desenvolvimento da -especie desde o seio da mãe e durante muitos annos, a creança repete -a serie da evolução prehistorica. Aos seis mezes, ao anno, aos dois -annos, mesmo aos tres, o que domina n’elle é o selvagem. Conheço -transformista a quem não custaria mostrar-nos no «Bébé» primeiro o -selvagem da pedra lascada, depois o da pedra polida, e emfim o da edade -de bronze, tudo isto muito exactamente.</p> - -<p>Admittamos a theoria por hypothese e verifiquemos.</p> - -<p>O encommodo que o contacto e a pressão da roupa, produz no recemnascido -lembrará, estou d’accôrdo, a feliz e livre nudez do velho antepassado. -O curioso é que este mimo primordial persiste entre muitas creanças, -aliás, muito bem dotadas, e que a insensibilidade da pelle é um -dos caracteres attribuidos ao typo criminoso «ou selvagem». Não me -encarrego de explicar a contradicção. Mas lá vae outra: desde o decimo -segundo ao decimo quinto mez, a predilecção nascente pelo adorno -coexiste com o prazer de estar nuazinha. Deveriamos vêr n’isto duas -phases successivas de selvageria que se fundiam?</p> - -<p>Nós chegamos, despresando as transições á edade de tres ou quatro annos -e podemos suppôr-nos no limiar da pedra polida. Ora n’esta épocha, e -sobretudo na epocha do bronze, o adorno era em geral o privilegio do -sexo forte. Deveriamos pois, achar a predilecção mais precoce e mais -viva nos rapazes que nas meninas; sem o que a doutrina da repetição -historica nos parece estar em perigo. A não ser que se supponha tambem -(uma hypothese a mais ou a menos, não é coisa de grande monta) n’essas -edades distantes a paixão pela argola de metal e por um trapo não fosse -um desejo bastante violento para se assemelhar ao sentimento da posse. -Mas vamos aos factos e estudemos sem idéa antecipada as creanças dos -dois sexos.<a id="FNanchor_75" href="#Footnote_75" class="fnanchor">[75]</a>»</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_154">[Pg 154]</span></p> - -<p>Póde affirmar-se<a id="FNanchor_76" href="#Footnote_76" class="fnanchor">[76]</a> que as bellas artes indirectamente concorreram -para o desenvolvimento moral da humanidade. As faculdades estheticas -são até certo ponto intermediarias entre as faculdades puramente moraes -e as faculdades puramente intellectuaes. Ha homens para quem não é -possivel despertar uma certa actividade especulativa sem submetter -a sua intelligencia a um regimen esthetico previo. Este influxo é -salutar e reage sobre o espirito e sobre o coração, podendo constituir -espontaneamente um dos processos mais poderosos da pedagogia. É -incontestavel que o convivio com as bellezas da natureza ou da arte -purifica a sensibilidade, eleva o espirito, engrandece o horisonte -onde a alma se move, torna o sentimento da dignidade mais vivo e mais -delicado, expungindo do coração o que é vil e miseravel, senão para -sempre ao menos emquanto dura a vibração do enthusiasmo. Estes são os -fins indirectos, mas o fim essencial da arte é interpretar idealmente -as bellezas da natureza e com ellas deleitar-nos.</p> - -<p>É uma das glorias mais formosas dos espiritos d’escol na civilisação -moderna, dar um logar cada vez mais amplo á sensibilidade humana -no banquete dos prazeres intellectuaes. H. Spencer, levado por um -preconceito nacional que caracterisa exclusivamente o espirito -inglez, antepoz d’um modo particular a utilidade ao sentimento -esthetico, a sciencia á arte. Propugna este paradoxo com a finura do -seu immenso talento,—representando uma inconsolavel mãe que perde o -seu filho, cuja saude comprometteu pela ignorancia da hygiene, e a -quem não consolará uma leitura da Divina Comedia de Dante no texto -original.—Podem saber-se umas noções de hygiene e conhecer o italiano, -sem que estas duas ordens de idéas se excluam, pelo contrario podem -harmonisar-se e completar-se. Seria revoltantemente injusto privar o -espirito da mulher de emoções tão delicadas e tão latificantes como o -attractivo da poesia e os encantos da arte.</p> - -<p>As obras litterarias, d’um requinte subtil, são unicamente para os -espiritos excepcionalmente cultos e delicados, mas as universaes -bellezas da arte grega e latina, e muitas ha n’este genero, estão ao -alcance de todas as intelligencias. Ao<span class="pagenum" id="Page_155">[Pg 155]</span> ler, por exemplo, o dialogo -do divino Platão, o <i>Criton</i>, onde se narra pormenorisadamente a -morte sublime de Socrates, ou a descripção que Herodoto faz da passagem -do desfiladeiro das Termopylas, ou da batalha de Marathona, ninguem -deixará de sentir uma emoção benefica e consoladora, pela belleza da -narrativa e pela grandiosidade heroica dos factos. A circumstancia -de obrigar o nosso espirito a pensar e a fallar da vida do mundo -hellenico-romano não só nos incute aquelle delicado sabor esthetico, -mas imprime ao nosso caracter aquella energia moral intemerata e -athletica, que parecia feita do bronze da lança de Minerva. Meditamos -n’aquella unidade e harmonia, que tanto distingue a civilisação grega -e de que tanto carece a sociedade moderna. O nosso espirito chega a -sentir saudades d’esse passado, vendo como essa unidade e essa harmonia -foram impostas pelo sentimento artistico, cujo esplendor foi a funcção -historica d’esse glorioso povo. Nenhuma nação do mundo, em tão limitado -espaço e em tão pouco tempo, fez tanto e tão bem. O que nos resta da -formosa Hellade, passados mais de dois mil annos, ainda nos maravilha -e nos encanta, as deliciosas reliquias da sua alma são um lenitivo aos -nossos desgostos, como o capitoso <i>nepenthes</i> de que falla Homero.</p> - -<p>Não é meu intuito fazer n’esta occasião um curso de sciencia da -educação; porém não será fóra de proposito mostrar de modo rapido -como a cultura esthetica do espirito humano pela litteratura e pelas -bellas artes póde contribuir para o seu aperfeiçoamento moral. Querendo -esclarecer esta questão basta analysar as relações que unem o bem e -o bello, visto que as lettras e as bellas artes são as expressões do -bello, e que a idéa do bem serve de guia a tudo o que póde contribuir -para o nosso aperfeiçoamento. Ha quem sustente a these opposta, J. J. -Rousseau trata com desamor as sciencias e as artes porque vê n’ellas um -instrumento não de progresso moral mas de corrupção. O genio grego e -romano era d’uma opinião opposta, admittindo quasi a identidade do bem -e do bello, e confundindo muitas vezes as duas idéas. O bello e o bem -dimanam d’uma unica idéa, a idéa de ordem que é tão precisa á esthetica -como á moral. Evidentemente o bello não poderia existir na arte sem -a harmonia, a regularidade; em pintura as leis da perspectiva, da -proporção, impõem-se ao artista; a musica tem como condição, a medida e -o rhythmo; o drama não poderá libertar-se das<span class="pagenum" id="Page_156">[Pg 156]</span> tres unidades no tempo, -no espaço e na acção: ora é obvio que é sempre a idéa de ordem que se -manifesta n’estas concepções sob aspectos diversos. Succede o mesmo em -moral, a ordem é uma condição da virtude. O homem honesto carece da -razão, do senso commum e da medida que regula todos os seus actos.</p> - -<p>Ha uma relação intima entre o bem e o bello; porque teem um principio -commum, poder-se-hia mesmo, dentro de certos limites, substituir o -gosto esthetico á consciencia moral. A harmonia reinaria em todos os -nossos actos tendo o bello invariavelmente, na sua significação mais -grandiosa, como norma do procedimento. O bello repelle a grosseria -e a bruteza, é sempre fiel á honra, á pollidez e á virtude. É além -d’isso desinteressado, não serve senão para deleitar a alma; perante um -objecto bello não somos egoistas, satisfazemo-nos em contemplal-o, não -desejamos appropriar-nos d’elle para uso exclusivo.</p> - -<p>O gozo esthetico affasta as paixões ruins e depura a alma; com effeito -depois de um homem ter passado horas na comtemplação ou leitura das -grandes obras onde ha opulencia de belleza, não poderá entregar-se ás -brutalidades da embriaguez e das paixões degradantes.</p> - -<p>Ha distracção mais fina e mais delicada, conforto moral mais consolador -do que a leitura do <i>Prometheu</i> de Eschylo, da <i>Antigone</i> de -Sophocles, ou da <i>Historia da guerra do Peleponeso</i> de Thucydides?</p> - -<p>As bellas lettras não corrompem o homem, o que o corrompe é a riqueza, -e esta coincide quasi sempre com as epochas de desenvolvimento -artistico e litterario: d’ahi vem a confusão de se attribuir, como na -<em>renascença</em>, a decadencia moral ás artes, quando ella provém do -excesso de riqueza. Com effeito o bello tem fórmas que são estranhas -ao bem; Cesar, ás vezes, fez uso immoral do seu genio, mas a nossa -admiração e o nosso criterio distingue bem dos seus vicios o seu -extraordinario heroismo.</p> - -<p>Ha homens d’uma grande inferioridade moral que manifestam grande -admiração pelas artes. Ludovico de More, duque de Milão, que passou -politica e estheticamente por um grande principe, e que protegeu -copiosamente as artes, chegando a fundar uma academia na sua côrte, -retribuindo largamente os grandes artistas Bramante e Leonardo de Vinci -tem uma vida de tyranno cheia de perversidades e de crimes.<span class="pagenum" id="Page_157">[Pg 157]</span> Outro -exemplo assaz saliente é Nero. Modernamente póde citar-se Napoleão I -que é um todo extraordinario e de quem de Candolle, fazendo-lhe um -retrato moral execravel diz que tinha um fraco sentimento das artes -plasticas e nenhuma disposição para a musica, sem embargo de ter -ostentado que as amou. Sem duvida todos os tyrannos, que protegem -as artes é mais pela vaidade propria e como chamariz da admiração -alheia, do que pelo sentimento intimo da contemplação do bello. -Conseguintemente estes não podem servir de norma para apreciar a acção -moral do sentimento artistico.</p> - -<p>«Na transmissão educativa transformada ao impulso da civilisação -moderna ha, como consequencia de grandes causas de erro, -alterações pathologicas individuaes que se podem grupar em duas -classes—<em>alterações anatomicas e alterações funccionaes</em>.<a id="FNanchor_77" href="#Footnote_77" class="fnanchor">[77]</a></p> - -<p>Este segundo grupo ainda convem dividil-o em <em>perturbações da vida -animal e perturbações da mentalidade</em>.</p> - -<p>Não é que estas differentes anomalias se destaquem realmente e possam -apparecer exclusivamente sós n’um dado individuo, mas pela razão de -todas as classificações—a commodidade e o methodo de estudo.</p> - -<p>O typo normal especifico do homem actual soffre, em virtude da -adaptação escolar um desvio bastante notavel e importante, no ponto -de vista anthropologico que comprehende o individuo, a especie e as -sociedades.</p> - -<p>A alteração d’este typo é o resultado das deformações a que o individuo -é sujeito durante a actividade escolar. Estas deformações são o -producto das posições viciosas que tomam os alumnos ou que lhes fazem -tomar no exercicio quotidiano de desenvolvimento intellectual e de -acquisição scientifica.</p> - -<p>Este exercicio prolongado por mezes e annos, nas más condições -mesologicas que ordinariamente se encontram na escola, e sem a devida -compensação do exercicio physico, bem pensado e dirigido, constitue -um agente poderoso de transformação individual que a hereditariedade -reforça e fixa, já pela tendencia transmittida, já pela transmissão de -mudança que o habito operou no individuo.</p> - -<p>N’estas considerações abrangemos com a maxima generalisação<span class="pagenum" id="Page_158">[Pg 158]</span> todas as -modificações de que é susceptivel o individuo humano convencionalmente -adaptado ao meio escolar.</p> - -<p>Especialisando convenientemente, encontramos no primeiro grupo definido -os desvios da columna vertebral.</p> - -<p>D’esta classe só pretendemos estudar, conforme o nosso ponto de vista -particular, os desvios <em>não symptomathicos</em> de qualquer affecção.</p> - -<p>Excluidos estes apresentam-se-nos na escola dois generos de incurvações -rachidianas:—<em>incurvações antero-posteriores e incurvações -lateraes</em>.—Pertencem ao primeiro genero a <em>cyphose</em> e a -<em>lordose</em> e ao segundo a <em>scoliose</em> como especie unica, mas -com variedades mais ou menos accentuadas.</p> - -<p>A cyphose dá uma incurvação exagerada á espinha dorsal e é -ordinariamente limitada á região dorsal, pelo que póde considerar-se -como uma ampliação da curvatura d’essa região. É produzida pelas -attitudes demoradas, com o dorso curvado, lendo, escrevendo ou -costurando, e devida, em parte, á necessidade creada pela myopia -de inclinar muito o tronco para approximar os olhos do trabalho em -execução.</p> - -<p>Esta especie de desvio encontra-se mais frequentemente do que parece e -nem sempre se torna notavel. Mas observa-se vulgarmente nas modernas -gerações que passam a sua adolescencia na escola um arqueamento -pronunciado no dorso e a saliencia posterior anormal dos hombros, -projectando para diante a cabeça e o pescoço. É o que se encontra mais -frizantemente na velhice mais adiantada, principalmente nos individuos -cuja profissão ou habito obriga á incurvação prolongada do tronco, por -exemplo, escrivães, costureiras, cavadores. Na outra especie d’este -genero—a lordose—a convexidade da curvatura é anterior e dá-se na -região lombar e quando muito na cervical. É uma incurvação que tem mais -geralmente logar nas mulheres e que, como deformação escolar tem a sua -etiologia na attitude forçada a que são obrigadas as alumnas para se -manterem direitos em assentos sem espaldar.</p> - -<p>Por muito distantes que pareçam estar estas ideias, ha entre ellas uma -relação mais proxima, infelizmente do que entre escola e educação; -porque tal como educação e escola se consideram hoje, o que se adquire -mais facilmente do que uma educação bem dirigida e equilibrada é um -certo grau de morbidez caracteristico dos individuos que vivem em -logares<span class="pagenum" id="Page_159">[Pg 159]</span> restrictos e que são adaptados a um modo de vida artificial e -anomalo.</p> - -<p>A escola, como equivalente de estufa ou de viveiro, dá productos -de degenerescencia que são o resultado mais contraproducente da -civilisação moderna, d’este pretendido progresso humano que nos leva -por vezes a um pessimismo doloroso e desolador em vez de nos conduzir a -um aperfeiçoamento a que já teria decerto chegado a nossa especie, se -varios elementos perturbadores não influissem na sua evolução.</p> - -<p>É que realmente tem-se desenvolvido mais a intelligencia do que a -energia physica e alcançou-se com este desequilibrio uma tal devassidão -dos elementos psychicos na educação que se obtem frequentes resultados -negativos, agora, isto é, na epoca em que os programmas attingiram o -maximo desenvolvimento.</p> - -<p>Se collocarmos em parallelo esta exhuberancia dos programmas e do -ensino intellectual com a marcha evolutiva da educação physica e -moral e com a nosographia, particularmente na applicação á escola, -tornar-se-ha bem avultante, apesar de todos os aperfeiçoamentos -apparentes, o amesquinhamento das raças, mesmo nas manifestações -intellectuaes, que tanto se obstinam as boas sociedades em fazer -realçar, embora á custa da salubridade individuar e collectiva, -produzindo a final um definhamento cujos signaes se pronunciam cada -vez mais nas descendentes das velhas raças europeas civilisadas, mas -decadentes.</p> - -<p>Esta conclusão é tanto mais legitima quanto maior numero de exemplos a -Historia apresenta de genios, de sabios, de celebridades de diversos -typos, que representam em grande parte a negação da escola, e foram -comtudo grandes, livres na sua expansibilidade genial, e vieram a -occupar as culminancias sociaes, como as aguias e os açores nas -eminencias dos rochedos olhando o mundo com o desprezo que lhe permitte -a potencia das suas azas e das suas garras.</p> - -<p>Justamente, muitos genios, precisaram, para mais largamente exercitarem -o seu vôo, forçar os gradeamentos tristonhos das gaiolas de educação -a que em vão pretenderam sujeital-os e para alguns, como Darwin, por -exemplo, só depois de passado o tempo escolar poderam manifestar as -suas aptidões, porque na escola eram tidos como menos aptos.</p> - -<p>O que é tristemente certo e independente de qualquer pessimismo é -que, apesar da extraordinaria ampliação dos<span class="pagenum" id="Page_160">[Pg 160]</span> programmas de ensino, -os sabios que ainda hoje ha e os que ainda são robustos pertencem á -geração anterior, contemporaneos de Chevreul, e anteriores ainda ao -movimento escolar moderno, emquanto que da geração actual, sahida da -estufa educativa não se distinguem, proporcionalmente, na quantidade -e na qualidade, os genios, os sabios, por estudos, por descobertas -que possam tornal-as equivalentes a Pasteur, a Trousseau, a Broca, a -Lombroso, a V. Hugo, a Tourgueneff, a Wagner, a Delacroix, e a tantos -outros que, por assim dizer, monopolisaram a originalidade, o poder -descobridor e inventivo que tem apenas um echo nas sociedades hodiernas.</p> - -<p>O ensino collectivo, escolar, restricto, apenas mais complicado, -mas não muito mais vasto do que nas epochas passadas, fornece á -vida pratica productos de fabrica, industriaes levando a respectiva -marca—os stigmas da degenerescencia. São resultados de tentativas -frustres, talvez typos de transição, mas a sociedade não se acha -realmente mais adiantada, menos viciosa, antes pelo contrario. E se, -nas revelações exteriores da actividade commum, ainda se admira alguma -obra grandiosa como a celebração do centenario da Republica franceza, -essa maravilha é feita de passadas glorias, é obra de adultos e de -velhos experimentados e sabedores, é resultante de exforços conduzidos -scientificamente de outras eras, o aproveitamento de descobertas -anteriores; o que tem de novo é a fórma e a applicação. Tal é, por -exemplo, o phonographo Tainter—Edison. É preciso lembrar que a torre -Eiffel não se ensina a construir na escola.</p> - -<p>Seria de certo exigir muito, mas por isso bastam á escola principios, -noções, idéas, e a escola de hoje, moldada nas reformas recentes, tem -pouco d’esse indispensavel material, por muito que lá se trabalhe; -porque ha sensivelmente falta de ordem, de equilibrio, de methodo, -e d’este trabalho desordenado sae, como no poema surprehendente de -V. Hugo—<i xml:lang="fr" lang="fr">Puissance egale bonté</i>—um <em>gafanhoto brilhante</em> -mas... destruidor de culturas. Será isto uma consequencia da -degeneração das raças que habitam o velho continente ou simplesmente o -resultado da educação como até aqui tem sido dirigida? É o que tratamos -de estudar.</p> - -<p>Em primeiro logar as nações arrastadas por uma corrente de -industrialismo teem hoje o triplo fim—industria, commercio e luxo. -Desde muito tempo que a actividade civilisada<span class="pagenum" id="Page_161">[Pg 161]</span> se reduz totalmente -á industria, tendencia que mais se accentuou desde o começo d’este -seculo. O principio é a fabrica, o meio é o commercio e o fim é o luxo.</p> - -<p>De modo que cada vez é mais pequena a esphera da actividade -desinteressada, scientifica ou artistica. Hoje tudo quanto trabalha não -tem singelamente como fim a existencia e o bem estar normal, primitivo; -ha em vista o luxo e a gloria, que é tambem um luxo.</p> - -<p>Na consecução d’este fim multiplo a humanidade desviada da sua linha -natural de aperfeiçoamento entra no dominio da pathologia. Esta -explica-nos como, a despeito do progresso de todas as epochas, dos -seculos passados e do presente, as raças que se chamam civilisadas vão -cahindo n’uma degeneração tristissima, porque, como dizia Theophilo -Gautier, a ruina humana é a mais triste das ruinas.</p> - -<p>As sociedades tem ainda os grandes contagios, a tuberculose, o -arthritismo, o crime, o alcoolismo e variadas fórmas de nevrose que -constituem um grupo nosologico á parte e o assumpto de um vasto estudo, -porque o industrialismo usurpa em seu favor os mais generosos exforços -e arrasta até os artistas e os homens de sciencia, e os hygienistas -mal podem vibrar a sua palavra auctorisada no meio do ruidoso labor -dos tantos industriaes e mal conseguem vencer a astucia de tantos -<em>industriosos</em>.</p> - -<p>Obedecendo á mesma lei, a escola é tambem uma fabrica onde se trabalha -em <em>alta pressão</em> conforme a phrase do dr. J. Rochard, produzindo -o que este illustre hygienista francez chama <i xml:lang="fr" lang="fr">petits savants à -lunettes, myopes, chétifs bourrés de chiffres et de formules</i>...</p> - -<p>Esta adulteração não póde passar sem reparo perante aquelles que prezam -sinceramente a sciencia e as legitimas manifestações intellectuaes, -visto que a cultura, como ella é presentemente feita, dá productos -analogos aos que uma horticultura banal obtem pela transformação de -plantas naturalmente simples e bellas em monstros botanicos para -admiração do vulgo e vaidade do jardineiro.</p> - -<p>Com os primeiros exercicios escolares começam as deformações anatomicas -e consequentemente as alterações funccionaes que tomam facilmente um -feitio peculiar de modo que a escola, fóra dos preceitos, muitas vezes -da hygiene mais elementar, entra largamente na secção etiologica da -pathologia geral, onde, com sentimento, não vemos a menor adhesão<span class="pagenum" id="Page_162">[Pg 162]</span> -especifica a este grupo de causas, a não ser muito largamente.</p> - -<p>Este esquecimento admira-nos tanto mais quanto achamos o parentesco -pathogenico de muitas lesões e desvios anatomico-physiologicos na -nosologia escolar.</p> - -<p>É preciso não esquecer um só momento que é dos primeiros annos que -depende o resto da existencia de cada homem e que abandonado ou mal -dirigido n’esses primordios da vida fica vitaliciamente entregue á sua -hereditariedade e ás commoções do meio social e climaterico.</p> - -<p>Fallámos da hereditariedade e parece-nos dever declarar aqui que este -importantissimo factor não fica por nós posto de parte no estudo da -nosographia escolar a que nos dedicamos. Mas se effectivamente a -creança vem para a escola na posse de uma herança morbida qualquer, -a escola não modifica vantajosamente, nem no physico nem no moral, e -muitas vezes, nem no intellecto, o individuo que lhe foi confiado.</p> - -<p>Pelo contrario, as mais das vezes, a escolariedade imprime á creança ou -ao adolescente os caracteres morbidos que mais se accentuam de geração -em geração, pela hereditariedade.</p> - -<p>N’um precedente estudo indicamos as alterações anatomicas de que o -individuo humano é passivel na escola<a id="FNanchor_78" href="#Footnote_78" class="fnanchor">[78]</a> e dividimos as alterações -funccionaes em dois grupos:—perturbações da vida animal e perturbações -mentaes.</p> - -<p>Procuraremos por ora occupar-nos um pouco d’esta primeira sub-divisão.</p> - -<p>O que se nos impõe logo como defeito escolar é a insanidade commum a -todas as acumulações humanas, como de quaesquer reuniões de animaes em -espaço limitado e sempre demasiadamente acanhado.</p> - -<p>Todas as vezes que ha agglomeração de individuos que precisam de ar -para viver, e teem de ficar encerrados n’um recinto mal ventilado, -ou de, modo nenhum ventilado, é claro que vão cerceiando uns aos -outros o ar de que cada um carece. Ao cabo de uma hora ou ainda menos, -acha-se a atmosphera sensivelmente modificada, diminuida no seu -oxygenio e augmentada no gaz carbonico, alem de outros productos de -desassimilação que se eliminam pelos pulmões e pela pelle. Herscher -demonstrou pelo calculo que n’uma aula tendo 8 metros cubicos por -alumno a viciação de ²⁄₁₀₀₀ de<span class="pagenum" id="Page_163">[Pg 163]</span> anhydrido carbonatico é attingida em -uma hora, se não se estabelece a ventilação. Attendendo a que a maior -parte dos estabelecimentos escolares não fornecem, mesmo dada alguma -ventilação, aquelles 8 metros cubicos a cada alumno, principalmente nos -dormitorios, póde concluir-se, embora grosseiramente, que a viciação -da atmosphera n’estes institutos é mais consideravel do que a media -fornecida pelo calculo de Herscher.</p> - -<p>O anhydrido carbonico vae-se diluindo no ar e, logo que exceda a -proporção de 3 a 4 por 1000, este torna-se irrespiravel. Ora a -ventilação tem sido um problema de solução delicada e ordinariamente -não se faz bem, porque quasi nunca as edificações escolares satisfazem -a esta exigencia, entre nós e mesmo n’outros paizes, se prestarmos fé -ás queixas de hygienistas e visitadores de escolas do estrangeiro.</p> - -<p>O collegial soffre, pois, durante grande parte do dia e portanto -durante grande parte da sua vida, a influencia do ar deleterio, e -patenteia-se ao observador mais especialmente instruido a anemia -caracteristica dos individuos que persistem muito tempo em logares mal -arejados.</p> - -<p>Combinando a falta do ar com a falta de movimentos necessarios ao -regular desenvolvimento do organismo tem-se uma grande diminuição da -vitalidade geral, uma diminuição da capacidade total respiratoria, e -portanto uma debilidade que predispõe para qualquer estado morbido -determinado pela incidencia das causas pathogenicas. De facto a vida -escolar predispõe para a tysica, já pela falta de ar livre, já pelas -attitudes contrafeitas que originam deformações da espinha dorsal e -do thorax e dão perturbações da respiração, o que, conjunctamente com -a mobilidade demasiado restricta que traz a atrophia dos orgãos, dá a -apparencia estiolada e o fundo morbido correspondente.</p> - -<p>Além d’isto, ha uma actividade cerebral forçada, exaggerada que rouba -aos outros orgãos o fluido nutritivo, fatiga os centros nervosos e -contribue para o desequilibrio funccional que de ordinario se observa -nos escolares.</p> - -<p>A este respeito diz o professor Peter: «Não ha só trabalho excessivo -e reparação insufficiente, ha ruminação do ar nas salas de estudo mal -ventiladas durante a estação quente e de modo algum na estação fria, -ruminação do ar nos dormitorios menos arejados do que as salas de -estudo, ha durante a maior parte do dia a clausura longe do sol, isto -é o estiolamento, a<span class="pagenum" id="Page_164">[Pg 164]</span> immobilisação nos bancos, isto é, os musculos em -repouso e o cerebro em trabalho forçado. E tal que tinha nascido para -bom cultivador saudavel, torna-se um tuberculoso forte em themas.»</p> - -<p>Quando tudo isto fosse apenas previsão do nosso espirito ou exhalação -acrimoniosa de um pessimismo da moda, não seriam confirmadas estas -observações pelos resultados da estatistica.</p> - -<p>Assim, conforme a estatistica de Finkelnburg, em Berlim por 100 -creanças que morrem tysicas ha 4,81 de 5 a 10 annos de idade; 12,96 -de 10 a 15 annos e 31,88 de 15 a 20 annos. Vê-se que esta mortalidade -augmenta com o numero de annos e como o ensino é mais desenvolvido e -complicado quanto maior é a idade escolar, póde concluir-se, tendo -em vista a situação da creança e do adolescente na escola, que esta -favorece a evolução da terrivel doença.</p> - -<p>Quando menos encontram-se nos escolares, e com certa frequencia -as congestões abdominaes, produzidas pela estação sentada durante -muito tempo e as congestões de cabeça, que se traduzem ás vezes por -expistaxis e ordinariamente por cephalalgias repetidas e cujo numero de -casos varia de 20 a 40 por 100 conforme os estabelecimentos (Arnould). -Michel Levy conta 104 vezes cephalalgia nos alumnos da Escola -Polytechnica, sobre 360 casos de doença.</p> - -<p>Estes accidentes são attribuidos ao mau funccionamento pulmonar nas -posições contrafeitas que os alumnos tomam nas salas de estudo.</p> - -<p>Serão muitas vezes attribuiveis á fadiga cerebral, principalmente -quando se trata de preparar os exames.</p> - -<p>O estudo nocturno, alem da demorada applicação da vista de dia, é -causa não só da myopia tão vulgar na classe escolar, mas de varias -doenças oculares determinadas pelo excesso de funcção, estando ou -não predisposto o alumno para taes desvios pathologicos que são -tambem muitos frequentes nos escolares. Ordinariamente acontece que -o trabalho de leitura e escripta muito prolongado e feito em más -condições com a cabeça inclinada para a frente, circulação viciosa e -luz insuficiente, produz uma tensão vascular das membranas do olho, -estase sanguinea e muitas vezes inflamações, atrophia da choroidea que -durante a acomodação forçada comprime as arterias, diminuindo as trocas -nutritivas pelo obstaculo posto á circulação.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_165">[Pg 165]</span></p> - -<p>É incontestavel a perturbação da physiologia da retina pelo cançaço -do orgão, pela illuminação intensa, que deslumbra em certas salas -d’estudo e que é em geral defeituosamente conduzida, sendo notavel -que, precisamente porque o orgão visual por muito melindroso carece de -numerosos e delicados cuidados, faltam quasi ou absoluto nas escolas.</p> - -<p>Iriamos longe se descrevessemos minuciosamente com as suas relações -de causalidade todas as modificações pathologicas que a bem dizer -se fabricam na escola, por isso limitamo-nos a uma exposição breve, -abrangendo nos seus contornos geraes a nosologia escolar.</p> - -<p>Pondo de parte conforme nosso plano, as alterações physico-mechanicas -cujas principaes tracejamos n’outro estudo, podem reduzir-se todas as -perturbações mencionadas a erros de circulação e nutrição.</p> - -<p>Viciadas simultaneamente estas actividades organicas, a constituição do -sangue altera se consequentemente e amplia o movimento de dessimilação, -a depauperação do organismo determinada pela adaptação a condições -anormaes de existencia.</p> - -<p>D’ahi resulta para o systema dominante de toda a organisação -superior—para o systema nervoso—a incorrecção que nos individuos -affectos da escolaridade, toma uma fórma particular, caracterisada, em -geral por uma demasiada susceptibilidade dos orgãos, dores nevralgicas -visceraes, nauseas lypothimias, palpitações e, finalmente, por -modificações da personalidade, e da mentalidade que serão objecto de -outro estudo.»</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_166">[Pg 166]</span></p> - - -<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_69" href="#FNanchor_69" class="label">[69]</a> Para que a educação tenha toda a sua influencia, é -preciso que nenhum vicio de conformação, nenhum estado pathologico, -nenhuma condição hereditaria transmittida por uma longa série de -gerações tenham tornado certos centros (nervosos) absolutamente -inexcitaveis. Relatorio de M. Sciamanna nos actos do 1.ᵒ congresso -d’anthropologia criminal p. 201—Roma, 1887.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_70" href="#FNanchor_70" class="label">[70]</a> A este respeito diz Spencer (<i xml:lang="fr" lang="fr">Morale des Prisons</i>) -«É um signal de vistas limitadas obrigar o condemnado ao trabalho; -assim que elle se vir livre, voltará a ser o que era d’antes. A -impulsão deve ser interior, para que possa continuar a sentil-a fóra -da prisão.» E lord Stanley em um discurso parlamentar, exclama: <em>A -regeneração do homem nunca póde ser um processo mecanico</em>.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_71" href="#FNanchor_71" class="label">[71]</a> Video meliora proboque, deteriora sequor—<i>Ovidio</i>.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_72" href="#FNanchor_72" class="label">[72]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Les irresponsables devant la justice</i>, pag. 212, A. -Riant.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_73" href="#FNanchor_73" class="label">[73]</a> Dr. Saffray, <i xml:lang="fr" lang="fr">Histoire de l’homme</i>, pag. 134.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_74" href="#FNanchor_74" class="label">[74]</a> E. Ferri, citado por E. Tarde no seu artigo sobre o typo -criminal. <i>Rev. philos.</i>, junho, 1885.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_75" href="#FNanchor_75" class="label">[75]</a> <i>A arte a poesia na creança</i>, por Bernardo Perez.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_76" href="#FNanchor_76" class="label">[76]</a> Trecho já publicado d’uma lição, feita no Curso Superior -de Lettras, quando tivemos a honra de reger a cadeira de Litteraturas -classicas (1887).</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_77" href="#FNanchor_77" class="label">[77]</a> <i>Revista de Educação e Ensino</i>, n.ᵒ6 e 8, IV anno, -por J. B. Ferreira.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_78" href="#FNanchor_78" class="label">[78]</a> <i>Revista de Educação e Ensino</i>, 4.ᵒ anno, n.ᵒ 6.</p> - -</div> -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_167">[Pg 167]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="VII">VII</h2> -</div> - -<div class="section"> - -<p>Os ensinamentos e o crime. A idéa da responsabilidade criminal na -historia. O alcool perante a hygiene physica e moral. O suicidio. -Observações psychologicas em condemnados á morte. A estatistica -criminal portugueza. A educação como elemento psychogenico e -correccional.</p> -</div> - -<div class="blockquot"> - -<p>Patenteei com veneração o facto civilisador das escolas nas cadeias -e ainda mais do que o facto, saudei sobretudo o grande principio que -representa o germen da moralisação dos condemnados.</p> - -<p class="right"> -D. ANTONIO DA COSTA.<br /> -</p> -</div> - - -<p>Das medidas prophylaticas contra o crime, com o fito na innocuidade -dos delinquentes, aquella de que ha mais a esperar, é sem duvida da -educação. Se as inclinações para o crime são devidas á idiosyncrasia -ou a lesões somaticas, podem em parte combater-se pela educação -physica. Diz o proverbio que a boa mão de rocim faz cavallo, e a ruim -de cavallo faz rocim. Não póde negar-se que a educação é o primeiro -factor na acquisição dos habitos e que são estas influencias d’origem, -que formam quasi por completo o nosso caracter. É nos exemplos dos -paes, nas acções beneficas do lar que bebemos o que ha de mais eficaz -em o governo da nossa alma. Ao contrario, o que damnifica mais o -coração é<span class="pagenum" id="Page_168">[Pg 168]</span> a influencia da familia, quando é deleteria e má. Diz -um adagio portuguez que passarinho que n’agua se cria sempre por -ella pia. É esta agua psychogenica que sobretudo faz do individuo -um innocuo, um cidadão prestabilissimo ou um perverso. A perversão -póde ser muitas vezes hereditaria, mas é mister desviar quanto -possivel essa hypothese, acceita-la discricionariamente e sempre, -equivale a submetter-nos passivos ao seu imperio bruto e fatal. E -hoje está-se abusando desmesuradamente, na propria sciencia, da -explicação hereditaria, muitos escriptores sempre que não podem -explicar na psychologia corrente certos factos abrigam-se sob a egide -da hypothese—hereditariedade. Mas tal expediente é uma deserção do -criterio scientifico. É obvio que ha inclinações herdadas, mas a sua -origem está na educação e nas influencias mesologicas. Enriquecer -pois pela educação o espirito é ampliar o campo dos motivos elevados -sobre que vem a actuar a vontade. Menandro disse «que dar educação -á mulher é augmentar o veneno d’uma vibora» paraphraseando podem -dizer os penologos determinantes «dar instrucção ao delinquente é -augmentar o veneno d’uma vibora.» E de feito, admittida a existencia -do perverso congenito e incorregivel, a instrucção era um instrumento -que vinha augmentar a peçonha da sua deprimente acção social. Porém o -que não póde acceitar-se é que todos os criminosos sejam congenitos e -incorrigiveis.</p> - -<p>A estatistica criminal com referencia á instrucção primaria tem -illudido muita gente, porque tem visto no numero dos criminosos -augmentar a lista dos que sabem ler e escrever, ora esse augmento é -natural consequencia de ter crescido o numero de escolas. Se todos os -cidadãos do paiz soubessem ler e escrever como era muito de desejar, -nenhum criminoso era analphabeto. O que prova tudo isto, é que a -instrucção primaria tem sido felizmente cada vez mais diffundida.</p> - -<p>A etiologia do crime tem de procurar-se nas condições biologicas e -nas circumstancias sociaes. A escola anthropologica é incompleta e -exagerada, incompleta porque descura os factores sociaes e desdenha o -estudo do direito criminal jurisprudente; exagerada, porque pretende -explicar, fóra dos justos limites scientificos, tudo pela biologia e -pela pathologia.</p> - -<p>O attentado contra a propriedade é ordinariamente um producto de -factores sociaes, o attentado contra a honra e<span class="pagenum" id="Page_169">[Pg 169]</span> contra a vida é muitas -vezes determinado por factores pathologicos, porém o crime é sobretudo -um phenomeno social. O que a escola anthropologica juridica chama -factores pathologicos do crime, como o alcoolismo, a degenerescencia -physica, não são mais do que effeitos das deprimentas condições sociaes -do delinquente. Se ministraram ao ser humano desde a vida intra-uterina -todas as condições hygienicas favoraveis á creança, todos os fecundos -elementos d’uma salutar educação physica, d’uma boa educação -intellectual e d’uma solida educação moral, ver-se-ha ao fim de poucas -gerações com a sensivel rehabilitação de homem animal e com a elevação -do homem moral, a deminuição relativa do crime.</p> - -<p>Não ha anthropologicamente o chamado <em>typo criminoso</em>, os -caracteres anatomicos encontrados são communs a muito homem probo -e honesto. A <em>tatuagem</em>, por exemplo, encontra-se tanto nos -marinheiros, soldados, pastores como nos criminosos, é um ornato -esthetico que nasce do ocio e no occidente europeu é tradicional esse -costume na raça celtica. Hoje a tatuagem nos criminosos tende até a -desapparecer, porque é para os tribunaes um signal de reconhecimento -de identidade e sabem já quanto os prejudica na pratica do seu triste -mister.</p> - -<p>É difficil corrigir o criminoso habitual e reincidente, desde que -inveterado na perversidade, mas era provavel com boa direcção do -sentimento moral desvia-lo d’essa senda, antes de a ter encetado. E -esta emenda era tão possivel no criminoso habitual, como no criminoso -d’accidente ou de occasião, porque ambos contrahiram livremente -esse habito, ou aproveitaram a occasião. O enfermo epileptico ou -dipsomaniaco, apezar d’uma rigorosa educação physica ou acção -therapeutica é difficil de rehabilitar. Os actos violentos d’elle não -são verdadeiros crimes, porque rouba ou mata, seja a quem fôr quando o -seu accesso o ataca, em quanto o criminoso rouba ou mata, quando tem -occasião opportuna. O primeiro é um doente que urge sequestrar até á -cura, o segundo é um delinquente que é mister punir.</p> - -<p>A má educação exerce sobre o delinquente uma influencia mais corruptora -do que o proprio meio social. Mas o criminoso não é inteiramente -victima da fatalidade da educação nem da hereditariedade, elle tem -o poder de reagir contra os impulsos internos da hereditariedade -ou externos da educação, e qualquer mestre escola nos dá centenas -d’exemplos que provam que o homem é por natureza livre.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_170">[Pg 170]</span></p> - -<p>Nunca a educação deixará de influir sobre o caracter, porque o seu -fim é a acquisição dos habitos e segundo Rosmini Serbati, «habito -considerado em relação á essencia da alma é o que accrescenta alguma -cousa de bom ou de mau ao seu estado natural e por conseguinte põe a -alma n’um estado melhor ou peior.»<a id="FNanchor_79" href="#Footnote_79" class="fnanchor">[79]</a></p> - -<p>Admittida a <em>cerebração inconsciente</em> ou melhor o automatismo -psychologico, gerado pelo habito originario ou adquirido o homem -póde commetter um crime, porque o principio da justiça que podia -salva-lo póde ter permanecido como sepultado na noite silenciosa da -vida directa. As theorias biologicas e hypnoticas explicam a seu modo -este phenomeno, mas o principio scientifico que o governa ainda é -desconhecido.</p> - -<p>O direito criminal, como funcção social importantissima, que é, não -póde ser modificado em nome de hypotheses tam vagas.</p> - -<p>O sentimento da responsabilidade é tão fundo na consciencia humana -que a ignorancia e a ingenuidade d’outras épocas tem levado o homem a -estender de modo extravagante o sentimento da justiça e do castigo a -actos de animaes.</p> - -<p>Nos seculos XIV e XV ainda o espirito humano teve uma curiosissima -jurisprudencia criminal. Foi a que se referiu aos processos instaurados -aos animaes. Se o animal podia ser preso e levado ao tribunal, o -processo corria, em geral, no foro civil. Se os animaes não podiam ser -capturados, então o tribunal ecclesiastico tomava conta da questão. No -eleitorado de Moguncia houve um d’estes processos instaurado contra -uma alluvião de moscas, que infestaram aquella localidade, o qual se -tornou muito notavel por um despacho do juiz, que é do theor seguinte: -...Vista a pequenez do seu corpo, e attendendo principalmente á sua -tenra idade, entendemos por bem nomear ás rés curador e defensor para -os fins convenientes. Este magistrado <i lang="la" xml:lang="la">ex-officio</i> defendeu -com calor as suas clientes, não negou os estragos, demonstrou a -criminalidade devida a causa de força maior, e pediu em conclusão um -local para onde as moscas podessem ir viver tranquilamente sem causar -prejuizo a ninguem. Instauraram-se processos similhantes a pardaes, por -habitarem os telhados d’uma egreja e perturbarem os fieis nas<span class="pagenum" id="Page_171">[Pg 171]</span> suas -orações, ás sanguesugas por corromperem as aguas do lago de Genebra, -ás lagartas, aos gafanhotos e ás lesmas, por fazerem mal ás plantas. -Na Suissa até os gallos eram sentenciados no tribunal e queimados em -publico. Havia então a crença popular de que os gallos punham ovos, e -que d’estes ovos malditos saiam serpentes e basiliscos. Os cavallos, -burros, touros e porcos, accusados de homicidio voluntario, eram -sentenciados á morte ou a soffrer diversas mutilações. Muitas vezes -vestiam-lhes um facto de homem, para executarem com todo o rigor a -pena de Talião. Os bodes, cabras e gatos que eram accusados de magia, -eram condemnados, em geral, a morrer na fogueira com os seus donos, -e, passaram negra vida n’essas épochas medievaes em que dominava a -ignorancia e a feitiçaria.</p> - -<p>Esta extravagante jurisprudencia nasceu d’uma inducção -illegitima—estender o que existe em nós a todo o ser vivo. O -espirito tende a confundir a ordem da genese das suas idéas ácerca -dos objectos extranhos com a ordem da genese dos proprios objectos. -Ha uma disposição innata em dar realidade objectiva ao que é -puramente subjectivo. Principalmente no espirito dos homens incultos, -a familiaridade é geralmente confundida com a simplicidade, e na -explicação de qualquer phenomeno seguem o caminho traçado pela evolução -das suas idéas, imaginando d’este modo haverem explicado o facto que -os preoccupava. Effectivamente, perante o seu espirito individual, -o problema está resolvido, mas não o está perante a verdade logica, -que carece do ser impessoal para se tornar scientifica. Illuminado o -espirito pelo criterio da evidencia, todos os homens se sobmettem á -verdade scientifica, porque entre a intelligencia de um sabio e a de um -ignorante não ha differença de natureza é apenas uma differença de grau.</p> - -<p>Ninguem hoje ignora que o alcoolismo é uma das causas dominantes da -pobreza moral e physiologica das classes populares.</p> - -<p>O doutor Delannoy, n’uma conferencia de physiologia e pathologia em -que tratou do alcool, demonstrou que as bebidas espirituosas não são -nem tonicas nem alimenticias. Constituem, apenas, excitantes que podem -ser uteis, em certos casos, e dos quaes se deve usar com moderação. -A excitação procurada produz-se á custa do estado geral; impede a -nutrição, diminuindo o acido carbonio exhalado e a quantidade<span class="pagenum" id="Page_172">[Pg 172]</span> de -urina emittida. Ora, está demonstrado que estes productos marcam a -intensidade da nutrição organica. A sua diminuição, sob a influencia -do alcool, enfraquece o organismo e traduz-se, entre os bebedores, por -um estado de enfraquecimento vital que não tem analogo sob o ponto -de vista physico, senão no que se encontra nos individuos affectados -de tysica pulmonar. Por isso os bebedos offerecem pouca resistencia -aos agentes morbificos e dão um largo contingente para as doenças -epidemicas. O conferente demonstrou que o uso immoderado das bebidas -espirituosas produz um grande numero de doenças, a maior parte das -quaes são mortaes. Entre outras apparecem: a ulcera e o cancro do -estomago, a gastrite chronica, a cirrhose, a hydropesia, a apoplexia, -a albuminuria o <i lang="la" xml:lang="la">delirium tremens</i>, a demencia paralytica, etc. O -doutor Delonnoy affirma que o abuso do alcool constitue uma das causas -mais frequentes da miseria, da loucura e do crime.</p> - -<p>A embriaguez não é uma condição excepcional da especie humana, é -commum a outros animaes, que igualmente são modificados no seu systema -nervoso pela ingestão de substancias toxicas. Na dynamica do crime e -na degenerescencia physica o alcoolismo é uma causa determinante e -predisponente. É mister não o confundir nunca com a dipsomania.</p> - -<p>Ha dez annos que vive na Penitenciaria de Buenos Ayres um recluso -de nome Ulisses Paganno. Este infeliz conta actualmente 36 annos de -edade e entrou no carcere pouco antes de completar 26 annos, isto é, -na plenitude da vida e possuindo medianas condições intellectuaes -e aptidões artisticas, nos periodos tranquillos intermediarios da -sua existencia procellosa. Levaram-o ao presidio cinco homicidios, -praticados successivamente em momentos de embriaguez. Pouco tempo -depois de se encontrar na Penitenciaria, tendo já dado signaes -inequivocos de bons sentimentos e de costumes irreprehensiveis, um dia, -e sem que pessoa alguma suspeitasse dos meios de que poude valer-se, -visto que não tinha dinheiro, poude adquirir uma garrafa de aguardente.</p> - -<p>Quando ao fim da tarde Paganno sahiu da cella para ir trabalhar com os -outros presos, a primeira coisa que fez foi approximar-se de um d’estes -e cravar-lhe no coração um punhal que levava escondido. Dava-se porém, -a circumstancia de que Paganno não conhecia a victima, comprovando-se<span class="pagenum" id="Page_173">[Pg 173]</span> -tambem que ao commetter o crime se achava completamente embriagado. -Pouco mezes mais tarde, tendo-se-lhe proporcionado tambem outro licor, -na visita da manhã, ao ir um empregado inspeccionar a sua cella, -Paganno, aproveitando um descuido, precipitou-se sobre elle, ferindo-o -gravemente nas costas. Esta segunda punhalada ia tambem dirigida ao -coração, mas por fortuna resvalou em uma das falsas costellas. Desde -então empregam-se todas as precauções e é rara a occasião em que se lhe -permitte sahir da cella. É necessario insistir em uma circumstancia: -Paganno, não embriagado é um dos reclusos mais trataveis, inoffensivos -e affectuosos que existem na Penitenciaria. Em 10 annos que conta -de prisão ainda não perdeu os seus habitos de trabalhador, e vae -para quatro annos entretem-se a domesticar e ensinar ratos. Ulisses -é italiano de nacionalidade, porém falla correctamente o hespanhol. -O seu estado de saude physica é relativamente satisfactorio e não -apresenta nenhum symptoma accentuado de doença mental. A physionomia, -porém, é repulsiva; tem grande mobilidade nos olhos, cerra os dentes -com frequencia e o seu rosto toma em certas occasiões uma côr sombria -e fatidica, que não inspira, na verdade, confiança alguma. Todos os -que o observam ficam na crença de que Paganno é um desventurado louco -que padece a monomania que podia chamar-se «homicida.» A sua pena -será indifinida, dada a horrivel historia dos seus crimes e a feroz -propensão para dar punhaladas no seu semelhante, emquanto experimenta -os effeitos do alcool. Paganno está comdemnado a não gosar jámais -liberdade, o que não lhe dá o minimo cuidado, pois, segundo affirmam -os periodicos da localidade, é dos poucos reclusos que tem logrado -identificar-se com a triste condição da soledade e retiro perpetuos.</p> - -<p>No dia 29 de julho a 1 de agosto realisou-se em Paris o congresso -internacional para o estudo das questões relativas ao alcoolismo. As -questões propostas pela commissão respectiva foram as seguintes: 1.ᵒ -Consumo de bebidas e de alcooes. Estatistica comparada das vendas -de bebidas nos differentes paizes. Relações entre o augmento do -consumo do alcool e o desenvolvimento da criminalidade e da alienação -mental. Meios de restringir o consumo de bebidas e de combater a sua -influencia funesta. Quaes os resultados que teem produzido os dois -systemas em vigor nos differentes paizes: o da liberdade concedida -sob certas condições á venda<span class="pagenum" id="Page_174">[Pg 174]</span> de bebidas e o da auctorização previa? -2.ᵒ Influencia nefasta do abuso das bebidas alcoolicas. Considerações -medico-legaes sobre os delictos e crimes commettidos debaixo da -influencia do alcoolismo. Meios legaes de prevenir as desgraças -causadas pelo alcoolismo, como assassinios, incendios, suicidios, etc. -3.ᵒ Bebidas sãs que se devem dar ás classes populares. Estabelecimento, -pelas sociedades de temperança, de bufetes ou cantinas na proximidade -das grandes officinas onde se reunam temporariamente muitos operarios. -Meios de reconhecer rapidamente as falsificações das bebidas alcoolicas.</p> - -<p>Os moralistas attribuem principalmente á falta de crenças o suicidio -e o crime, mas a essa causa é mister accrescentar a falta de recursos -economicos. Para os que teem fome e miseria são insufficientes as -consolações espirituaes, é mister que a civilisação ministre remedios -materiaes. Alem dos factores pathologico-mentaes, a miseria, a ausencia -do sentimento religioso, e as leituras d’uma litteratura dissolvente -são principalmente a causa do crime e do suicidio. Estes dois productos -da pathologia social são em maior numero nas cidades que nos campos, -nos homens do que nas mulheres. Nos habitantes dos campos e nas -mulheres, as crenças religiosas tem-se conservado mais vivas, emquanto -que o operario da cidade deixou extinguir essa luz d’esperança e de -consolo, sem que ponha outro sentimento equivalente na sua alma.</p> - -<p>Não se torna notavel pelos nomes esse longo obituario, mas torna-se -horroroso pelos numeros. Na estatistica dos suicidios na França, -durante o anno de 1887, encontra-se um numero horrivel—8:202. D’estes -emigrados voluntarios da vida 6:434 eram homens e 1:768 mulheres.</p> - -<p>Entre os 6:434 homens, suicidados em 1887, conta-se 2:381 celibatarios, -2:910 casados e 928 viuvos, e entre as 1:768 mulheres contam-se 513 -celibatarias, 796 casadas e 427 viuvas. A classe dos agricultores -contribuiu n’esse mesmo anno com 2:020 homens e 594 mulheres para o -suicidio. Sendo essa a classe mais numerosa da França, é esse numero -proporcionalmente muito menor do que 1:772 homens e 504 mulheres que -deu a classe operaria. Entre os proprietarios houve 591 suicidios de -homens e 140 de mulheres, e nas profissões liberaes registaram se 340 -suicidios, sendo 197 de homens e 143 de mulheres. De todas as classes,<span class="pagenum" id="Page_175">[Pg 175]</span> -a que proporcionalmente concorreu menos para o suicidio foi a dos -criados de servir, que são realmente os menos accessiveis ás causas que -deixamos apontadas.</p> - -<p>As utopias sociaes e a idealisação exaggerada de sentimentos -phantasticos dando ao espirito como alimento planos irrealizaveis e ao -coração aspirações chimericas são motivos frequentes do suicidio.</p> - -<p>Em primeiro logar é necessario expor as proporções em que se produzem -em cada nacionalidade, formando o typo de um milhão, e consignando o -numero de suicidios que lhe correspondem.</p> - -<table class="autotable bbox"> -<tr class="bb"> -<th class="br">Nações -</th><th> -Habitantes</th> -<th class="bl br">Casos de suicidio por milhão -</th></tr> -<tr> -<td class="tdl">Russia</td> -<td class="tdr bl">93:000:000</td> -<td class="tdr bl">31</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Austria-Hungria</td> -<td class="tdr bl">40:500:000</td> -<td class="tdr bl">174</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">França</td> -<td class="tdr bl">38:500:000</td> -<td class="tdr bl">150</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Grã-Bretanha</td> -<td class="tdr bl">37:200:000</td> -<td class="tdr bl">70</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Italia</td> -<td class="tdr bl">30:200:000</td> -<td class="tdr bl">37</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Hespanha</td> -<td class="tdr bl">16:900:000</td> -<td class="tdr bl">18</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Suissa</td> -<td class="tdr bl">7:900:000</td> -<td class="tdr bl">220</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Belgica</td> -<td class="tdr bl">5:850:000</td> -<td class="tdr bl">79</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Romania</td> -<td class="tdr bl">5:400:000</td> -<td class="tdr bl">52</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Turquia</td> -<td class="tdr bl">5:900:000</td> -<td class="tdr bl">40</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Suecia</td> -<td class="tdr bl">4:700:000</td> -<td class="tdr bl">99</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Hollanda</td> -<td class="tdr bl">4:400:000</td> -<td class="tdr bl">45</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Portugal</td> -<td class="tdr bl">4:410:000</td> -<td class="tdr bl">22</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Dinamarca</td> -<td class="tdr bl">2:190:000</td> -<td class="tdr bl">290</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Servia</td> -<td class="tdr bl">2:000:000</td> -<td class="tdr bl">66</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Noruega</td> -<td class="tdr bl">1:990:000</td> -<td class="tdr bl">194</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Prussia</td> -<td class="tdr bl">20:000:000</td> -<td class="tdr bl">181</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Baviera</td> -<td class="tdr bl">5:300:000</td> -<td class="tdr bl">127</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Saxonia</td> -<td class="tdr bl">3:000:000</td> -<td class="tdr bl">373</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Wurtemberg</td> -<td class="tdr bl">2:000:000</td> -<td class="tdr bl">104</td></tr> -<tr> -<td class="tdl">Hannover</td> -<td class="tdr bl">2:500.000</td> -<td class="tdr bl">300</td></tr> -</table> - -<p>A execução capital, além de ser uma pena irreparavel não influe -beneficamente na moralidade social.</p> - -<p>Um jornal francez publicou a seguinte relação das execuções em França -desde 1813: 22 de junho de 1813: na praça da Gréve, Perchette e sua -mulher, crime de assassinio; 27 de julho de 1816, na praça de Gréve, -Pleignier, Tolleron e Carbonneau; 23 de agosto de 1822: na praça -da<span class="pagenum" id="Page_176">[Pg 176]</span> Gréve, Raoulx, Pommier, Goublin e Bories, os quatro sargentos -da Rochella; 24 de janeiro de 1824, na praça da Gréve, Lecouffe e -sua mãe—crimes de assassinio e roubo; 20 de abril de 1824: na praça -de Gréve, Renaud, Delaporte e Ochard, os ultimos salteadores da -floresta de Bondy; 26 de maio de 1826: na praça de Gréve, Ratta e -Malagutti—crime de homicidio; 27 de julho de 1830: na praça de Greve, -Bardon, Guérin e Chandellet, crimes do assassinio e roubo; 9 de janeiro -de 1836: na barreira de R. Jacques, Fleschi, Pépin e Morin, n’esta -epocha as execuções passaram a ser na praça da Roquette; 24 de março -1843: na praça de Roquette, Norbert, e Deprá, crimes de assassinio de -um operario e roubo de 32 francos! Pormenor curioso: a execução foi -no dia da <i>Serração da velha</i> e a guilhotina esteve durante ella -cercada de mascaras; 13 de março de 1858: na praça da Roquette, Orsini -e Pietri, anarchistas; 13 de março de 1874: na praça da Roquette, -Moreau e Bondas, crime de assassinio; 8 de setembro de 1878: na praça -da Roquette, Barré e Lebiez, assassinio de uma leiteira; 10 de agosto -de 1885: na praça da Roquette, Gaspard, o assassino do padre Delannay, -e Marchandon, o amante de Joanna Blin, e assassino da sr.ᵃ Carnet; 3 -de outubro de 1886: na praça do Roquette, as execuções de Sallier e -Allorto.</p> - -<p>Esta estatistica é incompletisissima, não menciona muitos -guilhotinados, entre outros, os celebres Pranzini e Prado.</p> - -<p>Damos em seguida um extracto do relatorio que o abbade Faure, capellão -da Grande-Roquete, dirigiu ultimamente ao ministro francez, e onde -relata as observações que tem feito nos condemnados á morte. Ha seis -annos que o abbade Faure exerce o referido cargo, e tem assistido -a treze condemnados á morte, comprehendendo os dois assassinos de -Auteil, executados ainda ultimamente.—Desde que principiei a exercer -as minhas funcções como capellão do deposito de condemnados, tenho -estado em contacto com um grande numero de condemnados á morte, que -visitei durante um lapso do tempo variando entre quarenta e oitenta -e sete dias. Todos, menos um, que pertencia á religião protestante, -reclamaram os soccorros da religião com signaes mais ou menos -assignalados de convicção ou de indifferença, conforme a educação -que haviam recebido. Posso, pois, apresentar-vos os resultados das -minhas observações sobre esta cathegoria de criminosos. O condemnado -á morte, desde a sua<span class="pagenum" id="Page_177">[Pg 177]</span> entrada na cellula é preso de uma prostração -profunda e que não desapparece senão depois de um espaço de tempo -assaz prolongado. Todavia essa energia revela-se pouco a pouco, e a -esperança de uma commutação de pena dissipa o terrivel effeito de -sentença condemnatoria. O dever do capellão é alimentar esta esperança, -fazer acreditar na possibilidade da annulação de uma sentença de -morte, na clemencia do chefe do Estado. O infeliz aferra-se a todas -essas esperanças de salvação, atem-se antecipadamente a este beneficio -e compraz-se de boa vontade em esperar que a sua vida seja salva, -mesmo depois dos delictos mais monstruosos. É facil então fazer-lhe -entrever a sorte que o espera depois de uma commutação de pena. A -grilheta perpetua perde todos os seus horrores para aquelle cuja -cabeça está ameaçada, e é todo offegante que o miseravel, á medida que -o termo fatal se approxima, interroga aquelles que o visitam sobre a -esperança que elle póde ter. Os dias são penosos apesar das distracções -que os guardas se esforçam em proporcionar aos infelizes. Os jogos, -as leituras, o recreio, as visitas alteram um pouco a monotonia da -cellula e algumas vezes parece que o condemnado se illude ácerca da -sua terrivel situação. Mas a noite!... Quantas vezes eu tenho sido o -confidente das torturas moraes que soffre o desgraçado! Se o somno -chega por fim a fazer-lhe sentir a sua benefica influencia, quanto -esse repouso é agitado, febril, penoso. Alguns confessaram me que -prolongavam as suas vigilias muito pela noite adiante, esperando d’este -modo não accordarem senão bastante tarde no dia seguinte. Vã esperança! -O despertar chegava sempre á hora em que é dado o terrivel signal. -Em onze condemnados a cujos ultimos momentos assisti, tres sómente -estavam adormecidos quando se lhes foi dar a terrivel nova. Um unico -condemnado á morte dos que eu visitei recusou assignar o pedido de -indulto, e ainda sou levado a crer que elle conhecia esta formalidade -inutil para dictar o procedimento do chefe do Estado. Para apreciar -bem o effeito que produz a pena de morte sobre os grandes criminosos, -basta comparar a attitude do condemnado na vespera e no dia seguinte -ao da sua commutação. Houve tal, que eu vi durante os quarenta dias da -sua reclusão na cella da Roquete constantemente doente, arquejando com -febre, sem appetite, sem somno, transfigurar-se no dia em que lhe foi -annunciada a commutação. Fallava da sua viagem a Numéa<span class="pagenum" id="Page_178">[Pg 178]</span> como de uma -viagem de prazer, fazia projectos, referia-se ao seu bom procedimento -futuro em proveito de uma graça que elle se esforçaria por merecer. -Tive muitas vezes occasião de verificar o mesmo phenomeno n’aquelles -que escapavam á pena capital, e creio estar no direito de concluir, que -é a unica pena que inspira um verdadeiro terror. Quanto áquelles que -a soffrem, a sua vista sómente basta a um espirito não prevenido para -lhes fazer conhecer os sentimentos e o terror. Parece-me impossivel -achar um espectaculo mais commovedor que o do infeliz, até o mais -resignado, o mais christãmente preparado, durante o tempo tão curto -e ao mesmo tempo tão espantosamente longo de que se precisa para os -aprestos do supplicio. Eu não hesito em crêr que qualquer que seja -a pena que se possa substituir á pena de morte, será impotente para -inspirar um terror mais legitimo e mais horrivel.</p> - -<p>Ha poucos annos ainda, não havia entre nós nenhum trabalho systematico -e completo sobre este assumpto, tão importante como elemento de -investigação scientifica e de proveitosa vantagem social. Não começámos -cedo, mas ainda vamos a tempo de avaliar a vitalidade d’uma nação que -alguns julgam, senão moribunda, pelo menos profundamente enferma. -É a estatistica a base para poder formular leis dynamicas d’uma -sociedade, nas quaes apoiado o homem de Estado e o homem de sciencia -podem dar solução aos complexos problemas economicos e politicos. Na -multiplicidade dos phenomenos sociologicos reveladores das differentes -fórmas da actividade humana póde estudar-se a vida psychologica, -objectivamente, sob todos os seus aspectos. A demographia póde fornecer -ao psychologo dados preciosos para estudar a mentalidade humana nas -cathegorias sociaes da moral, do direito, da religião, da sciencia, da -arte e da industria. A estatistica é um ramo de actividade scientifica -relativamente moderno, remonta ao seculo XVIII, foi Achenwall, -professor de direito publico na universidade de Gottinga quem lhe -deu este nome. Desde esse momento este ramo de saber tem caminhado -pasmosamente e o registo dos seus phenomenos sociaes, expressos -em numeros, tem sido o material que fornece ao sociologo os dados -das suas inducções scientificas. A estatistica, como expressão dos -numeros fornecidos pelos cadastros dos systemas tributarios e pelos -recenseamentos é muito antiga, remonta á historia da antiguidade<span class="pagenum" id="Page_179">[Pg 179]</span> -oriental, encontra-se sobretudo entre os assyrios, os judeus, os -persas, mas com o caracter scientifico expresso pela demographia -moderna no intuito de penetrar na vida de um povo, é de data recente. -Os seus resultados são devidos especialmente aos fatigantes, pacientes -e aridos trabalhos de Quetelet na Belgica e do dr. Bertillon em França. -A estatistica de numeros é um elemento precioso e essencial para sobre -elle architectar as grandes generalisações sociologicas, mas sem tirar -das premissas nascidas d’aquelle estudo estas consequencias, aquelle -trabalho tem relativamente pouca utilidade. Para organisar devidamente -estes serviços, ha em Portugal apenas duas repartições regularmente -constituidas—uma no ministerio da justiça e negocios ecclesiasticos, -direcção geral do registo civil e estatistica, outra é a repartição -respectiva do ministerio de obras publicas.</p> - -<p>Outro funesto resultado do nosso deploravel atraso em publicações de -estatistica, são os deficientissimos documentos que a respeito da -estatistica de Portugal, se encontram nas estantes dos demographos -estrangeiros e nas repartições publicas correlativas, o que impede que -muitos productos da nossa actividade social, não tenham podido entrar -no estudo comparado da demographia das principaes nações da Europa e da -America como mais um elemento de comprovação sociologica.</p> - -<p>«Todos sabem como elemento de comprovação sociologica o enorme -interesse que hoje se liga á questão palpitante da penalidade. Abolição -da pena de morte, abolição de todas as penas corporaes e irreparaveis, -novos systemas de detenção, moderação nos castigos, etc., etc., são -problemas a um tempo sociologicos e humanitarios que trazem agitados -e commovidos a grande somma dos pensadores que se dedicam com amor ao -bem estar dos seus concidadãos e a alliviar os soffrimentos dos seus -semelhantes.»<a id="FNanchor_80" href="#Footnote_80" class="fnanchor">[80]</a></p> - -<p>A estatistica, diz o illustre Alphonse de Candolle, não é uma sciencia, -é um methodo. O que se faz mister é fazer bom uso d’ella e até ao -presente tem sido algumas vezes victima de má hermneutica.</p> - -<p>«Uma observação de natureza a dissipar muitas illusões—escreve -o distincto publicista sr. Oliveira Martins—é o movimento da -criminalidade comparado com o grau de<span class="pagenum" id="Page_180">[Pg 180]</span> instrucção e cultura das -sociedades: os homicidios diminuem com a civilisação, os roubos -augmentam. Na especie do assassinato a Italia tem o primeiro logar -(8,12 homicidio por 100 mil habitantes), a Hespanha o segundo, -depois a Hungria, depois a Austria, depois Portugal, e em seguida, -successivamente, a Belgica, a França, a Allemanha e por fim a -Inglaterra (0,69). Mas a Allemanha, que tem o penultimo logar no -assassino, occupa o primeiro no roubo: e a Inglaterra que é a ultima -na primeira série vem logo apoz na segunda. A illação por muitas vezes -tirada d’estas observações é que, se a instrucção amacia os costumes, -nem por isso corrige a perversidade; ou por outra, que por si só é -insufficiente para formar esse estado de equilibrio inacessivel ou -refratario ás tentações do crime. Os crimes dos barbaros, o talião -e a vendetta ou <i>revendeyta</i> dos nossos foraes, proveem de uma -energia de paixões conciliavel com a nobreza de instinctos que se -agitam na atmosphera crepuscular de cerebros infantis. As creanças são -crueis, mas não são perversas, e como creanças são os barbaros—meigos, -ingenuos, espontaneos, mas terriveis. A sua alma é como a onda fluida -e mobil que passa n’um instante da serenidade limpida de um espelho á -convulsão espumante de uma tempestade.»</p> - -<p>Os dados fornecidos pela estatistica não fornecem argumentos contra a -liberdade individual: «Os numeros exprimem simplesmente factos por meio -dos quaes se póde apreciar uma probabilidade para o futuro, e o livre -arbitrio de cada individuo é totalmente independente d’estas cifras. -A demonstração d’isto é facil. Basta raciocinar, sem commetter erro -sobre os casos particulares... A vontade do homem é uma causa de acção. -Os numeros ao contrario e as medias são effeitos. É destruida a ordem -logica se se suppozer que um effeito possa influir sobre uma causa. -Direi pois de bom grado com Quetelet que o livre arbitrio desempenha -nos phenomenos sociaes o papel d’uma causa, mas accrescentarei: os -seus effeitos são sensiveis, pode-se muitas vezes contar e servir-se -do seu numero para apreciar ou a volta de effeitos semelhantes ou a -intensidade variavel da causa.»<a id="FNanchor_81" href="#Footnote_81" class="fnanchor">[81]</a></p> - -<p>Só com a theoria da regeneração moral dos delinquentes se tem -generalisado e diversificado o regimen penitenciario.<span class="pagenum" id="Page_181">[Pg 181]</span> Para a escola -fatalista do criminoso nato, não póde haver regeneração, porque não -existe o sentimento da liberdade individual. Desde que não existe a -probabilidade da emenda moral do criminoso, o systema correccionalista -é uma burla ou uma chimera e como consequencia não mais educação moral -nem profissional do condemnado. Felizmente nenhum estado ensaiou -a execução d’estas theorias que são as consequencias da escola -anthropologica italiana.</p> - -<p>As escolas penaes que não teem por base do direito de punir o -sentimento da justiça, fazem responsaveis dos crimes, diversos -factores sociaes ou pathologicos exceptuando sempre o delinquente que -o commetteu. É verdadeiramente extraordinario. O delinquente, não o -louco, é a unica causa do crime, o meio social póde fornecer-lhe apenas -as circumstancias.</p> - -<p>Parece que o crime caminha com os progressos da instrucção primaria: -«mas este facto é uma consequencia necessaria da diffusão geral -da instrucção em França, se ella fosse diffundida como era de -desejar, todos os francezes saberiam, pelo menos, ler e escrever -e, por conseguinte todos os criminosos francezes seriam contados -como lettrados. Quer o numero total dos criminosos tenha diminuido -ou augmentado, a estatistica não accusaria todavia um augmento de -lettrados muito maior. Haveria 100 sobre100, emquanto que agora ha -somente 69, e havia 39 no fim da Restauração. A mudança nas relações -conduz a uma conclusão certa: que a instrucção tem feito progressos. -É as mais das vezes nas baixas camadas da sociedade que se recruta o -triste contingente da criminalidade. Se a instrucção primaria estivesse -suficientemente derramada, teria penetrado até n’estas cavernas, e -todos os criminosos saberiam, como o resto da nação, pelo menos ler -e escrever. Em consequencia d’isto, a estatistica judiciaria, é uma -maneira de lançar a sonda n’estas camadas inferiores e de ver quaes são -os progressos da instrucção primaria n’estas mesmas camadas onde só -difficilmente chega a sondagem.»<a id="FNanchor_82" href="#Footnote_82" class="fnanchor">[82]</a></p> - -<p>O criminoso é imprevidente, é leviano e é preguiçoso. A diffusão do -ensino e do amor ao trabalho, aconselhado na familia e ministrado -na escola faz nascer no espirito o desejo d’uma occupação honrosa. -Os ladrões francezes, como diz<span class="pagenum" id="Page_182">[Pg 182]</span> Lombroso, chamam-se no calão -<i xml:lang="fr" lang="fr">pègres</i> (preguiçosos). O vadio é hoje aos olhos da lei em todos -os paizes uma variedade do typo criminoso, detesta o trabalho e é nas -grandes cidades quem mais contribue para povoar as cadeias. Não teem -constancia, nem persistencia, nem energia senão para o mal. Os ladrões, -segundo Vidocque, não são aptos para nada do que reclama energia ou -assiduidade. Não podem e não sabem fazer outra cousa senão roubar.<a id="FNanchor_83" href="#Footnote_83" class="fnanchor">[83]</a></p> - -<p>Entre nós o soldado reservista que volta para os campos depois de -se ter habituado á ociosidade da caserna, é um grande elemento de -desmoralisação, em geral vem vicioso e ocioso, e fica o frequentador -assiduo da taberna da aldeia.</p> - -<p>Os elementos estatisticos de que vamos servirnos são extrahidos da -<i>Estatistica da Administração da Justiça Criminal nos Tribunaes -de Primeira Instancia do reino de Portugal e Ilhas Adjacentes</i>. -Egualmente aproveitamos as notaveis considerações, verdadeira novidade -scientifica entre nós, que sobre o assumpto faz o primoroso escriptor e -esclarecido demographo o sr. Silveira da Motta, dignissimo conselheiro -director geral do ministerio da justiça.</p> - -<p>Quanto ao grau de instrucção verificou-se que sabiam ler 4:099 réus -(30,71 por %); que não sabiam ler 9.156 (68,60 por %), e não se -obtiveram informações sufficientes ácerca de 90 (0,67 por %).</p> - -<p>A civilisação gradual e continua das sociedades pela educação popular é -uma das momentosas questões que convem examinar sob todos os aspectos. -Se ha, comtudo, algum por que deve com preferencia ser estudada, é -de certo o concernente á acção benefica nos seus progressos, ha de -diminuir a pouco e pouco a existencia de alguns crimes; cuido que -outros se acommodarão a qualquer estado de cultura; isto, porém são -apenas conjecturas, e não bastam ellas para que o desenvolvimento -do ensino possa indisputavelmente ser considerado dynamometro da -progressiva reducção da criminalidade. Tal é o motivo porque eu quizera -ao menos poder agora confrontar o grau de illustração dos réus com a -somma dos habitantes do reino e ilhas, que, bem ou mal, sabem ler. -Infelizmente não está ainda publicado, em todas as suas divisões e -subdivisões, o ultimo recenseamento da população, onde é de esperar -appareçam os esclarecimentos essenciaes sobre esse importantissimo -assumpto.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_183">[Pg 183]</span></p> - -<p>N’estas circumstancias restrinjo-me a apresentar no seguinte epitome -a proporção média que, conforme averiguei, existe n’outras nações com -referencia ao grau de instrucção dos réus.</p> - -<table class="autotable bbox"> -<tr class="bb"><th></th><th colspan="3">Numero dos réus</th></tr> -<tr class="bb"> -<td></td><td class="tdc bl">Que saibam ler</td><td class="tdc bl">Que não saibam ler</td><td class="tdc bl">De que se ignorou o grau de instrucção</td></tr> -<tr><td class="tdl">Allemanha</td><td class="tdc bl">95 por %</td><td class="tdc bl">5 por % </td><td class="tdc bl">—</td></tr> -<tr><td class="tdl">França</td><td class="tdc bl">68  »</td><td class="tdc bl">32  »</td><td class="tdc bl">—</td></tr> -<tr><td class="tdl">Inglaterra</td><td class="tdc bl">66  »</td><td class="tdc bl">33  »</td><td class="tdc bl">1 por %</td></tr> -<tr><td class="tdl">Belgica</td><td class="tdc bl">61  »</td><td class="tdc bl">37  »</td><td class="tdc bl">2  »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Italia</td><td class="tdc bl">31  »</td><td class="tdc bl">69  »</td><td class="tdc bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Hespanha</td><td class="tdc bl">27  »</td><td class="tdc bl">70  »</td><td class="tdc bl">3  »</td></tr> -</table> - -<p>Com relação ás profissões podem incluir-se nas seguintes categorias:</p> - -<table class="autotable bbox"> -<tr class="bb"><th>Profissão ou occupação</th><th>Numero dos réus</th><th>Proporção com o numero total dos réus</th></tr> -<tr><td class="tdl">Agricultor (<i>a</i>)</td><td class="tdr bl">5:485</td><td class="tdc bl">41,10 por %</td></tr> -<tr><td class="tdl">Industrial (<i>b</i>)</td><td class="tdr bl">4:569</td><td class="tdc bl">34,23 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Negociante (<i>c</i>)</td><td class="tdr bl">543</td><td class="tdc bl">4,06 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Proprietario</td><td class="tdr bl">1:323</td><td class="tdc bl">9,91 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Empregado civil ou militar</td><td class="tdr bl">234</td><td class="tdc bl">1,75 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Creado de servir</td><td class="tdr bl">514</td><td class="tdc bl">3,85 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Qualquer outra profissão ou occupação</td><td class="tdr bl">277</td><td class="tdc bl">2,07 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Nenhuma profissão</td><td class="tdr bl">220</td><td class="tdc bl">1,64 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Ignora-se</td><td class="tdr bl">180</td><td class="tdc bl">1,34 »</td></tr> -</table> -<p> -(<i>a</i>) Abrange esta classe os cultivadores não proprietarios, os hortelãos, jardineiros, pastores, lenhadores, mineiros, valladores, creados de lavoura, jornaleiros, etc.</p> -<p>(<i>b</i>) Comprehendem-se n’esta classe os directores e empregados de qualquer empreza, que não seja agricola ou restrictamente commercial e todos os operarios em artes fabris ou manufactureiras, quer trabalhem em officinas quer fóra d’ellas.</p> -<p> -(<i>c</i>) Incluem-se tambem n’esta classe os caixeiros ou empregados de commercio. -</p> - -<p>Do resumo antecedente poder-se-iam inferir deducções valiosas, se -tivessemos elementos bastantes para o comparar<span class="pagenum" id="Page_184">[Pg 184]</span> com a população -dividida em identica escala de profissões e occupações. Na falta de -taes elementos offerece pouco interesse o exame d’essa condição dos -réus, e só no futuro poderá de algum modo servir para que se conheça -a influencia das profissões, se não sobre o numero, ao menos sobre -a natureza dos crimes. É isto o que já acontece nos paizes que se -encontram na dianteira da civilisação. Ahi, por exemplo, longas series -de estatisticas parece demonstrarem que o numero proporcional dos -crimes contra as pessoas é notavelmente avultado nos individuos que -se entregam aos trabalhos e habitos da vida rural, ao passo que nos -negociantes, nos industriaes, nos creados de servir, predominam os -crimes contra a propriedade.</p> - -<p>No seguinte quadro que exara os dados estatisticos correspondentes -ao anno de 1879 procuramos comparar a criminalidade com o estado da -instrucção elementar no reino e ilhas adjacentes.</p> - -<table class="autotable bbox"> -<tr><th rowspan="2">Districtos</th><th colspan="2" class="tt bl br">Habitantes de facto</th><th rowspan="2" class="tt bl">Numero dos réus que sabem ler</th><th rowspan="2" class="tt br bl">Proporção por 100 habitantes</th><th rowspan="2" class="tt">Numero dos réus que não sabem ler</th><th rowspan="2" class="tt bl br">Proporção por 100 habitantes</th><th rowspan="2" class="tt">Numero dos réus de que se ignorou a instrucção</th><th rowspan="2" class="tt br bl">Proporção por 100 habitantes</th></tr> -<tr class="bt bb"><td class="tdc bl">Que saibam ler</td><td class="tdc bl">Que não sabem ler</td></tr> -<tr><td class="tdl">Angra </td><td class="tdr bl"> 13.217 </td><td class="tdr bl"> 58.412 </td><td class="tdr bl"> 18</td><td class="tdr bl">0,02</td><td class="tdr bl"> 19</td><td class="tdr bl">0,02</td><td class="tdr bl"> 1 </td><td class="tdr bl">0,001</td></tr> -<tr><td class="tdl">Aveiro </td><td class="tdr bl"> 38.864 </td><td class="tdr bl"> 218.185 </td><td class="tdr bl"> 210</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl"> 351</td><td class="tdr bl">0,13</td><td class="tdr bl"> 3 </td><td class="tdr bl">0,001</td></tr> -<tr><td class="tdl">Beja </td><td class="tdr bl"> 18.265 </td><td class="tdr bl"> 123.854 </td><td class="tdr bl"> 80</td><td class="tdr bl">0,05</td><td class="tdr bl"> 255</td><td class="tdr bl">0,17</td><td class="tdr bl"> 21 </td><td class="tdr bl">0,014</td></tr> -<tr><td class="tdl">Braga </td><td class="tdr bl"> 60.438 </td><td class="tdr bl"> 259.026 </td><td class="tdr bl"> 250</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 254</td><td class="tdr bl">0,14</td><td class="tdr bl"> 19 </td><td class="tdr bl">0,005</td></tr> -<tr><td class="tdl">Bragança </td><td class="tdr bl"> 24.930 </td><td class="tdr bl"> 143.721 </td><td class="tdr bl"> 183</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> 607</td><td class="tdr bl">0,35</td><td class="tdr bl"> 4 </td><td class="tdr bl">0,002</td></tr> -<tr><td class="tdl">Castello Branco</td><td class="tdr bl"> 19.167 </td><td class="tdr bl"> 154.816 </td><td class="tdr bl"> 82</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 268</td><td class="tdr bl">0,15</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Coimbra </td><td class="tdr bl"> 36.403 </td><td class="tdr bl"> 255.634 </td><td class="tdr bl"> 179</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 343</td><td class="tdr bl">0,11</td><td class="tdr bl"> 7 </td><td class="tdr bl">0,002</td></tr> -<tr><td class="tdl">Evora </td><td class="tdr bl"> 17.034 </td><td class="tdr bl"> 89.821 </td><td class="tdr bl"> 83</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 276</td><td class="tdr bl">0,25</td><td class="tdr bl"> 2 </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Faro </td><td class="tdr bl"> 28.544 </td><td class="tdr bl"> 170.598 </td><td class="tdr bl"> 77</td><td class="tdr bl">0,03</td><td class="tdr bl"> 175</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Funchal </td><td class="tdr bl"> 12.284 </td><td class="tdr bl"> 117.700 </td><td class="tdr bl"> 49</td><td class="tdr bl">0,03</td><td class="tdr bl"> 167</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Guarda </td><td class="tdr bl"> 31.541 </td><td class="tdr bl"> 196.953 </td><td class="tdr bl"> 206</td><td class="tdr bl">0,09</td><td class="tdr bl"> 546</td><td class="tdr bl">0,23</td><td class="tdr bl"> 4 </td><td class="tdr bl">0,001</td></tr> -<tr><td class="tdl">Horta </td><td class="tdr bl"> 11.066 </td><td class="tdr bl"> 50.834 </td><td class="tdr bl"> 11</td><td class="tdr bl">0,01</td><td class="tdr bl"> 39</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Leiria </td><td class="tdr bl"> 21.471 </td><td class="tdr bl"> 171.511 </td><td class="tdr bl"> 60</td><td class="tdr bl">0,03</td><td class="tdr bl"> 200</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> 18 </td><td class="tdr bl">0,009</td></tr> -<tr><td class="tdl">Lisboa </td><td class="tdr bl">146.093 </td><td class="tdr bl"> 351.966 </td><td class="tdr bl">1.174</td><td class="tdr bl">0,23</td><td class="tdr bl">2.224</td><td class="tdr bl">0,40</td><td class="tdr bl"> 95 </td><td class="tdr bl">0,019</td></tr> -<tr><td class="tdl">Ponta Delgada </td><td class="tdr bl"> 22.176 </td><td class="tdr bl"> 104.095 </td><td class="tdr bl"> 44</td><td class="tdr bl">0,03</td><td class="tdr bl"> 155</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> 1 </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Portalegre </td><td class="tdr bl"> 13.755 </td><td class="tdr bl"> 87.371 </td><td class="tdr bl"> 50</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 193</td><td class="tdr bl">0,19</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Porto </td><td class="tdr bl">110.414 </td><td class="tdr bl"> 351.467 </td><td class="tdr bl"> 290</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 586</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> 3 </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Santarem </td><td class="tdr bl"> 30.371 </td><td class="tdr bl"> 190.510 </td><td class="tdr bl"> 117</td><td class="tdr bl">0,05</td><td class="tdr bl"> 359</td><td class="tdr bl">0,16</td><td class="tdr bl"> 11 </td><td class="tdr bl">0,005</td></tr> -<tr><td class="tdl">Vianna </td><td class="tdr bl"> 40.418 </td><td class="tdr bl"> 160.972 </td><td class="tdr bl"> 156</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 219</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Villa Real </td><td class="tdr bl"> 48.508 </td><td class="tdr bl"> 176.120 </td><td class="tdr bl"> 271</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> 393</td><td class="tdr bl">0,17</td><td class="tdr bl"> 2 </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Vizeu </td><td class="tdr bl"> 53.363 </td><td class="tdr bl"> 318.208 </td><td class="tdr bl"> 245</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 641</td><td class="tdr bl">0,17</td><td class="tdr bl"> 2 </td><td class="tdr bl"> —</td></tr> - -<tr class="bt"><td class="tdl">Total </td><td class="tdr bl">798.925 </td><td class="tdr bl">3.751.774</td><td class="tdr bl">3.835</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl">8.469</td><td class="tdr bl">0,18</td><td class="tdr bl"> 193 </td><td class="tdr bl">0,005</td></tr> -</table> - - -<p><span class="pagenum" id="Page_185">[Pg 185]</span></p> - -<p>Para que se possa com algum proveito comparar o estado da instrucção -com o da criminalidade, deve abater-se da massa total da população -a parcella respectiva aos menores até 10 annos, os quaes, na maxima -parte, nem podem ter alcançado qualquer instrucção litteraria, nem -ter commettido crimes. Reduzida d’este modo em numeros redondos a -3:500:000 a somma dos habitantes do reino e ilhas, fica de O,10 a -percentagem dos réus que sabem ler, e de O,24 a dos réus que não -sabem ler. Não é porém ainda a esta luz que deve ser considerado o -assumpto. A proporção só póde estabelecer-se logicamente, cotejando -nas classes respectivas o numero dos réus que sabem ler com o dos -habitantes que sabem ler, o numero dos réus que não sabem com o dos -habitantes que não sabem ler. Posto assim o problema, a quota dos réus -que sabem ler é de O,48 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos réus -analphabetos é de O,31 por 100 habitantes analphabetos. Applicando -o mesmo methodo aos crimes julgados em 1878, a quota dos réus que -sabem ler é de O,51 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos réus -analphabetos é de O,33 por 100 habitantes analphabetos. Com relação -ao anno de 1880 ainda não ha informações completas, mas em vista dos -documentos já examinados deve fundadamente presumir-se uma proporção -quasi identica. Se não me illudo sobre a exacção do calculo, que -conclusões se podem inferir? Contribuirá o derramamento da instrucção -para o acrescimo da criminalidade? Será nocivo o simples e deficiente -ensino primario? Constituirão os factos colligidos n’estes poucos -annos uma situação anormal, em que não possam estribar-se quaesquer -illações ou conjecturas? São questões do futuro, cuja decisiva solução -está ainda longe. Á estatistica cumpre por emquanto agrupar e ordenar -methodicamente os factos: só longas series de trabalho d’esta ordem -descobrirão o valor d’esses factos e os corollarios que d’elles devam -deduzir-se.</p> - -<p>Ahi fica a estatistica criminal portugueza no anno de 1879 e vamos em -seguida beber na mesma fonte os dados estatisticos com respeito ao anno -de 1880.</p> - -<p>Quanto ao grau de instrucção verificou-se que sabiam ler 3:882 réus -(31,59 por c.), que não sabiam ler 8:239 (67,06 por c.), e não se -obtiveram informações sufficientes ácerca de 164 (1,32 por c.).</p> - -<p>Conforme o systema que experimentei no precedente volume<span class="pagenum" id="Page_186">[Pg 186]</span> busco no -quadro immediato comparar a criminalidade com o estado da instrucção -elementar no reino e ilhas adjacentes.</p> - -<table class="autotable bbox"> -<tr><th rowspan="2">Districtos</th><th colspan="2" class="bl br">Habitantes de facto</th><th rowspan="2" class="tt br">Numero dos réos que sabem ler</th><th rowspan="2" class="tt br">Proporção por 100 habitantes</th><th rowspan="2" class="tt br">Réos que não sabem ler</th><th rowspan="2" class="tt br">Proporção por 100 habitantes</th><th rowspan="2" class="tt">Réos de que se ignorou a instrucção</th></tr> -<tr class="bb bt"><td class="tdc bl">Que saibam ler</td><td class="tdc br bl">Que não sabem ler</td></tr> -<tr><td class="tdl">Angra </td><td class="tdr bl"> 13.217</td><td class="tdr bl"> 58.412</td><td class="tdr bl"> 9</td><td class="tdr bl">0,01</td><td class="tdr bl"> 73</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> 1</td></tr> -<tr><td class="tdl">Aveiro </td><td class="tdr bl"> 38.864</td><td class="tdr bl"> 218.185</td><td class="tdr bl"> 189</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 312</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> 15</td></tr> -<tr><td class="tdl">Beja </td><td class="tdr bl"> 18.265</td><td class="tdr bl"> 123.854</td><td class="tdr bl"> 100</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 289</td><td class="tdr bl">0,26</td><td class="tdr bl"> 6</td></tr> -<tr><td class="tdl">Braga </td><td class="tdr bl"> 60.438</td><td class="tdr bl"> 259.026</td><td class="tdr bl"> 282</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl"> 394</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> 6</td></tr> -<tr><td class="tdl">Bragança </td><td class="tdr bl"> 24.930</td><td class="tdr bl"> 143.721</td><td class="tdr bl"> 150</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl"> 557</td><td class="tdr bl">0,33</td><td class="tdr bl"> 2</td></tr> -<tr><td class="tdl">Castello Branco </td><td class="tdr bl"> 19.167</td><td class="tdr bl"> 154.816</td><td class="tdr bl"> 99</td><td class="tdr bl">0,05</td><td class="tdr bl"> 369</td><td class="tdr bl">0,21</td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Coimbra </td><td class="tdr bl"> 36.403</td><td class="tdr bl"> 255.634</td><td class="tdr bl"> 188</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 403</td><td class="tdr bl">0,13</td><td class="tdr bl"> 4</td></tr> -<tr><td class="tdl">Evora </td><td class="tdr bl"> 17.034</td><td class="tdr bl"> 89.821</td><td class="tdr bl"> 81</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 260</td><td class="tdr bl">0,24</td><td class="tdr bl"> 2</td></tr> -<tr><td class="tdl">Faro </td><td class="tdr bl"> 28.544</td><td class="tdr bl"> 170.598</td><td class="tdr bl"> 87</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 216</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Funchal </td><td class="tdr bl"> 12.284</td><td class="tdr bl"> 117.700</td><td class="tdr bl"> 46</td><td class="tdr bl">0,03</td><td class="tdr bl"> 172</td><td class="tdr bl">0,13</td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Guarda </td><td class="tdr bl"> 31.541</td><td class="tdr bl"> 196.953</td><td class="tdr bl"> 247</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> 546</td><td class="tdr bl">0,23</td><td class="tdr bl"> 3</td></tr> -<tr><td class="tdl">Horta </td><td class="tdr bl"> 11.066</td><td class="tdr bl"> 50.834</td><td class="tdr bl"> 17</td><td class="tdr bl">0,02</td><td class="tdr bl"> 18</td><td class="tdr bl">0,02</td><td class="tdr bl"> 6</td></tr> -<tr><td class="tdl">Leiria </td><td class="tdr bl"> 21.471</td><td class="tdr bl"> 171.511</td><td class="tdr bl"> 91</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 212</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> 2</td></tr> -<tr><td class="tdl">Lisboa </td><td class="tdr bl"> 146.093</td><td class="tdr bl"> 351.966</td><td class="tdr bl">1.119</td><td class="tdr bl">0,22</td><td class="tdr bl">1.799</td><td class="tdr bl">0,36</td><td class="tdr bl"> 94</td></tr> -<tr><td class="tdl">Ponta Delgada </td><td class="tdr bl"> 22.176</td><td class="tdr bl"> 104.095</td><td class="tdr bl"> 52</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 141</td><td class="tdr bl">0,11</td><td class="tdr bl"> 1</td></tr> -<tr><td class="tdl">Portalegre </td><td class="tdr bl"> 13.755</td><td class="tdr bl"> 87.371</td><td class="tdr bl"> 57</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 205</td><td class="tdr bl">0,20</td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Porto </td><td class="tdr bl"> 110.414</td><td class="tdr bl"> 351.467</td><td class="tdr bl"> 212</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 523</td><td class="tdr bl">0,11</td><td class="tdr bl"> 1</td></tr> -<tr><td class="tdl">Santarem </td><td class="tdr bl"> 30.371</td><td class="tdr bl"> 190.510</td><td class="tdr bl"> 149</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 378</td><td class="tdr bl">0,17</td><td class="tdr bl"> 3</td></tr> -<tr><td class="tdl">Vianna do Castello</td><td class="tdr bl"> 40.418</td><td class="tdr bl"> 160.972</td><td class="tdr bl"> 121</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 170</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl"> 15</td></tr> -<tr><td class="tdl">Villa Real </td><td class="tdr bl"> 48.508</td><td class="tdr bl"> 176.120</td><td class="tdr bl"> 336</td><td class="tdr bl">9,14</td><td class="tdr bl"> 539</td><td class="tdr bl">0,23</td><td class="tdr bl"> —</td></tr> -<tr><td class="tdl">Vizeu </td><td class="tdr bl"> 53.363</td><td class="tdr bl"> 318.208</td><td class="tdr bl"> 260</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 663</td><td class="tdr bl">0,17</td><td class="tdr bl"> 3</td></tr> -<tr class="bt"><td></td><td class="tdr bl"> 798.925</td><td class="tdr bl">3.751.774</td><td class="tdr bl">3.882</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl">8.239</td><td class="tdr bl">0,18</td><td class="tdr bl"> 164</td></tr> -</table> - -<p>Abatida da massa total da população a parcella respectiva aos menores -até 10 annos, os quaes na maxima parte nem podem ter alcançado qualquer -instrucção litteraria, nem haver commettido crimes, e reduzida d’este -modo a 3.500:000 a somma dos habitantes do reino e ilhas, a quota dos -réus que sabem ler é de O,48 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos -réus analphabetos é de O,30 por 100 habitantes analphabetos. Sobre este -importante assumpto dou como reproduzidas as considerações expostas no -volume antecedente. Os factos colligidos com relação ao anno, a que o -actual trabalho se refere, offerecem caracter identico ao dos annos -anteriores. Estes factos, porém, têm tal alcance, e podem ser tão -significativos que me pareceu util, a proposito dos crimes mais graves -commettidos durante o anno de 1880, e<span class="pagenum" id="Page_187">[Pg 187]</span> durante o triennio de 1878 a -1880, cotejar no epitome immediato o numero dos réus que sabem ler com -o dos habitantes que sabem ler, e o numero dos réus analphabetos com o -dos habitantes analphabetos.</p> - -<table class="autotable bbox"> -<tr><th rowspan="2" class="tt">Crimes</th><th rowspan="2" class="tt">Numero dos réos em 1880</th><th rowspan="2" class="tt">Média dos réos no triennio</th><th colspan="2" class="tt bl br">Proporção dos réos que sabem ler com os habitantes que sabem ler </th><th colspan="2" class="tt">Proporção dos réos que não sabem ler com os habitantes que não sabem ler</th></tr> -<tr class="bt bb"><td class="tdc bl br">Em 1880</td><td class="tdc">No triennio</td><td class="tdc bl br">Em 1880</td><td class="tdc">No triennio</td></tr> -<tr><td class="tdl">Infanticidio </td><td class="tdr bl"> 26 </td><td class="tdr bl"> 23 por 100.000</td><td class="tdr bl"> 0,24 por 100.000 </td><td class="tdr bl"> 0,16 por 100.000 </td><td class="tdr bl"> 0,83 por 100.000 </td><td class="tdr bl"> 0,79</td></tr> -<tr><td class="tdl">Homicidio voluntario </td><td class="tdr bl"> 155 </td><td class="tdr bl"> 175 </td><td class="tdr bl"> 5,89 » </td><td class="tdr bl"> 8,02 » </td><td class="tdr bl"> 3,84 » </td><td class="tdr bl"> 3,91 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Estupro </td><td class="tdr bl"> 51 </td><td class="tdr bl"> 44 </td><td class="tdr bl"> 2,88 » </td><td class="tdr bl"> 2,50 » </td><td class="tdr bl"> 1,01 » </td><td class="tdr bl"> 0,83 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Ferimentos </td><td class="tdr bl"> 2.416 </td><td class="tdr bl"> 2.401 </td><td class="tdr bl">88,84 » </td><td class="tdr bl">89,34 » </td><td class="tdr bl">61,19 » </td><td class="tdr bl">66,29 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Contrab.ᵒ </td><td class="tdr bl"> 62 </td><td class="tdr bl"> 54 </td><td class="tdr bl"> 1,37 » </td><td class="tdr bl"> 1,21 » </td><td class="tdr bl"> 1,84 » </td><td class="tdr bl"> 1,59 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Roubo </td><td class="tdr bl"> 311 </td><td class="tdr bl"> 308 </td><td class="tdr bl"> 9,89 » </td><td class="tdr bl">10,35 » </td><td class="tdr bl"> 8,15 » </td><td class="tdr bl"> 8,07 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Furto </td><td class="tdr bl"> 1.840 </td><td class="tdr bl"> 1.868 </td><td class="tdr bl">43,23 » </td><td class="tdr bl">44,23 » </td><td class="tdr bl">52,93 » </td><td class="tdr bl">54,23 »</td></tr> -<tr><td class="tdl">Fogo posto </td><td class="tdr bl"> 57 </td><td class="tdr bl"> 52 </td><td class="tdr bl"> 1,12 » </td><td class="tdr bl"> 1,25 » </td><td class="tdr bl"> 1,17 » </td><td class="tdr bl"> 1,32 »</td></tr> -</table> - -<p>Quanto ás profissões, os réus julgados em 1880 podem classificar-se da -seguinte fórma: agricultores 5:102, industriaes 4:386, negociantes 463, -proprietarios 1:244, empregados publicos 175, creados de servir 392, -com profissão scientifica ou litteraria 100, com outras occupações 22 -e sem profissão alguma 271. Ignorou-se a profissão ou occupação de 130 -réus. A proporção entre os reus julgados e os individuos pertencentes -a estas differentes classes não se distanceia importantemente da dos -annos anteriores; e não offerece por ora esclarecimentos que bastem -para avaliar o predominio do estado ou posição social na somma, na -qualidade ou na aggravação dos crimes.»<a id="FNanchor_84" href="#Footnote_84" class="fnanchor">[84]</a></p> - -<p>A Penitenciaria costuma publicar um relatorio interessante sobre o -estado moral e intellectual dos reclusos. Em 1888 diz:</p> - -<p>Pelo grau de instrucção litteraria vemos:</p> - -<p>1.ᵃ classe—Analphabetos 127; 2.ᵃ classe—Sabendo ler e escrever alguma -cousa, mas não sabendo contar 36; 3.ᵃ classe—Sabendo ler, escrever e -contar 15—Total 178.</p> - -<p>Na tabella seguinte damos a classificação dos crimes em relação aos -temperamentos, constituição physica e grau de instrucção litteraria dos -presos entrados na Penitenciaria Central de Lisboa no anno de 1886:<a id="FNanchor_85" href="#Footnote_85" class="fnanchor">[85]</a></p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_188">[Pg 188]</span></p> - -<table class="autotable bbox"> -<tr class="bb bt"><th rowspan="2">Crimes em geral</th><th rowspan="2" class="bl br">Crimes em especial</th><th colspan="6">Temperamento</th><th colspan="3" class="br bl">Constit. physica</th><th colspan="3">Grau d’instrucção litteraria</th></tr> -<tr class="bb"><td class="tdc br">Lymphatico</td><td class="tdc br">Nervoso</td><td class="tdc br">Sanguineo</td><td class="tdc br">Bilioso</td><td class="tdc br">Lymphatico bilioso</td><td class="tdc br">Mixto</td><td class="tdc br">Robusta</td><td class="tdc br">Regular</td><td class="tdc br">Fraca</td><td class="tdc br">1.ᵃ classe</td><td class="tdc br">2.ᵃ classe</td><td class="tdc br">3.ᵃ classe</td></tr> -<tr><td class="tdl tt">Crimes contra a religião</td><td class="tdl br bl">Desacato e profanação </td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> —</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr class="bt"><td class="tdl tt" rowspan="2">Crimes contra a ordem e tranquilidade publica</td><td class="tdl br bl">Moeda falsa</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Falsificação</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> —</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> —</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td></tr> -<tr class="bt"><td class="tdl tt" rowspan="11">Crimes contra as pessoas</td><td class="tdl br bl">Usurpação do estado civil </td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> —</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Homicidio voluntario </td><td class="tdc br">19</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 8</td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">34</td><td class="tdc br">16</td><td class="tdc br"> 37</td><td class="tdc br">16</td><td class="tdc br"> 49</td><td class="tdc br">14</td><td class="tdc br"> 6</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Infanticidio </td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Ferimentos resultando a morte </td><td class="tdc br"> 7</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 11</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br"> 12</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Homicidio frustrado </td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 2</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Offensas corporaes </td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Tentativa de offensas corporaes</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Ferimentos </td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Attentado ao pudor </td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br"> 5</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Estupro </td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 5</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Violação </td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> —</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr class="bt"><td class="tdl tt" rowspan="5">Crimes contra a propriedade</td><td class="tdl br bl">Furto </td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">12</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 11</td><td class="tdc br"> 7</td><td class="tdc br"> 15</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br"> 1</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Roubo </td><td class="tdc br">10</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 8</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 15</td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br"> 14</td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br"> 1</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Subtracção fraudulenta </td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 8</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 9</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 8</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Tentativa de roubo </td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr><td class="tdl br bl">Collocação de pedras na via ferrea </td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr> -<tr class="bt"><td></td><td></td><td class="tdc bl">55</td><td class="tdc"> 2</td><td class="tdc">16</td><td class="tdc"> 9</td><td class="tdc"> 3</td><td class="tdc br">93</td><td class="tdc">24</td><td class="tdc">108</td><td class="tdc br">46</td><td class="tdc">127</td><td class="tdc">36</td><td class="tdc">15</td></tr> -<tr class="bb"><td></td><td></td><td colspan="6" class="tdc bt bl">178</td><td colspan="3" class="tdc bt bl br">178</td><td colspan="3" class="tdc bt">178</td></tr> -</table> - -<p><span class="pagenum" id="Page_189">[Pg 189]</span></p> - -<p>A instrucção puramente intellectual é uma aptidão que póde tanto pôr-se -ao serviço da virtude como do crime. O lado efficaz da instrucção é a -cultura do sentimento moral e do sentimento religioso. O lado puramente -intellectual ministrado em pequeno quinhão dá a certos individuos o -cunho da vaidade e da insubordinação, fallando com desprezo das crenças -dos outros e explicando tudo ao sabor do seu caracter. Urge combater -este funesto estado, tanto na escola primaria como nas prisões.</p> - -<p>Recolhem ás prisões de Paris annualmente cerca de 110 a 120 -mil delinquentes. Ha a casa de detenção junta á Prefeitura de -policia; as casas de correcção cellulares de Mazas e da La Santé; -a casa de correcção de <i>Saint-Pelagie</i> para rapazes; a de -<i>Saint-Lazare</i> para prostitutas; a grande prisão chamada <i>La -Conciergerie</i>; o deposito de condemnados <i>Grande Roquette</i>, e a -casa de detenção correccional, e <i>Petite Roquette</i>.</p> - -<p>Além d’estas, ha o estabelecimento de educação correccional da rua -de Vaugirard destinada ás filhas de familia; o convento das damas -Saint-Michel na rua de Saint-Jacques, destinado ás donzellas da -religião catholica e ali detidas por correcção paternal; a instituição -das damas preladas, estabelecida em Paris na rua de Meuilly, onde estão -enclausuradas as jovens protestantes submettidas á correcção por ordem -paternal, e emfim o refugio das jovens israelitas, situado no boulevard -de la Saussaye, em Neuilly, para raparigas judias.</p> - -<p>Para rapazes sujeitos á correcção por familias decentes, ha apenas em -Paris a escola industrial da rua Clevel. É dirigida por protestantes e -notavel pela sua austeridade.</p> - -<p>Para repressão da mendicidade tambem ha a casa do Saint-Dinis, para -onde se levam presos os vadios, que se encontram a pedir esmola.</p> - -<p>Entre nós não ha educação correccional, se exceptuarmos a modestissima -casa de correcção de Lisboa. As cadeias do paiz são em geral um foco -de desmoralisação. Não existe n’ellas nem professor nem capellão. A -Penitenciaria de Lisboa é a primeira e unica escola correccional.</p> - -<p>Precisavamos derramar a mãos largas a instrucção que ensina a discernir -e a educação ministrada no lar, na escola, que corrige os defeitos e -fórma o caracter, contrariando desde<span class="pagenum" id="Page_190">[Pg 190]</span> o berço as inclinações ruins. -Algumas nações tornam justamente responsaveis os paes ou tutores pelo -mau exito da educação de seus filhos. Procuremos melhorar as condições -da sociedade pela creação de instituições de previdencia, para prevenir -accidentes de ordem material e moral.</p> - -<p>«Vê-se pois, affirma um interessante documento official, que os crimes -que mais predominam foram furtos e vadiagem.</p> - -<p>A criminalidade, como diz o citado visconde de Hanssonville, tem -duas causas unicas, a miseria e as paixões; porém na infancia tem -uma terceira causa especial, que é o abandono e a ausencia de toda a -educação moral.</p> - -<p>Os menores abandonados pelos pais, ou pessoas d’elles encarregados, -começam pela vadiagem, passam depois aos crimes contra a propriedade, -d’onde muitas vezes chegam ao de homicidio.</p> - -<p>É indispensavel, pois, affastal-os d’aquelles, que pela sua falta do -conhecimentos ou pela sua desmoralisação o não podem educar.</p> - -<p>Grande parte dos menores condemnados pelo crime de furto, já tinham -sido presos pelo crime de vadiagem, e alguns exemplos podia apresentar -de menores, que entraram na casa de correcção por mais de uma vez como -vadios, sendo-lhes imposta a pena de prisão só por poucos dias, e -quando passavam dos dezoito annos foram processados por crime de roubo -e condemnados a degredo.</p> - -<p>Pelo mappa das reincidencias vê-se que desde a installação d’este -estabelecimento sessenta menores entraram alli duas vezes, trinta e um -tres vezes, nove quatro vezes, sete cinco vezes, um seis vezes e um -sete vezes.»<a id="FNanchor_86" href="#Footnote_86" class="fnanchor">[86]</a></p> - -<p>Os crimes contra a propriedade são actualmente em maior numero do -que os crimes contra as pessoas, devido ao progresso na brandura dos -costumes, ao desenvolvimento da policia e á progressiva vigilancia -que fez apparecer nos tribunaes maior numero de certos crimes, como -attentados contra o pudor, que a maior parte das vezes passavam -desapercebidos.</p> - -<p>Sendo hoje maior a riqueza, aguça mais o sentimento da cubiça e da -inveja, gera o alcoolismo que prepara o nevrotico e o degenerado para o -crime contra as pessoas.</p> - -<p>O infanticido parece ter augmentado, mas o augmento<span class="pagenum" id="Page_191">[Pg 191]</span> no numero d’esse -crime é, como dissemos acima, devido á mór vigilancia da policia.</p> - -<p>Ha delinquentes effectivamente irregeneraveis, todavia por isso -devemos desprezar a educação? N’esse caso tambem devemos condemnar a -therapeutica e a hygiene. Uma das causas por que o crime, registado nas -estatisticas, parece augmentar com a instrucção é porque a população -urbana dá maior contingente que os campos e as cidades e estas tentam -mais o malfeitor pela facilidade da fuga e abundancia do roubo.<a id="FNanchor_87" href="#Footnote_87" class="fnanchor">[87]</a></p> - -<p>«Condemnado o prezo, escreve o nosso illustre jurisconsulto Silvestre -Pinheiro Ferreira, a uma isolação e a um silencio absolutos, e -forçando-o a concentrar-se em si mesmo; que esperavam podesse elle -achar no fundo de sua alma corrompida, que houvesse de o trazer a -sentimentos honestos? Que noções de resignação, de moderação, de -virtude, de amor aos seus similhantes julgavam elle podesse achar em -uma alma tal? Quanto ao passado, as suas recordações só lhe apresentam -devassidão e crimes. O presente só lhe offerece a perspectiva de -uma immensa e odiosa tortura. O futuro, não lhe promette senão a -continuação d’essa tortura até á expiação da pena; e, a partir d’esse -ponto, a fatal alternativa ou de perecer na miseria, ou de se lançar de -novo nos caminhos do crime.</p> - -<p>E que ha ahi que o possa arrancar a estas funebres meditações? Nada, -absolutamente nada, porque o systema da isolação e de mudismo não lhe -permitte distracção alguma. E poude com effeito, alguem persuadir-se -seriamente que um espirito sumido em taes ideias poderia abrir-se á -linguagem da religião e da moral? Seria não conhecer o coração humano. -O espirito para poder escutar com attenção as lições da moral ha de -achar n’ellas attractivos: para que essas lições se gravem no coração -e se tornem sentimentos, é necessario que a alma procure consolação -e prazer encantador em as escutar. Mas que prazer e encanto poderão -provar as almas embrutecidas no vicio ouvindo a linguagem da virtude?</p> - -<p>Não ha mais que um meio para o conseguir,—é illuminal-as. Comtudo, -essa é outra grande difficuldade a vencer. Espiritos preguiçosos, -a quem o mais leve pensar fatiga e aborrece, precisam de um movel -poderoso para se determinarem<span class="pagenum" id="Page_192">[Pg 192]</span> a receber a menor instrucção. Este movel -deve achar-se na esperança de alliviar a immensa tortura moral do -silencio.</p> - -<p>Saiba, pois, o preso que se elle prestar ouvidos doceis ao ensino e -instrucção, elle se achará admittido ás conferencias que, segundo -os regulamentos, deverão ter logar entre as pessoas a esse objecto -commissionadas, e aquelles dos presos que d’ellas se fizerem dignos. -Estas conferencias não devem versar unicamente sobre a moral, porque -(e ainda outra vez e muitas o repito) o que for semear n’um campo por -arrotear, só deve esperar ver perdido o seu trabalho, colhendo sómente -espinhos. É preciso pois habituar o espirito do preso a dirigir a sua -attenção a objectos, que, ao mesmo que instructivos, puxem e convidem, -a objectos que, tendo pouca ou nenhuma ligação com os seus habitos de -vicio, não o indisponham a dar-lhes attenção.</p> - -<p>Assim como nos conservatorios das artes se tem creado cursos -scientificos ao alcance das classes operarias, alguns d’estes deveriam -tambem estabelecer-se no centro das casas de correcção. Porque então o -espirito dos presos, desenvolvendo-se e dilatando-se por meio do estudo -d’estas diversas sciencias, viria a tornar-se diariamente sempre mais -disposto a subir da consideração dos phenomenos da natureza até ao Ente -Supremo, de onde ella tira a sua origem; e então os seus corações, -abrindo-se insensivelmente aos sentimentos religiosos, principiavam -acceitando sem custo e acabariam acolhendo com gosto essas mesmas -lições de moral, que ao principio os seus espiritos ainda enlodados no -vicio, por ventura repudiaram com tedio e desdem. Alem da inapreciavel -vantagem de adoçar illuminando estes caracteres selvaticos; além da -utilidade que elles não menos que a sociedade hão-de deduzir desta -longa carreira de estudos graduaes e proporcionados á capacidade de -cada um d’elles eu apontarei ainda outra vantagem, a meus olhos muito -mais importante; e é a de preservar os contrictos já soltos, de cahirem -n’aquellas perigosas sociedades que antes frequentavam.<a id="FNanchor_88" href="#Footnote_88" class="fnanchor">[88]</a>»</p> - -<p>O nosso illustre tratadista de litteratura pedagogica D. Antonio da -Costa escreve:</p> - -<p>«N’aquelle mesmo anno de 1879 achava-se na cadeia de Braga, condemnado -tambem a prisão perpetua, Albino de<span class="pagenum" id="Page_193">[Pg 193]</span> Sá Carneiro, que havia annos -creára e regia dentro dos ferros uma escola primaria para os presos -e para creanças. Estas aprenderam ali ás centenas. Presos, mais de -cem. Quatorze annos de carcere imprimiram no preso professor aquella -tristeza resignada, que é um dos caracteristicos mais dolorosos dos que -padecem. O dia estava triste como elle; e o carcere, se é possivel, -ainda mais triste do que nós ambos. Entretanto, como n’um dia tenebroso -e por entre o ribombar dos trovões despede o sol por sobre a natureza -um raio fugitivo, e por isso mais brilhante, não sei que raios formosos -reflectiam sobre a escuridão do carcere os livros dos alumnos, -dispersos por aquella carunchosa mesa, e os quadros da leitura nas -paredes silenciosas.</p> - -<p>Na larga conversação que tivemos, perguntei-lhe:</p> - -<p>—E quaes são os presos mais difficeis de regenerar?</p> - -<p>—Os ladrões; inquestionavelmente os ladrões.</p> - -<p>Ó ladroeira eterna! como o teu reinado, alem de universal, é sobretudo -incorrigivel! Bem te conhecia Pedro I, que te cortava pela raiz!</p> - -<p>—Quantos presos teem saído instruidos da sua escola?</p> - -<p>—Nem todos podem completar a instrucção, porque uns acabam de cumprir -a sentença; outros, quando já se vão adiantando, são removidos. Mas -posso calcular que um cento de analphabetos e desmoralisados tem levado -d’aqui mais ou menos instrucção.</p> - -<p>—E só instrucção?</p> - -<p>—Não só; mais e melhor, a educação. Sem esta escola, como é que um -João da Silva, preso e analphabeto durante quarenta annos, seria hoje -procurador em Barcellos? como é que o pedreiro Soutello saíria apto -para dirigir os seus negocios? como é que um José Pereira Barbosa, -vendo-se instruido ao reentrar na sociedade, poderia partir para o -Brazil: ganhar ali a sua vida, começar logo um commercio, fazel-o -progredir, mandar dinheiro á familia, e em seguida regressar á patria -com o fructo do seu trabalho? como é que um Manuel Rodrigues e um -José Gomes teriam apresentado, depois de soltos, um comportamento -exemplar, correspondendo-se com o seu professor por meio da escripta -que elle lhes ensinara, narrando-lhe as suas vidas, e protestando-lhe -a transformação completa que n’elles se operou?—porque, proseguiu Sá -Carneiro, fico-me interessando por todos esses que eduquei, como se -fossem meus filhos.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_194">[Pg 194]</span></p> - -<p>Que exemplos, e que formosura!»<a id="FNanchor_89" href="#Footnote_89" class="fnanchor">[89]</a></p> - -<p>«Acerca dos meios preventivos contra a criminalidade<a id="FNanchor_90" href="#Footnote_90" class="fnanchor">[90]</a> importante -e vasto assumpto tem os mais distinctos moralistas escripto grossos -volumes, em que se discutem as divergencias, opinião sobre a -criminalidade e sobre os meios praticos que a sociedade tem a empregar -não só para punir o crime, mas tambem para o evitar, materia a que -ligeiramente nos referiremos n’este limitadissimo esboço. Um dos -mais distinctos alienistas, Maudsley, estabelece com quasi todos os -physiologistas modernos que assim como para haver uma regularidade nas -funcções dos differentes orgãos, sob o ponto de vista da organisação -physica, é necessario e indispensavel o exercicio d’esses mesmos -orgãos, principio formulado por Lamarck, assim tambem para se -desenvolver a potencia psychica da coordenação mental, é necessario o -mesmo exercicio funccional do cerebro, o que mesmo se póde chamar <i>um -exercicio gymnastico</i> pela sua analogia com a gymnastica cujo fim -salutar consiste em operar o desenvolvimento organico do individuo, em -qualquer dos casos trata-se de aperfeiçoar orgãos que na inactividade, -como já vimos, se esterilisam, chegando mesmo a deformar-se, o que -tanto sob este ponto de vista mental, como sob o propriamente chamado -organico, tem consequencias gravissimas para a constituição social, -por isso que este atrophiamento é a origem da loucura e do crime, -e da degenerescencia physica a que tambem corresponde a decadencia -mental. A falta de exercicio muscular produz n’uma serie de gerações, -mais ou menos longa, segundo as circumstancias mesologicas, uma raça -esteril d’elementos anemicos, cheios de vicios e defeitos e por -isso incapazes para a vida, condemnados a occuparem o ultimo logar -na concorrencia vital pela sua inferioridade attestada não só pela -deficiencia de construcção, como tambem nas luctas do pensamento pela -deficiencia mental. Por outro lado a hygiene physica sem a gymnastica -mental, com quanto produza uma raça forte, está longe de produzir uma -raça perfeita, muito longe mesmo de produzir uma raça medianamente -aproveitavel e util no estado actual da sociedade; traz comsigo a -inaptidão para que o individuo aprecie em toda a sua complexidade e -com a clareza necessaria, as circumstancias que sobre si proprio<span class="pagenum" id="Page_195">[Pg 195]</span> -actuam por isso que lhe não é possivel subordinar os seus actos ao -imperio de uma vontade indisciplinada, pela falta d’ideias fixas sobre -as necessidades individuaes e collectivas. N’este caso a desordem -funccional é a causa, a origem immediata da loucura ou do crime, -cujos prodromos a maior parte das vezes começam a manifestarem-se no -desregramento que arrasta os futuros criminosos aos focos infectantes -e immundos. Ahi pelo contacto com individuos semelhantes e com -certas affinidades justificadas pela sua organisação a que não podem -ser superiores, acabam de se cretinisar tanto pelo abuso do alcool -como pelos prazeres vulgares, em que muitas vezes chegam tambem a -inutilisar-se outros bem conformados, ou pelo menos com predisposições -organicas para obter um logar na concorrencia da vida, e isto em -consequencia de um vicio de educação, apesar de comprehenderem, ou -terem pelo estudo, adquirido as noções coordenativas da actividade -social de cada individuo. Estes casos são todavia pouco vulgares, por -isso que, existindo uma profunda convicção scientifica tirada do estudo -methodico dos factores sociaes e da analyse dos factos succedidos, -essa convicção arrasta o individuo para o campo das investigações -philosophicas onde sobretudo se adquire uma disciplina superior, -que constitue um preservativo contra todos esses vicios sociaes. -Ha comtudo casos que não vem a proposito citar e por isso abrimos -esta excepção. Como já vimos o crime e a loucura são por assim dizer -<em>duas doenças</em> analogas tanto no caso da sua origem ser meramente -accidental, como n’aquelle em que a incapacidade e o desregramente -se manifesta em consequencia de um vicio organico, a maior parte das -vezes hereditariamente transmittido, como o attestam innumeros casos -observados nos hospitaes de alienados, onde tantas vezes vão parar -muitos membros d’uma mesma geração, ou ainda nas prisões pela repetição -do mesmo phenomeno, para que é necessario se dirijam as attenções dos -legisladores a fim de estatuirem leis concernentes ao humanitario fim -de evitar tanto quanto possivel as causas da degenerescencia physica -e mental. Ha pois dois casos distinctos que devemos considerar em -separado apesar da intima correlação que entre elles existe e são o da -perturbação e deficiencia funccional que é susceptivel de modificar-se -com um regimen hygienico, e o da constituição propria do cerebro em -qualquer d’estes os meios a empregar são approximadamente os mesmos e -consistem em procurar n’uma educação scientificamente<span class="pagenum" id="Page_196">[Pg 196]</span> dirigida, o modo -de lhes desenvolver a potencia determinativa. Ha porém uma differença -entre estes casos que consiste em que sendo muitas mais vezes -impossivel obter d’um individuo defeituoso uma certa tendencia para -ser util, cumpre á sociedade empregar medidas radicaes sobre o destino -d’estes que as conveniencias geraes da maioria obrigam a sacrificar -condemnando-os ao hospital no caso d’idiotia, loucura ou monomania, -caracterisadas por um forte desarranjo das faculdades intellectuaes, -ou com o desterro quando esse mesmo desarranjo se manifesta pela -perversidade de sentimentos, isto é, por uma tendencia irresistivel -para ser prejudicial á collectividade ainda que o criminoso esteja -certo das consequencias dos actos que pratica, como muitas vezes -succede. Estabelecidas estas differenças vejamos em resumo os meios -que a sciencia aconselha como preventivos e que em um futuro não muito -remoto, hão-de ter produzido resultados satisfatorios, se os poderes -publicos dos estados mais civilisados se resolverem a attender a esta -questão a que está affecto o bem-estar social, como necessariamente hão -de ser obrigados pelas exigencias progressivamente accentuadas pela -corrente scientifica que actualmente se dirige em todos os sentidos. E -isto apesar das graves difficuldades do problema para cuja solução, a -par d’uma grande liberdade cujas garantias estão estabelecidas por este -mesmo desenvolvimento scientifico, é necessario mais estabelecerem-se -certas e determinadas restricções tendentes a impedir a degenerescencia -organica e mental pelos cruzamentos indevidos. Prende-se tambem com -este problema a momentosa questão economica que exige ainda muito -trabalho dos philosophos para que se cheguem a estabelecer e a fazer -comprehender no publico um certo numero de doutrinas já debatidas e -aceitas, contra que ainda se levantam graves attrictos apesar de se -não poder conseguir por emquanto a sua resolução definitiva para o que -o maior trabalho ainda está por fazer e nem mesmo se sabe quando se -fará. Leibnitz escreveu «dae-nos educação e nós mudaremos em menos d’um -seculo a face da Europa.» Na primeira linha dos meios preventivos a que -nos temos referido depara-se logo com a <i>Educação</i>. É este o mais -pratico, o mais efficaz e o primeiro a empregar, por isso mesmo que é -principio assente de que só por meio d’uma instrucção publica ampla -e obrigatoria, racional e methodica, junta a uma educação dirigida -segundo as necessidades contemporaes se póde<span class="pagenum" id="Page_197">[Pg 197]</span> obter a revivescencia -da actividade popular, isto é, a sua preparação para a vida social, -livremente dos actuaes preconceitos e contingencias, que são como que -uma negativa da civilisação. Já Leibnitz dizia que quem reformasse a -educação, reformaria tambem o genero humano, e o sabio Spencer no seu -livro sobre este assumpto a que dedica o maximo interesse diz que o seu -fim é preparar o individuo para a vida completa. Em poucas palavras -traçou este philosopho o fim da educação moral, intellectual e physica -até hoje crivada de preconceitos estereis que lhe transtornam a acção, -que chegam mesmo a esterilisar as intelligencias nascentes opprimidas -pelo jugo terrivel de uma direcção anarchica. Não procura acompanhar -o desenvolvimento das faculdades intellectuaes, partindo do mais -concreto para o mais abstracto, seguindo o processo do desenvolvimento -do espirito humano, de cuja marcha o desenvolvimento individual é como -que uma momentanea repetição das differentes phases que atravessou -durante os longos periodos da vida. É como diz também Espinas<a id="FNanchor_91" href="#Footnote_91" class="fnanchor">[91]</a> -«mudando as idéas que se mudarão as instituições e os costumes, sendo -portanto a educação o instrumento da reconstituição social». Mas -para que este meio preventivo de todas as calamidades sociaes dê os -resultados satisfatorios que os philosophos lhe attribuem é necessario -mais que proclamar o ensino obrigatorio de que resulta simplesmente o -ensino da leitura e da escripta. É necessario mais do que instituir -escolas por toda a parte, regidas por professores pouco instruidos -que não podem ultrapassar os limites de um ensino esterilisador... -Devendo a educação ter um caracter scientifico, exclusivamente -scientifico e obedecer nas suas regras a leis determinadas pelo estudo -physio-psychologico do individuo, nós vemos que realmente a escola -primaria, em que reside o futuro das sociedades, não satisfaz ao fim -que é destinada. Limita-se exclusivamente a ensinar materialmente as -creanças a ler e escrever, atrophiando-lhes as faculdades intellectuaes -pelo abuso da fixação absurda de certos conhecimentos superiores que -desenvolvendo a memoria, condemnam o desenvolvimento do raciocinio. -E ante este estado da instrucção publica, parece ser este o seu fim -principal e não preparar cidadãos uteis e prestantes. Ainda as classes -dirigentes não chegaram a comprehender que a sciencia<span class="pagenum" id="Page_198">[Pg 198]</span> e a verdadeira -interpretação do dever social, é a mais solida disciplina em que póde -assentar a solidariedade por isso que, como diz Espinas, a sciencia é -o patrimonio commum da humanidade por toda a parte onde se encontram -sufficientes luzes. Ella bastará com a arte porque a imaginação -encontra mais abundantes recursos nas suas grandiosas concepções, que -nas invenções mesquinhas da fabula. Bastará não menos á industria -que em todos os tempos tem sido a sua obra, e mais, ella chegará a -organisar os differentes elementos de producção prevenindo as soluções -artificiaes e revolucionarias; chegará a estabelecer a harmonia entre -o capital e o trabalho. Desenvolver por todos os meios a educação -imprimindo-lhe um caracter verdadeiramente concorde com as aspirações -hodiernas dos grandes philosophos, que por meio da investigação e da -experiencia têem descoberto as leis do desenvolvimento humano tanto sob -o ponto de vista physiogenetico como anthropogenetico, eis a primeira -necessidade de todos os organismos sociaes empenhados em estabelecer -o bem-estar geral. É este um trabalho complexo enormemente grandioso -quando comparado sob todos os seus aspectos de prosperidade social, -e que se prende não só com a familia onde a creança recebe não só as -predisposições organicas e as primeiras sensações, as primeiras idéas -cujos vestigios quasi sempre se manifestam atravez de todos os periodos -da nossa existencia. Para terminarmos sobre este ponto essencialissimo -de prevenção do crime e da loucura, citaremos a opinião de Maudsley -que diz: «Abstraindo do dever positivo de todo o homem em adquirir -a mais completa intelligencia, e estabelecer relações com o meio -ambiente, a fim de tirar d’elle o melhor partido em proveito do seu -desenvolvimento pessoal, o estudo e a pratica das sciencias naturaes, -constitue a gymnastica a mais favoravel ás faculdades intellectuaes. -Nenhum outro estudo póde no mesmo grau ensinar a observar com maior -exactidão e a raciocinar com melhor criterio»<a id="FNanchor_92" href="#Footnote_92" class="fnanchor">[92]</a>. A melhor garantia -d’uma clara percepção, d’um sentimento justo, d’um entendimento -vigoroso e d’uma vontade intelligente, em qualquer circumstancia da -vida, é o habito contrahido nas circumstancias procedentes d’uma -percepção sã, d’um sentimento justo, d’um entendimento vigoroso e -d’uma vontade intelligente; por outros termos, é o<span class="pagenum" id="Page_199">[Pg 199]</span> desenvolvimento -completo da natureza intellectual e moral. Na maioria dos homens, -diz ainda Maudsley, a formação de caracter qualquer que seja, é o -resultado do acaso e nunca o effeito da premeditação; é o producto -accidental da disciplina e da educação que o individuo recebe. Este -facto presenceia-se a todos os momentos, entre esses individuos que -por circumstancias fortuitas são educados n’um meio corrupto, ou mesmo -ainda entre aquelles que prematuramente são pela sociedade arremessados -para essas escolas de desmoralisação chamadas as prisões, onde muitas -vezes se estiolam intelligencias aproveitaveis e espiritos susceptiveis -de receberem uma orientação util, se se não votasse o maior despreso -a esta serie de miserias sociaes que são uma affirmativa do estado de -rudimentos da nossa civilisação. Quanto mais estudamos a criminalidade -e vemos os meios preventivos, alguns de grande facilidade no seu -emprego, tanto mais nos convencemos como Quetelet de que exactamente -essa sociedade que tanto odio vota aos criminosos é a unica responsavel -por actos detestaveis e ainda mais pela perda d’um grande numero dos -individuos que os praticam. Onde ella vê criminosos perigosissimos -para quem o desterro se póde applicar, teria cidadãos uteis se tivesse -tratado de os formar. A educação, dissemos, é o grande meio preventivo -contra a criminalidade, mas ainda não é tudo e ha mesmo outras medidas -concernentes ao mesmo fim que é necessario empregarem-se.»</p> - -<p>A educação carece d’uma actividade constante na vida exterior, que -forneça elementos de elaboração á vida psychologica, directa ou -automatica. A sensibilidade, a intelligencia, a vontade modificam-se -inconscientemente pelo trabalho educativo. O pensamento na phase -psychogenica é essencialmente receptivo, alimenta-se das circumstancias -que o rodeiam. Existe, é verdade, congenitamente um peculio de força -psychica, proveniente da mesma natureza humana e da hereditariedade, -mas a energia da educação póde imprimir a essa força, quasi no estado -nascente, certa linha directriz. É por isso que o eminente psychologo -contemporaneo Bernard Perez, faz nos seus interessantes estudos a -alliança da psychologia infantil com a pedagogia. A educação criminal -nas prisões para adultos, é já apenas um remedio, quando no lar deve -ser um alimento vivificante.</p> - -<p>O distincto psychologo a que acima nos referimos, escreve:</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_200">[Pg 200]</span></p> - -<p>«O mêdo é um dos sentimentos que mais se oppõem ao bem estar physico -e moral da creança, e, conseguintemente, ao seu desenvolvimento -intellectual. É um instincto innato que pela perturbação geral do -organismo, pela rapidez da circulação e respiração reage, mesmo -inconscientemente, contra um mal presente ou proximo. Corresponde -a um consideravel affluxo de sangue para os centros nervosos, aos -quaes desperta e prepara logo para a lucta, para o ataque ou defeza. -É hereditario nas suas manifestações geraes; apparece geralmente -durante o somno, reagindo por tal modo contra o perigo imminente. -Muitos physiologistas e psychologos consideram-n’o como que hereditario -nas suas differentes especies, taes como o mêdo das impressões -bruscas, intensas e insolitas, o receio de certos animaes, o pavôr -da escuridão e da solidão, e até o proprio mêdo da morte. Haja porém -o que houver ácerca de taes affirmações, que por mais d’uma vez tive -occasião de discutir, certo é que alguns sustos especiaes, como mêdo -dos cães, dos ursos, dos elephantes, das serpentes, precizam, para -reproduzir-se no herdeiro das gerações antigas, que se dê a repetição -frequente das causas que outr’ora os produziram. Se esses objectos -não se apresentam na primeira edade, a predisposição hereditaria -poderá não manifestar-se, ou demorar-se a sua manifestação. Mais -tarde encontrariam no ser já desenvolvido, formado, aguerrido, mais -obstaculos para produzir os seus effeitos.</p> - -<p>Coragem e mêdo são sentimentos por egual innatos. A mãe parece -grandemente apta, em virtude dos effeitos duraveis da incubação -physica e moral, para transmittir o instincto da coragem ou do mêdo. -É porém, especialmente, pela incubação artificial da creança, que as -mães medrosas ou corajosas, produzem, como se tem dito, filhos que se -lhes assimilham. O mêdo é uma susceptibilidade enferma, que attinge -os filhos de paes pouco sãos de corpo e de espirito, mas em diversos -graus e todos na proporção da sua fraqueza. Nos primeiros tempos, -especialmente, a cura d’uma tal nevrose depende quasi totalmente do -regimen e da hygiene. Uma prova do facto é que os homens mais senhores -de si tornam-se algumas vezes sensiveis e timoratos como creanças, -quando a doença os debilita. E de mais, não esqueçamos que se o mêdo -nasce da fraqueza, esta origina aquelle. «Isso constitue, diz Mosso, -um circulo fatal nas funcções do organismo... A excitação do systema -nervoso predispõe o<span class="pagenum" id="Page_201">[Pg 201]</span> individuo para o mêdo, o qual actuando por seu -turno sobre a excitabilidade augmenta-a indefinidamente<a id="FNanchor_93" href="#Footnote_93" class="fnanchor">[93]</a>.»</p> - -<p>Locke e Rousseau escreveram bellissimas e sensatissimas paginas -sobre a necessidade de ir habituando progressivamente a creança a -não temer demasiado o perigo verdadeiro, e sobretudo a temer o menos -possivel o perigo afastado. Locke dá-nos até um conselho precioso a -respeito da creancinha. «É conveniente afastar da vista da creancinha -de peito tudo quanto possa assustal-a; porque até que ella possa -fallar e comprehender o que se lhe diz, seria inutil apresentar-lhe -razões para a convencer de que não tem nada a temer da parte d’essas -cousas assustadoras, que nós quereriamos tornar-lhe familiares -approximando-lh’as cada vez mais n’uma gradação insensivel. Mas, -se, não obstante, acontece que uma creancinha ainda de peito se -sensibilisa ao ver cousas que não podem commodamente furtar-se-lhe -á sua apreciação, e que manifesta repugnancia sempre que ellas lhe -apparecem á vista, é preciso n’esse caso empregar todos os meios -para lhe diminuir esse mêdo, desviando-lhe o pensamento d’esses -objectos, ou juntando-lhes imagens graciosas e agradaveis, até que -se lhe tornem tão familiares que a não incommodem<a id="FNanchor_94" href="#Footnote_94" class="fnanchor">[94]</a>.» Na edade dos -dois ou tres annos notam-se na creança umas certas aprehensões, a -proposito da côr ou da fórma dos objectos que não conhece ou cujas -analogias lhe não são muito familiares. Creio que é preciso, já o -disse n’outro logar, uma como especie de transformação imaginativa -das experiencias pessoaes n’essas vagas aprehensões do mal que podem -causar lhe esses objectos desconhecidos. Seja qual fôr a origem d’essas -antipathias ou d’esses sustos, que se não explicam, o que mais nos -deve aqui importar, é a faculdade de desapparecerem após repetidas -experiencias que tornaram familiares ás creanças os objectos que a -principio lhes eram terriveis. Locke e Rousseau deram a proposito da -cura d’esta especie de receio conselhos quasi similhantes, alguns -dos quaes podem mui bem seguir-se na educação da creança. «O vosso -filho, diz Locke, estremece e foge ao ver uma rã: mandae a uma outra -pessoa que pegue n’ella, e determinae-lhe que a colloque a distancia. -Acostumae-o primeiro<span class="pagenum" id="Page_202">[Pg 202]</span> a encaral-a, e quando elle puder fital-a sem -constrangimento, a consentil-a mais perto do si, a vel-a saltar sem se -impressionar; depois mandae que lhe toque ao de leve, em quanto alguem -a segura com as mãos; continuando assim gradualmente a tornar-lhe -familiar o animal, de modo que elle possa tocar-lhe como toca n’uma -borboleta ou n’um passaro. Assim se procurará disciplinar este -juvenil soldado...<a id="FNanchor_95" href="#Footnote_95" class="fnanchor">[95]</a>» Rousseau desenvolve mais minuciosamente este -preceito: «Quero que o habituemos a ver objectos novos, animaes feios, -repugnantes, extravagantes, mas a pouco e pouco, de longe, até que se -acostume, e que á força de ver os outros mecherem-lhe, elle mesmo lhes -mecha. Se, em creança, viu sem temor sapos, cobras, lagostas, verá -sem horror, quando fôr maior, qualquer outro animal. A impressão dos -objectos horrorosos desapparece para quem se habitua a vêl-os.» Assim -a creança habitua-se a não se assustar das mascaras e a rir d’ellas, -quando outras pessoas as põem na cara á sua vista. Acostuma-se tambem -aos tiros de espingarda, bombas, tiros de peça, e mais terriveis -detonações, se se começa por se queimar uma simples escorva e se passa -a mais fortes cargas. Depressa se acostumam tambem a ver pessoas -vestidas de preto que lhe fallam com meiguice, ás caras estranhas, ás -vozes estrondosas ou cavernosas, que a principio tanto a assustavam. -Estes processos, d’uma facil applicação, preparam as transições, o -que é essencial em materia d’educação. Convém porém evitar o excesso, -e, por exemplo, não familiarisar a creança com o perigo ficticio a -ponto de a entregar sem defesa ao verdadeiro perigo. Muitas vezes a -valentia da creança é simplesmente ignorancia ou falta d’imaginação. -Devemos saber e prever por ella. Que se mostrem todos esses horrores -zoologicos á creança, mas na sua presença mexa-se-lhes com todas as -cautellas. Deve saber que um sapo é immundo, uma serpente venenosa, uma -lagosta picante, e como deve usar-se para lhes pegar ou approximar-se -d’elles. Quando tem dois annos podem explicar-se-lhe estas cousas, mas -de sorriso nos labios, e nunca manifestando um receio muito serio. É -preciso disciplinar mas não supprimir este util instincto o do receio. -Desde os tres annos e mesmo ainda antes, uma creança bem educada póde -comprehender por ver os seus educadores, que se póde ser valente sem -temeridade,<span class="pagenum" id="Page_203">[Pg 203]</span> e prudente sem fraqueza. Os nossos leitores poderão ler -no <i>Emilio</i> as mais interessantes paginas que se teem escripto -a respeito dos meios de corrigir o mêdo das trevas, Darwin julga-o -hereditario, e Rousseau, julga-o natural em todos os homens; e em -certos animaes, dá-se, segundo Buffon, uma explicação scientifica do -caso. Este tão commum espanto não deve attribuir-se só ás historias das -amas; os phantasmas da escuridão não nos estão apenas na imaginação, -mas tambem d’algum modo nos olhos. Levados naturalmente a julgar dos -objectos segundo a grandeza da imagem que formam em nossos olhos, -nós povoamos a meia escuridão da noite de figuras gigantescas, ou -medonhas, em virtude d’aquella illusão que em certos casos nos levará -a tomar uma mosca que passa junto de nós por um passaro que estivesse -a grande distancia. Os objectos assim transformados espantam como tudo -o que se desconhece ou não vê bem. «É tambem muito provavel que a -ausencia d’impressões visuaes concorra para augmentar outras sensações, -especialmente a audição e o tacto, como é facil de experimentar -observando as proprias sensações em condições identicas<a id="FNanchor_96" href="#Footnote_96" class="fnanchor">[96]</a>» Ajunte-se -a esta causa natural do erro a influencia dos contos phantasticos, -e a imaginação trabalhará do mais deploravel modo. As impressões -penosas, os maus tratos, uma sensibilidade doentia, predispõem para -o susto. Este genero de fraqueza, tão funesto á creança, tem causas -immediatas, que são mais faceis de prevenir do que as remotas, seriam -de eliminar. O mêdo de que fallamos é sobretudo devido á educação. Se -os selvagens, segundo narrativas de certos viajantes, teem algumas -vezes medo das trevas, é porque a sua imaginação supersticiosa as povôa -de espiritos invisiveis. O animal não tem mêdo das trevas, por causa -das proprias trevas. Conheci creanças que por um effeito evidente de -educação não manifestavam tal fraqueza. O meu sobrinho Carlos, assim -como o seu irmão Fernando, nunca mostraram mêdo da escuridão. Todavia -Fernando chora quando o deixam só ás escuras, e Carlos pede muitas -vezes á ama para lhe alumiar na escada. Será mêdo? Não é. Fernando -chora porque se julga abandonado, porque já não vê<span class="pagenum" id="Page_204">[Pg 204]</span> a mãe, como chora -de dia, quando ella sóbe sem esperar por elle, e como fica a gritar -na escada quando ella parte. Carlos tambem fazia assim n’outro tempo. -Este faz-se alumiar, porque só assim vê para andar, e para dirigir-se -melhor. Fernando chora algumas vezes na cama quando o vão deitar e -deixam só. Carlos hoje já não chora, e adormece logo, não se importando -para nada com a escuridão. Um e outro sahem sós da casa de jantar para -atravessarem o corredor ou irem para a cosinha. Quando foram escriptas -estas linhas, o mais velho tinha sete annos, o outro quasi cinco.</p> - -<p>Nada vejo que haja a accrescentar aos excellentes preceitos de -Rousseau, com respeito ao mêdo da escuridão e do que elle póde ter -de hereditario, e de mais ou menos espalhado na nossa especie. Elle -aconselha muitos brinquedos de noite, e especialmente brinquedos -alegres, de modo que a creança se acostume a estar ás escuras, a -servir-se das mãos e dos pés tateando os objectos que não vê. Mas não -é «com surprezas» que devem «acostumar-se as creanças a não terem, de -noite, susto de cousa alguma. Este methodo é contraproducente, dá um -resultado inteiramente contrario ao que se deseja, e serve só para as -tornar mais medrosas. Não podem a razão nem o habito socegar-nos o -espirito com respeito á idéa d’um perigo presente de que se não conhece -o grau ou a especie, nem ainda com respeito ao receio de surprezas -tantas vezes experimentadas<a id="FNanchor_97" href="#Footnote_97" class="fnanchor">[97]</a>.» Em caso nenhum, convém brincar com o -medo presente d’uma creança. Creio até que, passado o susto, o habito -dos exercicios proprios a darem-lhe serenidade actuariam melhor no seu -amor proprio para o corrigir d’essa enfermidade do que a zombaria. -O inverno é propicio para isso; aproveitemol-o; disponhamos os seus -prazeres para as horas da noite. Ensinemos-lhe a reconhecer por si -mesma os objectos que a escuridão nos faz tomar por muito differentes -do que são. Approximemo-nos de todos que passarem ao nosso alcance, e -prolonguemos á vontade a conversação, permitindo á creança que fique -junto de nós ou que se afaste, nada perdendo das suas impressões. -Façamos que naturalmente se habitue aos mil pequenos rumores que se -ouvem particularmente de noite, e que saiba rindo e sem o esquecer, -que as cousas só para os ignorantes são mysteriosas; que os phantasmas -outra cousa não são<span class="pagenum" id="Page_205">[Pg 205]</span> mais do que a obra do medo que perturba a -imaginação, ou dos maus farcistas que por mais d’uma vez tem pagado -caro a sua phantasia<a id="FNanchor_98" href="#Footnote_98" class="fnanchor">[98]</a>. Quanto á creança de berço que está quasi -inteiramente á mercê das influencias hereditarias, deveria habituar-se -a dormir com e sem luz, a ouvir fallar, a sentir-se amimada, a ouvir -ralhar-se-lhe, ora de perto, ora de longe, a escutar na escuridão -todas as especies de rumores, a ver a luz e os objectos apparecerem e -desapparecerem repentinamente. São optimas precauções para tomar antes -da epocha em que as primeiras experiencias das coisas, e o perigo -quasi inevitavel dos contos absurdos, hão de começar a desenvolver o -instincto innato do susto. Até á idade de quatro ou cinco annos, a -creança tem apenas uma idéa muito vaga da morte: não póde portanto -causar-lhe mêdo ou horror. Ella assimilhar-se-ia por isso á maior parte -dos animaes superiores, porque não está provado, como o disse Caro, -que estes tenham uma concepção similhante á do homem adulto. Quando -muito teem o vago instincto d’um perigo supremo, que excede todos os -conhecidos<a id="FNanchor_99" href="#Footnote_99" class="fnanchor">[99]</a>.» O argumento tirado dos cães que gemem e se deixam -morrer de fome sobre o tumulo do dono não é absolutamente decisivo: -a tristeza de ver-se privado d’um dono affeiçoado póde produzir esta -prostração das forças physicas e moraes terminando pela impossibilidade -de viver. O suicidio das creanças provaria muito mais, e sabe-se que -não é elle rarissimo nas creanças muito infelizes, muito susceptiveis, -d’uma sensibilidade doentia. De resto, esta mania nunca affecta -creanças de menos de seis annos. Foi com certeza n’uma epocha posterior -que se deu o seguinte facto. «Eu conheço o caso d’uma creança que por -tal modo se tinha impressionado com o mêdo da morte que não dormia de -noite; não era isto effeito de descripções horrorosas da morte que -lhe tivessem incutido, mas o resultado das suas proprias reflexões -sobre o assumpto<a id="FNanchor_100" href="#Footnote_100" class="fnanchor">[100]</a>.» Devia haver alguma cousa de anormal n’aquella -tenra cabeça e nas condições exteriores do seu desenvolvimento -moral. Certo é que a creança tem uma qualquer idéa da morte. Como é -impossivel que ella não oiça fallar d’esse grande pavor dos adultos, -convém familiarisal-a com o caso e apresentar-lh’o<span class="pagenum" id="Page_206">[Pg 206]</span> só sob a fórma -d’um repouso eterno ou d’um somno tranquillo. Póde, por exemplo, -apresentarem-se-lhe animaes mortos, como fizeram ao filho de Taine. -«Ante-hontem o jardineiro matou uma pêga que dependurou por uma perna -do esgalho d’uma arvore, em ar de espantalho; disseram-lhe que a pêga -estava morta, ella quiz vêl-a.—Que é que faz a pêga?—Não faz nada, já -não meche, está morta.—Ah!—Pela primeira vez a idéa da immobilidade -final entra em seu espirito.» Poucas creanças, é certo, se assimilham -a esta menina, a quem uma resposta satisfaz, e que tem apenas um ah! -para replicar. Aquelle ah! aquella interjeição ali posta como fecho de -objecção não é d’uma creança, ou a menina do que falla Taine era dotada -d’uma imaginação muito pacifica. E de mais, assim é que se deve fallar -da morte a uma creança.</p> - -<p>Quando uma creança está de saude não ha inconveniente, a meu ver, em -lhe mostrar pessoas mortas ou ossadas humanas. A pallidez e a rigidez -cadaverica, e com mais forte razão os restos osseos não teem nada de -pavoroso. Uma creança de tres annos fallava da morte como d’um estado -em que já se não soffre do estomago nem da cabeça; de noite fallava dos -parentes mortos, como de qualquer outra coisa. É porque seu pae, sabio -livre de prejuizos, mostrava-lhe diversas vezes animaes ou pessoas -mortas, dizendo-lhe: «Vê lá, quando se está morto, não se meche, não -se falla, não se ouve e não se vê nada; é como uma arvore, uma pedra, -uma cadeira, uma meza; não se move perna ou braço, não se sente bem ou -mal, não se precisa comer nem beber.» Estas imagens e estas explicações -haviam dado á creança uma idéa assaz justa, assaz desassombrada da -morte. Perguntou um dia para que se mettiam os mortos n’uma grande -caixa e se levavam para muito longe: o pae não lhe respondeu nada -mais senão que se levavam para o cemiterio, e que iria com elle -visital-o. Levou-o lá effectivamente, no dia seguinte; approximou-se -d’uma cova aberta de fresco e disse-lhe:—«Vês aquelle buraco, é ali -que se depositam a caixa e o morto, para sempre; cobrem-se com terra -porque os mortos apodrecem como a fructa ou a carne, e cheirariam -muito mal.» Fel-o depois reparar n’alguns ossos desenterrados pela -enxada do coveiro; mecheu sem dizer nada n’uma tibia, n’uma vertebra, -n’um craneo; a creança fez logo o mesmo. Ás perguntas seguiram-se as -perguntas. O pae respondia-lhe<span class="pagenum" id="Page_207">[Pg 207]</span> simplesmente. «Quando se está morto e -corrupto, tornamo-nos bocados do ossos.—Succeder-me-ha o mesmo a mim -quando eu morrer?—Sim, e a mim tambem e a tua mãe. Mas, meu filho, não -havemos de morrer ámanhã, nem depois de ámanhã, nem por muito tempo -ainda.—Ha de chorar muito quando eu morrer?—Oh! não morrerás antes -de mim, assim o espero. Não se sabe quando se ha de morrer.—E porque -choraria, diga?—Porque te amo, e desejaria viver sempre comtigo. De -resto, quando se está morto, não se é desgraçado, pelo contrario, não -mais se soffre. Somos ossos mettidos na terra. Vamo-nos embora.» A -creança pegou na mão do pae, mas largou-a logo para seguir rindo, uma -borboleta que acabava de voar d’uns arbustos. O insecto levou mais -longe o seu vôo, e a creança voltou logo a dizer ao pae: «Havemos de -voltar aqui, sim, papá?» Se esta creança tivesse ouvido alguma tola -ama fallar com seriedade de phantasmas, de lobis-homens, a scena que -reproduzimos deixal-a ia tão tranquilla? É assim que se consegue, sem -empregar equivocos ou uma falsa sentimentalidade, mostrar á creança -a verdade que póde comprehender. «Um remedio directo para um temor -particular, disse a judiciosa madame Necker de Saussure, é substituir -pela presença do objecto temido a idéa que se formava d’elle. Não -figuramos aquillo que vemos, e a realidade por mais desagradavel e -ingrata que seja produz um effeito calmante nos sentidos. Este meio, -podendo praticar-se, é efficacissimo, mas devemos servir-nos d’elle -cautellosamente.»<a id="FNanchor_101" href="#Footnote_101" class="fnanchor">[101]</a></p> - -<p>O nosso codigo penal abrange nas circumstancias dirimentes da -responsabilidade criminal, a falta da imputabilidade e a justificação -do facto, e julga não susceptiveis de imputação os menores de 10 -annos e os loucos que não tiverem intervallos lucidos, ou os loucos -que, embora tenham intervallos lucidos, praticarem o facto no estado -de loucura. O nosso codigo penal previu claramente as hypotheses -acceitaveis da escola anthropologica quando affirma que os loucos que, -praticando o facto, forem isentos de responsabilidade criminal, serão -entregues á sua familia para os guardarem ou recolhidos em hospitaes de -alienados, se a mania fôr criminosa ou se o seu estado o exigir para -maior segurança. Entende egualmente que os menores, que, praticando -o facto forem<span class="pagenum" id="Page_208">[Pg 208]</span> isentos de responsabilidade criminal por não terem 10 -annos ou por terem obrado sem discernimento sendo maiores de 10 annos -e menos de 14, serão entregues a seus paes ou tutores, ou a qualquer -estabelecimento de correcção ou colonia penitenciaria se a houver no -continente. É obvio que n’esta legislação criminal está assignalada a -idéa de hospitaes de alienados para os perigosos á ordem publica e a -idéa de estabelecimento de casas de correcção. O fundamento do direito -de punir no codigo penal portuguez é a responsabilidade criminal que -consiste, segundo, a sua bella definição no dever em reparar o damno -causado na ordem moral da sociedade, cumprindo a pena estabelecida na -lei, e applicada pelo tribunal competente.</p> - -<p>A responsabilidade criminal é ainda aggravada ou attenuada quando -concorrem no crime, ou no agente d’elle, circumstancias attenuantes -ou aggravantes e dada a aggravação da pena. O alcoolismo é, perante -o nosso codigo penal muitas vezes um crime, outras vezes uma -circumstancia attenuante e nunca uma circumstancias dirimente. O artigo -40 diz o seguinte: a privação voluntaria e accidental do exercicio da -intelligencia e inclusivamente a embriaguez voluntaria e completa no -momento da perpetração do facto punivel, não dirime a responsabilidade -criminal, apezar de não ter sido adquirida no proposito do perpetrar, -mas constitue circumstancia attenuante de natureza especial, quando -signifique alguns dos seguintes casos: 1.ᵒ ser a privação ou a -embriaguez completa e imprevista, seja ou não posterior ao projecto -do crime; 2.ᵒ ser completa e procurada sem proposito criminoso e não -posterior ao projecto do crime. Em qualquer dos casos a isenção de -responsabilidade criminal não envolve a responsabilidade civil, quando -esta se dê. Todo o nosso direito criminal tem por base a intenção, -visto que são puniveis não só o crime consumado, mas tambem frustrado -e a tentativa, assim o artigo 6.ᵒ diz que ha crime frustrado quando o -agente pratica com intenção todos os actos de execução que deveriam -produzir-se, como resultado do crime consummado, e todavia não se -produzem por circumstancias independentes da sua vontade. Egualmente, -ainda que a tentativa não seja punivel os actos que entram na sua -constituição são puniveis, se forem classificados como crimes pela lei -ou como contravenções por lei ou regulamento. É evidente que todos -estes principios se applicam a todos os agentes<span class="pagenum" id="Page_209">[Pg 209]</span> do crime nas suas -differentes condições, quer sejam auctores, cumplices ou encobridores.</p> - -<p>É erro corrente da escola italiana suppor que o caracter do -delinquente, resulta apenas de uma fatal causalidade organica. Ainda -porém ultimamente um illustre psychologo francez, Fr. Paulhan, publicou -um vasto livro<a id="FNanchor_102" href="#Footnote_102" class="fnanchor">[102]</a> no qual fez, segundo o seu ponto de vista, uma -analyse profunda das fórmas da actividade mental e dos elementos -psychicos tendo por fim demonstrar que o espirito é a resultante d’uma -synthese de productos sociaes, formada sobre uma synthese de productos -organicos. Estudando os elementos psychicos, reconhece que ha uma -actividade propria, relativamente independente, analoga á dos homens, -das familias e dos partidos, que constituem uma sociedade, estando -porém tudo unificado por uma lei principal, que é a lei da finalidade.</p> - -<p>Paulhan, fazendo o estudo da personalidade psychologica, indaga como -as sensações e as percepções são systemas de elementos, como as -ideias são systemas de elementos tirados de numerosas percepções, as -tendencias são associações coordenadas de ideias, de percepções reaes -ou possiveis, de imagens motrizes, de elementos reaes, associando-se -progressivamente a systemas cada vez mais vastos. Cada traço de -caracter resulta da coordenação, segundo dada maneira, de um certo -numero de tendencias. A avareza, por exemplo, é uma systematisação n’um -sentido muito determinado d’estas tendencias, que fazem trabalhar para -ganhar dinheiro, fazendo sacrificios de toda a especie. A personalidade -póde ser modificada por uma d’estas tendencias, que fazem do agente um -heroe ou um criminoso, e a sua formação póde ter uma origem hereditaria -ou adquirida.</p> - -<p>A mór parte das qualidades do nosso caracter vem do habito. Ha quem -diga, por exemplo, que o medico alienista vê facilmente em todo o -delinquente um louco, impellido pelo habito de lidar com loucos. -Egualmente se affirma que os juizes habituados a lidar com criminosos, -estão sempre dispostos a ver em cada accusado um criminoso. De facto o -juiz adquire na pratica do seu officio um caracter insensivel e duro. -Desde os legistas dos fins da idade média até ao seculo XVIII, todos os -tribunaes da Europa adoptaram a tortura como processo de julgamento. O -juiz, levado por uma<span class="pagenum" id="Page_210">[Pg 210]</span> simples denuncia, sujeitava o infeliz accusado, -muitas vezes era um innocente, aos <em>tratos pela agua</em>, <em>pela -apoleação</em> ou pelos <em>borzeguins</em>. Jámais, como Alexandre Magno, -o juiz <em>guardava um ouvido para o accusado</em>. Debalde o reu no -supplicio podia exorar: <em>appello para Philippe em jejum</em>.</p> - -<p>É um aphorismo em psychologia, que a intensidade dos phenomenos -sensiveis, dolorosos ou agradaveis diminue com o habito, em quanto os -phenomenos da intelligencia se avigoram e fortalecem.</p> - -<p>Escreve o grande jurisconsulto Charles Comte: «... no estado actual dos -nossos conhecimentos, é impossível determinar as differenças essenciaes -que existem entre as diversas especies de homens, relativamente ás -suas faculdades intellectuaes e moraes; um systema que explique todas -as differenças que se observam entre as nações, por uma differença nas -faculdades intellectuaes, não é mais conforme á verdade que aquelle -que explica todos os phenomenos physicos, moraes e intellectuaes pela -temperatura da atmosphera, se existisse alguma differença em a natureza -das diversas especies, essas differenças podem ser comparadas por um -grande numero de circumstancias, de sorte que o povo, que por sua -natureza fosse menos susceptivel de desenvolvimento, poderia comtudo -estar mais desenvolvido que aquelle que fosse melhor organisado, mas -que estivesse collocado em circumstancias mais favoraveis.<a id="FNanchor_103" href="#Footnote_103" class="fnanchor">[103]</a>»</p> - -<p>Os crimes que resultam da transgressão de leis positivas das -sociedades, estão diminuindo constantemente com o progresso -intellectual, como por exemplo, muitos dos delictos de religião, os -quaes vão desapparecendo com o incremento do sentimento do tolerancia -e de respeito pela consciencia individual; igualmente os crimes de -contrabando, que, com os largos principios economicos da abolição -das barreiras e sumiço de outros estorvos que impedem a liberdade -de commercio, tendem a ser considerados n’um futuro mais ou menos -longinquo actos legitimos. Não succede o mesmo com os crimes que violam -os principios moraes, como os ataques contra a propriedade, contra as -pessoas e contra o pudor, os quaes constituem a grande fraqueza moral -ou estado pathologico da nossa natureza.</p> - -<p>O congresso de anthropologia criminal, realisado na epoca<span class="pagenum" id="Page_211">[Pg 211]</span> da exposição -em Paris, deixou, por parte dos francezes e dos allemães, habilmente -ferida a escola anthropologica juridica italiana. O egregio professor -Cesar Lombroso, que pontifica na universidade de Turim, encontrou na -<em>dieta</em> anthropologico-criminal de Paris, muitos protestantes que -lhe demonstraram a phantasia dos mais queridos dogmas da escola penal -positiva. Benedikt, Manouvrier, Tarde, etc., pozeram bem em evidencia, -a qual não póde negar-se, que devem existir disposições organicas para -o crime, como devem existir para o genio, mas o que de modo nenhum póde -scientificamente affirmar-se, como quer a escola de Lombroso, é que -essas disposições organicas sejam reveladas por caracteres anatomicos. -Em todo o decurso d’este nosso trabalho, elaborado antes do congresso -de Paris, combatemos com sincera convicção esta peregrina escola. -A doutrina que nós ardentemente temos defendido com referencia ao -crime:—educação moral, religiosa, intellectual, artistica, physica, -economica, profissional, acha-se até certo ponto comprehendida -na interessante communicação sobre <em>anthropologia juridica e -criminal</em>, ultimamente apresentada ao congresso pelo dr. Manouvrier, -sob o nome de anthropotechnia, isto é, o conjuncto das artes que teem -por fim dirigir o homem—medicina, hygiene, moral, educação, direito -e politica. Com este fim é que effectivamente o criminoso deve ser -estudado, e sob este aspecto é que elle deve ser praticamente combatido.</p> - -<p>Cada escola pedagogica ou correccionalista inventa um remedio para -combater o crime. Para uns é educação moral, para outros religiosa, -para muitos intellectual e profissional. Quasi todas as theorias são -exclusivistas. Nós hasteamos humildemente o nosso pendão, affirmando -que as diversas fórmas educativas não se hostilisam nem se refutam, -partindo de diversas origens, estabelecem a harmonia e chegam ao mesmo -fim—a elevação da especie humana.</p> - -<p>Pela educação moral adquirimos a noção clara do dever; pela educação -religiosa elevamo-nos á idéa sublime do perfeito, pela educação -artistica sentimos penetrar em nossa alma os encantos do bello, pela -educação intellectual tomamos posse dos dominios da verdade; pela -educação physica conquistamos o dom precioso da robustez e da saude; -pela educação economica aprendemos a ser felizes, dispendendo só o -capital sufficiente e sempre menos do que o que produzimos; pela -educação profissional preparamos as nossas faculdades<span class="pagenum" id="Page_212">[Pg 212]</span> para crear o que -é util no meio social em que vivemos.</p> - -<p>A cultura harmonica d’estes multiplices aspectos da vida humana, se -não conseguir fazer de cada individuo uma actividade equilibrada, -despertará uma vocação que redima o ser pelas suas fecundas -manifestações.</p> - -<p>Os homens de faculdades especulativas viveriam tranquillos pela -sciencia, e enlevados pela verdade; os homens de imaginação viveriam -contentes pela arte e pela litteratura; os homens de acção viveriam -satisfeitos pelas emprezas guerreiras, especulações industriaes, ou -intrigas politicas.</p> - -<p>A desordem na educação nacional desenfreou a ambição e a cubiça e poz a -descoberto todas as miserias humanas. Na vida externa lida-se pela sede -da riqueza, na vida intima trabalha-se pelo repouso egoista.</p> - -<p>São tristes os dias que atravessamos, pela indifferença e pelo -scepticismo, que se apossou da consciencia social. Que valor moral tem -hoje para muitos o sentimento da abnegação, a elevada crença christã ou -os principios de justiça, que foram o nó vital dos grandiosos dramas da -historia? Nenhum, isso é uma ingenuidade de que os espiritos enervados -e os modernos utilitarios se riem.</p> - -<p>Esta descrença, este desprezo pelos grandes principios que outr’ora -exaltavam as almas, tornou hoje a sociedade egoista, e a imprensa -propaga diariamente estas ideas, que calam em geral, porque a cubiça -e o interesse tomou logar soberano entre as consciencias faceis. A -dolorida reflexão e a anciosa indagação, sobre a vida contemporanea, -exprimem na alma dos que teem ainda fé n’alguma cousa superior, um -intenso desconsolo, que só póde encontrar lenitivo no mais candidamente -humano e divinamente grandioso dos sentimentos—a esperança.</p> - - -<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_79" href="#FNanchor_79" class="label">[79]</a> Psychologia T. II pag. 94, Rosmini.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_80" href="#FNanchor_80" class="label">[80]</a> Consiglieri Pedroso, <i>Revista de Educação e Ensino</i>, -anno II, p. 39.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_81" href="#FNanchor_81" class="label">[81]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Histoire des sciences et das savants</i>, pag. 18 e -20, A. de Candolle.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_82" href="#FNanchor_82" class="label">[82]</a> Relatorio do ministro sobre a estatistica comparada do -ensino primario em França, cit. <i xml:lang="fr" lang="fr">Dictionnaire Pedagogique</i>.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_83" href="#FNanchor_83" class="label">[83]</a> L’Homme criminel, pag. 424, Cesar Lombroso.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_84" href="#FNanchor_84" class="label">[84]</a> <i>Estatistica da administração da justiça criminal</i>, -1878, 1879 e 1880.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_85" href="#FNanchor_85" class="label">[85]</a> Jeronymo da Cunha Pimentel, <i>Relatorio da -Penitenciaria</i>, 1886.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_86" href="#FNanchor_86" class="label">[86]</a> Relatorio ácerca da casa da correcção de Lisboa—pag. 17, -1887.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_87" href="#FNanchor_87" class="label">[87]</a> Dictionnaire pedagogique.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_88" href="#FNanchor_88" class="label">[88]</a> Memoria sobre a administração da justiça criminal—por -Silvestre Pinheiro Ferreira—pag. 25, 26.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_89" href="#FNanchor_89" class="label">[89]</a> D. Antonio da Costa, <i>Auroras da Instrucção</i>, pag. -358.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_90" href="#FNanchor_90" class="label">[90]</a> <i>Era Nova</i> (revista), n.ᵒ 12, 1881, N. A. Correia.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_91" href="#FNanchor_91" class="label">[91]</a> <i lang="it" xml:lang="it">La philosophie experimentale en Italie.</i></p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_92" href="#FNanchor_92" class="label">[92]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime et la folie.</i></p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_93" href="#FNanchor_93" class="label">[93]</a> A. Mosso, <i xml:lang="fr" lang="fr">La Peur</i>, ouvr. traduit en français par -M. F. Hément, et publié chez Alcan, 1886.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_94" href="#FNanchor_94" class="label">[94]</a> Section XIV, p. 261.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_95" href="#FNanchor_95" class="label">[95]</a> <i>Loc.</i> cit., p. 264.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_96" href="#FNanchor_96" class="label">[96]</a> Sikorski, <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Évolution psychique de l’enfant</i>, Rev. -phil., mars 1885, 3.ᵒ article.</p> - -<p> -<span style="margin-left: 1em;">(<span class="smcap">B. Perez</span>—<i xml:lang="fr" lang="fr">L’éducation morale</i>).</span><br /> -</p> - - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_97" href="#FNanchor_97" class="label">[97]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Emile</i>, pag. 134.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_98" href="#FNanchor_98" class="label">[98]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Éducation populaire</i>, Alexis Robert, pag. 62.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_99" href="#FNanchor_99" class="label">[99]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue Bleue</i>, du 23 octobre 1886, 2ᵒ article sur -<i xml:lang="fr" lang="fr">la Peur</i>, de Mosso, pag. 521.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_100" href="#FNanchor_100" class="label">[100]</a> James Sully, <i>Mind</i>. avril 1887.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_101" href="#FNanchor_101" class="label">[101]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Éducation progressive</i>, t. I, p. 193.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_102" href="#FNanchor_102" class="label">[102]</a> Fr. Paulhan—<i xml:lang="fr" lang="fr">L’Activité mentale et les elements de -l’esprit</i>.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_103" href="#FNanchor_103" class="label">[103]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Traité de legislation</i>, pag. 448, t. III, Ch. -Comte.</p> - -</div> -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_213">[Pg 213]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="INDICE">INDICE</h2> -</div> - - -<p><span class="pagenum" id="Page_214">[Pg 214]</span></p> -<table class="autotable"> -<tr> -<td class="tdl"> - <a href="#I">I</a>—Uma these penologica do Congresso Juridico de Lisboa. O - direito criminal italiano na escola anthropologica. A taxonomia - em psychologia morbida e em anthropologia criminal. - A divisão pedagogica da sciencia penal. -</td> -<td class="tdr page tt"><a href="#Page_5">5</a> -</td></tr> -<tr> -<td class="tdl"> - <a href="#II">II</a>—A liberdade moral e o determinismo. A ethica. Os criminosos - segundo os trabalhos recentes. -</td> -<td class="tdr page tt"><a href="#Page_25">25</a> -</td></tr> -<tr> -<td class="tdl"> - <a href="#III">III</a>—A base do direito de punir. O papel da psychopathia na - responsabilidade legal. O fanatismo, a suggestão hypnotica - e a pena capital. A influencia legitima da consciencia moral - em direito penal. -</td> -<td class="tdr page tt"><a href="#Page_57">57</a> -</td></tr> -<tr> -<td class="tdl"> - <a href="#IV">IV</a>—A existencia congenita do sentimento religioso. A utilidade - da sua acção disciplinadora. Vantagens d’este elemento - na educação correccional. A opinião dos criminalistas italianos - e d’um notavel principe da Egreja. -</td> -<td class="tdr page tt"><a href="#Page_99">99</a> -</td></tr> -<tr> -<td class="tdl"> - <a href="#V">V</a>—Educação e criminalidade. Relação entre o elemento moral - e o elemento intellectual. O progresso. Buckle, Spencer e - F. Bouillier. Perigos da instrucção sem educação moral ou - religiosa. A cultura intellectual é um instrumento, que não - fórma directamente o caracter. Necessidade de fortificar o - espirito pela recta direcção do sentimento moral e dos principios - do dever. O criminalista G. Tarde e a educação litteraria - e esthetica. -</td> -<td class="tdr page tt"><a href="#Page_117">117</a> -</td></tr> -<tr> -<td class="tdl"> - <a href="#VI">VI</a>—Os effeitos da acção educativa. A hereditariedade, o meio; - Garofalo. O gosto pelo adorno é na mulher como sustenta B. - Perez uma manifestação esthetica e nunca uma approximação - do typo criminoso. A arte e a moral. Educação physica, - a escola e a doença. -</td> -<td class="tdr page tt"><a href="#Page_139">139</a> -</td></tr> -<tr> -<td class="tdl"> - <a href="#VII">VII</a>—Os ensinamentos e o crime. A idéa da responsabilidade - criminal na historia. O alcool perante a hygiene physica e - moral. O suicidio. Observações psychologicas em condemnados - á morte. A estatistica criminal portugueza. A educação - como elemento psychogenico e correccional. -</td> -<td class="tdr page tt"><a href="#Page_167">167</a> -</td></tr> -</table> -<p><span class="pagenum" id="Page_215">[Pg 215]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter transnote"> -<h2 class="nobreak" id="ERRATAS">ERRATAS</h2> - - -<p>Na <a href="#Page_58">pag. 58</a>, linha 11, onde se lê—em—deve lêr-se—um.</p> - -<p>»  »  <a href="#Page_69">69</a>, linha 34,  »  »  »—envenenados—deve lêr-se—envenenadores.</p> - -<p>Na <a href="#Page_103">pag. 103</a>, linha 2, onde se lê—indistinctivel—deve lêr-se—indestructivel.</p> - -<p>Mais alguns se encontram, faceis de corrigir e que julgamos desnecessario emendar.</p> -</div> - - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter transnote"> -<h2 class="nobreak" id="Notas">Notas</h2> - -<p>As erratas do livro original foram corrigidos.</p> - -<p>Os problemas com a pontuação e a ortografia foram corrigidos.</p> -</div> - -<div lang='en' xml:lang='en'> -<div style='display:block; margin-top:4em'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>ESTUDOS SOBRE CRIMINALIDADE E EDUCAÇÃO</span> ***</div> -<div style='text-align:left'> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Updated editions will replace the previous one—the old editions will -be renamed. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United -States without permission and without paying copyright -royalties. 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Redistribution is subject to the trademark -license, especially commercial redistribution. -</div> - -<div style='margin-top:1em; font-size:1.1em; text-align:center'>START: FULL LICENSE</div> -<div style='text-align:center;font-size:0.9em'>THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE</div> -<div style='text-align:center;font-size:0.9em'>PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase “Project -Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg™ License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all -the terms of this agreement, you must cease using and return or -destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your -possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a -Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound -by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person -or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. 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Information about the Mission of Project Gutenberg™ -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of -electronic works in formats readable by the widest variety of -computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It -exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations -from people in all walks of life. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Volunteers and financial support to provide volunteers with the -assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s -goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will -remain freely available for generations to come. In 2001, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure -and permanent future for Project Gutenberg™ and future -generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see -Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit -501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the -state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal -Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification -number is 64-6221541. 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