summaryrefslogtreecommitdiff
diff options
context:
space:
mode:
-rw-r--r--.gitattributes4
-rw-r--r--LICENSE.txt11
-rw-r--r--README.md2
-rw-r--r--old/68751-0.txt8526
-rw-r--r--old/68751-0.zipbin188544 -> 0 bytes
-rw-r--r--old/68751-h.zipbin879219 -> 0 bytes
-rw-r--r--old/68751-h/68751-h.htm9396
-rw-r--r--old/68751-h/images/cover.jpgbin694078 -> 0 bytes
8 files changed, 17 insertions, 17922 deletions
diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes
new file mode 100644
index 0000000..d7b82bc
--- /dev/null
+++ b/.gitattributes
@@ -0,0 +1,4 @@
+*.txt text eol=lf
+*.htm text eol=lf
+*.html text eol=lf
+*.md text eol=lf
diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt
new file mode 100644
index 0000000..6312041
--- /dev/null
+++ b/LICENSE.txt
@@ -0,0 +1,11 @@
+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
+metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be
+in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES.
+
+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
+
+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
diff --git a/README.md b/README.md
new file mode 100644
index 0000000..f1ab0f8
--- /dev/null
+++ b/README.md
@@ -0,0 +1,2 @@
+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
+eBook #68751 (https://www.gutenberg.org/ebooks/68751)
diff --git a/old/68751-0.txt b/old/68751-0.txt
deleted file mode 100644
index 7df69b5..0000000
--- a/old/68751-0.txt
+++ /dev/null
@@ -1,8526 +0,0 @@
-The Project Gutenberg eBook of Estudos sobre criminalidade e
-educação, by Manuel António Ferreira Deusdado
-
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
-most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
-of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at
-www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you
-will have to check the laws of the country where you are located before
-using this eBook.
-
-Title: Estudos sobre criminalidade e educação
- philosophia e anthropagogia
-
-Author: Manuel António Ferreira Deusdado
-
-Release Date: August 14, 2022 [eBook #68751]
-
-Language: Portuguese
-
-Produced by: Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team
- at https://www.pgdp.net (This file was produced from images
- generously made available by National Library of Portugal
- (Biblioteca Nacional de Portugal).)
-
-*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ESTUDOS SOBRE CRIMINALIDADE E
-EDUCAÇÃO ***
-
-
-
-
-
- ESTUDOS
- SOBRE
- CRIMINALIDADE E EDUCAÇÃO
-
- (PHILOSOPHIA E ANTHROPAGOGIA)
-
- POR
-
- FERREIRA-DEUSDADO
-
- Director da Revista de Educação e Ensino, antigo membro do Conselho
- Superior de Instrucção Publica
-
-
- Jus est ars boni et aequi.
-
- CELSO.
-
- Usa dizer-se que no mundo dos sentimentos os contrahidos
- na escola são os mais firmes e duradoiros, a proposição ainda
- ficará perfeitamente exacta, se incluir as idéas que ali se aprendem;
- nenhumas outras teem predominio tão grande nem falam
- ao espirito acompanhadas de tanta saudade.
-
- JAYME MONIZ.
-
- LISBOA
- IMPRENSA DE LUCAS EVANGELISTA TORRES
- Rua do Diario de Noticias, 93
- 1889
-
-
-
-
- AO MERITISSIMO JUIZ DE DIREITO
-
- O Ill.ᵐᵒ Ex.ᵐᵒ Sr.
-
- CONSELHEIRO DR. EDUARDO JOSÉ COELHO
-
- UMA DAS GLORIAS MAIS BRILHANTES E MAIS AUSTERAS
- DA MAGISTRATURA PORTUGUEZA
-
- DEDICA
-
- ESTE MODESTO TRABALHO
- COMO TESTEMUNHO DE SUBIDA CONSIDERAÇÃO, ANTIGA AMISADE
- E INDELEVEL RECONHECIMENTO
-
- _Manuel Antonio Ferreira-Deusdado_
-
-
-
-
-I
-
- Uma these penologica do Congresso Juridico de Lisboa. O direito
- criminal italiano na escola anthropologica. A taxonomia em psychologia
- morbida e em anthropologia criminal. A divisão pedagogica da sciencia
- penal
-
-
-Em sessão de 1 de maio de 1889 no congresso juridico discutiu-se a
-these n.ᵒ 19 que é do theor seguinte:
-
-«Em que sentido é urgente reformar os codigos penaes, na parte
-relativa ás condições da responsabilidade criminal do agente do facto
-incriminado e aos effeitos das circumstancias dirimentes, para que a
-doutrina da lei fique de accordo com as affirmações da psychologia
-contemporanea, da anthropologia criminal e da pathologia alienista, e
-satisfaça ás necessidades de possivel segurança contra o crime?»
-
-É este assumpto profundamente complexo e deveras importante, porque
-n’elle se encerra uma das questões mais debatidas e mais melindrosas
-da psychologia humana. A these da responsabilidade é d’altissimo
-valor ethico e social, porque importa o fundamento da moral e a base
-do direito de punir. Todos os codigos penaes das nações civilisadas
-assentam no principio da responsabilidade moral, incluindo o
-proprio codigo italiano, no qual já influiram assás os trabalhos de
-anthropologia criminal e de psychologia morbida. Os exageros d’esta
-escola juridica, chamada anthropologica, são subversivos da ordem
-social e attentatorios para a dignidade humana. Os seus principios
-geraes quanto a irresponsabilidade não são novos; appareceram
-na infancia da philosophia, envoltos de mistura com os systemas
-theologicamente fatalistas, mas por fortuna nunca tiveram senão
-um caracter theorico. O determinismo contemporaneo traz as mesmas
-consequencias moraes e sociaes do fatalismo, mas ostenta uma fórma
-de demonstração mais apparatosa e modernamente ornada com trajos
-scientificos. A geração nova, durante as discussões do congresso,
-mostrou-se determinista, porém as conclusões do parecer da secção penal
-acceitam a responsabilidade, como se deduz do trecho seguinte:
-
-«As leis penaes devem attender, não só aos criminosos completamente
-loucos, mas tambem áquelles, que, sem terem as faculdades intellectuaes
-perfeitamente regulares, tambem não podem dizer-se completamente
-irresponsaveis.
-
-Os criminosos completamente irresponsaveis pelo facto que practicaram,
-e cuja liberdade é perigosa para a sociedade devem ser para sempre
-recolhidos em um hospital ou asylo expressamente fundado para elles,
-sem as formalidades do julgamento; mas depois de verificada a sua
-irresponsabilidade por meio de peritos, e de ser ouvido o representante
-do ministerio publico e a defeza, por despacho do juiz, do qual deve
-caber sempre recurso para os tribunaes superiores.
-
-Os criminosos não completamente loucos, e portanto com mais ou menos
-responsabilidade pelo crime que commetteram, deverão, depois tambem
-de examinados pelos respectivos peritos, ser julgados e condemnados a
-reclusão no asylo indicado por tanto tempo quanto deveria durar a pena
-que lhes caberia, caso gozassem d’um funccionamento perfeito das suas
-faculdades mentaes.»
-
-Nem todos os membros do congresso acharam este parecer satisfactorio,
-o que motivou divergencias no seio da secção e depois na assembléa
-plenaria. Um grupo de congressistas apresentou uma proposta tendente a
-serem substituidas pelas seguintes, as conclusões do relatorio sobre a
-these 19.ᵃ:
-
-«1.ᵃ É urgente reformar os codigos penaes, prescrevendo-se n’elles
-que o delinquente affectado de doença mental, que por um processo
-especial fôr julgado irresponsavel, mas perigoso, seja recolhido n’um
-estabelecimento adequado por tempo indefinido, conforme a natureza
-da sua affecção, não podendo d’elle sair sem precedencia d’um novo
-processo, em que intervenham as mesmas entidades e pelo mesmo modo que
-no da reclusão.
-
-2.ᵃ Para que o processo, a que deve ser submettido o delinquente
-affectado ou suspeito de doença mental, offereça todas as garantias,
-devem n’elle interferir, além dos juizes e representantes do ministerio
-publico, peritos alienistas e os interessados pelo lado do delinquente
-e da parte offendida, quando esta não possa; devendo a resolução ser
-confirmada pelos tribunaes da 2.ᵃ instancia, podendo ainda levar
-recurso para os tribunaes de revisão.
-
-3.ᵃ É indispensavel organizar convenientemente o serviço medico legal e
-crear juizes instructores do processo.
-
-(Assignados) Jeronymo da Cunha Pimentel, Cesar Silio y Cortés, Antonio
-Azevedo Castello Branco, João Jacintho Tavares de Medeiros, Caldazo
-Monzano.
-
-Tem o voto dos srs. Alberto de Sousa Larcher, João A. Sousa Queiroz, A.
-Arthur de Carvalho.»
-
-Houve quem sustentasse integralmente os principios classicos do direito
-de punir, baseado sómente no livre arbitrio, não admittindo por tanto a
-existencia de criminosos loucos nem distincção entre criminosos loucos
-e criminosos meio loucos.
-
-Estes congressistas foram os srs. Pinto Coelho, Xavier Cordeiro, Torres
-Campos, e dr. Avelino Calixto.
-
-O sr. Pinto Coelho formulou com grande nitidez o argumento: ou o
-accusado é responsavel pelo acto que commetteu e n’essa hypothese
-é um criminoso que a justiça precisa punir, ou é irresponsavel, é
-louco, e então temos uma questão exclusivamente da alçada do direito
-civil, que não compete ao direito penal porque não existe crime. O sr.
-Pinto Coelho acceita as conclusões do parecer da commissão, todavia
-não como principio novo, visto que de ha muito esse principio figura
-na legislação do nosso paiz. Não crê que em sciencia juridica haja
-revoluções, mas evoluções.
-
-Os srs. Antonio Azevedo Castello Branco, Jeronymo Pimentel, Osorio
-Sarmento, Taladriz, combateram a existencia do livre arbitrio e
-propugnaram o determinismo com os argumentos tirados da Escola
-anthropologica, e negam como principio geral a responsabilidade do
-delinquente. Parece que a sua doutrina consiste em estudar o crime pelo
-que elle significa, como offensa á sociedade, e graduar a applicação
-das penas conforme a gravidade da offensa, visando até a eliminação do
-offensor. Como póde verificar-se em face da historia do direito penal,
-esta theoria não é novissima, é velhissima.
-
-Ao mesmo tempo que parte da jurisprudencia indigena defende tal
-criterio do direito de punir, o que equivale á passagem d’uma esponja
-pelo que ha de mais elevadamente puro na especie humana, contradiz-se
-ingenuamente, protestando contra os ataques dos que professam o
-sentimento da liberdade e defendendo o principio da lei moral e os
-beneficios da acção educativa e correccional.
-
-Os trabalhos de Lombroso, Garofalo, Marro, Navarra, Beltrani Scalia, F.
-Puglia, Maudsley, Ch. Feré, Tarde, Adolphe Prins, as discussões sobre
-o codigo penal italiano como os _Studi sull ultimo progetto del nuovo
-codice penale italiano per Innocenzo Fanti; Les Études sur le nouveau
-projet de code penal d’Italie_, por Victor Molinier, chegaram ás mãos
-d’alguns juristas estudiosos portuguezes entre os quaes se distingue
-o sr. Antonio Azevedo Castello Branco, que tem feito uma infatigavel
-propaganda da anthropologia criminal italiana, cujos primeiros
-symptomas já se manifestaram no congresso juridico.
-
-Muitos dos jovens bachareis recentemente saidos da nossa faculdade
-juridica crêem a metaphysica um termo insultuoso, um verdadeiro doesto
-philosophico; dizem-se depois da leitura d’um livro de propaganda,
-adeptos calorosos da negação absoluta do livre arbitrio e das outras
-conclusões exageradas da pathologia criminal. A verdadeira causa
-d’esta situação mental nasce da falta de estudo psychologico e da
-carencia de vigorosa disciplina no conhecimento das outras sciencias
-moraes. Inclinam-se pois para a escola avançada, porque lhe dá o tom
-de espiritos modernos e de audazes revolucionarios, assim como por
-ora em philosophia se dizem _positivistas comteanos_, suppondo essa
-escola ainda uma novidade, quando é um fossil pouco interessante na
-fauna da sua epoca e já sem representantes na nossa fauna dominante.
-A perissologia, com que a adornam, amesquinha-a ainda mais. Póde
-applicar-se-lhe o conceito horaciano: _Solve senescentem_.
-
-O homem não é um agente moral se não for responsavel pelas suas acções,
-e não é tal se não for susceptivel de obrar ou não obrar conforme a uma
-regra de dever que está prescripta na consciencia. A possibilidade
-da moralidade, depende pois da possibilidade da liberdade; porque se
-o homem não é um agente livre, não é o auctor das acções que pratica,
-e não tem conseguintemente responsabilidade, e nem personalidade
-moral[1]. Para demonstrar estes principios não se faz mister recorrer
-á intervenção divina, basta o raciocinio operando sobre os elementos
-fornecidos pela psychologia humana.
-
-O direito é um principio puramente humano, que se deduz da liberdade e
-da sociabilidade, assegurando-lhe ao mesmo tempo o reconhecimento e a
-protecção.
-
-As escolas philosophicas estão ainda longe d’um accordo em quanto á
-determinação do fundamento, sobre o qual repousa o direito de punir.
-Para uns tem origem na utilidade publica, para outros na religião,
-que o considera como uma consequencia do principio de expiação, do
-principio da justiça absoluta que exige a retribuição do mal pelo mal;
-para outros como uma applicação do direito de legitima defeza e até
-como uma fórma da caridade que pede, não o castigo, mas a emenda do
-culpado.[2]
-
-Victor Hugo nos _Miseraveis_ defende a these de que a sociedade,
-sobretudo, é a responsavel pelos crimes que os seus membros
-commetteram, porque tudo é fructo das instituições e das opiniões, as
-quaes, para nós, representam a ordem social.
-
-Beccaria interrogou o seu espirito sobre o fundamento do direito de
-punir e encontrou a base na _utilidade commum_, na necessidade da
-_conservação social_, acompanhando todavia esta affirmação da confissão
-formal de que era mister que o fito desejado fosse conforme com as
-exigencias da lei moral. A verdade é que o direito penal é fundado, não
-sobre a ordem de idéas assignaladas por Beccaria, mas sobre a noção
-superior de justiça applicada pela sociedade, na medida do que ella crê
-necessario para a sua conservação[3].
-
-Rousseau no _Contracto social_ tambem sustentou que o direito de punir
-saiu do direito de defeza, theoria sustentada por Locke. Todas as
-theorias contemporaneas teem o seu germen na Historia da Philosophia.
-
-No direito criminal antigo não havia distincção entre a violação das
-prescripções divinas e humanas; punia-se o delicto e o peccado. A idéa
-d’uma offensa contra a divindade fez surgir as primeiras leis penaes;
-a idéa d’uma offensa contra o proximo fez apparecer as segundas, mas
-a idéa d’uma offensa contra o Estado, ou a collecção de cidadãos não
-produziu primeiro um direito criminal. Parece que esta idéa só apparece
-regularmente na Grecia, e em Roma subiu até á exageração.
-
-Hoje o encargo mais difficil no juiz consiste em distinguir até que
-ponto o accusado seja moralmente culpado, visto como as leis modernas
-evitam as definições n’esta materia. Deixam ao jury ou ao julgador o
-cuidado de decidir.[4]
-
-A interpretação da idéa de direito e a suavidade ou o rigor da pena
-dependem do desenvolvimento intellectual da sociedade, posto que o
-caracter do principio seja invariavel em todas as condições de tempo e
-de espaço.
-
-Era legitima a pena de morte nos tempos em que a escravidão foi
-considerada como uma instituição de direito geral das nações. Era
-igualmente legitima nos sacrificios humanos praticados nas idades
-sacerdotaes.
-
-A pena, diz Bossuet, está na ordem, porque ella mette na ordem aquelles
-que se desviaram d’ella. De feito a palavra _delicto_ vem do verbo
-latino _delinquere_ «deixar», «abandonar»; o delicto etymologicamente
-é pois um desprezo da regra, ou o que é mais expressivo uma falta
-contra a regra. Os codigos penaes definem delicto em geral toda a
-infracção, seja de que natureza fôr, que caia sob a alçada da lei
-penal.[5] Mas não basta para justificar a intervenção da lei penal
-que a acção commettida apresente os caracteres exteriores d’um
-delicto; é indispensavel que o auctor a tenha commettido em plena
-posse das suas faculdades intellectuaes e moraes. É o que se chama em
-nomenclatura juridica imputabilidade e em ethica responsabilidade;
-sem este predicado o delicto não existe; em vez d’uma acção a punir
-ha uma desgraça a lamentar.[6] É n’estas condições que o criterio da
-defeza social tem o seu papel. O agente do acto é um ser irresponsavel
-e perigoso para a utilidade commum? é isto que resta determinar com
-precisão. Demonstrado scientificamente, sem hypotheses vagas, que este
-individuo é um ser nocivo, uma ameaça permanente, cumpre á sociedade o
-direito e o dever de sequestral-o. Todavia ninguem justamente ousará
-chamar-lhe um criminoso, é apenas uma fera.
-
-A escola classica inspira-se nos principios que proclamam a dignidade
-do homem e a responsabilidade do seu destino; reconhece todavia
-muitos principios acceitaveis na escola utilitaria, porque ella no
-seu criterio tem um mesmo dogma--o da necessidade do castigo. N’essa
-ordem de idéas, rejeita, é claro, os exageros dos utilitarios ou
-dos sentimentaes, que declaram todos os delinquentes enfermos e
-irresponsaveis, porque seria fomentar a impunidade, e fomentar a
-impunidade é o mesmo que multiplicar os crimes.
-
-O nosso distincto publicista sr. Oliveira Martins escreve:
-
-«Novos doutrinarios veem affirmar _ex cathedra_, não só que a sociedade
-não tem o direito de punir, mas que o criminoso é apenas um enfermo.
-Onde está o livre arbitrio? dizem. Não ha vontades deliberadas:
-tudo obedece a um determinismo cego. Um é victima do atavismo ou da
-hereditariedade, outro é victima do desejo, outro da allucinação.
-Em vez de cadeias, hospitaes; em vez de forca, hydrotherapia.
-Evidentemente, tudo é condicionado n’esta vida de relação de que nós
-proprios somos apenas um aspecto; mas evidentemente tambem sob pena de
-um cahos absoluto, a determinação da responsabilidade só póde dar-se
-quando se formule a equação entre o acto e o motivo determinante.
-N’estes termos, e só n’estes termos, a questão metaphysica da liberdade
-póde trazer-se para o foro pratico da justiça.
-
-E não ha duvida que o criterio classico está prejudicado. Se a
-medicina de hoje diz que ha doentes e não doenças, tambem a justiça
-deve dizer que ha criminosos e não ha crimes. Os quadros systematicos,
-organisados abstractamente são tão inacceitaveis na nosologia como na
-criminologia. É precisamente o que os juristas reconhecem, dando cada
-vez um papel mais dicisivo ás circumstancias accessorias, attenuantes
-ou aggravantes, e pondo acima do antigo mytho de Themis, cega como tudo
-o que é absoluto, o juizo de facto, em que o jury procede humanamente,
-isto é, inductivamente. Não póde, porém, ver-se n’isto a negação do
-direito de punir--na mais lata accepção da palavra. A sociedade não se
-defende apenas, nem se vinga, como nos tempos barbaros. A vingança
-fez-se justiça. Punição traduz-se por protecção. Julgar, proteger e
-castigar--eis a suprema funcção d’este ser abstracto, em cujo seio
-vivemos e fóra do qual nos degradariamos regressando aos primordios
-obscuros da historia. Se a sociedade não póde punir, força é que o
-individuo se defenda e se vingue. E que é isto senão a volta ao talião
-barbaro--exactamente á doutrina que o anarchismo prega e pratica?
-
-Ha, por tanto, acima das doutrinas desvairadas que endoidecem as plebes
-fanatisadas, doutrinas inconsequentes que uma sciencia, incompleta por
-ser fria e secca diariamente prega, e de cujas ultimas conclusões tira
-a allucinação dos energumenos. E é por isso que a instrucção por si só
-não consegue mitigar a criminalidade, embora a civilisação altere a
-proporção e a natureza dos crimes.
-
-Não basta falar á intelligencia analytica, é mister comprehender a
-synthese chamada povo, na sua realidade positiva, nos seus sentimentos
-e nos seus instinctos de justiça; é necessario affirmar de um modo
-categorico a auctoridade social e o direito de punir, para que cada
-qual veja e venere sempre acima de si proprio esse outro ser maior,
-mais nobre, que se chama--todos.»
-
-O criterio do direito classico não se acha prejudicado pelos ataques
-das escolas contemporaneas, porque elle reconhece quando applica
-justiça, como no systema da utilidade publica, acima do individuo
-o respeito por esse outro ser maior, que se chama--todos. A escola
-utilitaria baseando-se no determinismo defende a sociedade, mas elimina
-o sentimento de justiça. Póde aspirar a defender a collectividade,
-mas nunca a intimidar, a corrigir, ou a regenerar o criminoso. A idéa
-do castigo, na escola classica, reclama antes da satisfação dada á
-sociedade, a idéa d’uma satisfação mais pura, dada á justiça. «O
-castigo, diz Kant, deve justificar-se em completo, _independentemente
-das suas consequencias_, por considerações tiradas do procedimento
-d’aquelle que o soffre. Nada de similhante é possivel desde que não
-existe já a liberdade.
-
-O que succede então? Impellido pela fatalidade, um homem commette um
-assassinio, impellida pela mesma fatalidade, a sociedade prende-o e
-mata-o. Se este homem fosse o mais forte a sua resistencia á sociedade
-era legitima, porque o mesmo motivo que armou a sociedade contra elle,
-a necessidade de defender-se, justificava a sua rebellião.
-
-Das duas partes o direito era egual, a justiça egual. O seu unico
-prejuizo é ter sido um só contra todos. Na verdade pois não ha no
-determinismo outra justificação possivel para a pena senão esta: «a
-razão do mais forte é sempre a melhor.» Quanto á justiça entre agentes
-moraes subsiste um conflicto brutal de forças fataes, em que o mais
-poderoso esmaga o mais fraco, mas onde não ha direito em nenhum dos
-lados. Se, pelo contrario, se admittir que a sociedade punindo, pratica
-um acto de justiça, se quizermos, como manda Kant, que o criminoso,
-em vez de se rebellar contra o mal que o fere, «confesse elle mesmo
-que mereceu a sua punição, e que a sua sorte se adapta ao seu
-procedimento,» é mister tambem reconhecer a existencia da liberdade.[7]
-
-Nos homens extremamente inveterados no vicio, a consciencia depois
-de cançada de ultrages e de desprezos, cala-se e o sentimento moral
-desapparece. O remorso extingue-se como a dôr prolongada, a liberdade
-subsiste ainda, mas quasi inactiva, como a faculdade visual quando
-uma espessa cataracta intercepta os raios luminosos que outr’ora
-atravessavam os olhos. Este criminoso, se não é já livre em tal
-estado, foi-o quando iniciou a escura senda do crime, porque todo o
-acto psychologico antes de se tornar habitual foi voluntario. Esta
-circumstancia justifica o cabimento da punição. Não succede o mesmo se
-o delinquente é instinctivo, se a tendencia para o mal é congenita,
-porque n’este caso o crime não existe. Este monstro está para o senso
-moral como o cego e o surdo de nascimento estão para a luz e para o
-som. Não ha pharol educativo que lhe illumine a intelligencia, nem
-penitenciarias que lhe regenerem o coração adormecido. A difficuldade
-está na demonstração evidente da existencia d’este _homo criminalis_.
-
-Ha duas theses sobrepostas e contradictorias no _Homem delinquente_ de
-Lombroso. A primeira usada no começo dos seus estudos--a do criminoso
-aproximado do selvagem primitivo, do crime explicado pelo atavismo
-e pela hereditariedade; e a segunda, que na ultima edição do livro
-coexiste com a primeira,--a do crime-loucura. Ellas alternam-se na
-obra e pretendem reciprocamente auxiliar-se. A contradicção todavia
-é obvia como lh’o demonstra Tarde e H. Joly. A loucura é um producto
-da civilisação, rara nas classes indoutas e quasi desconhecida entre
-os selvagens. Portanto, se o criminoso é um selvagem não póde ser
-um louco, do mesmo modo se é um louco não póde ser um selvagem. Das
-duas theorias é preciso optar por uma, a primeira é mais seductora,
-mais intelligivel e mais conforme com os principios biologicos do
-transformismo.[8] Não póde negar-se o merito e o notavel valor
-dos estudos da escola anthropologica italiana, que elles proprios
-denominam _escola penal positiva_, especialmente no que diz respeito
-ás origens do crime, aos caracteres do criminoso reincidente e ás
-origens hereditarias. Estuda o delinquente como o zoologo estuda um
-animal e este methodo de naturalista tem sido applicado com vantagem,
-na taxonomia de Ferri, aos delinquentes da 1.ͣ categoria e aos da 4.ᵃ,
-isto é aos criminosos natos e aos alienados.
-
-O alvo a que mira, nas reformas juridicas, a escola penal positiva
-é substituir pela responsabilidade moral a responsabilidade social,
-fundada sobre a utilidade geral. Ora as duas não formam senão uma,
-porque a responsabilidade chamada social, prescripta nos codigos,
-está comprehendida nos preceitos da moral. A ordem moral, como diz
-Innamorati, excede mas abrange a ordem social, como um pequeno circulo
-n’um circulo maior.
-
-O verdadeiro direito de punir não deve preoccupar-se com a excitação
-publica, nem com a opinião: julga o criminoso em relação ao delicto
-e á ordem moral e dispensa as outras considerações extranhas. Émile
-Beaussire, no seu ultimo livro _Principes du droit_, aventa uma
-concepção original e funda o direito de punir sobre o _dever de ser
-punido_. É acção do moralista em toda a sua integridade.
-
-Topinard, n’um celebre artigo da _Revue d’Anthropologie_, combateu
-a hypothese de Lombroso do _crime atavismo_, assim como a do _crime
-loucura_, defendendo com valiosos argumentos a hypothese do criminoso
-considerado _profissional_. Feré não admitte os typos profissionaes e
-combate com dialectica vigorosa a explicação atavica do delicto, mas
-admitte a explicação pathologica; sem todavia se ligar á escola d’alem
-dos Alpes, filia-se na escola psychopathica de Morel. A criminalidade
-nativa é para elle uma fórma da degenerescencia inferior, porque nunca
-se associa ao genio. Como se vê a criminologia revolucionaria está
-ainda no periodo hypothetico da sua constituição como sciencia.
-
-A velha affirmação de que o crime e a loucura são irmãos gemeos, tem
-sido batida em brecha até ao ultimo reducto. Os loucos são seres
-isolados, que vivem n’um mundo á parte. As suas concepções não teem
-convivio com as concepções dos outros. É um ser accentuadamente
-individual, que vive a vida interior do seu delirio.
-
-Os alienados, diz o dr. A. S. Taylor, não teem nunca cumplices nos
-actos que commettem, em quanto que o criminoso é um ser sociavel
-que se concerta com os outros, fazendo do latrocinio uma profissão.
-As associações de malfeitores apparecem e multiplicam-se por
-toda a parte. Nos actos do criminoso existe sempre no crime o
-encadeamento das causas moraes, em quanto que no louco ha soluções
-de continuidade inconscientes. Nenhuma pessoa familiarisada
-com os estudos da psychologia morbida confunde nas suas fórmas
-geraes os actos do delinquente com os actos dos epilepticos, dos
-dipsomaniacos, kleptomaniacos, dos pyromaniacos e de outras fórmas
-nosologico-mentaes. Se todos os criminosos fossem natos ou alienados,
-isto é, irresponsaveis segundo a classificação de Ferri, o mais
-suave e humanitario direito repressivo seria a eliminação; mas as
-penitenciarias aspiram á correcção e á morigeração dos delinquentes,
-o que implica a crença na liberdade quanto á maioria dos delictos. Em
-nenhum caso todavia o nosso espirito admitte a pena de morte, só por um
-motivo--é uma pena irreparavel.
-
-Ha individuos que na pratica do crime, ou sejam instinctivos ou
-loucos, são destituidos por uma anomalia psychologica do sentimento
-ethico-juridico. Ninguem com boas razões deixará de acceitar, que
-estes anomalos, posto que extranhos á acção da justiça, devem ser
-sequestrados perpetua ou temporariamente do convivio social porque são
-perigosos para a segurança publica. Proclamar porém em nome de qualquer
-hypothese todo o delinquente irresponsavel é uma phantasia e uma
-iniquidade, que nenhum codigo positivo póde acceitar.
-
-Escreve o publicista a que já nos referimos:
-
-«Perversos são os degenerados: essa legião escura de bandidos que
-acampa no seio das sociedades cultas, como as hordas de zingaros, e em
-que a ferocidade das edades remotas se transmitte por atavismo ou por
-hereditariedade. São esses que Lombroso, o grande naturalista do crime,
-considera como restos miseraveis das raças mongoloides, os finnios que
-ficaram esmagados sob os stratos successivos da população aryana da
-Europa. N’essas tribus obscuras, envenenadas por um satanismo organico,
-ha glorias e orgulhos, ha servos e patriarchas, ha dynastias e ha
-heroes. O céo que nós vemos azul, vêem-no elles vermelho de sangue; e o
-calor doirado do sol não lhes excita piedade, senão um borbulhar ferino
-de instinctos bestiaes. De homens teem apenas o aspecto. Barbaros,
-mas barbaros abastardados no meio da civilisação, perderam a nobreza
-ingenita da vida natural. São os auctores dos attentados medonhos:
-os parricidios (tão vulgares nas edades primitivas) os morticinios
-de familias inteiras, como na tragedia de Mattos Lobo, o assassinato
-a frio, como em Diogo Alves que encheu de pavores a nossa infancia,
-o decepamento dos cadaveres, com os braços tintos em sangue os olhos
-esgazeados, a face imberbe; a fronte achatada e na bocca um _rictus_
-demoniaco.
-
-O exterminio é o unico recurso contra essa casta em que os instinctos
-humanos, não podendo envolver, apodreceram. São féras; e se a
-hereditariedade é, como os especialistas affirmam, um facto comprovado,
-a morte é tambem sem duvida o processo mais humanitario.
-
-Mas esta cathegoria de criminosos, qualquer que seja a sua origem e o
-seu recrutamento, não é decerto exclusiva, nem talvez predominante.
-O grosso exercito do crime compõe-se das victimas do desejo. São os
-que na ladeira escorregadia da existencia claudicaram uma vez para
-se não levantar mais. É a gente faminta que diariamente accorda sem
-saber a que mesa se sentar; a gente miseravel tiritando com frio nas
-longas noites do inverno; são os incontinentes que o espectaculo do
-bem-estar azeda; são os revoltados que no seu vicio encontram sancção
-á ociosidade; são as mulheres que, sacrificada a pureza no altar de
-alguma illusão afogam os filhos, ou para os sustentar se fazem ladras;
-são todos os simples, desde o desgraçado que rouba um pão para matar
-a fome, até ao velhaco, ladrão por habito, por arte, por vaidade ou
-por capricho; desde o miseravel vestido de andrajos e analphabeto,
-até ao _dandy_ jogador e falsario; desde a meretriz ladra dos beccos
-enlameados, até á que opera nos salões entre lustres e chrystaes. O
-crime egualisa tanto como a morte.
-
-O homem é fraco, a vida é dura, a pobreza cruel e a sociedade
-madrasta. A legião dos engeitados que toda a colonia humana expelle de
-si; essa eterna léva de parias com que outr’ora se formavam Romas, eis
-ahi onde se recruta a peonagem do crime. É a espuma cuspida pelas ondas
-agitadas da sociedade.
-
-Todos esses que um dia escorregaram no plano inclinado da vida ao
-inverso, pendem fatalmente para o inferno vermelho onde se agitam as
-feras. Pela ociosidade chega-se ao roubo, pelo roubo ao assassinato.
-Ha outros caminhos, mas esta é a vereda mais trilhada. O homicidio não
-é para elles uma fatalidade organica, nem uma embriaguez de sangue;
-é sempre uma consequencia imposta pelas circumstancias. A esta plebe
-profunda, espessa, fertil, como as alluviões da Terra-Negra, é que a
-sociedade, sob pena de morte, tem de applicar a charrua possante da
-protecção e da caridade, para lhe dar ar, desinçando-a das grammas
-parasitas. É para ahi que todas as instituições salvadoras da infancia,
-todas as instituições protectoras da adolescencia: todo o amparo ás
-mulheres, todo o escrupulo dos tribunaes, se hão de voltar com esse
-mixto de carinho e firmeza, de integridade e amor que são o segredo da
-ordem social. Porque são estes os criminosos regeneraveis.»
-
-É innegavel para estes o influxo salutar da instrucção intellectual e
-moral, do ensino profissional e de todas as instituições beneficas que
-possam melhorar a sua condição.
-
-Os discipulos da escola anthropologica criminal italiana pretendem já
-reformar os codigos penaes quanto ás idéas e quanto á linguagem. Tudo,
-em seu entender, está velho, erroneo e anachronico. É para notar, que
-nem na anthropologia criminal, nem na nosologia mental ha classificação
-rigorosamente scientifica dos delinquentes, nem dos alienados. As que
-existem são provisorias.
-
-Estas sciencias acham-se ainda no campo do recolhimento das
-investigações e da explicação hypothetica. Não se citam dois alienistas
-ou dois anthropologos d’accordo no que ha de mais essencial e de mais
-fundamental. Para haver sciencia é mister que se dê uma organisação
-systematica de conhecimentos, tendo como condição a unidade e a
-harmonia. Emquanto os productos multiplos das investigações e os
-modos de ver dos escriptores, se contradizem, não temos sciencia
-rigorosamente constituida, temos apenas materiaes para uma futura
-synthese.
-
-Até hoje ainda os alienistas não conseguiram elaborar uma taxonomia
-verdadeiramente scientifica das doenças mentaes. O seu desiderato é
-com a hypothese das localisações cerebraes, baseada na anatomia e na
-psychologia morbida, organisar uma classificação que, para a escola
-materialista, seja a unica scientifica. Ora o estudo funccional e
-somatico do cerebro não contêm conhecimentos completos nem seguros. Das
-funcções intimas cerebraes nada se conhece; mas ainda assim assentam-se
-sobre ellas explicações phantasticas. As formas nosologico-psychicas
-até hoje estabelecidas assentam nas observações symptomatologicas
-e nos dados fornecidos pelas perturbações psychologicas. E d’estas
-adopta cada medico uma differente. Confrontem-se para prova as dos
-medicos allemães, francezes e inglezes. Das classificações francezas
-comparem-se a de Pinel com a de Esquirol, a da commissão nomeada pelo
-congresso de Antuerpia em 1885 com a de Magnan; a de Morel com a de
-Ball. São por ora repartições ou arrumações contradictorias e de modo
-algum classificações scientificas.
-
-Para bem evidenciar a imperfeição d’estas tentativas de classificação,
-basta coteja-las com as classificações chimicas, geologicas, botanicas,
-zoologicas, etc. Em anthropologia criminal não estamos a este respeito
-mais adiantados, como passamos a ver.
-
-Escreve o sr. A. d’Azevedo Castello Branco:[9]
-
-«Uma das theses propostas ao 1.ᵒ congresso de anthropologia criminal
-foi a seguinte: Em que cathegorias se devem dividir os delinquentes
-e quaes são os caracteres essenciaes, organicos e psychicos que os
-distinguem? Os egregios anthropologistas Lombroso, Marro e Ferri
-apresentaram os seus relatorios, que, na essencia, são conformes no
-reconhecimento de certas variedades de criminosos. A classificação
-de Ferri, que é a mais desenvolvida, comprehende: 1.ᵒ O delinquente
-nato ou instinctivo, que se distingue pela _falta congenita do senso
-moral_ e pela _imprevidencia_ das consequencias das suas acções.
-Os assassinos e ladrões são os typos mais communs d’esta classe. A
-falta de senso moral denuncia-se pela insensibilidade manifestada
-perante os soffrimentos e os damnos causados ás victimas e perante
-os seus proprios soffrimentos e dos cumplices, e denuncia-se
-tambem pelo cynismo ou apathia do criminoso no correr do processo
-e nas Penitenciarias, facto que determina muitos outros symptomas
-psychologicos secundarios, como a nenhuma repugnancia á ideia do
-delicto e falta de remorsos depois de perpetrado. Da imprevidencia
-resultam as manifestações imprudentes anteriores e posteriores ao crime
-e a indifferença pelas penas comminadas na lei.--2.ᵒ O delinquente
-por impeto d’uma paixão social, como o amor, a honra, etc. Este,
-relativamente ao senso moral, apresenta um quadro psychologicamente
-opposto ao do criminoso instinctivo. Revela imprevidencia tambem,
-esta, porém, não nasce de uma falta hereditaria de senso moral, mas
-sim da momentanea anesthesia d’este sentimento.--3.ᵒ O criminoso de
-occasião, que é caracterisado pela _debilidade do senso moral_; mas
-este pode converter-se no criminoso habitual, isto é, n’um individuo
-que faz do delicto a sua industria, em consequencia da obliteração
-progressiva do senso moral e das circumstancias menos favoraveis á
-sua existencia.--4.ᵒ O criminoso alienado. Anthropologicamente é
-identico ao delinquente-nato, como nos casos de loucura ou imbecilidade
-moral e epilepsia, e n’outros casos differe, não só pela desordem
-intellectual, como por muitos symptomas psychologicos. A _precocidade_
-e a _reincidencia_ servem para distinguir as tres primeiras variedades.
-O criminoso instinctivo é sempre precoce, e pode, ou não, reincidir
-consoante a duração da pena que se lhe applique. O criminoso por
-habito é frequentemente precoce e reincidente chronico. Todos os
-delinquentes, qualquer que seja o seu typo anthropologico, apresentam
-este caracter psychologico commum:--uma anormal força impulsiva para os
-actos criminosos, que provêm de uma degeneração hereditaria, ou de uma
-condição psycho-pathologica successiva, ou de uma perturbação psychica
-transitoria, mais ou menos violenta. Entre estes varios typos não ha
-uma separação absoluta, e por consequencia existem typos intermedios.
-O congresso acceitou o relatorio de Ferri nas suas partes essenciaes,
-como foi declarado por Benedikt, que apresentára a classificação
-seguinte: 1.ᵒ _o delinquente accidental_; 2.ᵒ _o profissional_;
-3.ᵒ _o delinquente por molestia, por intoxicação temporaria ou
-permanente_; 4.ᵒ _os delinquentes degenerados_. Esta classificação é
-substancialmente identica á de Ferri.»[10]
-
-No _Anomalo, gazzetino antropologico, psychiatrico, Medico-legal_
-do dr. Angelo Zuccarelli di Napoli, numero de abril ultimo, vem
-um trecho d’uma lição de A. de Bella, illustre advogado, feita
-em Nicotera no seu curso de Sociologia sobre a classificação dos
-delinquentes de Cesare Lombroso. Pergunta Bella: «Os delinquentes teem
-na sociedade importancia identica, igual, analoga, dissimilhante?
-não, senhores. Diversas são as causas do crime e por isso a sciencia
-indica uma classificação dos criminosos. Pode acceitar-se a seguinte:
-a) delinquentes loucos; b) delinquentes natos, incorregiveis; c)
-delinquentes habituaes; d) delinquentes por paixão; e) delinquentes
-occasionaes». Tal é a norma de dividir os criminosos para a maior parte
-dos anthropologos criminalistas de Italia. A estas porém, prefere
-Bella outra, a qual em seu parecer tem vantagens sobre todas as que a
-sciencia até hoje perfilhou. É a seguinte:
-
-«A atypia e a anomalia são no fundo sempre uma degeneração e por
-isso pode haver delinquentes: a) por degeneração congenita; b) por
-degeneração adquirida; c) por psychonevrose; d) por habito; e) por
-semidegeneração congenita; f) por occasião.
-
-A degeneração congenita é: a) physiologica ou atavica; b) teratologica
-ou atypica; c) pathologica. O atavismo é _prehumano ou humano_. O
-delinquente por degeneração congenita nada deve ao ambiente, é producto
-exclusivo do organismo. O ambiente influiu sobre o organismo dos
-seus antepassados que lhe communicaram as proprias degenerações, mas
-_pessoalmente sobre elle_ o mundo externo não exerceu nenhuma acção,
-porque o criminoso traz de nascença, impressos em todos os orgãos e
-sobretudo no cerebro os signaes biopathologicos da sua triste natureza.
-Sociologicamente distingue-se dos outros homens pela ausencia de senso
-moral, anthropologicamente não lhe faltam os signaes distinctivos.
-Nem todos os que carecem de senso moral podem dizer-se delinquentes.
-O pae de familia, que consome na taberna o salario do seu trabalho,
-deixando os filhos e a mulher desfallecendo na miseria por não poderem
-satisfazer as primeiras necessidades da vida, não tem certamente
-completo o senso moral, e o juiz que sem o minimo remorso, absolva em
-má fé um reu ou em pessima fé condemne um innocente, apresenta com
-certeza muitas deficiencias no seu _senso moral_. Nem um nem outro
-podem dizer-se delinquentes, ainda que ambos sejam, sem duvida,
-individuos um pouco degenerados e ethicamente maus; nem aquelle
-nem este é juridicamente reu. No entretanto a sua degeneração pode
-muito bem ser adquirida. Quando uma degeneração physiologica é assaz
-manifesta ha em vez d’um delinquente no rigor da palavra um enfermo e
-este pode ser um ladrão ou um incendiario, ou um homem inclinado ao
-sangue e a outros crimes. Esta especie de degeneração pode dizer-se
-tambem atavica, e os que a padecem em parte apresentam um ou muitos
-signaes degenerativos. Se não são completamente curaveis, são talvez
-susceptiveis d’alguma melhora. Porem o verdadeiro delinquente nato anda
-sempre atacado de degeneração teratologica ou atypica. Não é um homem
-mas um monstro e vive em absoluta pobreza de senso moral. É incapaz de
-qualquer melhoramento, e a sua vida ordinaria acaba no assassinio ou
-nos crimes, sem fito, sem nexo, sem attenuantes.
-
-Existe uma terceira especie de degeneração congenita--a pathologica. Os
-epilepticos natos pertencem a esta cathegoria de delinquentes, e podem
-curar-se por meio das suggestões hypnoticas ou com a trepanação do
-craneo, do qual se extrairá um bolbo em que talvez resida a doença.[11]
-Os degenerados por atavismo podem com o tempo vir a ser n’um ambiente
-enfermo, degenerados por atypia, e então tornam-se incapazes tambem de
-regeneração.»
-
-Para que se estabeleça qualquer classificação scientifica, uma
-das funcções indispensaveis do processo synthetico, precisa-se de
-definições claras e divisões perfeitas, tanto das ideas como dos
-termos. Ora a anthropologia criminal ainda está na phase descriptiva
-que é a infancia da sciencia; não tem nomenclatura severa, nem
-definições exactas, nem taxonomia uniformemente acceita, não passa
-por emquanto d’um valioso repositorio de factos para serem depurados
-no crisol da discussão e na arena da critica puramente especulactiva.
-Mas pretenderem já os seus sectarios, arrebatados por conjecturas
-imaginosas e seductoras, trazer estas soluções hypotheticas para
-o campo pratico da reforma completa da administração da justiça,
-parece-nos por ora temeridade. Certamente nenhum homem de estado,
-reflectido e circumspeto, quando se trate da melindrosa e alta
-funcção da justiça social, quererá, por fortuna, assumir a grave
-responsabilidade de substituir o direito tradicional, que tem por
-base a responsabilidade juridica do delinquente, pelo criterio da
-vindicta publica, que é um sentimento tão mesquinho, tão ignobil, como
-a vingança ou como o rancor individual nas raças civilisadas ou nas
-tribus selvagens. A justiça social que deve ser a superior encarnação
-da consciencia moral, acaso póde rebaixar-se, para defender a ordem
-juridica, á ignominia d’uma aleivosa vingança em que são todos contra
-um?
-
-É obvio, como já o affirmamos em outra parte, que admittimos o
-criterio da defeza social para os homens perigosos, a quem chamamos
-porem delinquentes e não culpados. Para estes exigimos da sociedade a
-obrigação de trata los com piedade, mas reconhecemos-lhe o direito da
-sequestração, temporaria ou perpectua, segundo a possibilidade da cura
-da affecção psychopatica.
-
-Para os delinquentes communs, para os verdadeiros criminosos que estão
-de posse de suas faculdades mentaes e que constituem a grande maioria,
-não se deve admittir outro criterio senão o da justiça baseado na
-responsabilidade moral.
-
-O principio da responsabilidade moral e penal que tem por unica base
-a crença no livre arbitrio, não pode ser abalado; é dogma nascido na
-consciencia, e consagrado pelo tempo e pela legislação de todos os
-povos civilisados.
-
-O direito criminal moderno não deve, como até hoje, limitar-se nas
-faculdades ao estudo das regras juridicas e á explicação dos artigos do
-codigo. Faz-se mister introduzir no ensino as investigações recentes
-da sciencia criminal e penitenciaria. Segundo Henri Joly a sciencia
-criminal e penitenciaria é para o direito criminal o que a economia
-politica e a sciencia financeira são para o direito civil. Adoptada a
-technologia moderna, a sciencia criminal comprehenderá: a anthropologia
-criminal, a psychologia criminal e a sociologia criminal.
-
-A anthropologia criminal consiste no estudo da organisação physica dos
-malfeitores. A psychologia criminal é o estudo dos desvios mentaes e
-affectivos que precedem o crime ou que o seguem, e que o crime suppõe
-ou attrahe. A sociologia criminal trata das condições de ordem social,
-isto é, das condições industriaes, religiosas, politicas que favorecem
-ou enfraquecem a tendencia para o crime.
-
-Accrescenta Joly que cada uma d’estas subdivisões se soccorre dos
-documentos da estatistica, e que esta, interpretada pela psychologia
-individual, fornece os principaes elementos da psychologia social.
-A psychologia social, a que a sciencia criminal se liga por laços os
-mais estreitos, estuda como as paixões humanas se modificam passando da
-vida individual á vida commum e o que ellas devem á acção das causas
-que sobrescitam ou acalmam as necessidades das massas, á influencia das
-polemicas ou propagandas que fazem e desfazem os preconceitos. Para
-attingir tal resultado calcula as principaes variações dos factos que
-interessam á prosperidade, á felicidade e á moralidade das nações. Nota
-sobretudo as relações que estes varios graus teem entre si; procura
-segundo que leis o crime parece augmentar ou diminuir nas diversas
-condições em cujo meio se desinvolve a individualidade humana. Depois
-esforça-se por encontrar os motivos de crença e de acção que residem
-no fundo da nossa natureza; vê os effeitos que produz aqui o contagio
-das idéas ou dos arrebatamentos collectivos da imaginação popular, ali
-os conflictos gerados pelas invejas das classes ou pelos vicios das
-instituições e das leis.
-
-Henri Joly depois d’assim delinear o horisonte d’este novo ramo de
-saber define sciencia criminal e penitenciaria a sciencia das relações
-que existem entre o homem criminoso e a sociedade.[12]
-
-A resolução do problema da criminalidade não póde vir da analyse
-physica do exterior do delinquente, da assimetria facial, do
-estrabismo, da tatuagem, da desproporção na dynomemetria e no calor,
-do prognatismo, e d’outras anomalias somaticas. Estes materiaes
-terão valor como elemento indirectamente subsidiario para o estudo
-da natureza psychica, da sua forma e da sua evolução, mas a luz hade
-nascer do conhecimento dos phenomenos da consciencia e dos factos
-externos e internos que sobre ella actuam.
-
-Lilienfeld provou que o desinvolvimento do individuo reproduz
-psychologicamente as phases do desinvolvimento da especie. Estudar
-cuidadosamente o individuo na sua evolução psychologica, desde o berço
-ao tumulo, e analysar a nossa especie nas diversas phases de vida, é
-tarefa de cuja execução depende, a nosso ver, a resolução do problema
-da criminalidade. E n’esta difficil tarefa a quem cabe o maior quinhão
-é ao psychologo.
-
-
-NOTAS DE RODAPÉ:
-
-[1] _La Philosophie de Hamilton_, pag. 538, por J. Stuart Mill.
-
-[2] _Philosophie du Droit Pénal_, pag. 11, Ad. Franck.
-
-[3] _Beccaria et le Droit Pénal_, par Cesar Cantu. Introduction. 1885.
-
-[4] _L’Ancien Droit_, Henry Summer Maine.
-
-[5] _Les délits et les peines_, Emile Acollas.
-
-[6] _Philosophie du Droit pénal_, pag. 157, Ad. Franck.
-
-[7] _Leçons de Philosophie_, E. Rabier.
-
-[8] La criminalité comparée par G. Tarde.
-
-[9] _Estudos Penitenciarios e Criminaes_, pag. 117.
-
-[10] Esta classificação não está ao abrigo da critica, como o demonstra
-n’uma discussão sensata e profunda H. Joly, _Le crime_, pag. 62.
-
-[11] Achamos verdadeiramente extraordinario!
-
-[12] Estas indicações sobre a divisão e papel da sciencia, são tiradas
-da oração de abertura de H. Joly nas suas licções de sciencia criminal
-e penitenciaria, curso recentemente creado. _Revue Internationale de
-L’Enseignement_, 15 mai, 1889.
-
-
-
-
-II
-
-A liberdade moral e o determinismo. A ethica. Os criminosos segundo os
-trabalhos recentes
-
- La liberté du franc arbitre est si grande en moi, que je ne conçois
- point l’idée d’aucune autre plus ample ni plus étendue.
-
- DESCARTES.
-
- ...Il est prouvé, que les «moindres forces» introduites, troublant
- des états d’équilibre, out le pouvoir de produire les révolutions
- mécaniques les plus considérables. Il se peut donc qu’une place
- demeure toujours pour les effets matériels de la liberté, dans un
- organisme donné, et de lá dans le monde. Le contraire n’est pas et
- ne deviendra jamais demonstrable. (Esquisse d’une classification
- systèmatique des doctrines philosophiques, pag. 289, tome 1.ᵒ)
-
- CH. RENOUVIER.
-
-
-Toda a philosophia procura a explicação do universo e n’esse intento
-precisa achar um elemento irreductivel, necessario, que nos certifique
-da existencia da harmonia entre o mundo subjectivo e o objectivo. Para
-o monismo materialista este elemento é a materia, que abrange toda
-a extensão das experiencias realisadas. É claro que tal elemento se
-considera absoluto porque d’outro modo fôra reductivel, o que seria
-contradictorio. O materialismo arvora-se pois n’uma das concepções
-metaphysicas mais antigas e mais grosseiras. Confunde todos os seres
-em um só, a materia, mas sobre a sua natureza nada nos diz; limita-se
-a affirmar com o vulgo que é o que se vê, o que se apalpa, o que cae
-debaixo dos sentidos. O typo do conhecimento para o materialista é
-a percepção externa.--A experiencia verifica que não ha creação nem
-desapparecimento da materia, que ha só transformação de phenomenos.
-A substancia permanente é activa, tem as suas leis; é uma força. A
-materia identifica-se com a força. As manifestações d’esta força
-constituem todos os phenomenos do universo.--A contradicção é
-flagrante, como hade conhecer a idéa de força uma philosophia, que tem
-por unica origem de conhecimentos os sentidos?
-
-Pela observação dos factos physicos, em que é obvio o principio da
-conservação da força, o materialista generalisou este principio a toda
-a forma de existencia. Ora exactamente o que resta provar é se toda a
-cathegoria de existencia se reduz a uma força physica.
-
-Metaphysica monista muito mais elevada, mais concludente e mais logica
-é o idealismo. Spencer, mecanista mais subtil que os defensores do
-materialismo vulgar, acceita a correlação entre os objectos e a
-representação psychica, mas entende que esta correlação não pode
-dar-nos senão symbolos da realidade, isto é, imagens imperfeitas das
-cousas. Na sua theoria do symbolismo Spencer aproxima-se do idealismo,
-posto que se mantenha mecanista. Entretanto e conseguintemente a
-doutrina que elle perfilha merece o qualificativo de determinista;
-porque a evolução, como necessaria, torna-se independente da liberdade.
-Todavia, quanto á evolução sociologica o sabio inglez tenta provar que
-a liberdade individual é compativel com a necessidade historica. N’este
-ponto apropinqua-se do _neocriticismo_.
-
-A evolução universal mecanista, não a teleologica, destroe o livre
-arbitrio. É este um dos caracteres que a separam da lei do progresso.
-Segundo Proudhon e segundo os philosophos classicos o progresso não
-existe sem a liberdade. N’esta doutrina a aspiração crescente da
-especie humana para uma maior elevação intellectual e moral, determina
-a desenvolução social, objecto da historia, a qual é a realisação
-progressiva da liberdade na humanidade. Quem governa o homem é a lei
-do dever, augusta divisa, impressa na consciencia; quem o dirige é o
-ideal, concepção intellectual, ligada pelo sentimento á acção imperiosa
-e decisiva da vontade.
-
-Os deterministas modernos ligam-se á metaphysica fatalista e á
-theologia, identificando como Leibnitz a força com a propria
-existencia e considerando as substancias como outras tantas forças
-cuja acção se exerce unica e precisamente no meio dos proprios entes
-a que pertencem. A vida psychica segundo o systema da _harmonia
-prestabelecida_ não passa d’uma monada isolada em si mesma, no seio da
-qual se fazem reflectir todas as modalidades da existencia.
-
-O determinismo moderno prende-se com a metaphysica e com o fatalismo
-pagão e mussulmano, mas colloca-se ao lado da doutrina theologica da
-predestinação e do dogma da graça invencivel. O determinista está ao
-lado de Luthero contra Erasmo, de Calvino contra Servet, da tyrannia
-contra a independencia, da fatalidade contra a liberdade. Da crença no
-destino cego dos deuses passou o fatalismo para a crença nas forças
-cegas da natureza.
-
-O fim supremo da metaphysica consiste em achar a origem unica da
-torrente eterna dos factos, do mar infinito das cousas, o que é
-inattingivel nos limites da sciencia positiva.
-
-Os physicos e os naturalistas concebem um ser substancial ou phenomenal
-que não pode subtrahir-se ao determinismo da mecanica. Extranhos pela
-maior parte aos processos de observação psychologica, não penetram
-na essencia da força, medem-na pelas suas manifestações. Na volição
-consideram os motivos como forças e não como condições e influencias, o
-que os leva em consequencia do seu monismo á negação da liberdade.
-
-A força é um dos termos mais metaphysicos, mais mysteriosos e mais
-difficilmente comprehensiveis da linguagem humana. Por ella exprimem
-a idéa do absoluto materialistas e positivistas. Na nomenclatura das
-escolas metaphysicas do materialismo esta idea é o principio universal
-de toda a existencia. Alguns moralistas e sociologos sustentam, que
-tanto nos individuos como nos povos, a força é a expressão do bem e
-a fraqueza a companheira do mal. Nos individuos o excesso de força
-na lucta pode gerar a crueldade; nos povos gera ás vezes a perfidia.
-Segundo uma philosophia theologicamente fatalista a força será uma
-manifestação da vontade divina e resistir lhe fôra para os seus crentes
-uma verdadeira impiedade. No mundo ethico, de uma phase já progressiva,
-a força é filha de Themis, encarnação da justiça e irmã da deusa da
-temperança. No mundo social rudimentar a força considera-se a primeira
-virtude do chefe; estabelece-se, como caracteristica ainda hoje, que
-a força e o costume regulavam a sociedade antiga e que as leis e os
-principios regulam a sociedade moderna, mas na essencia este progresso
-resulta sempre da interpretação multiforme da idea de força. Na região
-do amor o aguilhão genesico desperta o culto da força e do amor. Nas
-cosmogonias primitivas a força identifica-se com a virtude; outras
-vezes toma a forma dualista que n’uns phenomenos symbolisa o bem e
-n’outros o mal. A vida theogonica das primitivas religiões encerra-se
-n’esta formidavel lucta.
-
-Em toda a evolução religiosa a força recebeu culto da alma humana,
-diversamente symbolisado no feiticismo, no pantheismo, no polytheismo e
-no proprio monothesmo que faz da unidade a sua expressão.
-
-O systema do determinismo mecanista fundado na necessidade continua do
-movimento allia-se por um lado ao materialismo de Democrito e de Th.
-Hobbes, por outro ao pantheismo e idealismo, de Spinosa e de Leibnitz.
-Como se vê, esta concepção determinista é um dos aspectos menos
-elevados da metaphysica.
-
-Causa grande extranheza que penologos e philosophos positivistas
-alcunhem desdenhosamente de metaphysica a doutrina do _livre arbitrio_,
-quando esta doutrina é na philosophia moderna defendida pelos geniaes
-demolidores da metaphysica. Quem, fazendo a analyse profunda do
-entendimento humano, examinando com raciocinio subtil as condições
-do conhecimento, vendo por todos os aspectos a idea do absoluto,
-demonstrou a impossibilidade da metaphysica como sciencia? Foram Kant,
-W. Hamilton e Mansel, exactamente os grandes pensadores que, ao lado
-d’outros, defendem como realidade positiva e evidente a iniciativa
-propria ou livre arbitrio. Quaes são pois, os metaphysico-determinista
-por herança e por systema? São Augusto Comte e os criminalistas
-modernos. Dizemos por herança porque seguem evolutivamente os
-metaphysicos fatalistas, e por systema, porque são uns dogmatistas, que
-affirmam com o empirismo a fé no conhecimento objectivo das cousas sem
-fazerem previamente a analyse logica das condições possiveis do saber,
-dos seus lemites e do seu alcance. A esta analyse procederam Kant,
-o maior pensador dos tempos modernos, e os dois maiores logicos da
-Inglaterra W. Hamilton e o illustre Mansel.
-
-Augusto Comte affirmando que a metaphysica é uma chimera sem o
-demonstrar ontologica, nem logicamente, limitando-se a affirmar que os
-systemas existentes são contradictorios, o que não constitue argumento
-valioso, porque ha possibilidade de chegarem a um accordo, não póde
-de modo nenhum conceder-se-lhe as honras de eversor da metaphysica.
-Além de tudo faz liga intima com o materialismo, systema metaphysico,
-construindo uma ontologia _a posteriori_, baseada sobre as sciencias
-particulares. Não offerece duvida que o ensaio de synthese e de
-explicação universal das cousas tentado por Comte é uma metaphysica
-empirista tão illegitima em face da critica, como qualquer metaphysica
-racional. O verdadeiro e intrepido demolidor da metaphysica foi Manuel
-Kant, como diz Alfredo Weber.
-
-Kant demonstrou pela analyse da intelligencia na critica da _razão
-pura_ a impossibilidade de conhecer nada absolutamente e fundou a
-doutrina da relatividade do conhecimento ou relativismo subjectivo,
-hoje amplamente desenvolvida pelos logicos inglezes, e aproveitada pelo
-positivismo.
-
-A philosophia _neo kantiana_ defendendo a liberdade e a personalidade
-proclama todavia a unidade harmonica e systematica do mundo cosmico
-e da natureza moral. Esta doutrina tem sido avivada na Allemanha por
-Eugenio Dühring, Ernesto Laas, Kirchmann, Alberto Lange, em França por
-Ch. Renouvier, Scherer, Lachelier, Liard, etc.
-
-Ainda que Comte com o seu systema não fizesse mais, como sustentam
-alguns philosophos, do que um dogmatismo metaphysico, renunciando á
-critica, a nossa admiração pelo eminente pensador mantem-se intemerata
-e firme. Não deverão prestar-lhe a mesma homenagem os criminalistas
-contemporaneos, porque suppõem a metaphysica um monstro horrendo.
-Nós obedecendo á doutrina do _neo-criticismo_ julgamos as concepções
-metaphysicas extranhas ao dominio restricto da sciencia positiva,
-mas entendemos que a especulação na sua esphera de actividade se faz
-tão legitima, tão interessante e tão digna de ser cultivada como a
-concepção esthetica ou como a concepção religiosa. Não temos por ella
-nem odio, nem desprezo; pelo contrario, temos até veneração. A sciencia
-não deve fechar-se nos preconceitos de systema, procura a verdade pelos
-caminhos onde póde encontra-la.
-
-É á psychologia experimental e á observação positiva da consciencia,
-que os philosophos partidarios do livre arbitrio, vão procurar a idea
-da liberdade e os argumentos para a sua demonstração, em quanto os
-deterministas negam a liberdade, subordinando todos os phenomenos
-noologicos a systemas metaphysicos, quer da cosmologia racional,
-isto é, da materia, do movimento ou da força; quer da metaphysica
-do absoluto, ou da theologia racional, como muitos theologos tambem
-pensam. A doutrina da liberdade é scientifica, emquanto a concepção
-fatalista ou determinista é metaphysica.[13]
-
-Os escriptores criminalistas portuguezes confundem a liberdade absoluta
-com o livre arbitrio, a liberdade de indifferença com a verdadeira
-liberdade moral. Escreve o sr. Julio de Mattos:
-
-«Mas, para que as conclusões da nova escóla penetrem nos espiritos e
-fructifiquem praticamente, é indispensavel desfazer de uma vez para
-sempre a miragem da absoluta liberdade psychologica, diffundindo
-largamente a doutrina determinista. O livre arbitrio--eis o inimigo!
-Destruil-o, espurgal-o da consciencia, eliminal-o da educação, banil-o
-dos diccionarios, enterral-o fundo na historia dos erros humanos e
-pôr-lhe em cima uma lousa de esquecimento bem pezada e bem impenetravel
-é a primeira de todas as tarefas a cumprir para assegurar o exito de
-qualquer doutrina séria nos dominios assim da psychologia como das
-sciencias sociaes. Ora, o auctor tocou muito ao de leve este ponto
-capital sobre que, a meu vêr, deveria ter-se demorado, pondo em
-evidencia que a _noção da responsabilidade não se comprehende fóra da
-doutrina determinista_ e que a pena, applicada como meio de correcção,
-suppõe da parte do _criminoso a possibilidade de obedecer a motivos
-d’ordem moral, o que é contrario á idéa do livre arbitro_. A punição,
-como meio correctivo, só pode applicar se ao delinquente fortuito ou de
-occasião; imposta aos criminosos alienados é um não-senso.»
-
-N’este trecho faz-se necessario distinguir duas partes: a primeira é
-a declamação trivial contra o livre arbitrio, declamação impropria do
-talento do sr. Julio de Mattos. A doutrina do livre arbitrio em nenhum
-modo póde prejudicar a constituição da psychologia ou das sciencias
-sociaes. Suppondo, sem todavia o conceder, que esta doutrina seja uma
-ficção ou miragem, ainda assim ella torna-se inoffensiva sob o ponto de
-vista de que se trata, porque a conciliação da liberdade individual com
-a necessidade historica ou social é um facto demonstrado por diversos
-psychologos e sociologos. A segunda parte é a confusão inacceitavel da
-liberdade de indifferença, a que o sr. Julio de Mattos chama liberdade
-absoluta, com a doutrina do livre arbitrio, ou de posse de iniciativa
-propria e antecedida por motivos. Hoje nenhum partidario do livre
-arbitrio defende a liberdade de indifferença, porque essa doutrina
-importa a negação da propria liberdade. Se tal concepção philosophica
-tem partidarios, esses devem ser os fatalistas ou deterministas, unicos
-a quem aproveita.
-
-O que affirma a liberdade da indifferença? que a vontade actua sem
-motivos. Esta doutrina partilhada por Bossuet, Fenelon, Reid e
-Clarke, não conta proselytos nas escolas actuaes. O acto sem movel,
-sem causa antecedente a que se ligue, não é uma resolução, é um
-phenomeno reflexo ou instinctivo. Os que defendem a liberdade na
-psychologia moderna, sustentam que os motivos dirigem em todos os
-casos a vontade, que actuam em todo o phenomeno volitivo, mas não o
-determinam; a determinação em todas as resoluções depende da autonomia
-da consciencia. A intelligencia peza os moveis, analysa os motivos, mas
-só a vontade tem o poder inviolavel e discricionario de resolver-se.
-
-O determinista affirma, pelo contrario, que os motivos imperam
-fatalmente sobre a vontade, sendo o homem o escravo do motivo mais
-forte pelo que a resolução não existe. Logo o homem não é livre quando
-obedece ao dever e a bondade das acções conseguintemente reduz-se a
-um producto sem valor moral. N’esta hypothese a justiça arvora-se em
-vingança social.
-
-O sr. Julio de Mattos diz que «a noção de responsabilidade não
-se comprehende fóra da doutrina determinista» mas a verdade está
-exactamente no contrario. Para os deterministas a vontade é o effeito
-da causalidade personificada no motivo; por tanto o homem aqui não
-passa do joguete de forças extranhas.
-
-Na doutrina do livre arbitrio, a vontade constitue a causa unica das
-nossas acções. Os motivos são apenas a condição para o exercicio da
-causalidade.
-
-O mais simples e o mais commodo para os penologos revolucionarios,
-nas questões da base do direito de punir é julgar _a priori_ todos
-os delinquentes irresponsaveis em nome da negação do livre arbitrio,
-como diz com superior ironia e admiravel bom senso o dr. A. Riant[14]
-que possue além da auctoridade do seu talento e do seu saber, a de
-ser ao mesmo tempo um medico eminente e um jurisconsulto distincto.
-Parece extraordinario que a escola determinista, que deve acceitar como
-consequencia, logicamente necessaria, a irresponsabilidade, queira
-estabelecer cathegorias de irresponsaveis.
-
-O principio unico em que pode assentar a responsabilidade, moralidade e
-a justiça é o livre arbitrio; regeitada a doutrina do livre arbitrio ou
-da liberdade, todos estes sentimentos e todas estas ideas desapparecem,
-e subsiste, como unica base do direito repressivo não a justiça, mas
-a defeza social. Taes theorias já são um elemento perturbador na
-administração da justiça, porque o advogado rabula, sabendo que os
-codigos assentam sobre a responsabilidade, aproveita qualquer tara
-psychopatica do reu para lhe negar a imputabilidade.
-
-No prefacio escripto por Ch. Letourneau, na versão franceza do livro de
-Lombroso _O homem delinquente_, lê-se o seguinte:
-
-«Os nossos criminalistas _enragés_, os nossos legisladores
-inexperientes, para quem o castigo do criminoso é uma reprezalia, uma
-vingança social, todos esses espiritos acanhados e levianos, a quem
-se deve repetir sem cessar a expressão de Quételet--que a sociedade é
-quem prepara os crimes, todos esses pilotos cegos dos estados modernos,
-para quem o homem não é susceptivel de modificação, que no logar da
-utilidade social collocam a sentimentalidade e a rotina, poderiam vêr
-o que na penitenciaria de Neuchâtel se obtém pelo systema tão humano e
-tão scientifico de W. Crofton. Ali, em vez de considerarem o condemnado
-como um réprobo, applicam-se em despertar-lhe a esperança no coração,
-a provar-lhe que nenhum sentimento de colera, nem de odio, se nutre
-contra elle, a persuadil o, emfim, que elle é, n’uma larga acepção,
-o arbitro da sua sorte. Tratam-n’o, não como a um monstro que deve
-soffrer e expiar, mas como um doente, como um amigo transviado, a quem
-se busca chamar ao bom caminho. Instruem-n’o, educam-n’o moralmente,
-dão-lhe uma profissão, fazem-n’o passar gradualmente da prisão cellular
-á libertação condicional, com bemfazeja vigilancia. N’uma palavra,
-faz-se d’elle um homem. Ha apenas uma differença: é que para tal tarefa
-são indispensaveis philantropos esclarecidos, e é mais commodo ter
-apenas carcereiros.»[15]
-
-N’esta pequena amostra acotovelam-se as contradicções e evidenceia-se
-a ausencia de disciplina philosophica. Primeiro diz-se discipulo de
-Quételét e de Victor Hugo, asseverando que a sociedade prepara os
-crimes, e pouco depois affirma que o criminoso é n’uma ampla acepção
-o arbitro da sua sorte. A contradicção sobe de grau, sabendo-se que o
-dr. Letourneau professa o determinismo materialista, e n’este prefacio
-advoga um sentimentalismo quasi mystico em favor do delinquente.
-
-No seu livro _Physiologie des passions_, pag. 389, diz elle que é
-mister «bater em brecha a fortaleza gothica do livre arbitrio» e que
-a feição do caracter e a violencia das inclinações dependem só da
-organisação physiologica e do temperamento do individuo. Appella para
-a craniologia e despreza a observação scientifica; prefere a hypothese
-materialista á luz fiel da observação introspectiva e da experiencia.
-
-A solução do problema da liberdade está para os metaphysicos fatalistas
-subordinada a outras questões metaphysicas; assim o materialismo nega
-a liberdade em nome d’uma lei mecanica universal que rege igualmente
-o mundo cosmico e o mundo psychologico. Os que defendem a doutrina do
-livre arbitrio devem considerar suspeitas todas as escolas metaphysicas
-tendo o cuidado de encerrar as suas demonstrações dentro da sciencia
-positiva.
-
-O fatalismo chamado das _cousas occasionaes_ propagado por Mallebranche
-attribue a Deus a causa unica de todos os effeitos sendo os motivos
-somente as occasiões para a realisação da causalidade theologica. A
-intervenção de Deus é continua no exercicio da actividade psychologica
-sobre o organismo e d’este sobre os phenomenos de consciencia.
-
-Os fatalistas modernos apoiados na physica _a priori_ de Descartes,
-renovada e generalisada pelo principio da conservação da energia,
-hypothese hoje admittida no dominio das sciencias cosmologicas,
-proclamam um determinismo mecanico universal. O determinismo de
-Mallebranche inspira-se n’um principio providencial, em quanto o dos
-mecanistas n’uma força cega, occulta na substancia cosmica. O primeiro
-é mais elevado, mas as consequencias são em ambos igualmente funestas.
-
-A liberdade é o poder de querer actos motivados, encadeados ao estado
-presente do nosso entendimento e da nossa sensibilidade. Toda a
-resolução tem a sua causa em phenomenos que a precederam. A liberdade
-tendo todavia condições e possuindo graus d’ordem sensivel, mental e
-ethologica, permanece sempre a faculdade de praticar ou não praticar um
-acto e ainda depois de praticado fica a idéa da possibilidade em ter
-praticado o contrario. O caracter não explica absolutamente as acções,
-como pretende, por um circulo vicioso, o determinismo physiologico,
-porque a energia de vontade modifica e transforma a seu talante o
-proprio caracter, e até o meio social.
-
-O homem attribue á fatalidade os seus revezes e nunca lhe attribue
-a sua fortuna. Assim o criminoso, o negligente, o insufficiente de
-vontade desculpa o seu crime, a sua pobreza, a sua desgraça, com
-a fatalidade, a sorte ou o destino, emquanto o homem trabalhador,
-diligente e prospero attribue a sua fortuna, o seu bem estar social,
-á energia da sua vontade. A mulher que desceu á escravidão a mais
-aviltante, o homem que jaz no carcere expiando os seus crimes, quando
-interrogados respondem ambos, que foi a sua sorte. Ao contrario, o
-homem que de berço humilde sobe ás altas funcções sociaes, que da
-escassez chegou á riqueza, affirma que deve esse melhoramento de
-situação á constancia no trabalho e á rectidão do seu proceder que lhe
-grangeou honra, fazenda e credito. Póde pois dizer-se que o fatalismo
-vulgar é a trincheira covarde onde se escondem os ignorantes, os
-preguiçosos e os maus. Para as pessoas illustradas e boas o fatalismo
-philosophico é uma concepção theorica, que não influe nas relações da
-vida pratica. O procedimento d’esses sectarios está sempre d’accordo
-com a dignidade humana, sentimento que tem por base o livre arbitrio.
-
-O espirito possue a consciencia da sua força volitiva deante da
-influencia do meio e do incitamento do desejo; reconhece que da
-sua actividade e da sua liberdade resulta o altivo sentimento da
-sua personalidade. A crença na liberdade é para nós d’uma evidencia
-intuitiva no dominio da psychologia; só uma metaphysica bastarda poderá
-sophismar tão luminosa verdade. Sem o poder de iniciativa quanto ás
-proprias determinações o homem seria um automato cogitante e sensivel,
-igual em cathegoria ás alimarias, incapaz de merito ou demerito, e
-nivelaria a honestidade com a vileza. A ordem ethologica desappareceria
-e a ordem social seria defendida pela cega vingança. Não mais justiça;
-o louvor fôra tão digno como o vituperio; no pleito social venceria o
-mais forte.
-
-Quem consultar sem preconceitos metaphysicos a sua consciencia concebe
-por intuição a possibilidade de adoptar um motivo contrario áquelle que
-resolveu seguir, e que o poder d’esta determinação reside n’uma força
-irresistivel interna. É evidente que a determinação póde subsistir sem
-prejuizo de qualquer coacção externa em contrario.
-
-Alfredo Weber o distincto professor da universidade de Strasburgo, no
-prefacio da 4.ᵃ edição da sua _Historia da philosophia europea_, sem
-duvida a condensação mais limpida e mais brilhante que modernamente
-se tem feito da desenvolução do pensamento humano, escreveu: «Estamos
-persuadidos que o crer não é somente a essencia da alma, mas a essencia
-universal. A nossos olhos o monismo da vontade é o pensamento intimo
-de Kant, a linha de união da sua critica e da sua moral, o unico
-systema que possa explicar simultaneamente a natureza e o phenomeno
-moral, o unico emfim que possa satisfazer ao mesmo tempo o pensamento
-especulativo e o espirito de observação: porque a suprema necessidade
-da rasão é a _unidade_, e o unico caracter commum á materia e ao
-espirito, o unico denominador commum ao qual seja possivel reduzi-los,
-é o esforço, isto é a vontade. Um esforço de expansão, eis a materia,
-um esforço de concentração eis o espirito... Qualquer que seja a parte
-do anthropomorphismo no vocabulario da moral kantiana, é mister convir
-que esta forma é imperativa, que no fundo do nosso querer-viver ha como
-uma reservada esperança, e alem da nossa vontade individual como uma
-vontade mais elevada e mais excellente que tende para o ideal (_Wille
-zum Guten_).»
-
-É evidente que não acceitamos a vontade pura, de Schopenhauer,
-inspirada no buddhismo, um dos lados da sua metaphisica, mas acceitamos
-o outro aspecto porque elle considera a vontade, ligada ao phenomeno
-intellectual--é o livre arbitrio.
-
-O saber comprehende duas partes: uma regulada pelas leis da natureza
-que se desenvolve por evolução, em virtude d’um determinismo universal:
-a outra com a consciencia por ponto de partida, que architecta um
-universo segundo as suas formas e as suas leis. A primeira abrange o
-mundo material, a segunda refere-se ao mundo moral.
-
-Parece-nos que posta a questão em evidencia como a apresenta a
-philosophia neo-critica o problema da liberdade está resolvido
-triumphantemente em face da sciencia. Pode a metaphysica do
-determinismo monista reduzir o homem a um automato espiritual ou
-material que a psychologia considerada como sciencia positiva
-continuará a asseverar em nome da sciencia e dos seus direitos
-imprescriptiveis a autonomia da consciencia do _eu_ como centro commum
-de iniciativa, de acção e de potencia. Apresentado assim o problema
-dispensam-se os notaveis esforços de dialectica empregados por Alfredo
-Fouillée no intuito de conciliar o determinismo com a doutrina da
-liberdade, dois systemas contendores em cuja lucta recente elle vê já
-uma directriz para a convergencia.
-
-O que se faz mister é destruir a lenda dos criminalistas extranhos á
-alta cultura philosophica, os quaes propagam que o determinismo se
-inclue no saber positivo emquanto o livre arbitrio não passa d’uma
-concepção metaphysica.
-
-Nenhum dos argumentos apresentados em favor da liberdade moral
-tem o valor logico do que nos é dado pelo testemunho immediato da
-consciencia. Cada um de nós, ao consultar-se, sente-se livre, e
-este sentimento é inaccessivel a toda a duvida, porque a certeza da
-consciencia é absoluta. Quem delibera não assiste á lucta dos motivos
-como simples espectador, sente que a decisão final reside intemerata em
-seu poder.
-
-As leis sociaes seriam inuteis e absurdas se o homem carecesse da
-possibilidade de lhes obedecer; mas respondem os deterministas que
-as leis são tambem motivos influentes sobre a vontade humana pelo
-receio dos castigos. Todavia, esses mesmos castigos applicados em
-nome da justiça provam a liberdade. Onde estaria a justiça das penas
-inflingidas pelos tribunaes, se os reus não houvessem a faculdade de
-evitar o crime?
-
-Castigam-se os criminosos, respondem os deterministas, para correcção,
-intimidação e defeza. Mas se o accusado não fôr livre, a pena é iniqua,
-e a justiça quer que a pena seja merecida, e só n’este caso a sociedade
-está auctorisada a punir. A justiça assim satisfeita, corrige, intimida
-e defende simultaneamente a sociedade. Para os irresponsaveis não ha
-justiça, ha a protecção ao mesmo tempo defensora da sociedade ou póde
-haver a eliminação.
-
-O fundamento do direito de punir tem atravessado differentes phases
-na evolução juridica dos diversos povos. A vingança é um sentimento
-natural, instinctivo, nascido para nos fazer respeitar uns aos
-outros, e segundo lord Kaimes e Luden a sociedade quando pune não
-faz senão dirigir este instincto contra o verdadeiro culpado.
-Eis a primeira theoria--a da _vingança_.[16] Originariamente nas
-sociedades rudimentares assim foi, e confundem ainda hoje os
-criminalistas-utilitarios esta vingança, convertida em utilidade
-social, com o direito. Das theorias penaes baseadas no sentimento e não
-na idea de justiça dimanam as concepções da prevenção, da intimidação,
-da advertencia, da emenda do culpado, as quaes teem aspectos
-aproveitaveis para o melhoramento social, mas nenhuma d’ellas encerra
-o legitimo principio do direito de punir:--a remuneração da justiça.
-O principio do direito de punir não pode ser puramente correctivo ou
-preventivo. Escreveu Romagnosi, citado por Ortolan, «se depois do
-primeiro delicto houvesse a certeza que se não succedia nenhum outro a
-sociedade não teria nenhum direito de punir.»
-
-As desastrosas consequencias do materialismo determinista expulsam
-da sociedade o sentimento da justiça e substituem-no pelo principio
-da defeza social. O materialismo em psychologia nem chega a ser uma
-theoria, é uma deserção do criterio scientifico. Onde podia ter uma
-apparencia, ainda que grosseira, de systema scientifico, era no mundo
-biologico ora o grande mestre Claude Bernarde disse que «em physologia
-o materialismo não conduz a nada e nada explica.»[17]
-
-Julgar todos os delinquentes perigosos, supposto não culpados, e
-puni-los em nome da defeza social, é suspender as garantias individuaes
-e promulgar leis em nome da salvação publica.
-
-Quinet liga a idea de justiça ao sentimento de amor na sua
-desenvolução primordial, mas sustenta que até os ladrões teem um
-codigo de justiça distribuitiva para entre si e os selvagens outro que
-observam na tribu.
-
-A philosophia que identifica a virtude com a utilidade offerece a quem
-a pratica vantagens sociaes. O homem que não tem senão a apparencia
-da virtude sobrepuja externamente o que a pratica a serio. Quem uza
-alternadamente do verdadeiro e do falso segundo o interesse do momento
-vence o que emprega só o verdadeiro, porque tem dois caminhos abertos
-emquanto os outros estão confinados n’um.
-
-Mesquinha philosophia e desconsoladora moral que tem por unico movel a
-utilidade!
-
-Nem todas as violações moraes da lei do imperativo cathegorico podem
-ser incursas no direito penal positivo, porque a sua esphera é mais
-ampla e mais recondita, os codigos não a attingem.
-
-Escreveu um grande jurisconsulto: «quanto aos deveres para com
-os outros, a lei penal não deve, pelo mesmo principio, exigir
-imperativamente senão o cumprimento dos que são correlativos aos
-direitos, cuja protecção poderia legitimar o emprego da força. Fica
-pois por considerar se a violação d’um dever _exigivel_, quando ella
-não sahe dos limites do mal puramente moral, cahe sobre o imperio
-d’esta lei. É o mesmo que procurar, por outros termos, se o pensamento,
-se a resolução criminosa pode tornar-se o objecto da justiça humana.
-Porque a violação d’um dever exigivel não permanece encerrada nos
-limites do mal puramente moral, senão emquanto o projecto criminoso,
-não tendo sido seguido de nenhum acto material, não tenha ainda
-produzido soffrimento directo, clamor ou perigo. Ora, é evidente que em
-these geral nada poderia ainda legitimar o emprego da força contra uma
-perturbação qualquer trazida á ordem moral. Os individuos e a sociedade
-não tem ainda sido impedidos no exercicio dos seus direitos, no livre
-desenvolvimento da sua legitima actividade. A defeza não foi fundada
-para reagir contra o mal puramente moral: a justiça social não pode
-pois applicar-lhe o castigo[18].
-
-A liberdade moral não deve ser confundida com a liberdade juridica.
-Aquella é o poder que o homem tem de se determinar, emquanto esta é
-o direito de desenvolver as faculdades n’uma medida que não exclue
-o desenvolvimento da liberdade ou do direito de outrem. Os seus
-limites são a base e o objecto do direito considerado como a regra
-das relações sociaes. Em todos os casos porem a liberdade moral é uma
-condição essencial da existencia do direito[19]. Negar portanto o livre
-arbitrio é destruir o direito, é suprimir a justiça. Nenhuma sociedade
-civilisada podia assentar no determinismo mecanista de Democrito
-ou de Hobbes. Se esta theoria é hoje renovada pelos criminalistas
-revolucionarios, será por honra e fortuna da civilisação justamente
-posta de parte pelos jurisconsultos circumspectos.
-
-Como somos humilde discipulo da philosophia neo-critica e ardente
-e sincero adepto da grandiosa moral kantiana, julgamos util dar
-aqui a conhecer, ainda que summariamente, seguindo um seu illustre
-commentador, a solução original e profunda que o genial pensador deu
-ao problema da liberdade. Kant affirma o determinismo em nome da
-sciencia e proclama a liberdade em nome da moral. Por um lado Kant é
-determinista tão rigoroso como o proprio Leibnitz. Em nome do principio
-da causalidade affirma o encadeamento necessario de todos os phenomenos.
-
-Este determinismo absoluto é a condição da sciencia, a propria condição
-do pensamento. Mas por outro lado Kant é o mais puro e o mais sincero
-dos moralistas. Acceita a noção do dever, da moralidade em toda a sua
-plenitude. O dever, diz Kant, implica poder e é em nome do dever que
-affirma a liberdade. Como conciliar estas duas affirmações?
-
-Kant resolveu a difficuldade pela sua theoria do conhecimento.
-Distinguiu dois mundos, o mundo dos _phenomenos_, isto é, o mundo
-das apparencias sensiveis, que é objecto da sciencia, e o mundo dos
-_nomenos_, isto é, o das realidades absolutas, ou intelligiveis, onde a
-metaphysica tenta, mas em vão, fazer nos penetrar. A grande differença
-entre estes dois mundos, resulta do espaço e do tempo, que são a lei do
-mundo apparente ou sensivel e não a lei do mundo real ou intelligivel.
-O mundo sensivel é a apparencia que torna o mundo intelligivel
-projectado e refractado no espaço e no tempo. Como ha dois mundos, ha
-tambem duas especies de causalidades. Ha a causalidade empirica que se
-realisa no tempo e ha a causalidade intelligivel que se realisa fóra
-do tempo. A causalidade empirica é o determinismo. No tempo os factos
-são antecedentes e consequentes, succedem-se e determinam-se como os
-momentos do tempo. Mas onde se exerce a causalidade intelligivel,
-não ha antes nem depois, não ha antecedente nem consequente: esta
-causalidade é, pois, a propria liberdade.
-
-Assim se resolve a antinomia: o determinismo e a liberdade são
-verdadeiros um e outro, mas para dois mundos differentes: o
-determinismo é verdadeiro para o mundo sensivel para o homem phenomeno,
-a liberdade é verdadeira para o mundo intelligivel, para o homem
-_nomeno_.
-
-No absoluto a nossa vontade pronuncia um _fiat_ eterno e como tal
-livre, este _fiat_ faz-nos ser o que somos; constitue a nossa essencia,
-o nosso caracter _intelligivel_. D’este caracter _intelligivel_
-deriva o nosso caracter empirico que é a manifestação do primeiro na
-vida phenomenal, e que assignala com o seu cunho as nossas diversas
-acções. Tudo em nós resulta necessariamente d’estes dois factores.
-Tam grandiosa e profunda concepção satisfaz a razão especulativa e a
-consciencia moral; põe ao abrigo de todas as contingencias os direitos
-da sciencia, e os direitos da ethica[20]. Devia satisfazer a um tempo
-os partidarios do fatalismo e os do determinismo salvaguardando no
-entanto a liberdade. Os phenomenos do mundo cosmico podem ser, como
-pretendem os fatalistas, subjeitos a uma causa unica sobrenatural,
-ou como querem os deterministas, attribuidos a causas multiplas
-ou naturaes. Fatalistas, pantheistas e theistas, deterministas
-psychologicos e materialistas, todos deviam applaudir uma solução,
-que reconhece nas suas theorias uma parcella de verdade. Não acontece
-assim, todavia. O determinismo nos seus cambiantes continua affirmando
-que, o homem se resolve _sem motivos_, ou sem _vontade_, ou que a
-_vontade segue sempre o motivo mais forte_.
-
-Todos os argumentos do determinismo são já bem conhecidos:--do
-principio da causalidade e da analyse do acto volitivo, da estatistica
-e da theoria mecanica das relações da vida psychica com a physiologica.
-
-A asserção de que todo o phenomeno tem a mesma razão n’uma força, não
-é de modo nenhum incompativel com a liberdade; o acto livre tem por
-causa não só os motivos, mas ainda a vontade. Objectam que a vontade
-segue sempre o motivo mais forte, mas esse motivo não é mais forte por
-si mesmo, senão porque a nossa vontade o torna tal determinando-se por
-elle, e determinou-se por elle, porque o julgou melhor.
-
-O argumento da estatistica não tem valor, porque a estatistica só
-determina medias, devidas a causas geraes, e de modo algum os factos
-particulares ou individuaes. Nenhum demographo nos diz pelas suas leis
-que tal individuo em tal anno ha-de ser necessariamente homicida.
-
-A theoria da conservação da força, applicada aos seres vivos, não passa
-ainda d’uma hypothese. Todavia, é evidente que a vontade não cria os
-movimentos que imprime aos orgãos, mas quando é sã e energica, serve-se
-a seu talante das forças preexistentes. A liberdade fica sempre o poder
-de tomar a iniciativa da sua actividade.
-
-As escolas fatalistas não podem constituir a moral. Augusto Comte
-pretende na esteira do fatalismo metaphysico, com o altruismo,
-imagem truncada do sentimento do amor, architectar uma ethica para
-seu governo. O altruismo é uma tendencia irresistivel para outrem,
-considerado esse outrem como ponto de convergencia, e o egoismo é uma
-tendencia fatal para o _eu_ como centro. Na essencia o movel é sempre e
-absolutamente o interesse, ou do eu ou de outrem. Os inglezes reduzem
-justamente esta escola a uma variante da moral egoista. Que importa
-á consciencia que o desejo seja de expansão ou de concentração, se o
-impulso é sempre interesseiro? N’um e n’outro caso a lei do dever que é
-o distinctivo mais nobre da humanidade fica vergonhosamente esquecida.
-O positivismo, como temos visto, sempre que faz metaphysica tem o mau
-gosto de ligar-se por um lado ao fatalismo deprimente e por outro ao
-materialismo grosseiro.
-
-A moral é a sciencia que traça a linha directora do homem no
-cumprimento do dever. Todos reconhecem, de um modo intuitivo, que,
-quem nos esclarece na investigação ou na pratica dos actos moraes,
-é a consciencia. Ella o juiz seguro e o juiz unico que nos ensina a
-conhecer exactamente a natureza da acção e a intenção do seu auctor.
-A intenção, porém, que unicamente se limita a um simples desejo e que
-não é seguida de nenhum esforço para a execução, não chega a ser um
-acto moral. A intenção dá valor ethico ao acto, mas tambem o proprio
-acto serve para apreciar indirectamente a natureza e a sinceridade
-pura das intenções do agente. O methodo para estudar esta sciencia
-consiste em examinar qual a noção moral e quaes os resultados que a
-constituem. A consciencia moral, não a psychologica, é quem fornece á
-razão a concepção de uma lei que absolutamente devemos seguir. Se a lei
-moral se convertesse na applicação em alguma cousa de material teriamos
-necessidade de despi-la dos elementos exteriores, e mostrar que ella
-não se revela nunca em nós como um effeito, mas sim como antecedente.
-A lei moral é um principio noologico para elle proprio e parece ter um
-dominio transhumano.
-
-A lei do bem impõe-se absolutamente; quer o conteudo d’esse bem
-seja a paz da alma, o prazer sensivel, a utilidade, ella é sempre o
-centro organico de todos os nossos actos. Ninguem póde renunciar a
-este imperio universal; os proprios adversarios de Kant, que chamam
-ao imperativo, desdenhosamente, o _despotismo da regra_, não podem
-esquivar-lhe a sua consciencia.
-
-É preciso comprehender a moral formalista de Kant para pôr de accordo
-o seu dogmatismo pratico com o seu scepticismo especulativo. A
-moral formal não depende das condições da vida real e concreta das
-sociedades, assim como as mathematicas puras não dependem em nada das
-applicações ás sciencias experimentaes e ás artes bellas ou mecanicas.
-A moral, tal como Kant procurou estabelece-la, resume-se na idéa
-de uma vontade livre, cuja existencia intima não depende de nenhum
-movel empirico. Por isso tal concepção é apparentemente extranha a
-muitos espiritos e se acha affastada das idéas communs. Para Kant, a
-liberdade da vontade é uma autonomia que faz por si só a lei moral.
-Este caracter de independencia absoluta não póde encontrar-se senão
-n’uma lei formal, tomada esta palavra no sentido philosophico. Kant não
-procura a essencia do bem na ordem universal; é no facto subjectivo da
-obrigação que tem a sua origem objectiva. Uma cousa não é obrigatoria
-porque é boa, é boa porque é obrigatoria. A essencia do bem está _na
-conformidade d’uma vontade com uma lei que impera_. A necessidade
-d’esta lei é completa e absoluta e tem ao mesmo tempo um caracter ideal
-e real, racional e empirico, como as leis logicas e mathematicas.
-Ha por isso quem chame á ethica kantiana, a moral da mathematica. A
-obrigação moral é uma especie de necessidade, mas dizer que qualquer
-é obrigado a fazer uma cousa, não é dizer que qualquer é forçado a
-faze-la, porque a obrigação assim entendida excluia a liberdade e
-aniquilava a moral. O verdadeiro principio da ethica não póde ser
-um ideal de perfeição, mas um ideal formal que tem o seu fundamento
-no conjuncto das faculdades que constituem a natureza superior do
-homem e cuja realisação é independente da evolução da humanidade
-atravez das differentes phases da vida individual e social. A moral
-pratica que dá normas ás acções humanas é que varia com as diversas
-condições externas. A força e a firmeza da vontade, a clareza e o
-alinho do espirito imprimem cunho ao caracter moral, a paz e a pureza
-do coração são a saude da alma, a origem da felicidade. Muitas veem
-a ser as causas pathologicas que podem influir na determinação dos
-phenomenos volitivos, como o demonstra Ribot no seu interessante livro
-_Les maladies de la volonté_. É obvio que sem livre arbitrio não ha
-moralidade.
-
-A tendencia das paixões, muitas vezes, converte-se n’uma ideopathia,
-cuja força se traduz em actos de um caracter duplamente forte. É esta
-a feição de certos sentimentos--ir recto ao fim, e, á maneira das
-acções reflexas, ter uma adaptação em um unico sentido, unilateral, ao
-contrario da adaptação originada n’um principio racional, que é, na
-deliberação, multilateral.
-
-O dever é muitas vezes pela consciencia humana mal entendido, e a
-maneira de o entender varia com as condições mesologicas e com a
-ideosyncrasia individual. A obrigação moral póde ser vivamente sentida
-e muito mal entendida, facto que se observa a cada instante na vida
-historica da humanidade. Cada epoca da evolução humana apresenta uma
-série de factos que imprimem caracter, isto é, que são a expressão
-psychologica de um certo modo de sentir com côr propria e com tom
-particular, sem comtudo deixar de ser a mesma lei do dever que
-constantemente os inspira. Toda esta diversidade na historia do mundo
-moral é puramente externa; os phenomenos sociaes que principalmente
-influem sobre ella são a sympathia, a imitação, o contagio moral, a
-opinião, o costume, etc. É mister, na apreciação das acções moraes,
-distinguir duas cousas: 1.ᵃ a intenção com que nós praticamos o
-acto, 2.ᵃ o valor d’esse mesmo acto. Apreciar cada um a sua intenção
-é facilimo, porque é de uma clareza evidente. Não succede o mesmo
-com a apreciação do valor das acções sociaes que sendo difficil,
-é precisamente o que explica a variedade e o progresso da moral.
-A interpretação do bem e do mal no tempo e no espaço não é sempre
-identica, soffre profundas variações e differentes vicissitudes na
-evolução social, mas o que não soffre vicissitudes é a lei em virtude
-da qual a consciencia affirma a distincção entre as idéas do bem e do
-mal, á evidencia das quaes ninguem póde eximir-se.
-
-Perante a consciencia a idéa do bem garante-nos que a sua pratica é
-meritória, se é livre, independentemente das suas consequencias, porque
-a consciencia moral implica a idéa de uma lei e a obediencia livre
-a essa lei. Segundo Kant, o dever é um mandato que se nos apresenta
-imperioso sem que possamos perguntar-lhe pelos seus titulos e pela sua
-razão de ser. O seu valor intrinseco é para nós desconhecido.
-
---[21]Julgam os criminalistas italianos dever admittir a existencia
-d’um typo criminal; esta opinião é adoptada por um grande numero de
-criminalistas francezes. Segundo esta escola, distinguem-se claramente
-os criminosos, por seus caracteres physicos e psychicos, dos homens
-que pertencem ao mesmo meio e que vivem no mesmo tempo. Por esta arte,
-seria a maior parte dos criminosos fatalmente condemnada de nascimento,
-pela sua organisação physica e mental, ao latrocinio e ao assassinato,
-á violação ou ao incendio. O que são estes criminosos de nascimento?
-
-Serão loucos, por ventura, ou os representantes, no meio da civilisação
-actual, d’um estado social mais remoto, de costumes mais grosseiros
-e mais crueis? Estas duas theses já foram sustentadas, e até ambas o
-foram por Lombroso, o chefe da escola, que, depois de ter feito do
-criminoso um selvagem, foi levado a consideral-o como um alienado,
-como um louco moral, sem renunciar todavia completamente á opinião que
-abraçara o principio.
-
-Foi para reagir contra estas theorias que M. Tarde[22] escreveu e
-colligiu em volume ha tres annos, os seus brilhantes e profundos
-estudos. Sem rejeitar absolutamente a existencia d’um typo criminal,
-procurava demonstrar que este typo profissional e que os traços communs
-aos malfeitores se explicavam, na maior parte, pela communidade de seus
-costumes. M. Joly, tomando entre mãos e por sua conta esta these,
-percorreu cuidadosamente as estatisticas e os inqueritos officiaes,
-interrogou medicos, administradores e magistrados, conversou com os
-inspectores de policia e com os directores de prisão, consultou as
-melhores obras d’anthropologia criminal, e mercê a todos os factos que
-recolheu, analysou e classificou, fez dos criminosos um retrato que
-pouco se assemelha ao que delineou Lombroso.[23] Todavia os factos são
-os mesmos, mas vistos por outros olhos.
-
-Antes de procurar qual a interpretação que convem dar ao typo criminal,
-cumpre saber se ha realmente um typo criminal. Ora, é precisamente isso
-que parece contestavel. É de crer que a escola italiana haja ligado
-demasiada importancia aos caracteres physicos dos criminosos; porém
-estes caracteres não teem nem tanta constancia nem tanto valor como
-se imagina. As anomalias cranianas e cerebraes que foram verificadas
-nos criminosos são pelo menos tão frequentes nos homens de bem. Tem os
-primeiros os cerebros frequentemente asymetricos; a verdadeira razão
-d’isto é que os cerebros perfeitamente regulares são muito raros.
-
-Segundo os estudos de M. Bordier, resulta com effeito, que,
-ordinariamente, a curva frontal está reduzida nos craneos de
-assassinos, ao passo que a curva parietal antero-posterior se acha
-desenvolvida; mas d’esta estructura craneana só se deprehende que, para
-volume cerebral igual, ha uma certa inferioridade intellectual e uma
-certa exageração da actividade motora; o que é facil encontrar-se nos
-individuos que não praticaram crime algum nem teem tendencias para o
-praticar.
-
-Não podem entender-se os criminalistas ácerca dos traços distinctivos
-que attribuem aos criminosos: são de parecer alguns auctores que o
-criminoso é mais a miudo trigueiro que louro, mas estes auctores são
-italianos. A importancia que querem attribuir á grande frequencia da
-covinha media nos criminosos é muito diminuida pelo facto de se achar
-esta covinha nos judeus, e nos arabes, povos de criminalidade inferior
-com relação aos europeus, quatro vezes mais frequentemente do que nos
-não-criminosos. Não se póde, por outra parte, duvidar de que o genero
-de vida, a que se devem submetter os criminosos, exerça uma acção mais
-ou menos profunda sobre a sua organisação, por isso que muitos ladrões
-e até assassinos começam de muito novos a sua vida de aventureiros.
-
-É fóra de duvida que os criminosos teem uma physionomia adquirida;
-nem todos, aliás, teem esta physionomia, bem longe d’isso, e custaria
-muito constituir um typo unico a que se adaptassem igualmente os
-pick-pockets e os vagabundos, os fallidos, os moedeiros falsos e os
-assassinos de profissão. De resto, todos os que se teem occupado dos
-presos de pouca edade, M. Roukavichnikoff, por exemplo, teem ficado
-espantados da rapidez com que a sua expressão habitual se modifica,
-quando os collocam n’um meio differente d’aquelle em que até ali tinham
-vivido. O criminoso preso não se parece com o criminoso livre; tem uma
-physionomia muito caracteristica, que perde ao deixar a prisão, e é
-nos presos, não se deve esquecer, que foram feitas, na maior parte,
-as observações dos criminalistas. Parece pois prematuro, pelo menos,
-falar d’um typo criminal hereditario: os caracteres anatomicos dos
-criminosos, aquelles mesmos que parecem mais salientes (as orelhas
-volumosas, em fórma de azelhas, a barba rara, o prognatismo, o
-desenvolvimento exagerado dos queixos) não lhes são particulares.
-
-Terão, pelo menos, os criminosos, caracteres psychicos que os
-separem claramente dos outros homens? É tambem com a negativa que
-responde M. Joly. Ficamos perplexos quando, depois de ter lido os
-conscienciosos e profundos capitulos, que este escriptor consagrou á
-imaginação, intelligencia, sensibilidade, vontade e sentimentos moraes
-dos criminosos, perguntamos a nós mesmos se ha motivos para dar um
-logar á parte, á psychologia do criminoso, ao lado da psychologia do
-selvagem e da creança. Não se deprehende que os criminosos formem,
-como os alienados, uma familia natural; por mais sensivel que seja
-a differença entre um maniaco e um degenerado ou um melancolico, ha
-porém entre todos os loucos similhanças de tal fórma, que se poderia
-quasi constituir, ao lado da psychologia geral normal, uma psychologia
-morbida geral.
-
-As dissimilhanças, pelo contrario, são extremas, sob o ponto de vista
-psychologico, entre os criminosos e talvez fosse necessario reconhecer
-que o termo «crime» só tem uma significação social e moral. Se achamos
-symptomas de alienação mental n’um contemporaneo de Alcibiades, podemos
-affirmar que era louco; não podemos no entanto tratar de criminoso
-um Grego da mesma epoca por ter praticado actos que as nossas leis
-qualificam de crimes. Estamos no direito de inferir a existencia d’um
-mesmo estado mental em dois alienados, se estiverem sob o domínio
-de obsessões d’um caracter identico, por termos observado que estas
-obsessões são os symptomas d’uma doença que segue um andamento regular
-e que está ligada a perturbações psychicas determinadas.
-
-Mas que ha de commum entre o operario que alterca com o seu collega
-n’uma taberna, e entre o ladrão que assassina o homem que despoja
-para o impedir de gritar, e o marido que mata a mulher por ciumes ou
-pelo respeito á sua honra? O acto exterior é identico, os motivos que
-determinaram este acto são absolutamente differentes d’um homem para
-outro. Serão iguaes as razões que determinam ao roubo todos os ladrões?
-Não terá sido antes, para este, o mau exemplo que o impellisse, ao
-passo que para est’outro influisse a preguiça, e para aquelle o desejo
-de satisfazer ás exigencias d’uma amante? Existem outras semelhanças
-a não serem exteriores e grosseiras entre o especulador velhaco e o
-regateiro ladrão?
-
-Os actos d’um alienado, seja qual fôr o meio em que viva este alienado,
-teem um caracter muito pronunciado que permitte distingui-los dos actos
-d’um homem de juizo são; mas não podemos ajuizar se um acto é criminoso
-ou não, a não ser que conheçamos ao mesmo tempo o meio social a que
-pertence o auctor do acto e os motivos que o levaram a pratica-lo.
-
-Cumpre pois, a nosso vêr, não fallar em criminoso: é um ente de razão,
-uma entidade abstracta. Ha um grande numero de alienados entre os
-criminosos; mas a psychologia dos alienados criminosos é a mesma que a
-dos outros alienados: o degenerado que tem impulso para o assassinato
-ou para a violação não se differença em nada do onamatomano ou do
-dipsomano; um epileptico não merece por modo algum ser separado dos
-outros epilepticos por ter morto a sua mãe com um machado, e um idiota
-não deixa de ser idiota por ter deitado fogo, para se divertir, a uma
-meda de feno.
-
-Quanto aos criminosos que não são enfermos, poucas particularidades
-apresentam a sua intelligencia e a sua sensibilidade, que se não possam
-facilmente explicar pelo genero de vida a que a maior parte d’elles se
-entregam. A difficuldade de admittir um typo criminal congenito é tanto
-maior quanto não ha nada que prove nos factos escolhidos por Lombroso
-e sua escola, que esse typo seja hereditario; ha poucas familias de
-criminosos, e são causas sociaes e não psychologicas as que produziram
-as raras «dynastias» de assassinos que teem havido occasião de
-observar. A intelligencia dos criminosos de profissão é ordinariamente
-pouco desenvolvida; não devemos deixarmo-nos illudir pelo engenho
-muitas vezes maravilhoso com que combinam e executam os «lances» que
-projectam, e pela manha que empregam para se subtrahirem ás pesquisas
-da policia. Em geral, os malfeitores só teem um numero de idéas muito
-restricto; estas idéas occupam constantemente o seu espirito, todos os
-esforços da sua intelligencia convergem para essas idéas; fóra d’este
-circulo limitado de preoccupações, são quasi sempre de espirito tardo e
-mediocre; excessivamente rotineiros, teem uma certa tendencia para se
-servirem indefinidamente dos mesmos meios. Cada ladrão acostuma-se aos
-processos que escolhe e deshabitua-se de todos os outros.
-
-«O conjuncto das astucias de todos os ladrões reunidos é uma cousa
-prodigiosa, como o conjuncto das astucias dos animaes; mas na
-realidade, cada um só emprega uma»[24] de resto, se estas astucias
-são a miudo frustradas, é porque geralmente, os criminosos carecem
-de sequencia nas idéas; cançam-se depressa, teem confiança no acaso,
-acreditam estupidamente na fatalidade, apressam-se em tirar proveito do
-crime que commetteram; e tal é a sede de gozos que os aperta, que para
-satisfazerem os seus appetites breve chegam a descurar toda a sorte
-de precauções. As mais das vezes a imaginação dos criminosos é muito
-mediocre.
-
-Se as imagens que os perseguem de vez em quando e os arrastam ao
-crime teem uma intensidade tão forte, é mesmo por causa da pobreza,
-da esterilidade da sua imaginação: toda a imagem, isolada, adquire um
-poder extremo. A litteratura e a arte dos criminosos nenhum caracter
-especial apresentam: se o ladrão ou o assassino ignorante compõe ás
-vezes versos, é porque é «povo»,[25] porque a situação d’elle o torna
-scismador, porque tem ocios que é forçoso encher. A tatuagem não é
-unicamente costume dos criminosos; é um facto de sobrevivencia, um
-costume que persistiu muito tempo nas classes inferiores e que se vae
-apagando: as meretrizes, os marinheiros, alguns operarios, pintam-se
-como os criminosos. «Se os criminosos se distinguem dos homens do povo
-não é pelo amor aos letreiros, ás imagens, ás tatuagens e á linguagem
-da imaginação: é pela natureza das cousas que gostam desenhar, de
-recordar e de exprimir.»[26]
-
-A sensibilidade physica dos malfeitores não parece ser tão
-profundamente alterada como o sustenta a escola italiana: convem,
-talvez, deixar uma boa parte á simulação. Nada ha menos demonstrativo
-do que a approximação que faz Lombroso do criminoso e do selvagem,
-tanto mais quanto que parece que se exagerou demasiadamente a
-insensibilidade dos proprios selvagens. Encontram-se factos
-interessantes a este respeito nas _Cartas edificantes e curiosas_. Toda
-a sensibilidade dos criminosos está pervertida e enferma, eis toda a
-verdade; a vida irrequieta que levam, a ociosidade, a depravação, e
-principalmente a depravação contra a natureza, tão frequentes entre
-elles, os excessos alcoolicos, são motivos sufficientes para isso. O
-carcere tem quasi sempre sobre elles uma acção calmante e deprimente
-ao mesmo tempo; a sua sensibilidade aquieta-se e adormece. Chegam,
-gradualmente, a uma indifferença profunda, a um verdadeiro horror da
-acção e da lucta que faz com que muitos d’elles encarem com terror o
-momento de deixar a prisão. A vontade dos criminosos enfraquece-se
-e exalta-se ao mesmo tempo, é o resultado necessario dos actos que
-praticam e dos costumes que contrahem fatalmente; mas a sua vontade
-nem por isso deixa de ser uma vontade normal. Os desejos que impellem
-para o crime os malfeitores nada teem de commum com os impulsos
-irresistiveis dos epilepticos e dos degenerados. Nem tão pouco devemos
-considerar os criminosos como uns «abulicos», isto é como joguetes
-irresponsaveis e semi-inconscientes das circumstancias em que o
-acaso os collocou. O que é certo é que a sua vontade em geral nem é
-aniquilada nem fortificada pela vida que levam; torna-se desigual
-e caprichosa, ora desfallecida ora arrebatada. Porém, com o tempo,
-enfraquece; gasto pela existencia aventureira a que está condemnado,
-o criminoso já nem força tem para querer o crime, não podendo pois
-commetter crimes, desforra-se em commetter delictos.
-
-O sentimento moral não desappareceu, na maior parte dos criminosos, e
-quero aqui falar dos criminosos de profissão; raras vezes se deixa de
-encontrar consciencia alguma da culpabilidade dos actos que praticaram.
-
-Os accusados que mostram esse cynismo e essa impassibilidade que nos
-espanta por vezes nos interrogatorios, são quasi sempre individuos
-feridos de debilidade mental ou degenerados.
-
-A maior parte dos criminosos «seduziram-se» a si proprios para
-se arrastarem ao crime; tiveram que sustentar verdadeiras luctas
-interiores. Os malfeitores ainda novos tratam de justificar os seus
-actos com arrazoados declamatorios contra a sociedade; os presos velhos
-não gostam de fallar no que teem feito.
-
-Raro é que os criminosos não se perturbem deante da morte e que não
-manifestem nos derradeiros momentos sentimentos de arrependimento e de
-fé religiosa: quasi todos accolhem com prazer as visitas do capellão.
-É verdade que é preciso deixar uma boa parte á hypocrisia e ás crenças
-supersticiosas; mas o que não é menos certo é que observadores, poucos
-dispostos a illudir-se, ficaram muitas vezes assombrados da fé sincera
-que parecia acordar no coração de certos malfeitores no fim de seus
-dias. Não tem isto nada que admirar.
-
-No silencio da prisão, calam-se as paixões, e os que nada já tem que
-temer ou que esperar da vida podem frequentemente voltar inconscientes
-ás crenças que a educação lhe tinha dado; podem ouvir, no mais
-recondito do peito, como que um echo enfraquecido d’estes sentimentos
-moraes e sociaes que lentamente se formavam na especie com o andar da
-evolução.
-
-Não são geralmente sem duvida motivos desinteressados que os inclinam
-para o arrependimento, mas convém que sejamos menos exigente que M.
-Despine: não nos causa admiração o não achar-se nos criminosos esse
-puro respeito do dever que o proprio Kant considerava superior á
-natureza humana.
-
-Não é necessario reflectir muito para ver a differença extrema que
-existe entre este estado de espirito e o dos alienados criminosos; não
-parece possivel a confusão, a não ser entre alguns debeis e certos
-criminosos, muito ignorantes, inintelligentes e grosseiros.
-
-Segundo as estatisticas, as mulheres commettem em proporção muito
-menos crimes do que os homens; mas essas estatisticas precisam muito
-de ser interpretadas. Um grande numero de crimes ha que as mulheres
-não teem occasião nem força de commetter, e quando se tracta de actos
-ao seu alcance, as proporções mudam logo; sobre 100 envenenamentos,
-ha 70 commettidos por mulheres. De resto, ellas são com frequencia
-as instigadoras, as cumplices secretas de crimes que não querem
-executar ellas mesmas. A sua consciencia se perverte mais completa e
-rapidamente; são mais capazes que o homem de actos de crueza fria e
-reflectida. Ora hypocritas, ora ousadas e cynicas, gostam de mentir e
-de enganar; menos capazes do que o homem de verdadeiro arrependimento,
-são mais estreitamente do que elle aferradas ás practicas
-supersticiosas. É muito difficil de as fazer voltar para o caminho
-recto depois de se terem transviado. Não nos devemos admirar d’isso;
-emquanto a sua sensibilidade seja instavel, a mulher é tyrannicamente
-subjugada pelos seus habitos; as idéas, as razões teem pouca influencia
-sobre ellas; a vida da prisão, silenciosa e regular, custa-lhe mais a
-supportar que ao homem; não póde prescindir de sympathia e de ternura á
-roda d’ella; depressa se corrompe quando não se sente amada.
-
-É evidente que, se o typo criminal não existe, a questão de saber se
-esse typo é anastral não se póde formular. Mas M. Joly vae mais além,
-quando affirma que, admittindo a hypothese da existencia d’um typo
-criminal, é impossivel explical-a pelo atavismo. O criminoso não se
-parece com o selvagem, apezar das affirmações da escola italiana; o
-roubo dos moveis é castigado com rigor nos povos primitivos; todos
-sabem que castigos terriveis attrahe sobre si o culpado de violação das
-prescripções religiosas; ha para os casamentos, para todos os actos
-de vida regras precisas ás quaes é obrigatorio submetter-se e que de
-facto, raras vezes são violadas. Os proprios australios, segundo o
-testemunho de Perron d’Arc, sabem distinguir entre uma vingança justa e
-em acto de brutalidade; o rapto, o adulterio, o incesto, as offensas a
-um chefe são castigadas com a morte.[27]
-
-Na realidade, muitas ideas que, lentamente se foram deslindando, estão
-ainda confusos na mente d’uns selvagens: a idéa do peccado, a idéa
-do crime e a do prejuizo praticado contra alguem, estão estreitamente
-ligadas; foi preciso uma longa evolução social para permittir ao
-direito criminal constituir-se separadamente do direito civil e da lei
-religiosa. O que, em summa, faz falta ao selvagem, é a noção juridica
-do crime; e não devemos ficar muito surprehendidos com isso.
-
-Tratou-se de explicar o crime por uma falta de adaptação mutua do
-criminoso e da sociedade; mas isso não é mais do que uma definição
-do crime, ou melhor, a constatação d’um facto, todavia não é uma
-explicação. O que seria preciso explicar é porque o criminoso é incapaz
-de se adaptar ao meio social em que vive. Ha para isso duas especies
-de causas: causas sociaes e causas individuaes. As causas sociaes são
-as que M. Joly se propõe estudar detidamente no seu proximo volume.
-As causas individuaes são os appetites, os desejos, as maneiras de
-sentir e de querer, em summa, todo o caracter do criminoso; o crime é
-o resultado d’um conflicto entre uma sociedade que está submettida a
-certas regras e um homem que não póde ou não quer, em conformidade com
-a structura do seu caracter, sujeitar-se a observal-as.
-
-Todas as vezes que o conflicto se torna agudo e que o individuo
-está resolvido a praticar actos de certa gravidade, estes actos são
-qualificados de crimes; mas uma grande serie de actos cabem entre
-actos socialmente bons e os crimes; não ha fronteira alguma social
-que separe os crimes e os delictos das faltas contra a honra ou a
-delicadeza, a distincção é uma distincção juridica, imposta pelas
-necessidades practicas. O limite entre os crimes e os actos que a
-justiça deixa impunes é um limite arbitrario; varia d’uma legislação
-para outra. O criminoso é um homem como os mais; mas tem paixões muito
-fortes, não sabe resistir-lhes nem satisfazel-as por meios legaes; não
-tem a coragem de se resignar nem a de trabalhar e luctar, quer gozar,
-mas sem esforços, quer por fraude, quer pela força, apoderar-se-ha
-do que deseja. Talvez achasse meio, em outra sociedade, de empregar
-utilmente a fórma de actividade que possue; mas prefere resignar-se ao
-crime, que sujeitar-se a um officio que o aborrece. Cumpre notar que é
-principalmente do verdadeiro criminoso, do criminoso de profissão que
-se trata aqui, mas não serão tambem criminosos, criminosos incompletos,
-bem entendido, os negociantes pouco escrupulosos, os jornalistas mal
-reputados, os seductores de meninas, os operarios ebrios e brigões,
-promptos a fazerem uso da faca? O criminoso é essencialmente um
-preguiçoso, mas é um preguiçoso dotado por vezes de alguma energia; se
-não tiver essa energia de curta duração, se tiver paixões menos vivas
-e alguns escrupulos ainda, o preguiçoso sem dinheiro é incapaz de o
-ganhar, ficará sendo toda a vida um vagabundo sem se tornar jámais
-um criminoso, é sobre tudo entre os vagabundos que se recrutam os
-criminosos de profissão, mas a vagabundagem está longe de conduzir ao
-crime. «O crime do homem póde começar pela vagabundagem da creança,
-como tambem póde principiar pela falta de delicadeza, pela intriga,
-pela immoralidade elegante, pelo espirito de lucro. Nada prova que
-d’ahi resulte inevitavel e necessariamente.»[28] A prostituição da
-mulher corresponde á vagabundagem do homem: da mesma fórma essa não
-constitue por si mesma crime nem delicto, como tão pouco conduz
-necessariamente ao crime, ha meretrizes muito probas, muito capazes
-de conceber amizades desinteressadas, muito affectuosas para com seus
-filhos, muito sinceras; ha até varias que conservaram sentimentos
-religiosos, mas todavia é no mundo das prostitutas que se recrutam
-a maioria das ladras. A vida que levam predispõe as ao crime, mas
-está bem longe de as condemnar necessariamente a isso; para a maior
-parte d’ellas, o seu officio é um officio verdadeiro que exercem com
-probidade; não fallam das ladras senão com desprezo, e das más mães com
-uma especie de horror.
-
-As classes criminosas não teem maior estabilidade do que as outras;
-renovam-se incessantemente; ha poucas familias de malfeitores. Apenas
-existe uma classe, para dizermos a verdade, que é este montão instavel
-de seres cahidos; mil motivos diversos dão origem aos criminosos, por
-isso é que ha muitos typos de criminosos, muito distinctos entre si;
-as unicas semelhanças são semelhanças exteriores que teem as suas
-causas no mesmo genero de vida e costumes communs. Eis os typos que M.
-Joly julgou dever distinguir: os inertes, os violentos, os viciosos,
-os calculadores ferozes; facilmente achariamos na vida ordinaria quem
-lhes fique parallelo. Mas a distincção que domina todas as mais é a do
-criminoso por accidente e a do criminoso por habito. Entre os crimes,
-ha alguns que são verdadeiros accidentes; os que os praticaram apenas
-são responsaveis, o acto que commetteram lhes é decerto modo extranho;
-convem necessariamente castiga-los, elles não tornarão a fazer o mesmo,
-tem-se a certeza d’isso antecipadamente. Mas em compensação, quantos
-crimes ha que parecem ser accidentaes, e que foram preparados por toda
-a vida anterior pelos que d’elles se tornaram culpaveis. Um crime póde
-não ser premeditado, não ter sido desejado sem deixar por isso de
-ser a obra verdadeira d’aquelle que o praticou. O accidente acontece
-quasi sempre áquelle que se expoz para succumbir, que não tratou de
-fugir ás tentações demasiado fortes; semelhante acto é o producto
-d’uma vontade, mas d’uma vontade que se abandona. Para um homem
-accidentalmente culpavel, o verdadeiro perigo, é que o seu crime fique
-impune; o medo do castigo se embota, o remorso do crime se acalma,
-o culpado é orgulhoso da sua habilidade, acostuma-se a contar com o
-acaso como um jogador que começou por ganhar. Pouco a pouco deixa-se
-arrastar a um novo crime. Se se deixar então prender, se fôr condemnado
-a prisão, o contacto com os presos, as horas pesadas e vazias que passa
-nos dormitorios e nos pateos, acabam a obra que a vida de aventuras
-começou, a vida inquieta e perturbada que levou por muito tempo.
-A situação difficil que é propria do homem livre, lhe torna quasi
-impossivel voltar para o seu officio, a não ser que tenha uma rara
-energia; um unico officio fica aberto deante d’elle o de malfeitor: o
-criminoso de costume, tornou-se criminoso de profissão.
-
-O que estabelece uma linha de separação bem clara entre os criminosos e
-alienados, é precisamente que, para um grande numero de criminosos, o
-roubo é uma profissão; é um officio de que vivem. Isolado, o criminoso
-não póde senão com custo exercer a sua industria, precisa forçosamente
-cumplices. Parece, segundo as estatisticas que as associações
-criminosas se tenham tornado muito mais raras do que out’ora; mas é
-uma pura apparencia; o Estado mais perfeitamente armado, a policia
-melhor organisada, as communicações mais faceis e rapidas tornaram mais
-difficil a formação de quadrilhas regulares, de associações submettidas
-a um chefe; mas contrariamente ás affirmações dos relatorios officiaes,
-o espirito de associação dos malfeitores não tem diminuido; não ha
-ladrão sem encobridor; os malfeitores precisam ser informados dos
-ataques que podem realisar, é necessario que os indicadores preparem
-o terreno, «alimentem o negocio» antes de se atreverem a tentar. Uns
-são muito habeis na execução d’um plano que não saberiam imaginar;
-outros carecem da força e da destreza que se precisam para executar os
-planos que elles proprios traçaram; d’ahi resulta uma divisão natural
-do trabalho. Ha certas especies de delictos e de crimes que só se podem
-commetter com gente bastante. Para pôr em circulação a moeda falsa,
-é preciso serem tres pelo menos, um fabricante e dois emissores; é
-a forma mais habitual da associação criminosa: Ha trios de ladrões
-á roleta e de salteadores de casas, como os ha tambem de moedeiros
-falsos. O trio geralmente forma-se entre vadios, os frequentadores de
-bailes publicos, dos botequins baratos, de casas mobiladas suspeitas, e
-das tabernas pobres; durante o verão, é vadiando nos parques, ao longo
-do caes, ou sentado nos bancos dos passeios exteriores que o ladrão
-tem a probabilidade de encontrar socios. Estas associações fazem-se e
-desfazem-se facilmente; são frequentes vezes ligadas umas ás outras
-por laços mais ou menos estreitos. É nas prisões que estes laços se
-apertam ainda mais, que os bandos tomam uma organisação mais forte; os
-roubos bem feitos são os que se meditam na prisão. Todos os presos se
-conhecem, quando estão em liberdade sabem encontrar-se.
-
-Uma fórma de associação ainda mais geral, é a da meretriz e do seu
-rufião. A burla é n’esse meio a fórma de expoliação que está mais
-em voga; é principalmente no mundo da prostituição anti-physica que
-grassa, e ahi o rufião é quasi sempre um assassino. Ao lado d’estas
-associações restrictas começam a organisar se vastas associações
-internacionaes que estão destinadas, se a repressão se descuida, a
-estenderem-se sobre o mundo inteiro: M. Joly dá interessantissimos
-exemplos d’este facto que lhe foram fornecidos pelo serviço policial.
-
-Tal é, em resumo, a ideia que se póde fazer dos criminosos, segundo o
-livro de M. Joly. Não estamos muito longe de compartilhar esta ideia;
-parece-nos porém que M. Joly não determinou com exactidão as relações
-que existem entre o crime e a alienação mental. Não ha duvida que o
-criminoso e o alienado sejam muito differentes um do outro; mas existe,
-entre os reus que os tribunaes condemnam, uma proporção mais importante
-de alienados do que julga M. Joly, e se tomasse conta dos absolvidos
-por incompetencia do tribunal e por falta de provas, ver-se-hia que
-n’uma grande parte os crimes contra as pessoas, e sobre tudo os crimes
-sexuaes são commettidos por irresponsaveis. Os idiotas, os imbecis,
-os debeis, os degenerados, os epilepticos, os delirantes chronicos
-podem em certas occasiões tornar-se todos criminosos em razão das
-perturbações psychicas que apresentam; esta occasião apresenta-se-lhes
-com frequencia e em geral sabem aproveital-a. Os paralyticos geraes
-povoam os tribunaes correccionaes, e muitos negocios de «chantage»
-não teem outra origem senão as concepções delirantes d’um degenerado
-perseguidor. A loucura não é desgraçadamente uma doença rara, e
-não admira que seja entre os seres cuja vontade está enferma, a
-sensibilidade pervertida e a imaginação exaltada, que os criminosos se
-recrutem mais facilmente.
-
-
-NOTAS DE RODAPÉ:
-
-[13] É para notar como os poucos escriptores que recentemente em
-Portugal teem tratado de criminologia se revellam todos contra a idea
-da liberdade individual, dizendo-se positivistas e enfileirando-se
-confusamente na escola metaphysica do determinismo materialista.
-Vejam-se as obras dos srs. A. Azevedo Castello Branco, Julio de Mattos,
-e até certo ponto ainda os trabalhos dos srs. Bernardo Lucas e dr.
-Basilio Freire.
-
-[14] _Les irresponsables devant la justice_, par A. Riant, Docteur en
-médecine, licencié en droit, lauriat de la Faculté de droit de Paris,
-ancien secrétaire de la Société de Médecine legale de France, etc.
-
-[15] Este trecho já serviu de argumento sentimental a um illustre
-jornalista portuguez.
-
-[16] _Élements du droit pénal_, pag. 80 par M. Ortolan.
-
-[17] Cl. Bernard, _La science experimentale_, Physologie du coeur, pag.
-361.
-
-[18] _Tratado do Direito Penal_, por P. Rossi. Pag. 260-261.
-
-[19] _L’ordre social et l’ordre moral_ por A. Bertauld, pag. 18.
-
-[20] Elie Rabier, op. cit.
-
-[21] O trecho que segue é devido á penna de L. Marillier, publicado em
-artigo na _Revue Scientifique_. n.ᵒ 16, de 1889.
-
-[22] J. Tarde, _La criminalité comparée_, 1886.
-
-[23] H. Joly, _Le crime_, étude sociale, 1888.
-
-[24] _Le crime_, pag. 171.
-
-[25] _Le crime_, pag. 177.
-
-[26] _Le crime_, pag. 188.
-
-[27] _Le crime_, pag. 13.
-
-[28] _Le crime_, pag. 42.
-
-
-
-
-III
-
- A base do direito de punir. O papel da psychopathia na
- responsabilidade legal. O fanatismo, a suggestão hypnotica e a pena
- capital. A influencia legitima da consciencia moral em direito penal.
-
- Les crimes purement moreaux, et qui ne laissent aucune prise à la
- justice humaine, sont les plus infâmes.
-
- H. BALZAC.
-
-
-O direito ideal com o seu caracter de inviolavel, de absoluto, de
-universal, não póde ter por principio o _desejo_ de Helvetius, a
-_necessidade_ de Tracy, a _força_ de Hobbes, ou a _utilidade social_
-de Spinosa, o unico fundamento legitimo do direito é a liberdade ou
-a _autonomia da pessoa_, segundo a expressão de Kant: «O dever e o
-direito são irmãos, diz Victor Cousin, a sua mãe commum é a liberdade.»
-
-O direito penal classico estudou perante a psychologia normal e perante
-a ethica a base do direito de punir, com muito mais profundidade e
-alteza de vistas, do que as escolas revolucionarias contemporaneas.
-Tissot e Romagnosi fizeram a analyse completa das condições
-indispensaveis sobre que assenta o direito de repressão. É preciso
-reconhecer todavia que ha uma porção de verdade em todas as opiniões,
-pois que elles teem todas uma certa razão de ser, quer em nossos
-instinctos apaixonados, quer na nossa consciencia. «Assim,[29] em
-nome dos principios precedentemente estabelecidos podemos dizer com
-verdade que ao homem não toca mais o _dever de punir para punir_, do
-que missão e meios de manter a ordem absoluta do mundo moral; tão pouco
-lhe toca o _direito de punir para punir_ ou com o fim de restabelecer
-embora a ordem juridica, e só pela consideração da necessidade moral,
-ou d’essa ordem em si; mas tem o direito de _punir para se defender_ ou
-no interesse da sua conservação. A sociedade investida, no interesse
-geral, do exercicio d’este direito, vendo, aliás, na lesão praticada
-em um dos seus membros um perigo e uma ameaça para todos os outros,
-com razão se preoccupa pelo futuro, e procura prevenir, com uma pena
-aliás justa a repetição da injustiça. O direito de defesa não se
-applica (sómente) ao individuo desarmado, preso, algemado e desde
-então impotente; o direito da defesa applica-se ao futuro, applica-se
-á intimidação, e quando a sociedade fere para se defender, é menos
-para se defender contra aquelle a quem fere, do que para se defender
-contra a repetição, contra a renovação dos crimes que ella prescreveu
-e puniu.[30] Ninguem contesta o direito de defesa; negá-lo seria negar
-o direito de existir. E como se reconheceria por isso mesmo o direito
-de vida e de morte a uns homens sobre outros homens, seria faltar ao
-mesmo tempo á justiça e á logica. Fica pois estabelecido que o direito
-de punir, se por isso se entende o direito de defesa, existe e até
-como existencia necessaria, pois que da sua negação resultaria uma
-contradicção, isto é, o impossivel. Toda a difficuldade consiste, pois,
-em saber se o direito de punir, no sentido de expiação, de retribuição
-do mal pelo mal, de meio de correcção ou de reparação moral, é um
-direito para o homem, e até o deve exercer, que isso lhe cumpre. Ora,
-suppondo que seja de justiça fazer a outrem o mal que se recebeu,
-haveria n’isso um problema de uma difficuldade quasi insoluvel para o
-homem. Bem podemos, sem duvida, apreciar comparativamente as cousas
-materiaes da mesma especie; é assim que uma moeda de cobre ou prata
-equivale a outra do mesmo peso e do mesmo metal e feitio, ou que um
-metro de tecido de uma certa qualidade conhecida póde equivaler ainda
-a um outro, ainda que n’estes já se apresentam differenças que se não
-percebem facilmente. Mas as difficuldades são notavelmente grandes e
-embaraçosas se compararmos não já materia com materia, mas cada materia
-susceptivel de ser um objecto de direito em relação a um proprietario
-ou a outro, se considerarmos a acção culpada em relação ao grau de
-intelligencia, de liberdade e de moralidade do agente. Para exercer
-exacta e boa justiça não basta conhecer mais ou menos perfeitamente o
-corpo de delicto, a natureza do mal commettido; é necessario apreciar
-além d’isso o grau de maldade que presidiu á acção, e o grau de
-soffrimento d’ahi resultante.
-
-Ora nós temos como certo que não ha homem, nem tribunal no mundo no
-caso de proferir uma sentença sobre qualquer delicto revestida d’esta
-precisão necessaria. Ainda mais, nem os mesmos agentes ou pacientes
-são capazes de se julgar perfeitamente a este respeito, cada um no que
-pessoalmente lhe diz respeito; com mais forte razão mal poderão elles
-ser bem julgados um pelo outro ou ambos por terceiros. Assim, n’este
-ponto de vista, é o homem absolutamente incapaz de administrar boa
-justiça. Isto ainda assim na supposição de que o homem emprehendesse
-esta temivel empreitada, era tão perspicaz, tão attento, tão amigo
-da justiça quanto o póde ser um mortal. Que seria se as paixões, os
-preconceitos, a preguiça, a ignorancia viessem a turvar ainda um
-julgamento aliás tão difficil de proferir! Felizmente é isso antes um
-problema moral, que um problema juridico, e o legislador, o principe, o
-juiz, não sómente não estão obrigados a resolvê-lo, porque não é essa
-a sua missão, mas bem pelo contrario deveria impor-se-lhes a obrigação
-de se absterem de tal. Não podendo absolutamente fazer reinar a ordem
-moral pura nos corações, cumpre-lhe deixar esse cuidado áquelle que só
-póde penetrar em tal abysmo, ao unico poder capaz de lhe dar remedio.
-
-Que seria, por outro lado, esta retribuição do mal pelo mal, suppondo
-que ella fosse possivel no homem? Qual o seu fim? Justa é que nós
-desejamos que seja e isso basta para que seja sabia. Só Deus é assaz
-intelligente e assás poderoso para fazer com que um criminoso passe
-pela justa medida de soffrimento que merece a sua maldade considerada
-em relação ao soffrimento occasionado. Mas esta retribuição de um mal
-physico por um outro mal da mesma natureza reparará, póde acaso reparar
-o mal moral, a culpabilidade? Póde fazer como que não tenha existido?
-Esta virtude nem mesmo Deus lh’a póde dar. Não destroe pois em nada
-absolutamente o mal moral do delicto; não o apaga de modo algum, e se
-a expiação se definisse «a reparação do mal moral pelo mal physico,» a
-expiação seria absurda e impossivel. Entender-se-ha, ao contrario, por
-expiação a reparação do mal physico, de um pelo mal physico d’outro?
-Nenhuma expiação possivel ainda n’este sentido, pois que o mal physico
-occasionado pelo delicto não foi por isso menos soffrido, quer o
-delinquente soffra ou não soffra um mal igual. Só a reparação civil,
-que não devemos confundir com a pena, só ella poderia operar ás vezes
-uma compensação mais ou menos sufficiente. Mas a pena propriamente dita
-não póde absolutamente produzir nada semelhante, a menos, todavia que a
-necessidade e a satisfação da vingança não sejam aqui dadas como base
-do direito de punir, o que não é sem duvida o pensamento d’aquelles
-que sustentam a existencia d’um semelhante direito. Mas ainda que
-esses sentimentos podessem ser tomados em mui séria consideração e que
-se podesse definir a expiação «o direito de vingança» seguir-se-hia
-que bastaria aggravar todo o delicto pelo assassinato para tirar toda
-a razão de punir o criminoso; bastaria avultar o crime para obter a
-impunidade; ou antes ainda bastaria, para desarmar a justiça, que a
-victima quizesse perdoar ao algoz. Finalmente, se a expiação é «um
-meio physico de fazer nascer no criminoso o arrependimento, o respeito
-da justiça, a sympathia e o amor da humanidade», em presença d’esta
-definição tambem o homem não tem direito a punir: 1.ᵒ porque n’isso
-se trata d’um estado moral interno que não tem missão de estabelecer,
-pelo menos em nome do direito; 2.ᵒ porque não conhece esse estado;
-3.ᵒ porque não ignora os meios proprios de o procurar; 4.ᵒ porque se
-privaria da applicação do principio de reciprocidade no caso do crime
-capital, pois que não poderia exercel-o, quer houvesse arrependimento,
-quer não: se o houvesse, seria inutil a pena; se o não houvesse,
-seria necessario não o tornar impossivel com a morte do criminoso;
-5.ᵒ porque em todo o caso o arrependimento tornaria a pena inutil e,
-portanto, injusta; 6.ᵒ porque a hypocrisia surprehenderia muitas vezes
-a justiça; 7.ᵒ porque a pena seria antes uma occasião de fraude; 8.ᵒ
-porque se a pena só fosse um meio de trazer o arrependimento, haveria
-o direito de a prolongar ou de a aggravar indefinidamente até obter
-se o fim; 9.ᵒ porque todas as penas do mundo, principalmente quando
-excedem a culpabilidade, são meios mui poucos seguros de trazer ao
-reconhecimento da falta commettida; podem reter, mas não converter. A
-mudança moral do criminoso não póde ser portanto o fim essencial da
-pena, ou, se o é, está nas mãos de Deus, que só póde saber fazer o que
-convem a este respeito. Mas não poderia Deus delegar nos homens, nos
-soberanos o direito de punir? Eis o que se tem discutido muitas vezes
-e discute ainda. Nós seriamos d’este parecer se elle ao mesmo tempo
-se dignasse delegar-lhes a sua sabedoria; de outro modo não podemos
-comprehender que lhes confira um direito que elles são naturalmente
-incapazes de exercer. A melhor prova portanto, a nosso ver, de que
-elle deixou ficar para si só o direito de punir, é que elle recusou ao
-homem as luzes e o poder necessarios para exercê-lo justa e utilmente.
-Esta impossibilidade de uma plena justiça n’este mundo é um dos mais
-poderosos argumentos em favor de uma vida futura, se é que admittimos,
-como não podemos deixar de admittir, um Deus santo e providente.
-
-O homem está tão longe de poder punir, como vulgarmente se entende esta
-parte da justiça; é tão duvidoso que tenha recebido este direito por
-delegação celeste, que o mesmo Deus não poderia exercel-o, a menos que
-não repugnasse á sua bondade e á sua santidade suprema fazer soffrer
-a uma creatura um mal physico sem outro resultado que esse mesmo
-soffrimento, motivado somente n’um soffrimento igual supportado por uma
-outra creatura em consequencia da acção punida. Nós reconhecemos que a
-justiça absoluta não parece reclamar contra esta penalidade vingadora,
-que até parece reclamá-la; sabemos que a justiça não tem necessidade
-de ser util para ser legitima, que tem em si mesma sua propria razão
-de ser, que faz parte da ordem moral, da ordem do direito. Mas, visto
-que acima da ordem juridica, que é puramente negativa, ha no mundo
-moral ainda um grau superior de perfeição, a de um bem moral positivo,
-porque não seria a pena, restabelecendo a ordem negativa, corrigindo
-a desordem, um meio para uma ordem melhor, um encaminhamento para o
-bem? E se Deus tem a intelligencia e o poder necessario para assim
-fazer sair o bem do mal, porque o não faria? Porque deixaria elle aos
-homens o direito de corromper as suas disposições, de separar os meios
-do fim, de aggravar o estado moral do mau tornando-o peor pela pena?
-Acautelemo-nos todavia de cair n’uma vã disputa de palavras visto que
-fica assente chamar direito de punir o direito de se proteger, de se
-defender, seria pelo menos pueril disputar a tal respeito; mas para
-não disputar mais, é necessario entendermo-nos. Em resumo: o homem
-não tem missão de punir, para punir, isto é para restabelecer a ordem
-moral perturbada pelo delicto, para fazer reinar a justiça absoluta,
-applicando ao deliquente a lei por que elle se torna culpado. Não; e
-posto que haja n’isso uma justiça, absoluta, objectiva a restabelecer;
-ainda que o direito de punir propriamente dito só esteja n’isso e não
-em outra causa; posto que o principio da reciprocidade, seja mystico,
-falso, absurdo e fanatico, sem regra como sem medida; ainda que pareça
-que o homem tem não sómente o direito, mas ainda o dever de fazer
-reinar a justiça, encarada assim, pertence á ordem absoluta das cousas,
-ao bem ou á moral em si, e o homem não tem a missão de fazer reinar
-esta ordem senão na sua pessoa individual e não na sociedade; porque
-lhe é aliás impossivel estabelecer este reinado da justiça absoluta
-de uma maneira perfeita, visto que elle não conhece sufficientemente
-os caracteres moraes do delicto, a natureza e o grau de soffrimento
-d’aquelle a quem lesou, visto que não possue os meios mais proprios
-para operar perfeitamente perante a reciprocidade pela escolha perfeita
-da natureza e da medida da pena; o direito de punir que lhe resta não
-é, fallando com propriedade, senão o direito de suavisar até um certo
-ponto o soffrimento que elle sente pelo delicto, de entrar na paz de
-uma segurança um instante perturbada, e de ter para o futuro uma certa
-segurança. A pena tem pois, _para o homem_, sua razão n’este interesse;
-razão subjectiva, relativa, mas indispensavel; estranha até ahi todavia
-á necessidade moral absoluta de reparar a desordem levada pelo delicto
-ao mundo moral. Mas se a pena, tal como o homem tem o direito, senão
-o dever de a applicar, tem sua razão relativa ou humana no interesse
-privado e publico, tem sua regra e sua medida na justiça absoluta,
-justiça que o interesse, um interesse qualquer, não tem o direito de
-violar.»[31]
-
-É importante o papel do pensamento, perante a responsabilidade moral
-e legal no crime e na loucura, por isso a psychologia sobreleva
-aqui a todas as sciencias. «É essencial precisar a funcção do ser
-_psychico_ do pensamento sob os modos de ver da responsabilidade
-moral e legal, e n’esta parte ainda nós nos encontraremos em presença
-de dois systemas exclusivos. «A cellula cerebral, diz o dr. Voisin,
-é a officina do pensamento». Logo, a alteração do pensamento,
-isto é, a loucura resultaria do desarranjo do tecido cerebral; o
-que é a traducção d’este principio materialista: o pensamento é
-uma secreção do cerebro. Por outra parte, dizem grande numero de
-espiritualistas que a loucura é a doença da alma. Um abysmo separa
-estas duas doutrinas; mas não se vê bem o que cada uma d’ellas tem de
-exagerada? Não existe nenhum laço entre o estado physico e os factos
-de consciencia? É preciso desconhecer inteiramente o valor intrinseco
-das faculdades intellectuaes e naturaes, o estado do cerebro e dos
-nervos, negar a influencia do temperamento sobre a determinação do
-caracter? Se não foi possivel ainda elucidar a contento de todos
-estes mysterios scientificos, se o problema das origens e das
-manifestações do pensamento permanece á beira d’uma solução, a culpa
-d’isto é sobretudo d’aquelles que, em campos oppostos, se recusam
-a toda e qualquer concessão e paralysam por preconceito de eschola
-os progressos da sciencia. Negar ao cerebro toda a acção sobre o
-pensamento, não ver n’elle senão um simples intermediario, senão um
-agente de transmissão, é tão exagerado como considerá-lo o grande
-motor e o unico centro intellectual. Para nós, o pensamento, é um
-trabalho cerebral manifestando-se á consciencia, seu director e seu
-juiz, isto é, o ser psychico dominando em principio o ser organico.
-Póde o pensamento ser inconsciente, e o trabalho cerebral estar
-latente para o sujeito em si como o está muitas vezes para os que o
-cercam? Não hesitamos em responder affirmativamente. A formula do
-_automatismo_, que devemos ao genio de Descartes, estabelece a lei
-geral que regula a maior parte das manifestações exteriores da vida;
-e está hoje reconhecido que os centros nervosos e certos grupos de
-cellulas transformam as sensações em movimentos. Tomemos ao acaso
-o exemplo mais commum, o do _andar_, no qual a potencia automatica
-se revela tão manifestamente. Aqui a _vontade_ dá as suas ordens os
-orgãos seguem-nas, e não cuida ao menos na execução; o servo substituiu
-o senhor, e o senhor não intervirá senão em momento opportuno; a
-vontade não obra senão para ir ou ficar. Contestar-se-nos-ha além
-d’isto que o concurso da vontade seja necessario para o cumprimento
-de certos actos apparentemente espontaneos? É evidente emfim, que
-em certos momentos não podemos affastar jámais do nosso espirito as
-idéas que nos cercam, que não podemos mandar como soberanos os nossos
-pensamentos, que não podemos fazer reviver factos que outr’ora nos
-commoveram, e cuja lembrança se revelará um dia inesperadamente, sem
-causa apparente. Basta só este ultimo phenomeno para estabelecer que o
-pensamento póde ser inconsciente, porque não se tem manifestado; aqui,
-o trabalho intellectual não se tem operado sob o impulso da vontade.
-Se escrevessemos um trabalho sobre este assumpto, poderiamos citar em
-nosso apoio exemplos numerosos a que Carpenter chamou a _cerebração
-inconsciente_. O philosopho, o jurisconsulto, o poeta, depois de terem
-procurado em vão uma formula, uma solução, uma idéa, encontram-na
-muitas vezes quando o seu pensamento menos o pensa, outras, sem a
-procurar são postos em posse d’uma idéa nova.
-
-Um mathematico, depois de ter renunciado á solução d’um problema
-difficil, encontral-o-ha subitamente e de improviso. Mas nós voltaremos
-ao automatismo, quando fallarmos dos sonhos e do somnambulismo, e
-veremos então a influencia que póde ter o trabalho involuntario do
-espirito sobre as acções humanas ácerca da responsabilidade. Basta-nos
-indicar agora que o pensamento póde ser inconsciente, que não é sempre
-o escravo docil da vontade, que pode subtrahir-se ao seu imperio. E
-não se póde dizer que este estado de que fallamos seja loucura porque
-estes phenomenos dão-se em todos os homens, são geraes e soffrem-nos as
-naturezas mais completas. Por isso mesmo, a existencia do pensamento
-não incommoda o ser organico; o que incommoda é a sua manifestação
-exterior, é a acção que imprime aos orgãos e suas funcções. O _ser
-psychico_, isto é, a consciencia, a razão, a vontade e o ser organico,
-isto é, a materia, o instrumento, o servidor, são os dois elementos que
-constituem o homem e fundem-se em uma admiravel e mysteriosa unidade.
-Cada um d’estes elementos tem o seu destino. No principio e no estado
-normal, o primeiro manda e o segundo obedece. Do desenvolvimento
-regular e completo d’aquelle, da sua potencia sobre as faculdades, da
-sua acção sobre os orgãos dimana o _livre arbitrio_, que se manifesta
-sempre que o ser psychico exerça um acto de soberania sobre as forças
-humanas. A lei que é a vida vegetativa ou instinctiva na escala
-inferior da natureza é para o homem substituida por uma outra lei, o
-livre arbitrio; e este será a vida moral, intelligente, consciente,
-responsavel. Se eu não visse na sua origem seres psychicos differentes
-uns dos outros, se m’os representasse todos da mesma essencia e da
-mesma natureza, se suppuzesse que esta parte immaterial de nosso ser
-está collocada n’um involucro corporeo sempre identico, não é menos
-certo que a alma póde modificar-se, passar reciprocamente do bem ao
-mal, desenvolver-se ou abortar. Tanto a alma, como o corpo tem as suas
-doenças, as suas debilidades, os seus descaimentos; mas, como o corpo,
-ella pode curar-se, se o mal não tem feito já taes progressos que torne
-todo o meio curativo impraticavel. A alma mal formada, mal dirigida do
-principio, não saberia exercer sobre o ser um imperio sufficiente e
-moralisador, não saberia operar sobre as paixões e reformar os defeitos
-da nossa organisação. Progressivamente, o mal augmenta, e chega um
-momento em que as proprias paixões, em logar de serem dominadas,
-dominam ellas. A força moral superior é anniquilada, o escravo
-revolta-se, e, destruindo a auctoridade do amo, triumpha. O poder da
-alma sobre as sensações, as idéas e os sentimentos desapparecem, ficam
-escravisados. A usurpação é sempre a consequencia da impotencia. Por
-mais que diga a escola positivista, a alma, o merito e o demerito, a
-noção do bem e do mal, o livre arbitrio, a responsabilidade, não são
-chimeras. «Tirae a liberdade, disse Fénelon, toda a vida humana é
-destruida, não fica sobre a terra nem vicio, nem virtude, nem merito.»
-Mas na propria duvida, na impotencia em que esta escola se encontra em
-demonstrar a verdade dos seus principios, pois que de boa fé se deve
-reconhecer que tem phenomenos inexplicaveis, porque não se refugiar
-pois, n’esta doutrina espiritualista que restitue ao homem a sua
-dignidade, que é consoladora, que eleva? O principio do merito e do
-demerito, o principio eterno de toda a moralidade humana, será pois o
-ponto de partida d’este estudo; elle deve ser nossa luz e nosso guia,
-atravez das obscuridades da materia e dos systemas contradictorios dos
-auctores. Ora, encontraremos nas duas origens, nos dois elementos,
-a alma e o corpo, os mesmos principios da responsabilidade e da
-penalidade.»[32]
-
-Para fazer a hypotypose rigorosa do delinquente, não basta ser
-psychologo, é preciso tambem ser escriptor. Nem todos os tratadistas
-teem na sua intelligencia um telescopio cujo diametro de objectiva e
-distancia focal possam adequar-se a estudos de natureza tão melindrosa
-e tão complexa. É menos difficil talvez com um cosmolabio medir o mundo
-do que com um psychometro medir e pesar a intensidade dos attributos
-moraes do homem delinquente. Por mais que os aristarchos enthusiastas
-da anthropologia apregoem em estylo farfalhudo a acephalocardia moral
-do criminoso, o estudo introspectivo e experimental da consciencia
-pouquissimo a esse respeito nos diz por ora de positivo.
-
-Escreve o sr. Oliveira Martins:
-
-«Se esta camada movediça assenta sobre a rocha ignea da ferocidade
-primitiva na stratificação geologica do crime, outra cathegoria
-de criminosos apparece como na terra surgem as massas eruptivas.
-Aos crimes do sangue e aos crimes do desejo, sommam-se os crimes
-do fanatismo. Profundo, candente, satanico, o criminoso fanatico
-irrompe com a violencia teimosa de um barbaro, mas trazendo comsigo
-ao mesmo tempo a fé, a abnegação, a candura de um martyr. O que faz
-chamar-se-lhe doido é que os outros crimes são expressões anormaes ou
-mostruosas do egoismo individual; ao passo que este se apresenta como a
-monstruosidade da paixão collectiva, que tanto armou os regicidas, como
-decidiu os martyres a ganharem a palma viridente. O que impressiona
-de um modo extranho e apparentemente inexplicavel, é que nos outros
-criminosos a razão do crime está n’uma fatalidade positiva; organica
-ou social, n’uma fatalidade em todo o caso inconsciente; ao passo
-que n’estes se encontra uma consciencia completa das causas e dos
-fins, e a par da lucidez quanto aos motivos, uma aberração total
-quanto á criminalidade dos actos. Os crimes da paixão segundo o typo
-classico de Othello, podem reduzir-se á mesma cathegoria dos crimes
-do fanatismo religioso ou politico. O attentado typico d’esta especie
-é o homicidio; porque uma critica nebulosa ou crepuscular denuncia
-ao fanatico um certo homem como causa; quando sempre, pode dizer-se
-assim, os homens são apenas effeitos de causas muito mais complexas.
-Bruto assassinou Cesar, mas nem por isso a republica se restaurou em
-Roma, Judith decapitou Holophernes, mas nem por isso Jerusalem deixou
-de cahir. Os nihilistas russos mataram Alexandre II, mas o cesarismo
-moscovita mantem-se. O regicidio é o typo historico moderno do crime
-por fanatismo. Hoje que aos absolutismos succederam as democracias são
-verdadeiros reis os centos de homens que em cada paiz dictam as leis
-e imperam sobre a opinião. Sobre elles impende a responsabilidade que
-outr’ora pesava sobre a cabeça dos tyrannos; e são, como elles eram,
-o alvo de todos os anathemas. As erupções do fanatismo religioso ou
-politico surgem nos periodos de commoção social. Approximar estes dois
-factos, fazendo resaltar o seu parallelismo constante seria longo e
-desnecessario. Toda a gente reconhece isto. A historia das allucinações
-collectivas tem a mesma extensão que a das podridões sociaes: são as
-flores venenosas que brotam do esterquilinio, ou os tortulhos molles
-que na sombra humida vão minando o palacio dourado da sociedade
-venturosa.»
-
-A ambição é uma tendencia congenita fortificada por inclinações
-exaggeradas e pervertidas a mór parte das vezes nascidas de
-predisposições organicas para a paixão ou de funestas influencias
-moraes. É assim que o fanatico encubado consente que a paixão vença a
-vontade.
-
-Os grandes alienistas e abalisados jurisconsultos formulam, como
-postulados da responsabilidade legal, o livre arbitrio, não confundem
-nunca o alienado com o criminoso, estabelecem como caracter distinctivo
-do criminoso a posse da liberdade. O alienado, diz o dr. Ball,
-auctoridade em psychopathia, é um homem que, em consequencia d’uma
-perturbação profunda das faculdades intellectuaes, perdeu mais ou menos
-completamente a sua liberdade moral e cessou, por emquanto, de ser
-responsavel das suas acções perante a justiça.» Esta definição admitte
-a liberdade como a essencia _mater_ da alma, mas é incompleta, porque
-se esquece das perturbações da ordem _affectiva_, tão numerosas e as
-quaes podem levar o agente á irresponsabilidade.
-
-O dr. Dally sustentou a these seguinte: que no ponto de vista dos
-interesses da sociedade e da sciencia, alienados e sãos d’espirito,
-são responsaveis pelo mesmo titulo e que nada varia senão a fórma
-das responsabilidades: para o criminoso o castigo, para o alienado o
-asylo; «a utilidade, unico fundamento da pena exige que a sociedade se
-preserve do alienado criminoso como do criminoso, pois que os actos dos
-alienados não são menos perigosos que os dos delinquentes.[33]» Isto
-escrevia o dr. Dally, já em 1863, e os criminalistas da escola italiana
-chamam-lhe pomposamente a theoria hodierna. Um alienado que commetteu
-um assassino póde-se curar, com que direito se conserva preso depois
-da cura? Tal captiveiro não seria nem racional nem util.[34] N’outro
-capitulo já demonstramos a falsidade de tal criterio de punir.
-
-A suggestão hypnotica em medicina legal é já um problema discutido
-nas escolas alienistas de Paris e de Nancy, e cuja importancia urge
-reconhecer. O individuo no estado hypnotico é inteiramente despojado
-das prerogativas da sua personalidade, que ficam sendo exercidas pelo
-agente que veiu installar-se na vida psychica, condicionada pelo seu
-systema nervoso. É indispensavel admittir a possibilidade de suggestões
-criminosas, e a investigação juridica do seu auctor, sempre que o
-hypnotisado não foi a causa livre da sua hypnose, porque na hypothese
-contraria, quem consentiu em ser hypnotisado e que commette um crime
-por suggestão tem a responsabilidade penal do acto que praticou.[35]
-
-Os trabalhos de Gilles de la Tourette, Ladame, Puglieri, Bernheime,
-Liégeois, Brouardel, Motet, etc., teem evidenciado os inconvenientes
-da pratica do hypnotismo.[36] Apresentada essa allegação juridica nos
-tribunaes, a irresponsabilidade em nome da suggestão criminosa, e
-admittida a hypothese de que todos os individuos são susceptiveis do
-estado da hypnose, é de presumir que todos os reus se apresentassem
-como victimas de mysteriosa ou vingadora suggestão criminal; e como
-ha uma difficuldade quasi insuperavel de verificar esta simulação, os
-accusados deviam ser absolvidos, ficando ainda com o direito de se
-vingarem de qualquer inimigo, attribuindo-lhe a suggestão, como já teem
-feito alguns hystericos. Muitas mulheres nevropathas teem attribuido a
-violação e o rouço a homens que nunca se approximaram d’ellas.
-
-Lombroso, como diz Tarde, quer que a criminalidade seja devida a uma
-suggestão posthuma, exercida sobre os vivos pelos nossos antepassados
-prehistoricos.
-
-Podemos dizer como o dr. Culerre: o crime hypnotico é possivel, mas
-devemos apressar-nos a accrescentar que os progressos da sciencia nunca
-crearam um criminoso e que o hypnotismo não augmentará o numero dos
-scelerados.[37] Ha quem pretenda aproveitar o estado da hypnose para
-extorquir o segredo do crime. Em nosso entender privar um individuo da
-sua liberdade moral, que é a mais alta prerogativa da especie humana,
-para lhe devassar os arcanos da sua consciencia, é um attentado contra
-o qual a razão e a dignidade conclamam. Porém quando até tal processo
-levasse ao reconhecimento do delinquente, as suas revelações não podiam
-merecer séria confiança do tribunal, porque podiam ser falsas como
-succede com muitas denuncias da hypnose, sobre tudo na fórma hysterica.
-Tão perigoso caminho seria um retrocesso aos tempos da tortura, em que
-a justiça queria arrancar segredos com o supplicio da intensidade da
-dôr e muitas vezes obtinha apenas angustiosas falsidades.
-
-Um dos tristes serviços que o hypnotismo podia prestar á humanidade,
-era nas execuções de pena de morte, substituir os actuaes processos
-pela eliminação instantanea e sem soffrimento. Admittida a hypothese de
-se poder fazer parar o coração durante a somniação hypnotica é evidente
-que se póde matar um individuo até sob uma suggestão agradavel, dado
-o caso do hypnotisado ser suggestionavel. Uma grande emoção provocada
-pela suggestão durante a hypnose seria o sufficiente talvez. Broca e
-Ward sob o influxo da anesthesia hypnotica e da somniação plena da
-hypnose fizeram notaveis operações cirurgicas. Estando todavia, o
-condemnado de posse da idéa do dia fatal em que o querem matar, será
-talvez difficil que a hypnose se realise. Em qualquer caso tambem a
-acção do acido prussico, por exemplo, applicado a distancia durante
-a hypnose em solução concentrada e dose forte, deve segundo Borru,
-Burot e Luys produzir a morte. É evidente que os envenenadores por
-este processo podem exercer a sua profissão sem que no organismo
-fiquem vestigios do crime, o que é um novo e difficil problema para a
-medicina legal. O dr. Ch. Vibert, Liégeois e outros medicos legistas já
-estudaram o problema sob este aspecto.
-
-Joseph Kimmler será o primeiro condemnado a ser justiçado pela
-electricidade. Esta invenção vem da America do Norte. Vão ser postos
-de parte os cepos, os cestos as guilhotinas, as forcas e todos os
-grosseiros apparelhos do supplicio inventados pelo homem para se dar o
-logar ás correntes electricas.
-
-O machinismo está recebendo a ultima demão. Foi já experimentado
-com animaes corpulentos: e as experiencias deram optimo resultado.
-O programma para as ultimas horas do paciente é como segue:
-Será prevenido do que o espera na manhã do supplicio. Terá, se
-quizer, consolações da Egreja. Depois d’isso os ajudantes do... da
-electricidade, entrarão no carcere, para darem principio á _toilette_
-funebre. Calçam-lhe uns sapatos que teem nas solas duas chapas de
-metal, em communicação com fios metallicos que atravessam os tacões.
-As mãos do paciente são amarradas sobre o peito. O tronco é apertado
-por uma correia com fivela, e tendo a cada um dos lados uma chapa
-com gancho. Na cabeça põem-lhe um capacete, com um disco do metal ao
-alto, e de que parte um fio de cobre em espiral, que rodeia a cabeça.
-No momento de lhe collocarem o capacete, põe-se sob o fio uma esponja
-pequena embebida em agua salgada boa conductora da electricidade, como
-se sabe.
-
-Feito isto levam-o para a cella das execuções, onde se encontram os
-magistrados que tenham de assistir ao acto. Sentam o condemnado n’uma
-cadeira de pau, costas inclinadas. Os ganchos da correia que a liga
-prendem-se a duas argolas de outras correias que se apertam, até
-immobilisar o paciente.
-
-Em frente da cadeira ha um tamborete onde os pés do condemnado se
-apoiam e se fixam. Do tecto pendem dois fios conductores isolados. E na
-parede um mostrador indicará a intensidade da corrente electrica. No
-aposento immediato estão todas as peças de machinismo executor. Findos
-estes preparativos prende-se um dos fios que pendem do tecto ao disco
-metallico do capacete. O outro liga-se aos fios dos tacões.
-
-Em seguida lança-se sobre a cabeça do paciente um veu negro e toca-se
-no botão fatal, o misero terá tempo de sobejo para morrer de terror.
-
-O resto é instantaneo. O cerebro cessará entre a mór parte dos
-infelizes de funccionar antes, muito antes de lá chegar a sensação do
-choque.
-
-Só a descripção é um monte de torturas.
-
-De todas as funcções sociaes é o direito penal aquella que provoca mais
-graves questões:[38]
-
-1.ᵒ Com que direito e com que fim se apodera o homem do seu semelhante,
-para lhe infligir, a sangue frio e de caso pensado, o mal que se
-denomina pena?
-
-2.ᵒ D’esta fórma procede elle apenas na qualidade de ministro d’uma
-justiça superior, cuja execução lhe foi commettida?
-
-3.ᵒ Deve, pelo contrario, quando pune, propor-se unicamente manter a
-ordem social, fazendo respeitar o direito; e por meio de que processos
-póde attingir este fim?
-
-4.ᵒ Não lhe correria o dever de combinar estes dois principios,
-restringindo a sua acção aos limites que cada um impõe?
-
-É á solução parcial d’estes problemas que consagramos este trabalho,
-estudando-os, muito particularmente, sob o ponto de vista das relações
-que cumpre reconhecer entre o direito e a moral.
-
-Estes problemas provocaram grande numero de systemas, que, apesar das
-suas quasi infinitas variedades, podem, segundo parece, classificar-se
-em tres grandes categorias principaes, que tendem a approximar-se, e
-mesmo por vezes a confundir-se nos seus desenvolvimentos, sem comtudo
-menos se ficarem distinguindo quanto ao especial ponto de partida de
-cada uma d’ellas.
-
-Os primeiros não vêem no direito penal mais do que o exercicio d’uma
-justiça superior pelo poder social revestido d’esta terrivel missão.
-Consideram geralmente esta justiça como uma necessaria retribuição do
-mal pelo mal, especie de expiação, que se tem a si propria como seu fim
-unico; o que fez com que se lhes conferisse a denominação de theorias
-absolutas.
-
-Os segundos, muito pelo contrario, não vêem na actividade penal mais
-do que um meio de fundar e manter uma certa ordem social tida como
-necessaria para fazer respeitar o direito. Divergem consideravelmente
-entre si pelos meios de que se servem para attingir este fim.
-Qualificam-nos de theorias relativas, porque não justificam a acção
-penal senão pelo fim externo que deve attingir, e porque a encerram
-nos limites do que uma tal acção reclama.
-
-Os terceiros tentam combinar os dois principios, limitando-os, e, alem
-d’isso talvez, fortificando-os um pelo outro. Por uma parte, pretendem
-exercer a justiça superior nos limites apenas do que as exigencias
-sociaes reclamam. Por outra, esforçam-se por satisfazer estas, mas
-unicamente dentro dos limites do que essa justiça auctorisa.
-
-Levar-nos-hia em demasia longe o expor e criticar minuciosamente estes
-numerosos systemas.[39] Devemos restringir-nos ao que seja necessario
-para expor e motivar convenientemente as idéas em que se nos afigura
-que devemos demorar-nos; e trataremos seguidamente do que respeita ás
-relações do direito e da moral.
-
-Não existe, nem póde existir, senão uma base unica sobre que estas duas
-leis possam solidamente apoiar-se. Esta base é o destino da humanidade
-considerado em seu conjuncto, na collectividade e em cada um dos
-individuos que a compõem.[40]
-
-A mira commum d’essas leis, que teem d’esse modo uma origem commum e um
-fim commum, parece-nos ser a realisação d’um tal destino; mas nem por
-isso menos lhes impendem missões distinctas, pelo que respeita tanto ao
-que a cada uma d’ellas cumpre realisar, como aos processos a que devem
-recorrer.
-
-Sentir-se ao mesmo tempo livre e obrigado a conformar-se
-espontaneamente com as exigencias d’uma norma superior é o que
-constitue a base e o ponto de partida da lei moral ao revelar-se na
-consciencia. Estes dois sentimentos estão indissoluvelmente unidos;
-suppõem-se reciprocamente, e cada um d’elles communica ao outro o
-unico valor verdadeiro que o póde revestir: uma liberdade, de que nada
-houvesse a fazer, seria uma força sem emprego, uma bem mysteriosa
-inutilidade, que a si propria se aniquillaria tornando-se escrava de
-brutaes instinctos; uma lei que fatalmente a si propria se executasse
-seria um mechanismo degradante, sob cuja acção a dignidade humana
-desappareceria totalmente.
-
-Accrescentemos, se tanto é preciso, que a conformidade com uma regra,
-sem outro motivo que não seja o temor, não levaria a resultados muito
-diversos.
-
-Temos até aqui fallado apenas d’uma lei cuja existencia se revela pelos
-sentimentos da consciencia. Precisamos agora indagar a que fonte deve
-recorrer-se para se obter o conhecimento d’essa lei. Cifra-se a questão
-em investigar onde podem encontrar se os indicios do destino de que
-fallamos.
-
-A regra a seguir é a que por este destino, tanto individual, como
-geral, se impõe. Pode haver-se tal conhecimento pelo attento estudo
-do homem considerado na natureza e na historia, quer em si proprio,
-em suas necessidades, instinctos physicos e aspirações mais elevadas,
-quer em suas relações com o mundo social ou physico em que deve
-desenvolver-se. A existencia tem um fim que, á custa de esforços, é
-preciso attingir, ou o procuremos nas manifestações d’uma suprema
-intelligencia e d’uma suprema vontade, ou paremos na contemplação
-de certas leis, cuja acção parece revelar-se em um demorado
-desenvolvimento; leis a respeito das quaes talvez se devesse perguntar,
-mais do que é costume, se em si mesmas não são as manifestações ou os
-orgãos d’um Deus pessoal.
-
-A vida moral está, as mais das vezes, occulta nos arcanos do mundo
-interno; não se manifesta exteriormente senão por indicios ácerca de
-cuja apreciação é facil haver enganos. Por um lado, ella domina toda
-a existencia, os sentimentos, os desejos, as vontades, tanto como as
-acções. Por outro, só actua por convicção. Não podendo viver senão de
-liberdade, retrae se ou expande-se segundo as influencias externas mais
-ou menos fortes.
-
-As caracteristicas do direito mostram-no-lo bem diverso. É no exterior
-que se produz e que actua por meio de um organismo completo para este
-effeito destinado. Só o deve comtudo fazer nos limites do que seja
-necessario para acudir, e, muitas vezes, para resistir á acção da
-liberdade individual, nos casos em que isso é preciso para a manutenção
-da ordem. Serve-se do constrangimento e exerce-o por meios materiaes.
-O homem exterior e social é que faz objecto das suas mais directas
-preoccupações; o homem interior e individual subtrae-se-lhe geralmente,
-salvo nas relações que pode ter com certos factos externos e sociaes.
-
-A sua principal missão parece ser o garantir a cada um o que lhe deve
-pertencer, crear e manter a ordem precisa ao desenvolvimento physico,
-intellectual e moral, prevenir e reparar, quanto possivel, qualquer mal
-que provenha de ataques ou de infracções contra essa ordem.
-
-Se fosse absolutamente necessario fixar o grao d’importancia respectiva
-do direito e da moral, fariamos predominar esta ultima; é ella que
-mais directamente tende a tornar-nos o que devemos ser. O direito
-parece figurar mais como meio do que como fim na economia geral do
-nosso desenvolvimento. Apressemo-nos a acrescentar que figura como
-elemento indispensavel. Cumpre, alem d’isto, observar que estas
-duas leis, embora separadas pela divergencia das attribuições e dos
-processos, nem por isso conservam menos profundos vestigios da sua
-origem commum e do fim superior para que devem tender os seus communs
-esforços. Devem respeitar-se e auxiliar-se reciprocamente. Compete ao
-direito restringir-se ao campo de actividade que especialmente lhe
-está destinado; deve, tanto quanto possivel, respeitar a liberdade
-necessaria para o desenvolvimento moral; deve evitar o que possa
-offender as bases sobre que este assenta. A moral, pela sua parte, deve
-respeitar as exigencias do direito e os processos que lhe são proprios.
-
-Parece que estes principios resultam da natureza das cousas;
-poder-se-hia suppor facil fazer derivar d’elles consequencias cuja
-auctoridade se fizesse geralmente reconhecer. Mas não é assim; questões
-são aquellas a respeito das quaes se está longe da harmonia; achamo-nos
-em presença de tres grandes categorias de systemas mencionados acima;
-talvez que melhor os possamos apreciar, agora que enunciamos alguns
-principios que nos dirigirão. Pode o assumpto dividir-se commodamente
-em quatro paragraphos que tratem successivamente: 1.ᵒ das doutrinas
-absolutas e das suas degenerescencias; 2.ᵒ das doutrinas mixtas; 3.ᵒ
-das doutrinas relativas taes quaes as concebemos; 4.ᵒ d’uma comparação
-entre estas ultimas e as doutrinas mixtas.
-
-§ 1.ᵒ Segundo os sectarios das theorias absolutas, á acção penal está
-reservado um desenvolvimento muito maior do que aquelle de que dariam
-idéa os principios acima enunciados. «Ha n’ella, dizem, mais do que
-um direito, é um verdadeiro dever cuja observancia se exige d’um modo
-imperativo.»
-
-«Embora a sociedade humana se dissolvesse pelo unanime consenso de
-todos os seus membros, dizia Kant, deveria ser executado o ultimo
-assassino que se achasse preso, afim de que cada um soffresse o castigo
-dos seus actos, e de que o sangue vertido não cahisse sobre o povo que
-não tivesse reclamado essa punição.[41]»
-
-Em um tal systema, o fim social e juridico da pena desapparece e
-absorve-se n’uma ordem d’idéas muito mais vasta: já se não tracta de
-defesa e de protecção, mas de expiação. É certo que se nos diz que os
-processos d’esta justiça superior realisam accessoriamente o fim social
-e humano da pena.[42]
-
-Não nos demoraremos a indagar o que n’esta ultima asserção, que nos
-parece muito contestavel, póde haver de verdadeiro. É evidente que
-isso depende muito das idéas que se formam ácerca da ordem que convem
-realisar. Julgamos poder limitar-nos a dirigir as seguintes perguntas
-aos sectarios d’estas doutrinas: Tendes sufficientes provas de que uma
-tão terrivel missão haja sido confiada ao Estado? Não seria natural
-pensar que, se o soberano legislador, de quem esta justiça dimana,
-a não exerce por si proprio na economia actual, é porque julgou
-conveniente reserval-a para outros tempos? Não póde ter querido que
-nós caminhemos n’esta vida, mais pela fé do que pela vista, em uma tal
-ordem de idéas?
-
-Estaes bem certos de que formaes noções exactas ácerca da natureza
-d’esta justiça suprema? Não poderia haver n’isso mysteriosos arcanos
-que escapem aos nossos olhos? O Estado, que encarregaes d’esta missão,
-possue sufficientemente as faculdades intellectuaes e moraes que ella
-suppõe? Possue o necessario poder de observação? Disporia, alem d’isso,
-de penalidades bastante flexiveis e divisiveis para corresponderem ás
-gradações tão variadas da culpabilidade moral? Se se arroga o direito
-de infligir todas as penas, não deverá conceder egualmente todas as
-recompensas merecidas? Não haveria n’isto uma fonte de dificuldades e
-até de novas impossibilidades?
-
-Fazer seguir immediatamente todas as acções das penas ou das
-recompensas que devam corresponder-lhes, não seria despojar a vida
-moral da auréola de desinteresse ou de fé que constitue a nobreza
-d’ella? Sempre comprimida no exterior, não acabaria por succumbir nas
-profundezas intimas que pareceria deverem ser o seu ultimo refugio?
-
-Taes são as idéas que mais frequentemente se encontram na base do
-que se chama--theorias absolutas; e taes as objecções que suscitam.
-Enganar-nos-hiamos comtudo, se suppozessemos identicos entre si todos
-os systemas que nasceram d’estas theorias ou que a ellas se prendem.
-Nelles se encontram, muito pelo contrario, differenças, e até graos.
-
-Uns abrangem todo o dominio da moral em suas vastas concepções,
-salvo em recuar ante as resistencias e as impossibilidades que se
-levantariam, se se tratasse de fazer uma applicação completa d’estas
-ultimas.
-
-Outras circumscrevem-se ao campo mais restricto do direito.
-Subdividem-se porque uns submettem os factos que os preoccupam ás
-regras da sancção moral, ao passo que outros buscam uma sancção
-especial.
-
-As bases em que se firmam estes systemas não são sempre as mesmas;
-uns não vão além dos sentimentos, quasi somos levados a dizer, dos
-instinctos da consciencia. D’isto achamos um notavel exemplo no
-discurso com que D. Cirilo Alvarez, então presidente da Academia de
-Jurisprudencia e de Legislação de Madrid, inaugurava, em 26 de outubro
-de 1872, o curso annual das deliberações d’esta sociedade.
-
-Eis o que se lê n’esse discurso destinado a justificar a pena de morte:
-
-«O fim da justiça penal não é a emenda e a correcção dos culpados. A
-lei penal corresponde a um fim social mais elevado: ao restabelecimento
-da ordem moral, abalada pelo crime, á lei de responsabilidade que pesa
-sobre o homem por motivo de suas más acções, a essa lei inexoravel da
-expiação e da penitencia que tem origem no remorso, n’esse phenomeno
-interno do nosso espirito a que não podemos subtrahir-nos... É n’essa
-lei de responsabilidade, n’essas manifestações da consciencia, n’esses
-soffrimentos da alma, que se produzem sempre conforme a gravidade dos
-factos, que se encontra a base da lei penal em todas as gradações
-fixadas pela legislação e pela sciencia, para distinguir a fraqueza do
-vicio, o vicio do crime.»
-
-«É também n’esses phenomenos moraes, e unicamente n’elles, que se
-encontra a explicação philosophica d’essas palpitações da consciencia
-universal em presença do crime, palpitações que se revelam pela
-inquietação e pela agitação dos espiritos, pela indignação e pela
-colera das multidões contra o criminoso.[43]»
-
-Outros recorrem a um mais profundo estudo da vida, ou a certas
-combinações logicas das idéas. Diz-se, por exemplo, que a pena é uma
-nova afirmação da lei, que a negação implicitamente resultante do crime
-ou do delicto torna indispensavel. Quer isto dizer, em termos mais
-simples, que a pena é uma sancção necessaria da lei.
-
-Outros ainda, elevando-se, segundo a nossa opinião, a uma concepção
-mais digna da justiça divina, attribuem-lhe um fim de regeneração do
-culpado. Collocam-se assim, desde o começo, fóra do absoluto completo,
-de que se afastam a distancias muito diversas segundo as applicações
-que fazem do seu principio superior. Póde-se effectivamente attender á
-moral no seu conjuncto, ou apenas ao direito. Póde-se, n’esta ultima
-hypothese, procurar uma verdadeira regeneração moral, mudando até o
-fundo do caracter, ou, pelo contrario, não se ir alem do que se poderia
-chamar uma regeneração social, que tenda unicamente a conseguir que o
-culpado deixe de ser um perigoso membro da sociedade, ainda que não
-fosse senão pelo temor dos castigos. Assim reentra-se no dominio das
-theorias relativas.
-
-Consagramos certissimamente todas as nossas sympathias aos esforços
-empregados para obter a regeneração moral do culpado; mas não suppomos
-possivel tomal-a para principal base do direito penal. É um fim que se
-precisa recommendar ao zelo dos philantropos; mas, se o considerassemos
-como entrando directamente nas attribuições do Estado, suscitaria
-isto, em parte ao menos, as objecções por nós apresentadas contra as
-verdadeiras theorias absolutas; o Estado não possue nem as faculdades,
-nem os meios que presuppõe o exercicio d’uma tal missão. Para elle só
-póde haver n’isto um fim necessario e occasional, mas deve zelosamente
-procurar attingil-o nos limites do que cabe á sua natural competencia.
-
-§ 2.ᵒ--As theorias absolutas teem ainda muitos adeptos; mas, como
-dissemos, offerecem numerosas variedades. Podemos até dizer que os
-costumes juridicos das nossas civilisações occidentaes haviam de
-oppor-se a que se fizesse d’ellas completa applicação. Era para
-desejar que se fixassem limites precisos ao seu desenvolvimento. Foi
-o que as doutrinas que chamámos mixtas se esforçaram por conseguir,
-encerrando-as no ambito marcado pelas necessidades da ordem social.
-Conciliar e limitar um pelo outro os dois principios que parecem
-disputar-se o campo do direito penal era, certissimamente, uma bella
-idéa; teria prestado grandes serviços, se tivesse podido realisar-se.
-Vejamos o que ha a tal respeito.
-
-Julgamos poder citar o nosso antigo compatriota Rossi como tendo
-apresentado o typo mais explicito, mais nitido e melhor conhecido
-d’esta categoria de systemas. Seja qual fôr o futuro reservado á sua
-obra, sempre terá de reconhecer se n’ella a manifestação d’um grande
-talento: «M. Rossi é, no seu genero, o primeiro jurisconsulto do
-seculo» dizia-nos um dia o nosso illustre mestre, De Savigny.
-
-Entendemos dever accrescentar que, mesmo que se viesse a abandonar esta
-obra, não se lhe diminuiria o merito de ter exposto as questões com uma
-precisão completa, sem nenhuma d’essas obscuridades, que dão muitas
-vezes logar a que se interpretem conforme convem as idéas apresentadas
-como fundamentaes.
-
-Perdoar-se-nos-hão estas linhas dictadas pelo reconhecimento. Tanto
-mais justificaveis nos pareceram ellas, quanto suppomos dever combater
-uma corrente de idéas muito respeitaveis, e que foram revestidas d’uma
-grandissima auctoridade. Ha muitissimo tempo que nos apartámos d’ellas.
-Este trabalho póde a muitos respeitos ser tido como uma nova edição
-das theses que publicámos em 1836 para solicitar o grao de licenceado.
-Confirmaram-nos em grande parte na nossa maneira de ver mais de 40
-annos de estudo e de experiencia.
-
-«O fim da justiça absoluta, dizia Rossi, consiste no proprio
-cumprimento d’ella; é porque é; attinge todas as infracções da lei
-moral; assenta nos principios eternos do justo e do injusto; é um
-attributo do Ser infinito. O mal merece o mal; o homem injusto deve
-reparação á justiça; é uma sancção necessaria; a ordem moral deve ser
-restabelecida pela pena. Esta justiça comtudo não desenvolve toda a
-sua acção n’este mundo. O direito penal compõe-se d’uma parte absoluta
-e d’uma parte relativa, de principios de justiça e de regras de
-utilidade.
-
-A justiça do homem não deve ultrapassar a justiça absoluta; não deve
-mesmo absorvel-a; não deve castigar senão no interesse da ordem social,
-e nos limites apenas da culpabilidade moral. Acha-se ella, por assim
-dizer, encerrada em tres circulos concentricos: o da justiça intrinseca
-da punição, o da manutenção da ordem social, o de meios proprios para
-attingir com utilidade esse fim pela acção penal. É uma delegação
-parcial da justiça divina confiada a seres imperfeitos e falliveis,
-que d’elle só devem fazer uso para um fim restricto e determinado, a
-garantia dos elementos constitutivos da ordem social.[44]»
-
-N’esta categoria de systemas observa-se naturalmente uma variedade
-maior ainda do que nas doutrinas absolutas, porque se complica com
-elementos mais numerosos. De pleno accordo ácerca da necessidade de
-se não ir além do que as exigencias sociaes reclamam, adoptam uns
-as regras applicaveis á responsabilidade moral, demandam outros uma
-sancção mais apropriada á natureza especial do direito. Carrara,
-senador do reino de Italia e professor de direito penal na Universidade
-de Pisa, parece-nos dever citar-se como exemplo d’esta ultima
-tendencia. Affigura-se-nos que a sua doutrina deve ser classificada
-no numero das que chamámos mixtas, porque invoca, diversas vezes,
-uma cessão parcial da justiça absoluta como base do direito penal,
-criticando, com grande vivacidade, as idéas que professa Rossi. Cremos
-que o seu systema póde consubstanciar-se em algumas proposições
-fundamentaes:
-
-«Existe uma justiça absoluta, de que só uma parte foi cedida ao poder
-social para manter a ordem e proteger o direito. Esta justiça penal
-deve reparar o mal proveniente do delicto; deve, n’este intuito,
-combater os impulsos que podem resultar do máo exemplo dado pelo
-culpado, e restabelecer no espirito dos innocentes os sentimentos
-de segurança, d’elle afugentados pelo facto punivel.» Não é á
-culpabilidade moral que tem de ir buscar se a gradação das penas, mas
-ao que Carrara qualifica de força ou intensidade do delicto, ou seja
-ao _quantum_ de vontade livre manifestada pelo facto e á influencia
-exercida por este sobre os resultados produzidos.
-
-Os escriptos de Carrara offerecem provas numerosas d’uma grande
-erudição e d’um notavel talento d’analyse. Não hesitamos em collocal-o
-á frente dos criminalistas da epocha actual. É uma posição adquirida
-por consideraveis trabalhos, pela veneração de que os muitos
-discipulos o cercam, e pela inesgotavel fonte de ensinamentos que os
-escriptos d’elle fornecem, mesmo quando se divirja do seu modo de ver.
-Inclinamo-nos a pensar que o seu systema poderia dispensar a idéa d’uma
-delegação parcial da justiça absoluta, porque o auctor firma-se em
-bases que se esforça por fazer derivar da natureza do direito.[45]
-
-Outros auctores, embora dizendo-se partidarios das theorias relativas,
-não podem comtudo deixar de fazer concessões ao elemento moral, o que
-dá em resultado a necessidade de indagar qual a justificação d’estas
-concessões, e, sendo possivel, até onde devem chegar.
-
-Citaremos como exemplo Franck, que, depois de ter repellido toda e
-qualquer idéa d’uma expiação confiada ao poder social, e vivamente
-refutado o systema de Rossi, parece apresentar-se resolutamente
-como partidario das theorias relativas, mas sem que attribua menos
-importancia ao elemento moral na fixação das penas. Não é fácil,
-parece-nos, encontrar no livro d’elle os meios de se reconhecer
-sufficientemente este facto pela applicação de algum principio
-superior. O systema afigura-se-nos conseguintemente affecto d’uma
-especie de dualidade.[46]
-
-A mesma ordem de idéas revelam os escriptos de Bertauld.[47] Reconhece
-que a doutrina d’um direito de punir fundado na justiça moral, limitada
-pela utilidade social, ganhou, durante a primeira metade do nosso
-seculo, um largo campo na philosophia do direito. Adquiriu, diz elle,
-uma verdadeira supremacia. Guizot, de Broglie, Rossi, de Rémousat
-defenderam-na, e, graças a elles, está escripta em nossas leis, e
-especialmente na reforma do Codigo Penal de 28 d’abril de 1832.
-Comtudo, acrescenta, encontra ella hoje contradictores.
-
-Bertauld expõe d’esta maneira as suas idéas, depois de ter lembrado e
-criticado as professadas por Franck:
-
-«Inflige-se o castigo ao infractor por motivo da sua infracção e não
-em virtude das infracções que se temem para o futuro... Houvesse
-certeza de que a infracção não poderia repetir-se, tanto da parte do
-agente como de quaesquer outros, e a lei violada poderia legitimamente,
-porque é uma lei, executar-se... A sociedade reclama do seu chefe, por
-força do seu proprio direito, uma expiação: não a reclama em nome e
-em virtude d’uma delegação de Deus... O direito de punir em si, não
-deriva d’uma vontade superior.» O auctor acrescenta mais adiante: «O
-poder social que não póde ordenar cousa alguma immoral, e que nem
-mesmo tem rasões para ordenar tudo o que é moralmente obrigatorio,
-gosa do direito de impor, com a sua sancção penal, quando o interesse
-collectivo que representa e reclama, acções ou abstenções que a lei
-moral não prescreve nem condemna. Eu quero que a penalidade social
-seja uma expiação e a liquidação d’uma divida, mas é uma expiação e a
-liquidação d’uma divida não para com Deus, mas para com a sociedade.»
-
-Não fazemos uma obra de critica; poremos de lado qualquer discussão;
-diremos unicamente que é impossivel não ficar desejando explicações
-mais amplas ácerca do _porquê_ e do _como_ d’este systema, e, muito
-particularmente, ácerca da medida das penas, teremos de abstrahir
-completamente dos graos de culpabilidade moral?
-
-O auctor em outro logar acrescenta ainda: Se se diz, segundo a nossa
-opinião, que o direito de punir deriva do direito de auctoridade, a
-questão unica será saber o que é que o soberano pode legitimamente
-prescrever ou ordenar, e regular a importancia das sancções pela
-importancia das prescripções.
-
-O soberano poderá preceituar tudo o que exigir a conservação e
-o desenvolvimento da ordem social e nunca preceituará cousa
-alguma incompativel com a lei moral, porque não ha ordem social em
-contradicção com esta lei.[48] Quereriamos saber até onde deve chegar
-esta harmonia entre o direito e a moral. Trata-se apenas do que
-cumpre preceituar, ou tem ella de ampliar-se até ao grao das penas?
-Perguntaremos, se se nos responder n’este segundo sentido, quaes são as
-differenças praticas entre este systema e o de Rossi.
-
-Lendo as numerosas criticas actualmente dirigidas contra este ultimo,
-necessariamente se nos depara com frequencia esta observação:
-repellindo tal systema, é-se, comtudo, levado, ao que parece, n’uma
-corrente de idéas não sem analogia com as que acabamos de combater.
-Não haveria, em tal caso, legitimas aspirações da consciencia? Seria
-possivel satisfazel-as com uma suficiente precisão?
-
-É o problema que quereriamos resolver, quanto possivel, na fraca medida
-das nossas forças.
-
-A maior dificuldade com que luctam os verdadeiros systemas mixtos
-consiste na conciliação de dois elementos que parecem excluir-se
-reciprocamente: o relativo e o absoluto. Estão alem d’isto naturalmente
-expostos ás objecções que se oppõem a cada um dos dois principios
-que se esforçam por combinar. A grande superioridade que se arrogam
-consiste em evitar os excessos a que poderia levar cada um d’estes
-principios tomado isoladamente. Duvidamos de que realmente possam
-conseguir esse fim; entendemos, de mais a mais, que nas theorias
-puramente relativas, quando sensatamente entendidas, podem encontrar-se
-garantias analogas, sem que offereçam eguaes perigos. Parece-nos que
-os receios suscitados por estas ultimas, e as accusações que se lhes
-dirigem, respeitam muito menos aos principios que lhes servem de base,
-do que ás idéas frequentissimamente incompletas, mesquinhas e parciaes
-que d’ellas se teem formado. Não o escondemos a nós mesmos: ha contra
-ellas bastantes prejuizos que queremos combater, porque nos parece isto
-indispensavel para attingirmos o fim que nos propomos.
-
-Em nossa opinião, prestar-se-hia um grande serviço á sciencia do
-direito penal, se a desembaraçassem, d’uma vez para sempre, das velhas
-idéas d’uma delegação total ou parcial da justiça de Deus. Não é que
-resolvamos inclinar-nos sem reservas ante as soberanias d’este mundo.
-Julgamol-as, a ellas proprias, subordinadas a uma regra superior; uma
-regra, porém, especial e humana, não porque deixe de ter uma origem
-superior, mas porque respeita á nossa existencia terrena, á missão que
-impõe aos representantes da ordem social.
-
-Cumpre não nos illudirmos: novas criticas que se dirigissem contra
-as theorias mixtas não teriam provavelmente resultados diversos dos
-precedentes; se se quer que desappareçam, é preciso satisfazer, em
-parte, ao menos, ás necessidades e aos sentimentos que as determinaram.
-Vejamos se, sem ir além das theorias puramente relativas, não é
-possivel conseguir aquelle fim.
-
-Digamol-o desde já; não temos a pretensão de haver descoberto fosse
-o que fosse; nada mais fizemos do que tratar de apontar phenomenos
-geralmente conhecidos, perguntando a nós mesmos se não é possivel achar
-n’elles a solução desejada; é o resultado d’este estudo que vimos
-submetter á critica.
-
-Quando acaba de commetter-se um crime, é natural preoccupar-nos com os
-meios pelos quaes se poderia evitar a repetição d’elle.
-
-Parece que é o auctor do facto a primeira pessoa contra quem deve
-proceder-se; como impedil-o, porém, de o renovar? Só por tempo,
-relativamente breve, podem collocal-o na impossibilidade physica de
-recomeçar. Seria louvavel e não deveria certamente perder-se de vista o
-trabalhar para o seu aperfeiçoamento moral; mas é uma empreza de largo
-folego e cujos resultados são muito incertos. Recorre-se geralmente á
-intimidação; oppõe-se o temor da pena ás seducções do crime.
-
-Tudo isto póde justificar-se; mas resta saber se são medidas
-sufficientes. Póde considerar-se o perigo social como inteiramente
-concentrado na pessoa do criminoso? O facto que acaba de dar-se não é,
-pelo contrario, o indicio e a consequencia d’um phenomeno mais geral,
-que exige uma reacção mais ampla.
-
-É bem certo que o perigo que é preciso combater existia antes da
-realisação do facto, porque o facto produziu-se. Basta, além d’isto,
-estudar, pouco que seja, o movimento da vida social, para reconhecer
-que as infracções que se trata de prevenir teem a sua origem n’um
-conjuncto de impulsos mais ou menos poderosos. Estas forças perigosas
-são, no fundo, as mesmas, antes e depois da perpretação do crime;
-apparecem como o objecto principal da reacção necessaria: é dos
-delinquentes futuros que principalmente é preciso tractar. O facto de
-se delinquir sob a acção d’estas forças é apenas uma circumstancia
-especial que não deve ser completamente despresada, mas que só póde
-exercer uma influencia restricta.
-
-Os principaes partidarios d’esta acção geral d’uma força preventiva,
-servem-se de expressões muito energicas para significarem o modo
-como esta acção deve exercer-se. Falam d’um constrangimento ou d’uma
-dynamica psychologica[49], do temor tendente a reprimir as tentações
-perigosas[50], do mal que excede o proveito que o criminoso deve colher
-do delicto[51]. Parecem-nos, em si, exactas estas expressões, salvos os
-correctivos de que adiante falaremos.
-
-Este conjuncto de systemas justifica-se, em principio, pela absoluta
-necessidade de fazer respeitar o direito, recorrendo em caso de
-necessidade, ao constrangimento. Assenta n’um facto de observação
-facil de verificar, e que leva a um conjuncto de regras geraes quanto
-á ponderação das penas; tracta-se apenas de estudar o meio social em
-que se quer actuar, e de preceituar penas correlativas ou á importancia
-dos interesses a proteger, ou á força dos impulsos contra que é
-preciso luctar. Pode-se frequentemente recorrer á experiencia em tal
-assumpto. Os outros systemas levam quasi necessariamente a uma especie
-de casuistica em que é preciso conceder muito á livre apreciação dos
-tribunaes.
-
-A acção preventiva[52], cujos principaes caracteristicos acabamos
-de apontar, tem sido objecto de criticas muito asperas; diz-se que
-ha n’ella alguma cousa de degradante e de brutal; é um recurso ao
-terror; maltractam o culpado como um instrumento destinado a servir de
-exemplo. O legislador torna-o uma victima dos proprios erros; elle é
-que é culpado; devia prescrever penas bastantes para que não houvesse
-contravenções; enganou-se nas observações e nos calculos; não satisfez
-á missão de que se incumbira. Chega-se mesmo a dizer que, em um tal
-systema, não é necessario provar a culpabilidade para se infligir
-uma pena, visto que o supplicio d’um innocente póde produzir o mesmo
-effeito preventivo que o de um criminoso. Acrescenta-se que cada nova
-infracção deveria augmentar as severidades da lei, por ficar assim
-demonstrada a insufficiencia das antigas penalidades.
-
-Digamol-o desde já: Não ha principio que não conduza a consequencias
-inaceitaveis, logo que, separando-o d’aquelles com que devia
-combinar-se, o levem, n’esse estado de isolamento, até aos seus
-ultimos desenvolvimentos logicos. Cumpre, alem d’isso, reconhecel-o:
-os proprios partidarios d’uma acção preventiva não estão isentos de
-defeito no modo por que diligenciaram definil-a e justifical-a.
-
-Fala-se d’uma maneira demasiadamente directa e exclusiva d’uma
-protecção da sociedade contra os attentados a que está exposta. Faz-se
-nascer assim a idéa d’uma lucta de todos contra cada um, lucta em que
-este seria quasi necessariamente sacrificado.
-
-É preciso renunciar a taes formulas, e proclamar em alta voz: A ordem
-social não se justifica e não tem rasão de ser senão como meio de fazer
-reinar o direito. Esta regra superior impõe-se a todos, tanto aos
-estados como aos individuos; dá a cada um o que lhe compete, e cobre
-com a sua protecção o accusado e o culpado mesmo, tanto como o queixoso
-e a victima. É um dos principaes merecimentos de Carrara ter muito
-particularmente insistido na idéa d’uma defesa do direito como base da
-sociedade.[53]
-
-Com demasiada frequencia se considera que o estado desempenha
-unicamente o papel d’um gendarme encarregado de vigiar por que os
-individuos se não invadam reciprocamente o campo de actividade que
-lhes é destinado. Esta doutrina, favorecida pelo systema de Kant,
-devia levar ao individualismo que hoje predomina; póde egualmente
-fazer considerar exclusivamente exterior em demasia a ordem que ao
-direito incumbe manter. É preciso não o esquecer: esta ordem exterior
-não é mais do que uma base sobre que deve produzir-se um completo
-desenvolvimento intellectual e moral; n’isto é que está o principal
-fim: não haveria senão mentira em qualquer ordem exterior que, para se
-produzir, offendesse esse desenvolvimento superior.
-
-São de molde a tranquillisar os espiritos as observações que
-precedem, porque reduzem ao seu justo valor os defeitos invocados
-pelos adversarios d’uma acção preventiva em direito penal. O accusado
-certamente achará garantias sob um regimen em que deve ser protegido o
-direito de todos.
-
-Não é ser tratado como um instrumento, e sacrificado a um fim estranho,
-o soffrer um regimen a cujos rigores deu causa a negligencia e a
-vontade culposa. É isto tanto mais verdadeiro, quanto este facto é uma
-condição necessaria para a manutenção d’uma ordem de cousas com que
-cada um aproveita, e que deve cada um respeitar como uma lei da sua
-natureza.
-
-O temor de um materialismo exagerado, quer pelo que respeita ás
-tendencias contra que julgam dever luctar, quer pelo que respeita aos
-reagentes que procuram oppor-lhes, não se justifica sufficientemente
-pelos principios do systema; nada ha n’esses principios que
-necessariamente conduza a um tal materialismo; os impulsos que devem
-combater-se para se satisfazer a esta doutrina são de diversas
-naturezas, bem como o são os meios de se lhes resistir.
-
-A acção preventiva do direito penal tambem não tem necessariamente
-como consequencia levar a exaggeradas severidades, sacrificando tudo a
-uma certa ordem exterior, e redobrando de rigor a cada nova infracção.
-N’este systema, como nos outros, não se poderia ter a pretensão de
-manter a ordem d’uma maneira absoluta: não pode esquecer-se que é
-precisa, tendo em vista um fim superior, a sujeição a certos limites,
-e o respeito pela maior somma possivel de liberdade. Leva-nos isto ao
-estudo das relações que devem existir entre o direito e a moral. Chegou
-o momento de melhor profundarmos as particularidades d’este assumpto;
-esse é, como já vimos, o fim principal do presente estudo.
-
-Convem fazer notar que, propondo-nos oppor o reagente da pena ás
-seducções do delicto, é sobre a vontade, isto é, sobre um elemento
-essencial da vida moral, que procuramos actuar.
-
-Se falta completamente esta liberdade, não pode tratar-se da pena,
-porque o elemento sobre que esta devia exercer influencia não existe.
-Chegamos assim aos mesmos resultados a que chegariamos, se unicamente
-nos preoccupassemos com uma culpabilidade moral que não poderia dar-se
-em tal hypothese. Mas esta ausencia e esta diminuição de liberdade
-podem apresentar gradações e provir de causas diversas, por uma parte
-de violentos impulsos, e, por outra, d’um estado normal e doentio.
-Occupemo-nos successivamente d’estes dois casos, attendendo ás relações
-do direito e da moral.
-
-1.ᵒ Quanto ao obstaculo proveniente dos fortes impulsos, é preciso
-distinguir entre duas hypotheses:--a) Esses impulsos são de tal ordem
-que fazem desapparecer completamente a liberdade. Parece que, sendo
-assim, deve desapparecer qualquer imputabilidade segundo uma e outra
-lei, resalvando-se os casos em que esses impulsos proviessem d’um
-desenvolvimento de paixão contra o qual teria sido possivel luctar.
-Pode acontecer, todavia, que o direito se declare impotente em casos
-em que a moral não haja perdido toda a competencia; tal seria o de
-dois naufragos que se disputassem um destroço insufficiente para
-salvar ambos. Em geral seria difficil recusar um tributo de louvor e
-de admiração áquelle dos dois que se sacrificasse pelo outro. Podia
-egualmente succeder que devesse infligir-se uma censura mais ou menos
-severa a um ou a outro, conforme as circumstancias.
-
-Poderia até dar-se uma verdadeira violação de direito. Mas, n’uma
-tal posição, o estado de natureza e os instinctos vitaes predominam
-com tamanha força, que não seria escutada a ameaça d’uma pena, e que
-dificilmente se justificaria a imposição d’ella--b) Esses impulsos
-deixam subsistir um certo grau de liberdade reconhecido por uma e
-outra lei. A moral distinguirá: verá circumstancias attenuantes na
-acção d’essas causas, se, em si, forem innocentes ou louvaveis; verá
-circumstancias aggravantes, se forem condemnaveis. E o que será feito
-do direito penal? Não deveriam calcular-se unicamente pela força de
-taes impulsos as exigencias da acção preventiva? Não se poderia mesmo
-avançar que é preciso proceder com rigor, tanto maior quanto maior é
-a falta de reacção moral? Não se poderia citar como exemplo um pae de
-familia que a miseria impelle até o roubo para prover á sustentação da
-mulher e dos filhos? Não pode parecer necessario redobrar de severidade
-para luctar contra impulsos taes?
-
-2.ᵒ A mesma dissidencia e as mesmas questões se levantam quanto
-aos obstaculos que um estado anormal ou doentio póde impor ao
-desenvolvimento da liberdade. N’elle verá geralmente a moral
-circumstancias attenuantes. Póde, ao contrario, pensar-se que em
-direito penal, é necessario ferir com tanta maior força quanto mais
-obtuso e quasi embrutecido fôr o individuo de que se trate.
-
-Escusamos de o dissimular: estes conflictos e estas questões
-apresentam-se nitidamente ao espirito, se apenas se attende á ordem
-material, e á necessidade de a manter estrictamente e rigorosamente.
-Talvez se fosse tentado a acceitar, a tal respeito, o dilemma admittido
-pelo criminalista italiano Giuliani, ferveroso discipulo de Romagnosi:
-
-«_Se se admitte um principio differente d’aquelle segundo o qual as
-penas devem ser graduadas em conformidade com a força dos impulsos
-que conduzem ao mal, esse principio deverá conduzir a differentes
-resultados; exigirá uma pena mais ou menos forte. Essa pena será
-excessiva ou insufficiente. Seria injusta n’este ultimo caso, tanto
-para com a sociedade, que tem o direito de ser efficazmente protegida,
-como em relação ao culpado, que se veria atormentado sem que d’isto
-resultasse nenhum bem publico._»[54] Vejamos comtudo se não deve
-resultar uma outra resposta d’um estudo mais profundo do assumpto.
-
-Vimos quaes podem afigurar-se ser as exigencias d’uma ordem puramente
-material; cumpre-nos indagar quaes devem ser as da ordem moral, e qual
-a influencia que sobre as primeiras são chamadas a exercer.
-
-A consciencia é, como o dissemos já, o elemento primordial e
-necessario de todo o desenvolvimento moral. Cada um de nós escuta,
-nas profundidades do seu ser, uma voz que lhe diz: Tu és livre; mas
-este nobre privilegio traz comsigo mesmo o principio d’uma austera e
-terrivel responsabilidade, porque é preciso fazer d’elle o uso exigido
-por uma lei superior. Ha entre o bem e o mal uma distincção que,
-nem por ser algumas vezes offuscada pela ignorancia ou pela paixão,
-deixará de se fazer reconhecer: é preciso procurar o primeiro e evitar
-o segundo. Degrada-se e compromette-se quem não obedece a esta regra,
-porque se colloca voluntariamente fóra do caminho que devia trilhar.
-
-Esta voz faz-se perpetuamente ouvir para nos evocar á realidade das
-cousas. Tem-se visto luctar com vantagem contra o septicismo d’uma
-escola que um espiritualismo exagerado levava a desconhecer o mundo
-externo.[55] Lucta actualmente contra o materialismo e o fatalismo:
-confiamos em que não será suffocada. É bem certo que não se poderia
-abstrahir d’este testemunho directo da nossa natureza superior:
-não é sem motivos e não deve ser em vão que se faz ouvir com tal
-persistencia. Vejamos agora que influencia deve exercer no direito
-penal.
-
-Faremos observar, em primeiro logar, que não é unicamente um elemento
-individual: apresenta-se tambem debaixo d’uma fórma collectiva e
-social. Cada nação vive d’uma vida moral que lhe é mais ou menos
-propria e que se manifestou por muito tempo no direito consuetudinario
-cuja origem só póde explicar-se por uma auctoridade expontaneamente
-reconhecida. Mudaram os tempos: parece não bastar este modo de
-proceder, e substitue-se-lhe um largo desenvolvimento do poder
-legislativo; mas não conserva menos cada povo um fundo de vida moral
-que lhe é propria, e que lhe constitue uma das linhas principaes do
-caracter nacional.
-
-Occupemo-nos agora de cada um d’esses dois aspectos da consciencia em
-face do direito penal.
-
-Qualquer acto da vida moral é seguido, na consciencia individual,
-d’um sentimento de approvação ou de reprovação que, em si mesmo,
-constitue já uma especie de sancção pela impressão de contentamento
-ou de descontentamento que deriva d’elle. Esta manifestação primeira
-póde parecer que não está directamente em relação com o direito; mas
-ainda vae alem; como precedentemente dissemos, vem juntar-se-lhe
-uma impressão de merito ou de demerito. A felicidade promettida aos
-bons não provoca geralmente nenhuma pretensão directa relativamente
-ao direito: seria impossivel encarregar o Estado de directamente
-satisfazer a tanto, d’uma maneira ampla. Mas exercendo de facto o
-Estado o poder de infligir penas, pergunta-se se não deveriam seguir-se
-os avisos da consciencia no exercicio d’essas funcções, e até que ponto
-póde convir o embrenhar-se n’esse caminho.
-
-O mao merece ser desgraçado! Estas austeras vozes repercutem-se
-de edade em edade com demasiada persistencia para que seja licito
-abstrahirmos d’ellas completamente. Parece, alem de tudo, muito
-difficil que um ser intelligente e sensivel não soffra fora do caminho
-que deve trilhar. Deve-se comtudo ter cautella em não materialisar este
-sentimento exigindo que o Estado o satisfaça directamente. Não temos
-de repetir aqui os argumentos que apresentámos acerca das doutrinas
-absolutas, quer consideradas em si, quer nas diversas combinações que
-se tem tentado effectuar entre o principio da expiação e as exigencias
-d’uma protecção social. Quanto mais estudamos essas combinações, mais
-nos convencemos da impossibilidade de as conseguir, e dos perigos que
-se correm, tentando-o. D’aqui não resulta comtudo que o direito penal
-possa abstrahir completamente dos juizos da consciencia. É verdade
-que nenhuma medida commum existe entre o sentimento abstracto de
-demerito que se prende á culpabilidade moral, e as penas geralmente
-physicas infligidas pelo Estado; mas seria engano concluir que nunca
-podem levantar-se conflictos entre estes dois elementos. Já o vimos:
-as exigencias sociaes parecem algumas vezes reclamar severidades que
-se não harmonisam com a verdadeira culpabilidade moral; deriva d’ahi
-certissimamente um sentimento doloroso para a consciencia. Qual deve
-ser a influencia d’um tal facto sobre a pratica do direito?
-
-Digamol-o em primeiro logar: esse sentimento é, em si, natural e
-legitimo. Soffrer quando se vê exercer uma demasiada severidade, não é
-o mesmo que reclamar penas mais rigorosas. É mais grave infligir um mal
-immerecido do que abster-se ou restringir-se dentro de limites tidos
-por estreitos em demasia. Para preencher lacunas taes, eis ahi sempre
-a auctoridade superior, de cuja justiça se quereria ver o exercicio.
-Acrescentemos que, sendo a consciencia moral um dos principaes
-elementos do progresso individual e social, não pode admittir-se que o
-Estado não tenha de preoccupar-se com elle, ainda que não fosse senão
-para respeitar e deixar que se cumprisse uma obra tal.
-
-O que dissemos ácerca das relações que devem existir entre as duas leis
-indica sufficientemente que a vida humana não pode dividir-se em duas
-partes; uma puramente juridica e outra puramente moral; existe entre
-estes dois elementos uma acção e uma reacção necessarias e reciprocas;
-demonstra-o a natureza das cousas, e confirma-o a historia: se tem
-de viver n’um mundo em demasia contrario ás suas crenças e ás suas
-aspirações, o homem moral tende a insurgir-se ou a degradar-se; as mais
-das vezes, succede-lhe uma e outra cousa ao mesmo tempo. A demasiada
-severidade das penas dá muito particularmente este resultado. Deriva
-d’ella um sentimento de incerteza e de mal-estar; o accusado parece ser
-uma victima que cumpre lastimar e tractar de subtrahir á sorte injusta
-que a ameaça. É assim que a impunidade tende a produzir-se no meio da
-anarchia e d’uma desmoralisação geral. O proprio Feuerbach, um dos mais
-rigorosos partidarios do constrangimento psychologico, reconhecia a
-necessidade de nos curvarmos perante um poder tal.[56] Digamos ainda
-que os sentimentos da consciencia não podem senão embotar-se n’um meio
-social que os não considera sufficientemente. Vendo-os desconhecer com
-demasiada frequencia, fica-se em duvida se não seriam vãs illusões.
-
-Ha, pois, que fazer concessões á consciencia moral. Comparando com as
-doutrinas mixtas as idéas cujos traços principaes acabamos de expor,
-é que veremos qual a natureza d’essas concessões, e até onde devem
-ir. Taes idéas não offerecem aliás nenhuma novidade: são apenas a
-maneira de viver cada vez mais consagrada pelos factos. O systema das
-circumstancias attenuantes reconhecidas pelo jury, no fundo não é mais
-do que a realisação pratica de taes concepções.
-
-§ 4.ᵒ--As differenças caracteristicas que distinguem estas theorias das
-antigas theorias mixtas parecem-nos evidentes; mas não é menos preciso
-resumil-as e pol-as em relevo com toda a exactidão e precisão possiveis.
-
-Assentam estas doutrinas mixtas, no fundo, sobre a combinação de
-quatro idéas que apresentam como principios, cuja estricta observancia
-é necessaria em vista das garantias e dos limites que para o direito
-penal d’elles devem resultar:
-
-1.ᵒ Ha uma justiça absoluta que retribue o mal com o mal, tendo em
-vista uma expiação que tem a causa em si propria;
-
-2.ᵒ A ordem social exige, para se conservar, que se inflijam certas
-penas aos que a perturbem;
-
-3.ᵒ Esta penalidade exerce-se em virtude e em execução d’uma delegação
-parcial da justiça absoluta;
-
-4.ᵒ Esta delegação não é admissivel senão nos limites do que é
-necessario e possivel para a manutenção da ordem social.
-
-A idéa d’uma expiação absoluta, como base unica da justiça suprema, é,
-como já dissemos, mais ou menos difficil de conceber.
-
-A delegação parcial d’esta justiça não parece nem justificada
-nem exequivel. Afiguram-se taes doutrinas, em todos os casos,
-demasiadamente superiores ás nossas faculdades e demasiadamente
-discutiveis, para que seja possivel tomal-as como base d’um poder tão
-temivel.
-
-Acrescentaremos que as garantias e os limites que se procuram n’esta
-combinação bem poderiam ser illusorios, e que não deixariam de
-offerecer perigo.
-
-Expor-se-hia a bastantes decepções quem buscasse na justiça absoluta
-garantias e limites contra os rigores da justiça social; porque esta,
-para justificar as severidades que julga necessarias, apenas tem de
-elevar um ou muitos graos toda a escala da penalidade moral. O que é
-facil na falta de qualquer medida commum aos dois generos de penas
-e em presença da infinita grandeza do soberano legislador cujas
-determinações foram violadas. Não se tem já pretendido que todas as
-medidas e todas as gradações desapparecem em presença do infinito?
-
-Offerece este systema duas fontes de perigos: 1.ᵒ Não é impossivel que
-n’elle se encontre, em vez d’uma diminuição um augmento da penalidade;
-2.ᵒ é possivel tambem que n’elle se encontrem limites que não permittam
-satisfazer as exigencias sociaes.
-
-a) Já o dissemos: é uma ardua tarefa conciliar as regras absolutas da
-expiação moral, tal qual se concebe geralmente n’essas doutrinas, com
-as necessidades puramente relativas da ordem social.
-
-Nem sempre será facil fugir ao que ha de naturalmente imperioso na
-primeira ordem de idéas; poderá ser-se levado a elevar tal ou tal
-pena sem verdadeira necessidade social, unicamente para manter uma
-certa harmonia na gradação reclamada pela lei moral. Poderia conduzir
-a consequencias semelhantes o desejo de evitar um mao exemplo que
-parecesse resultar de taes contrasensos.
-
-Se se admitte um só principio justificativo da pena, unicamente se
-applicará esta depois de rigorosamente verificado se esse principio a
-reclama.
-
-Se se admittem dois, poderá succeder que se seja mais facil na
-applicação d’um, em virtude da evidencia que se manifeste quanto á
-applicação do outro. Uma culpabilidade moral n’um alto grao de certeza
-poderá fazer com que se attenda mais ou menos de leve á verificação das
-necessidades sociaes. Adquirir-se-ha pelo pensamento a segurança de
-que, no fim de tudo, o accusado, soffrendo a pena, unicamente soffrerá
-o que mereceu.
-
-O systema não terá, sem duvida, sido estrictamente observado n’estes
-dois casos; mas não é superfluo attender ás possiveis fraquezas da
-nossa pobre humanidade.
-
-b) Cumpre reconhecer que, muito frequentemente, as penas que parecem
-necessarias pelo que respeita á segurança social, parecem exceder a
-culpabilidade moral, no sentido, ao menos, de que tal circumstancia
-póde reclamar uma elevação da acção repressiva, sem que o facto
-represente em si um correspondente aggravo moral. A justiça militar em
-tempo de guerra e certas medidas de salubridade e de ordem publicas
-parece terem taes exigencias.
-
-É interessante notar a attitude de M. Rossi ao fallar das medidas
-tendentes a prevenir a invasão das doenças epidemicas ou contagiosas.
-Depois de ter provado a severidade muito rigorosa a que se costuma
-recorrer em taes circumstancias, esforça-se por justifical-a dizendo
-que se é moralmente muito culpado quando, por imprudencia, se expõe um
-paiz aos ataques d’um semelhante flagello.[57]
-
-É o que geralmente se faz: accommoda-se a culpabilidade moral ao perigo
-social. Offerecem-se aqui duas observações:
-
-1.ᵃ se devesse sempre existir uma tal proporção, não vemos que
-accrescimo de garantias e que limites se obteriam combinando os dois
-principios.
-
-2.ᵃ Já vimos, falando dos obstaculos que se oppõem ao pleno
-desenvolvimento da liberdade, que uma tal harmonia nem sempre existe.
-Parece alem d’isso ser preciso ir mais longe, e reconhecer a este
-respeito um motivo quasi permanente de desaccordo. O direito carece
-de apoiar-se em principios abstratos conducentes a regras geraes; a
-moral depende frequentemente de convicções individuaes que transfiguram
-algumas vezes as regras sociaes em formulas mais ou menos importunas,
-cuja conveniencia se não justifica sufficientemente quer em si mesma, e
-d’um modo geral, quer em attenção a taes circumstancias particulares.
-
-Estas regras podem até afigurar-se manifestamente injustas e nocivas.
-Nem por isso devem respeitar-se menos em direito estricto e rigoroso.
-É o que demandam as exigencias da ordem. Mas, collocadas no ponto
-de vista puramente moral, seria difficil abstrahir completamente
-dos escrupulos e até das extravagancias e dos erros da consciencia
-individual. A opinião publica não se engana: sem criticar uma certa
-pena como em demasia severa, longe está ella de a tomar sempre como
-medida da censura que dirige contra o agente. Dá-se certamente alguma
-cousa semelhante no tocante ás medidas sanitarias. É-se sem duvida
-culpado de expor um paiz aos ataques d’um mal que se teme, mas é
-facil haver illusões a este respeito. Póde alem de tudo acontecer que
-imperiosos deveres venham combater e diminuir a auctoridade da lei.
-
-Vejamos o que, sob este ponto de vista, deve pensar-se das idéas que
-defendemos como base do direito penal. Não temos aqui mais do que
-um principio unico que tenta proteger todos os direitos e todos os
-interesses commettidos á sollicitude do Estado. São as necessidades
-sociaes que devem predominar em um tal systema; mas não se referem só á
-ordem material; devem attender á ordem superior a que esta servirá de
-ponto de partida e de meio.
-
-O elemento moral figura n’elle sob um aspecto inteiramente diverso do
-que tem nas theorias mixtas. Não se trata d’uma doutrina nascida de
-locubrações scientificas e impondo-se imperativamente: consideramos
-a consciencia um facto que é preciso respeitar, e a que é preciso
-attender, em vista da sua grande importancia moral e da influencia
-que exerce na auctoridade e na verdadeira efficacia da lei penal.
-Apresenta-se, como já vimos, sob dois aspectos. Vejamos que papel é
-necessario distribuir-lhe no desenvolvimento da actividade repressiva.
-
-Compõe-se esta actividade de dois elementos: 1.ᵒ um certo numero de
-regras mais ou menos abstractas e geraes, preceituadas pelo poder
-legislativo; 2.ᵒ a applicação d’essas regras aos casos particulares
-n’ellas previstos.
-
-1.ᵒ Quanto ao primeiro d’esses dois elementos, não devemos
-certissimamente, ir além do que chamamos moral publica ou consciencia
-nacional. É n’isso, n’esse conjuncto de tradicções, de convicções e de
-sentimentos derivados da historia de cada povo, que bem manifestamente
-se encontram as bases da vida collectiva e social d’elle; é ahi que ao
-mesmo tempo deve procurar-se a obra do seu passado e o ponto de apoio
-sobre que deve desenvolver-se o seu futuro. É um poder que só com
-respeito deve considerar-se em attenção á origem e á sua importancia.
-Não é preciso lisongear ninguem, e o povo, ainda menos talvez do que
-os individuos. Mas todo o povo, de que não deve desesperar-se, tem
-na sua vida intima um certo numero de idéas moraes reconhecidas mais
-ou menos sãs. É isso que constitue o lado bello do caracter nacional
-e da moral publica. É esse fundo commum que o legislador deve tomar
-para base da sua obra, se quer que o povo se desenvolva livremente e
-viva de vida propria. É n’esse facto d’uma consciencia nacional que é
-preciso attentar, no que tem de verdadeiramente acceitavel. É n’elle
-que convem buscar apoio para combater os impulsos perigosos que são o
-objecto da acção penal. É d’elle que se torna necessario respeitar as
-susceptibilidades.
-
-Ha um nucleo de vida moral, uma base de progresso futuro que é preciso
-manter cuidadosamente. Digamol-o comtudo: esta parte sã da consciencia
-nacional é muito affectada por um sentimento doloroso quando assiste
-a condemnações que lhe parecem em demasia severas, mas geralmente não
-leva tão longe as suas exigencias como deveriam fazel-o as doutrinas
-mixtas, para se manterem verdadeiramente fieis aos seus principios.
-
-Ha necessidades sociaes que cada um deve acceitar porque se impõem
-imperiosamente. Quem voluntariamente abriu lucta com a lei reconhece
-ter justamente incorrido nas penas que ella preceitua, embora
-procedesse com as mais honrosas intenções. Ha muito que este facto
-se aponta: um dos homens que a historia mais cercou de respeito,
-Washington, era regularmente um rebelde. Quem ousaria accusal-o de
-culpabilidade moral, e, se tivesse succumbido na sua empreza, quem se
-molestaria com uma condemnação proferida contra elle? Quaes teriam
-sido, em semelhante hypothese, os sentimentos d’um partidario das
-doutrinas mixtas?
-
-2.ᵒ--A influencia da consciencia nacional reapparece ainda, mas d’um
-modo menos directo, no exercicio da acção judiciaria. É d’um facto
-individual que se tracta; é o que se passou na consciencia do agente
-que cumpre apreciar moralmente. Se se quer ser justo e equitativo,
-não é possivel abstrair das circumstancias do facto, dos impulsos e
-das convicções especiaes sob cuja influencia o acto se produziu. Mas
-o meio moral predominante no paiz deverá necessariamente exercer uma
-larga influencia em tal apreciação. O que de resto é justo, porque são
-em geral esses principios de moral publica que actuaram, deveram ou
-poderam actuar na perpretação do facto; são elles que o juiz deve tomar
-em consideração, mais do que as suas convicções individuaes, que podem
-afastar-se muito da corrente geral.
-
-Acrescentemos que deve haver harmonia entre a acção legislativa e a
-judiciaria, d’onde resulta que esta ultima deve, como a primeira, fazer
-concessões á consciencia racional. Que nós, se se nos perguntar até
-onde se deve ir n’este caminho, diremos que seria difficil formular a
-tal respeito regras absolutas; são questões essas a respeito das quaes
-o legislador e o juiz devem ter um certo poder d’apreciação.
-
-Tudo o que podemos dizer é que, se fosse preciso escolher entre
-os effeitos d’uma ordem material que só assentasse no temor, e a
-auctoridade moral d’uma pena acceite pela consciencia, não hesitariamos
-em nos inclinarmos para esta ultima. Estamos persuadidos de que,
-satisfazendo ás mais altas aspirações da nossa natureza, essa escolha
-estaria bem longe de comprometter a ordem tal qual deve reinar.
-
-Ainda uma vez, a ordem material deve ser considerada como condição
-d’uma ordem superior que se lhe não deve sacrificar. É ahi que se
-encontra a solução do problema que nos propozemos. É pela elevação da
-ordem social á sua verdadeira altura, sem perder de vista o fim ultimo
-para que deve tender, fazendo entrar n’ella todos os elementos que deve
-conter, que se dá satisfação, tanto quanto possivel, aos sentimentos
-moraes que n’ella podem achar-se mais ou menos offendidos.
-
-É certo que esta corrente d’ideias apenas conduz a uma especie de
-transacção, e que em tal assumpto, mais que em qualquer outro, sente-se
-a necessidade d’um apoio em principios fixos. É a objecção que nos
-apresentava um dos mais distinctos dos nossos antigos magistrados, que
-desempenhava então as funcções de procurador geral, e que morreu ha
-pouco. Todas as nossas sympathias seriam votadas a taes sentimentos, se
-fosse possivel dar-lhes uma conveniente satisfação. A questão é essa,
-e cremos tel-a estudado com uma conscienciosa perplexidade.
-
-Não basta crear principios, é preciso que assentem n’uma base solida
-e possam combinar-se sem se chegar a resultados incompativeis. É
-necessario encarar a vida tal qual se nos apresenta, e quanto mais
-observamos, mais nos parece demonstrado que as complicações sociaes são
-difficeis de se reger por meio de regras abstractas, que se desenvolvam
-com um rigor mathematico. Devemos dar-nos por felizes quando podemos
-reconhecer certos principios dirigentes. Julgamos tel-o conseguido no
-presente estudo, sem deixarmos de dar aos factos toda a importancia que
-devem ter.
-
-
-NOTAS DE RODAPÉ:
-
-[29] Tissot, _Le droit pénal, etudié dans ses principes_, t. I, pag.
-197.
-
-[30] Boitard, _Leçons sur le Code pénal_, pag. 66.
-
-[31] Cf. entre outras obras sobre o direito de punir em geral, F. J.
-Goebel, _De legitima sui defensione_.
-
-[32] _Revue générale du droit, de la législation et de la jurisprudence
-en France et de l’étranger_, Echn. Labotat--Paris, pag. 32 e 35.
-
-[33] _Ann. médic, psych._, tome II, pag. 273.
-
-[34] Lelorrain, _De l’aliené au point de vue de la responsabilité
-pénale_, pag. 90.
-
-[35] Dr. Giulio Belfiore, _L’ipnotismo e gli stati affini_, pag. 299.
-
-[36] Ferreira-Deusdado, _Ensaios de philosophia actual_, pag. 179.
-
-[37] A. Culerre, _Magnetisme et Hypnotisme_, pag. 372.
-
-[38] _Étude sur l’influence légitime de la conscience morale en
-droit pénal_, par Charles Brocher, professeur á l’Université de
-Genéve.--Paris. Este trabalho, que vae até ao fim do cap., foi
-traduzido por indicação nossa, na _Revista de Educação e Ensino_, 4.ᵒ
-anno, pag. 339 e seguintes, pelo nosso illustre amigo o sr. Alfredo da
-Cunha, talentoso advogado e distincto homem de lettras.
-
-[39] Julgamos poder indicar especialmente as obras seguintes: Hepp,
-_Darstellung und Beùrtheilung der deutschen Strafrechtssysteme. Ueber
-die Gerechtigkeits, und Nutzungstheorien des Auslandes_--Rœder,
-_Verbrechen und Strafe_.
-
-[40] V. tambem a introducção do nosso _Etude sur la légitime et les
-réserves_. Paris et Genève, 1868. V. tambem os nossos _Etudes sur le
-droit naturel_ na _Revue générale du droit_. Paris, 1877 (_Exposé
-critique des Institutes de droit naturel_, de M. Lorimer).
-
-[41] _Droit Naturel_, traducção Barni, p. 197.
-
-[42] V. especialmente Abegg, _Die verschiedenen Strafrechtstheorien_.
-
-[43] Este discurso acha-se entre os documentos da dita Academia.
-
-[44] _Traité du droit pénal._ V. especialmente: Introducção, Livro I,
-cap. 9, 12, 13; Livro III, cap. 4.--V. em sentido proximamente analogo,
-o artigo publicado pelo Duque de Broglie na _Revue française_, 1828, e
-a obra de Guizot sobre _La peine de mort_, cap. 6.
-
-[45] V. especialmente o _Programme d’un cours de droit criminel_, cujo
-1.ᵒ volume foi traduzido por M. Baret, em 1876. Expozemos e criticamos
-os principios geraes d’esta doutrina n’um artigo que se imprimia quasi
-simultaneamente com estas linhas na _Revue de droit international de
-Gand_ (1878).
-
-[46] Franck, _Philosophie du droit pénal_, cap. V, pag. 189 e seguintes.
-
-[47] V. especialmente _La liberté civile_, pag. 457, 475 e seguintes,
-pag. 486.
-
-[48] _Cours de code pénal_, Append. pag. 652, da edição de 1864.
-
-[49] Feuerbach, _Lehrbuch des peinlichen Rechts_, § 12. Romagnosi,
-_Genesi del diritto penale_, §§ 334 a 336, 339, 1273.
-
-[50] Carmignani, _Teoria delle leggi delia sicurezza sociale_, t. III,
-ap. 22, 65, 69, 75, 87, 94, 176; t. IV, p. 5.
-
-[51] Bentham, _Théorie des peines_, ch. 5.
-
-[52] V. especialmente, no que respeita á prevenção individual, Roeder
-_Verbrechenund Strafe_, p. 73; e a mesma obra, p. 105 e seguintes, pelo
-que respeita aos systemas que se propõem á regeneração do criminoso.
-
-[53] V. o _Programme_ anteriormente citado, t. 1.ᵒ § 611, e _passim_, e
-_Prolusione al corso accademico di diritto penale_, anno 1873-1874.
-
-[54] _Instituzioni di diritto criminale_, 2.ᵃ ed., pag. 116 do t. I.
-
-[55] Alludimos especialmente á escola de Kant e ás derivadas d’ella.
-V. o que a este respeito dissemos em o nosso _Étude sur la vie et les
-oeuvres de K.--S. Zachariæ_.
-
-[56] _Lehrbuch des gemeinen peinlichen Rechts_, § 18, notas.
-
-[57] _Droit constitutionel_, t. II, p. 267 e 282.
-
-
-
-
-IV
-
- A existencia congenita do sentimento religioso. A utilidade da
- sua acção disciplinadora. Vantagens d’este elemento na educação
- correcional. A opinião dos criminalistas italianos e d’um notavel
- principe da Egreja.
-
- A religião é o problema por excellencia dos tempos modernos.
-
- JOHN TYNDALL.
-
- Si la religion n’est pas le fondement de la morale, elle est le
- fondement de son efficacité pratique.
-
- PAUL JANET.
-
-
-A crise que está atravessando a moral e o sentimento religioso é um
-problema grave. O nosso seculo é a epoca de transição entre um passado
-insufficiente e um futuro prenhe de audaciosos acontecimentos, que os
-espiritos circumspectos e que veem largo, não ousam encarar sem um
-grande espanto ou um justo receio.
-
-Os revolucionarios e os innovadores não se inquietam, porque esperam
-ver um dia o genio do homem sair victorioso do combate titanico, que
-a sciencia travou contra as forças da natureza, escondidas ainda na
-intelligencia humana. Mas o conteudo do decimetro cubico da nossa massa
-encephalica fica absolutamente satisfeito com a sciencia positiva? A
-religião é uma fórma transitoria da evolução humana como pretendem os
-positivistas? É uma invenção dos sacerdotes como queriam os philosophos
-do seculo passado? Tem origem n’um sentimento passageiro, como dizia o
-poeta romano: _primus in orbe deos fecit timor_?
-
-Ao estudarmos as religiões na sua continuidade historica, na filiação
-dos cultos, no encadeamento logico das concepções, vemos que o passado
-é a génese inexgotavel do futuro. Ainda que a civilisação verta sobre
-a alma da humanidade muitos gozos e beneficios a razão achal-os-ha
-impotentes para a satisfazer. A religião é, na vida humana sensivel,
-comtemporanea da dôr e durará tanto como ella. O seu objecto ficará
-sempre como sublime aspiração para um ideal que não abranje só este
-mundo, e que como uma columna de fogo illuminará nas crises dolorosas
-a senda mysteriosa da consciencia humana. O homem dirige-se pelas
-idéas verdadeiras ou falsas, mas dirige-se e consola-se tambem pelo
-sentimento. Póde affirmar-se que são principalmente os sentimentos
-os moveis da nossa actividade e que a nossa vida moral, no que ella
-tem de externo á lei do dever, dimana sempre d’um sentimento ou d’uma
-emoção a procurar ou a evitar. É possivel que n’um futuro longinquo,
-a sciencia acabe sobre a terra por substituir completamente o cerebro
-ao coração, o raciocinio ao sentimento, tornando a alma humana inane
-ao aguilhão do desejo e indifferente ás emoções da sensibilidade. No
-momento evolucionario em que não houver nem amor, nem dedicação, nem
-piedade, nem ternura, nem sinceridade, n’esse dia a vida humana, tal
-como a concebemos, terá desapparecido n’um horror de tristeza, na
-profundissima treva cantada por Byron. As puras abstracções da sciencia
-não podem dirigir, nem satisfazer a humana aspiração. Nenhuma realidade
-contingente póde encher a vida immensa da nossa alma.
-
-Penetrando pela analyse nos factos passados da humanidade, reconhecemos
-em grande parte, que muitas das suas concepções mais consoladoras e
-mais queridas, com as quaes ella explicava a natureza das cousas,
-cairam á luz das investigações severas da sciencia como phantasmagorias
-enganosas. Aos velhos deuses, ainda que invejosos e crueis,
-susceptiveis ao menos de misericordia, succedeu a fatalidade inexoravel
-da lei, que é surda á supplica do crente e inaccessivel á esperança do
-afflicto. Alguns espiritos demasiado positivos promettem á humanidade
-pela sciencia um futuro reinado de Astrêa, quando em verdade nunca
-durante o imperio incontestado dos deuses o homem foi tão escravo
-como é hoje em frente das leis desapiedadas e brutaes da natureza. São
-todas as religiões positivas uma illusão, uma chimera? Supponhamos, sem
-o conceder todavia, que sim. Mas não ha na sciencia muita hypothese
-gratuita, muita theoria enganosa? Eu prefiro a crença na doutrina que
-tem servido de doce abrigo e de suave conforto á humanidade desditosa,
-á explicação hypothetica fornecida pela dura realidade da sciencia, mas
-que rouba ao coração humano o sentimento augusto da esperança, que é
-mais verdadeiro que o da propria felicidade.
-
-Não póde negar-se que todo o sentimento religioso tem um fundo de
-verdade. É-nos desconhecida a natureza intima, o principio que inspira
-essas manifestações, mas essa ignorancia existe a proposito de muitos
-phenomenos scientificos. Por ventura conhecemos, por exemplo, a
-natureza intima da electricidade?
-
-Se o sentimento religioso tem sempre um fundo de verdade, resulta
-até perante a sciencia que a religião é evidentemente util. A
-especulação religiosa foi o primeiro factor intellectual que elevou a
-alma humana acima da animalidade «sendo, como diz Littré, necessario
-e indispensavel um systema philosophico ou conjuncto de idéas por
-meio das quaes tudo seja explicado; na ausencia do verdadeiro que
-estava ainda na sombra de um longinquo futuro, os homens crearam-no
-hypothetico, mas não arbitrario; transitorio, mas conforme ao estado
-intellectual do momento. Estes systemas foram a theologia e a
-metaphysica.»
-
-Esta affirmação de que o estado theologico é transitorio é o reflexo da
-falsa lei comteana dos tres estados. Não ha tres methodos radicalmente
-oppostos de philosophar, o methodo é essencialmente o mesmo, a
-integração das causas é que progressivamente converte principios
-explicativos menos geraes n’uma lei universal. Escreveu Diderot na
-sua _Carta sobre os cegos para uso dos que vêem_. «Se a natureza nos
-offerece um nó difficil de desfazer, deixemol-o pelo que vale e não
-empreguemos a cortal-o a mão de um ser que em seguida se torna para nós
-um novo nó mais indissoluvel que o primeiro. Perguntaes a um indio como
-está o mundo suspenso nos ares; responder-vos-ha que descança no dorso
-de um elephante; e o elephante sobre que assenta? Sobre uma tartaruga.
-E esta quem a sustenta?... O indio causa-vos dó!»
-
-A existencia do homem, diz J. Stuart Mill, apresenta-se primeiro
-envolta no mysterio: a estreita região da nossa experiencia é como uma
-pequena ilha perdida n’um mar immenso que eleva os nossos sentimentos
-ao mesmo tempo que estimula a nossa imaginação pela sua immensidade e
-pela sua obscuridade.
-
-O que obscure mais o mysterio, é que o dominio da nossa existencia
-terrestre não é sómente uma ilha no espaço infinito, mas tambem
-no tempo infinito. O passado e o futuro furtam-se egualmente ás
-nossas vistas: não sabemos nem a origem, nem o fim de nenhuma cousa
-existente.[58] A religião e a poesia pelas suas concepções idealmente
-bellas e grandiosas é que mitigam em parte a sêde da nossa alma. A
-influencia da religião melhora e ennobrece no individuo a natureza
-humana. As religiões da humanidade civilisada, incluiram nos seus
-preceitos os melhores principios de moral, que a razão e a bondade
-poderam crear com elementos tirados quer da philosophia, quer da
-historia heroica, quer d’outra parte.[59]
-
-A religião na sua pureza ideal é o refugio das almas superiormente
-delicadas, e nas suas fórmas regularmente cultuaes e dogmaticas é
-a philosophia das massas, cujo influxo pesa salutarmente no seu
-espirito pelo amor ou pelo receio. Não desprezemos nada do que póde
-melhorar-nos, porque a nossa felicidade é a hypothese, emquanto o
-infortunio é a realidade.
-
-Não temos a certeza positiva de ser immortaes, mas temos a consciencia
-de ser feitos para a immortalidade. Nutrimos o horror pelo nada e
-o amor pela idéa de viver eternamente. Quando offerecemos o nosso
-coração, quando dedicamos o nosso affecto, é para sempre, cada uma
-das nossas faculdades aspira a fins que não attingem só este mundo.
-Esta vida é preludio d’uma tarefa immensa que tem por guia a visão
-do infinito. A razão almeja constantemente por uma verdade absoluta,
-a vontade aspira a uma virtude perfeita. A natureza indestructivel
-da alma deve ser acceite por todos os que admittem a permanencia
-de força, substancia que não póde cessar. Mas esta immortalidade é
-irrisoria porque não salva a bondade do nosso esforço, nem assegura o
-desenvolvimento da nossa perfectibilidade. Viver e mudar são synonimos,
-todavia viver é triumphar da mudança, reconhecendo a personalidade. O
-homem deve ser immortal, porque tudo é immortal e indestructivel, desde
-o imperceptivel verme, desde o grão de areia, desde a gota d’agua até
-ao astro o mais colossal e o mais radiante. Mas a vida na immortalidade
-humana, deve recordar a personalidade. A religião e a poesia são as
-duas fórmas mais elevadas que reveste esta modalidade do nosso ser,
-por isso o vago sentimento poetico e o indefinido sentimento religioso
-serão eternos. O caminhar da civilisação póde mudar a corrente do
-sentimento religioso, mas jámais poderá esgotar-lhe a nascente.[60] A
-religião é uma necessidade do coração e uma necessidade racional.
-
-Magistratura civil e magistratura espiritual na sua funcção sociologica
-completam-se mutuamente. O juiz pune, o professor e o sacerdote
-podem emendar o delinquente. Diz S. João Chrysostomo, fallando dos
-magistrados: «quanto a vós se deixaes o criminoso impune contribuis
-para que elle se torne peior; se o condemnaes ao supplicio, não
-conseguis emendal-o. Eu não o deixo ir impune, mas nem por isso o
-castiguei ao vosso modo; procuro-lhe a penitencia que me parece justa e
-assim faço com que elle por si mesmo se corrija do mal que praticou.» É
-innegavel que o sentimento religioso é uma mordaça para o delinquente.
-Se em certas comarcas e em dadas regiões, apezar da influencia do
-sentimento religioso o crime existe em grande escala, qual não seria a
-progressão criminosa se a crença religiosa não existisse? Attribuir á
-religião n’este caso o augmento da estatistica do crime, seria o mesmo
-que attribuir á medecina a morte pelo cholera, onde elle é endemico.
-
-Ha entre a crença religiosa e a lei do dever uma ligação assás
-estreita, intima; o imperio da primeira avigora e fortalece a
-segunda. Não queremos com isto dizer que o principio da obrigação
-moral não tenha um valor proprio, como todas as idéas racionaes,
-independentemente da idéa religiosa, mas como é inoculada geralmente
-em nome do sentimento religioso, é pela sua acção, como diz Javary,
-que se tem espalhado e que se mantem, em grande parte, na sociedade.
-Nos individuos ignorantes e de paixões brutaes a concepção abstracta
-da lei moral, separada da religião, é incapaz de exercer praticamente
-o seu imperio. Não ha a possibilidade de fazer philosophos de todos os
-homens, por isso é mister que os desherdados da luz recebam na sua
-alma a moral pela religião e a metaphysica pela theogonia. A religião
-é, como pensa Kant, não o fundamento da moral, é antes a moral que
-nos conduz á religião; a philosophia aprecia a alteza e o valor das
-religiões pela moral que ellas pregam. Qualquer organisação religiosa,
-por pouco que ella valha, serve sempre de disciplina ás consciencias e
-tem a vantagem d’exercer uma acção reguladora na ordem social. Já Vico
-disse que sob a influencia da religião se formaram as mais illustres
-sociedades do mundo, o atheismo não fez nada.
-
-De vez em quando o luar da historia humana apparece tragicamente
-avivado pela revelação d’um grande crime. O psychologo e o jurista
-estudam o delinquente e o delicto. Esta ordem de phenomenos ainda
-está n’um periodo de discussão e de elaboração. Ha muito a esperar da
-educação moral e religiosa no seio da familia, ministrada com carinhosa
-intensidade e dirigida por elevados preceitos confirmados por bellos
-exemplos. Regeitemos por isso as exaggerações pessimistas da parte da
-escola anthropologica italiana, que crê toda a educação esteril para
-melhorar o criminoso.
-
-A este respeito escreve Garofalo em defeza da educação religiosa:
-
-«Sem duvida as emoções religiosas tem grande influencia quando tem sido
-excitadas desde os primeiros annos. Deixam sempre vestigios que embora
-enfraquecidos pelo tempo, não desapparecem nunca, até no abysmo da
-fé. A impressão dos mysterios religiosos sobre a imaginação é de tal
-modo viva que as regras de procedimento impostas em nome da divindade
-podem tornar-se instinctivas, porque,--como disse Darwin,--«uma crença
-_inculcada_ constantemente durante os primeiros annos da vida quando
-o cerebro é mais impressionavel, parece quasi adquirir a natureza
-d’um instincto, é a que se produz independentemente da razão.»[61] A
-influencia d’um codigo de moral--accrescenta Spencer--defende antes
-das _emoções_ provocadas por seus imperativos, que do sentimento de
-utilidade em lhe obedecer. Os sentimentos inspirados na infancia _pelo
-espectaculo da sancção social e religiosa_ dos principios moraes,
-exercem sobre o procedimento uma influencia _muito maior_ ainda que a
-idéa do bem-estar, que se obtém pela obediencia aos principios d’este
-genero. Quando os sentimentos, que o espectaculo d’estas sancções faz
-nascer, chegam a faltar, a fé utilitaria _não basta_ ordinariamente
-para levar á obediencia.--_Até nas raças melhor educadas_,--accrescenta
-elle, entre os homens superiores, nos quaes as _sympathias_, tornadas
-_organicas_, são a causa de que elles se conformem espontaneamente com
-os preceitos altruistas, a sancção social, derivada em parte da sancção
-religiosa, adquire uma certa importancia sobre a influencia d’estes
-preceitos; pois, ella a tem muito grande sobre as acções das pessoas
-d’um espirito menos elevado.
-
-«O mesmo auctor reconhece uma influencia perniciosa no preconceito
-irreligioso ou anti-theologico.--Diz áquelles que creem que a sociedade
-póde conformar-se em tudo com os principios da moral: «Como se poderia
-avaliar a quantidade de espirito de direcção necessaria, sem regras
-recebidas hereditariamente e que constituem auctoridade, para obrigar
-os homens a comprehender porque, sendo dada a natureza das cousas,
-seja pernicioso um certo modo de obrar e aproveitavel outro; para as
-forçar a ver além do resultado immediato, e a discernir claramente os
-resultados indirectos e affastados, taes como se produzem sobre elles
-mesmos, sobre os outros, e sobre a sociedade?
-
-«Não é pois duvidoso, para os positivistas, que a religião seja uma das
-mais activas entre as forças da educação. Mas para isto são necessarias
-duas condições,--a primeira quando se trata d’uma creança,--a segunda,
-que o ensino da moral seja o verdadeiro alvo do ensino religioso, o que
-desgraçadamente não acontece quasi nunca em muitos paizes catholicos,
-onde um clero ignorante, sobretudo nas parochias ruraes, se occupa
-geralmente de praticas completamente vasias de significação para a
-direcção moral, e cujo fim visa a assegurar a mais inteira obediencia
-dos fieis, que entretanto desamparam as paginas sublimes do Evangelho.
-Ha ainda uma outra cousa a notar: é que o poder da religião sobre a
-moralidade individual parece deter-se precisamente nos casos mais
-graves, isto é, quando elle encontra _inclinações criminosas_. Nada
-mais natural. Com effeito, se o ensino para tornar-se util, deve ser
-acompanhado da _emoção_, como se póde esperar que esta emoção seja
-excitada nos homens, que, por um defeito de organisação physica tem
-_uma sensibilidade moral muito menor que_ a normal? E como se póde
-pensar então que elles cheguem nunca á pura idealidade da religião?
-
-«Que importa isso, dir-nos-hão. O temor do castigo na outra vida
-será sempre um freio assaz poderoso para bem dos individuos que não
-teem podido elevar-se ao verdadeiro ideal religioso. Isto póde ser
-verdadeiro para homens d’um espirito pratico, tranquillo, e calculador,
-não seguramente para aquelles que tem um _caracter criminoso_, porque
-a imprudencia, a imprevidencia, a leviandade, distinguem sobre tudo
-este caracter. Se, em todas as occasiões, para a satisfação immediata,
-de suas paixões, elles não olham para o dia immediato, como se ha de
-esperar d’elles que olhem para o fim da vida? Outros delinquentes
-formam esta classe que se chama dos _impulsivos_. Elles obram por
-impulso do seu temperamento colerico ou nevropathico, ou pelo do
-alcoolismo; é pois pouco provavel que no momento de offender as
-sancções religiosas lhe venham ao espirito. Outros emfim encontram-se
-na condição de _névrosthenia moral_ que os torna impotentes para
-resistir ás influencias do meio: pode-se porventura imaginar que a sua
-instrucção seja sufficiente para lhe dar iniciativa e energia?
-
-«É assim que o estudo experimental do criminoso destroe muitas
-illusões, e que confirma a conclusão que já demos, fallando da educação
-em geral, isto é, que se um caracter póde ser por ella aperfeiçoado,
-é muito duvidoso que possa jámais supprir uma lacuna da organisação
-psychica, tal como a ausencia dos sentimentos altruistas. Emfim, é
-verdade que esta especie de religião, que está ao alcance do maior
-numero, ameaça espantosamente o criminoso? Não, porque se lhe tem
-fallado ao mesmo tempo da misericordia Divina, e elle crê que um
-acto de arrependimento em qualquer tempo e logar, será uma reparação
-sufficiente para uma vida passada inteiramente no vicio. É assim que se
-póde explicar o facto muitas vezes verificado em ladrões e assassinos,
-muito devotos da Virgem e dos Santos. Um caso muito differente póde
-explicar-se do mesmo modo: senhoras muito crentes podem passar toda
-a sua vida no adulterio, e, na egreja, chorarem ajoelhadas ao pé da
-cruz. Porque a luxuria é um peccado mortal, como o odio e a cholera,
-mas a benção d’um padre póde egualmente absolvel-os a todos. Parece-me
-ouvir responder; é que estas pessoas não teem o verdadeiro sentimento
-religioso; é que a sua religião não é senão superstição! Mas póde a
-religião do maior numero ser outra cousa? Nas pessoas vulgares, em
-todas as religiões, encontra-se a idéa do anthropomorphismo de Deus.
-É assim como se tem muito bem notado--«que o homem brando e honrado
-adora um Deus de amor e de perdão; e que o homem perverso e immoral
-fórma um Deus cruel e odiento.»[62] E se o verdadeiro sentimento
-religioso é cousa de tal modo rara que bem poucos espiritos nobres
-podem pretendel-o, será temerario dizer que estes mesmos espiritos não
-teriam tido necessidade d’elle para não commetter crimes; que, embora
-elles não tivessem sido crentes, teriam sido da mesma fórma pessoas de
-bem? Apezar de tudo, é preciso admittir que, _nos mesmos limites em que
-a educação póde ser operante_, a religião é um seu auxiliar, porque
-ella póde desenvolver bons principios e reforçar caracteres fracos. Um
-governo esclarecido deveria, pois, fornecer esta força moralisadora,
-ou pelo menos não lhe crear obstaculos. Em quanto ao mais, o que póde
-fazer não é grande coisa. Em um paiz sceptico todos os seus esforços
-seriam inuteis, e no seio de uma nação animada da fé dispensa-se a
-sua approvação. Tem-se visto religiões do Estado decairem e morrerem;
-o christianismo invadir irresistivelmente o Imperio romano, da mesma
-fórma que o budhismo a Asia Oriental. Em nossos tempos um governo só
-tem a religião que encontra na nação. Da mesma fórma que no seio d’uma
-familia todo o ensino será nullo sobre o coração dos filhos se seus
-pais não lhes patenteiam a todos os momentos a sua inteira submissão a
-estes mesmos preceitos, o Estado não poderá moralisar nunca senão _pelo
-exemplo_, e o melhor exemplo que pode dar é _a justiça_ a mais severa,
-a mais imparcial, a mais facil de obter.»[63]
-
-Sobre o mesmo assumpto escreve Tarde:
-
-«Limitemo-nos á estatistica criminal e concluamos mais esta vez ainda
-que o mal crescente, indicio aliás de um melhoramento occulto, que
-ella expõe aos nossos olhos, não se póde imputar nem á policia, nem
-á justiça, nem á civilisação, nem tão pouco á lei penal, mas antes
-quem sabe, ao retrocesso dos instinctos caritativos e á exaltação
-das paixões revolucionarias. Sem embargo, desconheceremos nós a
-acção favoravel, ou não favoravel á criminalidade, de cousas taes
-como a instrucção, o trabalho, a riqueza e a indifferença nas crenças
-religiosas? Indiquemos em poucas palavras qual a resposta que temos
-a dar a estas interrogações. Pelo que respeita á ultima, é fóra de
-duvida que o medo do inferno, demos-lhe o seu nome, por mais que tenha
-enfraquecido e ainda que venha até a extinguir-se inteiramente, ao
-menos nos adultos, assim como o desejo do ceo e o amor de Deus, as
-regras e os habitos moraes de nossos paes, bem como de nossa infancia,
-para cuja formação contribuiram aquelles sentimentos, nem por isso
-subsistem ou subsistirão menos, mas cada dia mais abalados, mais
-incapazes de resistir aos embates das tentações. Para que o havemos
-de dissimular, o diabo tem talvez contribuido tanto como o carrasco
-para _formar o coração_ dos europeus passados e presentes inclusive
-os d’aquelles a quem a pena de morte e as superstições mais revoltam.
-Christã ou não, a França permanecerá ainda muito tempo christianisada,
-do mesmo modo que bonapartista ou não, desde a idade organica do
-Consulado, está ella, queira ou não queira bonapartisada e até á
-medulla dos ossos. Todavia esta sobrevivencia da moral religiosa aos
-dogmas, como a das instituições a seus principios, só tem um tempo?
-e onde irão as gerações vindouras beber a sua moralidade quando
-estiver esgotada a antiga fonte? N’outros termos, para luctar contra
-as tendencias destruidoras, que sentimentos fecundos differentes dos
-precedentes nutrirão essas gerações, ou se deverá fortificar n’ellas?
-Porque, são sentimentos, e diremos melhor principios, isto é restos de
-convicções estaveis, inconscientes, definitivas, e não ideias, isto é
-convicções em via de se formarem e prestes a descerem do espirito ao
-coração e do coração ao caracter, o que se trata de suscitar aqui.»
-
-Sobre o mesmo assumpto Dupanloup, o egregio prelado faz as seguintes
-considerações:[64]
-
-«Todos sabem quanto a _Instrucção_ e a _Disciplina_ devem á Religião, e
-bem poucos deixarão de ter experimentado quanto é profunda a influencia
-da Religião e da virtude sobre a _Educação intellectual_. O coração
-mais puro purifica o espirito, torna-o mais sensivel ás impressões do
-bello, mais docil aos ensinamentos do verdadeiro e fal-o saborear com
-vivacidade o doce e nobre prazer de escutar a rasão.
-
-Sob os auspicios da Religião, a verdade penetra na intelligencia, não
-como uma secca theoria que apenas conquista uma especie de adhesão
-passiva, mas como que alguma cousa de vivente, de substancial, que
-fecunda o espirito e o eleva e por elle chega á alma para a vevificar
-toda inteira.
-
-Pela Religião, sente-se o Espirito fortemente appoiado n’um principio
-de fé e não vai chocar-se com todas as incertezas humanas; eleva-se ao
-ponto de vista divino, para ver de mais alto e mais longe que viram os
-mais sabios.
-
-Eliminai a _Religião_, e a Instrucção não será mais que um vão
-pasto offerecido á curiosidade ou ao orgulho, ella não fará amar
-profundamente o verdadeiro; os mais elevados pensamentos perdem-se
-em ambitos acanhados; a verdade fria e inanimada pára no espirito e
-não sabe ir até ao coração. Ella exalta sobremaneira a intelligencia,
-como por vezes o tenho visto, e é um dos maiores perigos da Educação
-puramente humana, ella exalta a intelligencia em detrimento do caracter
-e da consciencia, em certas naturezas avidas de conhecer; ou então a
-deixa inerte e esteril em outras, cuja intelligencia só poderia ser
-chamada ao movimento e á vida pelo grito da consciencia ou pelas ternas
-insinuações da Religião. N’estas naturezas mediocres, a Instrucção
-reduzida a si mesma, não é nada, ou, quando muito, apenas é um deposito
-confiado á guarda inactiva da memoria, uma serie de conhecimentos,
-uma avida nomenclatura, um montão indigestivo de sciencia sem luz, de
-factos sem ligação e sem vida.
-
-A _Disciplina_ é a seu turno ennobrecida pela instrucção: deve ser
-elevada á dignidade de guarda da intelligencia; mas é sobre tudo pela
-_Religião_ que a disciplina se torna uma verdadeira potencia moral na
-Educação.
-
-Pela _Religião_, a Disciplina não é sómente o olho do superior e a
-garantia da obediencia material; é o olho de Deus e a inspiração de uma
-nobre docilidade.
-
-É sob os auspicios da Religião sómente que a disciplina se torna a
-protectora dos costumes e a guarda da innocencia; o penhor dos grandes
-estudos; a inspiração do bom espirito; a dispensadora e a thesoureira
-do tempo; e nervo do regulamento interior e a mola poderosa de toda a
-Educação.
-
-Sem Religião, pelo contrario, a Disciplina não é mais que uma policia
-de caserna, aviltante para aquelles que a soffrem, mais aviltante ainda
-para aquelles que a fazem soffrer.
-
-Por mais severa que seja, nunca poderá chegar ás almas e a isso
-desafio. Logo apesar da severidade, nenhuma consciencia, intratavel,
-sem freio nas paixões secretas e menos respeito.
-
-Jámais conseguirá esta disciplina toda material, toda exterior, educar
-o homem, a não ser que se queira fazer da sociedade uma colonia
-militar, para a qual seria a Educação encarregada de formar conscriptos!
-
-Fique-se bem sabendo, nada ha de commum entre o regimen despotico de
-alguns collegios e esta nobre Disciplina das almas, que é a verdadeira
-_Educação_ da mocidade.
-
-Na Educação, não basta que se obedeça, é necessario que haja gosto na
-obediencia. E o que faz amar a obediencia? a Religião, só a Religião.
-
-Oh! sem duvida é muito mais facil de exercer a Disciplina militar,
-a Disciplina de mão armada: será sempre mais facil commandar corpos
-que almas. Dispõe-se da força, os corpos humilham-se, mas as almas
-resistem; ou se se humilham, é porque foram embrutecidas por uma
-obediencia servil.
-
-Que notavel differença na Educação christã! Para esta ha mister uma
-arte profunda; e é d’esta arte que se disse: _Ars artium, regimen
-animarum_.
-
-Ás almas se applicam todos os esforços da direcção christã: a ordem
-moral eis o fim a que se pretende chegar. A ordem material tem sua
-importancia, não ha duvida, mas estabelece-se naturalmente, por uma
-simples consequencia e como um reflexo exterior da ordem moral; em
-quanto que n’essas outras escolas, onde se ostentam pomposamente os
-rigores de uma inflexivel disciplina, muitas vezes não ha no intimo do
-seu organismo, senão desordem e anarchia. Tudo quanto ahi se quer é que
-essa anarchia e essa desordem não constem cá fóra. Que, depois d’isso,
-as creanças ignorem o que é a virtude e a felicidade, pouco importa!
-Que não haja Educação para o coração, para a consciencia, tambem pouco
-importa! Ah! eu não conto aqui, senão o que todos sabem e foi com a
-auctoridade de mais de um exemplo que se disseram estas palavras
-bem verdadeiras; _A mais severa Disciplina pode esconder vicios
-medonhos_.[65]
-
-Desgraçados dos paes que n’este ponto, se descuidam, elles chorarão um
-dia amargamente! Desgraçado do paiz onde a Educação publica chegou a
-este ponto: serão ahi raros os bons cidadãos!
-
-As sagradas Escripturas disseram uma bella e profunda verdade quando
-definiram a _Disciplina--a guarda das leis, Disciplina, costodia legum_.
-
-É com effeito o que deve ser e o que nós temos visto. Mas como póde
-a disciplina cumprir dignamente esta grande e augusta missão? É
-inspirando o respeito e o amor d’essas mesmas leis que são confiadas
-á sua guarda. Se ella é toda material, só ensina o respeito da força,
-isto é, o medo servil que fana as almas sem lhes tirar a tendencia para
-a revolta; se é religioso e moral, ensinará a respeitar o principio
-da auctoridade e a lei que é a expressão das mesmas; submetterá as
-almas ao imperio d’essas santas noções sobre as quaes repousa a ordem
-social, quer se trate da grande sociedade humana, que é a patria, quer
-se trate d’essa outra sociedade mais circumscripta e mais humilde, mas
-depositaria dos destinos da primeira, do collegio: ahi onde se faz
-a aprendizagem das virtudes ou dos vicios, pelos quaes serão um dia
-rebustecida ou perturbada, a paz e a prosperidade publicas.
-
-Perdoem ter-me deixado arrastar pela importancia d’esta questão.
-Limitar-me-hei, pois, a repetil-o: é necessario na Educação que a
-Disciplina não seja observada á força, mas respeitada e amada de
-coração. De outro modo, as almas soffrem e a Educação não passa de uma
-obra de violencia, algumas vezes cheia de horror.
-
-Mas, se nada póde egualar a influencia da Religião sobre a disciplina,
-ao mesmo tempo que sobre os estudos e o desenvolvimento natural do
-espirito; sobre o caracter e os defeitos da creança, e sobre os
-destinos da sua vida inteira, a _Religião_, do seu lado, reclama o
-concurso dos dois outros grandes meios d’Educação.
-
-Sem a _Instrucção_ e sem a _Disciplina_, não formaria a Religião homens
-dignos d’ella.
-
-A Religião quer ser esclarecida: gosta dos caracteres firmes e rectos:
-espiritos imbecis ou caracteres abatidos e indolentes sómente seriam
-bons para a deshonrar.
-
-Em vão experimentaria formar-lhes coração e intelligencia.
-
-A Disciplina que, como se deixa perceber, é, sem a Religião, o quer
-que seja de material e triste, é a seu turno para a Religião um
-indispensavel auxilio.
-
-Pelo silencio e pela paz mantem a concentração; prepara o caminho ás
-lições da sabedoria christã ou ás impressões da graça.
-
-Conter ou reprimir os desmandos da vontade arrastada para longe do
-dever pelas paixões ou pela inexperiencia da idade; submetter sem
-humilhar, mandar sem aviltar, elevar abatendo, fortalecer e fazer
-avançar detendo impedir que as faculdades se não desvairam e se
-não enfraqueçam dissipando-se: proteger ao mesmo tempo a piedade,
-os estudos e os costumes; tal é a obra, _tal é o dever da educação
-disciplinar_.
-
-Como poderia a _Religião_ dispensar o auxilio da Disciplina?
-
-A _Instrucção_, da sua parte, offerece á _Religião_ o seu poderoso
-concurso.
-
-Abrir e desenvolver a intelligencia da creança, despertar-lhe
-o pensamento, fazer nascer n’ella ideias sãs, formar-lhe e
-desenvolver-lhe a penetração, o bom senso, a applicação do espirito;
-enriquecer-lhe a memoria, formar-lhe a razão e a palavra, fecundar-lhe
-a imaginação, polir-lhe o gosto, exercitar-lhe o juizo; _é o dever da
-Educação intellectual e a gloria da Instrucção_.
-
-Quem poderá desconhecer todo o bem que a _Religião_ póde d’ella esperar?
-
-Espiritos assim preparados, engrandecidos, elevados, fortalecidos,
-comprehenderão melhor as altas verdades christãs.
-
-O joven que cultivou convenientemente o seu espirito terá um coração
-mais delicado, uma alma mais generosa, ao mesmo tempo que uma razão
-mais elevada.
-
-Nos estudos classicos encontrou elle o bello e o verdadeiro sob suas
-fórmas litterarias; quando com a Religião elles lhe apparecem no seu
-mais alto esplendor, com que enthusiasmo os não acolhe?
-
-Vê-se por tanto, como a _Disciplina_ e a Instrucção não podem passar
-sem a _Religião_, a Religião não póde passar sem ambas para attingir o
-grande fim da Educação.
-
-Emfim conservar a força da creança, velar pela sua vida, auxiliar sua
-constituição physica em se fortificar, desenvolvendo-se, proceder de
-fórma que seus membros sejam sempre flexiveis e vigorosos, que um
-sangue generoso e puro lhe circule nas veias, que esta chamma celeste,
-que brilha em seus olhares, não amorteça nem se extinga mais: que este
-amavel colorido, este encanto inexprimivel que embelleza a fronte da
-infancia virtuosa, este não sei que de feliz que vem dos dons do ceo,
-não desappareça sob tristes nuvens; é o dever da _Educação physica_;
-e este dever não se cumpre senão pelos cuidados mais attentos, mais
-delicados, mais respeitosos. Mas não vemos nós, sem necessidade de que
-nol-o demonstrem, que influencia têem estes cuidados preciosos, n’uma
-casa d’Educação, sobre a disciplina, sobre o bom ou mau exito dos
-estudos, sobre a mesma piedade?
-
-E não se comprehende ao mesmo tempo o que a Instrucção e o trabalho,
-o que a Ordem e a Disciplina, e sobre tudo o que a Religião, podem
-em troca, para a conservação da saude e das forças, conservando os
-costumes? Já o têem dito, a Religião é o aroma que não deixa corromper
-a sciencia. Nós tambem o dissemos: a verdade é o balsamo divino que
-conserva a vida e a frescura da creança. E é só a disciplina moral e
-religiosa que guarda a virtude.
-
-Acabarei tudo isto por algumas explicações que não deixam de ter
-interesse e dar luz: assim, por exemplo, é a _Educação physica_,
-hygienica que conserva por todas as partes, n’uma casa de Educação,
-com um cuidado e uma vigilancia infatigaveis, o _aceio_, que todos os
-mestres da moral e da virtude christã, com razão e d’um sentido muito
-verdadeiro têem chamado uma virtude: e é o _aceio_ que contribue para
-dar e para conservar um certo vigor corporal, uma certa dignidade
-exterior que mantém a dignidade e o vigor da alma.
-
-E no entanto a Religião impede que o aceio degenere em _fatuidade_ em
-mollesa e que cessa a virtude onde começa o excesso.
-
-É ainda a _Educação physica_ que dá uma justa medida de repouso á
-_Educação intellectual_, concede ao espirito o descanço conveniente,
-faz succeder ás horas do estudo as horas do recreio; mas, do lado, a
-prudente e firme _Disciplina_ não permitte que se dêem de mais; não tem
-nada de austero nem de affectado; mas prepara o prazer pelo trabalho
-e desenfada do trabalho pelo prazer e, sob sua prudente direcção, as
-folgas e os brinquedos convenientemente se entremeia com as occupações
-graves e sérias.
-
-Finalmente a _administração economica_ de uma casa procura para todos,
-mestres e discipulos, uma certa independencia intellectual, uma nobre
-segurança, um feliz esquecimento dos cuidados materiaes da vida, cuja
-isempção é favoravel ao recolhimento da piedade e das lettras.
-
-É com este fim que ella escolhe um bello local; uma casa vasta, bem
-accommodada ás necessidades da Disciplina; sallas espaçosas, grandes
-dormitorios, aulas bem arejadas, uma bella capella, magnificos jardins.
-É tambem ella que admitte professores convenientes não só pela saude,
-como pela decencia e dignidade litteraria; que dispõe tudo como é
-necessario á idade dos alumnos, a essa idade tão tenra, tão viva, tão
-ardente e tão admiravelmente applicada, que sabe ser silenciosa e
-immovel, doze horas em cada dia, durante dez annos!
-
-E entretanto a _Religião_, que é o bom senso superior de todas as
-cousas, requer que esta casa esteja sem luxo, que seja de uma nobre
-simplicidade, magnifica somente pela elevação, pela boa ordem e pelo
-espaço conveniente ao grande numero dos seus jovens habitantes.
-
-Quer ver banidos os moveis faustuosos, as ninharias deslumbrantes, os
-ornamentos superfluos e tudo que respire vaidade e molleza, reserva
-para o sanctuario os vasos de ouro e de prata, os estofos ornados de
-enfeites, as pedras preciosas, os perfumes exquisitos.
-
-Não multiplicarei mais estes pormenores; os indicados bastam para o
-meu designio, eram-lhe necessarios. Nada importava tanto como lançar
-assim algumas luzes sobre a influencia, que cada um dos grandes meios
-d’Educação exerce sobre a Educação inteira e tambem revelar a estreita
-união que as deve fazer concorrer para o mesmo fim, se quizermos que
-este fim seja completo e efficazmente attingido, se quizermos que a
-educação seja uma realidade.
-
-Ora, pois que é tempo de concluir, inspirar a tenras almas o gosto de
-uma vida seria e applicada, que ha-de produzir um dia a gravidade dos
-costumes e a fidelidade aos deveres;
-
-Excitar ao amor do trabalho, o gosto intelligente das lettras, das
-sciencias, das artes, da industria, da agricultura e do commercio,
-segundo as differentes especialidades da Educação, e o ardor por todos
-os conhecimentos bellos, pelos nobres progressos, que desde tantos
-seculos se tornaram o apanagio da nossa patria;
-
-Sob os auspicios da Religião, submetter, regularisar, dirigir as
-paixões no tempo conveniente, de modo que se deixem senhorear e que,
-longe de serem um obstaculo ao bem, sejam o instrumento util das
-grandes cousas;
-
-Formar para este saber-viver, que consiste em se constranger uma pessoa
-a si mesma, sem constranger os outros e que deslumbra menos pela bellas
-maneiras, que encanta pela simplicidade e impõe pelo respeito;
-
-Em uma palavra sob a Direcção de uma disciplina igualmente suave e
-firme, pelo ascendente de uma auctoridade sempre querida e respeitada
-constituir e manter solidos e brilhantes estudos litterarios, ou
-industriaes, agriculas e commerciaes, ao mesmo tempo que costumes
-puros, uma docilidade generosa, uma fé esclarecida e uma piedade
-profunda;
-
-Estabelecer, emfim, por isso mesmo, entre mestres e discipulos esses
-doces e poderosos laços que nunca se quebram, essas lembranças de
-dedicação e de reconhecimento, d’affeição e de respeito, que são a
-mais suave recompensa dos professores, como se tornam, no coração
-dos discipulos, uma d’essas felizes e inolvidaveis impressões que
-sobrevivem a tudo;
-
-Formar assim por meio simples e poderosos, esses jovens espiritos para
-a intelligencia do verdadeiro, que é a luz mesma de Deus; esses jovens
-corações ao amor do bem, que é o esplendor da verdade, e a sua vida
-inteira á pratica do bem; fazer-lhes sentir por isso nas impressões e
-nas recordações da sua Educação, a felecidade, a verdade e a virtude, e
-ao mesmo tempo a mais alta dignidade de sua natureza.
-
-Repito-o, tal é a grande obra, tal é o fim essencial da Educação; tal é
-a alta e santa missão dos professores da mocidade.
-
-Eis a _Educação geral essencial_ a quem tem direito todo o homem que
-vem a este mundo.
-
-É a Educação humana por excellencia! Mas proclamo-o de novo, e agora
-se comprehenderá melhor que nunca: é isto essencialmente, e superior a
-tudo, uma obra de religioso respeito.
-
-
-NOTAS DE RODAPÉ:
-
-[58] _Essais sur la religion_, pag. 95, J. Stuart Mill.
-
-[59] Ob. cit. J. Stuart Mill.
-
-[60] Ferreira-Deusdado, _Ensaios de philosophia actual_, pag. 79.
-
-[61] Darwin, _L’Origine de l’homme_, ch. III.
-
-[62] E. Ferri, _Le Sentiment religieux chez les meurtiers_--Tuima Fr.
-Bocca--vol. III pag. 276, 282.
-
-[63] _La Criminologie_, par R. Garofalo, Paris 1888--pag. 137, 142.
-
-[64] Este excerpto foi traduzido por indicação nossa pelo sr. A. A. de
-Almeida Netto e publicado na _Revista de Educação e Ensino_, n.ᵒ 7, p.
-331 e seguintes.
-
-[65] _Lettre sur l’Education_, por M. Laurentie.
-
-
-
-
-V
-
- Educação e criminalidade. Relação entre o elemento moral e o elemento
- intellectual. O progresso. Buckle, Spencer e F. Bouillier. Perigos da
- instrucção sem educação moral ou religiosa. A cultura intellectual é
- um instrumento, que não fórma directamente o caracter. Necessidade de
- fortificar o espirito pela recta direcção do sentimento moral e dos
- principios do dever. O criminalista G. Tarde e a educação litteraria e
- esthetica.
-
- Não se esconde, antes pelo contrario se mostra já claramente visivel
- até aos poucos amigos de ver, como a primeira educação constitue um
- poderosissimo factor, ao mesmo tempo de disciplina e desinvolvimento,
- de ordem e de progresso; como em seu encalço a pessoa e a propriedade
- sobem em segurança e dispensam em protecção, medram e prosperam
- os interesses ethicos e politicos, a justiça é menos difficil e o
- consenso para a administração mais intelligente.--(Relatorio geral do
- Conselho Superior de Instrucção Publica, pag. 34, 1885).
-
- JAYME MONIZ.
-
-
-Cumpre ao pedagogo indagar se a virtude, se o bem moral augmenta no
-individuo á medida que a intelligencia se esclarece pela instrucção,
-e na sociedade á medida que a sciencia, a arte e a industria se
-desenvolvem. Trata-se de saber se o homem instruido, ou se os
-individuos mais cultos nas sociedades mais adiantadas, formam uma
-idéa mais clara da justiça e comprehendem melhor o principio dos
-seus deveres e se os praticam d’um modo mais desinteressado e mais
-completo. Para saber se ha progresso moral no individuo ou nas
-sociedades é preciso distinguir o que é immutavel do que é perfectivel
-na natureza psychica do homem. As faculdades e as leis do nosso
-espirito, as inclinações fundamentaes do nosso coração, todos os
-elementos psychicos essenciaes da nossa natureza, não se alteram com
-a constancia da actividade reflectida, nem com o desenvolvimento da
-civilisação. Cada homem, como diz Montaigne, leva em si a fórma inteira
-da condição humana. O individuo da nossa especie estudado por Laucio
-ou por Platão é o mesmo que estudado por Kant ou por H. Spencer. Assim
-como na natureza cosmica as leis e os agentes permanecem os mesmos,
-qualquer que seja o augmento dos productos que d’ella tira a cultura
-scientifica, do mesmo modo os elementos primordiaes da natureza
-psychica são immutaveis, embora sejam diversos os seus productos nas
-mudanças da civilisação.
-
-O progresso, diz Proudhon «tem a sua base de operações na justiça
-e a sua força motriz na liberdade. De feito nada existe de elevado
-no desinvolvimento social sem o sentimento do dever e sem o uso da
-liberdade.
-
-Ha dois aspectos sob os quaes póde ser considerado o progresso da
-consciencia moral--um theorico, outro pratico. Ao estudarmos o complexo
-de idéas moraes n’um individuo ou n’uma epocha, a variedade dos juizos
-sobre as acções justas ou injustas, reconhecemos que ha um fundo
-inalteravel de principios absolutos que se manifestam no sentimento
-que cada homem tem a respeito do que o eleva acima da animalidade. Na
-analyse dos elementos moraes, d’um instante do tempo ou d’um ponto
-do espaço, observamos que ha alguma cousa de fixo e alguma cousa de
-progressivo. O primeiro é o elemento theorico, o segundo é o pratico.
-
-O que constitue o valor moral das acções permanece invariavel, isto é
-o dever absoluto, que se impõe a cada um de actuar conforme o que elle
-crê o bem e de evitar o que elle crê o mal, procedendo com inteira boa
-fé e completa sinceridade.
-
-A existencia e o uso da energia moral é indispensavel em toda a
-condição de vida sociologica; não se póde conceber um estado da
-humanidade, sem que n’elle tenha logar a virtude.
-
-O desenvolvimento da civilisação favorece o progresso da ethica geral,
-porque alarga cada vez mais a area dos deveres reciprocos. O selvagem
-não sente obrigações senão dentro da sua pequena tribu. A vida e
-a propriedade alheia são para elle uma variedade da caça. O grego
-ante-socratico só percebe a idéa de probidade no sentido autochtono
-da palavra e dentro das fronteiras da Hellade. O romano do imperio
-inspirado na philosophia estoica e educado na sociedade romana já
-estende as suas relações até aos limites dominadores do codigo e do
-gladio latino. O christão medieval obedece á acção moral do evangelho
-e n’uma esphera já assaz ampla, illuminada pelo sentimento radioso
-da caridade, reconhece a egualdade de todos os homens perante Deus.
-Não obstante o seu horror sagrado pelos pagãos e pelos infieis sente
-deveres a cumprir para com todos.
-
-Não ha descobrimentos nem invenções em moral, em quanto aos seus
-principios fundamentaes, mas póde have-los nas suas consequencias e
-nas suas applicações. Como diz Francisco Bouillier, é o progresso
-das luzes na moral que se traduz nas instituições, nas leis e nos
-costumes. Na ordem intellectual o progresso demonstra se por uma
-especie de inventario do desenvolvimento de conhecimentos. O progresso
-moral do individuo não póde verificar-se, porque se dá no segredo da
-consciencia, no amago do coração ou no arcano da vontade. A obrigação
-de proceder segundo a lei do bem exige por toda a parte, em todas as
-condições do tempo, os mesmos principios e os mesmos fins. O valor
-moral deve medir-se unicamente pelo grau da intenção, do esforço e
-do sacrificio. A intenção moral é tão veneravel em qualquer selvagem
-como em Socrates, em D. João de Castro ou em Washington. O tempo ou a
-condição não influem sobre o valor intimo da acção ethica.
-
-As virtudes sociaes são mais cultivadas nas relações pequenas, em
-que os homens vivem em mais intima connexão, do que nos grandes
-centros, onde as relações são mais vastas. A concepção moral d’um typo
-idealisado varia segundo as circumstancias do tempo e do espaço, posto
-que o principio ethologico seja sempre substancialmente o mesmo. Um
-typo de virtude forma-se primeiro pelas circumstancias da nação ou
-da epoca, depois constitue-se em modelo sobre o qual se architectam
-theorias. Aristides ou Catão são dois typos de virtude creados pelo
-meio atheniense e romano. É assim que os povos organisados teem
-uma ethica nacional differente, posto que o principio que a inspire
-seja substancialmente o mesmo. Assim as circumstancias geographicas,
-ethicas, religiosas ou outras, que fazem uma nação militar e outra
-industrial, produzirão em cada uma um typo de exellencia moral
-differente. Os heroes nacionaes da historia da França ou da Inglaterra,
-são na sua psychologia moral assás differentes por numerosos caracteres.
-
-A moral ensinada nos livros tende a unificar-se, mas a ensinada na
-familia conserva um caracter mais multiplo. Ora é exactamente a moral
-da familia a que prevalece. Os paes, os irmãos, os companheiros de
-creanças são quem mais influe sobre a formação do caracter. A escola
-ministra a cultura intellectual e ethica, mas esta vem sobre tudo do
-lar, fonte dos prazeres mais puros, doce refugio e salva-guarda da
-honra, da familia e da nação.
-
-Na humanidade inculta as paixões são mais violentas e mais grosseiras,
-e a vontade é mais energica tanto para o vicio como para a virtude.
-São grandes na virtude e no crime. Basta comparar a historia antiga
-com a historia contemporanea. Em certo grau de progresso intellectual
-a violencia repugna, mas é substituida pela corrupção; se a violencia
-humilha, todavia não avilta nem desmoralisa como a corrupção. Com o
-desinvolvimento pacifico das sociedades, a vontade enerva-se e as
-paixões recebem em vez d’uma expansão violenta, que gera as acções
-epicas, uma concentração suave que não é mais do que o egoismo.
-
-Os malfeitores de dada cathegoria entregam-se a actos selvagens e
-barbaros em sociedades policiadas, porque se inspiram n’uma athmosphera
-permanentemente cheia de sentimentos de odio e de vingança, nascidos
-d’um juizo perturbado que tem uma falsa noção das conveniencias e do
-dever.
-
-Nas revoluções e na guerra das sociedades modernas, os homens de
-faculdades normaes, sem ser em legitima defeza, esquecem todos os
-precedentes moraes da civilisação para se entregarem á barbaria.
-Aquelle ambiente em que o horisonte está tingido de sangue fa-los
-retrogradar dezenas de seculos. Os biologos explicam este phenomeno
-pela hereditariedade, os theologos explicam-no pelo peccado original;
-as concepções divergem, mas a explicação do facto é a mesma. A guerra
-foi durante muitos seculos a principal fórma da actividade humana, e
-este habito repetido durante muito tempo, passou a instincto, vindo
-conseguintemente a ser hereditario. Hoje o mesmo instincto ergue-se
-sempre que as circumstancias o reclamam, passando uma esponja pelas
-acquisições moraes nascidas da civilisação.
-
-O espirito humano tem em todos os phenomenos moraes a faculdade de
-recusar a sua adhesão a qualquer tendencia que o solicite. Nos proprios
-phenomenos de sensibilidade o imperio da vontade possue o poder de
-intervir e a sua acção póde, dirigida pelas idéas, disciplinada pelo
-habito e fortalecida pelo exemplo, contrahir sentimentos nobres e
-amortecer inclinações ruins. Ainda que a existencia do senso moral no
-criminoso seja demasiado tenue, a instrucção ampliando as relações
-funestas que resultam da pratica do crime, veem mostrar ao criminoso
-as tristes consequencias do delicto e os nobres estimulos e delicados
-prazeres que gera a obra da virtude. Toda a educação resulta de bem
-dirigir a acquisição dos habitos. A vontade é o mobil das nossas acções
-e a força civilisadora por excellencia. Fortalece-la pois com exemplos
-elevados, deve ser o destino da educação.
-
-Apezar da absoluta independencia intima da liberdade, os habitos e os
-outros moveis fornecidos pela sensibilidade ou pela intelligencia, que
-se modificam com a educação, actuam constantemente como objecto das
-resoluções. A noção clara do dever moral que se aviva com a instrucção,
-não determina necessariamente a sua pratica, todavia é mais um grau de
-probabilidade para a execução do bem.
-
-A cultura intellectual dilata o poder da liberdade e modifica por
-tanto o genero do crime, porém não o supprime; mas a cultura do
-sentimento moral, inoculando o principio do dever, desvia o homem da
-senda do crime, e se o homem é como cremos até certo ponto o artista
-do seu destino, póde, pela educação com afinco obstinado e inflexivel,
-aniquilar na sua alma as inclinações ruins e substitui-las por
-aspirações d’uma ethica elevada.
-
-É evidente que nós defendemos a necessidade da cultura moral, pondo
-como fundamento a liberdade; declarar que o homem não é livre nos seus
-actos, é não só destruir o sentimento do merito, mas ferir a nossa
-especie na sua dignidade.
-
-Os mais esplendidos productos de enthusiasmo moral que se referem a uma
-força suprema de convicções, raras vezes existem em espiritos muito
-cultivados, porque são vehementemente sensiveis á possibilidade do
-erro, ao peso das circumstancias e á collisão dos argumentos. A alta
-cultura intellectual, que disperta novas concepções do dever, é menos
-alimentadora do fanatismo do que a ignorancia e a mediocridade mental.
-
-Thomaz Buckle prefere no governo dos povos os homens illustrados e
-corrompidos aos ignorantes e austeros; diz que em todos os tempos os
-homens mais sinceros e mais puros teem sido os que fizeram derramar
-mais sangue innocente com menos escrupulo e com menos piedade. Os mais
-crueis inquisidores de Hespanha foram homens de intenções puras, o que
-os tornou mais nefastos por inaccessiveis á corrupção ou á ameaça. O
-melhor dos imperadores romanos Marco Aurelio,[66] foi um dos que mais
-perseguiu os christãos, em quanto Commodo e Elagabalo os deixaram viver
-em paz.
-
-Buckle julga esteril o elemento moral como causa do progresso da
-civilisação. Defende este paradoxo, levado pela idéa de que houve
-fanaticos sinceros e desinteressados que foram um flagello da
-sociedade, emquanto homens engolphados na corrupção moral e falhos de
-convicções serviram a civilisação. É evidente para encurtar razões,
-que o mais alto progresso intellectual, desajudado do elemento moral,
-não podia constituir uma sociedade, porque se desapparecessem da
-consciencia a probidade, a honra, a virtude publica e privada, não
-podia subsistir a familia alicerce e cellula da vida social.
-
-Para Buckle toda a superioridade social se encerra na fecundidade
-do elemento intellectual. O elemento moral é esteril no progresso
-da civilisação. As proprias virtudes resultam da cultura mental. O
-illustre escriptor inglez adduz muitos exemplos para comprovar o seu
-paradoxo, mas não explicou a baixeza de caracter do seu compatriota
-o genial F. Bacon, os seus crimes de concussão, e o seu vilissimo
-procedimento para com o seu bemfeitor, o desditoso conde de Essex.
-
-Como explica egualmente as fraquezas de Seneca, que é ao mesmo tempo
-philosopho e auctor aviltado da _Consolatio ad Polybium_, e defensor de
-Nero, accusado perante o senado de parricidio? Por ventura, nem Bacon,
-nem Seneca tinham bastante clareza de entendimento para comprehenderem
-os seus deveres ethicos? Porque é que o seu altissimo talento os não
-salvou d’estas fraquezas?
-
-Faltava-lhe a energia do sentimento do dever que é a augusta
-superioridade que distingue o homem no mundo e o individuo na
-sociedade. Seneca não foi um perverso, mas foi um suicida moral a
-quem falleceu, durante parte da sua vida publica, a coragem que até
-certo ponto resgatou no final com o heroico suicidio physico. Não ha
-progresso, não ha verdadeira civilisação sem a virtude. Os sonhos do
-homem sobre a terra são a esperança do reinado da justiça. O amor
-individual da justiça converte-se para a humanidade no sentimento que a
-eleva e que a engrandece; ora a justiça social é a expressão intensa do
-bem e o bem é a finalidade d’este mundo.
-
-É uma these difficultosa saber até que ponto, a educação moral,
-ministrada na familia e na escola pelo sentimento, pelos principios
-e pelo exemplo, póde moralisar aquelle que a recebe. Apresenta-se a
-alguns psychologos como duvidoso se a instrucção considerada em si,
-restringida exclusivamente á receptividade de conhecimentos, desinvolve
-maior inclinação para enfraquecer os elementos viciosos do espirito do
-que para mudar a direcção e a qualidade do crime.
-
-É obvio que n’este caso se entende sómente a cultura intellectual e
-technica e de modo nenhum se adapta á educação moral e religiosa.
-Cerebro sem coração, penetração intellectual sem bondade, talento
-sem moralidade, são poderes que mais podem servir para a execução da
-perversidade do que para a pratica do bem.
-
-As faculdades intellectuaes e as aptidões technicas são valiosissimas
-na vida social, mas encaminhadas para fitos maus podem trazer para a
-humanidade em vez do progresso a destruição, em logar da felicidade a
-desgraça. É obvio que não fallamos dos delinquentes cujo delicto nasceu
-de más circumstancias economicas, da inaptidão para ganhar a vida,
-porque para estes a cultura technica teria evitado a senda do crime,
-visto que este não é proveniente da ausencia ou perversão do senso
-moral.
-
-Assim a nossa antiga policia secreta recrutava os seus guardas e os
-seus chefes entre os gatunos mais astutos e mais dextros. Depois de
-membros do corpo de policia faziam-se homens probos e empregados
-zelosos, o que demonstra que não eram seres incorrigiveis e que não
-abraçavam a vida do furto por inclinação congenita, mas por necessidade
-economica do meio em que tinham vivido.
-
-É pela educação moral que os individuos e as gerações se formam e
-constituem um typo social. A acção suggestiva do ambiente começa para
-o homem antes de despertarem os primeiros clarões do entendimento. De
-instante a instante, de dia a dia os que cercam a creança, formam-lhe o
-sentimento e as inclinações, de modo que a sua vida moral ao attingir o
-pleno desenvolvimento, é quasi a summula das idéas e dos sentimentos,
-que hauriu nas condições mesologicas em que germinou, cresceu e floriu.
-
-Não queremos com isto dizer que a idéa da personalidade fica aniquilada
-deante do influxo do meio; ha muitos individuos que se revoltam contra
-o existente e que são refractarios ás suggestões provocadas desde a
-infancia, mas póde dizer-se que todos conservam a sua individualidade
-em maior ou menor grau, exercendo a sua acção sobre a familia, sobre
-os amigos e sobre os visinhos. Os de faculdades mais poderosas, ou de
-vontade mais energica fazem irradiar a sua acção sobre uma esphera mais
-ampla no tempo e no espaço; pela força como por exemplo Alexandre Magno
-ou Cezar, pelo livro como Platão ou Aristoteles, pela palavra como
-Demosthenes ou S. Paulo. Estes que teem assim uma acção decisiva na
-historia são justamente chamados grandes homens.
-
-O pedagogo cuidando do ensino intellectivo deve antes de tudo applicar
-a sua attenção ao lado moral, inoculando o sentimento do dever,
-ensinando a supremacia do direito, desenvolvendo a concepção do bem,
-a consciencia da vontade livre e o sentimento da responsabilidade.--O
-primeiro dever do educador é capacitar a creança de que ella vem a ser
-a senhora do seu destino.
-
-Na ordem do ensino deve inspirar-se-lhe primeiramente um elevado
-principio religioso, alliado ao sentimento moral, depois o
-desenvolvimento da habilidade intellectual no ponto de vista do
-raciocinio e da applicação pratica. Só mais tarde pelo conhecimento das
-operações intellectuaes, é que pela abstração, póde isolar o principio
-religioso da idéa moral, desenvolvendo todavia harmonicamente as tres
-syntheses da actividade psychologica, a synthese affectiva ou do
-sentimento, a synthese especulativa ou da intelligencia e a synthese
-activa ou da vontade.
-
-A cultura intellectual separada da educação moral é insufficiente
-senão nociva para a formação do caracter. Mudança no entendimento póde
-produzir mudança na moral, mas uma alteração d’essa natureza póde
-despertar tanto disposições elevadas como deprimentes. É facto corrente
-na historia dos individuos e das nações, encontrar homens e epocas
-brilhantes pelas manifestações especulativas e estheticas, coexistindo
-com uma grande depressão moral.
-
-A cultura moral, diz Baudrillard, ainda com uma luz muito minguada vale
-mais do que o desenvolvimento intellectual, mal dirigido, tam frequente
-em os nossos grandes centros.[67] A decadencia dos costumes no
-proletariado das grandes cidades vem sobretudo da descrença religiosa e
-da ausencia de educação moral.
-
-A cultura intellectual é sem duvida um grande bem e todos os apostolos
-que lhe dedicam os seus sinceros esforços devem merecer ardentes
-applausos dos bons cidadãos.
-
-Mas a instrucção sem o respeito da disciplina hierarchica, sem o
-sentimento da honra, sem a idéa do dever, n’uma palavra, sem educação
-moral, póde tornar-se mais nociva do que a propria ignorancia.
-
-Quando o saber ler e escrever serve apenas, para adquirir noções
-perigosas, chamariz de direitos phantasticos sem obrigações, quando
-serve para aprender o desprezo das leis, o irrespeito e o odio pela
-auctoridade, quando serve para falsificar firmas, para macular em
-pasquins anonymos a honra alheia teria sido muito melhor para a
-sociedade o não haver-lhe ministrado esse instrumento desajudado
-da educação do caracter. É uma illusão suppor-se que a cultura da
-intelligencia só por si basta para melhorar o caracter; essa cultura
-sem o sentimento do dever acompanhado d’um cortejo de crenças que o
-tornem mais sensivel, mais vivo e mais poderoso, será um deserviço
-feito á sociedade.
-
-Não ha felicidade sem a continencia e a moderação nas ambições,
-segundo as circumstancias de cada um. Escreve um distincto jornalista:
-«O anarchismo faz hoje _pendant_ ao epicurismo. Por cima estala
-o Champagne, por baixo o anathema; por cima rodam caleches, por
-baixo nas viellas tenebrosas rola obscuramente o trovão surdo de
-um protesto odiento. Em cima goza-se, em baixo nos subterraneos
-sociaes, cubiça-se. E como efflorescencia morbida d’estes dois estados
-egualmente doentios, apparecem nas livrarias elegantes os productos de
-uma litteratura requintada até á pornographia, e correm pelos sotãos
-lobregos dos proletarios as folhas soltas da propaganda anarchista,
-como outr’ora--bons tempos ingenuos!--a historia da imperatriz Porcina
-e os romances de cordel. Essas folhas lêem-se como evangelhos que a
-desordem epicurista dos que estão por cima commenta e sublinha. São
-ellas que ensinam os oradores dos clubs e que arrastam ao crime os
-fanaticos, por temperamento, por misanthropia, por genio ás vezes--por
-_pose_ tambem, n’esta epocha singular em que o delirio do _reclame_
-faz com que a novidade seja cultivada com amor, e mereçam attenção e
-curiosidade egual um bandido como Pranzini, ou um grande homem como
-Bismarck. É que no regimen do epicurismo reinante, as coisas perdem
-a significação moral, e só vale o que impressiona imaginações de
-sybaritas, constantemente em procura de sensações novas. Um crime
-é picante, especialmente se reveste circumstancias dramaticas ou
-romanticas; uma boa acção, um acto simples e digno, são semsaborias.
-Que admira, portanto, a _pose_ e a petulancia dos actores da comedia do
-crime? São, como os actores de todos os palcos, os queridos da gente
-_blasée_. Ás vezes, porém, toma ares tragicos, e n’esses momentos a
-sociedade estremece de medo. É por isso que os crimes do fanatismo
-são os que mais aggravam, e aquelles para que se reclama a maxima
-punição; ao passo que os crimes bestiaes teem por vezes um encanto
-morbido. É que estes exprimem apenas casos individuaes, emquanto
-os primeiros abalam visceralmente a propria estructura social. O
-instincto da conservação manifesta-se ás vezes d’um modo brutal,
-sempre falho da serenidade critica e comprehensiva. Pensem n’isto os
-que negam á sociedade uma vida, um temperamento, sentimentos e nervos
-proprios, capazes de commoção e paixões. Pensem, e tirem as illações
-consequentes. Uma das illusões dos doutrinarios individualistas foi a
-distincção entre crimes civis e crimes politicos. Para os primeiros,
-toda a severidade; para os segundos, toda a indulgencia. Imaginava-se
-que acima do nós pairava uma atmosphera de bem e de harmonia, dentro da
-qual apenas se podiam dar divergencias do opinião, confessaveis sempre,
-embora violentas por vezes. Essa illusão passou, como tantas outras,
-para dar, porém, logar a uma verdadeira aberração; ao criminoso por
-fanatismo ou por paixão chama-se doido, e declara-se irresponsavel.»
-
-A instrucção é um instrumento de que se póde fazer bom ou mau uso. Ha
-proletarios que só lêem o cathecismo d’um socialismo barato ou uma
-imprensa que serve para apostolar a calumnia, o erro, a iniquidade e
-todas as paixões ruins. Ha individuos que se aperfeiçoam na escripta
-para poder falsificar firmas, ha quem estude chimica toxicologica para
-envenenar o seu similhante. Porém d’estes factos podemos concluir que o
-aprendizado da escripta e da chimica são um mal? N’esse caso deviamos
-supprimir a agua e o fogo que produzem o horror das inundações e dos
-incendios.
-
-A instrucção é sempre um elemento para a satisfação de necessidades
-organicas e artisticas, e o ensino moral é uma nascente inspiradora do
-bem.
-
-O desequilibrio entre o capital e o trabalho gera muitas paixões e
-produz numerosos crimes. Se compararmos o presente com o passado,
-apezar das crises industriaes e commerciaes, do sentimento de
-imprevidencia, é innegavel que a pobreza diminuiu. O bem material tem
-consideravelmente augmentado, mas o desejo da commodidade tem excedido
-os meios de a satisfazer. O que se faz mister é uma energica educação
-da vontade que imponha o seu imperio salutar aos apetites desregrados,
-ás ambições que excedem a condição social do individuo e aos maus
-conselheiros nascidos da inveja e da vaidade. Sem a temperança dos
-desejos, segundo as circumstancias não ha na alma humana felicidade nem
-paz.
-
-Escreve H. Spencer:
-
-«Persuade-se muita gente, imbuida de certos erros de estatistica, de
-que a educação do Estado devia reprimir o crime. Estão os jornaes
-cheios de comparações entre o numero dos criminosos que sabem
-ler e escrever e o dos analphabetos; e, como este ultimo é muito
-superior áquelle, acceita-se a conclusão de que a ignorancia é a
-causa dos crimes. Não acode ao espirito a idéa de inquirir se outras
-estatisticas, baseadas no mesmo systema, não provariam com a mesma
-força que o crime é causado pela falta de lavagem de corpo e de roupa
-ou pela má ventilação das habitações ou por não se dormir em quartos
-separados. Entrem em uma cadeia e perguntem quantos são os presos que
-tinham o habito de se lavar de manhã. Ver-se-ha que a criminalidade
-está ordinariamente a par da falta de limpeza do corpo. Contem-se
-os que tinham mais de uma andaina de fato; a comparação das sommas
-ha de mostrar que é bem diminuto o numero dos que tinham roupa para
-mudar. Pergunte-se se elles moravam em ruas largas ou dentro do
-pateos; saber-se-ha que quasi todos os criminosos das cidades saem das
-habitações immundas. Assim acharia tambem na estatistica a justificação
-não menos completa da sua crença o partidario fanatico da absoluta
-abstinencia de bebidas espirituosas ou dos melhoramentos hygienicos.
-Se, porém, não acceitais a fortuita conclusão de que a ignorancia e o
-crime são causa e effeito; se tomais conta em que, como acabais de ver,
-com egual fundamento era facil attribuir o crime a outras causas muito
-diversas,--podeis achar que existe uma relação real entre o crime e um
-modo inferior de vida, filho geralmente de uma inferioridade original
-de natureza; que, emfim, a ignorancia não passa de um concomitante, que
-póde tanto ser a causa do crime como muitas outras cousas. Os auctores
-de quebras fraudulentas, os fundadores de companhias phantasticas,
-os fabricantes de generos falsificados, os que empregam marcas
-falsas, os que vendem com pesos falsos, os proprietarios de navio sem
-condições de navegações, os que roubam as companhias de seguros, os
-traficantes, a maior parte dos jogadores--são todos gente educada. Ou,
-para irmos ao extremo do rebaixamento moral, entre os envenenadores
-de todas as epochas não ha porventura um numero consideravel de
-pessoas bem educadas, um numero tão grande, em proporção com as
-classes illustradas, como é o numero total dos assassinos comparado
-com a população total? Mas é até absurda _a priori_ esta confiança
-nos resultados moralizadores da cultura intellectual, negados tão
-categoricamente pelos factos.
-
-E em verdade que especie de relação póde existir entre o saber que
-certos grupos de caracteres representam umas certas palavras e o
-adquirir um sentimento mais nobre do dever? Como é que a facilidade
-de formar signaes que representam sons póde fortalecer a vontade de
-fazer bem? De que modo póde o conhecimento da taboada da multiplicação
-ou a pratica das addições e das divisões desenvolver os sentimentos
-de sympathia a ponto de reprimir a tendencia de offender o proximo?
-Como é possivel que os themas de orthographia e de analyse grammatical
-nutram o sentimento da justiça, e por que razão emfim os apontamentos
-sobre geographia colligidos com toda a perseverança hão de augmentar
-o respeito pela verdade? O parentesco de taes causas com taes effeitos
-não é maior do que o da gymnastica que exercita os dedos com a que
-robustece as pernas. Quem esperasse ensinar geometria com licções de
-latim, ou piano com as regras de desenho, todos o julgariam no caso de
-entrar para uma casa de orates: e comtudo não seria mais disparatado do
-que aquelles que, disciplinando as faculdades intellectuaes, imaginam
-crear sentimentos melhores.»
-
-Spencer escolhe de proposito as formas da cultura intellectual que
-menos se podem aproveitar para ensinamentos moraes. No entanto o
-professor póde, em nosso entender, achar em qualquer cathegoria de
-ensino scientifico uma relação que influa no sentimento do alumno.
-
-Não póde dizer-se nunca, como pretende Spencer, que haja _irrelação_
-entre o conhecimento especulativo e a pratica do bem. A imaginação e
-a sensibilidade elaboram productos psychicos que tem a sua origem na
-intelligencia, os quaes veem a ser condições de volição. O entendimento
-nas suas funcções de acquisição de idéas, da sua conservação, da sua
-elaboração e do principio racional que as dirige tem necessariamente
-muitas vezes de lhe communicar emoções que influem directa ou
-indirectamente sobre a vontade. A imaginação é a faculdade do ideal, a
-intelligencia a do real, a primeira conhece, a segunda inventa. É pela
-imaginação que o homem se distrae e se consola das vicissitudes da vida
-real, creando um mundo subjectivo que é o principal impulsionador da
-vontade.
-
-As sciencias mathematicas, physico-chimicas, biologicas e grammaticaes,
-teem na verdade uma influencia muito longiqua na vida moral. O mesmo
-não póde dizer-se das sciencias historicas e da litteratura. Ninguem
-desconhece a influencia moral notavelmente fecunda, nascida das
-lettras-classicas, da leitura por exemplo das _Vidas parallelas dos
-homens illustres_ de Plutarcho, que é ao mesmo tempo historiador e
-moralista, fazendo da historia um verdadeiro ensinamento moral. As
-estatisticas registam todos os dias a influencia perniciosa dos maus
-romances sobre o crime e o suicidio. É bem conhecido o influxo moral
-da cultura helleno-romana sobre os espiritos directores da revolução
-franceza. As circumstancias e os principios philosophicos deram o
-motivo, mas Roma deu-lhe principalmente a inspiração.
-
-O effeito da cultura intellectual poderá ser para a formação do
-caracter favoravel ou deprimente, excellente ou detestavel, o que de
-modo nenhum será, é indifferente e sem relação, como quer Spencer.
-A dependencia em que estão as nossas funcções psychicas é tal que
-pensamos porque sentimos, e queremos porque o sentimento e o pensamento
-são a materia prima da nossa actividade volitiva. Não ha volição,
-por conseguinte não ha acto moral sem motivo sensivel, intellectivo
-ou racional, e todos estes actos se refletem na consciencia; logo é
-evidente que ha relações reciprocas e influencias mutuas entre a vida
-intellectual e o desenvolvimento moral.
-
-Para Spencer não ha relações entre a acção e as lições moraes e
-intellectuaes, ha sómente entre a acção e o sentimento; entre a cultura
-intellectual e o sentimento moral ha uma _irrelação_. Diz com razão F.
-Bouillier que não existe tal _irrelação_, ainda que a relação não seja
-sempre proporcional e constante. Não póde negar-se que entre todos os
-phenomenos psychologicos existe uma connexão intima que se encontra
-sobretudo na unidade da consciencia. A vida moral tem necessariamente
-relações com a vida sensivel e intellectiva.
-
-Mas no que de modo nenhum, se póde seguir Herbert Spencer, é em
-restringir a educação moral ao exercicio do sentimento, pondo fóra
-por conseguinte como esteril, a acção emotiva de elevados principios
-ethicos, de bellas maximas moraes e de sublimes exemplos em holocausto
-do dever. Não só estes factos geram no espirito por uma elaboração
-consciente ou automatica novas emoções e fecundas idéas moraes, mas
-ficam como motivos para dirigirem a vontade. Uma das sciencias que deve
-ser para o bom professor um fecundo meio de ensino moral é a historia.
-
-A opinião, o costume, a imitação instinctiva, o influxo moral são os
-principaes factores do caracter, especialmente no periodo psychologico
-de maior plasticidade mental. Os movimentos da nossa vontade seguem os
-sentimentos e tambem os pensamentos.
-
-É frequente ver publicistas, apostolos d’uma democracia barata,
-prégarem como remedio infallivel e salvador de todos os males a
-diffusão da instrucção primaria, mas secular. O sentimento que os
-anima é mais um odio cego contra as idéas religiosas, um fanatismo de
-intolerancia contra as doutrinas christãs, do que a convicção profunda
-dos beneficios do estudo e da sciencia.[68]
-
-Entre nós apparecem quotidianamente periodicos e pamphletos, propagando
-o fanatismo irreligioso, mais nocivo e nefasto que o pernicioso
-fanatismo de religião.
-
-São esses democratas de cultura superficial e viciada que proclamam
-a falsa banalidade «abrir uma escola é fechar uma prisão» querendo
-desterrar ao mesmo tempo do lar e do ensino publico a educação moral e
-religiosa.
-
-Diz F. Bouillier: «o fim de todos os hereticos e de todos os fanaticos
-foi até ao presente introduzir uma crença, uma fé ardente no lugar
-d’outra crença e d’outra fé; fanatismo e scepticismo eram dois termos
-contradictorios. As cousas mudaram; é um fanatismo puramente negativo
-e sceptico, um fanatismo do vacuo, por assim dizer, que pretende
-exterminar em pretendido proveito da democracia e da moral, o que resta
-das idéas religiosas nas cidades e nos campos. Temos horror a estes
-tristes fanaticos que com o odio na alma, sem nenhuma outra crença, sem
-nenhuma outra fé para desculpa, incitam á destruição dos templos e até,
-o temos nós visto, á matança dos sacerdotes.»
-
-Ha uma necessidade secreta e imperiosa na vida espiritual da fé
-philosophica e da fé religiosa. Só os individuos que rastejam pela alma
-dos brutos, é que se suppõem isentos d’esta mysteriosa necessidade.
-A falta do sentimento religioso é condição dos individuos de cultura
-inferior e de mediocre talento viciosamente dirigido. O sabio, o
-homem de genio profundo, a alma popular singella e penetrante são por
-natureza seres religiosos. Tudo na terra está na inter-dependencia do
-universo e a cada instante a nossa razão descobre relações com outros
-mundos, cada vez mais longinquos, o que prova que o espirito não exgota
-n’este mundo a a sua essencia.
-
-Escreve o distincto criminalista G. Tarde:
-
-«Não nos admiremos pois de se não descobrir na estatistica criminal
-o vestigio de nenhuma influencia benefica exercida pelo progresso
-da instrucção primaria na criminalidade. É bem visivel a acção da
-instrucção sobre a loucura e sobre o suicidio que augmentam a par dos
-seus progressos; de modo algum se percebe a sua acção nomeadamente
-restrictiva na criminalidade. O relatorio oficial bem o manifesta e
-deplora. Mostra-se n’um mappa que os departamentos onde a população
-dos illitteratos é maior, esses estão sempre longe de mostrar
-maior numero de accusados comparativamente com o numero dos seus
-habitantes. Por outro lado, nos campos, onde ha menos instruidos,
-contam-se oito accusados por anno em cem mil habitantes, e nas cidades
-desaseis. Exactamente o dobro. E todavia deverá inferir-se que o grau
-d’instrucção d’um povo é indifferente no ponto de vista criminal?
-Não. Em primeiro logar influe evidentemente na qualidade, senão na
-quantidade dos delictos. E o mesmo succede com o grau da riqueza.
-Algumas luzes mais, o goso de mais algumas commodidades desenvolvem
-certos appetites, comprimem outros, transtornam emfim a hierarchia
-interior dos nossos desejos, origem de todos os crimes e delictos.
-Nos departamentos pobres, são eguaes em numero os crimes contra as
-pessoas aos crimes contra as propriedades. Nos departamentos ricos
-excede muito a proporção d’estes ultimos. Se a estatistica comparada
-dos roubos esmiuçasse este artigo conforme a natureza dos objectos
-roubados,--menção sociologicamente mais util que as indicações
-relativas á idade dos roubadores,--ver-se-ia sem duvida que, de ha 40
-ou 50 annos a esta parte, desde que a França enriqueceu, tem diminuido
-o numero proporcional dos roubos de colheitas e que pelo contrario tem
-augmentado e augmenta ainda o de joias, de dinheiro, etc. Assim succede
-com a proporção dos delictos contra os costumes, das rebelliões,
-gatunices, etc., que tem crescido espantosamente, effeito provavel da
-emancipação e da subtileza dos espiritos.
-
-Mas se apreciarmos a questão pelo lado da instrucção simplesmente
-primaria, forçoso será reconhecer que a quantidade dos crimes e
-dos delictos tomados em globo, de nenhum modo é influenciada pela
-sua diffusão. Pelo contrario, a acção beneficiadora da instrucção
-secundaria e sobre tudo superior não é duvidosa. A prova d’isto está na
-fraquissima contribuição das profissões liberaes, das classes lettradas
-para o contingente criminal da acção: resultado, notemol-o, que não
-é devido á riqueza relativa d’estas classes porque a menos rica, a
-dos agricultores participa d’este privilegio por qualquer outra causa
-por indagar, provavelmente por ser a mais laboriosa, e a classe dos
-commerciantes, de todas porventura a mais rica apresenta phenomeno
-inverso. Não é certamente a fé religiosa a que mais actua nas classes,
-mais instruidas. Actúa n’ellas muito menos. Não é emfim porque estas
-classes tenham pelo trabalho mais decidida energia; n’este ponto
-excede-lhes tanto a classe dos commerciantes e dos industriaes, quanto
-a classe agricola excede á d’estes. É pois, creio eu, á sua instrucção
-levada a um certo grau ou antes á sua educação de uma natureza especial
-que havemos de attribuir a moralidade relativa d’estas differentes
-classes sociaes. É para notar que a influencia moralisadora do saber
-começa no momento em que elle deixa de ser uma ferramenta apenas e se
-torna um objecto d’arte. Se a instrucção, pois, viesse a ser sómente
-profissional, se deixasse de ser esthetica, quando não classica,
-perderia sem duvida alguma a sua virtude de ennobrecimento. Porque?
-Porque o bem não póde ser concebido senão como o _util social_ ou o
-_bello interior_, e porque d’estes dois unicos fundamentos da moral
-(postos de parte os preceitos divinos,) o primeiro, o fundamento
-utilitario, implica necessariamente o segundo; porque nos conflictos
-tão frequentes do interesse geral e do interesse particular, sobre
-que se ha-de appoiar o individuo para sacrificar este áquelle, para
-amar aquelle mais do que este? Unicamente sobre o amor do bello, desde
-muito tempo cultivado por uma educação apropriada e sobre a persuação
-de que se embelleza interiormente por este sacrificio, louvado ou
-não, conhecido de todos ou somente de si mesmo. Este motivo bastaria
-para recommendar ao porvir os estudos litterarios, a arte e tambem
-as especulações philosophicas, todas as cousas que, interessando o
-homem ao seu objecto por este objecto, o desinteressam por si mesmo e
-lhe revelam no fundo d’este desinteresse o seu supremo interesse, no
-fundo do inutil o bello. Quando elle sabe conhecer certas impressões
-delicadas, toma-lhe gosto e o desejo de as tornar a achar fal-o
-repellir as satisfações baixas que lhe fechem o caminho que d’ellas o
-approximam. Porque, se a alta cultura moralisa, é porque a moralidade
-é a primeira condição subentendida da alta cultura, como a primeira
-condição da flora alpestre é um ar puro. Eu sei que poucos são os
-bons pelo amor da arte, os estheticos da moral, os novos mysticos, em
-quanto que é crescido o numero d’aquelles que hoje o são com medo da
-policia ou da deshonra, como outr’ora o eram com medo do diabo ou
-da excommunhão. Mas emquanto, á imitação d’estes ultimos, se pensa
-em aperfeiçoar o Codigo penal, não seria mais urgente augmentar a
-minoria dos primeiros, espalhando por todos e principalmente levantando
-entre as primeiras familias humanas, d’onde dimana o exemplo, o culto
-das bellas inutilidades indispensaveis? Em summa, tão raros são os
-homens que, por sentimento da sua dignidade pessoal, especie de gosto
-esthetico reflectido e chamado sciencia, são corajosos, francos,
-dedicados, apesar da vantagem evidente que elles encontrariam as mais
-das vezes em ser cobardes, egoistas e mentirosos? Conforme o modelo,
-assim o valor das copias. Felizmente para nós os nossos modelos
-invisiveis, os semi deuses venerados na educação dos collegios, grandes
-theoricos, grandes artistas, inventores de genio, eram a flor da
-honestidade humana e a logica assim o queria, porque teria sido para
-elles uma contradicção nos termos ter sido da verdade pura por exemplo
-e procurar illudir a outrem, em quanto que não é contradictorio por
-fórma alguma aprender a chimica para envenenar uma pessoa, estudar
-o direito para usurpar os bens do visinho, d’onde se conclue que a
-honestidade dos chimicos, dos jurisconsultos, dos medicos, dos sabios,
-é incompativel com os seus estudos propriamente scientificos no sentido
-profissional e utilitario da palavra. Mas os grandes homens de que
-eu fallo foram moraes por necessidade intellectual d’abnegação e de
-franqueza e posto que esta necessidade se não faça sentir na media
-das pessoas instruidas, elles dão-lhe tom, imprimem-se mais ou menos
-em cada novo alumno e propagados assim em innumeraveis exemplares,
-recommendam-se por sua estampa ás naturezas mais vulgares como um bello
-cunho liso e brilhante em moedas de cobre.
-
-Tem-se zombado tanto dos nossos estudos classicos! Todavia é para notar
-que, onde elles se cultivam melhor, ahi florescem as virtudes sociaes,
-e que, apezar das mais avultadas tentações, das mais vivas paixões, das
-mais variadas necessidades, da mais completa emancipação do pensamento,
-apesar emfim dos maiores recursos para o crime e das facilidades
-relativas que tem o criminoso de se subtrair á acção das leis, não
-obstante tudo isso, a criminalidade ahi está no seu _minimum_. Não é
-talvez sem uma rasão profunda que, precisamente quando o catholicismo
-recebeu o seu primeiro grande abalo, no decimo sexto seculo, teve
-nascimento o _humanismo_, como por uma especie de contrapeso. Não
-tenho pois de que me admirar vendo no decimo oitavo seculo, ao segundo
-grande assalto do dogma, entre os encyclopedistas ou outros, o respeito
-singular das tradições litterarias e dos typos consagrados da arte,
-a admiração quasi supersticiosa de Virgilio e de Racine crescerem á
-medida dos progressos da sua irreligião irreverenciosa para tudo o
-mais. Pelo contrario, tem-se notado que os romancistas do Imperio
-e de 1830, luctando contra as tradições litterarias e o culto da
-arte classica, se tinham apoiado no sentimento christão reanimado ou
-galvanisado, conservadores aqui tanto, quanto innovadores além. Todos
-estes contrastes têem parecido estranhos aos que não têem feito caso
-de descobrir n’isto a instinctiva compensação de uma fonte de fé e
-de moralidade em substituição de uma outra.--Apparentes inutilidades
-ha que são funcções superiores. Dá-se por isso, quando ellas são
-cortadas. De que servem, dizia-se, as bellas florestas inexploradas
-das montanhas? E deitaram-nas abaixo para cultivar o solo inclinado
-que ellas sustinham; e desde então as inundações dos rios têem causado
-estragos de que os antigos nunca ouviram fallar. Como se uma pouca
-de verdura sombreando a sua nascente fosse bastante para moderar
-o seu primeiro impulso.--Outro tanto podemos talvez dizer d’essas
-outras superfluidades que se chamam _lettras_, artes, e d’aquellas
-que para o vulgo têem valor identico, as festas tradicionaes,
-populares, domesticas ou religiosas, os folguedos, os anniversarios
-costumeiros, como altas florestas de pinheiros. Um povo que n’um
-pensamento utilitario, sacrifica as suas alegrias puras, virá a
-deplorar a sua perda; e quando nos corações desencadeados não houver
-já cousa que no seu declive sustenha a ambição, o amor, a inveja,
-o odio, a cubiça, ninguem deverá admirar-se de ver cada anno subir
-a maré da sua criminalidade transbordante. A minha conclusão é que
-seria grande o perigo de enfraquecer nos collegios o lado esthetico
-da educação, que convem fortificar ali de preferencia, depois de se
-ter supprimido na escola o ensino religioso. O momento seria tanto
-mais mal escolhido, quanto pela primeira vez o poder politico, d’onde
-acaba sempre com o tempo por derivar a força proselytica, o prestigio
-exemplar, o verdadeiro poder social em uma palavra, é tirado aos
-professores liberaes, onde a criminalidade é de 9 accusados por anno
-para 100:000 pessoas d’estas cathegorias e conferido, não ás classes
-agricolas, onde é de 8 para o mesmo numero de agricultores, mas na
-realidade ás populações industriaes e commerciantes das cidades, onde
-é de 14 e 18 para um igual numero de industriaes e commerciantes.
-Porque não é com exactidão que se diz que o nosso paiz se democratiza.
-Democratizar-se não é termo que sirva para uma nação onde tres quartas
-partes do povo são camponezes, assentaria melhor, permittam-me o verbo,
-_rustificar-se_, ou, para exprimir a cousa com justa conveniencia,
-estender e fortalecer os costumes, as preocupações, as idéas agricolas
-e ruraes. Mas o contrario succede pela emigração espantosa dos campos
-para as cidades, e ainda mais pela importação dos costumes urbanos, das
-idéas urbanas, para o centro dos campos. A França commercializa-se,
-industrializa-se, se o querem; não se democratiza. A cousa tem o seu
-lado bom, o seu lado excellente, tenho-a applaudido a muitos respeitos
-mas tinha de mostrar aqui tambem o reverso da medalha. Se, como eu
-julguei mostral-o em outro logar a origem da criminalidade profissional
-só póde ser estancada em primeiro logar por uma expansão maior de
-beneficencia e pela creação de numerosas sociedades de patronato,
-importa que as novas classes dirigentes, tanto e mais que as antigas,
-tenham aprendido a praticar o culto do bem, do bello para o bello.
-E se, em segundo logar, o remedio para o mal da criminalidade geral
-se acha em parte na estabilidade do poder politico, é preciso não
-esquecer que sem uma forte dose de dedicação da parte dos governos e de
-confiança da parte dos governados, não ha governo de possivel duração.
-A concorrencia d’estas duas condições é rara! Ora é um povo sincero que
-se confia cegamente a um despota, a um egoista de talento ou de genio,
-ora é um homem de Estado dedicado aos interesses do paiz que se esbarra
-com uma desconfiança geral que o paralysa; mas ha esta differença a
-notar que, muitas vezes com o tempo, a dedicação dos chefes leva a
-confiança ás massas, emquanto que nunca se viu a confiança dos povos
-fazer nascer a abnegação no coração dos seus governantes. É pois
-primeiro que tudo o desinteresse, a generosidade, o amor intelligente
-do bem publico, que se deseja encontrar nos homens chamados a
-governarem, pois que o resto póde vir como consequencia. D’aqui resulta
-que as nossas duas precedentes conclusões concordam igualmente para
-proclamarmos a necessidade do sacrificio, a insufficiencia do mobil
-do interesse pessoal, e a opportunidade de elevar por consequencia a
-educação esthetica o mais possivel, tanto como diffundir a instrucção
-profissional o mais longe que possa ser.»
-
-Tarde (G.) dá grande importancia á cultura do sentimento esthetico
-nos effeitos da criminalidade. De feito, a emoção do prazer e o
-sentimento de admiração, que resultam da contemplação do bello, elevam
-os nossos juizos e melhoram a nossa alma. Kant resumiu os caracteres
-subjectivos do bello, definindo-o o objecto d’uma satisfação,
-desinteressada, universal e necessaria. É grande a sua analogia com o
-bem, porém distingue-se, porque este mira não só á perfeição geral mas
-essencialmente á perfeição moral.
-
-O sentimento esthetico como criterio moral é incompleto; posto que toda
-a moralidade seja bella e que o ideal esthetico nos excite á pratica
-do honesto e nos inspire o desejo de o realisar; não nos obriga como o
-principio do bem, ao cumprimento do dever. A moralidade deve existir
-sempre na arte, porém não a absorver, visto que tem por especial
-missão, crear o bello, não ensinar o bem. No entanto ella carece sempre
-do attributo moral porque a immoralidade fere a consciencia e altera
-o prazer esthetico. Ninguem póde negar, que o bello, exercendo a
-sympathia desinteressada, é um alliado do bem, mas este conserva a sua
-individualidade.
-
-Na escola a educação esthetica não póde supprir a educação do
-sentimento moral e religioso. Os italianos têem como nenhum outro povo
-notaveis aptidões estheticas e afamados monumentos artisticos, onde
-pódem beber as grandes e delicadas emoções da belleza e todavia são
-o povo onde a estatistica criminal mais avulta. A renascença é uma
-das idades mais esplenderosas e mais fecundas na creação do bello e
-todavia apresenta se ao historiador como um periodo de aviltamento e de
-depravação moral tanto nos grandes crimes como em detestaveis vicios, o
-que prova a coexistencia d’uma alta civilisação intellectual e material
-com a depravação.
-
-A approximação excessiva das idéas do bello e do bem provêm da theoria
-da escola escoceza, que reduz a consciencia moral a um sentido, que nos
-deu a natureza, similhante ao do gosto e ao do paladar. O homem segundo
-este systema aprecia o bem como o bello, não pela razão, mas pelo
-sentimento immediato que experimenta. H. Spencer, que é n’este ponto
-discipulo de Reid e de Darwin considera o _sentido moral_ como um
-legado hereditario na especie. O prazer moral n’este caso não differe
-dos outros prazeres, não ha motivos de preferencia. Como se vê é uma
-forma do empirismo moral.
-
-É extremamente benefico para a alma o sentimento d’uma belleza moral,
-placida, serena e vigorosa, inspirada por um ser que goza de todas as
-forças; que se encerram nas condições d’um typo poetico, que preenche
-completamente a sua grandiosa missão no mundo. Esta belleza, quando
-real, filha da natureza ou da sociedade, como diz Krause, tem mais
-_plenitude_, porque a natureza cria as suas obras d’um modo integral
-com todas as peças nas suas relações mutuas emquanto o bello ideal
-tem mais _expressão_, porque o espirito cria as suas obras de um modo
-independente, dispondo dos elementos de representação á sua vontade.
-A primeira belleza é o fim da arte naturalista, a segunda o da arte
-classica.
-
-O egregio criminalista Tarde quando se refere á educação esthetica,
-sollicita a attenção para as vantagens da educação litteraria.
-Certamente a poesia, o drama, a eloquencia escripta, a historia
-narrativa occupam o primeiro lugar na cultura do sentimento moral, da
-imaginação e do gosto, não só pela intensidade da emoção, que produzem,
-mas porque communicam idéas d’um valor mais preciso e mais nitido.
-Depois da educação religiosa e da educação moral, aquella que mais
-enriquece, eleva e fortalece o coração, é a educação artistica. Todavia
-é certo tambem, que em todas as formas da actividade psychologica se
-póde utilisar adequadamente o elemento moral.
-
-
-NOTAS DE RODAPÉ:
-
-[66] É para notar contra a opinião de Buckle que Marco Aurelio foi
-talvez o homem de estado mais esclarecido da antiguidade. O exemplo
-parece mal escolhido.
-
-[67] _De la Famille et de la éducation_, pag. 74.
-
-[68] Veja-se _Morale et Progrès_ por Francisco Bouillier, Inspector
-Geral de Instrucção Publica, pag. 291. É uma analyse profunda d’este
-estado que se póde applicar a todas as nações neo-latinas.
-
-
-
-
-VI
-
- Os effeitos da acção educativa. A hereditariedade, o meio; Garofalo. O
- gosto pelo adorno é na mulher como sustenta B. Perez uma manifestação
- esthetica e nunca uma approximação do typo criminoso. A arte e a
- moral. Educação physica, a escola e a doença.
-
- Toda a despeza que os paes fizerem na educação de seus filhos será
- frustrada se elles não tomarem sobre si a maior parte da obrigação de
- mestres e ayos com preceitos e com exemplo.
-
- MARTINHO DE MENDONÇA.
-
-
-É innegavel que a educação, o meio social e a hereditariedade são os
-guias principaes que dirigem o individuo durante toda a sua vida. Se a
-acção educativa não é, como pretendem alguns sociologos, efficaz para
-reformar os sentimentos do individuo, porque elles são o resultado
-hereditario de lentas elaborações, é o todavia para reformar uma
-geração, para criar uma sociedade futura, mais justa, mais moralisada
-e mais cheia de sentimentos bons e generosos. O sentimento é um dos
-factos psychologicos, que maior influencia exerce sobre o caracter;
-insuflar pois na alma o sentimento religioso, o sentimento esthetico, o
-sentimento moral, é melhorar o individuo, é engrandecer a sociedade.
-
-A educação em alguns casos possue relativamente pouco poder
-para modificar os sentimentos e tem de exercer a sua acção pela
-intelligencia afim de dirigir a acquesição dos habitos. A acção
-volitiva sobre a intelligencia começa hesitante, disciplinando as
-numerosas associações de movimentos reflexos necessarios para dirigir
-certos musculos em determinado sentido. Por ultimo basta que os nervos
-sensitivos levem aos centros nervosos o grau determinado de impressões
-para a excitação ser immediatamente produzida. É assim que os habitos
-se adquirem e que transmittidos pela hereditariedade se convertem em
-instinctos. Se a acção educativa é pouco efficaz no individuo, ficará
-de reserva para os seus descendentes.
-
-Como é sabido a associação das idéas é uma das operações mais
-importantes na formação da estructura intellectual. Ha necessidade
-de habituar o espirito a formar juizos segundo certas relações das
-cousas, no intuito de tirar do valor d’essas relações todo o partido
-possivel em favor da educação do caracter. É preciso ensinar a
-creança a ligar na sua consciencia d’uma maneira irreductivel, ás más
-obras sentimentos de vergonhosa reprovação e de dôr, e ás boas obras
-sentimentos de honra, de merito e de respeito para que se habitue
-a aborrecer os primeiros e a amar os segundos. Estas associações
-tornadas indissoluveis e ás vezes inconscientes é que formam o nosso
-caracter e regulam o nosso procedimento na vida moral. O exercicio
-intensivamente repetido das nossas operações intellectuaes torna-se
-com a frequencia cada vez mais automatico, e como os actos automaticos
-são inconscientes, parece que a humanidade caminha a passos rapidos
-para o inconsciente, porém não succede assim, porque os resultados das
-operações não se tornam inconscientes, o que se torna inconsciente são
-estas associações mechanicas dos elementos adquiridos pela experiencia
-e transmittidos pela hereditariedade. É claro que a consciencia a que
-nos acabamos de referir não é a consciencia moral, porque essa não
-augmenta nem diminue com a herança accumulada, permanece inalteravel,
-impondo á vontade a necessidade de executar uma acção em obediencia
-á lei do dever. A intelligencia culta esclarece melhor o valor dos
-motivos actuantes, mas a verdadeira superioridade moral d’um individuo
-ou d’uma nação está em respeitar a lei.
-
-No caracter é preciso distinguir o que é congenito e o que vem pela
-influencia do meio e da educação. Para as disposições nativas é
-difficilimo alcançar extirpação radical, mas para as adquiridas toda
-a formação do caracter depende de bem dirigir os habitos, sobretudo,
-no periodo psychogenico. As inclinações innatas podem ser attenuadas
-dentro de certos limites e até vencidas por considerações de interesse
-proprio ou pela inoculação d’uma paixão elevada que lucte contra uma
-paixão ruim.
-
-Punir é uma triste necessidade social, evitar que o crime exista é que
-deve ser a principal funcção das sociedades que aspiram á tranquilidade
-e á segurança economica. Pretender a extincção total do crime seria uma
-aspiração chimerica, mas diminuir a sua frequencia pela acção educativa
-e por outros melhoramentos e circumstancias, que desinvolvem o bem
-estar social, é _desideratum_, que progressivamente póde converter-se
-em realidade.
-
-O grande contingente dos criminosos é recrutado entre os menores
-abandonados, filhos de paes crapulosos, que no alvorecer da vida lhes
-deram tristes exemplos. Para estes a rapinagem converte-se n’uma
-profissão, primeiro impellidos pela necessidade, depois atrahidos pelo
-habito. A ausencia de educação moral faz com que tenham por unicos
-prazeres o ocio, a embriaguez, a libertinagem, a vãgloria, o jogo,
-que são outros tantos incentivos para a pratica do crime. É já um
-aphorismo em jurisprudencia que muito mais vale prevenir os crimes do
-que punil-os. A educação posta ao serviço da sciencia social preventiva
-do crime, é a alavanca mais poderosamente salutar, para destruir as más
-inclinações e converter em habito o amor do bem e a pratica do justo. A
-acção educativa é muito mais efficaz na creança que no adulto, por isso
-são preferiveis os asylos de imfancia ás penitenciarias correccionaes;
-os primeiros evitam em parte as segundas.
-
-Sobre a influencia da educação nos instinctos criminaes escreve
-Garofalo, o porta-bandeira da jurisprudencia anthropologica: «Muitos
-philosophos crêem na possibilidade de modificar os sentimentos moraes
-pela educação ou pelas influencias do meio e na possibilidade de
-transformar o meio social mediante o poder do Estado. Duas questões
-se seguem, uma psychologica, outra social e sobretudo economica, e
-ambas merecem um detido exame. Começaremos pela questão da influencia
-que pode ter a educação sobre as tendencias dos criminosos afim de
-podermos apreciar o que ha de verdadeiro e de acceitavel na theoria
-penal, chamada correccionalista. O problema da educação seria, com
-effeito, da maior importancia para a sciencia penal se, por meio de
-ensinamentos fosse possivel transformar o caracter do individuo _já
-vindo da infancia_. Desgraçadamente parece demonstrado que a educação
-só representa uma d’essas influencias actuantes _nos primeiros annos
-da vida_ e que, como a herança e a tradição contribuem para formar
-o caracter. Estando este fixado como a physionomia no physico, fica
-o que hade ser toda a vida. Ponho até em duvida que um instincto
-moral ausente se possa criar pela educação no periodo da primeira
-infancia. Em primeiro logar, quando se trata da infancia, a palavra
-educação não deve ser tomada em sentido pedagogico, significa antes
-um conjuncto inteiro de influencias exteriores, uma serie completa
-de scenas que a creança vê desenrolarem-se continuadamente e que lhe
-imprimem habitos moraes, ensinando-lhe experimentalmente, e quasi
-inconscientemente, qual é o procedimento a seguir nos differentes
-casos. São os exemplos da familia, ainda mais que os ensinamentos
-que actuam em seu espirito e em seu coração. Mas dando-se á palavra
-_educação_ uma significação extensa, não havemos a certeza do seu
-effeito, ou ao menos, esse effeito de modo algum se pode medir.[69]
-Podem-nos fazer notar que quasi todas as creanças parecem privadas
-de senso moral nos primeiros annos da sua vida; a sua crueldade
-para com os animaes é conhecida assim como a sua tendencia para se
-apoderarem do que pertence aos outros; são inteiramente egoistas, e
-quando se trata de satisfazer os seus desejos, nada absolutamente se
-preoccupam com os desgostos que os outros soffrem. Na maior parte
-dos casos, tudo isto muda em chegando a adolescencia; mas podem-nos
-objectar que esta transformação psychologica é o effeito da educação
-ou sómente se hade ver n’isto um phenomeno d’evolução organica,
-semelhante á evolução embryogenica, que faz percorrer o feto pelas
-differentes formas da animalidade, desde as mais rudimentares até ás
-do homem? Tem-se dito que a evolução do individuo reproduz em ponto
-pequeno a da especie. Assim no organismo psychico, os instinctos que
-primeiro apparecem, seriam os do animal, depois os mais egoistas,
-os do homem primitivo, aos quaes viriam ajuntar-se successivamente
-os sentimentos ego-altruistas, e altruistas, adquiridos pela raça
-primeiramente, em seguida pela familia e finalmente pelos paes da
-creança. Seriam outras tantas juxtasposições d’instinctos e de
-sentimentos, que todavia não seriam devidos á educação, ou á influencia
-do meio ambiente, mas simplesmente á herança. «A consciencia, diz M.
-Espinas, cresce como o organismo e parallelamente a elle, encerrando
-aptidões, fórmas predeterminadas de pensamento e de acção, que são
-emanações directas de consciencia, anteriores _eclipsadas um instante
-é certo na obscuridade da transmissão organica_, mas reapparecendo
-um dia com caracteres de semelhança não equivocas, que logo se
-confirmam cada vez mais pelo exemplo e pela educação. _Uma geração
-é um phenomeno de fissiparidade transportado na consciencia._ Esta
-hypothese não é inverosimil, ainda que seja impossivel demonstral-a
-rigorosamente porque seria para isso necessario poder distinguir, no
-desenvolvimento moral d’uma creança, o que é devido á herança do que é
-devido á educação. E como o conseguiriamos, tanto mais que estas duas
-influencias actuam ordinariamente na mesma direcção, porque, quasi
-sempre _derivam das mesmas pessoas, dos paes? A educação domestica
-não é senão a continuação da herança_; o que não foi transmittido
-organicamente, sel-o-ha pela força dos exemplos e de uma maneira
-igualmente inconsciente. Nunca se poderá calcular a que ponto chegaria
-uma d’estas duas forças sem o soccorro da outra. É por isso que
-Darwin, d’um lado, tem o direito de dizer que se se transportasse a
-um mesmo paiz um certo numero de irlandezes e de escocezes, passado
-algum tempo, seriam aquelles dez vezes mais numerosas que estes, mas
-os escocezes, por causa de suas qualidades hereditarias, estariam á
-frente do governo e das industrias.--E Fouillée póde tambem replicar:
-«deitae nos berços de amas escocezas crianças irlandezas, sem que os
-paes possam dar pela substituição: fazei-os educar como escocezes e
-talvez vejais com a maior admiração identico resultado.» Mas, esta
-segunda experiencia ainda não foi ensaiada e é até provavel que nunca
-se cheguem a fazer experiencias taes. Ha sem duvida milhares de
-crianças que não são educadas por seus paes, mas de ordinario são
-desconhecidos estes ultimos. Emfim, é sempre preciso dar informações
-dos phenomenos d’atavismo, que permanecem ainda na obscuridade e que
-se não podem determinar; de sorte que tudo conspirava para que o
-problema fique sem solução. Muitas vezes succede que os instinctos
-paternos são abafados ou attenuados pelos exemplos maternos; outras
-vezes dá-se o contrario. Mas isto nada prova em favor da efficacia
-educativa, porque pode-se sustentar com igual apparencia de verdade
-que o effeito é simplesmente devido á superioridade final de uma
-das duas heranças. O que bem se póde affirmar é que a influencia
-_hereditaria_ nos instinctos moraes está _demonstrada_, emquanto que
-o da educação é _duvidosa_, mas _provavel_ uma vez que se tome no
-sentido dos _exemplos_ e dos _habitos_; que a considerem como sempre
-cada vez mais _fraca, á medida que a idade avança_ e que simplesmente
-se lhe attribue uma acção _capaz de modificar_ o caracter, isto é
-podendo, mas não extirpar os instinctos perversos, que ficariam sempre
-latentes no organismo psychico. É o que explica como a perversidade,
-talvez atavica, revelada por algumas crianças em tenra idade, jámais
-pôde ser corrigida em toda a sua vida, apesar do procedimento mais
-exemplar de seus paes e das pessoas que com ellas vivem em contacto e a
-despeito dos cuidados mais assiduos e dos melhores ensinamentos. Pelo
-contrario, parece incontestavel que a _influencia deleteria_ de uma _má
-educação_ ou de um meio ambiente depravado, pôde abafar inteiramente
-o senso moral transmittido e substituil-o pelos maus instinctos. De
-sorte que a _criação artificial de um bom caracter seria sempre pouco
-estavel, emquanto a de um mau caracter seria completa_. Isto explica-se
-facilmente, segundo M. Ferri, quando pensamos que os germens maus
-ou instinctos anti-sociaes, que correspondem á idade primitiva da
-humanidade, estão mais profundamente enraizados no organismo psychico,
-precisamente porque elles remontam a uma data mais affastada na raça.
-São pois mais fortes do que aquelles que foram substituidos pela
-evolução. Por isso, é que os instinctos selvagens «não sómente não
-podem ser nunca inteiramente abafados; mas apenas o meio ambiente e as
-circumstancias da vida, favorecem a sua expansão, brotam com violencia,
-porque, dizia Carlyle, a civilisação não é mais que um involucro sob o
-qual pode sempre arder em fogo infernal a natureza selvagem do homem.»
-
-Agora se a influencia da educação _pelo que respeita ao sentido
-moral_, é duvidosa, _mesmo durante a infancia_, o que será ao sahir
-d’este periodo? M. Sergi crê que o caracter é formado por camadas
-sobrepostas, que podem cobrir e esconder inteiramente o caracter
-congenital; o meio ambiente a educação experimental, os mesmos
-ensinamentos poderiam produzir uma nova camada, não só durante a
-infancia, mas durante toda a vida do homem. Esta hypothese não é
-admissivel, a meu ver, salvo se supposermos que as camadas mais
-recentes nunca alteram o typo já formado do caracter. Ninguem duvida
-de que o organismo psychico não tenha o seu periodo de formação e
-de desenvolvimento tanto como o organismo physico. O caracter, como
-a physionomia, declara-se desde a mais tenra idade. Póde tornar-se
-mais docil ou mais rispido, amaciar, embotar as unhas ou aguçal-as,
-disfarçar-se na vida ordinaria; mas, como poderia elle perder o seu
-typo? Ora um typo differente do caracter, e do homem desprovido dos
-mais elementares sentimentos moraes, é um defeito organica que deriva
-da herança, do atavismo ou d’um estado pathologico. Como poderiamos
-suppor que influencias exteriores reparem este defeito congenital?
-Seria uma criação _ex nihilo_, a producção _artificial do sentido
-moral_ pertencente á _raça_, mas de que o _individuo_ se encontra
-_excepcionalmente_ desprovido! Eis o que é dificil de conceber, o que
-parece até impossivel, quando se não trata já de uma criança. Isto
-não é negar o poder da educação. Quem póde duvidar dos seus prodigios
-quando se trata de aperfeiçoar um caracter, de tornar mais delicados
-os sentimentos já existentes, de trabalhar no estofo, n’uma palavra?
-O que lhe não reconhecemos é o poder de tirar alguma cousa do nada.
-É sobre este ponto que um illustre psychologo, o dr. Despine, se
-contradiz, me parece a mim, da maneira mais espantosa. É certamente
-a elle que nós devemos uma serie de observações sobre os criminosos
-confirmando a sua anomalia; foi elle até que formulou uma theoria
-muito approximada á nossa, sobre a ausencia do sentido moral, não
-sómente entre os assassinos a sangue frio, mas tambem nos grandes
-criminosos violentos. Foi ainda elle quem affirmou que «a educação
-mais diffusa não pode crear faculdades, só póde cultivar as que
-existem ao menos em germen. As faculdades intellectuaes por si sós não
-procuram os conhecimentos instinctivos dados pelas faculdades moraes;
-não teem esse poder,» que «é facil reconhecer nas faculdades moraes
-a origem dos motivos d’acção que devem apresentar-se ao espirito do
-homem nas diversas circumstancias em que este pode encontrar-se» e,
-emfim que «todos os raciocinios, todos os actos intellectuaes, não
-provarão já o sentimento do dever, não provarão as affeições, o medo,
-a esperança o sentimento do bello.» E apesar d’isto é este mesmo
-auctor quem propõe um _tratamento moral palliativo e curativo_ para os
-criminosos, tratamento que elle resumiu da maneira seguinte: Impedir
-toda a communicação entre os individuos moralmente imperfeitos.--Não
-os deixar na solidão, porque elles não possuem na sua consciencia,
-nenhum meio de emenda.--Conserval-os constantemente em contacto com
-pessoas moraes, capazes de os vigiar, de estudar a sua natureza
-instinctiva, de imprimir n’esta e dar aos seus pensamentos uma boa
-direcção, inspirando-lhes ideias d’ordem, e fazendo nascer n’elles o
-gosto e o habito do trabalho. O estado deveria pois tomar a seu cargo
-estes cuidados assiduos, constantes pelos encarcerados; vigiar os seus
-progressos, como se pratica n’um collegio de pequenos; tentar, por
-meio de exemplos, pela experiencia, pela instrucção, suavisar-lhes
-o caracter, tornal-os affectuosos, probos, cheios de caridade e de
-zelo. A ideia da applicação de uma semelhante therapia moral a muitos
-milhares de criminosos é, praticamente, uma utopia. Não fazia falta
-collocar ao lado de cada prezo um anjo consolador, por assim dizer?
-As pessoas chamadas para um semelhante emprego deveriam ser dotadas
-das mais nobres qualidades, das mais raras no homem; a paciencia, a
-vigilancia, a severidade e com um conhecimento profundo do coração
-humano, deveriam ter instrucção e dedicação. Onde se encontrariam em
-numero suficiente medicos das almas nas condições requeridas? Quaes
-seriam as finanças que poderiam supportar semelhantes despezas? Mas,
-suppondo por um pouco que as dificuldades praticas não levantariam
-um obstaculo insuperavel a este systema, quaes seriam os effeitos do
-seu emprego? O individuo, uma vez separado de toda a sociedade e não
-tendo já sob os olhos as tentações continuas da vida ordinaria, não
-experimentaria já em seu coração as impulsões criminosas. A causa
-occasional essa faltar-lhe-hia, mas o germen criminal continuaria a
-residir n’elle em estado latente, prompto a mostrar-se, assim que as
-condições precedentes da sua existencia normal viessem a reproduzir-se.
-A emenda pois seria apenas apparente, se é que não era fingida.
-Poder-se-hia acaso fallar de uma pedagogia experimental? Mas, se
-é certo que os instinctos moraes da humanidade foram criados por
-milhões de experiencias utilitarias feitas por nossos antepassados
-durante milhares de seculos, como se poderá imaginar a sua repetição
-artificial n’um espaço de tempo tão curto como a vida d’um individuo,
-cujo instincto não herdou, fructo d’estas experiencias das gerações
-passadas? É evidente que nada podemos tentar fóra do raciocinio. Tem-se
-tratado depois de fazer propostas mais praticas. Em primeiro logar
-seria inutil applicar a cura moral de um modo _directo_, conforme a
-utopia de Despine; mas effectuar-se-hia por si mesma, mediante um
-bom regime penitenciario. O isolamento, o silencio, o trabalho, a
-instrucção traziam a reconsideração e as boas resoluções, capazes de
-regenerar o condemnado. Mas, quanto ao isolamento «para o pobre e para
-o desgraçado, para o homem que tudo perdeu e cahiu,--diz eloquentemente
-Mittelstad,--não é a separação da sociedade humana que lhe faz falta
-é sim o amor e o contacto d’esta...» E quanto ao trabalho diz ainda o
-mesmo auctor: «Não resta presentemente para nós humanistas da escola
-correccionalista, senão o vago desesperador d’este dilemma, a ouvir-se
-n’estas palavras: «_trabalho educativo dos presos_». Querem elles
-o effeito benefico do trabalho sobre os costumes? Então é preciso
-que elle se exerça sem coerção e que se substitua a detenção pela
-liberdade ou antes querem elles a coerção ao trabalho? Então eil-os
-de novo no campo da dor penal, e o fim da emenda, que é d’elle?![70]
-Mas ao trabalho obrigatorio, respondem os correccionalistas, deve
-alliar-se a educação do espirito e do coração com o auxilio de escolas,
-onde os condemnados, ordinariamente grosseiros e ignorantes, podem
-adquirir os conhecimentos do bem e da verdade, que lhes fazem falta.
-Desgraçadamente, como nós o veremos em breve, a experiencia tem
-demonstrado que a efficacia da escola é ordinariamente nulla sobre a
-moral individual. Tem-se um delinquente adulto, privado de uma parte
-do senso moral, o instincto da piedade; pretende-se inculcar-lhe este
-instincto por meio do ensino, isto é repetindo-lhe que um dos deveres
-do homem é ser compassivo, que a moral prohibe fazer mal aos nossos
-semelhantes e assim outras cousas muito bonitas... O delinquente
-porem só adquirirá, se o não tiver já, um certo criterio para saber
-conduzir-se mais seguramente conforme os principios da moral. N’uma
-palavra, adquirir ideias, não sentimentos. E depois? O homem é bom não
-pela reflexão, mas por instincto que lhe falta. Como proceder para
-supprir este defeito organico? Elle verá o bem, mas fará o mal, quando
-o mal lhe convir e lhe causar prazer.
-
- _Vejo e approvo o que é melhor
- Mas sigo o peior._[71]
-
-Por mais que se lhe repita que o interesse social tem muito mais
-importancia que o interesse individual; que este, no fim de contas,
-se confunde até com aquelle: que, como membros da sociedade, nós
-devemos, em certos casos, sacrificar o nosso egoismo, para que assim
-procedam comnosco. Ou antes tomando por base um principio religioso,
-falle-se-lhe da felicidade de uma vida futura para o homem justo e de
-condemnação eterna que espera os perversos. Na essencia, tudo se reduz
-a um raciocinio: se tu praticares uma tal acção, advir-te-ha mal. _Logo
-para evitar isto, não deverás praticar aquillo._ Mas, se o delinquente
-prefere satisfazer antes a sua propria paixão, que entregar-se a
-qualquer outro prazer, a qualquer outra esperança, o raciocinio então
-já não tem valor para elle, o que poderia impedil-o de commetter
-um novo crime, não é ver claramente o que os outros, e não elle,
-consideram como um interesse predominante,--mas seria necessario que
-elle _experimentasse a mesma repugnancia_ que os outros experimentam
-pelo crime; porque o que explica toda a acção humana, é, em ultima
-analyse, o caracter do individuo e sua maneira geral de sentir.
-
-Ora um raciocinio não poderá nunca criar um instincto. Este não póde
-ser senão natural ou transmittido, ou antes adquirido inconscientemente
-por um effeito do meio ambiente. Eis-nos pois novamente em face dos
-dois agentes principaes a herança e o meio. A educação, uma vez que
-ella não represente senão ensinamentos, é de um effeito nullo, ou
-pouco menos, se o meio continúa o mesmo, isto é se o criminoso, depois
-da expiação da sua pena ou culpa se tornar a achar no mesmo meio
-que d’antes occupava. É conhecida a historia d’aquelles negrinhos
-que depois de terem sido educados e instruidos na Europa, foram
-reconduzidos aos seus respectivos paizes para _civilisarem_ os seus
-compatriotas. Assim que elles se viram de novo entre estes, tudo
-esqueceram, tanto a grammatica e as suas regras como as boas maneiras
-que tinham aprendido; despojaram-se dos seus vestidos, retiraram-se
-para as florestas e eil-os outra vez selvagens como seus paes, que
-aliás nem tinham conhecido! Eis aqui precisamente a que chegaria o
-systema correccionalista; julgue-se do resto pelos ensaios que já se
-teem tentado: o systema cellular, o de Auburn, o systema Irlandez, etc.
-O numero das reincidencias por toda a parte tem augmentado, á medida
-que se teem suavisado as penas e abreviado a sua duração. Em França
-na proporção de 21 p. c. em 1851, chegou a 44 p. c. em 1882 para os
-_delictos_ e de 23 a 52 p. c. para os _crimes_. A reincidencia--dizia
-o Ministro--continua a sua marcha invasora... O augmento do numero
-dos malfeitores em estado de reincidencia legal é, em dez annos de 39
-p. c., perto de 2 quintas partes. A maré da reincidencia continua a
-subir. Relatorio de 28 de março de 1886 onde se deplora o mesmo facto.
-Na Belgica a reincidencia attingira a proporção de 56 p. c. em 1870 e
-de 52 p. c. em 1873. Houvera diminuição desde 1874 até 1876, mas em
-1879 chegou a proporções assustadoras (49 p. c.!) Na Italia, desde
-1876 até 1885, a reincidencia dos condemnados pelos tribunaes subiu
-de 10¹⁄₂ p. c. A mesma progressão em Hespanha. Ha tambem augmento,
-ainda que menos pronunciado, na Austria e na Carinthia. Tudo isto
-prova experimentalmente o absurdo da theoria correccionalista, das
-suas applicações pelo menos. Nem podia deixar de ser assim, porque nos
-seus principios ha contradicção flagrante. Com effeito, emquanto que
-de um lado se declara que o fim da pena é a _correcção_ do culpado do
-outro lado estabelece-se uma _medida fixa_ de pena para cada delicto,
-isto é um certo numero de mezes ou de annos de detensão n’uma casa do
-Estado; o que--como o disse o juiz Wilert--se parece com o tratamento
-que um medico prescrevesse ao seu doente, com a indicação do dia em
-que lhe deveria dar alta do hospital, quer elle estivesse curado ou
-não. Tudo quanto se póde saber do naufragio d’esta theoria são as
-instituições para a infancia abandonada e para os adolescentes que
-começaram a mostrar más inclinações. Quanto aos adultos, apenas se
-póde tentar fazel-os adquirir o _habito_ de um genero de vida que
-elles _deveriam desejar poder continuar sempre_, porque será mais util
-_para elles_ que qualquer outra actividade em o novo ambiente para
-onde os transportarem. É assim que aquelles d’entre os criminosos que
-não são inteiramente homens degenerados poderão deixar de ser nocivos
-á sociedade. Isso só é realisavel pela deportação ou por colonias
-agricolas que se estabeleçam nas regiões pouco habitadas da mãe-patria,
-com a condição de que esta especie de exilio seja perpetuo, ou que ao
-menos se não fixe d’antemão o tempo da sua duração, afim de que se
-não libertem senão os raros individuos cuja regeneração pelo trabalho
-possa realmente ser verificada. São casos excepcionaes. Mas nos casos
-ordinarios é absurdo pensar que depois de uma ausencia mais ou menos
-longa, um delinquente possa reapparecer no meio que é sua pequena
-patria sem ahi passar pelas mesmas influencias que o tinham impellido
-para o crime.»
-
-Em toda a critica feita por Garofalo á escola correccionalista ha
-excellentes argumentos, muitos preconceitos systematicos e algumas
-contradicções. Nos capitulos anteriores já nós combatemos muitas das
-hypotheses d’esta escola. Os seus defeitos nascem por um lado d’uma
-funesta e erronea orientação philosophica, por outro lado da exagerada
-extensão generalisadora, dada aos factos sommaticos, generalisação que
-de modo nenhum scientificamente elles abrangem. O principal argumento
-é--que a educação é impotente para vencer os instinctos hereditarios,
-quando em boa psychologia se póde demonstrar, que a acção educativa,
-quando efficaz, aniquilla as más qualidades herdadas, substituindo-as
-pelos salutares beneficios adquiridos pela civilisação.
-
-A má educação na familia é um influxo mais corruptor e mais profundo do
-que o meio social. O instincto de imitação actua como importantissimo
-elemento para a formação do caracter.
-
-A educação segundo a anthropologia franceza modifica o encephalo, o
-seu influxo faz augmentar ou diminuir a capacidade da caixa craneana,
-apressar ou retardar o encerramento das soturas e a sua ossificação. É
-innegavel que o cerebro é a condição do pensamento e sendo modificado
-por factos exteriores ou internos, vem a ser ainda que indirectamente,
-tambem modificadas as suas faculdades.
-
-Paulo Broca affirma que segundo o costume de Taiti os indigenas crêem
-poder fabricar, á vontade, homens de conselho ou homens de guerra
-achatando nas creanças a parte posterior da cabeça no primeiro caso e o
-frontal no segundo.[72]
-
-Não póde nenhum penologo deixar de prestar justiça aos meritos e
-de reconhecer os esforços da escola italiana, comtudo é impossivel
-acceitar a extraordinaria affirmação de que todos os malfeitores são o
-reapparecimento do homem primitivo e que o meio de verificar este typo
-são especialmente os caracteres externos.
-
-A theoria biologica do transformismo está invadindo d’um modo
-anti-scientifico os principios explicativos dos phenomenos
-psychologicos e sociaes, é preciso na sua applicação um pouco mais de
-logica.
-
-«Os nossos anthropologos consideram como herança da antiga barbarie a
-predilecção que a mulher tem pelos adornos, que Isaias e Plauto, antes
-dos nossos prégadores e dos nossos comicos, reprehenderam como um senão
-e como um vicio.
-
-A arte dos adornos, na opinião d’elles, é uma das primeiras que o
-homem conheceu. Precedeu o vestuario. O selvagem de pelle aspera e
-cabelluda, de costumes bestiaes, não sentia nenhuma necessidade de
-se vestir. Mas o orgulho, o cuidado de se defender, o desejo sempre
-crescente de se differençar e de metter medo, fizeram com que elle
-pintasse e ornasse o corpo conforme o seu ideal rudimentar de belleza.
-O adorno é mais que tudo a insignia do guerreiro, que quer fazer maior
-e exagerar o seu typo. «Na origem das sociedades, é o homem que traz
-os braceletes, manilhas, brincos, collares, pinjentes, alfinetes para
-o cabello, plumas de cores vivas; é elle que se pinta, que emprega a
-tatuagem, para chamar a vista, para fascinar o inimigo, affirmar a
-sua cathegoria entre os seus eguaes, e excedel-os se póde; um penacho
-é uma coroa.[73]» Mais tarde com o progresso relativo das artes e
-da abastança, o nivel da mulher, destinado a ficar sempre inferior
-ao homem, alevantou-se um nada, o senhor, que primeiramente fiava,
-tecia e ennastrava permittiu-lhe que se occupasse n’esses humildes
-trabalhos, não lhe desagradou vel-a adornar-se para elle, o luxo em
-torno do senhor era com effeito apenas a amplificação da sua propria
-magnificencia. Como elle achava de continuo meios novos de assignalar
-a sua superioridade, deixou para a mulher os adornos que já não eram o
-seu prestigio unico, o progresso da civilisação, é realisado sobretudo
-pelo homem e para o homem, e o apartamento faz-se cada vez mais
-sensivel entre os dois sexos.
-
-É por isso que a mulher conforme dizem os anthropologos representa o
-typo inferior da especie, adorna-se e enfeita-se ainda com melhor gosto
-sem duvida, mas com a mesma paixão que o selvagem e o homem primitivo.
-Do selvagem ao criminoso innato a distancia é pequena, e a assimilação
-d’um ao outro reflectiu-se na mulher. Se o criminoso representa nas
-nossas sociedades civilisadas, a selvageria primitiva, encontra-se
-entre elle e a mulher semelhanças notaveis. «Ellas são mais prognathas
-que os homens, tem o craneo menos volumoso (Topinard) e o cerebro menos
-pesado, mesmo com estatura egual e as fórmas cerebraes tem o que quer
-que seja infantil, e embryonario; são mais que os homens canhotas ou
-ambisdextras; tem, se é licito dizer-lho a ellas, o pé mais chato e
-menos arqueado; emfim, ellas são menos musculosas e tão completamente
-imberbes como abundantes de cabêllo. São estes outros tantos traços
-communs com os nossos malfeitores. Mas isto ainda não é tudo. A mesma
-imprevidencia, a mesma vaidade, dois caracteres que Ferri assignala
-com razão como dominantes no criminoso».[74] Paro aqui n’esta ultima
-parecença. Não poderia admittir em nenhum ponto de vista a assimilação
-do typo feminino ao typo selvagem ou criminoso. Com os mesmos titulos
-que o homem, mas com um feitio proprio, a mulher é um ente civilisado.
-Cada um tem aproveitado o progresso e collaborado com o seu quinhão,
-conforme o seu destino social.
-
-O papel da mulher é sobretudo «agradar ao homem» diz Rousseau; «e a
-belleza da mulher é o signal da sua missão,» diz Proudhon; Renan poude
-portanto dizer com razão que adornando, aperfeiçoando, idealisando a
-sua belleza, «ella pratica uma arte, arte especial, em certo sentido a
-mais encantadora das artes.»
-
-Tenham paciencia os anthropologos extremos, a predilecção pelos
-adornos, restringida pelo pudor e o bom senso, assignala antes uma
-perfeição do typo humano na mulher. Mas nós precisamos defender tambem
-a creança contra as pretensões abusivas de certos philosophos. Se a
-mulher, reproduz em certas proporções o typo selvagem e primitivo,
-a creança reproduz-lhe as differentes phases. O desenvolvimento
-individual não é senão uma fórma abreviada do desenvolvimento da
-especie desde o seio da mãe e durante muitos annos, a creança repete
-a serie da evolução prehistorica. Aos seis mezes, ao anno, aos dois
-annos, mesmo aos tres, o que domina n’elle é o selvagem. Conheço
-transformista a quem não custaria mostrar-nos no «Bébé» primeiro o
-selvagem da pedra lascada, depois o da pedra polida, e emfim o da edade
-de bronze, tudo isto muito exactamente.
-
-Admittamos a theoria por hypothese e verifiquemos.
-
-O encommodo que o contacto e a pressão da roupa, produz no recemnascido
-lembrará, estou d’accôrdo, a feliz e livre nudez do velho antepassado.
-O curioso é que este mimo primordial persiste entre muitas creanças,
-aliás, muito bem dotadas, e que a insensibilidade da pelle é um
-dos caracteres attribuidos ao typo criminoso «ou selvagem». Não me
-encarrego de explicar a contradicção. Mas lá vae outra: desde o decimo
-segundo ao decimo quinto mez, a predilecção nascente pelo adorno
-coexiste com o prazer de estar nuazinha. Deveriamos vêr n’isto duas
-phases successivas de selvageria que se fundiam?
-
-Nós chegamos, despresando as transições á edade de tres ou quatro annos
-e podemos suppôr-nos no limiar da pedra polida. Ora n’esta épocha, e
-sobretudo na epocha do bronze, o adorno era em geral o privilegio do
-sexo forte. Deveriamos pois, achar a predilecção mais precoce e mais
-viva nos rapazes que nas meninas; sem o que a doutrina da repetição
-historica nos parece estar em perigo. A não ser que se supponha tambem
-(uma hypothese a mais ou a menos, não é coisa de grande monta) n’essas
-edades distantes a paixão pela argola de metal e por um trapo não fosse
-um desejo bastante violento para se assemelhar ao sentimento da posse.
-Mas vamos aos factos e estudemos sem idéa antecipada as creanças dos
-dois sexos.[75]»
-
-Póde affirmar-se[76] que as bellas artes indirectamente concorreram
-para o desenvolvimento moral da humanidade. As faculdades estheticas
-são até certo ponto intermediarias entre as faculdades puramente moraes
-e as faculdades puramente intellectuaes. Ha homens para quem não é
-possivel despertar uma certa actividade especulativa sem submetter
-a sua intelligencia a um regimen esthetico previo. Este influxo é
-salutar e reage sobre o espirito e sobre o coração, podendo constituir
-espontaneamente um dos processos mais poderosos da pedagogia. É
-incontestavel que o convivio com as bellezas da natureza ou da arte
-purifica a sensibilidade, eleva o espirito, engrandece o horisonte
-onde a alma se move, torna o sentimento da dignidade mais vivo e mais
-delicado, expungindo do coração o que é vil e miseravel, senão para
-sempre ao menos emquanto dura a vibração do enthusiasmo. Estes são os
-fins indirectos, mas o fim essencial da arte é interpretar idealmente
-as bellezas da natureza e com ellas deleitar-nos.
-
-É uma das glorias mais formosas dos espiritos d’escol na civilisação
-moderna, dar um logar cada vez mais amplo á sensibilidade humana
-no banquete dos prazeres intellectuaes. H. Spencer, levado por um
-preconceito nacional que caracterisa exclusivamente o espirito
-inglez, antepoz d’um modo particular a utilidade ao sentimento
-esthetico, a sciencia á arte. Propugna este paradoxo com a finura do
-seu immenso talento,--representando uma inconsolavel mãe que perde o
-seu filho, cuja saude comprometteu pela ignorancia da hygiene, e a
-quem não consolará uma leitura da Divina Comedia de Dante no texto
-original.--Podem saber-se umas noções de hygiene e conhecer o italiano,
-sem que estas duas ordens de idéas se excluam, pelo contrario podem
-harmonisar-se e completar-se. Seria revoltantemente injusto privar o
-espirito da mulher de emoções tão delicadas e tão latificantes como o
-attractivo da poesia e os encantos da arte.
-
-As obras litterarias, d’um requinte subtil, são unicamente para os
-espiritos excepcionalmente cultos e delicados, mas as universaes
-bellezas da arte grega e latina, e muitas ha n’este genero, estão ao
-alcance de todas as intelligencias. Ao ler, por exemplo, o dialogo do
-divino Platão, o _Criton_, onde se narra pormenorisadamente a morte
-sublime de Socrates, ou a descripção que Herodoto faz da passagem
-do desfiladeiro das Termopylas, ou da batalha de Marathona, ninguem
-deixará de sentir uma emoção benefica e consoladora, pela belleza da
-narrativa e pela grandiosidade heroica dos factos. A circumstancia
-de obrigar o nosso espirito a pensar e a fallar da vida do mundo
-hellenico-romano não só nos incute aquelle delicado sabor esthetico,
-mas imprime ao nosso caracter aquella energia moral intemerata e
-athletica, que parecia feita do bronze da lança de Minerva. Meditamos
-n’aquella unidade e harmonia, que tanto distingue a civilisação grega
-e de que tanto carece a sociedade moderna. O nosso espirito chega a
-sentir saudades d’esse passado, vendo como essa unidade e essa harmonia
-foram impostas pelo sentimento artistico, cujo esplendor foi a funcção
-historica d’esse glorioso povo. Nenhuma nação do mundo, em tão limitado
-espaço e em tão pouco tempo, fez tanto e tão bem. O que nos resta da
-formosa Hellade, passados mais de dois mil annos, ainda nos maravilha
-e nos encanta, as deliciosas reliquias da sua alma são um lenitivo aos
-nossos desgostos, como o capitoso _nepenthes_ de que falla Homero.
-
-Não é meu intuito fazer n’esta occasião um curso de sciencia da
-educação; porém não será fóra de proposito mostrar de modo rapido
-como a cultura esthetica do espirito humano pela litteratura e pelas
-bellas artes póde contribuir para o seu aperfeiçoamento moral. Querendo
-esclarecer esta questão basta analysar as relações que unem o bem e
-o bello, visto que as lettras e as bellas artes são as expressões do
-bello, e que a idéa do bem serve de guia a tudo o que póde contribuir
-para o nosso aperfeiçoamento. Ha quem sustente a these opposta, J. J.
-Rousseau trata com desamor as sciencias e as artes porque vê n’ellas um
-instrumento não de progresso moral mas de corrupção. O genio grego e
-romano era d’uma opinião opposta, admittindo quasi a identidade do bem
-e do bello, e confundindo muitas vezes as duas idéas. O bello e o bem
-dimanam d’uma unica idéa, a idéa de ordem que é tão precisa á esthetica
-como á moral. Evidentemente o bello não poderia existir na arte sem
-a harmonia, a regularidade; em pintura as leis da perspectiva, da
-proporção, impõem-se ao artista; a musica tem como condição, a medida e
-o rhythmo; o drama não poderá libertar-se das tres unidades no tempo,
-no espaço e na acção: ora é obvio que é sempre a idéa de ordem que se
-manifesta n’estas concepções sob aspectos diversos. Succede o mesmo em
-moral, a ordem é uma condição da virtude. O homem honesto carece da
-razão, do senso commum e da medida que regula todos os seus actos.
-
-Ha uma relação intima entre o bem e o bello; porque teem um principio
-commum, poder-se-hia mesmo, dentro de certos limites, substituir o
-gosto esthetico á consciencia moral. A harmonia reinaria em todos os
-nossos actos tendo o bello invariavelmente, na sua significação mais
-grandiosa, como norma do procedimento. O bello repelle a grosseria
-e a bruteza, é sempre fiel á honra, á pollidez e á virtude. É além
-d’isso desinteressado, não serve senão para deleitar a alma; perante um
-objecto bello não somos egoistas, satisfazemo-nos em contemplal-o, não
-desejamos appropriar-nos d’elle para uso exclusivo.
-
-O gozo esthetico affasta as paixões ruins e depura a alma; com effeito
-depois de um homem ter passado horas na comtemplação ou leitura das
-grandes obras onde ha opulencia de belleza, não poderá entregar-se ás
-brutalidades da embriaguez e das paixões degradantes.
-
-Ha distracção mais fina e mais delicada, conforto moral mais consolador
-do que a leitura do _Prometheu_ de Eschylo, da _Antigone_ de Sophocles,
-ou da _Historia da guerra do Peleponeso_ de Thucydides?
-
-As bellas lettras não corrompem o homem, o que o corrompe é a riqueza,
-e esta coincide quasi sempre com as epochas de desenvolvimento
-artistico e litterario: d’ahi vem a confusão de se attribuir, como
-na _renascença_, a decadencia moral ás artes, quando ella provém do
-excesso de riqueza. Com effeito o bello tem fórmas que são estranhas
-ao bem; Cesar, ás vezes, fez uso immoral do seu genio, mas a nossa
-admiração e o nosso criterio distingue bem dos seus vicios o seu
-extraordinario heroismo.
-
-Ha homens d’uma grande inferioridade moral que manifestam grande
-admiração pelas artes. Ludovico de More, duque de Milão, que passou
-politica e estheticamente por um grande principe, e que protegeu
-copiosamente as artes, chegando a fundar uma academia na sua côrte,
-retribuindo largamente os grandes artistas Bramante e Leonardo de Vinci
-tem uma vida de tyranno cheia de perversidades e de crimes. Outro
-exemplo assaz saliente é Nero. Modernamente póde citar-se Napoleão I
-que é um todo extraordinario e de quem de Candolle, fazendo-lhe um
-retrato moral execravel diz que tinha um fraco sentimento das artes
-plasticas e nenhuma disposição para a musica, sem embargo de ter
-ostentado que as amou. Sem duvida todos os tyrannos, que protegem
-as artes é mais pela vaidade propria e como chamariz da admiração
-alheia, do que pelo sentimento intimo da contemplação do bello.
-Conseguintemente estes não podem servir de norma para apreciar a acção
-moral do sentimento artistico.
-
-«Na transmissão educativa transformada ao impulso da civilisação
-moderna ha, como consequencia de grandes causas de erro,
-alterações pathologicas individuaes que se podem grupar em duas
-classes--_alterações anatomicas e alterações funccionaes_.[77]
-
-Este segundo grupo ainda convem dividil-o em _perturbações da vida
-animal e perturbações da mentalidade_.
-
-Não é que estas differentes anomalias se destaquem realmente e possam
-apparecer exclusivamente sós n’um dado individuo, mas pela razão de
-todas as classificações--a commodidade e o methodo de estudo.
-
-O typo normal especifico do homem actual soffre, em virtude da
-adaptação escolar um desvio bastante notavel e importante, no ponto
-de vista anthropologico que comprehende o individuo, a especie e as
-sociedades.
-
-A alteração d’este typo é o resultado das deformações a que o individuo
-é sujeito durante a actividade escolar. Estas deformações são o
-producto das posições viciosas que tomam os alumnos ou que lhes fazem
-tomar no exercicio quotidiano de desenvolvimento intellectual e de
-acquisição scientifica.
-
-Este exercicio prolongado por mezes e annos, nas más condições
-mesologicas que ordinariamente se encontram na escola, e sem a devida
-compensação do exercicio physico, bem pensado e dirigido, constitue
-um agente poderoso de transformação individual que a hereditariedade
-reforça e fixa, já pela tendencia transmittida, já pela transmissão de
-mudança que o habito operou no individuo.
-
-N’estas considerações abrangemos com a maxima generalisação todas as
-modificações de que é susceptivel o individuo humano convencionalmente
-adaptado ao meio escolar.
-
-Especialisando convenientemente, encontramos no primeiro grupo definido
-os desvios da columna vertebral.
-
-D’esta classe só pretendemos estudar, conforme o nosso ponto de vista
-particular, os desvios _não symptomathicos_ de qualquer affecção.
-
-Excluidos estes apresentam-se-nos na escola dois generos de incurvações
-rachidianas:--_incurvações antero-posteriores e incurvações
-lateraes_.--Pertencem ao primeiro genero a _cyphose_ e a _lordose_ e
-ao segundo a _scoliose_ como especie unica, mas com variedades mais ou
-menos accentuadas.
-
-A cyphose dá uma incurvação exagerada á espinha dorsal e é
-ordinariamente limitada á região dorsal, pelo que póde considerar-se
-como uma ampliação da curvatura d’essa região. É produzida pelas
-attitudes demoradas, com o dorso curvado, lendo, escrevendo ou
-costurando, e devida, em parte, á necessidade creada pela myopia
-de inclinar muito o tronco para approximar os olhos do trabalho em
-execução.
-
-Esta especie de desvio encontra-se mais frequentemente do que parece e
-nem sempre se torna notavel. Mas observa-se vulgarmente nas modernas
-gerações que passam a sua adolescencia na escola um arqueamento
-pronunciado no dorso e a saliencia posterior anormal dos hombros,
-projectando para diante a cabeça e o pescoço. É o que se encontra mais
-frizantemente na velhice mais adiantada, principalmente nos individuos
-cuja profissão ou habito obriga á incurvação prolongada do tronco, por
-exemplo, escrivães, costureiras, cavadores. Na outra especie d’este
-genero--a lordose--a convexidade da curvatura é anterior e dá-se na
-região lombar e quando muito na cervical. É uma incurvação que tem mais
-geralmente logar nas mulheres e que, como deformação escolar tem a sua
-etiologia na attitude forçada a que são obrigadas as alumnas para se
-manterem direitos em assentos sem espaldar.
-
-Por muito distantes que pareçam estar estas ideias, ha entre ellas uma
-relação mais proxima, infelizmente do que entre escola e educação;
-porque tal como educação e escola se consideram hoje, o que se adquire
-mais facilmente do que uma educação bem dirigida e equilibrada é um
-certo grau de morbidez caracteristico dos individuos que vivem em
-logares restrictos e que são adaptados a um modo de vida artificial e
-anomalo.
-
-A escola, como equivalente de estufa ou de viveiro, dá productos
-de degenerescencia que são o resultado mais contraproducente da
-civilisação moderna, d’este pretendido progresso humano que nos leva
-por vezes a um pessimismo doloroso e desolador em vez de nos conduzir a
-um aperfeiçoamento a que já teria decerto chegado a nossa especie, se
-varios elementos perturbadores não influissem na sua evolução.
-
-É que realmente tem-se desenvolvido mais a intelligencia do que a
-energia physica e alcançou-se com este desequilibrio uma tal devassidão
-dos elementos psychicos na educação que se obtem frequentes resultados
-negativos, agora, isto é, na epoca em que os programmas attingiram o
-maximo desenvolvimento.
-
-Se collocarmos em parallelo esta exhuberancia dos programmas e do
-ensino intellectual com a marcha evolutiva da educação physica e
-moral e com a nosographia, particularmente na applicação á escola,
-tornar-se-ha bem avultante, apesar de todos os aperfeiçoamentos
-apparentes, o amesquinhamento das raças, mesmo nas manifestações
-intellectuaes, que tanto se obstinam as boas sociedades em fazer
-realçar, embora á custa da salubridade individuar e collectiva,
-produzindo a final um definhamento cujos signaes se pronunciam cada
-vez mais nas descendentes das velhas raças europeas civilisadas, mas
-decadentes.
-
-Esta conclusão é tanto mais legitima quanto maior numero de exemplos a
-Historia apresenta de genios, de sabios, de celebridades de diversos
-typos, que representam em grande parte a negação da escola, e foram
-comtudo grandes, livres na sua expansibilidade genial, e vieram a
-occupar as culminancias sociaes, como as aguias e os açores nas
-eminencias dos rochedos olhando o mundo com o desprezo que lhe permitte
-a potencia das suas azas e das suas garras.
-
-Justamente, muitos genios, precisaram, para mais largamente exercitarem
-o seu vôo, forçar os gradeamentos tristonhos das gaiolas de educação
-a que em vão pretenderam sujeital-os e para alguns, como Darwin, por
-exemplo, só depois de passado o tempo escolar poderam manifestar as
-suas aptidões, porque na escola eram tidos como menos aptos.
-
-O que é tristemente certo e independente de qualquer pessimismo é
-que, apesar da extraordinaria ampliação dos programmas de ensino,
-os sabios que ainda hoje ha e os que ainda são robustos pertencem á
-geração anterior, contemporaneos de Chevreul, e anteriores ainda ao
-movimento escolar moderno, emquanto que da geração actual, sahida da
-estufa educativa não se distinguem, proporcionalmente, na quantidade
-e na qualidade, os genios, os sabios, por estudos, por descobertas
-que possam tornal-as equivalentes a Pasteur, a Trousseau, a Broca, a
-Lombroso, a V. Hugo, a Tourgueneff, a Wagner, a Delacroix, e a tantos
-outros que, por assim dizer, monopolisaram a originalidade, o poder
-descobridor e inventivo que tem apenas um echo nas sociedades hodiernas.
-
-O ensino collectivo, escolar, restricto, apenas mais complicado,
-mas não muito mais vasto do que nas epochas passadas, fornece á
-vida pratica productos de fabrica, industriaes levando a respectiva
-marca--os stigmas da degenerescencia. São resultados de tentativas
-frustres, talvez typos de transição, mas a sociedade não se acha
-realmente mais adiantada, menos viciosa, antes pelo contrario. E se,
-nas revelações exteriores da actividade commum, ainda se admira alguma
-obra grandiosa como a celebração do centenario da Republica franceza,
-essa maravilha é feita de passadas glorias, é obra de adultos e de
-velhos experimentados e sabedores, é resultante de exforços conduzidos
-scientificamente de outras eras, o aproveitamento de descobertas
-anteriores; o que tem de novo é a fórma e a applicação. Tal é, por
-exemplo, o phonographo Tainter--Edison. É preciso lembrar que a torre
-Eiffel não se ensina a construir na escola.
-
-Seria de certo exigir muito, mas por isso bastam á escola principios,
-noções, idéas, e a escola de hoje, moldada nas reformas recentes, tem
-pouco d’esse indispensavel material, por muito que lá se trabalhe;
-porque ha sensivelmente falta de ordem, de equilibrio, de methodo,
-e d’este trabalho desordenado sae, como no poema surprehendente de
-V. Hugo--_Puissance egale bonté_--um _gafanhoto brilhante_ mas...
-destruidor de culturas. Será isto uma consequencia da degeneração das
-raças que habitam o velho continente ou simplesmente o resultado da
-educação como até aqui tem sido dirigida? É o que tratamos de estudar.
-
-Em primeiro logar as nações arrastadas por uma corrente de
-industrialismo teem hoje o triplo fim--industria, commercio e luxo.
-Desde muito tempo que a actividade civilisada se reduz totalmente
-á industria, tendencia que mais se accentuou desde o começo d’este
-seculo. O principio é a fabrica, o meio é o commercio e o fim é o luxo.
-
-De modo que cada vez é mais pequena a esphera da actividade
-desinteressada, scientifica ou artistica. Hoje tudo quanto trabalha não
-tem singelamente como fim a existencia e o bem estar normal, primitivo;
-ha em vista o luxo e a gloria, que é tambem um luxo.
-
-Na consecução d’este fim multiplo a humanidade desviada da sua linha
-natural de aperfeiçoamento entra no dominio da pathologia. Esta
-explica-nos como, a despeito do progresso de todas as epochas, dos
-seculos passados e do presente, as raças que se chamam civilisadas vão
-cahindo n’uma degeneração tristissima, porque, como dizia Theophilo
-Gautier, a ruina humana é a mais triste das ruinas.
-
-As sociedades tem ainda os grandes contagios, a tuberculose, o
-arthritismo, o crime, o alcoolismo e variadas fórmas de nevrose que
-constituem um grupo nosologico á parte e o assumpto de um vasto estudo,
-porque o industrialismo usurpa em seu favor os mais generosos exforços
-e arrasta até os artistas e os homens de sciencia, e os hygienistas
-mal podem vibrar a sua palavra auctorisada no meio do ruidoso labor
-dos tantos industriaes e mal conseguem vencer a astucia de tantos
-_industriosos_.
-
-Obedecendo á mesma lei, a escola é tambem uma fabrica onde se trabalha
-em _alta pressão_ conforme a phrase do dr. J. Rochard, produzindo o
-que este illustre hygienista francez chama _petits savants à lunettes,
-myopes, chétifs bourrés de chiffres et de formules_...
-
-Esta adulteração não póde passar sem reparo perante aquelles que prezam
-sinceramente a sciencia e as legitimas manifestações intellectuaes,
-visto que a cultura, como ella é presentemente feita, dá productos
-analogos aos que uma horticultura banal obtem pela transformação de
-plantas naturalmente simples e bellas em monstros botanicos para
-admiração do vulgo e vaidade do jardineiro.
-
-Com os primeiros exercicios escolares começam as deformações anatomicas
-e consequentemente as alterações funccionaes que tomam facilmente um
-feitio peculiar de modo que a escola, fóra dos preceitos, muitas vezes
-da hygiene mais elementar, entra largamente na secção etiologica da
-pathologia geral, onde, com sentimento, não vemos a menor adhesão
-especifica a este grupo de causas, a não ser muito largamente.
-
-Este esquecimento admira-nos tanto mais quanto achamos o parentesco
-pathogenico de muitas lesões e desvios anatomico-physiologicos na
-nosologia escolar.
-
-É preciso não esquecer um só momento que é dos primeiros annos que
-depende o resto da existencia de cada homem e que abandonado ou mal
-dirigido n’esses primordios da vida fica vitaliciamente entregue á sua
-hereditariedade e ás commoções do meio social e climaterico.
-
-Fallámos da hereditariedade e parece-nos dever declarar aqui que este
-importantissimo factor não fica por nós posto de parte no estudo da
-nosographia escolar a que nos dedicamos. Mas se effectivamente a
-creança vem para a escola na posse de uma herança morbida qualquer,
-a escola não modifica vantajosamente, nem no physico nem no moral, e
-muitas vezes, nem no intellecto, o individuo que lhe foi confiado.
-
-Pelo contrario, as mais das vezes, a escolariedade imprime á creança ou
-ao adolescente os caracteres morbidos que mais se accentuam de geração
-em geração, pela hereditariedade.
-
-N’um precedente estudo indicamos as alterações anatomicas de que o
-individuo humano é passivel na escola[78] e dividimos as alterações
-funccionaes em dois grupos:--perturbações da vida animal e perturbações
-mentaes.
-
-Procuraremos por ora occupar-nos um pouco d’esta primeira sub-divisão.
-
-O que se nos impõe logo como defeito escolar é a insanidade commum a
-todas as acumulações humanas, como de quaesquer reuniões de animaes em
-espaço limitado e sempre demasiadamente acanhado.
-
-Todas as vezes que ha agglomeração de individuos que precisam de ar
-para viver, e teem de ficar encerrados n’um recinto mal ventilado,
-ou de, modo nenhum ventilado, é claro que vão cerceiando uns aos
-outros o ar de que cada um carece. Ao cabo de uma hora ou ainda menos,
-acha-se a atmosphera sensivelmente modificada, diminuida no seu
-oxygenio e augmentada no gaz carbonico, alem de outros productos de
-desassimilação que se eliminam pelos pulmões e pela pelle. Herscher
-demonstrou pelo calculo que n’uma aula tendo 8 metros cubicos por
-alumno a viciação de ²⁄₁₀₀₀ de anhydrido carbonatico é attingida em
-uma hora, se não se estabelece a ventilação. Attendendo a que a maior
-parte dos estabelecimentos escolares não fornecem, mesmo dada alguma
-ventilação, aquelles 8 metros cubicos a cada alumno, principalmente nos
-dormitorios, póde concluir-se, embora grosseiramente, que a viciação
-da atmosphera n’estes institutos é mais consideravel do que a media
-fornecida pelo calculo de Herscher.
-
-O anhydrido carbonico vae-se diluindo no ar e, logo que exceda a
-proporção de 3 a 4 por 1000, este torna-se irrespiravel. Ora a
-ventilação tem sido um problema de solução delicada e ordinariamente
-não se faz bem, porque quasi nunca as edificações escolares satisfazem
-a esta exigencia, entre nós e mesmo n’outros paizes, se prestarmos fé
-ás queixas de hygienistas e visitadores de escolas do estrangeiro.
-
-O collegial soffre, pois, durante grande parte do dia e portanto
-durante grande parte da sua vida, a influencia do ar deleterio, e
-patenteia-se ao observador mais especialmente instruido a anemia
-caracteristica dos individuos que persistem muito tempo em logares mal
-arejados.
-
-Combinando a falta do ar com a falta de movimentos necessarios ao
-regular desenvolvimento do organismo tem-se uma grande diminuição da
-vitalidade geral, uma diminuição da capacidade total respiratoria, e
-portanto uma debilidade que predispõe para qualquer estado morbido
-determinado pela incidencia das causas pathogenicas. De facto a vida
-escolar predispõe para a tysica, já pela falta de ar livre, já pelas
-attitudes contrafeitas que originam deformações da espinha dorsal e
-do thorax e dão perturbações da respiração, o que, conjunctamente com
-a mobilidade demasiado restricta que traz a atrophia dos orgãos, dá a
-apparencia estiolada e o fundo morbido correspondente.
-
-Além d’isto, ha uma actividade cerebral forçada, exaggerada que rouba
-aos outros orgãos o fluido nutritivo, fatiga os centros nervosos e
-contribue para o desequilibrio funccional que de ordinario se observa
-nos escolares.
-
-A este respeito diz o professor Peter: «Não ha só trabalho excessivo
-e reparação insufficiente, ha ruminação do ar nas salas de estudo mal
-ventiladas durante a estação quente e de modo algum na estação fria,
-ruminação do ar nos dormitorios menos arejados do que as salas de
-estudo, ha durante a maior parte do dia a clausura longe do sol, isto
-é o estiolamento, a immobilisação nos bancos, isto é, os musculos em
-repouso e o cerebro em trabalho forçado. E tal que tinha nascido para
-bom cultivador saudavel, torna-se um tuberculoso forte em themas.»
-
-Quando tudo isto fosse apenas previsão do nosso espirito ou exhalação
-acrimoniosa de um pessimismo da moda, não seriam confirmadas estas
-observações pelos resultados da estatistica.
-
-Assim, conforme a estatistica de Finkelnburg, em Berlim por 100
-creanças que morrem tysicas ha 4,81 de 5 a 10 annos de idade; 12,96
-de 10 a 15 annos e 31,88 de 15 a 20 annos. Vê-se que esta mortalidade
-augmenta com o numero de annos e como o ensino é mais desenvolvido e
-complicado quanto maior é a idade escolar, póde concluir-se, tendo
-em vista a situação da creança e do adolescente na escola, que esta
-favorece a evolução da terrivel doença.
-
-Quando menos encontram-se nos escolares, e com certa frequencia
-as congestões abdominaes, produzidas pela estação sentada durante
-muito tempo e as congestões de cabeça, que se traduzem ás vezes por
-expistaxis e ordinariamente por cephalalgias repetidas e cujo numero de
-casos varia de 20 a 40 por 100 conforme os estabelecimentos (Arnould).
-Michel Levy conta 104 vezes cephalalgia nos alumnos da Escola
-Polytechnica, sobre 360 casos de doença.
-
-Estes accidentes são attribuidos ao mau funccionamento pulmonar nas
-posições contrafeitas que os alumnos tomam nas salas de estudo.
-
-Serão muitas vezes attribuiveis á fadiga cerebral, principalmente
-quando se trata de preparar os exames.
-
-O estudo nocturno, alem da demorada applicação da vista de dia, é
-causa não só da myopia tão vulgar na classe escolar, mas de varias
-doenças oculares determinadas pelo excesso de funcção, estando ou
-não predisposto o alumno para taes desvios pathologicos que são
-tambem muitos frequentes nos escolares. Ordinariamente acontece que
-o trabalho de leitura e escripta muito prolongado e feito em más
-condições com a cabeça inclinada para a frente, circulação viciosa e
-luz insuficiente, produz uma tensão vascular das membranas do olho,
-estase sanguinea e muitas vezes inflamações, atrophia da choroidea que
-durante a acomodação forçada comprime as arterias, diminuindo as trocas
-nutritivas pelo obstaculo posto á circulação.
-
-É incontestavel a perturbação da physiologia da retina pelo cançaço
-do orgão, pela illuminação intensa, que deslumbra em certas salas
-d’estudo e que é em geral defeituosamente conduzida, sendo notavel
-que, precisamente porque o orgão visual por muito melindroso carece de
-numerosos e delicados cuidados, faltam quasi ou absoluto nas escolas.
-
-Iriamos longe se descrevessemos minuciosamente com as suas relações
-de causalidade todas as modificações pathologicas que a bem dizer
-se fabricam na escola, por isso limitamo-nos a uma exposição breve,
-abrangendo nos seus contornos geraes a nosologia escolar.
-
-Pondo de parte conforme nosso plano, as alterações physico-mechanicas
-cujas principaes tracejamos n’outro estudo, podem reduzir-se todas as
-perturbações mencionadas a erros de circulação e nutrição.
-
-Viciadas simultaneamente estas actividades organicas, a constituição do
-sangue altera se consequentemente e amplia o movimento de dessimilação,
-a depauperação do organismo determinada pela adaptação a condições
-anormaes de existencia.
-
-D’ahi resulta para o systema dominante de toda a organisação
-superior--para o systema nervoso--a incorrecção que nos individuos
-affectos da escolaridade, toma uma fórma particular, caracterisada, em
-geral por uma demasiada susceptibilidade dos orgãos, dores nevralgicas
-visceraes, nauseas lypothimias, palpitações e, finalmente, por
-modificações da personalidade, e da mentalidade que serão objecto de
-outro estudo.»
-
-
-NOTAS DE RODAPÉ:
-
-[69] Para que a educação tenha toda a sua influencia, é preciso que
-nenhum vicio de conformação, nenhum estado pathologico, nenhuma
-condição hereditaria transmittida por uma longa série de gerações
-tenham tornado certos centros (nervosos) absolutamente inexcitaveis.
-Relatorio de M. Sciamanna nos actos do 1.ᵒ congresso d’anthropologia
-criminal p. 201--Roma, 1887.
-
-[70] A este respeito diz Spencer (_Morale des Prisons_) «É um signal
-de vistas limitadas obrigar o condemnado ao trabalho; assim que elle
-se vir livre, voltará a ser o que era d’antes. A impulsão deve ser
-interior, para que possa continuar a sentil-a fóra da prisão.» E lord
-Stanley em um discurso parlamentar, exclama: _A regeneração do homem
-nunca póde ser um processo mecanico_.
-
-[71] Video meliora proboque, deteriora sequor--_Ovidio_.
-
-[72] _Les irresponsables devant la justice_, pag. 212, A. Riant.
-
-[73] Dr. Saffray, _Histoire de l’homme_, pag. 134.
-
-[74] E. Ferri, citado por E. Tarde no seu artigo sobre o typo criminal.
-_Rev. philos._, junho, 1885.
-
-[75] _A arte a poesia na creança_, por Bernardo Perez.
-
-[76] Trecho já publicado d’uma lição, feita no Curso Superior de
-Lettras, quando tivemos a honra de reger a cadeira de Litteraturas
-classicas (1887).
-
-[77] _Revista de Educação e Ensino_, n.ᵒ6 e 8, IV anno, por J. B.
-Ferreira.
-
-[78] _Revista de Educação e Ensino_, 4.ᵒ anno, n.ᵒ 6.
-
-
-
-
-VII
-
- Os ensinamentos e o crime. A idéa da responsabilidade criminal na
- historia. O alcool perante a hygiene physica e moral. O suicidio.
- Observações psychologicas em condemnados á morte. A estatistica
- criminal portugueza. A educação como elemento psychogenico e
- correccional.
-
- Patenteei com veneração o facto civilisador das escolas nas cadeias
- e ainda mais do que o facto, saudei sobretudo o grande principio que
- representa o germen da moralisação dos condemnados.
-
- D. ANTONIO DA COSTA.
-
-
-Das medidas prophylaticas contra o crime, com o fito na innocuidade
-dos delinquentes, aquella de que ha mais a esperar, é sem duvida da
-educação. Se as inclinações para o crime são devidas á idiosyncrasia
-ou a lesões somaticas, podem em parte combater-se pela educação
-physica. Diz o proverbio que a boa mão de rocim faz cavallo, e a ruim
-de cavallo faz rocim. Não póde negar-se que a educação é o primeiro
-factor na acquisição dos habitos e que são estas influencias d’origem,
-que formam quasi por completo o nosso caracter. É nos exemplos dos
-paes, nas acções beneficas do lar que bebemos o que ha de mais eficaz
-em o governo da nossa alma. Ao contrario, o que damnifica mais o
-coração é a influencia da familia, quando é deleteria e má. Diz
-um adagio portuguez que passarinho que n’agua se cria sempre por
-ella pia. É esta agua psychogenica que sobretudo faz do individuo
-um innocuo, um cidadão prestabilissimo ou um perverso. A perversão
-póde ser muitas vezes hereditaria, mas é mister desviar quanto
-possivel essa hypothese, acceita-la discricionariamente e sempre,
-equivale a submetter-nos passivos ao seu imperio bruto e fatal. E
-hoje está-se abusando desmesuradamente, na propria sciencia, da
-explicação hereditaria, muitos escriptores sempre que não podem
-explicar na psychologia corrente certos factos abrigam-se sob a egide
-da hypothese--hereditariedade. Mas tal expediente é uma deserção do
-criterio scientifico. É obvio que ha inclinações herdadas, mas a sua
-origem está na educação e nas influencias mesologicas. Enriquecer
-pois pela educação o espirito é ampliar o campo dos motivos elevados
-sobre que vem a actuar a vontade. Menandro disse «que dar educação
-á mulher é augmentar o veneno d’uma vibora» paraphraseando podem
-dizer os penologos determinantes «dar instrucção ao delinquente é
-augmentar o veneno d’uma vibora.» E de feito, admittida a existencia
-do perverso congenito e incorregivel, a instrucção era um instrumento
-que vinha augmentar a peçonha da sua deprimente acção social. Porém o
-que não póde acceitar-se é que todos os criminosos sejam congenitos e
-incorrigiveis.
-
-A estatistica criminal com referencia á instrucção primaria tem
-illudido muita gente, porque tem visto no numero dos criminosos
-augmentar a lista dos que sabem ler e escrever, ora esse augmento é
-natural consequencia de ter crescido o numero de escolas. Se todos os
-cidadãos do paiz soubessem ler e escrever como era muito de desejar,
-nenhum criminoso era analphabeto. O que prova tudo isto, é que a
-instrucção primaria tem sido felizmente cada vez mais diffundida.
-
-A etiologia do crime tem de procurar-se nas condições biologicas e
-nas circumstancias sociaes. A escola anthropologica é incompleta e
-exagerada, incompleta porque descura os factores sociaes e desdenha o
-estudo do direito criminal jurisprudente; exagerada, porque pretende
-explicar, fóra dos justos limites scientificos, tudo pela biologia e
-pela pathologia.
-
-O attentado contra a propriedade é ordinariamente um producto de
-factores sociaes, o attentado contra a honra e contra a vida é muitas
-vezes determinado por factores pathologicos, porém o crime é sobretudo
-um phenomeno social. O que a escola anthropologica juridica chama
-factores pathologicos do crime, como o alcoolismo, a degenerescencia
-physica, não são mais do que effeitos das deprimentas condições sociaes
-do delinquente. Se ministraram ao ser humano desde a vida intra-uterina
-todas as condições hygienicas favoraveis á creança, todos os fecundos
-elementos d’uma salutar educação physica, d’uma boa educação
-intellectual e d’uma solida educação moral, ver-se-ha ao fim de poucas
-gerações com a sensivel rehabilitação de homem animal e com a elevação
-do homem moral, a deminuição relativa do crime.
-
-Não ha anthropologicamente o chamado _typo criminoso_, os caracteres
-anatomicos encontrados são communs a muito homem probo e honesto. A
-_tatuagem_, por exemplo, encontra-se tanto nos marinheiros, soldados,
-pastores como nos criminosos, é um ornato esthetico que nasce do ocio e
-no occidente europeu é tradicional esse costume na raça celtica. Hoje
-a tatuagem nos criminosos tende até a desapparecer, porque é para os
-tribunaes um signal de reconhecimento de identidade e sabem já quanto
-os prejudica na pratica do seu triste mister.
-
-É difficil corrigir o criminoso habitual e reincidente, desde que
-inveterado na perversidade, mas era provavel com boa direcção do
-sentimento moral desvia-lo d’essa senda, antes de a ter encetado. E
-esta emenda era tão possivel no criminoso habitual, como no criminoso
-d’accidente ou de occasião, porque ambos contrahiram livremente
-esse habito, ou aproveitaram a occasião. O enfermo epileptico ou
-dipsomaniaco, apezar d’uma rigorosa educação physica ou acção
-therapeutica é difficil de rehabilitar. Os actos violentos d’elle não
-são verdadeiros crimes, porque rouba ou mata, seja a quem fôr quando o
-seu accesso o ataca, em quanto o criminoso rouba ou mata, quando tem
-occasião opportuna. O primeiro é um doente que urge sequestrar até á
-cura, o segundo é um delinquente que é mister punir.
-
-A má educação exerce sobre o delinquente uma influencia mais corruptora
-do que o proprio meio social. Mas o criminoso não é inteiramente
-victima da fatalidade da educação nem da hereditariedade, elle tem
-o poder de reagir contra os impulsos internos da hereditariedade
-ou externos da educação, e qualquer mestre escola nos dá centenas
-d’exemplos que provam que o homem é por natureza livre.
-
-Nunca a educação deixará de influir sobre o caracter, porque o seu
-fim é a acquisição dos habitos e segundo Rosmini Serbati, «habito
-considerado em relação á essencia da alma é o que accrescenta alguma
-cousa de bom ou de mau ao seu estado natural e por conseguinte põe a
-alma n’um estado melhor ou peior.»[79]
-
-Admittida a _cerebração inconsciente_ ou melhor o automatismo
-psychologico, gerado pelo habito originario ou adquirido o homem
-póde commetter um crime, porque o principio da justiça que podia
-salva-lo póde ter permanecido como sepultado na noite silenciosa da
-vida directa. As theorias biologicas e hypnoticas explicam a seu modo
-este phenomeno, mas o principio scientifico que o governa ainda é
-desconhecido.
-
-O direito criminal, como funcção social importantissima, que é, não
-póde ser modificado em nome de hypotheses tam vagas.
-
-O sentimento da responsabilidade é tão fundo na consciencia humana
-que a ignorancia e a ingenuidade d’outras épocas tem levado o homem a
-estender de modo extravagante o sentimento da justiça e do castigo a
-actos de animaes.
-
-Nos seculos XIV e XV ainda o espirito humano teve uma curiosissima
-jurisprudencia criminal. Foi a que se referiu aos processos instaurados
-aos animaes. Se o animal podia ser preso e levado ao tribunal, o
-processo corria, em geral, no foro civil. Se os animaes não podiam ser
-capturados, então o tribunal ecclesiastico tomava conta da questão. No
-eleitorado de Moguncia houve um d’estes processos instaurado contra
-uma alluvião de moscas, que infestaram aquella localidade, o qual se
-tornou muito notavel por um despacho do juiz, que é do theor seguinte:
-...Vista a pequenez do seu corpo, e attendendo principalmente á sua
-tenra idade, entendemos por bem nomear ás rés curador e defensor para
-os fins convenientes. Este magistrado _ex-officio_ defendeu com calor
-as suas clientes, não negou os estragos, demonstrou a criminalidade
-devida a causa de força maior, e pediu em conclusão um local para
-onde as moscas podessem ir viver tranquilamente sem causar prejuizo a
-ninguem. Instauraram-se processos similhantes a pardaes, por habitarem
-os telhados d’uma egreja e perturbarem os fieis nas suas orações, ás
-sanguesugas por corromperem as aguas do lago de Genebra, ás lagartas,
-aos gafanhotos e ás lesmas, por fazerem mal ás plantas. Na Suissa até
-os gallos eram sentenciados no tribunal e queimados em publico. Havia
-então a crença popular de que os gallos punham ovos, e que d’estes ovos
-malditos saiam serpentes e basiliscos. Os cavallos, burros, touros e
-porcos, accusados de homicidio voluntario, eram sentenciados á morte
-ou a soffrer diversas mutilações. Muitas vezes vestiam-lhes um facto
-de homem, para executarem com todo o rigor a pena de Talião. Os bodes,
-cabras e gatos que eram accusados de magia, eram condemnados, em geral,
-a morrer na fogueira com os seus donos, e, passaram negra vida n’essas
-épochas medievaes em que dominava a ignorancia e a feitiçaria.
-
-Esta extravagante jurisprudencia nasceu d’uma inducção
-illegitima--estender o que existe em nós a todo o ser vivo. O
-espirito tende a confundir a ordem da genese das suas idéas ácerca
-dos objectos extranhos com a ordem da genese dos proprios objectos.
-Ha uma disposição innata em dar realidade objectiva ao que é
-puramente subjectivo. Principalmente no espirito dos homens incultos,
-a familiaridade é geralmente confundida com a simplicidade, e na
-explicação de qualquer phenomeno seguem o caminho traçado pela evolução
-das suas idéas, imaginando d’este modo haverem explicado o facto que
-os preoccupava. Effectivamente, perante o seu espirito individual,
-o problema está resolvido, mas não o está perante a verdade logica,
-que carece do ser impessoal para se tornar scientifica. Illuminado o
-espirito pelo criterio da evidencia, todos os homens se sobmettem á
-verdade scientifica, porque entre a intelligencia de um sabio e a de um
-ignorante não ha differença de natureza é apenas uma differença de grau.
-
-Ninguem hoje ignora que o alcoolismo é uma das causas dominantes da
-pobreza moral e physiologica das classes populares.
-
-O doutor Delannoy, n’uma conferencia de physiologia e pathologia em
-que tratou do alcool, demonstrou que as bebidas espirituosas não são
-nem tonicas nem alimenticias. Constituem, apenas, excitantes que podem
-ser uteis, em certos casos, e dos quaes se deve usar com moderação.
-A excitação procurada produz-se á custa do estado geral; impede a
-nutrição, diminuindo o acido carbonio exhalado e a quantidade de
-urina emittida. Ora, está demonstrado que estes productos marcam a
-intensidade da nutrição organica. A sua diminuição, sob a influencia
-do alcool, enfraquece o organismo e traduz-se, entre os bebedores, por
-um estado de enfraquecimento vital que não tem analogo sob o ponto
-de vista physico, senão no que se encontra nos individuos affectados
-de tysica pulmonar. Por isso os bebedos offerecem pouca resistencia
-aos agentes morbificos e dão um largo contingente para as doenças
-epidemicas. O conferente demonstrou que o uso immoderado das bebidas
-espirituosas produz um grande numero de doenças, a maior parte das
-quaes são mortaes. Entre outras apparecem: a ulcera e o cancro do
-estomago, a gastrite chronica, a cirrhose, a hydropesia, a apoplexia, a
-albuminuria o _delirium tremens_, a demencia paralytica, etc. O doutor
-Delonnoy affirma que o abuso do alcool constitue uma das causas mais
-frequentes da miseria, da loucura e do crime.
-
-A embriaguez não é uma condição excepcional da especie humana, é
-commum a outros animaes, que igualmente são modificados no seu systema
-nervoso pela ingestão de substancias toxicas. Na dynamica do crime e
-na degenerescencia physica o alcoolismo é uma causa determinante e
-predisponente. É mister não o confundir nunca com a dipsomania.
-
-Ha dez annos que vive na Penitenciaria de Buenos Ayres um recluso
-de nome Ulisses Paganno. Este infeliz conta actualmente 36 annos de
-edade e entrou no carcere pouco antes de completar 26 annos, isto é,
-na plenitude da vida e possuindo medianas condições intellectuaes
-e aptidões artisticas, nos periodos tranquillos intermediarios da
-sua existencia procellosa. Levaram-o ao presidio cinco homicidios,
-praticados successivamente em momentos de embriaguez. Pouco tempo
-depois de se encontrar na Penitenciaria, tendo já dado signaes
-inequivocos de bons sentimentos e de costumes irreprehensiveis, um dia,
-e sem que pessoa alguma suspeitasse dos meios de que poude valer-se,
-visto que não tinha dinheiro, poude adquirir uma garrafa de aguardente.
-
-Quando ao fim da tarde Paganno sahiu da cella para ir trabalhar com os
-outros presos, a primeira coisa que fez foi approximar-se de um d’estes
-e cravar-lhe no coração um punhal que levava escondido. Dava-se porém,
-a circumstancia de que Paganno não conhecia a victima, comprovando-se
-tambem que ao commetter o crime se achava completamente embriagado.
-Pouco mezes mais tarde, tendo-se-lhe proporcionado tambem outro licor,
-na visita da manhã, ao ir um empregado inspeccionar a sua cella,
-Paganno, aproveitando um descuido, precipitou-se sobre elle, ferindo-o
-gravemente nas costas. Esta segunda punhalada ia tambem dirigida ao
-coração, mas por fortuna resvalou em uma das falsas costellas. Desde
-então empregam-se todas as precauções e é rara a occasião em que se lhe
-permitte sahir da cella. É necessario insistir em uma circumstancia:
-Paganno, não embriagado é um dos reclusos mais trataveis, inoffensivos
-e affectuosos que existem na Penitenciaria. Em 10 annos que conta
-de prisão ainda não perdeu os seus habitos de trabalhador, e vae
-para quatro annos entretem-se a domesticar e ensinar ratos. Ulisses
-é italiano de nacionalidade, porém falla correctamente o hespanhol.
-O seu estado de saude physica é relativamente satisfactorio e não
-apresenta nenhum symptoma accentuado de doença mental. A physionomia,
-porém, é repulsiva; tem grande mobilidade nos olhos, cerra os dentes
-com frequencia e o seu rosto toma em certas occasiões uma côr sombria
-e fatidica, que não inspira, na verdade, confiança alguma. Todos os
-que o observam ficam na crença de que Paganno é um desventurado louco
-que padece a monomania que podia chamar-se «homicida.» A sua pena
-será indifinida, dada a horrivel historia dos seus crimes e a feroz
-propensão para dar punhaladas no seu semelhante, emquanto experimenta
-os effeitos do alcool. Paganno está comdemnado a não gosar jámais
-liberdade, o que não lhe dá o minimo cuidado, pois, segundo affirmam
-os periodicos da localidade, é dos poucos reclusos que tem logrado
-identificar-se com a triste condição da soledade e retiro perpetuos.
-
-No dia 29 de julho a 1 de agosto realisou-se em Paris o congresso
-internacional para o estudo das questões relativas ao alcoolismo. As
-questões propostas pela commissão respectiva foram as seguintes: 1.ᵒ
-Consumo de bebidas e de alcooes. Estatistica comparada das vendas
-de bebidas nos differentes paizes. Relações entre o augmento do
-consumo do alcool e o desenvolvimento da criminalidade e da alienação
-mental. Meios de restringir o consumo de bebidas e de combater a sua
-influencia funesta. Quaes os resultados que teem produzido os dois
-systemas em vigor nos differentes paizes: o da liberdade concedida
-sob certas condições á venda de bebidas e o da auctorização previa?
-2.ᵒ Influencia nefasta do abuso das bebidas alcoolicas. Considerações
-medico-legaes sobre os delictos e crimes commettidos debaixo da
-influencia do alcoolismo. Meios legaes de prevenir as desgraças
-causadas pelo alcoolismo, como assassinios, incendios, suicidios, etc.
-3.ᵒ Bebidas sãs que se devem dar ás classes populares. Estabelecimento,
-pelas sociedades de temperança, de bufetes ou cantinas na proximidade
-das grandes officinas onde se reunam temporariamente muitos operarios.
-Meios de reconhecer rapidamente as falsificações das bebidas alcoolicas.
-
-Os moralistas attribuem principalmente á falta de crenças o suicidio
-e o crime, mas a essa causa é mister accrescentar a falta de recursos
-economicos. Para os que teem fome e miseria são insufficientes as
-consolações espirituaes, é mister que a civilisação ministre remedios
-materiaes. Alem dos factores pathologico-mentaes, a miseria, a ausencia
-do sentimento religioso, e as leituras d’uma litteratura dissolvente
-são principalmente a causa do crime e do suicidio. Estes dois productos
-da pathologia social são em maior numero nas cidades que nos campos,
-nos homens do que nas mulheres. Nos habitantes dos campos e nas
-mulheres, as crenças religiosas tem-se conservado mais vivas, emquanto
-que o operario da cidade deixou extinguir essa luz d’esperança e de
-consolo, sem que ponha outro sentimento equivalente na sua alma.
-
-Não se torna notavel pelos nomes esse longo obituario, mas torna-se
-horroroso pelos numeros. Na estatistica dos suicidios na França,
-durante o anno de 1887, encontra-se um numero horrivel--8:202. D’estes
-emigrados voluntarios da vida 6:434 eram homens e 1:768 mulheres.
-
-Entre os 6:434 homens, suicidados em 1887, conta-se 2:381 celibatarios,
-2:910 casados e 928 viuvos, e entre as 1:768 mulheres contam-se 513
-celibatarias, 796 casadas e 427 viuvas. A classe dos agricultores
-contribuiu n’esse mesmo anno com 2:020 homens e 594 mulheres para o
-suicidio. Sendo essa a classe mais numerosa da França, é esse numero
-proporcionalmente muito menor do que 1:772 homens e 504 mulheres que
-deu a classe operaria. Entre os proprietarios houve 591 suicidios de
-homens e 140 de mulheres, e nas profissões liberaes registaram se 340
-suicidios, sendo 197 de homens e 143 de mulheres. De todas as classes,
-a que proporcionalmente concorreu menos para o suicidio foi a dos
-criados de servir, que são realmente os menos accessiveis ás causas que
-deixamos apontadas.
-
-As utopias sociaes e a idealisação exaggerada de sentimentos
-phantasticos dando ao espirito como alimento planos irrealizaveis e ao
-coração aspirações chimericas são motivos frequentes do suicidio.
-
-Em primeiro logar é necessario expor as proporções em que se produzem
-em cada nacionalidade, formando o typo de um milhão, e consignando o
-numero de suicidios que lhe correspondem.
-
- Casos de suicidio
- Nações Habitantes por milhão
-
- Russia 93:000:000 31
- Austria-Hungria 40:500:000 174
- França 38:500:000 150
- Grã-Bretanha 37:200:000 70
- Italia 30:200:000 37
- Hespanha 16:900:000 18
- Suissa 7:900:000 220
- Belgica 5:850:000 79
- Romania 5:400:000 52
- Turquia 5:900:000 40
- Suecia 4:700:000 99
- Hollanda 4:400:000 45
- Portugal 4:410:000 22
- Dinamarca 2:190:000 290
- Servia 2:000:000 66
- Noruega 1:990:000 194
- Prussia 20:000:000 181
- Baviera 5:300:000 127
- Saxonia 3:000:000 373
- Wurtemberg 2:000:000 104
- Hannover 2:500.000 300
-
-A execução capital, além de ser uma pena irreparavel não influe
-beneficamente na moralidade social.
-
-Um jornal francez publicou a seguinte relação das execuções em França
-desde 1813: 22 de junho de 1813: na praça da Gréve, Perchette e sua
-mulher, crime de assassinio; 27 de julho de 1816, na praça de Gréve,
-Pleignier, Tolleron e Carbonneau; 23 de agosto de 1822: na praça
-da Gréve, Raoulx, Pommier, Goublin e Bories, os quatro sargentos
-da Rochella; 24 de janeiro de 1824, na praça da Gréve, Lecouffe e
-sua mãe--crimes de assassinio e roubo; 20 de abril de 1824: na praça
-de Gréve, Renaud, Delaporte e Ochard, os ultimos salteadores da
-floresta de Bondy; 26 de maio de 1826: na praça de Gréve, Ratta e
-Malagutti--crime de homicidio; 27 de julho de 1830: na praça de Greve,
-Bardon, Guérin e Chandellet, crimes do assassinio e roubo; 9 de janeiro
-de 1836: na barreira de R. Jacques, Fleschi, Pépin e Morin, n’esta
-epocha as execuções passaram a ser na praça da Roquette; 24 de março
-1843: na praça de Roquette, Norbert, e Deprá, crimes de assassinio
-de um operario e roubo de 32 francos! Pormenor curioso: a execução
-foi no dia da _Serração da velha_ e a guilhotina esteve durante ella
-cercada de mascaras; 13 de março de 1858: na praça da Roquette, Orsini
-e Pietri, anarchistas; 13 de março de 1874: na praça da Roquette,
-Moreau e Bondas, crime de assassinio; 8 de setembro de 1878: na praça
-da Roquette, Barré e Lebiez, assassinio de uma leiteira; 10 de agosto
-de 1885: na praça da Roquette, Gaspard, o assassino do padre Delannay,
-e Marchandon, o amante de Joanna Blin, e assassino da sr.ᵃ Carnet; 3
-de outubro de 1886: na praça do Roquette, as execuções de Sallier e
-Allorto.
-
-Esta estatistica é incompletisissima, não menciona muitos
-guilhotinados, entre outros, os celebres Pranzini e Prado.
-
-Damos em seguida um extracto do relatorio que o abbade Faure, capellão
-da Grande-Roquete, dirigiu ultimamente ao ministro francez, e onde
-relata as observações que tem feito nos condemnados á morte. Ha seis
-annos que o abbade Faure exerce o referido cargo, e tem assistido
-a treze condemnados á morte, comprehendendo os dois assassinos de
-Auteil, executados ainda ultimamente.--Desde que principiei a exercer
-as minhas funcções como capellão do deposito de condemnados, tenho
-estado em contacto com um grande numero de condemnados á morte, que
-visitei durante um lapso do tempo variando entre quarenta e oitenta
-e sete dias. Todos, menos um, que pertencia á religião protestante,
-reclamaram os soccorros da religião com signaes mais ou menos
-assignalados de convicção ou de indifferença, conforme a educação
-que haviam recebido. Posso, pois, apresentar-vos os resultados das
-minhas observações sobre esta cathegoria de criminosos. O condemnado
-á morte, desde a sua entrada na cellula é preso de uma prostração
-profunda e que não desapparece senão depois de um espaço de tempo
-assaz prolongado. Todavia essa energia revela-se pouco a pouco, e a
-esperança de uma commutação de pena dissipa o terrivel effeito de
-sentença condemnatoria. O dever do capellão é alimentar esta esperança,
-fazer acreditar na possibilidade da annulação de uma sentença de
-morte, na clemencia do chefe do Estado. O infeliz aferra-se a todas
-essas esperanças de salvação, atem-se antecipadamente a este beneficio
-e compraz-se de boa vontade em esperar que a sua vida seja salva,
-mesmo depois dos delictos mais monstruosos. É facil então fazer-lhe
-entrever a sorte que o espera depois de uma commutação de pena. A
-grilheta perpetua perde todos os seus horrores para aquelle cuja
-cabeça está ameaçada, e é todo offegante que o miseravel, á medida que
-o termo fatal se approxima, interroga aquelles que o visitam sobre a
-esperança que elle póde ter. Os dias são penosos apesar das distracções
-que os guardas se esforçam em proporcionar aos infelizes. Os jogos,
-as leituras, o recreio, as visitas alteram um pouco a monotonia da
-cellula e algumas vezes parece que o condemnado se illude ácerca da
-sua terrivel situação. Mas a noite!... Quantas vezes eu tenho sido o
-confidente das torturas moraes que soffre o desgraçado! Se o somno
-chega por fim a fazer-lhe sentir a sua benefica influencia, quanto
-esse repouso é agitado, febril, penoso. Alguns confessaram me que
-prolongavam as suas vigilias muito pela noite adiante, esperando d’este
-modo não accordarem senão bastante tarde no dia seguinte. Vã esperança!
-O despertar chegava sempre á hora em que é dado o terrivel signal.
-Em onze condemnados a cujos ultimos momentos assisti, tres sómente
-estavam adormecidos quando se lhes foi dar a terrivel nova. Um unico
-condemnado á morte dos que eu visitei recusou assignar o pedido de
-indulto, e ainda sou levado a crer que elle conhecia esta formalidade
-inutil para dictar o procedimento do chefe do Estado. Para apreciar
-bem o effeito que produz a pena de morte sobre os grandes criminosos,
-basta comparar a attitude do condemnado na vespera e no dia seguinte
-ao da sua commutação. Houve tal, que eu vi durante os quarenta dias da
-sua reclusão na cella da Roquete constantemente doente, arquejando com
-febre, sem appetite, sem somno, transfigurar-se no dia em que lhe foi
-annunciada a commutação. Fallava da sua viagem a Numéa como de uma
-viagem de prazer, fazia projectos, referia-se ao seu bom procedimento
-futuro em proveito de uma graça que elle se esforçaria por merecer.
-Tive muitas vezes occasião de verificar o mesmo phenomeno n’aquelles
-que escapavam á pena capital, e creio estar no direito de concluir, que
-é a unica pena que inspira um verdadeiro terror. Quanto áquelles que
-a soffrem, a sua vista sómente basta a um espirito não prevenido para
-lhes fazer conhecer os sentimentos e o terror. Parece-me impossivel
-achar um espectaculo mais commovedor que o do infeliz, até o mais
-resignado, o mais christãmente preparado, durante o tempo tão curto
-e ao mesmo tempo tão espantosamente longo de que se precisa para os
-aprestos do supplicio. Eu não hesito em crêr que qualquer que seja
-a pena que se possa substituir á pena de morte, será impotente para
-inspirar um terror mais legitimo e mais horrivel.
-
-Ha poucos annos ainda, não havia entre nós nenhum trabalho systematico
-e completo sobre este assumpto, tão importante como elemento de
-investigação scientifica e de proveitosa vantagem social. Não começámos
-cedo, mas ainda vamos a tempo de avaliar a vitalidade d’uma nação que
-alguns julgam, senão moribunda, pelo menos profundamente enferma.
-É a estatistica a base para poder formular leis dynamicas d’uma
-sociedade, nas quaes apoiado o homem de Estado e o homem de sciencia
-podem dar solução aos complexos problemas economicos e politicos. Na
-multiplicidade dos phenomenos sociologicos reveladores das differentes
-fórmas da actividade humana póde estudar-se a vida psychologica,
-objectivamente, sob todos os seus aspectos. A demographia póde fornecer
-ao psychologo dados preciosos para estudar a mentalidade humana nas
-cathegorias sociaes da moral, do direito, da religião, da sciencia, da
-arte e da industria. A estatistica é um ramo de actividade scientifica
-relativamente moderno, remonta ao seculo XVIII, foi Achenwall,
-professor de direito publico na universidade de Gottinga quem lhe
-deu este nome. Desde esse momento este ramo de saber tem caminhado
-pasmosamente e o registo dos seus phenomenos sociaes, expressos
-em numeros, tem sido o material que fornece ao sociologo os dados
-das suas inducções scientificas. A estatistica, como expressão dos
-numeros fornecidos pelos cadastros dos systemas tributarios e pelos
-recenseamentos é muito antiga, remonta á historia da antiguidade
-oriental, encontra-se sobretudo entre os assyrios, os judeus, os
-persas, mas com o caracter scientifico expresso pela demographia
-moderna no intuito de penetrar na vida de um povo, é de data recente.
-Os seus resultados são devidos especialmente aos fatigantes, pacientes
-e aridos trabalhos de Quetelet na Belgica e do dr. Bertillon em França.
-A estatistica de numeros é um elemento precioso e essencial para sobre
-elle architectar as grandes generalisações sociologicas, mas sem tirar
-das premissas nascidas d’aquelle estudo estas consequencias, aquelle
-trabalho tem relativamente pouca utilidade. Para organisar devidamente
-estes serviços, ha em Portugal apenas duas repartições regularmente
-constituidas--uma no ministerio da justiça e negocios ecclesiasticos,
-direcção geral do registo civil e estatistica, outra é a repartição
-respectiva do ministerio de obras publicas.
-
-Outro funesto resultado do nosso deploravel atraso em publicações de
-estatistica, são os deficientissimos documentos que a respeito da
-estatistica de Portugal, se encontram nas estantes dos demographos
-estrangeiros e nas repartições publicas correlativas, o que impede que
-muitos productos da nossa actividade social, não tenham podido entrar
-no estudo comparado da demographia das principaes nações da Europa e da
-America como mais um elemento de comprovação sociologica.
-
-«Todos sabem como elemento de comprovação sociologica o enorme
-interesse que hoje se liga á questão palpitante da penalidade. Abolição
-da pena de morte, abolição de todas as penas corporaes e irreparaveis,
-novos systemas de detenção, moderação nos castigos, etc., etc., são
-problemas a um tempo sociologicos e humanitarios que trazem agitados
-e commovidos a grande somma dos pensadores que se dedicam com amor ao
-bem estar dos seus concidadãos e a alliviar os soffrimentos dos seus
-semelhantes.»[80]
-
-A estatistica, diz o illustre Alphonse de Candolle, não é uma sciencia,
-é um methodo. O que se faz mister é fazer bom uso d’ella e até ao
-presente tem sido algumas vezes victima de má hermneutica.
-
-«Uma observação de natureza a dissipar muitas illusões--escreve
-o distincto publicista sr. Oliveira Martins--é o movimento da
-criminalidade comparado com o grau de instrucção e cultura das
-sociedades: os homicidios diminuem com a civilisação, os roubos
-augmentam. Na especie do assassinato a Italia tem o primeiro logar
-(8,12 homicidio por 100 mil habitantes), a Hespanha o segundo,
-depois a Hungria, depois a Austria, depois Portugal, e em seguida,
-successivamente, a Belgica, a França, a Allemanha e por fim a
-Inglaterra (0,69). Mas a Allemanha, que tem o penultimo logar no
-assassino, occupa o primeiro no roubo: e a Inglaterra que é a ultima
-na primeira série vem logo apoz na segunda. A illação por muitas vezes
-tirada d’estas observações é que, se a instrucção amacia os costumes,
-nem por isso corrige a perversidade; ou por outra, que por si só é
-insufficiente para formar esse estado de equilibrio inacessivel ou
-refratario ás tentações do crime. Os crimes dos barbaros, o talião e
-a vendetta ou _revendeyta_ dos nossos foraes, proveem de uma energia
-de paixões conciliavel com a nobreza de instinctos que se agitam na
-atmosphera crepuscular de cerebros infantis. As creanças são crueis,
-mas não são perversas, e como creanças são os barbaros--meigos,
-ingenuos, espontaneos, mas terriveis. A sua alma é como a onda fluida
-e mobil que passa n’um instante da serenidade limpida de um espelho á
-convulsão espumante de uma tempestade.»
-
-Os dados fornecidos pela estatistica não fornecem argumentos contra a
-liberdade individual: «Os numeros exprimem simplesmente factos por meio
-dos quaes se póde apreciar uma probabilidade para o futuro, e o livre
-arbitrio de cada individuo é totalmente independente d’estas cifras.
-A demonstração d’isto é facil. Basta raciocinar, sem commetter erro
-sobre os casos particulares... A vontade do homem é uma causa de acção.
-Os numeros ao contrario e as medias são effeitos. É destruida a ordem
-logica se se suppozer que um effeito possa influir sobre uma causa.
-Direi pois de bom grado com Quetelet que o livre arbitrio desempenha
-nos phenomenos sociaes o papel d’uma causa, mas accrescentarei: os
-seus effeitos são sensiveis, pode-se muitas vezes contar e servir-se
-do seu numero para apreciar ou a volta de effeitos semelhantes ou a
-intensidade variavel da causa.»[81]
-
-Só com a theoria da regeneração moral dos delinquentes se tem
-generalisado e diversificado o regimen penitenciario. Para a escola
-fatalista do criminoso nato, não póde haver regeneração, porque não
-existe o sentimento da liberdade individual. Desde que não existe a
-probabilidade da emenda moral do criminoso, o systema correccionalista
-é uma burla ou uma chimera e como consequencia não mais educação moral
-nem profissional do condemnado. Felizmente nenhum estado ensaiou
-a execução d’estas theorias que são as consequencias da escola
-anthropologica italiana.
-
-As escolas penaes que não teem por base do direito de punir o
-sentimento da justiça, fazem responsaveis dos crimes, diversos
-factores sociaes ou pathologicos exceptuando sempre o delinquente que
-o commetteu. É verdadeiramente extraordinario. O delinquente, não o
-louco, é a unica causa do crime, o meio social póde fornecer-lhe apenas
-as circumstancias.
-
-Parece que o crime caminha com os progressos da instrucção primaria:
-«mas este facto é uma consequencia necessaria da diffusão geral
-da instrucção em França, se ella fosse diffundida como era de
-desejar, todos os francezes saberiam, pelo menos, ler e escrever
-e, por conseguinte todos os criminosos francezes seriam contados
-como lettrados. Quer o numero total dos criminosos tenha diminuido
-ou augmentado, a estatistica não accusaria todavia um augmento de
-lettrados muito maior. Haveria 100 sobre100, emquanto que agora ha
-somente 69, e havia 39 no fim da Restauração. A mudança nas relações
-conduz a uma conclusão certa: que a instrucção tem feito progressos.
-É as mais das vezes nas baixas camadas da sociedade que se recruta o
-triste contingente da criminalidade. Se a instrucção primaria estivesse
-suficientemente derramada, teria penetrado até n’estas cavernas, e
-todos os criminosos saberiam, como o resto da nação, pelo menos ler
-e escrever. Em consequencia d’isto, a estatistica judiciaria, é uma
-maneira de lançar a sonda n’estas camadas inferiores e de ver quaes são
-os progressos da instrucção primaria n’estas mesmas camadas onde só
-difficilmente chega a sondagem.»[82]
-
-O criminoso é imprevidente, é leviano e é preguiçoso. A diffusão do
-ensino e do amor ao trabalho, aconselhado na familia e ministrado na
-escola faz nascer no espirito o desejo d’uma occupação honrosa. Os
-ladrões francezes, como diz Lombroso, chamam-se no calão _pègres_
-(preguiçosos). O vadio é hoje aos olhos da lei em todos os paizes
-uma variedade do typo criminoso, detesta o trabalho e é nas grandes
-cidades quem mais contribue para povoar as cadeias. Não teem
-constancia, nem persistencia, nem energia senão para o mal. Os ladrões,
-segundo Vidocque, não são aptos para nada do que reclama energia ou
-assiduidade. Não podem e não sabem fazer outra cousa senão roubar.[83]
-
-Entre nós o soldado reservista que volta para os campos depois de
-se ter habituado á ociosidade da caserna, é um grande elemento de
-desmoralisação, em geral vem vicioso e ocioso, e fica o frequentador
-assiduo da taberna da aldeia.
-
-Os elementos estatisticos de que vamos servirnos são extrahidos da
-_Estatistica da Administração da Justiça Criminal nos Tribunaes de
-Primeira Instancia do reino de Portugal e Ilhas Adjacentes_. Egualmente
-aproveitamos as notaveis considerações, verdadeira novidade scientifica
-entre nós, que sobre o assumpto faz o primoroso escriptor e esclarecido
-demographo o sr. Silveira da Motta, dignissimo conselheiro director
-geral do ministerio da justiça.
-
-Quanto ao grau de instrucção verificou-se que sabiam ler 4:099 réus
-(30,71 por %); que não sabiam ler 9.156 (68,60 por %), e não se
-obtiveram informações sufficientes ácerca de 90 (0,67 por %).
-
-A civilisação gradual e continua das sociedades pela educação popular é
-uma das momentosas questões que convem examinar sob todos os aspectos.
-Se ha, comtudo, algum por que deve com preferencia ser estudada, é
-de certo o concernente á acção benefica nos seus progressos, ha de
-diminuir a pouco e pouco a existencia de alguns crimes; cuido que
-outros se acommodarão a qualquer estado de cultura; isto, porém são
-apenas conjecturas, e não bastam ellas para que o desenvolvimento
-do ensino possa indisputavelmente ser considerado dynamometro da
-progressiva reducção da criminalidade. Tal é o motivo porque eu quizera
-ao menos poder agora confrontar o grau de illustração dos réus com a
-somma dos habitantes do reino e ilhas, que, bem ou mal, sabem ler.
-Infelizmente não está ainda publicado, em todas as suas divisões e
-subdivisões, o ultimo recenseamento da população, onde é de esperar
-appareçam os esclarecimentos essenciaes sobre esse importantissimo
-assumpto.
-
-N’estas circumstancias restrinjo-me a apresentar no seguinte epitome
-a proporção média que, conforme averiguei, existe n’outras nações com
-referencia ao grau de instrucção dos réus.
-
- -------------+---------------------------------------
- | Numero dos réus
- |
- | | | De que
- | Que | Que não | se ignorou
- | saibam ler |saibam ler | o grau
- | | | de instrucção
- +------------+-----------+--------------
- Allemanha | 95 por % | 5 por % | --
- França | 68 » | 32 » | --
- Inglaterra | 66 » | 33 » | 1 por %
- Belgica | 61 » | 37 » | 2 »
- Italia | 31 » | 69 » | --
- Hespanha | 27 » | 70 » | 3 »
- -------------+------------+-----------+--------------
-
-Com relação ás profissões podem incluir-se nas seguintes categorias:
-
- --------------------------------------+---------+--------------
- | | Proporção
- Profissão ou occupação | Numero | com
- |dos réus |o numero total
- | | dos réus
- --------------------------------------+---------+--------------
- Agricultor (_a_) |5:485 |41,10 por %
- Industrial (_b_) |4:569 |34,23 »
- Negociante (_c_) | 543 | 4,06 »
- Proprietario |1:323 | 9,91 »
- Empregado civil ou militar | 234 | 1,75 »
- Creado de servir | 514 | 3,85 »
- Qualquer outra profissão ou occupação | 277 | 2,07 »
- Nenhuma profissão | 220 | 1,64 »
- Ignora-se | 180 | 1,34 »
- --------------------------------------+---------+--------------
-
- (_a_) Abrange esta classe os cultivadores não proprietarios, os
- hortelãos, jardineiros, pastores, lenhadores, mineiros,
- valladores, creados de lavoura, jornaleiros, etc.
-
- (_b_) Comprehendem-se n’esta classe os directores e empregados de
- qualquer empreza, que não seja agricola ou restrictamente commercial
- e todos os operarios em artes fabris ou manufactureiras, quer
- trabalhem em officinas quer fóra d’ellas.
-
- (_c_) Incluem-se tambem n’esta classe os caixeiros ou empregados de
- commercio.
-
-Do resumo antecedente poder-se-iam inferir deducções valiosas, se
-tivessemos elementos bastantes para o comparar com a população
-dividida em identica escala de profissões e occupações. Na falta de
-taes elementos offerece pouco interesse o exame d’essa condição dos
-réus, e só no futuro poderá de algum modo servir para que se conheça
-a influencia das profissões, se não sobre o numero, ao menos sobre
-a natureza dos crimes. É isto o que já acontece nos paizes que se
-encontram na dianteira da civilisação. Ahi, por exemplo, longas series
-de estatisticas parece demonstrarem que o numero proporcional dos
-crimes contra as pessoas é notavelmente avultado nos individuos que
-se entregam aos trabalhos e habitos da vida rural, ao passo que nos
-negociantes, nos industriaes, nos creados de servir, predominam os
-crimes contra a propriedade.
-
-No seguinte quadro que exara os dados estatisticos correspondentes
-ao anno de 1879 procuramos comparar a criminalidade com o estado da
-instrucção elementar no reino e ilhas adjacentes.
-
- ---------------+------------------+-----+----+-----+----+-------+-----
- | Habitantes de | | | | | |
- | facto | | | | | |
- Districtos +--------+---------| | | | | |
- | Que | Que não | | | | | |
- | saibam | sabem | A | B | C | D | E | F
- | ler | ler | | | | | |
- | | | | | | | |
- ---------------+--------+---------+-----+----+-----+----+-------+-----
- Angra | 13.217 | 58.412 | 18|0,02| 19|0,02| 1 |0,001
- Aveiro | 38.864 | 218.185 | 210|0,08| 351|0,13| 3 |0,001
- Beja | 18.265 | 123.854 | 80|0,05| 255|0,17| 21 |0,014
- Braga | 60.438 | 259.026 | 250|0,07| 254|0,14| 19 |0,005
- Bragança | 24.930 | 143.721 | 183|0,10| 607|0,35| 4 |0,002
- Castello Branco| 19.167 | 154.816 | 82|0,04| 268|0,15| -- | --
- Coimbra | 36.403 | 255.634 | 179|0,06| 343|0,11| 7 |0,002
- Evora | 17.034 | 89.821 | 83|0,07| 276|0,25| 2 | --
- Faro | 28.544 | 170.598 | 77|0,03| 175|0,08| -- | --
- Funchal | 12.284 | 117.700 | 49|0,03| 167|0,12| -- | --
- Guarda | 31.541 | 196.953 | 206|0,09| 546|0,23| 4 |0,001
- Horta | 11.066 | 50.834 | 11|0,01| 39|0,06| -- | --
- Leiria | 21.471 | 171.511 | 60|0,03| 200|0,10| 18 |0,009
- Lisboa |146.093 | 351.966 |1.174|0,23|2.224|0,40| 95 |0,019
- Ponta Delgada | 22.176 | 104.095 | 44|0,03| 155|0,12| 1 | --
- Portalegre | 13.755 | 87.371 | 50|0,04| 193|0,19| -- | --
- Porto |110.414 | 351.467 | 290|0,06| 586|0,12| 3 | --
- Santarem | 30.371 | 190.510 | 117|0,05| 359|0,16| 11 |0,005
- Vianna | 40.418 | 160.972 | 156|0,07| 219|0,10| -- | --
- Villa Real | 48.508 | 176.120 | 271|0,12| 393|0,17| 2 | --
- Vizeu | 53.363 | 318.208 | 245|0,06| 641|0,17| 2 | --
- +--------+---------+-----+----+-----+----+-------+-----
- Total |798.925 |3.751.774|3.835|0,08|8.469|0,18| 193 |0,005
- ---------------+--------+---------+-----+----+-----+----+-------+-----
-
- A Numero dos réus que sabem ler
- B Proporção por 100 habitantes
- C Numero dos réus que não sabem ler
- D Proporção por 100 habitantes
- E Numero dos réus de que se ignorou a instrucção
- F Proporção por 100 habitantes
-
-Para que se possa com algum proveito comparar o estado da instrucção
-com o da criminalidade, deve abater-se da massa total da população
-a parcella respectiva aos menores até 10 annos, os quaes, na maxima
-parte, nem podem ter alcançado qualquer instrucção litteraria, nem
-ter commettido crimes. Reduzida d’este modo em numeros redondos a
-3:500:000 a somma dos habitantes do reino e ilhas, fica de O,10 a
-percentagem dos réus que sabem ler, e de O,24 a dos réus que não
-sabem ler. Não é porém ainda a esta luz que deve ser considerado o
-assumpto. A proporção só póde estabelecer-se logicamente, cotejando
-nas classes respectivas o numero dos réus que sabem ler com o dos
-habitantes que sabem ler, o numero dos réus que não sabem com o dos
-habitantes que não sabem ler. Posto assim o problema, a quota dos réus
-que sabem ler é de O,48 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos réus
-analphabetos é de O,31 por 100 habitantes analphabetos. Applicando
-o mesmo methodo aos crimes julgados em 1878, a quota dos réus que
-sabem ler é de O,51 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos réus
-analphabetos é de O,33 por 100 habitantes analphabetos. Com relação
-ao anno de 1880 ainda não ha informações completas, mas em vista dos
-documentos já examinados deve fundadamente presumir-se uma proporção
-quasi identica. Se não me illudo sobre a exacção do calculo, que
-conclusões se podem inferir? Contribuirá o derramamento da instrucção
-para o acrescimo da criminalidade? Será nocivo o simples e deficiente
-ensino primario? Constituirão os factos colligidos n’estes poucos
-annos uma situação anormal, em que não possam estribar-se quaesquer
-illações ou conjecturas? São questões do futuro, cuja decisiva solução
-está ainda longe. Á estatistica cumpre por emquanto agrupar e ordenar
-methodicamente os factos: só longas series de trabalho d’esta ordem
-descobrirão o valor d’esses factos e os corollarios que d’elles devam
-deduzir-se.
-
-Ahi fica a estatistica criminal portugueza no anno de 1879 e vamos em
-seguida beber na mesma fonte os dados estatisticos com respeito ao anno
-de 1880.
-
-Quanto ao grau de instrucção verificou-se que sabiam ler 3:882 réus
-(31,59 por c.), que não sabiam ler 8:239 (67,06 por c.), e não se
-obtiveram informações sufficientes ácerca de 164 (1,32 por c.).
-
-Conforme o systema que experimentei no precedente volume busco no
-quadro immediato comparar a criminalidade com o estado da instrucção
-elementar no reino e ilhas adjacentes.
-
- ------------------+------------------+-----+----+-----+----+-----
- | Habitantes de | | | | |
- | facto | | | | |
- Districtos | | | | | |
- | Que | Que não | A | B | C | D | E
- | saibam | sabem | | | | |
- | ler | ler | | | | |
- ------------------+--------+---------+-----+----+-----+----+-----
- Angra | 13.217| 58.412| 9|0,01| 73|0,10| 1
- Aveiro | 38.864| 218.185| 189|0,07| 312|0,12| 15
- Beja | 18.265| 123.854| 100|0,07| 289|0,26| 6
- Braga | 60.438| 259.026| 282|0,08| 394|0,12| 6
- Bragança | 24.930| 143.721| 150|0,08| 557|0,33| 2
- Castello Branco | 19.167| 154.816| 99|0,05| 369|0,21| --
- Coimbra | 36.403| 255.634| 188|0,06| 403|0,13| 4
- Evora | 17.034| 89.821| 81|0,07| 260|0,24| 2
- Faro | 28.544| 170.598| 87|0,04| 216|0,10| --
- Funchal | 12.284| 117.700| 46|0,03| 172|0,13| --
- Guarda | 31.541| 196.953| 247|0,10| 546|0,23| 3
- Horta | 11.066| 50.834| 17|0,02| 18|0,02| 6
- Leiria | 21.471| 171.511| 91|0,04| 212|0,10| 2
- Lisboa | 146.093| 351.966|1.119|0,22|1.799|0,36| 94
- Ponta Delgada | 22.176| 104.095| 52|0,04| 141|0,11| 1
- Portalegre | 13.755| 87.371| 57|0,04| 205|0,20| --
- Porto | 110.414| 351.467| 212|0,06| 523|0,11| 1
- Santarem | 30.371| 190.510| 149|0,06| 378|0,17| 3
- Vianna do Castello| 40.418| 160.972| 121|0,06| 170|0,08| 15
- Villa Real | 48.508| 176.120| 336|9,14| 539|0,23| --
- Vizeu | 53.363| 318.208| 260|0,06| 663|0,17| 3
- +--------+---------+-----+----+-----+----+-----
- | 798.925|3.751.774|3.882|0,08|8.239|0,18| 164
- ------------------+--------+---------+-----+----+-----+----+-----
-
- A Numero dos réos que sabem ler
- B Proporção por 100 habitantes
- C Réos que não sabem ler
- D Proporção por 100 habitantes
- E Réos de que se ignorou a instrucção
-
-Abatida da massa total da população a parcella respectiva aos menores
-até 10 annos, os quaes na maxima parte nem podem ter alcançado qualquer
-instrucção litteraria, nem haver commettido crimes, e reduzida d’este
-modo a 3.500:000 a somma dos habitantes do reino e ilhas, a quota dos
-réus que sabem ler é de O,48 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos
-réus analphabetos é de O,30 por 100 habitantes analphabetos. Sobre este
-importante assumpto dou como reproduzidas as considerações expostas no
-volume antecedente. Os factos colligidos com relação ao anno, a que o
-actual trabalho se refere, offerecem caracter identico ao dos annos
-anteriores. Estes factos, porém, têm tal alcance, e podem ser tão
-significativos que me pareceu util, a proposito dos crimes mais graves
-commettidos durante o anno de 1880, e durante o triennio de 1878 a
-1880, cotejar no epitome immediato o numero dos réus que sabem ler com
-o dos habitantes que sabem ler, e o numero dos réus analphabetos com o
-dos habitantes analphabetos.
-
- ------------+------+------+---------+-----------+---------+-----------
- | | | C | D
- | | +---------+-----------+---------+-----------
- Crimes | A | B | Em 1880 |No triennio| Em 1880 |No triennio
- ------------+------+------+---------+-----------+---------+----------
- Infanticidio| 26 | 23 | 0,24 por| 0,16 |0,83 por | 0,79 por
- | | | 100.000 |por 100.000| 100.000 | 100.000
- Homicidio | 155 | 175 | 5,89 » | 8,02 » | 3,84 » | 3,91 »
- voluntario| | | | | |
- Estupro | 51 | 44 | 2,88 » | 2,50 » | 1,01 » | 0,83 »
- Ferimentos |2.416 |2.401 |88,84 » |89,34 » |61,19 » |66,29 »
- Contrab.ᵒ | 62 | 54 | 1,37 » | 1,21 » | 1,84 » | 1,59 »
- Roubo | 311 | 308 | 9,89 » |10,35 » | 8,15 » | 8,07 »
- Furto |1.840 |1.868 |43,23 » |44,23 » |52,93 » |54,23 »
- Fogo posto | 57 | 52 | 1,12 » | 1,25 » | 1,17 » | 1,32 »
- ------------+------+------+---------+-----------+---------+----------
-
- A: Numero dos réos em 1880
- B: Média dos réos no triennio
- C: Proporção dos réos que sabem ler com os habitantes que sabem ler
- D: Proporção dos réos que não sabem ler com os habitantes que não
- sabem ler
-
-Quanto ás profissões, os réus julgados em 1880 podem classificar-se da
-seguinte fórma: agricultores 5:102, industriaes 4:386, negociantes 463,
-proprietarios 1:244, empregados publicos 175, creados de servir 392,
-com profissão scientifica ou litteraria 100, com outras occupações 22
-e sem profissão alguma 271. Ignorou-se a profissão ou occupação de 130
-réus. A proporção entre os reus julgados e os individuos pertencentes
-a estas differentes classes não se distanceia importantemente da dos
-annos anteriores; e não offerece por ora esclarecimentos que bastem
-para avaliar o predominio do estado ou posição social na somma, na
-qualidade ou na aggravação dos crimes.»[84]
-
-A Penitenciaria costuma publicar um relatorio interessante sobre o
-estado moral e intellectual dos reclusos. Em 1888 diz:
-
-Pelo grau de instrucção litteraria vemos:
-
-1.ᵃ classe--Analphabetos 127; 2.ᵃ classe--Sabendo ler e escrever alguma
-cousa, mas não sabendo contar 36; 3.ᵃ classe--Sabendo ler, escrever e
-contar 15--Total 178.
-
-Na tabella seguinte damos a classificação dos crimes em relação aos
-temperamentos, constituição physica e grau de instrucção litteraria dos
-presos entrados na Penitenciaria Central de Lisboa no anno de 1886:[85]
-
- +-------------------------------+-----------------+---------+---------
- | | 1 | 2 | 3
- |Crimes em geral |--------+--------+----+----+----+----
- | Crimes em especial |A |B |C |D |E |F |G | H |I | J |K |L
- +-------------------------------+--+--+--+--+--+--+--+---+--+---+--+--
- |Crimes contra a religião
- | Desacato e profanação |--|--|--|--|--| 1| 1| --|--| 1|--|--
- |Crimes contra a ordem e tranquilidade publica
- | Moeda falsa |--|--|--|--|--| 2|--| 2|--| 2|--|--
- | Falsificação | 1|--|--|--|--|--|--| --| 1| --|--| 1
- |Crimes contra as pessoas
- | Usurpação do estado civil | 1|--|--|--|--|--|--| --| 1| 1|--|--
- | Homicidio voluntario |19|--| 8| 6| 2|34|16| 37|16| 49|14| 6
- | Infanticidio |--|--|--|--| 1| 3|--| 2| 1| 2| 1|--
- | Ferimentos resultando | 7| 1| 1|--|--| 6| 1| 11| 4| 12| 4|--
- | a morte
- | Homicidio frustrado | 2|--|--|--|--| 3|--| 4| 1| 2| 1| 2
- | Offensas corporaes | 1|--|--|--|--| 2|--| 2| 1| 2| 1|--
- | Tentativa de offensas |--|--|--|--|--| 1|--| 1|--| 1|--|--
- | corporaes
- | Ferimentos | 2|--|--|--|--| 3| 1| 4|--| 4|--| 1
- | Attentado ao pudor | 2| 1| 1|--|--| 3|--| 3| 4| 5|--| 2
- | Estupro | 1|--| 1|--|--| 6| 3| 4| 1| 5| 3|--
- | Violação | 2|--|--|--|--|--|--| --| 2| 2|--|--
- |Crimes contra a propriedade
- | Furto | 6|--| 1| 1|--|12| 2| 11| 7| 15| 4| 1
- | Roubo |10|--| 2| 1|--| 8|--| 15| 6| 14| 6| 1
- | Subtracção fraudulenta | 1|--|--| 1|--| 8|--| 9| 1| 8| 1| 1
- | Tentativa de roubo |--|--| 1|--|--| 1|--| 2|--| 1| 1|--
- | Collocação de pedras na |--|--| 1|--|--|--|--| 1|--| 1|--|--
- | via ferrea
- | +--+--+--+--+--+--+--+---+--+---+--+--
- | |55| 2|16| 9| 3|93|24|108|46|127|36|15
- | +--------+--------+----+----+----+----
- | | 178 | 178 | 178
- +-------------------------------+-----------------+---------+---------
-
- 1: Temperamento
- 2: Constit. physica
- 3: Grau d’instrucção litteraria
-
- A: Lymphatico
- B: Nervoso
- C: Sanguineo
- D: Bilioso
- E: Lymphatico bilioso
- F: Mixto
- G: Robusta
- H: Regular
- I: Fraca
- J: 1.ᵃ classe
- K: 2.ᵃ classe
- L: 3.ᵃ classe
-
-A instrucção puramente intellectual é uma aptidão que póde tanto pôr-se
-ao serviço da virtude como do crime. O lado efficaz da instrucção é a
-cultura do sentimento moral e do sentimento religioso. O lado puramente
-intellectual ministrado em pequeno quinhão dá a certos individuos o
-cunho da vaidade e da insubordinação, fallando com desprezo das crenças
-dos outros e explicando tudo ao sabor do seu caracter. Urge combater
-este funesto estado, tanto na escola primaria como nas prisões.
-
-Recolhem ás prisões de Paris annualmente cerca de 110 a 120 mil
-delinquentes. Ha a casa de detenção junta á Prefeitura de policia;
-as casas de correcção cellulares de Mazas e da La Santé; a casa de
-correcção de _Saint-Pelagie_ para rapazes; a de _Saint-Lazare_ para
-prostitutas; a grande prisão chamada _La Conciergerie_; o deposito de
-condemnados _Grande Roquette_, e a casa de detenção correccional, e
-_Petite Roquette_.
-
-Além d’estas, ha o estabelecimento de educação correccional da rua
-de Vaugirard destinada ás filhas de familia; o convento das damas
-Saint-Michel na rua de Saint-Jacques, destinado ás donzellas da
-religião catholica e ali detidas por correcção paternal; a instituição
-das damas preladas, estabelecida em Paris na rua de Meuilly, onde estão
-enclausuradas as jovens protestantes submettidas á correcção por ordem
-paternal, e emfim o refugio das jovens israelitas, situado no boulevard
-de la Saussaye, em Neuilly, para raparigas judias.
-
-Para rapazes sujeitos á correcção por familias decentes, ha apenas em
-Paris a escola industrial da rua Clevel. É dirigida por protestantes e
-notavel pela sua austeridade.
-
-Para repressão da mendicidade tambem ha a casa do Saint-Dinis, para
-onde se levam presos os vadios, que se encontram a pedir esmola.
-
-Entre nós não ha educação correccional, se exceptuarmos a modestissima
-casa de correcção de Lisboa. As cadeias do paiz são em geral um foco
-de desmoralisação. Não existe n’ellas nem professor nem capellão. A
-Penitenciaria de Lisboa é a primeira e unica escola correccional.
-
-Precisavamos derramar a mãos largas a instrucção que ensina a discernir
-e a educação ministrada no lar, na escola, que corrige os defeitos e
-fórma o caracter, contrariando desde o berço as inclinações ruins.
-Algumas nações tornam justamente responsaveis os paes ou tutores pelo
-mau exito da educação de seus filhos. Procuremos melhorar as condições
-da sociedade pela creação de instituições de previdencia, para prevenir
-accidentes de ordem material e moral.
-
-«Vê-se pois, affirma um interessante documento official, que os crimes
-que mais predominam foram furtos e vadiagem.
-
-A criminalidade, como diz o citado visconde de Hanssonville, tem
-duas causas unicas, a miseria e as paixões; porém na infancia tem
-uma terceira causa especial, que é o abandono e a ausencia de toda a
-educação moral.
-
-Os menores abandonados pelos pais, ou pessoas d’elles encarregados,
-começam pela vadiagem, passam depois aos crimes contra a propriedade,
-d’onde muitas vezes chegam ao de homicidio.
-
-É indispensavel, pois, affastal-os d’aquelles, que pela sua falta do
-conhecimentos ou pela sua desmoralisação o não podem educar.
-
-Grande parte dos menores condemnados pelo crime de furto, já tinham
-sido presos pelo crime de vadiagem, e alguns exemplos podia apresentar
-de menores, que entraram na casa de correcção por mais de uma vez como
-vadios, sendo-lhes imposta a pena de prisão só por poucos dias, e
-quando passavam dos dezoito annos foram processados por crime de roubo
-e condemnados a degredo.
-
-Pelo mappa das reincidencias vê-se que desde a installação d’este
-estabelecimento sessenta menores entraram alli duas vezes, trinta e um
-tres vezes, nove quatro vezes, sete cinco vezes, um seis vezes e um
-sete vezes.»[86]
-
-Os crimes contra a propriedade são actualmente em maior numero do
-que os crimes contra as pessoas, devido ao progresso na brandura dos
-costumes, ao desenvolvimento da policia e á progressiva vigilancia
-que fez apparecer nos tribunaes maior numero de certos crimes, como
-attentados contra o pudor, que a maior parte das vezes passavam
-desapercebidos.
-
-Sendo hoje maior a riqueza, aguça mais o sentimento da cubiça e da
-inveja, gera o alcoolismo que prepara o nevrotico e o degenerado para o
-crime contra as pessoas.
-
-O infanticido parece ter augmentado, mas o augmento no numero d’esse
-crime é, como dissemos acima, devido á mór vigilancia da policia.
-
-Ha delinquentes effectivamente irregeneraveis, todavia por isso
-devemos desprezar a educação? N’esse caso tambem devemos condemnar a
-therapeutica e a hygiene. Uma das causas por que o crime, registado nas
-estatisticas, parece augmentar com a instrucção é porque a população
-urbana dá maior contingente que os campos e as cidades e estas tentam
-mais o malfeitor pela facilidade da fuga e abundancia do roubo.[87]
-
-«Condemnado o prezo, escreve o nosso illustre jurisconsulto Silvestre
-Pinheiro Ferreira, a uma isolação e a um silencio absolutos, e
-forçando-o a concentrar-se em si mesmo; que esperavam podesse elle
-achar no fundo de sua alma corrompida, que houvesse de o trazer a
-sentimentos honestos? Que noções de resignação, de moderação, de
-virtude, de amor aos seus similhantes julgavam elle podesse achar em
-uma alma tal? Quanto ao passado, as suas recordações só lhe apresentam
-devassidão e crimes. O presente só lhe offerece a perspectiva de
-uma immensa e odiosa tortura. O futuro, não lhe promette senão a
-continuação d’essa tortura até á expiação da pena; e, a partir d’esse
-ponto, a fatal alternativa ou de perecer na miseria, ou de se lançar de
-novo nos caminhos do crime.
-
-E que ha ahi que o possa arrancar a estas funebres meditações? Nada,
-absolutamente nada, porque o systema da isolação e de mudismo não lhe
-permitte distracção alguma. E poude com effeito, alguem persuadir-se
-seriamente que um espirito sumido em taes ideias poderia abrir-se á
-linguagem da religião e da moral? Seria não conhecer o coração humano.
-O espirito para poder escutar com attenção as lições da moral ha de
-achar n’ellas attractivos: para que essas lições se gravem no coração
-e se tornem sentimentos, é necessario que a alma procure consolação
-e prazer encantador em as escutar. Mas que prazer e encanto poderão
-provar as almas embrutecidas no vicio ouvindo a linguagem da virtude?
-
-Não ha mais que um meio para o conseguir,--é illuminal-as. Comtudo,
-essa é outra grande difficuldade a vencer. Espiritos preguiçosos,
-a quem o mais leve pensar fatiga e aborrece, precisam de um movel
-poderoso para se determinarem a receber a menor instrucção. Este movel
-deve achar-se na esperança de alliviar a immensa tortura moral do
-silencio.
-
-Saiba, pois, o preso que se elle prestar ouvidos doceis ao ensino e
-instrucção, elle se achará admittido ás conferencias que, segundo
-os regulamentos, deverão ter logar entre as pessoas a esse objecto
-commissionadas, e aquelles dos presos que d’ellas se fizerem dignos.
-Estas conferencias não devem versar unicamente sobre a moral, porque
-(e ainda outra vez e muitas o repito) o que for semear n’um campo por
-arrotear, só deve esperar ver perdido o seu trabalho, colhendo sómente
-espinhos. É preciso pois habituar o espirito do preso a dirigir a sua
-attenção a objectos, que, ao mesmo que instructivos, puxem e convidem,
-a objectos que, tendo pouca ou nenhuma ligação com os seus habitos de
-vicio, não o indisponham a dar-lhes attenção.
-
-Assim como nos conservatorios das artes se tem creado cursos
-scientificos ao alcance das classes operarias, alguns d’estes deveriam
-tambem estabelecer-se no centro das casas de correcção. Porque então o
-espirito dos presos, desenvolvendo-se e dilatando-se por meio do estudo
-d’estas diversas sciencias, viria a tornar-se diariamente sempre mais
-disposto a subir da consideração dos phenomenos da natureza até ao Ente
-Supremo, de onde ella tira a sua origem; e então os seus corações,
-abrindo-se insensivelmente aos sentimentos religiosos, principiavam
-acceitando sem custo e acabariam acolhendo com gosto essas mesmas
-lições de moral, que ao principio os seus espiritos ainda enlodados no
-vicio, por ventura repudiaram com tedio e desdem. Alem da inapreciavel
-vantagem de adoçar illuminando estes caracteres selvaticos; além da
-utilidade que elles não menos que a sociedade hão-de deduzir desta
-longa carreira de estudos graduaes e proporcionados á capacidade de
-cada um d’elles eu apontarei ainda outra vantagem, a meus olhos muito
-mais importante; e é a de preservar os contrictos já soltos, de cahirem
-n’aquellas perigosas sociedades que antes frequentavam.[88]»
-
-O nosso illustre tratadista de litteratura pedagogica D. Antonio da
-Costa escreve:
-
-«N’aquelle mesmo anno de 1879 achava-se na cadeia de Braga, condemnado
-tambem a prisão perpetua, Albino de Sá Carneiro, que havia annos
-creára e regia dentro dos ferros uma escola primaria para os presos
-e para creanças. Estas aprenderam ali ás centenas. Presos, mais de
-cem. Quatorze annos de carcere imprimiram no preso professor aquella
-tristeza resignada, que é um dos caracteristicos mais dolorosos dos que
-padecem. O dia estava triste como elle; e o carcere, se é possivel,
-ainda mais triste do que nós ambos. Entretanto, como n’um dia tenebroso
-e por entre o ribombar dos trovões despede o sol por sobre a natureza
-um raio fugitivo, e por isso mais brilhante, não sei que raios formosos
-reflectiam sobre a escuridão do carcere os livros dos alumnos,
-dispersos por aquella carunchosa mesa, e os quadros da leitura nas
-paredes silenciosas.
-
-Na larga conversação que tivemos, perguntei-lhe:
-
---E quaes são os presos mais difficeis de regenerar?
-
---Os ladrões; inquestionavelmente os ladrões.
-
-Ó ladroeira eterna! como o teu reinado, alem de universal, é sobretudo
-incorrigivel! Bem te conhecia Pedro I, que te cortava pela raiz!
-
---Quantos presos teem saído instruidos da sua escola?
-
---Nem todos podem completar a instrucção, porque uns acabam de cumprir
-a sentença; outros, quando já se vão adiantando, são removidos. Mas
-posso calcular que um cento de analphabetos e desmoralisados tem levado
-d’aqui mais ou menos instrucção.
-
---E só instrucção?
-
---Não só; mais e melhor, a educação. Sem esta escola, como é que um
-João da Silva, preso e analphabeto durante quarenta annos, seria hoje
-procurador em Barcellos? como é que o pedreiro Soutello saíria apto
-para dirigir os seus negocios? como é que um José Pereira Barbosa,
-vendo-se instruido ao reentrar na sociedade, poderia partir para o
-Brazil: ganhar ali a sua vida, começar logo um commercio, fazel-o
-progredir, mandar dinheiro á familia, e em seguida regressar á patria
-com o fructo do seu trabalho? como é que um Manuel Rodrigues e um
-José Gomes teriam apresentado, depois de soltos, um comportamento
-exemplar, correspondendo-se com o seu professor por meio da escripta
-que elle lhes ensinara, narrando-lhe as suas vidas, e protestando-lhe
-a transformação completa que n’elles se operou?--porque, proseguiu Sá
-Carneiro, fico-me interessando por todos esses que eduquei, como se
-fossem meus filhos.
-
-Que exemplos, e que formosura!»[89]
-
-«Acerca dos meios preventivos contra a criminalidade[90] importante
-e vasto assumpto tem os mais distinctos moralistas escripto grossos
-volumes, em que se discutem as divergencias, opinião sobre a
-criminalidade e sobre os meios praticos que a sociedade tem a empregar
-não só para punir o crime, mas tambem para o evitar, materia a que
-ligeiramente nos referiremos n’este limitadissimo esboço. Um dos
-mais distinctos alienistas, Maudsley, estabelece com quasi todos os
-physiologistas modernos que assim como para haver uma regularidade nas
-funcções dos differentes orgãos, sob o ponto de vista da organisação
-physica, é necessario e indispensavel o exercicio d’esses mesmos
-orgãos, principio formulado por Lamarck, assim tambem para se
-desenvolver a potencia psychica da coordenação mental, é necessario
-o mesmo exercicio funccional do cerebro, o que mesmo se póde chamar
-_um exercicio gymnastico_ pela sua analogia com a gymnastica cujo fim
-salutar consiste em operar o desenvolvimento organico do individuo, em
-qualquer dos casos trata-se de aperfeiçoar orgãos que na inactividade,
-como já vimos, se esterilisam, chegando mesmo a deformar-se, o que
-tanto sob este ponto de vista mental, como sob o propriamente chamado
-organico, tem consequencias gravissimas para a constituição social,
-por isso que este atrophiamento é a origem da loucura e do crime,
-e da degenerescencia physica a que tambem corresponde a decadencia
-mental. A falta de exercicio muscular produz n’uma serie de gerações,
-mais ou menos longa, segundo as circumstancias mesologicas, uma raça
-esteril d’elementos anemicos, cheios de vicios e defeitos e por
-isso incapazes para a vida, condemnados a occuparem o ultimo logar
-na concorrencia vital pela sua inferioridade attestada não só pela
-deficiencia de construcção, como tambem nas luctas do pensamento pela
-deficiencia mental. Por outro lado a hygiene physica sem a gymnastica
-mental, com quanto produza uma raça forte, está longe de produzir uma
-raça perfeita, muito longe mesmo de produzir uma raça medianamente
-aproveitavel e util no estado actual da sociedade; traz comsigo a
-inaptidão para que o individuo aprecie em toda a sua complexidade e
-com a clareza necessaria, as circumstancias que sobre si proprio
-actuam por isso que lhe não é possivel subordinar os seus actos ao
-imperio de uma vontade indisciplinada, pela falta d’ideias fixas sobre
-as necessidades individuaes e collectivas. N’este caso a desordem
-funccional é a causa, a origem immediata da loucura ou do crime,
-cujos prodromos a maior parte das vezes começam a manifestarem-se no
-desregramento que arrasta os futuros criminosos aos focos infectantes
-e immundos. Ahi pelo contacto com individuos semelhantes e com
-certas affinidades justificadas pela sua organisação a que não podem
-ser superiores, acabam de se cretinisar tanto pelo abuso do alcool
-como pelos prazeres vulgares, em que muitas vezes chegam tambem a
-inutilisar-se outros bem conformados, ou pelo menos com predisposições
-organicas para obter um logar na concorrencia da vida, e isto em
-consequencia de um vicio de educação, apesar de comprehenderem, ou
-terem pelo estudo, adquirido as noções coordenativas da actividade
-social de cada individuo. Estes casos são todavia pouco vulgares, por
-isso que, existindo uma profunda convicção scientifica tirada do estudo
-methodico dos factores sociaes e da analyse dos factos succedidos,
-essa convicção arrasta o individuo para o campo das investigações
-philosophicas onde sobretudo se adquire uma disciplina superior,
-que constitue um preservativo contra todos esses vicios sociaes.
-Ha comtudo casos que não vem a proposito citar e por isso abrimos
-esta excepção. Como já vimos o crime e a loucura são por assim dizer
-_duas doenças_ analogas tanto no caso da sua origem ser meramente
-accidental, como n’aquelle em que a incapacidade e o desregramente
-se manifesta em consequencia de um vicio organico, a maior parte das
-vezes hereditariamente transmittido, como o attestam innumeros casos
-observados nos hospitaes de alienados, onde tantas vezes vão parar
-muitos membros d’uma mesma geração, ou ainda nas prisões pela repetição
-do mesmo phenomeno, para que é necessario se dirijam as attenções dos
-legisladores a fim de estatuirem leis concernentes ao humanitario fim
-de evitar tanto quanto possivel as causas da degenerescencia physica
-e mental. Ha pois dois casos distinctos que devemos considerar em
-separado apesar da intima correlação que entre elles existe e são o da
-perturbação e deficiencia funccional que é susceptivel de modificar-se
-com um regimen hygienico, e o da constituição propria do cerebro em
-qualquer d’estes os meios a empregar são approximadamente os mesmos e
-consistem em procurar n’uma educação scientificamente dirigida, o modo
-de lhes desenvolver a potencia determinativa. Ha porém uma differença
-entre estes casos que consiste em que sendo muitas mais vezes
-impossivel obter d’um individuo defeituoso uma certa tendencia para
-ser util, cumpre á sociedade empregar medidas radicaes sobre o destino
-d’estes que as conveniencias geraes da maioria obrigam a sacrificar
-condemnando-os ao hospital no caso d’idiotia, loucura ou monomania,
-caracterisadas por um forte desarranjo das faculdades intellectuaes,
-ou com o desterro quando esse mesmo desarranjo se manifesta pela
-perversidade de sentimentos, isto é, por uma tendencia irresistivel
-para ser prejudicial á collectividade ainda que o criminoso esteja
-certo das consequencias dos actos que pratica, como muitas vezes
-succede. Estabelecidas estas differenças vejamos em resumo os meios
-que a sciencia aconselha como preventivos e que em um futuro não muito
-remoto, hão-de ter produzido resultados satisfatorios, se os poderes
-publicos dos estados mais civilisados se resolverem a attender a esta
-questão a que está affecto o bem-estar social, como necessariamente hão
-de ser obrigados pelas exigencias progressivamente accentuadas pela
-corrente scientifica que actualmente se dirige em todos os sentidos. E
-isto apesar das graves difficuldades do problema para cuja solução, a
-par d’uma grande liberdade cujas garantias estão estabelecidas por este
-mesmo desenvolvimento scientifico, é necessario mais estabelecerem-se
-certas e determinadas restricções tendentes a impedir a degenerescencia
-organica e mental pelos cruzamentos indevidos. Prende-se tambem com
-este problema a momentosa questão economica que exige ainda muito
-trabalho dos philosophos para que se cheguem a estabelecer e a fazer
-comprehender no publico um certo numero de doutrinas já debatidas e
-aceitas, contra que ainda se levantam graves attrictos apesar de se
-não poder conseguir por emquanto a sua resolução definitiva para o que
-o maior trabalho ainda está por fazer e nem mesmo se sabe quando se
-fará. Leibnitz escreveu «dae-nos educação e nós mudaremos em menos d’um
-seculo a face da Europa.» Na primeira linha dos meios preventivos a
-que nos temos referido depara-se logo com a _Educação_. É este o mais
-pratico, o mais efficaz e o primeiro a empregar, por isso mesmo que é
-principio assente de que só por meio d’uma instrucção publica ampla
-e obrigatoria, racional e methodica, junta a uma educação dirigida
-segundo as necessidades contemporaes se póde obter a revivescencia
-da actividade popular, isto é, a sua preparação para a vida social,
-livremente dos actuaes preconceitos e contingencias, que são como que
-uma negativa da civilisação. Já Leibnitz dizia que quem reformasse a
-educação, reformaria tambem o genero humano, e o sabio Spencer no seu
-livro sobre este assumpto a que dedica o maximo interesse diz que o seu
-fim é preparar o individuo para a vida completa. Em poucas palavras
-traçou este philosopho o fim da educação moral, intellectual e physica
-até hoje crivada de preconceitos estereis que lhe transtornam a acção,
-que chegam mesmo a esterilisar as intelligencias nascentes opprimidas
-pelo jugo terrivel de uma direcção anarchica. Não procura acompanhar
-o desenvolvimento das faculdades intellectuaes, partindo do mais
-concreto para o mais abstracto, seguindo o processo do desenvolvimento
-do espirito humano, de cuja marcha o desenvolvimento individual é como
-que uma momentanea repetição das differentes phases que atravessou
-durante os longos periodos da vida. É como diz também Espinas[91]
-«mudando as idéas que se mudarão as instituições e os costumes, sendo
-portanto a educação o instrumento da reconstituição social». Mas
-para que este meio preventivo de todas as calamidades sociaes dê os
-resultados satisfatorios que os philosophos lhe attribuem é necessario
-mais que proclamar o ensino obrigatorio de que resulta simplesmente o
-ensino da leitura e da escripta. É necessario mais do que instituir
-escolas por toda a parte, regidas por professores pouco instruidos
-que não podem ultrapassar os limites de um ensino esterilisador...
-Devendo a educação ter um caracter scientifico, exclusivamente
-scientifico e obedecer nas suas regras a leis determinadas pelo estudo
-physio-psychologico do individuo, nós vemos que realmente a escola
-primaria, em que reside o futuro das sociedades, não satisfaz ao fim
-que é destinada. Limita-se exclusivamente a ensinar materialmente as
-creanças a ler e escrever, atrophiando-lhes as faculdades intellectuaes
-pelo abuso da fixação absurda de certos conhecimentos superiores que
-desenvolvendo a memoria, condemnam o desenvolvimento do raciocinio.
-E ante este estado da instrucção publica, parece ser este o seu fim
-principal e não preparar cidadãos uteis e prestantes. Ainda as classes
-dirigentes não chegaram a comprehender que a sciencia e a verdadeira
-interpretação do dever social, é a mais solida disciplina em que póde
-assentar a solidariedade por isso que, como diz Espinas, a sciencia é
-o patrimonio commum da humanidade por toda a parte onde se encontram
-sufficientes luzes. Ella bastará com a arte porque a imaginação
-encontra mais abundantes recursos nas suas grandiosas concepções, que
-nas invenções mesquinhas da fabula. Bastará não menos á industria
-que em todos os tempos tem sido a sua obra, e mais, ella chegará a
-organisar os differentes elementos de producção prevenindo as soluções
-artificiaes e revolucionarias; chegará a estabelecer a harmonia entre
-o capital e o trabalho. Desenvolver por todos os meios a educação
-imprimindo-lhe um caracter verdadeiramente concorde com as aspirações
-hodiernas dos grandes philosophos, que por meio da investigação e da
-experiencia têem descoberto as leis do desenvolvimento humano tanto sob
-o ponto de vista physiogenetico como anthropogenetico, eis a primeira
-necessidade de todos os organismos sociaes empenhados em estabelecer
-o bem-estar geral. É este um trabalho complexo enormemente grandioso
-quando comparado sob todos os seus aspectos de prosperidade social,
-e que se prende não só com a familia onde a creança recebe não só as
-predisposições organicas e as primeiras sensações, as primeiras idéas
-cujos vestigios quasi sempre se manifestam atravez de todos os periodos
-da nossa existencia. Para terminarmos sobre este ponto essencialissimo
-de prevenção do crime e da loucura, citaremos a opinião de Maudsley
-que diz: «Abstraindo do dever positivo de todo o homem em adquirir
-a mais completa intelligencia, e estabelecer relações com o meio
-ambiente, a fim de tirar d’elle o melhor partido em proveito do seu
-desenvolvimento pessoal, o estudo e a pratica das sciencias naturaes,
-constitue a gymnastica a mais favoravel ás faculdades intellectuaes.
-Nenhum outro estudo póde no mesmo grau ensinar a observar com maior
-exactidão e a raciocinar com melhor criterio»[92]. A melhor garantia
-d’uma clara percepção, d’um sentimento justo, d’um entendimento
-vigoroso e d’uma vontade intelligente, em qualquer circumstancia da
-vida, é o habito contrahido nas circumstancias procedentes d’uma
-percepção sã, d’um sentimento justo, d’um entendimento vigoroso e
-d’uma vontade intelligente; por outros termos, é o desenvolvimento
-completo da natureza intellectual e moral. Na maioria dos homens,
-diz ainda Maudsley, a formação de caracter qualquer que seja, é o
-resultado do acaso e nunca o effeito da premeditação; é o producto
-accidental da disciplina e da educação que o individuo recebe. Este
-facto presenceia-se a todos os momentos, entre esses individuos que
-por circumstancias fortuitas são educados n’um meio corrupto, ou mesmo
-ainda entre aquelles que prematuramente são pela sociedade arremessados
-para essas escolas de desmoralisação chamadas as prisões, onde muitas
-vezes se estiolam intelligencias aproveitaveis e espiritos susceptiveis
-de receberem uma orientação util, se se não votasse o maior despreso
-a esta serie de miserias sociaes que são uma affirmativa do estado de
-rudimentos da nossa civilisação. Quanto mais estudamos a criminalidade
-e vemos os meios preventivos, alguns de grande facilidade no seu
-emprego, tanto mais nos convencemos como Quetelet de que exactamente
-essa sociedade que tanto odio vota aos criminosos é a unica responsavel
-por actos detestaveis e ainda mais pela perda d’um grande numero dos
-individuos que os praticam. Onde ella vê criminosos perigosissimos
-para quem o desterro se póde applicar, teria cidadãos uteis se tivesse
-tratado de os formar. A educação, dissemos, é o grande meio preventivo
-contra a criminalidade, mas ainda não é tudo e ha mesmo outras medidas
-concernentes ao mesmo fim que é necessario empregarem-se.»
-
-A educação carece d’uma actividade constante na vida exterior, que
-forneça elementos de elaboração á vida psychologica, directa ou
-automatica. A sensibilidade, a intelligencia, a vontade modificam-se
-inconscientemente pelo trabalho educativo. O pensamento na phase
-psychogenica é essencialmente receptivo, alimenta-se das circumstancias
-que o rodeiam. Existe, é verdade, congenitamente um peculio de força
-psychica, proveniente da mesma natureza humana e da hereditariedade,
-mas a energia da educação póde imprimir a essa força, quasi no estado
-nascente, certa linha directriz. É por isso que o eminente psychologo
-contemporaneo Bernard Perez, faz nos seus interessantes estudos a
-alliança da psychologia infantil com a pedagogia. A educação criminal
-nas prisões para adultos, é já apenas um remedio, quando no lar deve
-ser um alimento vivificante.
-
-O distincto psychologo a que acima nos referimos, escreve:
-
-«O mêdo é um dos sentimentos que mais se oppõem ao bem estar physico
-e moral da creança, e, conseguintemente, ao seu desenvolvimento
-intellectual. É um instincto innato que pela perturbação geral do
-organismo, pela rapidez da circulação e respiração reage, mesmo
-inconscientemente, contra um mal presente ou proximo. Corresponde
-a um consideravel affluxo de sangue para os centros nervosos, aos
-quaes desperta e prepara logo para a lucta, para o ataque ou defeza.
-É hereditario nas suas manifestações geraes; apparece geralmente
-durante o somno, reagindo por tal modo contra o perigo imminente.
-Muitos physiologistas e psychologos consideram-n’o como que hereditario
-nas suas differentes especies, taes como o mêdo das impressões
-bruscas, intensas e insolitas, o receio de certos animaes, o pavôr
-da escuridão e da solidão, e até o proprio mêdo da morte. Haja porém
-o que houver ácerca de taes affirmações, que por mais d’uma vez tive
-occasião de discutir, certo é que alguns sustos especiaes, como mêdo
-dos cães, dos ursos, dos elephantes, das serpentes, precizam, para
-reproduzir-se no herdeiro das gerações antigas, que se dê a repetição
-frequente das causas que outr’ora os produziram. Se esses objectos
-não se apresentam na primeira edade, a predisposição hereditaria
-poderá não manifestar-se, ou demorar-se a sua manifestação. Mais
-tarde encontrariam no ser já desenvolvido, formado, aguerrido, mais
-obstaculos para produzir os seus effeitos.
-
-Coragem e mêdo são sentimentos por egual innatos. A mãe parece
-grandemente apta, em virtude dos effeitos duraveis da incubação
-physica e moral, para transmittir o instincto da coragem ou do mêdo.
-É porém, especialmente, pela incubação artificial da creança, que as
-mães medrosas ou corajosas, produzem, como se tem dito, filhos que se
-lhes assimilham. O mêdo é uma susceptibilidade enferma, que attinge
-os filhos de paes pouco sãos de corpo e de espirito, mas em diversos
-graus e todos na proporção da sua fraqueza. Nos primeiros tempos,
-especialmente, a cura d’uma tal nevrose depende quasi totalmente do
-regimen e da hygiene. Uma prova do facto é que os homens mais senhores
-de si tornam-se algumas vezes sensiveis e timoratos como creanças,
-quando a doença os debilita. E de mais, não esqueçamos que se o mêdo
-nasce da fraqueza, esta origina aquelle. «Isso constitue, diz Mosso,
-um circulo fatal nas funcções do organismo... A excitação do systema
-nervoso predispõe o individuo para o mêdo, o qual actuando por seu
-turno sobre a excitabilidade augmenta-a indefinidamente[93].»
-
-Locke e Rousseau escreveram bellissimas e sensatissimas paginas
-sobre a necessidade de ir habituando progressivamente a creança a
-não temer demasiado o perigo verdadeiro, e sobretudo a temer o menos
-possivel o perigo afastado. Locke dá-nos até um conselho precioso a
-respeito da creancinha. «É conveniente afastar da vista da creancinha
-de peito tudo quanto possa assustal-a; porque até que ella possa
-fallar e comprehender o que se lhe diz, seria inutil apresentar-lhe
-razões para a convencer de que não tem nada a temer da parte d’essas
-cousas assustadoras, que nós quereriamos tornar-lhe familiares
-approximando-lh’as cada vez mais n’uma gradação insensivel. Mas,
-se, não obstante, acontece que uma creancinha ainda de peito se
-sensibilisa ao ver cousas que não podem commodamente furtar-se-lhe
-á sua apreciação, e que manifesta repugnancia sempre que ellas lhe
-apparecem á vista, é preciso n’esse caso empregar todos os meios
-para lhe diminuir esse mêdo, desviando-lhe o pensamento d’esses
-objectos, ou juntando-lhes imagens graciosas e agradaveis, até que
-se lhe tornem tão familiares que a não incommodem[94].» Na edade dos
-dois ou tres annos notam-se na creança umas certas aprehensões, a
-proposito da côr ou da fórma dos objectos que não conhece ou cujas
-analogias lhe não são muito familiares. Creio que é preciso, já o
-disse n’outro logar, uma como especie de transformação imaginativa
-das experiencias pessoaes n’essas vagas aprehensões do mal que podem
-causar lhe esses objectos desconhecidos. Seja qual fôr a origem d’essas
-antipathias ou d’esses sustos, que se não explicam, o que mais nos
-deve aqui importar, é a faculdade de desapparecerem após repetidas
-experiencias que tornaram familiares ás creanças os objectos que a
-principio lhes eram terriveis. Locke e Rousseau deram a proposito da
-cura d’esta especie de receio conselhos quasi similhantes, alguns
-dos quaes podem mui bem seguir-se na educação da creança. «O vosso
-filho, diz Locke, estremece e foge ao ver uma rã: mandae a uma outra
-pessoa que pegue n’ella, e determinae-lhe que a colloque a distancia.
-Acostumae-o primeiro a encaral-a, e quando elle puder fital-a sem
-constrangimento, a consentil-a mais perto do si, a vel-a saltar sem se
-impressionar; depois mandae que lhe toque ao de leve, em quanto alguem
-a segura com as mãos; continuando assim gradualmente a tornar-lhe
-familiar o animal, de modo que elle possa tocar-lhe como toca n’uma
-borboleta ou n’um passaro. Assim se procurará disciplinar este
-juvenil soldado...[95]» Rousseau desenvolve mais minuciosamente este
-preceito: «Quero que o habituemos a ver objectos novos, animaes feios,
-repugnantes, extravagantes, mas a pouco e pouco, de longe, até que se
-acostume, e que á força de ver os outros mecherem-lhe, elle mesmo lhes
-mecha. Se, em creança, viu sem temor sapos, cobras, lagostas, verá
-sem horror, quando fôr maior, qualquer outro animal. A impressão dos
-objectos horrorosos desapparece para quem se habitua a vêl-os.» Assim
-a creança habitua-se a não se assustar das mascaras e a rir d’ellas,
-quando outras pessoas as põem na cara á sua vista. Acostuma-se tambem
-aos tiros de espingarda, bombas, tiros de peça, e mais terriveis
-detonações, se se começa por se queimar uma simples escorva e se passa
-a mais fortes cargas. Depressa se acostumam tambem a ver pessoas
-vestidas de preto que lhe fallam com meiguice, ás caras estranhas, ás
-vozes estrondosas ou cavernosas, que a principio tanto a assustavam.
-Estes processos, d’uma facil applicação, preparam as transições, o
-que é essencial em materia d’educação. Convém porém evitar o excesso,
-e, por exemplo, não familiarisar a creança com o perigo ficticio a
-ponto de a entregar sem defesa ao verdadeiro perigo. Muitas vezes a
-valentia da creança é simplesmente ignorancia ou falta d’imaginação.
-Devemos saber e prever por ella. Que se mostrem todos esses horrores
-zoologicos á creança, mas na sua presença mexa-se-lhes com todas as
-cautellas. Deve saber que um sapo é immundo, uma serpente venenosa, uma
-lagosta picante, e como deve usar-se para lhes pegar ou approximar-se
-d’elles. Quando tem dois annos podem explicar-se-lhe estas cousas, mas
-de sorriso nos labios, e nunca manifestando um receio muito serio. É
-preciso disciplinar mas não supprimir este util instincto o do receio.
-Desde os tres annos e mesmo ainda antes, uma creança bem educada póde
-comprehender por ver os seus educadores, que se póde ser valente sem
-temeridade, e prudente sem fraqueza. Os nossos leitores poderão ler no
-_Emilio_ as mais interessantes paginas que se teem escripto a respeito
-dos meios de corrigir o mêdo das trevas, Darwin julga-o hereditario,
-e Rousseau, julga-o natural em todos os homens; e em certos animaes,
-dá-se, segundo Buffon, uma explicação scientifica do caso. Este tão
-commum espanto não deve attribuir-se só ás historias das amas; os
-phantasmas da escuridão não nos estão apenas na imaginação, mas tambem
-d’algum modo nos olhos. Levados naturalmente a julgar dos objectos
-segundo a grandeza da imagem que formam em nossos olhos, nós povoamos
-a meia escuridão da noite de figuras gigantescas, ou medonhas, em
-virtude d’aquella illusão que em certos casos nos levará a tomar uma
-mosca que passa junto de nós por um passaro que estivesse a grande
-distancia. Os objectos assim transformados espantam como tudo o que
-se desconhece ou não vê bem. «É tambem muito provavel que a ausencia
-d’impressões visuaes concorra para augmentar outras sensações,
-especialmente a audição e o tacto, como é facil de experimentar
-observando as proprias sensações em condições identicas[96]» Ajunte-se
-a esta causa natural do erro a influencia dos contos phantasticos,
-e a imaginação trabalhará do mais deploravel modo. As impressões
-penosas, os maus tratos, uma sensibilidade doentia, predispõem para
-o susto. Este genero de fraqueza, tão funesto á creança, tem causas
-immediatas, que são mais faceis de prevenir do que as remotas, seriam
-de eliminar. O mêdo de que fallamos é sobretudo devido á educação. Se
-os selvagens, segundo narrativas de certos viajantes, teem algumas
-vezes medo das trevas, é porque a sua imaginação supersticiosa as povôa
-de espiritos invisiveis. O animal não tem mêdo das trevas, por causa
-das proprias trevas. Conheci creanças que por um effeito evidente de
-educação não manifestavam tal fraqueza. O meu sobrinho Carlos, assim
-como o seu irmão Fernando, nunca mostraram mêdo da escuridão. Todavia
-Fernando chora quando o deixam só ás escuras, e Carlos pede muitas
-vezes á ama para lhe alumiar na escada. Será mêdo? Não é. Fernando
-chora porque se julga abandonado, porque já não vê a mãe, como chora
-de dia, quando ella sóbe sem esperar por elle, e como fica a gritar
-na escada quando ella parte. Carlos tambem fazia assim n’outro tempo.
-Este faz-se alumiar, porque só assim vê para andar, e para dirigir-se
-melhor. Fernando chora algumas vezes na cama quando o vão deitar e
-deixam só. Carlos hoje já não chora, e adormece logo, não se importando
-para nada com a escuridão. Um e outro sahem sós da casa de jantar para
-atravessarem o corredor ou irem para a cosinha. Quando foram escriptas
-estas linhas, o mais velho tinha sete annos, o outro quasi cinco.
-
-Nada vejo que haja a accrescentar aos excellentes preceitos de
-Rousseau, com respeito ao mêdo da escuridão e do que elle póde ter
-de hereditario, e de mais ou menos espalhado na nossa especie. Elle
-aconselha muitos brinquedos de noite, e especialmente brinquedos
-alegres, de modo que a creança se acostume a estar ás escuras, a
-servir-se das mãos e dos pés tateando os objectos que não vê. Mas não
-é «com surprezas» que devem «acostumar-se as creanças a não terem, de
-noite, susto de cousa alguma. Este methodo é contraproducente, dá um
-resultado inteiramente contrario ao que se deseja, e serve só para as
-tornar mais medrosas. Não podem a razão nem o habito socegar-nos o
-espirito com respeito á idéa d’um perigo presente de que se não conhece
-o grau ou a especie, nem ainda com respeito ao receio de surprezas
-tantas vezes experimentadas[97].» Em caso nenhum, convém brincar com o
-medo presente d’uma creança. Creio até que, passado o susto, o habito
-dos exercicios proprios a darem-lhe serenidade actuariam melhor no seu
-amor proprio para o corrigir d’essa enfermidade do que a zombaria.
-O inverno é propicio para isso; aproveitemol-o; disponhamos os seus
-prazeres para as horas da noite. Ensinemos-lhe a reconhecer por si
-mesma os objectos que a escuridão nos faz tomar por muito differentes
-do que são. Approximemo-nos de todos que passarem ao nosso alcance, e
-prolonguemos á vontade a conversação, permitindo á creança que fique
-junto de nós ou que se afaste, nada perdendo das suas impressões.
-Façamos que naturalmente se habitue aos mil pequenos rumores que se
-ouvem particularmente de noite, e que saiba rindo e sem o esquecer,
-que as cousas só para os ignorantes são mysteriosas; que os phantasmas
-outra cousa não são mais do que a obra do medo que perturba a
-imaginação, ou dos maus farcistas que por mais d’uma vez tem pagado
-caro a sua phantasia[98]. Quanto á creança de berço que está quasi
-inteiramente á mercê das influencias hereditarias, deveria habituar-se
-a dormir com e sem luz, a ouvir fallar, a sentir-se amimada, a ouvir
-ralhar-se-lhe, ora de perto, ora de longe, a escutar na escuridão
-todas as especies de rumores, a ver a luz e os objectos apparecerem e
-desapparecerem repentinamente. São optimas precauções para tomar antes
-da epocha em que as primeiras experiencias das coisas, e o perigo
-quasi inevitavel dos contos absurdos, hão de começar a desenvolver o
-instincto innato do susto. Até á idade de quatro ou cinco annos, a
-creança tem apenas uma idéa muito vaga da morte: não póde portanto
-causar-lhe mêdo ou horror. Ella assimilhar-se-ia por isso á maior parte
-dos animaes superiores, porque não está provado, como o disse Caro,
-que estes tenham uma concepção similhante á do homem adulto. Quando
-muito teem o vago instincto d’um perigo supremo, que excede todos os
-conhecidos[99].» O argumento tirado dos cães que gemem e se deixam
-morrer de fome sobre o tumulo do dono não é absolutamente decisivo:
-a tristeza de ver-se privado d’um dono affeiçoado póde produzir esta
-prostração das forças physicas e moraes terminando pela impossibilidade
-de viver. O suicidio das creanças provaria muito mais, e sabe-se que
-não é elle rarissimo nas creanças muito infelizes, muito susceptiveis,
-d’uma sensibilidade doentia. De resto, esta mania nunca affecta
-creanças de menos de seis annos. Foi com certeza n’uma epocha posterior
-que se deu o seguinte facto. «Eu conheço o caso d’uma creança que por
-tal modo se tinha impressionado com o mêdo da morte que não dormia de
-noite; não era isto effeito de descripções horrorosas da morte que
-lhe tivessem incutido, mas o resultado das suas proprias reflexões
-sobre o assumpto[100].» Devia haver alguma cousa de anormal n’aquella
-tenra cabeça e nas condições exteriores do seu desenvolvimento
-moral. Certo é que a creança tem uma qualquer idéa da morte. Como é
-impossivel que ella não oiça fallar d’esse grande pavor dos adultos,
-convém familiarisal-a com o caso e apresentar-lh’o só sob a fórma
-d’um repouso eterno ou d’um somno tranquillo. Póde, por exemplo,
-apresentarem-se-lhe animaes mortos, como fizeram ao filho de Taine.
-«Ante-hontem o jardineiro matou uma pêga que dependurou por uma perna
-do esgalho d’uma arvore, em ar de espantalho; disseram-lhe que a pêga
-estava morta, ella quiz vêl-a.--Que é que faz a pêga?--Não faz nada, já
-não meche, está morta.--Ah!--Pela primeira vez a idéa da immobilidade
-final entra em seu espirito.» Poucas creanças, é certo, se assimilham
-a esta menina, a quem uma resposta satisfaz, e que tem apenas um ah!
-para replicar. Aquelle ah! aquella interjeição ali posta como fecho de
-objecção não é d’uma creança, ou a menina do que falla Taine era dotada
-d’uma imaginação muito pacifica. E de mais, assim é que se deve fallar
-da morte a uma creança.
-
-Quando uma creança está de saude não ha inconveniente, a meu ver, em
-lhe mostrar pessoas mortas ou ossadas humanas. A pallidez e a rigidez
-cadaverica, e com mais forte razão os restos osseos não teem nada de
-pavoroso. Uma creança de tres annos fallava da morte como d’um estado
-em que já se não soffre do estomago nem da cabeça; de noite fallava dos
-parentes mortos, como de qualquer outra coisa. É porque seu pae, sabio
-livre de prejuizos, mostrava-lhe diversas vezes animaes ou pessoas
-mortas, dizendo-lhe: «Vê lá, quando se está morto, não se meche, não
-se falla, não se ouve e não se vê nada; é como uma arvore, uma pedra,
-uma cadeira, uma meza; não se move perna ou braço, não se sente bem ou
-mal, não se precisa comer nem beber.» Estas imagens e estas explicações
-haviam dado á creança uma idéa assaz justa, assaz desassombrada da
-morte. Perguntou um dia para que se mettiam os mortos n’uma grande
-caixa e se levavam para muito longe: o pae não lhe respondeu nada
-mais senão que se levavam para o cemiterio, e que iria com elle
-visital-o. Levou-o lá effectivamente, no dia seguinte; approximou-se
-d’uma cova aberta de fresco e disse-lhe:--«Vês aquelle buraco, é ali
-que se depositam a caixa e o morto, para sempre; cobrem-se com terra
-porque os mortos apodrecem como a fructa ou a carne, e cheirariam
-muito mal.» Fel-o depois reparar n’alguns ossos desenterrados pela
-enxada do coveiro; mecheu sem dizer nada n’uma tibia, n’uma vertebra,
-n’um craneo; a creança fez logo o mesmo. Ás perguntas seguiram-se as
-perguntas. O pae respondia-lhe simplesmente. «Quando se está morto e
-corrupto, tornamo-nos bocados do ossos.--Succeder-me-ha o mesmo a mim
-quando eu morrer?--Sim, e a mim tambem e a tua mãe. Mas, meu filho, não
-havemos de morrer ámanhã, nem depois de ámanhã, nem por muito tempo
-ainda.--Ha de chorar muito quando eu morrer?--Oh! não morrerás antes
-de mim, assim o espero. Não se sabe quando se ha de morrer.--E porque
-choraria, diga?--Porque te amo, e desejaria viver sempre comtigo. De
-resto, quando se está morto, não se é desgraçado, pelo contrario, não
-mais se soffre. Somos ossos mettidos na terra. Vamo-nos embora.» A
-creança pegou na mão do pae, mas largou-a logo para seguir rindo, uma
-borboleta que acabava de voar d’uns arbustos. O insecto levou mais
-longe o seu vôo, e a creança voltou logo a dizer ao pae: «Havemos de
-voltar aqui, sim, papá?» Se esta creança tivesse ouvido alguma tola
-ama fallar com seriedade de phantasmas, de lobis-homens, a scena que
-reproduzimos deixal-a ia tão tranquilla? É assim que se consegue, sem
-empregar equivocos ou uma falsa sentimentalidade, mostrar á creança
-a verdade que póde comprehender. «Um remedio directo para um temor
-particular, disse a judiciosa madame Necker de Saussure, é substituir
-pela presença do objecto temido a idéa que se formava d’elle. Não
-figuramos aquillo que vemos, e a realidade por mais desagradavel e
-ingrata que seja produz um effeito calmante nos sentidos. Este meio,
-podendo praticar-se, é efficacissimo, mas devemos servir-nos d’elle
-cautellosamente.»[101]
-
-O nosso codigo penal abrange nas circumstancias dirimentes da
-responsabilidade criminal, a falta da imputabilidade e a justificação
-do facto, e julga não susceptiveis de imputação os menores de 10
-annos e os loucos que não tiverem intervallos lucidos, ou os loucos
-que, embora tenham intervallos lucidos, praticarem o facto no estado
-de loucura. O nosso codigo penal previu claramente as hypotheses
-acceitaveis da escola anthropologica quando affirma que os loucos que,
-praticando o facto, forem isentos de responsabilidade criminal, serão
-entregues á sua familia para os guardarem ou recolhidos em hospitaes de
-alienados, se a mania fôr criminosa ou se o seu estado o exigir para
-maior segurança. Entende egualmente que os menores, que, praticando
-o facto forem isentos de responsabilidade criminal por não terem 10
-annos ou por terem obrado sem discernimento sendo maiores de 10 annos
-e menos de 14, serão entregues a seus paes ou tutores, ou a qualquer
-estabelecimento de correcção ou colonia penitenciaria se a houver no
-continente. É obvio que n’esta legislação criminal está assignalada a
-idéa de hospitaes de alienados para os perigosos á ordem publica e a
-idéa de estabelecimento de casas de correcção. O fundamento do direito
-de punir no codigo penal portuguez é a responsabilidade criminal que
-consiste, segundo, a sua bella definição no dever em reparar o damno
-causado na ordem moral da sociedade, cumprindo a pena estabelecida na
-lei, e applicada pelo tribunal competente.
-
-A responsabilidade criminal é ainda aggravada ou attenuada quando
-concorrem no crime, ou no agente d’elle, circumstancias attenuantes
-ou aggravantes e dada a aggravação da pena. O alcoolismo é, perante
-o nosso codigo penal muitas vezes um crime, outras vezes uma
-circumstancia attenuante e nunca uma circumstancias dirimente. O artigo
-40 diz o seguinte: a privação voluntaria e accidental do exercicio da
-intelligencia e inclusivamente a embriaguez voluntaria e completa no
-momento da perpetração do facto punivel, não dirime a responsabilidade
-criminal, apezar de não ter sido adquirida no proposito do perpetrar,
-mas constitue circumstancia attenuante de natureza especial, quando
-signifique alguns dos seguintes casos: 1.ᵒ ser a privação ou a
-embriaguez completa e imprevista, seja ou não posterior ao projecto
-do crime; 2.ᵒ ser completa e procurada sem proposito criminoso e não
-posterior ao projecto do crime. Em qualquer dos casos a isenção de
-responsabilidade criminal não envolve a responsabilidade civil, quando
-esta se dê. Todo o nosso direito criminal tem por base a intenção,
-visto que são puniveis não só o crime consumado, mas tambem frustrado
-e a tentativa, assim o artigo 6.ᵒ diz que ha crime frustrado quando o
-agente pratica com intenção todos os actos de execução que deveriam
-produzir-se, como resultado do crime consummado, e todavia não se
-produzem por circumstancias independentes da sua vontade. Egualmente,
-ainda que a tentativa não seja punivel os actos que entram na sua
-constituição são puniveis, se forem classificados como crimes pela lei
-ou como contravenções por lei ou regulamento. É evidente que todos
-estes principios se applicam a todos os agentes do crime nas suas
-differentes condições, quer sejam auctores, cumplices ou encobridores.
-
-É erro corrente da escola italiana suppor que o caracter do
-delinquente, resulta apenas de uma fatal causalidade organica. Ainda
-porém ultimamente um illustre psychologo francez, Fr. Paulhan, publicou
-um vasto livro[102] no qual fez, segundo o seu ponto de vista, uma
-analyse profunda das fórmas da actividade mental e dos elementos
-psychicos tendo por fim demonstrar que o espirito é a resultante d’uma
-synthese de productos sociaes, formada sobre uma synthese de productos
-organicos. Estudando os elementos psychicos, reconhece que ha uma
-actividade propria, relativamente independente, analoga á dos homens,
-das familias e dos partidos, que constituem uma sociedade, estando
-porém tudo unificado por uma lei principal, que é a lei da finalidade.
-
-Paulhan, fazendo o estudo da personalidade psychologica, indaga como
-as sensações e as percepções são systemas de elementos, como as
-ideias são systemas de elementos tirados de numerosas percepções, as
-tendencias são associações coordenadas de ideias, de percepções reaes
-ou possiveis, de imagens motrizes, de elementos reaes, associando-se
-progressivamente a systemas cada vez mais vastos. Cada traço de
-caracter resulta da coordenação, segundo dada maneira, de um certo
-numero de tendencias. A avareza, por exemplo, é uma systematisação n’um
-sentido muito determinado d’estas tendencias, que fazem trabalhar para
-ganhar dinheiro, fazendo sacrificios de toda a especie. A personalidade
-póde ser modificada por uma d’estas tendencias, que fazem do agente um
-heroe ou um criminoso, e a sua formação póde ter uma origem hereditaria
-ou adquirida.
-
-A mór parte das qualidades do nosso caracter vem do habito. Ha quem
-diga, por exemplo, que o medico alienista vê facilmente em todo o
-delinquente um louco, impellido pelo habito de lidar com loucos.
-Egualmente se affirma que os juizes habituados a lidar com criminosos,
-estão sempre dispostos a ver em cada accusado um criminoso. De facto o
-juiz adquire na pratica do seu officio um caracter insensivel e duro.
-Desde os legistas dos fins da idade média até ao seculo XVIII, todos os
-tribunaes da Europa adoptaram a tortura como processo de julgamento. O
-juiz, levado por uma simples denuncia, sujeitava o infeliz accusado,
-muitas vezes era um innocente, aos _tratos pela agua_, _pela apoleação_
-ou pelos _borzeguins_. Jámais, como Alexandre Magno, o juiz _guardava
-um ouvido para o accusado_. Debalde o reu no supplicio podia exorar:
-_appello para Philippe em jejum_.
-
-É um aphorismo em psychologia, que a intensidade dos phenomenos
-sensiveis, dolorosos ou agradaveis diminue com o habito, em quanto os
-phenomenos da intelligencia se avigoram e fortalecem.
-
-Escreve o grande jurisconsulto Charles Comte: «... no estado actual dos
-nossos conhecimentos, é impossível determinar as differenças essenciaes
-que existem entre as diversas especies de homens, relativamente ás
-suas faculdades intellectuaes e moraes; um systema que explique todas
-as differenças que se observam entre as nações, por uma differença nas
-faculdades intellectuaes, não é mais conforme á verdade que aquelle
-que explica todos os phenomenos physicos, moraes e intellectuaes pela
-temperatura da atmosphera, se existisse alguma differença em a natureza
-das diversas especies, essas differenças podem ser comparadas por um
-grande numero de circumstancias, de sorte que o povo, que por sua
-natureza fosse menos susceptivel de desenvolvimento, poderia comtudo
-estar mais desenvolvido que aquelle que fosse melhor organisado, mas
-que estivesse collocado em circumstancias mais favoraveis.[103]»
-
-Os crimes que resultam da transgressão de leis positivas das
-sociedades, estão diminuindo constantemente com o progresso
-intellectual, como por exemplo, muitos dos delictos de religião, os
-quaes vão desapparecendo com o incremento do sentimento do tolerancia
-e de respeito pela consciencia individual; igualmente os crimes de
-contrabando, que, com os largos principios economicos da abolição
-das barreiras e sumiço de outros estorvos que impedem a liberdade
-de commercio, tendem a ser considerados n’um futuro mais ou menos
-longinquo actos legitimos. Não succede o mesmo com os crimes que violam
-os principios moraes, como os ataques contra a propriedade, contra as
-pessoas e contra o pudor, os quaes constituem a grande fraqueza moral
-ou estado pathologico da nossa natureza.
-
-O congresso de anthropologia criminal, realisado na epoca da exposição
-em Paris, deixou, por parte dos francezes e dos allemães, habilmente
-ferida a escola anthropologica juridica italiana. O egregio professor
-Cesar Lombroso, que pontifica na universidade de Turim, encontrou na
-_dieta_ anthropologico-criminal de Paris, muitos protestantes que lhe
-demonstraram a phantasia dos mais queridos dogmas da escola penal
-positiva. Benedikt, Manouvrier, Tarde, etc., pozeram bem em evidencia,
-a qual não póde negar-se, que devem existir disposições organicas para
-o crime, como devem existir para o genio, mas o que de modo nenhum póde
-scientificamente affirmar-se, como quer a escola de Lombroso, é que
-essas disposições organicas sejam reveladas por caracteres anatomicos.
-Em todo o decurso d’este nosso trabalho, elaborado antes do congresso
-de Paris, combatemos com sincera convicção esta peregrina escola.
-A doutrina que nós ardentemente temos defendido com referencia ao
-crime:--educação moral, religiosa, intellectual, artistica, physica,
-economica, profissional, acha-se até certo ponto comprehendida na
-interessante communicação sobre _anthropologia juridica e criminal_,
-ultimamente apresentada ao congresso pelo dr. Manouvrier, sob o nome de
-anthropotechnia, isto é, o conjuncto das artes que teem por fim dirigir
-o homem--medicina, hygiene, moral, educação, direito e politica. Com
-este fim é que effectivamente o criminoso deve ser estudado, e sob este
-aspecto é que elle deve ser praticamente combatido.
-
-Cada escola pedagogica ou correccionalista inventa um remedio para
-combater o crime. Para uns é educação moral, para outros religiosa,
-para muitos intellectual e profissional. Quasi todas as theorias são
-exclusivistas. Nós hasteamos humildemente o nosso pendão, affirmando
-que as diversas fórmas educativas não se hostilisam nem se refutam,
-partindo de diversas origens, estabelecem a harmonia e chegam ao mesmo
-fim--a elevação da especie humana.
-
-Pela educação moral adquirimos a noção clara do dever; pela educação
-religiosa elevamo-nos á idéa sublime do perfeito, pela educação
-artistica sentimos penetrar em nossa alma os encantos do bello, pela
-educação intellectual tomamos posse dos dominios da verdade; pela
-educação physica conquistamos o dom precioso da robustez e da saude;
-pela educação economica aprendemos a ser felizes, dispendendo só o
-capital sufficiente e sempre menos do que o que produzimos; pela
-educação profissional preparamos as nossas faculdades para crear o que
-é util no meio social em que vivemos.
-
-A cultura harmonica d’estes multiplices aspectos da vida humana, se
-não conseguir fazer de cada individuo uma actividade equilibrada,
-despertará uma vocação que redima o ser pelas suas fecundas
-manifestações.
-
-Os homens de faculdades especulativas viveriam tranquillos pela
-sciencia, e enlevados pela verdade; os homens de imaginação viveriam
-contentes pela arte e pela litteratura; os homens de acção viveriam
-satisfeitos pelas emprezas guerreiras, especulações industriaes, ou
-intrigas politicas.
-
-A desordem na educação nacional desenfreou a ambição e a cubiça e poz a
-descoberto todas as miserias humanas. Na vida externa lida-se pela sede
-da riqueza, na vida intima trabalha-se pelo repouso egoista.
-
-São tristes os dias que atravessamos, pela indifferença e pelo
-scepticismo, que se apossou da consciencia social. Que valor moral tem
-hoje para muitos o sentimento da abnegação, a elevada crença christã ou
-os principios de justiça, que foram o nó vital dos grandiosos dramas da
-historia? Nenhum, isso é uma ingenuidade de que os espiritos enervados
-e os modernos utilitarios se riem.
-
-Esta descrença, este desprezo pelos grandes principios que outr’ora
-exaltavam as almas, tornou hoje a sociedade egoista, e a imprensa
-propaga diariamente estas ideas, que calam em geral, porque a cubiça
-e o interesse tomou logar soberano entre as consciencias faceis. A
-dolorida reflexão e a anciosa indagação, sobre a vida contemporanea,
-exprimem na alma dos que teem ainda fé n’alguma cousa superior, um
-intenso desconsolo, que só póde encontrar lenitivo no mais candidamente
-humano e divinamente grandioso dos sentimentos--a esperança.
-
-
-NOTAS DE RODAPÉ:
-
-[79] Psychologia T. II pag. 94, Rosmini.
-
-[80] Consiglieri Pedroso, _Revista de Educação e Ensino_, anno II, p.
-39.
-
-[81] _Histoire des sciences et das savants_, pag. 18 e 20, A. de
-Candolle.
-
-[82] Relatorio do ministro sobre a estatistica comparada do ensino
-primario em França, cit. _Dictionnaire Pedagogique_.
-
-[83] L’Homme criminel, pag. 424, Cesar Lombroso.
-
-[84] _Estatistica da administração da justiça criminal_, 1878, 1879 e
-1880.
-
-[85] Jeronymo da Cunha Pimentel, _Relatorio da Penitenciaria_, 1886.
-
-[86] Relatorio ácerca da casa da correcção de Lisboa--pag. 17, 1887.
-
-[87] Dictionnaire pedagogique.
-
-[88] Memoria sobre a administração da justiça criminal--por Silvestre
-Pinheiro Ferreira--pag. 25, 26.
-
-[89] D. Antonio da Costa, _Auroras da Instrucção_, pag. 358.
-
-[90] _Era Nova_ (revista), n.ᵒ 12, 1881, N. A. Correia.
-
-[91] _La philosophie experimentale en Italie._
-
-[92] _Le crime et la folie._
-
-[93] A. Mosso, _La Peur_, ouvr. traduit en français par M. F. Hément,
-et publié chez Alcan, 1886.
-
-[94] Section XIV, p. 261.
-
-[95] _Loc._ cit., p. 264.
-
-[96] Sikorski, _L’Évolution psychique de l’enfant_, Rev. phil., mars
-1885, 3.ᵒ article.
-
- (B. PEREZ--_L’éducation morale_).
-
-
-[97] _L’Emile_, pag. 134.
-
-[98] _L’Éducation populaire_, Alexis Robert, pag. 62.
-
-[99] _Revue Bleue_, du 23 octobre 1886, 2ᵒ article sur _la Peur_, de
-Mosso, pag. 521.
-
-[100] James Sully, _Mind_. avril 1887.
-
-[101] _L’Éducation progressive_, t. I, p. 193.
-
-[102] Fr. Paulhan--_L’Activité mentale et les elements de l’esprit_.
-
-[103] _Traité de legislation_, pag. 448, t. III, Ch. Comte.
-
-
-
-
-INDICE
-
-
- I--Uma these penologica do Congresso Juridico de Lisboa. O
- direito criminal italiano na escola anthropologica. A taxonomia
- em psychologia morbida e em anthropologia criminal.
- A divisão pedagogica da sciencia penal. 5
-
- II--A liberdade moral e o determinismo. A ethica. Os criminosos
- segundo os trabalhos recentes. 25
-
- III--A base do direito de punir. O papel da psychopathia na
- responsabilidade legal. O fanatismo, a suggestão hypnotica
- e a pena capital. A influencia legitima da consciencia moral
- em direito penal. 57
-
- IV--A existencia congenita do sentimento religioso. A utilidade
- da sua acção disciplinadora. Vantagens d’este elemento
- na educação correccional. A opinião dos criminalistas italianos
- e d’um notavel principe da Egreja. 99
-
- V--Educação e criminalidade. Relação entre o elemento moral
- e o elemento intellectual. O progresso. Buckle, Spencer e
- F. Bouillier. Perigos da instrucção sem educação moral ou
- religiosa. A cultura intellectual é um instrumento, que não
- fórma directamente o caracter. Necessidade de fortificar o
- espirito pela recta direcção do sentimento moral e dos principios
- do dever. O criminalista G. Tarde e a educação litteraria
- e esthetica. 117
-
- VI--Os effeitos da acção educativa. A hereditariedade, o meio;
- Garofalo. O gosto pelo adorno é na mulher como sustenta B.
- Perez uma manifestação esthetica e nunca uma approximação
- do typo criminoso. A arte e a moral. Educação physica,
- a escola e a doença. 139
-
- VII--Os ensinamentos e o crime. A idéa da responsabilidade
- criminal na historia. O alcool perante a hygiene physica e
- moral. O suicidio. Observações psychologicas em condemnados
- á morte. A estatistica criminal portugueza. A educação
- como elemento psychogenico e correccional. 167
-
-
-
-
-ERRATAS
-
-
- Na pag. 58, linha 11, onde se lê--em--deve lêr-se--um.
-
- » » 69, linha 34, » » »--envenenados--deve
- lêr-se--envenenadores.
-
- Na pag. 103, linha 2, onde se lê--indistinctivel--deve
- lêr-se--indestructivel.
-
- Mais alguns se encontram, faceis de corrigir e que julgamos
- desnecessario emendar.
-
-
-
-
-Notas
-
-As erratas do livro original foram corrigidos.
-
-Os problemas com a pontuação e a ortografia foram corrigidos.
-
-*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ESTUDOS SOBRE CRIMINALIDADE E
-EDUCAÇÃO ***
-
-Updated editions will replace the previous one--the old editions will
-be renamed.
-
-Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright
-law means that no one owns a United States copyright in these works,
-so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the
-United States without permission and without paying copyright
-royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part
-of this license, apply to copying and distributing Project
-Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm
-concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark,
-and may not be used if you charge for an eBook, except by following
-the terms of the trademark license, including paying royalties for use
-of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for
-copies of this eBook, complying with the trademark license is very
-easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation
-of derivative works, reports, performances and research. Project
-Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away--you may
-do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected
-by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark
-license, especially commercial redistribution.
-
-START: FULL LICENSE
-
-THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
-PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK
-
-To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
-distribution of electronic works, by using or distributing this work
-(or any other work associated in any way with the phrase "Project
-Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full
-Project Gutenberg-tm License available with this file or online at
-www.gutenberg.org/license.
-
-Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project
-Gutenberg-tm electronic works
-
-1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
-electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
-and accept all the terms of this license and intellectual property
-(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all
-the terms of this agreement, you must cease using and return or
-destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your
-possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a
-Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound
-by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the
-person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph
-1.E.8.
-
-1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be
-used on or associated in any way with an electronic work by people who
-agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
-things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
-even without complying with the full terms of this agreement. See
-paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
-Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this
-agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm
-electronic works. See paragraph 1.E below.
-
-1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the
-Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection
-of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual
-works in the collection are in the public domain in the United
-States. If an individual work is unprotected by copyright law in the
-United States and you are located in the United States, we do not
-claim a right to prevent you from copying, distributing, performing,
-displaying or creating derivative works based on the work as long as
-all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope
-that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting
-free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm
-works in compliance with the terms of this agreement for keeping the
-Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily
-comply with the terms of this agreement by keeping this work in the
-same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when
-you share it without charge with others.
-
-1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern
-what you can do with this work. Copyright laws in most countries are
-in a constant state of change. If you are outside the United States,
-check the laws of your country in addition to the terms of this
-agreement before downloading, copying, displaying, performing,
-distributing or creating derivative works based on this work or any
-other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no
-representations concerning the copyright status of any work in any
-country other than the United States.
-
-1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
-
-1.E.1. The following sentence, with active links to, or other
-immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear
-prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work
-on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the
-phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed,
-performed, viewed, copied or distributed:
-
- This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
- most other parts of the world at no cost and with almost no
- restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it
- under the terms of the Project Gutenberg License included with this
- eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the
- United States, you will have to check the laws of the country where
- you are located before using this eBook.
-
-1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is
-derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not
-contain a notice indicating that it is posted with permission of the
-copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in
-the United States without paying any fees or charges. If you are
-redistributing or providing access to a work with the phrase "Project
-Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply
-either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or
-obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm
-trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9.
-
-1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
-with the permission of the copyright holder, your use and distribution
-must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any
-additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms
-will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works
-posted with the permission of the copyright holder found at the
-beginning of this work.
-
-1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
-License terms from this work, or any files containing a part of this
-work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.
-
-1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
-electronic work, or any part of this electronic work, without
-prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
-active links or immediate access to the full terms of the Project
-Gutenberg-tm License.
-
-1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
-compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including
-any word processing or hypertext form. However, if you provide access
-to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format
-other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official
-version posted on the official Project Gutenberg-tm website
-(www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense
-to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means
-of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain
-Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the
-full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1.
-
-1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
-performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
-unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
-
-1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
-access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works
-provided that:
-
-* You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
- the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
- you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed
- to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has
- agreed to donate royalties under this paragraph to the Project
- Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid
- within 60 days following each date on which you prepare (or are
- legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty
- payments should be clearly marked as such and sent to the Project
- Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in
- Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg
- Literary Archive Foundation."
-
-* You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
- you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
- does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
- License. You must require such a user to return or destroy all
- copies of the works possessed in a physical medium and discontinue
- all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm
- works.
-
-* You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of
- any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
- electronic work is discovered and reported to you within 90 days of
- receipt of the work.
-
-* You comply with all other terms of this agreement for free
- distribution of Project Gutenberg-tm works.
-
-1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project
-Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than
-are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing
-from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of
-the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set
-forth in Section 3 below.
-
-1.F.
-
-1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
-effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
-works not protected by U.S. copyright law in creating the Project
-Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm
-electronic works, and the medium on which they may be stored, may
-contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate
-or corrupt data, transcription errors, a copyright or other
-intellectual property infringement, a defective or damaged disk or
-other medium, a computer virus, or computer codes that damage or
-cannot be read by your equipment.
-
-1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
-of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
-Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
-Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
-Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
-liability to you for damages, costs and expenses, including legal
-fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
-LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
-PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
-TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
-LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
-INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
-DAMAGE.
-
-1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
-defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
-receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
-written explanation to the person you received the work from. If you
-received the work on a physical medium, you must return the medium
-with your written explanation. The person or entity that provided you
-with the defective work may elect to provide a replacement copy in
-lieu of a refund. If you received the work electronically, the person
-or entity providing it to you may choose to give you a second
-opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If
-the second copy is also defective, you may demand a refund in writing
-without further opportunities to fix the problem.
-
-1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
-in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO
-OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT
-LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
-
-1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
-warranties or the exclusion or limitation of certain types of
-damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement
-violates the law of the state applicable to this agreement, the
-agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or
-limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or
-unenforceability of any provision of this agreement shall not void the
-remaining provisions.
-
-1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
-trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
-providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in
-accordance with this agreement, and any volunteers associated with the
-production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm
-electronic works, harmless from all liability, costs and expenses,
-including legal fees, that arise directly or indirectly from any of
-the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this
-or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or
-additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any
-Defect you cause.
-
-Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
-
-Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
-electronic works in formats readable by the widest variety of
-computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
-exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
-from people in all walks of life.
-
-Volunteers and financial support to provide volunteers with the
-assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
-goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
-remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
-Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
-and permanent future for Project Gutenberg-tm and future
-generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
-Sections 3 and 4 and the Foundation information page at
-www.gutenberg.org
-
-Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation
-
-The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit
-501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
-state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
-Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
-number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
-U.S. federal laws and your state's laws.
-
-The Foundation's business office is located at 809 North 1500 West,
-Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
-to date contact information can be found at the Foundation's website
-and official page at www.gutenberg.org/contact
-
-Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
-Literary Archive Foundation
-
-Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without
-widespread public support and donations to carry out its mission of
-increasing the number of public domain and licensed works that can be
-freely distributed in machine-readable form accessible by the widest
-array of equipment including outdated equipment. Many small donations
-($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
-status with the IRS.
-
-The Foundation is committed to complying with the laws regulating
-charities and charitable donations in all 50 states of the United
-States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
-considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
-with these requirements. We do not solicit donations in locations
-where we have not received written confirmation of compliance. To SEND
-DONATIONS or determine the status of compliance for any particular
-state visit www.gutenberg.org/donate
-
-While we cannot and do not solicit contributions from states where we
-have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
-against accepting unsolicited donations from donors in such states who
-approach us with offers to donate.
-
-International donations are gratefully accepted, but we cannot make
-any statements concerning tax treatment of donations received from
-outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
-
-Please check the Project Gutenberg web pages for current donation
-methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
-ways including checks, online payments and credit card donations. To
-donate, please visit: www.gutenberg.org/donate
-
-Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works
-
-Professor Michael S. Hart was the originator of the Project
-Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be
-freely shared with anyone. For forty years, he produced and
-distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of
-volunteer support.
-
-Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
-editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in
-the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not
-necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper
-edition.
-
-Most people start at our website which has the main PG search
-facility: www.gutenberg.org
-
-This website includes information about Project Gutenberg-tm,
-including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
-subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
diff --git a/old/68751-0.zip b/old/68751-0.zip
deleted file mode 100644
index 16bb1f2..0000000
--- a/old/68751-0.zip
+++ /dev/null
Binary files differ
diff --git a/old/68751-h.zip b/old/68751-h.zip
deleted file mode 100644
index 2a5c3ee..0000000
--- a/old/68751-h.zip
+++ /dev/null
Binary files differ
diff --git a/old/68751-h/68751-h.htm b/old/68751-h/68751-h.htm
deleted file mode 100644
index 83cb30d..0000000
--- a/old/68751-h/68751-h.htm
+++ /dev/null
@@ -1,9396 +0,0 @@
-<!DOCTYPE html>
-<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml" xml:lang="pt" lang="pt">
-<head>
- <meta charset="UTF-8" />
- <title>
- Estudos sobre criminalidade e educação, by Ferreira-Deusdado—A Project Gutenberg eBook
- </title>
- <link rel="icon" href="images/cover.jpg" type="image/x-cover" />
- <style> /* <![CDATA[ */
-
-body {
- margin-left: 10%;
- margin-right: 10%;
-}
-
- h1,h2,h3,h4,h5,h6 {
- text-align: center; /* all headings centered */
- clear: both;
-}
-
-p {
- margin-top: .51em;
- text-align: justify;
- margin-bottom: .49em;
- text-indent: 1em;
-}
-
-.p2 {margin-top: 2em;}
-.p4 {margin-top: 4em;}
-
-hr {
- width: 33%;
- margin-top: 2em;
- margin-bottom: 2em;
- margin-left: 33.5%;
- margin-right: 33.5%;
- clear: both;
-}
-
-hr.tb {width: 45%; margin-left: 27.5%; margin-right: 27.5%;}
-hr.chap {width: 65%; margin-left: 17.5%; margin-right: 17.5%;}
-@media print { hr.chap {display: none; visibility: hidden;} }
-
-hr.r5 {width: 5%; margin-top: 1em; margin-bottom: 1em; margin-left: 47.5%; margin-right: 47.5%;}
-
-div.chapter {page-break-before: always;}
-h2.nobreak {page-break-before: avoid;}
-
-table {
- margin-left: auto;
- margin-right: auto;
-}
-table.autotable { border-collapse: collapse; width: 75%;}
-table.autotable td,
-table.autotable th { padding: 4px; }
-.x-ebookmaker table {width: 95%;}
-
-.tdl {text-align: left;}
-.tdr {text-align: right;}
-.tdc {text-align: center;}
-.page {width: 3em;}
-.tt {vertical-align: top;}
-
-.pagenum { /* uncomment the next line for invisible page numbers */
- /* visibility: hidden; */
- position: absolute;
- left: 92%;
- font-size: smaller;
- text-align: right;
- font-style: normal;
- font-weight: normal;
- font-variant: normal;
- text-indent: 0;
-}
-
-.blockquot {
- margin-left: 5%;
- margin-right: 5%;
-}
-.section {
- margin-left: 5%;
- margin-right: 5%;
- font-weight: bold;
-}
-
-.bb {border-bottom: 2px solid;}
-
-.bl {border-left: 2px solid;}
-
-.bt {border-top: 2px solid;}
-
-.br {border-right: 2px solid;}
-
-.bbox {border: 2px solid;}
-
-.center {text-align: center; text-indent: 0em;}
-
-.right {text-align: right; text-indent: 0em;}
-
-.smcap {font-variant: small-caps;}
-
-/* Footnotes */
-.footnotes {border: 1px dashed; margin-top: 1em;}
-
-.footnote {margin-left: 10%; margin-right: 10%; font-size: 0.9em;}
-
-.footnote .label {position: absolute; right: 84%; text-align: right;}
-
-.fnanchor {
- vertical-align: super;
- font-size: .8em;
- text-decoration:
- none;
-}
-
-/* Poetry */
-.poetry {text-align: left; margin-left: 5%; margin-right: 5%; text-indent: 0em;}
-/* uncomment the next line for centered poetry in browsers */
-/* .poetry {display: inline-block;} */
-/* large inline blocks don't split well on paged devices */
-@media print { .poetry {display: block;} }
-.x-ebookmaker .poetry {display: block;}
-
-/* Transcriber's notes */
-.transnote {background-color: #E6E6FA;
- color: black;
- font-size:smaller;
- padding:0.5em;
- margin-bottom:5em;
- font-family:sans-serif, serif; }
-
-.big {font-size: 1.2em;}
-.small {font-size: 0.8em;}
-
-abbr[title] {
- text-decoration: none;
-}
-
- /* ]]> */ </style>
-</head>
-<body>
-<div lang='en' xml:lang='en'>
-<p style='text-align:center; font-size:1.2em; font-weight:bold'>The Project Gutenberg eBook of <span lang='pt' xml:lang='pt'>Estudos sobre criminalidade e educação</span>, by Manuel António Ferreira Deusdado</p>
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
-most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
-of the Project Gutenberg License included with this eBook or online
-at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. If you
-are not located in the United States, you will have to check the laws of the
-country where you are located before using this eBook.
-</div>
-</div>
-
-<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Title: <span lang='pt' xml:lang='pt'>Estudos sobre criminalidade e educação</span></p>
-<p style='display:block; margin-left:2em; text-indent:0; margin-top:0; margin-bottom:1em;'><span lang='pt' xml:lang='pt'>philosophia e anthropagogia</span></p>
-<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Author: Manuel António Ferreira Deusdado</p>
-<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Release Date: August 14, 2022 [eBook #68751]</p>
-<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Language: Portuguese</p>
- <p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em; text-align:left'>Produced by: Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)</p>
-<div style='margin-top:2em; margin-bottom:4em'>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>ESTUDOS SOBRE CRIMINALIDADE E EDUCAÇÃO</span> ***</div>
-<p><span class="pagenum" id="Page_1">[Pg 1]</span></p>
-
-
-
-
-
-
-<h1>ESTUDOS<br /><span class="small">SOBRE</span><br /><span class="big">CRIMINALIDADE E EDUCAÇÃO</span></h1>
-
-<p class="center">(PHILOSOPHIA E ANTHROPAGOGIA)</p>
-
-<p class="center small">POR</p>
-
-<p class="center big">FERREIRA-DEUSDADO</p>
-
-<p class="center">Director da Revista de Educação e Ensino, antigo membro do Conselho Superior de Instrucção Publica</p>
-
-<p class="center p4">Jus est ars boni et aequi.</p>
-<p class="right">CELSO.</p>
-
-<p class="center p2"> Usa dizer-se que no mundo dos sentimentos os contrahidos na escola são os mais firmes e duradoiros, a proposição ainda ficará perfeitamente exacta, se incluir as idéas que ali se aprendem; nenhumas outras teem predominio tão grande nem falam ao espirito acompanhadas de tanta saudade.</p>
-
-<p class="right">JAYME MONIZ.</p>
-
-<p class="center p4"><span class="big">LISBOA</span><br />
-IMPRENSA DE LUCAS EVANGELISTA TORRES<br />
-<span class="small">Rua do Diario de Noticias, 93</span></p>
-<hr class="r5" />
-<p><span class="pagenum" id="Page_3">[Pg 3]</span></p>
-<p class="center">1889</p>
-
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-
-<p class="center">AO MERITISSIMO JUIZ DE DIREITO</p>
-
-<p class="center">O Ill.ᵐᵒ Ex.ᵐᵒ Sr.</p>
-
-<p class="center big p2"><span class="smcap">CONSELHEIRO Dr. EDUARDO JOSÉ COELHO</span></p>
-
-<p class="center p2">UMA DAS GLORIAS MAIS BRILHANTES E MAIS AUSTERAS DA MAGISTRATURA PORTUGUEZA</p>
-
-<p class="center big">DEDICA</p>
-
-<p class="center p2 small">ESTE MODESTO TRABALHO COMO TESTEMUNHO DE SUBIDA CONSIDERAÇÃO, ANTIGA AMISADE E INDELEVEL RECONHECIMENTO</p>
-</div>
-<p><span class="pagenum" id="Page_5">[Pg 5]</span></p>
-
-
-<p class="right p4"><i>Manuel Antonio Ferreira-Deusdado</i></p>
-
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<h2 class="nobreak" id="I">I</h2>
-</div>
-
-<div class="section">
-
-<p>Uma these penologica do Congresso Juridico de Lisboa. O direito
-criminal italiano na escola anthropologica. A taxonomia em psychologia
-morbida e em anthropologia criminal. A divisão pedagogica da sciencia
-penal</p>
-</div>
-
-
-<p>Em sessão de 1 de maio de 1889 no congresso juridico discutiu-se a
-these n.ᵒ 19 que é do theor seguinte:</p>
-
-<p>«Em que sentido é urgente reformar os codigos penaes, na parte
-relativa ás condições da responsabilidade criminal do agente do facto
-incriminado e aos effeitos das circumstancias dirimentes, para que a
-doutrina da lei fique de accordo com as affirmações da psychologia
-contemporanea, da anthropologia criminal e da pathologia alienista, e
-satisfaça ás necessidades de possivel segurança contra o crime?»</p>
-
-<p>É este assumpto profundamente complexo e deveras importante, porque
-n’elle se encerra uma das questões mais debatidas e mais melindrosas
-da psychologia humana. A these da responsabilidade é d’altissimo
-valor ethico e social, porque importa o fundamento da moral e a base
-do direito de punir. Todos os codigos penaes das nações civilisadas
-assentam no principio da responsabilidade moral, incluindo o
-proprio codigo italiano, no qual já influiram assás os trabalhos de
-anthropologia criminal e de psychologia morbida. Os<span class="pagenum" id="Page_6">[Pg 6]</span> exageros d’esta
-escola juridica, chamada anthropologica, são subversivos da ordem
-social e attentatorios para a dignidade humana. Os seus principios
-geraes quanto a irresponsabilidade não são novos; appareceram
-na infancia da philosophia, envoltos de mistura com os systemas
-theologicamente fatalistas, mas por fortuna nunca tiveram senão
-um caracter theorico. O determinismo contemporaneo traz as mesmas
-consequencias moraes e sociaes do fatalismo, mas ostenta uma fórma
-de demonstração mais apparatosa e modernamente ornada com trajos
-scientificos. A geração nova, durante as discussões do congresso,
-mostrou-se determinista, porém as conclusões do parecer da secção penal
-acceitam a responsabilidade, como se deduz do trecho seguinte:</p>
-
-<p>«As leis penaes devem attender, não só aos criminosos completamente
-loucos, mas tambem áquelles, que, sem terem as faculdades intellectuaes
-perfeitamente regulares, tambem não podem dizer-se completamente
-irresponsaveis.</p>
-
-<p>Os criminosos completamente irresponsaveis pelo facto que practicaram,
-e cuja liberdade é perigosa para a sociedade devem ser para sempre
-recolhidos em um hospital ou asylo expressamente fundado para elles,
-sem as formalidades do julgamento; mas depois de verificada a sua
-irresponsabilidade por meio de peritos, e de ser ouvido o representante
-do ministerio publico e a defeza, por despacho do juiz, do qual deve
-caber sempre recurso para os tribunaes superiores.</p>
-
-<p>Os criminosos não completamente loucos, e portanto com mais ou menos
-responsabilidade pelo crime que commetteram, deverão, depois tambem
-de examinados pelos respectivos peritos, ser julgados e condemnados a
-reclusão no asylo indicado por tanto tempo quanto deveria durar a pena
-que lhes caberia, caso gozassem d’um funccionamento perfeito das suas
-faculdades mentaes.»</p>
-
-<p>Nem todos os membros do congresso acharam este parecer satisfactorio,
-o que motivou divergencias no seio da secção e depois na assembléa
-plenaria. Um grupo de congressistas apresentou uma proposta tendente a
-serem substituidas pelas seguintes, as conclusões do relatorio sobre a
-these 19.ᵃ:</p>
-
-<p>«1.ᵃ É urgente reformar os codigos penaes, prescrevendo-se n’elles
-que o delinquente affectado de doença mental, que por um processo
-especial fôr julgado irresponsavel, mas perigoso, seja recolhido n’um
-estabelecimento adequado por<span class="pagenum" id="Page_7">[Pg 7]</span> tempo indefinido, conforme a natureza
-da sua affecção, não podendo d’elle sair sem precedencia d’um novo
-processo, em que intervenham as mesmas entidades e pelo mesmo modo que
-no da reclusão.</p>
-
-<p>2.ᵃ Para que o processo, a que deve ser submettido o delinquente
-affectado ou suspeito de doença mental, offereça todas as garantias,
-devem n’elle interferir, além dos juizes e representantes do ministerio
-publico, peritos alienistas e os interessados pelo lado do delinquente
-e da parte offendida, quando esta não possa; devendo a resolução ser
-confirmada pelos tribunaes da 2.ᵃ instancia, podendo ainda levar
-recurso para os tribunaes de revisão.</p>
-
-<p>3.ᵃ É indispensavel organizar convenientemente o serviço medico legal e
-crear juizes instructores do processo.</p>
-
-<p>(Assignados) Jeronymo da Cunha Pimentel, Cesar Silio y Cortés, Antonio
-Azevedo Castello Branco, João Jacintho Tavares de Medeiros, Caldazo
-Monzano.</p>
-
-<p>Tem o voto dos srs. Alberto de Sousa Larcher, João A. Sousa Queiroz, A.
-Arthur de Carvalho.»</p>
-
-<p>Houve quem sustentasse integralmente os principios classicos do direito
-de punir, baseado sómente no livre arbitrio, não admittindo por tanto a
-existencia de criminosos loucos nem distincção entre criminosos loucos
-e criminosos meio loucos.</p>
-
-<p>Estes congressistas foram os srs. Pinto Coelho, Xavier Cordeiro, Torres
-Campos, e dr. Avelino Calixto.</p>
-
-<p>O sr. Pinto Coelho formulou com grande nitidez o argumento: ou o
-accusado é responsavel pelo acto que commetteu e n’essa hypothese
-é um criminoso que a justiça precisa punir, ou é irresponsavel, é
-louco, e então temos uma questão exclusivamente da alçada do direito
-civil, que não compete ao direito penal porque não existe crime. O sr.
-Pinto Coelho acceita as conclusões do parecer da commissão, todavia
-não como principio novo, visto que de ha muito esse principio figura
-na legislação do nosso paiz. Não crê que em sciencia juridica haja
-revoluções, mas evoluções.</p>
-
-<p>Os srs. Antonio Azevedo Castello Branco, Jeronymo Pimentel, Osorio
-Sarmento, Taladriz, combateram a existencia do livre arbitrio e
-propugnaram o determinismo com os argumentos tirados da Escola
-anthropologica, e negam como principio geral a responsabilidade do
-delinquente. Parece que a sua doutrina consiste em estudar o crime pelo
-que<span class="pagenum" id="Page_8">[Pg 8]</span> elle significa, como offensa á sociedade, e graduar a applicação
-das penas conforme a gravidade da offensa, visando até a eliminação do
-offensor. Como póde verificar-se em face da historia do direito penal,
-esta theoria não é novissima, é velhissima.</p>
-
-<p>Ao mesmo tempo que parte da jurisprudencia indigena defende tal
-criterio do direito de punir, o que equivale á passagem d’uma esponja
-pelo que ha de mais elevadamente puro na especie humana, contradiz-se
-ingenuamente, protestando contra os ataques dos que professam o
-sentimento da liberdade e defendendo o principio da lei moral e os
-beneficios da acção educativa e correccional.</p>
-
-<p>Os trabalhos de Lombroso, Garofalo, Marro, Navarra, Beltrani Scalia,
-F. Puglia, Maudsley, Ch. Feré, Tarde, Adolphe Prins, as discussões
-sobre o codigo penal italiano como os <i lang="it" xml:lang="it">Studi sull ultimo progetto
-del nuovo codice penale italiano per Innocenzo Fanti; Les Études sur
-le nouveau projet de code penal d’Italie</i>, por Victor Molinier,
-chegaram ás mãos d’alguns juristas estudiosos portuguezes entre os
-quaes se distingue o sr. Antonio Azevedo Castello Branco, que tem feito
-uma infatigavel propaganda da anthropologia criminal italiana, cujos
-primeiros symptomas já se manifestaram no congresso juridico.</p>
-
-<p>Muitos dos jovens bachareis recentemente saidos da nossa faculdade
-juridica crêem a metaphysica um termo insultuoso, um verdadeiro doesto
-philosophico; dizem-se depois da leitura d’um livro de propaganda,
-adeptos calorosos da negação absoluta do livre arbitrio e das outras
-conclusões exageradas da pathologia criminal. A verdadeira causa
-d’esta situação mental nasce da falta de estudo psychologico e da
-carencia de vigorosa disciplina no conhecimento das outras sciencias
-moraes. Inclinam-se pois para a escola avançada, porque lhe dá o tom
-de espiritos modernos e de audazes revolucionarios, assim como por ora
-em philosophia se dizem <i>positivistas comteanos</i>, suppondo essa
-escola ainda uma novidade, quando é um fossil pouco interessante na
-fauna da sua epoca e já sem representantes na nossa fauna dominante.
-A perissologia, com que a adornam, amesquinha-a ainda mais. Póde
-applicar-se-lhe o conceito horaciano: <i lang="la" xml:lang="la">Solve senescentem</i>.</p>
-
-<p>O homem não é um agente moral se não for responsavel pelas suas acções,
-e não é tal se não for susceptivel de obrar ou não obrar conforme a uma
-regra de dever que<span class="pagenum" id="Page_9">[Pg 9]</span> está prescripta na consciencia. A possibilidade
-da moralidade, depende pois da possibilidade da liberdade; porque se
-o homem não é um agente livre, não é o auctor das acções que pratica,
-e não tem conseguintemente responsabilidade, e nem personalidade
-moral<a id="FNanchor_1" href="#Footnote_1" class="fnanchor">[1]</a>. Para demonstrar estes principios não se faz mister recorrer
-á intervenção divina, basta o raciocinio operando sobre os elementos
-fornecidos pela psychologia humana.</p>
-
-<p>O direito é um principio puramente humano, que se deduz da liberdade e
-da sociabilidade, assegurando-lhe ao mesmo tempo o reconhecimento e a
-protecção.</p>
-
-<p>As escolas philosophicas estão ainda longe d’um accordo em quanto á
-determinação do fundamento, sobre o qual repousa o direito de punir.
-Para uns tem origem na utilidade publica, para outros na religião,
-que o considera como uma consequencia do principio de expiação, do
-principio da justiça absoluta que exige a retribuição do mal pelo mal;
-para outros como uma applicação do direito de legitima defeza e até
-como uma fórma da caridade que pede, não o castigo, mas a emenda do
-culpado.<a id="FNanchor_2" href="#Footnote_2" class="fnanchor">[2]</a></p>
-
-<p>Victor Hugo nos <i xml:lang="fr" lang="fr">Miseraveis</i> defende a these de que a sociedade,
-sobretudo, é a responsavel pelos crimes que os seus membros
-commetteram, porque tudo é fructo das instituições e das opiniões, as
-quaes, para nós, representam a ordem social.</p>
-
-<p>Beccaria interrogou o seu espirito sobre o fundamento do direito de
-punir e encontrou a base na <em>utilidade commum</em>, na necessidade
-da <em>conservação social</em>, acompanhando todavia esta affirmação da
-confissão formal de que era mister que o fito desejado fosse conforme
-com as exigencias da lei moral. A verdade é que o direito penal é
-fundado, não sobre a ordem de idéas assignaladas por Beccaria, mas
-sobre a noção superior de justiça applicada pela sociedade, na medida
-do que ella crê necessario para a sua conservação<a id="FNanchor_3" href="#Footnote_3" class="fnanchor">[3]</a>.</p>
-
-<p>Rousseau no <i>Contracto social</i> tambem sustentou que o direito de
-punir saiu do direito de defeza, theoria sustentada por Locke. Todas as
-theorias contemporaneas teem o seu germen na Historia da Philosophia.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_10">[Pg 10]</span></p>
-
-<p>No direito criminal antigo não havia distincção entre a violação das
-prescripções divinas e humanas; punia-se o delicto e o peccado. A idéa
-d’uma offensa contra a divindade fez surgir as primeiras leis penaes;
-a idéa d’uma offensa contra o proximo fez apparecer as segundas, mas
-a idéa d’uma offensa contra o Estado, ou a collecção de cidadãos não
-produziu primeiro um direito criminal. Parece que esta idéa só apparece
-regularmente na Grecia, e em Roma subiu até á exageração.</p>
-
-<p>Hoje o encargo mais difficil no juiz consiste em distinguir até que
-ponto o accusado seja moralmente culpado, visto como as leis modernas
-evitam as definições n’esta materia. Deixam ao jury ou ao julgador o
-cuidado de decidir.<a id="FNanchor_4" href="#Footnote_4" class="fnanchor">[4]</a></p>
-
-<p>A interpretação da idéa de direito e a suavidade ou o rigor da pena
-dependem do desenvolvimento intellectual da sociedade, posto que o
-caracter do principio seja invariavel em todas as condições de tempo e
-de espaço.</p>
-
-<p>Era legitima a pena de morte nos tempos em que a escravidão foi
-considerada como uma instituição de direito geral das nações. Era
-igualmente legitima nos sacrificios humanos praticados nas idades
-sacerdotaes.</p>
-
-<p>A pena, diz Bossuet, está na ordem, porque ella mette na ordem
-aquelles que se desviaram d’ella. De feito a palavra <i>delicto</i>
-vem do verbo latino <i lang="la" xml:lang="la">delinquere</i> «deixar», «abandonar»; o
-delicto etymologicamente é pois um desprezo da regra, ou o que é mais
-expressivo uma falta contra a regra. Os codigos penaes definem delicto
-em geral toda a infracção, seja de que natureza fôr, que caia sob a
-alçada da lei penal.<a id="FNanchor_5" href="#Footnote_5" class="fnanchor">[5]</a> Mas não basta para justificar a intervenção da
-lei penal que a acção commettida apresente os caracteres exteriores
-d’um delicto; é indispensavel que o auctor a tenha commettido em plena
-posse das suas faculdades intellectuaes e moraes. É o que se chama em
-nomenclatura juridica imputabilidade e em ethica responsabilidade;
-sem este predicado o delicto não existe; em vez d’uma acção a punir
-ha uma desgraça a lamentar.<a id="FNanchor_6" href="#Footnote_6" class="fnanchor">[6]</a> É n’estas condições que o criterio da
-defeza social tem o seu papel. O agente do acto é um ser irresponsavel
-e perigoso para a utilidade commum? é isto que resta determinar<span class="pagenum" id="Page_11">[Pg 11]</span> com
-precisão. Demonstrado scientificamente, sem hypotheses vagas, que este
-individuo é um ser nocivo, uma ameaça permanente, cumpre á sociedade o
-direito e o dever de sequestral-o. Todavia ninguem justamente ousará
-chamar-lhe um criminoso, é apenas uma fera.</p>
-
-<p>A escola classica inspira-se nos principios que proclamam a dignidade
-do homem e a responsabilidade do seu destino; reconhece todavia
-muitos principios acceitaveis na escola utilitaria, porque ella no
-seu criterio tem um mesmo dogma—o da necessidade do castigo. N’essa
-ordem de idéas, rejeita, é claro, os exageros dos utilitarios ou
-dos sentimentaes, que declaram todos os delinquentes enfermos e
-irresponsaveis, porque seria fomentar a impunidade, e fomentar a
-impunidade é o mesmo que multiplicar os crimes.</p>
-
-<p>O nosso distincto publicista sr. Oliveira Martins escreve:</p>
-
-<p>«Novos doutrinarios veem affirmar <i lang="la" xml:lang="la">ex cathedra</i>, não só que a
-sociedade não tem o direito de punir, mas que o criminoso é apenas
-um enfermo. Onde está o livre arbitrio? dizem. Não ha vontades
-deliberadas: tudo obedece a um determinismo cego. Um é victima
-do atavismo ou da hereditariedade, outro é victima do desejo,
-outro da allucinação. Em vez de cadeias, hospitaes; em vez de
-forca, hydrotherapia. Evidentemente, tudo é condicionado n’esta
-vida de relação de que nós proprios somos apenas um aspecto; mas
-evidentemente tambem sob pena de um cahos absoluto, a determinação da
-responsabilidade só póde dar-se quando se formule a equação entre o
-acto e o motivo determinante. N’estes termos, e só n’estes termos, a
-questão metaphysica da liberdade póde trazer-se para o foro pratico da
-justiça.</p>
-
-<p>E não ha duvida que o criterio classico está prejudicado. Se a
-medicina de hoje diz que ha doentes e não doenças, tambem a justiça
-deve dizer que ha criminosos e não ha crimes. Os quadros systematicos,
-organisados abstractamente são tão inacceitaveis na nosologia como na
-criminologia. É precisamente o que os juristas reconhecem, dando cada
-vez um papel mais dicisivo ás circumstancias accessorias, attenuantes
-ou aggravantes, e pondo acima do antigo mytho de Themis, cega como tudo
-o que é absoluto, o juizo de facto, em que o jury procede humanamente,
-isto é, inductivamente. Não póde, porém, ver-se n’isto a negação do
-direito de punir—na mais lata accepção da palavra. A sociedade não se
-defende apenas, nem se vinga, como nos tempos barbaros.<span class="pagenum" id="Page_12">[Pg 12]</span> A vingança
-fez-se justiça. Punição traduz-se por protecção. Julgar, proteger e
-castigar—eis a suprema funcção d’este ser abstracto, em cujo seio
-vivemos e fóra do qual nos degradariamos regressando aos primordios
-obscuros da historia. Se a sociedade não póde punir, força é que o
-individuo se defenda e se vingue. E que é isto senão a volta ao talião
-barbaro—exactamente á doutrina que o anarchismo prega e pratica?</p>
-
-<p>Ha, por tanto, acima das doutrinas desvairadas que endoidecem as plebes
-fanatisadas, doutrinas inconsequentes que uma sciencia, incompleta por
-ser fria e secca diariamente prega, e de cujas ultimas conclusões tira
-a allucinação dos energumenos. E é por isso que a instrucção por si só
-não consegue mitigar a criminalidade, embora a civilisação altere a
-proporção e a natureza dos crimes.</p>
-
-<p>Não basta falar á intelligencia analytica, é mister comprehender a
-synthese chamada povo, na sua realidade positiva, nos seus sentimentos
-e nos seus instinctos de justiça; é necessario affirmar de um modo
-categorico a auctoridade social e o direito de punir, para que cada
-qual veja e venere sempre acima de si proprio esse outro ser maior,
-mais nobre, que se chama—todos.»</p>
-
-<p>O criterio do direito classico não se acha prejudicado pelos ataques
-das escolas contemporaneas, porque elle reconhece quando applica
-justiça, como no systema da utilidade publica, acima do individuo
-o respeito por esse outro ser maior, que se chama—todos. A escola
-utilitaria baseando-se no determinismo defende a sociedade, mas elimina
-o sentimento de justiça. Póde aspirar a defender a collectividade,
-mas nunca a intimidar, a corrigir, ou a regenerar o criminoso. A idéa
-do castigo, na escola classica, reclama antes da satisfação dada á
-sociedade, a idéa d’uma satisfação mais pura, dada á justiça. «O
-castigo, diz Kant, deve justificar-se em completo, <em>independentemente
-das suas consequencias</em>, por considerações tiradas do procedimento
-d’aquelle que o soffre. Nada de similhante é possivel desde que não
-existe já a liberdade.</p>
-
-<p>O que succede então? Impellido pela fatalidade, um homem commette um
-assassinio, impellida pela mesma fatalidade, a sociedade prende-o e
-mata-o. Se este homem fosse o mais forte a sua resistencia á sociedade
-era legitima, porque o mesmo motivo que armou a sociedade contra elle,
-a necessidade de defender-se, justificava a sua rebellião.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_13">[Pg 13]</span></p>
-
-<p>Das duas partes o direito era egual, a justiça egual. O seu unico
-prejuizo é ter sido um só contra todos. Na verdade pois não ha no
-determinismo outra justificação possivel para a pena senão esta: «a
-razão do mais forte é sempre a melhor.» Quanto á justiça entre agentes
-moraes subsiste um conflicto brutal de forças fataes, em que o mais
-poderoso esmaga o mais fraco, mas onde não ha direito em nenhum dos
-lados. Se, pelo contrario, se admittir que a sociedade punindo, pratica
-um acto de justiça, se quizermos, como manda Kant, que o criminoso,
-em vez de se rebellar contra o mal que o fere, «confesse elle mesmo
-que mereceu a sua punição, e que a sua sorte se adapta ao seu
-procedimento,» é mister tambem reconhecer a existencia da liberdade.<a id="FNanchor_7" href="#Footnote_7" class="fnanchor">[7]</a></p>
-
-<p>Nos homens extremamente inveterados no vicio, a consciencia depois
-de cançada de ultrages e de desprezos, cala-se e o sentimento moral
-desapparece. O remorso extingue-se como a dôr prolongada, a liberdade
-subsiste ainda, mas quasi inactiva, como a faculdade visual quando
-uma espessa cataracta intercepta os raios luminosos que outr’ora
-atravessavam os olhos. Este criminoso, se não é já livre em tal
-estado, foi-o quando iniciou a escura senda do crime, porque todo o
-acto psychologico antes de se tornar habitual foi voluntario. Esta
-circumstancia justifica o cabimento da punição. Não succede o mesmo se
-o delinquente é instinctivo, se a tendencia para o mal é congenita,
-porque n’este caso o crime não existe. Este monstro está para o senso
-moral como o cego e o surdo de nascimento estão para a luz e para
-o som. Não ha pharol educativo que lhe illumine a intelligencia,
-nem penitenciarias que lhe regenerem o coração adormecido. A
-difficuldade está na demonstração evidente da existencia d’este <i lang="la" xml:lang="la">homo
-criminalis</i>.</p>
-
-<p>Ha duas theses sobrepostas e contradictorias no <i lang="la" xml:lang="la">Homem
-delinquente</i> de Lombroso. A primeira usada no começo dos seus
-estudos—a do criminoso aproximado do selvagem primitivo, do crime
-explicado pelo atavismo e pela hereditariedade; e a segunda, que na
-ultima edição do livro coexiste com a primeira,—a do crime-loucura.
-Ellas alternam-se na obra e pretendem reciprocamente auxiliar-se. A
-contradicção todavia é obvia como lh’o demonstra Tarde e H. Joly. A
-loucura é um producto da civilisação, rara nas classes indoutas<span class="pagenum" id="Page_14">[Pg 14]</span> e
-quasi desconhecida entre os selvagens. Portanto, se o criminoso é um
-selvagem não póde ser um louco, do mesmo modo se é um louco não póde
-ser um selvagem. Das duas theorias é preciso optar por uma, a primeira
-é mais seductora, mais intelligivel e mais conforme com os principios
-biologicos do transformismo.<a id="FNanchor_8" href="#Footnote_8" class="fnanchor">[8]</a> Não póde negar-se o merito e o notavel
-valor dos estudos da escola anthropologica italiana, que elles proprios
-denominam <i lang="it" xml:lang="it">escola penal positiva</i>, especialmente no que diz
-respeito ás origens do crime, aos caracteres do criminoso reincidente e
-ás origens hereditarias. Estuda o delinquente como o zoologo estuda um
-animal e este methodo de naturalista tem sido applicado com vantagem,
-na taxonomia de Ferri, aos delinquentes da 1.ͣ categoria e aos da 4.ᵃ,
-isto é aos criminosos natos e aos alienados.</p>
-
-<p>O alvo a que mira, nas reformas juridicas, a escola penal positiva
-é substituir pela responsabilidade moral a responsabilidade social,
-fundada sobre a utilidade geral. Ora as duas não formam senão uma,
-porque a responsabilidade chamada social, prescripta nos codigos,
-está comprehendida nos preceitos da moral. A ordem moral, como diz
-Innamorati, excede mas abrange a ordem social, como um pequeno circulo
-n’um circulo maior.</p>
-
-<p>O verdadeiro direito de punir não deve preoccupar-se com a excitação
-publica, nem com a opinião: julga o criminoso em relação ao delicto
-e á ordem moral e dispensa as outras considerações extranhas. Émile
-Beaussire, no seu ultimo livro <i xml:lang="fr" lang="fr">Principes du droit</i>, aventa uma
-concepção original e funda o direito de punir sobre o <em>dever de ser
-punido</em>. É acção do moralista em toda a sua integridade.</p>
-
-<p>Topinard, n’um celebre artigo da <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue d’Anthropologie</i>, combateu
-a hypothese de Lombroso do <i>crime atavismo</i>, assim como a do
-<i>crime loucura</i>, defendendo com valiosos argumentos a hypothese
-do criminoso considerado <em>profissional</em>. Feré não admitte os
-typos profissionaes e combate com dialectica vigorosa a explicação
-atavica do delicto, mas admitte a explicação pathologica; sem todavia
-se ligar á escola d’alem dos Alpes, filia-se na escola psychopathica de
-Morel. A criminalidade nativa é para elle uma fórma da degenerescencia
-inferior, porque nunca se associa ao genio. Como se vê a<span class="pagenum" id="Page_15">[Pg 15]</span> criminologia
-revolucionaria está ainda no periodo hypothetico da sua constituição
-como sciencia.</p>
-
-<p>A velha affirmação de que o crime e a loucura são irmãos gemeos, tem
-sido batida em brecha até ao ultimo reducto. Os loucos são seres
-isolados, que vivem n’um mundo á parte. As suas concepções não teem
-convivio com as concepções dos outros. É um ser accentuadamente
-individual, que vive a vida interior do seu delirio.</p>
-
-<p>Os alienados, diz o dr. A. S. Taylor, não teem nunca cumplices nos
-actos que commettem, em quanto que o criminoso é um ser sociavel
-que se concerta com os outros, fazendo do latrocinio uma profissão.
-As associações de malfeitores apparecem e multiplicam-se por
-toda a parte. Nos actos do criminoso existe sempre no crime o
-encadeamento das causas moraes, em quanto que no louco ha soluções
-de continuidade inconscientes. Nenhuma pessoa familiarisada
-com os estudos da psychologia morbida confunde nas suas fórmas
-geraes os actos do delinquente com os actos dos epilepticos, dos
-dipsomaniacos, kleptomaniacos, dos pyromaniacos e de outras fórmas
-nosologico-mentaes. Se todos os criminosos fossem natos ou alienados,
-isto é, irresponsaveis segundo a classificação de Ferri, o mais
-suave e humanitario direito repressivo seria a eliminação; mas as
-penitenciarias aspiram á correcção e á morigeração dos delinquentes,
-o que implica a crença na liberdade quanto á maioria dos delictos. Em
-nenhum caso todavia o nosso espirito admitte a pena de morte, só por um
-motivo—é uma pena irreparavel.</p>
-
-<p>Ha individuos que na pratica do crime, ou sejam instinctivos ou
-loucos, são destituidos por uma anomalia psychologica do sentimento
-ethico-juridico. Ninguem com boas razões deixará de acceitar, que
-estes anomalos, posto que extranhos á acção da justiça, devem ser
-sequestrados perpetua ou temporariamente do convivio social porque são
-perigosos para a segurança publica. Proclamar porém em nome de qualquer
-hypothese todo o delinquente irresponsavel é uma phantasia e uma
-iniquidade, que nenhum codigo positivo póde acceitar.</p>
-
-<p>Escreve o publicista a que já nos referimos:</p>
-
-<p>«Perversos são os degenerados: essa legião escura de bandidos que
-acampa no seio das sociedades cultas, como as hordas de zingaros, e em
-que a ferocidade das edades remotas se transmitte por atavismo ou por
-hereditariedade. São esses que Lombroso, o grande naturalista do crime,
-considera<span class="pagenum" id="Page_16">[Pg 16]</span> como restos miseraveis das raças mongoloides, os finnios que
-ficaram esmagados sob os stratos successivos da população aryana da
-Europa. N’essas tribus obscuras, envenenadas por um satanismo organico,
-ha glorias e orgulhos, ha servos e patriarchas, ha dynastias e ha
-heroes. O céo que nós vemos azul, vêem-no elles vermelho de sangue;
-e o calor doirado do sol não lhes excita piedade, senão um borbulhar
-ferino de instinctos bestiaes. De homens teem apenas o aspecto.
-Barbaros, mas barbaros abastardados no meio da civilisação, perderam
-a nobreza ingenita da vida natural. São os auctores dos attentados
-medonhos: os parricidios (tão vulgares nas edades primitivas) os
-morticinios de familias inteiras, como na tragedia de Mattos Lobo, o
-assassinato a frio, como em Diogo Alves que encheu de pavores a nossa
-infancia, o decepamento dos cadaveres, com os braços tintos em sangue
-os olhos esgazeados, a face imberbe; a fronte achatada e na bocca um
-<i lang="la" xml:lang="la">rictus</i> demoniaco.</p>
-
-<p>O exterminio é o unico recurso contra essa casta em que os instinctos
-humanos, não podendo envolver, apodreceram. São féras; e se a
-hereditariedade é, como os especialistas affirmam, um facto comprovado,
-a morte é tambem sem duvida o processo mais humanitario.</p>
-
-<p>Mas esta cathegoria de criminosos, qualquer que seja a sua origem e o
-seu recrutamento, não é decerto exclusiva, nem talvez predominante.
-O grosso exercito do crime compõe-se das victimas do desejo. São os
-que na ladeira escorregadia da existencia claudicaram uma vez para
-se não levantar mais. É a gente faminta que diariamente accorda sem
-saber a que mesa se sentar; a gente miseravel tiritando com frio nas
-longas noites do inverno; são os incontinentes que o espectaculo do
-bem-estar azeda; são os revoltados que no seu vicio encontram sancção
-á ociosidade; são as mulheres que, sacrificada a pureza no altar de
-alguma illusão afogam os filhos, ou para os sustentar se fazem ladras;
-são todos os simples, desde o desgraçado que rouba um pão para matar
-a fome, até ao velhaco, ladrão por habito, por arte, por vaidade ou
-por capricho; desde o miseravel vestido de andrajos e analphabeto, até
-ao <i>dandy</i> jogador e falsario; desde a meretriz ladra dos beccos
-enlameados, até á que opera nos salões entre lustres e chrystaes. O
-crime egualisa tanto como a morte.</p>
-
-<p>O homem é fraco, a vida é dura, a pobreza cruel e a sociedade<span class="pagenum" id="Page_17">[Pg 17]</span>
-madrasta. A legião dos engeitados que toda a colonia humana expelle de
-si; essa eterna léva de parias com que outr’ora se formavam Romas, eis
-ahi onde se recruta a peonagem do crime. É a espuma cuspida pelas ondas
-agitadas da sociedade.</p>
-
-<p>Todos esses que um dia escorregaram no plano inclinado da vida ao
-inverso, pendem fatalmente para o inferno vermelho onde se agitam as
-feras. Pela ociosidade chega-se ao roubo, pelo roubo ao assassinato.
-Ha outros caminhos, mas esta é a vereda mais trilhada. O homicidio não
-é para elles uma fatalidade organica, nem uma embriaguez de sangue;
-é sempre uma consequencia imposta pelas circumstancias. A esta plebe
-profunda, espessa, fertil, como as alluviões da Terra-Negra, é que a
-sociedade, sob pena de morte, tem de applicar a charrua possante da
-protecção e da caridade, para lhe dar ar, desinçando-a das grammas
-parasitas. É para ahi que todas as instituições salvadoras da infancia,
-todas as instituições protectoras da adolescencia: todo o amparo ás
-mulheres, todo o escrupulo dos tribunaes, se hão de voltar com esse
-mixto de carinho e firmeza, de integridade e amor que são o segredo da
-ordem social. Porque são estes os criminosos regeneraveis.»</p>
-
-<p>É innegavel para estes o influxo salutar da instrucção intellectual e
-moral, do ensino profissional e de todas as instituições beneficas que
-possam melhorar a sua condição.</p>
-
-<p>Os discipulos da escola anthropologica criminal italiana pretendem já
-reformar os codigos penaes quanto ás idéas e quanto á linguagem. Tudo,
-em seu entender, está velho, erroneo e anachronico. É para notar, que
-nem na anthropologia criminal, nem na nosologia mental ha classificação
-rigorosamente scientifica dos delinquentes, nem dos alienados. As que
-existem são provisorias.</p>
-
-<p>Estas sciencias acham-se ainda no campo do recolhimento das
-investigações e da explicação hypothetica. Não se citam dois alienistas
-ou dois anthropologos d’accordo no que ha de mais essencial e de mais
-fundamental. Para haver sciencia é mister que se dê uma organisação
-systematica de conhecimentos, tendo como condição a unidade e a
-harmonia. Emquanto os productos multiplos das investigações e os
-modos de ver dos escriptores, se contradizem, não temos sciencia
-rigorosamente constituida, temos apenas materiaes para uma futura
-synthese.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_18">[Pg 18]</span></p>
-
-<p>Até hoje ainda os alienistas não conseguiram elaborar uma taxonomia
-verdadeiramente scientifica das doenças mentaes. O seu desiderato é
-com a hypothese das localisações cerebraes, baseada na anatomia e na
-psychologia morbida, organisar uma classificação que, para a escola
-materialista, seja a unica scientifica. Ora o estudo funccional e
-somatico do cerebro não contêm conhecimentos completos nem seguros. Das
-funcções intimas cerebraes nada se conhece; mas ainda assim assentam-se
-sobre ellas explicações phantasticas. As formas nosologico-psychicas
-até hoje estabelecidas assentam nas observações symptomatologicas
-e nos dados fornecidos pelas perturbações psychologicas. E d’estas
-adopta cada medico uma differente. Confrontem-se para prova as dos
-medicos allemães, francezes e inglezes. Das classificações francezas
-comparem-se a de Pinel com a de Esquirol, a da commissão nomeada pelo
-congresso de Antuerpia em 1885 com a de Magnan; a de Morel com a de
-Ball. São por ora repartições ou arrumações contradictorias e de modo
-algum classificações scientificas.</p>
-
-<p>Para bem evidenciar a imperfeição d’estas tentativas de classificação,
-basta coteja-las com as classificações chimicas, geologicas, botanicas,
-zoologicas, etc. Em anthropologia criminal não estamos a este respeito
-mais adiantados, como passamos a ver.</p>
-
-<p>Escreve o sr. A. d’Azevedo Castello Branco:<a id="FNanchor_9" href="#Footnote_9" class="fnanchor">[9]</a></p>
-
-<p>«Uma das theses propostas ao 1.ᵒ congresso de anthropologia criminal
-foi a seguinte: Em que cathegorias se devem dividir os delinquentes
-e quaes são os caracteres essenciaes, organicos e psychicos que os
-distinguem? Os egregios anthropologistas Lombroso, Marro e Ferri
-apresentaram os seus relatorios, que, na essencia, são conformes no
-reconhecimento de certas variedades de criminosos. A classificação
-de Ferri, que é a mais desenvolvida, comprehende: 1.ᵒ O delinquente
-nato ou instinctivo, que se distingue pela <em>falta congenita do
-senso moral</em> e pela <em>imprevidencia</em> das consequencias das
-suas acções. Os assassinos e ladrões são os typos mais communs d’esta
-classe. A falta de senso moral denuncia-se pela insensibilidade
-manifestada perante os soffrimentos e os damnos causados ás victimas e
-perante os seus proprios soffrimentos e dos cumplices, e denuncia-se
-tambem<span class="pagenum" id="Page_19">[Pg 19]</span> pelo cynismo ou apathia do criminoso no correr do processo
-e nas Penitenciarias, facto que determina muitos outros symptomas
-psychologicos secundarios, como a nenhuma repugnancia á ideia do
-delicto e falta de remorsos depois de perpetrado. Da imprevidencia
-resultam as manifestações imprudentes anteriores e posteriores ao crime
-e a indifferença pelas penas comminadas na lei.—2.ᵒ O delinquente
-por impeto d’uma paixão social, como o amor, a honra, etc. Este,
-relativamente ao senso moral, apresenta um quadro psychologicamente
-opposto ao do criminoso instinctivo. Revela imprevidencia tambem, esta,
-porém, não nasce de uma falta hereditaria de senso moral, mas sim da
-momentanea anesthesia d’este sentimento.—3.ᵒ O criminoso de occasião,
-que é caracterisado pela <em>debilidade do senso moral</em>; mas este
-pode converter-se no criminoso habitual, isto é, n’um individuo
-que faz do delicto a sua industria, em consequencia da obliteração
-progressiva do senso moral e das circumstancias menos favoraveis á sua
-existencia.—4.ᵒ O criminoso alienado. Anthropologicamente é identico
-ao delinquente-nato, como nos casos de loucura ou imbecilidade moral e
-epilepsia, e n’outros casos differe, não só pela desordem intellectual,
-como por muitos symptomas psychologicos. A <em>precocidade</em> e
-a <em>reincidencia</em> servem para distinguir as tres primeiras
-variedades. O criminoso instinctivo é sempre precoce, e pode, ou não,
-reincidir consoante a duração da pena que se lhe applique. O criminoso
-por habito é frequentemente precoce e reincidente chronico. Todos os
-delinquentes, qualquer que seja o seu typo anthropologico, apresentam
-este caracter psychologico commum:—uma anormal força impulsiva para
-os actos criminosos, que provêm de uma degeneração hereditaria, ou
-de uma condição psycho-pathologica successiva, ou de uma perturbação
-psychica transitoria, mais ou menos violenta. Entre estes varios
-typos não ha uma separação absoluta, e por consequencia existem typos
-intermedios. O congresso acceitou o relatorio de Ferri nas suas
-partes essenciaes, como foi declarado por Benedikt, que apresentára a
-classificação seguinte: 1.ᵒ <i>o delinquente accidental</i>; 2.ᵒ <i>o
-profissional</i>; 3.ᵒ <i>o delinquente por molestia, por intoxicação
-temporaria ou permanente</i>; 4.ᵒ <i>os delinquentes degenerados</i>.
-Esta classificação é substancialmente identica á de Ferri.»<a id="FNanchor_10" href="#Footnote_10" class="fnanchor">[10]</a></p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_20">[Pg 20]</span></p>
-
-<p>No <i>Anomalo, gazzetino antropologico, psychiatrico, Medico-legal</i>
-do dr. Angelo Zuccarelli di Napoli, numero de abril ultimo, vem
-um trecho d’uma lição de A. de Bella, illustre advogado, feita
-em Nicotera no seu curso de Sociologia sobre a classificação dos
-delinquentes de Cesare Lombroso. Pergunta Bella: «Os delinquentes teem
-na sociedade importancia identica, igual, analoga, dissimilhante?
-não, senhores. Diversas são as causas do crime e por isso a sciencia
-indica uma classificação dos criminosos. Pode acceitar-se a seguinte:
-a) delinquentes loucos; b) delinquentes natos, incorregiveis; c)
-delinquentes habituaes; d) delinquentes por paixão; e) delinquentes
-occasionaes». Tal é a norma de dividir os criminosos para a maior parte
-dos anthropologos criminalistas de Italia. A estas porém, prefere
-Bella outra, a qual em seu parecer tem vantagens sobre todas as que a
-sciencia até hoje perfilhou. É a seguinte:</p>
-
-<p>«A atypia e a anomalia são no fundo sempre uma degeneração e por
-isso pode haver delinquentes: a) por degeneração congenita; b) por
-degeneração adquirida; c) por psychonevrose; d) por habito; e) por
-semidegeneração congenita; f) por occasião.</p>
-
-<p>A degeneração congenita é: a) physiologica ou atavica; b) teratologica
-ou atypica; c) pathologica. O atavismo é <em>prehumano ou humano</em>.
-O delinquente por degeneração congenita nada deve ao ambiente, é
-producto exclusivo do organismo. O ambiente influiu sobre o organismo
-dos seus antepassados que lhe communicaram as proprias degenerações,
-mas <em>pessoalmente sobre elle</em> o mundo externo não exerceu nenhuma
-acção, porque o criminoso traz de nascença, impressos em todos os
-orgãos e sobretudo no cerebro os signaes biopathologicos da sua
-triste natureza. Sociologicamente distingue-se dos outros homens pela
-ausencia de senso moral, anthropologicamente não lhe faltam os signaes
-distinctivos. Nem todos os que carecem de senso moral podem dizer-se
-delinquentes. O pae de familia, que consome na taberna o salario do
-seu trabalho, deixando os filhos e a mulher desfallecendo na miseria
-por não poderem satisfazer as primeiras necessidades da vida, não tem
-certamente completo o senso moral, e o juiz que sem o minimo remorso,
-absolva em má fé um reu ou em pessima fé condemne um innocente,
-apresenta com certeza muitas deficiencias no seu <em>senso moral</em>.
-Nem um nem outro podem dizer-se delinquentes, ainda<span class="pagenum" id="Page_21">[Pg 21]</span> que ambos sejam,
-sem duvida, individuos um pouco degenerados e ethicamente maus; nem
-aquelle nem este é juridicamente reu. No entretanto a sua degeneração
-pode muito bem ser adquirida. Quando uma degeneração physiologica é
-assaz manifesta ha em vez d’um delinquente no rigor da palavra um
-enfermo e este pode ser um ladrão ou um incendiario, ou um homem
-inclinado ao sangue e a outros crimes. Esta especie de degeneração pode
-dizer-se tambem atavica, e os que a padecem em parte apresentam um ou
-muitos signaes degenerativos. Se não são completamente curaveis, são
-talvez susceptiveis d’alguma melhora. Porem o verdadeiro delinquente
-nato anda sempre atacado de degeneração teratologica ou atypica. Não
-é um homem mas um monstro e vive em absoluta pobreza de senso moral.
-É incapaz de qualquer melhoramento, e a sua vida ordinaria acaba no
-assassinio ou nos crimes, sem fito, sem nexo, sem attenuantes.</p>
-
-<p>Existe uma terceira especie de degeneração congenita—a pathologica. Os
-epilepticos natos pertencem a esta cathegoria de delinquentes, e podem
-curar-se por meio das suggestões hypnoticas ou com a trepanação do
-craneo, do qual se extrairá um bolbo em que talvez resida a doença.<a id="FNanchor_11" href="#Footnote_11" class="fnanchor">[11]</a>
-Os degenerados por atavismo podem com o tempo vir a ser n’um ambiente
-enfermo, degenerados por atypia, e então tornam-se incapazes tambem de
-regeneração.»</p>
-
-<p>Para que se estabeleça qualquer classificação scientifica, uma
-das funcções indispensaveis do processo synthetico, precisa-se de
-definições claras e divisões perfeitas, tanto das ideas como dos
-termos. Ora a anthropologia criminal ainda está na phase descriptiva
-que é a infancia da sciencia; não tem nomenclatura severa, nem
-definições exactas, nem taxonomia uniformemente acceita, não passa
-por emquanto d’um valioso repositorio de factos para serem depurados
-no crisol da discussão e na arena da critica puramente especulactiva.
-Mas pretenderem já os seus sectarios, arrebatados por conjecturas
-imaginosas e seductoras, trazer estas soluções hypotheticas para
-o campo pratico da reforma completa da administração da justiça,
-parece-nos por ora temeridade. Certamente nenhum homem de estado,
-reflectido e circumspeto, quando se trate da melindrosa e alta
-funcção da justiça social, quererá, por fortuna, assumir a grave
-responsabilidade de substituir o direito<span class="pagenum" id="Page_22">[Pg 22]</span> tradicional, que tem por
-base a responsabilidade juridica do delinquente, pelo criterio da
-vindicta publica, que é um sentimento tão mesquinho, tão ignobil, como
-a vingança ou como o rancor individual nas raças civilisadas ou nas
-tribus selvagens. A justiça social que deve ser a superior encarnação
-da consciencia moral, acaso póde rebaixar-se, para defender a ordem
-juridica, á ignominia d’uma aleivosa vingança em que são todos contra
-um?</p>
-
-<p>É obvio, como já o affirmamos em outra parte, que admittimos o
-criterio da defeza social para os homens perigosos, a quem chamamos
-porem delinquentes e não culpados. Para estes exigimos da sociedade a
-obrigação de trata los com piedade, mas reconhecemos-lhe o direito da
-sequestração, temporaria ou perpectua, segundo a possibilidade da cura
-da affecção psychopatica.</p>
-
-<p>Para os delinquentes communs, para os verdadeiros criminosos que estão
-de posse de suas faculdades mentaes e que constituem a grande maioria,
-não se deve admittir outro criterio senão o da justiça baseado na
-responsabilidade moral.</p>
-
-<p>O principio da responsabilidade moral e penal que tem por unica base
-a crença no livre arbitrio, não pode ser abalado; é dogma nascido na
-consciencia, e consagrado pelo tempo e pela legislação de todos os
-povos civilisados.</p>
-
-<p>O direito criminal moderno não deve, como até hoje, limitar-se nas
-faculdades ao estudo das regras juridicas e á explicação dos artigos do
-codigo. Faz-se mister introduzir no ensino as investigações recentes
-da sciencia criminal e penitenciaria. Segundo Henri Joly a sciencia
-criminal e penitenciaria é para o direito criminal o que a economia
-politica e a sciencia financeira são para o direito civil. Adoptada a
-technologia moderna, a sciencia criminal comprehenderá: a anthropologia
-criminal, a psychologia criminal e a sociologia criminal.</p>
-
-<p>A anthropologia criminal consiste no estudo da organisação physica dos
-malfeitores. A psychologia criminal é o estudo dos desvios mentaes e
-affectivos que precedem o crime ou que o seguem, e que o crime suppõe
-ou attrahe. A sociologia criminal trata das condições de ordem social,
-isto é, das condições industriaes, religiosas, politicas que favorecem
-ou enfraquecem a tendencia para o crime.</p>
-
-<p>Accrescenta Joly que cada uma d’estas subdivisões se soccorre dos
-documentos da estatistica, e que esta, interpretada pela psychologia
-individual, fornece os principaes elementos<span class="pagenum" id="Page_23">[Pg 23]</span> da psychologia social.
-A psychologia social, a que a sciencia criminal se liga por laços os
-mais estreitos, estuda como as paixões humanas se modificam passando da
-vida individual á vida commum e o que ellas devem á acção das causas
-que sobrescitam ou acalmam as necessidades das massas, á influencia das
-polemicas ou propagandas que fazem e desfazem os preconceitos. Para
-attingir tal resultado calcula as principaes variações dos factos que
-interessam á prosperidade, á felicidade e á moralidade das nações. Nota
-sobretudo as relações que estes varios graus teem entre si; procura
-segundo que leis o crime parece augmentar ou diminuir nas diversas
-condições em cujo meio se desinvolve a individualidade humana. Depois
-esforça-se por encontrar os motivos de crença e de acção que residem
-no fundo da nossa natureza; vê os effeitos que produz aqui o contagio
-das idéas ou dos arrebatamentos collectivos da imaginação popular, ali
-os conflictos gerados pelas invejas das classes ou pelos vicios das
-instituições e das leis.</p>
-
-<p>Henri Joly depois d’assim delinear o horisonte d’este novo ramo de
-saber define sciencia criminal e penitenciaria a sciencia das relações
-que existem entre o homem criminoso e a sociedade.<a id="FNanchor_12" href="#Footnote_12" class="fnanchor">[12]</a></p>
-
-<p>A resolução do problema da criminalidade não póde vir da analyse
-physica do exterior do delinquente, da assimetria facial, do
-estrabismo, da tatuagem, da desproporção na dynomemetria e no calor,
-do prognatismo, e d’outras anomalias somaticas. Estes materiaes
-terão valor como elemento indirectamente subsidiario para o estudo
-da natureza psychica, da sua forma e da sua evolução, mas a luz hade
-nascer do conhecimento dos phenomenos da consciencia e dos factos
-externos e internos que sobre ella actuam.</p>
-
-<p>Lilienfeld provou que o desinvolvimento do individuo reproduz
-psychologicamente as phases do desinvolvimento da especie. Estudar
-cuidadosamente o individuo na sua evolução psychologica, desde o berço
-ao tumulo, e analysar a nossa especie nas diversas phases de vida, é
-tarefa de cuja execução depende, a nosso ver, a resolução do problema
-da criminalidade. E n’esta difficil tarefa a quem cabe o maior quinhão
-é ao psychologo.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_24">[Pg 24]</span></p>
-
-
-<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_1" href="#FNanchor_1" class="label">[1]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">La Philosophie de Hamilton</i>, pag. 538, por J. Stuart
-Mill.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_2" href="#FNanchor_2" class="label">[2]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Philosophie du Droit Pénal</i>, pag. 11, Ad. Franck.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_3" href="#FNanchor_3" class="label">[3]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Beccaria et le Droit Pénal</i>, par Cesar Cantu.
-Introduction. 1885.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_4" href="#FNanchor_4" class="label">[4]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Ancien Droit</i>, Henry Summer Maine.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_5" href="#FNanchor_5" class="label">[5]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Les délits et les peines</i>, Emile Acollas.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_6" href="#FNanchor_6" class="label">[6]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Philosophie du Droit pénal</i>, pag. 157, Ad. Franck.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_7" href="#FNanchor_7" class="label">[7]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Leçons de Philosophie</i>, E. Rabier.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_8" href="#FNanchor_8" class="label">[8]</a> La criminalité comparée par G. Tarde.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_9" href="#FNanchor_9" class="label">[9]</a> <i>Estudos Penitenciarios e Criminaes</i>, pag. 117.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_10" href="#FNanchor_10" class="label">[10]</a> Esta classificação não está ao abrigo da critica, como o
-demonstra n’uma discussão sensata e profunda H. Joly, <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>,
-pag. 62.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_11" href="#FNanchor_11" class="label">[11]</a> Achamos verdadeiramente extraordinario!</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_12" href="#FNanchor_12" class="label">[12]</a> Estas indicações sobre a divisão e papel da sciencia,
-são tiradas da oração de abertura de H. Joly nas suas licções de
-sciencia criminal e penitenciaria, curso recentemente creado. <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue
-Internationale de L’Enseignement</i>, 15 mai, 1889.</p>
-
-</div>
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_25">[Pg 25]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="II">II</h2>
-</div>
-
-<p class="section">A liberdade moral e o determinismo. A ethica. Os criminosos segundo os
-trabalhos recentes</p>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p xml:lang="fr" lang="fr">La liberté du franc arbitre est si grande en moi, que je ne conçois
-point l’idée d’aucune autre plus ample ni plus étendue.</p>
-
-<p class="right">
-DESCARTES.<br />
-</p>
-</div>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p>...Il est prouvé, que les «moindres forces» introduites, troublant
-des états d’équilibre, out le pouvoir de produire les révolutions
-mécaniques les plus considérables. Il se peut donc qu’une place
-demeure toujours pour les effets matériels de la liberté, dans un
-organisme donné, et de lá dans le monde. Le contraire n’est pas et
-ne deviendra jamais demonstrable. (Esquisse d’une classification
-systèmatique des doctrines philosophiques, pag. 289, tome 1.ᵒ)</p>
-
-<p class="right">
-CH. RENOUVIER.<br />
-</p>
-</div>
-
-
-<p>Toda a philosophia procura a explicação do universo e n’esse intento
-precisa achar um elemento irreductivel, necessario, que nos certifique
-da existencia da harmonia entre o mundo subjectivo e o objectivo. Para
-o monismo materialista este elemento é a materia, que abrange toda
-a extensão das experiencias realisadas. É claro que tal elemento se
-considera absoluto porque d’outro modo fôra reductivel, o que seria
-contradictorio. O materialismo arvora-se pois n’uma das concepções
-metaphysicas mais antigas e mais grosseiras. Confunde todos os seres
-em um só, a materia, mas sobre a sua natureza nada nos diz; limita-se
-a affirmar com o vulgo<span class="pagenum" id="Page_26">[Pg 26]</span> que é o que se vê, o que se apalpa, o que cae
-debaixo dos sentidos. O typo do conhecimento para o materialista é
-a percepção externa.—A experiencia verifica que não ha creação nem
-desapparecimento da materia, que ha só transformação de phenomenos.
-A substancia permanente é activa, tem as suas leis; é uma força. A
-materia identifica-se com a força. As manifestações d’esta força
-constituem todos os phenomenos do universo.—A contradicção é
-flagrante, como hade conhecer a idéa de força uma philosophia, que tem
-por unica origem de conhecimentos os sentidos?</p>
-
-<p>Pela observação dos factos physicos, em que é obvio o principio da
-conservação da força, o materialista generalisou este principio a toda
-a forma de existencia. Ora exactamente o que resta provar é se toda a
-cathegoria de existencia se reduz a uma força physica.</p>
-
-<p>Metaphysica monista muito mais elevada, mais concludente e mais logica
-é o idealismo. Spencer, mecanista mais subtil que os defensores do
-materialismo vulgar, acceita a correlação entre os objectos e a
-representação psychica, mas entende que esta correlação não pode
-dar-nos senão symbolos da realidade, isto é, imagens imperfeitas das
-cousas. Na sua theoria do symbolismo Spencer aproxima-se do idealismo,
-posto que se mantenha mecanista. Entretanto e conseguintemente a
-doutrina que elle perfilha merece o qualificativo de determinista;
-porque a evolução, como necessaria, torna-se independente da liberdade.
-Todavia, quanto á evolução sociologica o sabio inglez tenta provar que
-a liberdade individual é compativel com a necessidade historica. N’este
-ponto apropinqua-se do <i>neocriticismo</i>.</p>
-
-<p>A evolução universal mecanista, não a teleologica, destroe o livre
-arbitrio. É este um dos caracteres que a separam da lei do progresso.
-Segundo Proudhon e segundo os philosophos classicos o progresso não
-existe sem a liberdade. N’esta doutrina a aspiração crescente da
-especie humana para uma maior elevação intellectual e moral, determina
-a desenvolução social, objecto da historia, a qual é a realisação
-progressiva da liberdade na humanidade. Quem governa o homem é a lei
-do dever, augusta divisa, impressa na consciencia; quem o dirige é o
-ideal, concepção intellectual, ligada pelo sentimento á acção imperiosa
-e decisiva da vontade.</p>
-
-<p>Os deterministas modernos ligam-se á metaphysica fatalista e á
-theologia, identificando como Leibnitz a força com<span class="pagenum" id="Page_27">[Pg 27]</span> a propria
-existencia e considerando as substancias como outras tantas forças
-cuja acção se exerce unica e precisamente no meio dos proprios entes
-a que pertencem. A vida psychica segundo o systema da <i>harmonia
-prestabelecida</i> não passa d’uma monada isolada em si mesma, no seio
-da qual se fazem reflectir todas as modalidades da existencia.</p>
-
-<p>O determinismo moderno prende-se com a metaphysica e com o fatalismo
-pagão e mussulmano, mas colloca-se ao lado da doutrina theologica da
-predestinação e do dogma da graça invencivel. O determinista está ao
-lado de Luthero contra Erasmo, de Calvino contra Servet, da tyrannia
-contra a independencia, da fatalidade contra a liberdade. Da crença no
-destino cego dos deuses passou o fatalismo para a crença nas forças
-cegas da natureza.</p>
-
-<p>O fim supremo da metaphysica consiste em achar a origem unica da
-torrente eterna dos factos, do mar infinito das cousas, o que é
-inattingivel nos limites da sciencia positiva.</p>
-
-<p>Os physicos e os naturalistas concebem um ser substancial ou phenomenal
-que não pode subtrahir-se ao determinismo da mecanica. Extranhos pela
-maior parte aos processos de observação psychologica, não penetram
-na essencia da força, medem-na pelas suas manifestações. Na volição
-consideram os motivos como forças e não como condições e influencias, o
-que os leva em consequencia do seu monismo á negação da liberdade.</p>
-
-<p>A força é um dos termos mais metaphysicos, mais mysteriosos e mais
-difficilmente comprehensiveis da linguagem humana. Por ella exprimem
-a idéa do absoluto materialistas e positivistas. Na nomenclatura das
-escolas metaphysicas do materialismo esta idea é o principio universal
-de toda a existencia. Alguns moralistas e sociologos sustentam, que
-tanto nos individuos como nos povos, a força é a expressão do bem e
-a fraqueza a companheira do mal. Nos individuos o excesso de força
-na lucta pode gerar a crueldade; nos povos gera ás vezes a perfidia.
-Segundo uma philosophia theologicamente fatalista a força será uma
-manifestação da vontade divina e resistir lhe fôra para os seus crentes
-uma verdadeira impiedade. No mundo ethico, de uma phase já progressiva,
-a força é filha de Themis, encarnação da justiça e irmã da deusa da
-temperança. No mundo social rudimentar a força considera-se a primeira
-virtude do chefe; estabelece-se, como caracteristica ainda hoje, que
-a força e o<span class="pagenum" id="Page_28">[Pg 28]</span> costume regulavam a sociedade antiga e que as leis e os
-principios regulam a sociedade moderna, mas na essencia este progresso
-resulta sempre da interpretação multiforme da idea de força. Na região
-do amor o aguilhão genesico desperta o culto da força e do amor. Nas
-cosmogonias primitivas a força identifica-se com a virtude; outras
-vezes toma a forma dualista que n’uns phenomenos symbolisa o bem e
-n’outros o mal. A vida theogonica das primitivas religiões encerra-se
-n’esta formidavel lucta.</p>
-
-<p>Em toda a evolução religiosa a força recebeu culto da alma humana,
-diversamente symbolisado no feiticismo, no pantheismo, no polytheismo e
-no proprio monothesmo que faz da unidade a sua expressão.</p>
-
-<p>O systema do determinismo mecanista fundado na necessidade continua do
-movimento allia-se por um lado ao materialismo de Democrito e de Th.
-Hobbes, por outro ao pantheismo e idealismo, de Spinosa e de Leibnitz.
-Como se vê, esta concepção determinista é um dos aspectos menos
-elevados da metaphysica.</p>
-
-<p>Causa grande extranheza que penologos e philosophos positivistas
-alcunhem desdenhosamente de metaphysica a doutrina do <i>livre
-arbitrio</i>, quando esta doutrina é na philosophia moderna defendida
-pelos geniaes demolidores da metaphysica. Quem, fazendo a analyse
-profunda do entendimento humano, examinando com raciocinio subtil
-as condições do conhecimento, vendo por todos os aspectos a idea
-do absoluto, demonstrou a impossibilidade da metaphysica como
-sciencia? Foram Kant, W. Hamilton e Mansel, exactamente os grandes
-pensadores que, ao lado d’outros, defendem como realidade positiva
-e evidente a iniciativa propria ou livre arbitrio. Quaes são pois,
-os metaphysico-determinista por herança e por systema? São Augusto
-Comte e os criminalistas modernos. Dizemos por herança porque seguem
-evolutivamente os metaphysicos fatalistas, e por systema, porque são
-uns dogmatistas, que affirmam com o empirismo a fé no conhecimento
-objectivo das cousas sem fazerem previamente a analyse logica das
-condições possiveis do saber, dos seus lemites e do seu alcance. A esta
-analyse procederam Kant, o maior pensador dos tempos modernos, e os
-dois maiores logicos da Inglaterra W. Hamilton e o illustre Mansel.</p>
-
-<p>Augusto Comte affirmando que a metaphysica é uma chimera sem o
-demonstrar ontologica, nem logicamente, limitando-se<span class="pagenum" id="Page_29">[Pg 29]</span> a affirmar que os
-systemas existentes são contradictorios, o que não constitue argumento
-valioso, porque ha possibilidade de chegarem a um accordo, não póde
-de modo nenhum conceder-se-lhe as honras de eversor da metaphysica.
-Além de tudo faz liga intima com o materialismo, systema metaphysico,
-construindo uma ontologia <i lang="la" xml:lang="la">a posteriori</i>, baseada sobre as
-sciencias particulares. Não offerece duvida que o ensaio de synthese e
-de explicação universal das cousas tentado por Comte é uma metaphysica
-empirista tão illegitima em face da critica, como qualquer metaphysica
-racional. O verdadeiro e intrepido demolidor da metaphysica foi Manuel
-Kant, como diz Alfredo Weber.</p>
-
-<p>Kant demonstrou pela analyse da intelligencia na critica da <i>razão
-pura</i> a impossibilidade de conhecer nada absolutamente e fundou a
-doutrina da relatividade do conhecimento ou relativismo subjectivo,
-hoje amplamente desenvolvida pelos logicos inglezes, e aproveitada pelo
-positivismo.</p>
-
-<p>A philosophia <i>neo kantiana</i> defendendo a liberdade e a
-personalidade proclama todavia a unidade harmonica e systematica do
-mundo cosmico e da natureza moral. Esta doutrina tem sido avivada na
-Allemanha por Eugenio Dühring, Ernesto Laas, Kirchmann, Alberto Lange,
-em França por Ch. Renouvier, Scherer, Lachelier, Liard, etc.</p>
-
-<p>Ainda que Comte com o seu systema não fizesse mais, como sustentam
-alguns philosophos, do que um dogmatismo metaphysico, renunciando á
-critica, a nossa admiração pelo eminente pensador mantem-se intemerata
-e firme. Não deverão prestar-lhe a mesma homenagem os criminalistas
-contemporaneos, porque suppõem a metaphysica um monstro horrendo. Nós
-obedecendo á doutrina do <i>neo-criticismo</i> julgamos as concepções
-metaphysicas extranhas ao dominio restricto da sciencia positiva,
-mas entendemos que a especulação na sua esphera de actividade se faz
-tão legitima, tão interessante e tão digna de ser cultivada como a
-concepção esthetica ou como a concepção religiosa. Não temos por ella
-nem odio, nem desprezo; pelo contrario, temos até veneração. A sciencia
-não deve fechar-se nos preconceitos de systema, procura a verdade pelos
-caminhos onde póde encontra-la.</p>
-
-<p>É á psychologia experimental e á observação positiva da consciencia,
-que os philosophos partidarios do livre arbitrio, vão procurar a idea
-da liberdade e os argumentos para a sua demonstração, em quanto os
-deterministas negam a liberdade,<span class="pagenum" id="Page_30">[Pg 30]</span> subordinando todos os phenomenos
-noologicos a systemas metaphysicos, quer da cosmologia racional,
-isto é, da materia, do movimento ou da força; quer da metaphysica
-do absoluto, ou da theologia racional, como muitos theologos tambem
-pensam. A doutrina da liberdade é scientifica, emquanto a concepção
-fatalista ou determinista é metaphysica.<a id="FNanchor_13" href="#Footnote_13" class="fnanchor">[13]</a></p>
-
-<p>Os escriptores criminalistas portuguezes confundem a liberdade absoluta
-com o livre arbitrio, a liberdade de indifferença com a verdadeira
-liberdade moral. Escreve o sr. Julio de Mattos:</p>
-
-<p>«Mas, para que as conclusões da nova escóla penetrem nos espiritos e
-fructifiquem praticamente, é indispensavel desfazer de uma vez para
-sempre a miragem da absoluta liberdade psychologica, diffundindo
-largamente a doutrina determinista. O livre arbitrio—eis o inimigo!
-Destruil-o, espurgal-o da consciencia, eliminal-o da educação, banil-o
-dos diccionarios, enterral-o fundo na historia dos erros humanos e
-pôr-lhe em cima uma lousa de esquecimento bem pezada e bem impenetravel
-é a primeira de todas as tarefas a cumprir para assegurar o exito
-de qualquer doutrina séria nos dominios assim da psychologia como
-das sciencias sociaes. Ora, o auctor tocou muito ao de leve este
-ponto capital sobre que, a meu vêr, deveria ter-se demorado, pondo
-em evidencia que a <em>noção da responsabilidade não se comprehende
-fóra da doutrina determinista</em> e que a pena, applicada como meio
-de correcção, suppõe da parte do <em>criminoso a possibilidade de
-obedecer a motivos d’ordem moral, o que é contrario á idéa do livre
-arbitro</em>. A punição, como meio correctivo, só pode applicar se ao
-delinquente fortuito ou de occasião; imposta aos criminosos alienados é
-um não-senso.»</p>
-
-<p>N’este trecho faz-se necessario distinguir duas partes: a primeira é
-a declamação trivial contra o livre arbitrio, declamação impropria do
-talento do sr. Julio de Mattos. A doutrina do livre arbitrio em nenhum
-modo póde prejudicar a constituição da psychologia ou das sciencias
-sociaes. Suppondo,<span class="pagenum" id="Page_31">[Pg 31]</span> sem todavia o conceder, que esta doutrina seja uma
-ficção ou miragem, ainda assim ella torna-se inoffensiva sob o ponto de
-vista de que se trata, porque a conciliação da liberdade individual com
-a necessidade historica ou social é um facto demonstrado por diversos
-psychologos e sociologos. A segunda parte é a confusão inacceitavel da
-liberdade de indifferença, a que o sr. Julio de Mattos chama liberdade
-absoluta, com a doutrina do livre arbitrio, ou de posse de iniciativa
-propria e antecedida por motivos. Hoje nenhum partidario do livre
-arbitrio defende a liberdade de indifferença, porque essa doutrina
-importa a negação da propria liberdade. Se tal concepção philosophica
-tem partidarios, esses devem ser os fatalistas ou deterministas, unicos
-a quem aproveita.</p>
-
-<p>O que affirma a liberdade da indifferença? que a vontade actua sem
-motivos. Esta doutrina partilhada por Bossuet, Fenelon, Reid e
-Clarke, não conta proselytos nas escolas actuaes. O acto sem movel,
-sem causa antecedente a que se ligue, não é uma resolução, é um
-phenomeno reflexo ou instinctivo. Os que defendem a liberdade na
-psychologia moderna, sustentam que os motivos dirigem em todos os
-casos a vontade, que actuam em todo o phenomeno volitivo, mas não o
-determinam; a determinação em todas as resoluções depende da autonomia
-da consciencia. A intelligencia peza os moveis, analysa os motivos, mas
-só a vontade tem o poder inviolavel e discricionario de resolver-se.</p>
-
-<p>O determinista affirma, pelo contrario, que os motivos imperam
-fatalmente sobre a vontade, sendo o homem o escravo do motivo mais
-forte pelo que a resolução não existe. Logo o homem não é livre quando
-obedece ao dever e a bondade das acções conseguintemente reduz-se a
-um producto sem valor moral. N’esta hypothese a justiça arvora-se em
-vingança social.</p>
-
-<p>O sr. Julio de Mattos diz que «a noção de responsabilidade não
-se comprehende fóra da doutrina determinista» mas a verdade está
-exactamente no contrario. Para os deterministas a vontade é o effeito
-da causalidade personificada no motivo; por tanto o homem aqui não
-passa do joguete de forças extranhas.</p>
-
-<p>Na doutrina do livre arbitrio, a vontade constitue a causa unica das
-nossas acções. Os motivos são apenas a condição para o exercicio da
-causalidade.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_32">[Pg 32]</span></p>
-
-<p>O mais simples e o mais commodo para os penologos revolucionarios, nas
-questões da base do direito de punir é julgar <i lang="la" xml:lang="la">a priori</i> todos
-os delinquentes irresponsaveis em nome da negação do livre arbitrio,
-como diz com superior ironia e admiravel bom senso o dr. A. Riant<a id="FNanchor_14" href="#Footnote_14" class="fnanchor">[14]</a>
-que possue além da auctoridade do seu talento e do seu saber, a de
-ser ao mesmo tempo um medico eminente e um jurisconsulto distincto.
-Parece extraordinario que a escola determinista, que deve acceitar como
-consequencia, logicamente necessaria, a irresponsabilidade, queira
-estabelecer cathegorias de irresponsaveis.</p>
-
-<p>O principio unico em que pode assentar a responsabilidade, moralidade e
-a justiça é o livre arbitrio; regeitada a doutrina do livre arbitrio ou
-da liberdade, todos estes sentimentos e todas estas ideas desapparecem,
-e subsiste, como unica base do direito repressivo não a justiça, mas
-a defeza social. Taes theorias já são um elemento perturbador na
-administração da justiça, porque o advogado rabula, sabendo que os
-codigos assentam sobre a responsabilidade, aproveita qualquer tara
-psychopatica do reu para lhe negar a imputabilidade.</p>
-
-<p>No prefacio escripto por Ch. Letourneau, na versão franceza do livro de
-Lombroso <i>O homem delinquente</i>, lê-se o seguinte:</p>
-
-<p>«Os nossos criminalistas <i xml:lang="fr" lang="fr">enragés</i>, os nossos legisladores
-inexperientes, para quem o castigo do criminoso é uma reprezalia, uma
-vingança social, todos esses espiritos acanhados e levianos, a quem
-se deve repetir sem cessar a expressão de Quételet—que a sociedade é
-quem prepara os crimes, todos esses pilotos cegos dos estados modernos,
-para quem o homem não é susceptivel de modificação, que no logar da
-utilidade social collocam a sentimentalidade e a rotina, poderiam vêr
-o que na penitenciaria de Neuchâtel se obtém pelo systema tão humano e
-tão scientifico de W. Crofton. Ali, em vez de considerarem o condemnado
-como um réprobo, applicam-se em despertar-lhe a esperança no coração,
-a provar-lhe que nenhum sentimento de colera, nem de odio, se nutre
-contra elle, a persuadil o, emfim, que elle é, n’uma larga acepção,
-o arbitro da sua sorte. Tratam-n’o, não como a um monstro que deve
-soffrer e expiar, mas como um doente,<span class="pagenum" id="Page_33">[Pg 33]</span> como um amigo transviado, a quem
-se busca chamar ao bom caminho. Instruem-n’o, educam-n’o moralmente,
-dão-lhe uma profissão, fazem-n’o passar gradualmente da prisão cellular
-á libertação condicional, com bemfazeja vigilancia. N’uma palavra,
-faz-se d’elle um homem. Ha apenas uma differença: é que para tal tarefa
-são indispensaveis philantropos esclarecidos, e é mais commodo ter
-apenas carcereiros.»<a id="FNanchor_15" href="#Footnote_15" class="fnanchor">[15]</a></p>
-
-<p>N’esta pequena amostra acotovelam-se as contradicções e evidenceia-se
-a ausencia de disciplina philosophica. Primeiro diz-se discipulo de
-Quételét e de Victor Hugo, asseverando que a sociedade prepara os
-crimes, e pouco depois affirma que o criminoso é n’uma ampla acepção
-o arbitro da sua sorte. A contradicção sobe de grau, sabendo-se que o
-dr. Letourneau professa o determinismo materialista, e n’este prefacio
-advoga um sentimentalismo quasi mystico em favor do delinquente.</p>
-
-<p>No seu livro <i xml:lang="fr" lang="fr">Physiologie des passions</i>, pag. 389, diz elle que
-é mister «bater em brecha a fortaleza gothica do livre arbitrio» e
-que a feição do caracter e a violencia das inclinações dependem só da
-organisação physiologica e do temperamento do individuo. Appella para
-a craniologia e despreza a observação scientifica; prefere a hypothese
-materialista á luz fiel da observação introspectiva e da experiencia.</p>
-
-<p>A solução do problema da liberdade está para os metaphysicos fatalistas
-subordinada a outras questões metaphysicas; assim o materialismo nega
-a liberdade em nome d’uma lei mecanica universal que rege igualmente
-o mundo cosmico e o mundo psychologico. Os que defendem a doutrina do
-livre arbitrio devem considerar suspeitas todas as escolas metaphysicas
-tendo o cuidado de encerrar as suas demonstrações dentro da sciencia
-positiva.</p>
-
-<p>O fatalismo chamado das <i>cousas occasionaes</i> propagado por
-Mallebranche attribue a Deus a causa unica de todos os effeitos sendo
-os motivos somente as occasiões para a realisação da causalidade
-theologica. A intervenção de Deus é continua no exercicio da actividade
-psychologica sobre o organismo e d’este sobre os phenomenos de
-consciencia.</p>
-
-<p>Os fatalistas modernos apoiados na physica <i lang="la" xml:lang="la">a priori</i> de<span class="pagenum" id="Page_34">[Pg 34]</span>
-Descartes, renovada e generalisada pelo principio da conservação
-da energia, hypothese hoje admittida no dominio das sciencias
-cosmologicas, proclamam um determinismo mecanico universal. O
-determinismo de Mallebranche inspira-se n’um principio providencial,
-em quanto o dos mecanistas n’uma força cega, occulta na substancia
-cosmica. O primeiro é mais elevado, mas as consequencias são em ambos
-igualmente funestas.</p>
-
-<p>A liberdade é o poder de querer actos motivados, encadeados ao estado
-presente do nosso entendimento e da nossa sensibilidade. Toda a
-resolução tem a sua causa em phenomenos que a precederam. A liberdade
-tendo todavia condições e possuindo graus d’ordem sensivel, mental e
-ethologica, permanece sempre a faculdade de praticar ou não praticar um
-acto e ainda depois de praticado fica a idéa da possibilidade em ter
-praticado o contrario. O caracter não explica absolutamente as acções,
-como pretende, por um circulo vicioso, o determinismo physiologico,
-porque a energia de vontade modifica e transforma a seu talante o
-proprio caracter, e até o meio social.</p>
-
-<p>O homem attribue á fatalidade os seus revezes e nunca lhe attribue
-a sua fortuna. Assim o criminoso, o negligente, o insufficiente de
-vontade desculpa o seu crime, a sua pobreza, a sua desgraça, com
-a fatalidade, a sorte ou o destino, emquanto o homem trabalhador,
-diligente e prospero attribue a sua fortuna, o seu bem estar social,
-á energia da sua vontade. A mulher que desceu á escravidão a mais
-aviltante, o homem que jaz no carcere expiando os seus crimes, quando
-interrogados respondem ambos, que foi a sua sorte. Ao contrario, o
-homem que de berço humilde sobe ás altas funcções sociaes, que da
-escassez chegou á riqueza, affirma que deve esse melhoramento de
-situação á constancia no trabalho e á rectidão do seu proceder que lhe
-grangeou honra, fazenda e credito. Póde pois dizer-se que o fatalismo
-vulgar é a trincheira covarde onde se escondem os ignorantes, os
-preguiçosos e os maus. Para as pessoas illustradas e boas o fatalismo
-philosophico é uma concepção theorica, que não influe nas relações da
-vida pratica. O procedimento d’esses sectarios está sempre d’accordo
-com a dignidade humana, sentimento que tem por base o livre arbitrio.</p>
-
-<p>O espirito possue a consciencia da sua força volitiva deante da
-influencia do meio e do incitamento do desejo; reconhece<span class="pagenum" id="Page_35">[Pg 35]</span> que da
-sua actividade e da sua liberdade resulta o altivo sentimento da
-sua personalidade. A crença na liberdade é para nós d’uma evidencia
-intuitiva no dominio da psychologia; só uma metaphysica bastarda poderá
-sophismar tão luminosa verdade. Sem o poder de iniciativa quanto ás
-proprias determinações o homem seria um automato cogitante e sensivel,
-igual em cathegoria ás alimarias, incapaz de merito ou demerito, e
-nivelaria a honestidade com a vileza. A ordem ethologica desappareceria
-e a ordem social seria defendida pela cega vingança. Não mais justiça;
-o louvor fôra tão digno como o vituperio; no pleito social venceria o
-mais forte.</p>
-
-<p>Quem consultar sem preconceitos metaphysicos a sua consciencia concebe
-por intuição a possibilidade de adoptar um motivo contrario áquelle que
-resolveu seguir, e que o poder d’esta determinação reside n’uma força
-irresistivel interna. É evidente que a determinação póde subsistir sem
-prejuizo de qualquer coacção externa em contrario.</p>
-
-<p>Alfredo Weber o distincto professor da universidade de Strasburgo, no
-prefacio da 4.ᵃ edição da sua <i>Historia da philosophia europea</i>,
-sem duvida a condensação mais limpida e mais brilhante que modernamente
-se tem feito da desenvolução do pensamento humano, escreveu: «Estamos
-persuadidos que o crer não é somente a essencia da alma, mas a essencia
-universal. A nossos olhos o monismo da vontade é o pensamento intimo
-de Kant, a linha de união da sua critica e da sua moral, o unico
-systema que possa explicar simultaneamente a natureza e o phenomeno
-moral, o unico emfim que possa satisfazer ao mesmo tempo o pensamento
-especulativo e o espirito de observação: porque a suprema necessidade
-da rasão é a <em>unidade</em>, e o unico caracter commum á materia e ao
-espirito, o unico denominador commum ao qual seja possivel reduzi-los,
-é o esforço, isto é a vontade. Um esforço de expansão, eis a materia,
-um esforço de concentração eis o espirito... Qualquer que seja a parte
-do anthropomorphismo no vocabulario da moral kantiana, é mister convir
-que esta forma é imperativa, que no fundo do nosso querer-viver ha como
-uma reservada esperança, e alem da nossa vontade individual como uma
-vontade mais elevada e mais excellente que tende para o ideal (<i lang="de" xml:lang="de">Wille
-zum Guten</i>).»</p>
-
-<p>É evidente que não acceitamos a vontade pura, de Schopenhauer,
-inspirada no buddhismo, um dos lados da sua metaphisica, mas acceitamos
-o outro aspecto porque elle considera<span class="pagenum" id="Page_36">[Pg 36]</span> a vontade, ligada ao phenomeno
-intellectual—é o livre arbitrio.</p>
-
-<p>O saber comprehende duas partes: uma regulada pelas leis da natureza
-que se desenvolve por evolução, em virtude d’um determinismo universal:
-a outra com a consciencia por ponto de partida, que architecta um
-universo segundo as suas formas e as suas leis. A primeira abrange o
-mundo material, a segunda refere-se ao mundo moral.</p>
-
-<p>Parece-nos que posta a questão em evidencia como a apresenta a
-philosophia neo-critica o problema da liberdade está resolvido
-triumphantemente em face da sciencia. Pode a metaphysica do
-determinismo monista reduzir o homem a um automato espiritual ou
-material que a psychologia considerada como sciencia positiva
-continuará a asseverar em nome da sciencia e dos seus direitos
-imprescriptiveis a autonomia da consciencia do <em>eu</em> como centro
-commum de iniciativa, de acção e de potencia. Apresentado assim o
-problema dispensam-se os notaveis esforços de dialectica empregados por
-Alfredo Fouillée no intuito de conciliar o determinismo com a doutrina
-da liberdade, dois systemas contendores em cuja lucta recente elle vê
-já uma directriz para a convergencia.</p>
-
-<p>O que se faz mister é destruir a lenda dos criminalistas extranhos á
-alta cultura philosophica, os quaes propagam que o determinismo se
-inclue no saber positivo emquanto o livre arbitrio não passa d’uma
-concepção metaphysica.</p>
-
-<p>Nenhum dos argumentos apresentados em favor da liberdade moral
-tem o valor logico do que nos é dado pelo testemunho immediato da
-consciencia. Cada um de nós, ao consultar-se, sente-se livre, e
-este sentimento é inaccessivel a toda a duvida, porque a certeza da
-consciencia é absoluta. Quem delibera não assiste á lucta dos motivos
-como simples espectador, sente que a decisão final reside intemerata em
-seu poder.</p>
-
-<p>As leis sociaes seriam inuteis e absurdas se o homem carecesse da
-possibilidade de lhes obedecer; mas respondem os deterministas que
-as leis são tambem motivos influentes sobre a vontade humana pelo
-receio dos castigos. Todavia, esses mesmos castigos applicados em
-nome da justiça provam a liberdade. Onde estaria a justiça das penas
-inflingidas pelos tribunaes, se os reus não houvessem a faculdade de
-evitar o crime?</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_37">[Pg 37]</span></p>
-
-<p>Castigam-se os criminosos, respondem os deterministas, para correcção,
-intimidação e defeza. Mas se o accusado não fôr livre, a pena é iniqua,
-e a justiça quer que a pena seja merecida, e só n’este caso a sociedade
-está auctorisada a punir. A justiça assim satisfeita, corrige, intimida
-e defende simultaneamente a sociedade. Para os irresponsaveis não ha
-justiça, ha a protecção ao mesmo tempo defensora da sociedade ou póde
-haver a eliminação.</p>
-
-<p>O fundamento do direito de punir tem atravessado differentes phases
-na evolução juridica dos diversos povos. A vingança é um sentimento
-natural, instinctivo, nascido para nos fazer respeitar uns aos
-outros, e segundo lord Kaimes e Luden a sociedade quando pune não
-faz senão dirigir este instincto contra o verdadeiro culpado. Eis
-a primeira theoria—a da <em>vingança</em>.<a id="FNanchor_16" href="#Footnote_16" class="fnanchor">[16]</a> Originariamente
-nas sociedades rudimentares assim foi, e confundem ainda hoje os
-criminalistas-utilitarios esta vingança, convertida em utilidade
-social, com o direito. Das theorias penaes baseadas no sentimento e não
-na idea de justiça dimanam as concepções da prevenção, da intimidação,
-da advertencia, da emenda do culpado, as quaes teem aspectos
-aproveitaveis para o melhoramento social, mas nenhuma d’ellas encerra
-o legitimo principio do direito de punir:—a remuneração da justiça.
-O principio do direito de punir não pode ser puramente correctivo ou
-preventivo. Escreveu Romagnosi, citado por Ortolan, «se depois do
-primeiro delicto houvesse a certeza que se não succedia nenhum outro a
-sociedade não teria nenhum direito de punir.»</p>
-
-<p>As desastrosas consequencias do materialismo determinista expulsam
-da sociedade o sentimento da justiça e substituem-no pelo principio
-da defeza social. O materialismo em psychologia nem chega a ser uma
-theoria, é uma deserção do criterio scientifico. Onde podia ter uma
-apparencia, ainda que grosseira, de systema scientifico, era no mundo
-biologico ora o grande mestre Claude Bernarde disse que «em physologia
-o materialismo não conduz a nada e nada explica.»<a id="FNanchor_17" href="#Footnote_17" class="fnanchor">[17]</a></p>
-
-<p>Julgar todos os delinquentes perigosos, supposto não culpados, e
-puni-los em nome da defeza social, é suspender as garantias individuaes
-e promulgar leis em nome da salvação publica.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_38">[Pg 38]</span></p>
-
-<p>Quinet liga a idea de justiça ao sentimento de amor na sua
-desenvolução primordial, mas sustenta que até os ladrões teem um
-codigo de justiça distribuitiva para entre si e os selvagens outro que
-observam na tribu.</p>
-
-<p>A philosophia que identifica a virtude com a utilidade offerece a quem
-a pratica vantagens sociaes. O homem que não tem senão a apparencia
-da virtude sobrepuja externamente o que a pratica a serio. Quem uza
-alternadamente do verdadeiro e do falso segundo o interesse do momento
-vence o que emprega só o verdadeiro, porque tem dois caminhos abertos
-emquanto os outros estão confinados n’um.</p>
-
-<p>Mesquinha philosophia e desconsoladora moral que tem por unico movel a
-utilidade!</p>
-
-<p>Nem todas as violações moraes da lei do imperativo cathegorico podem
-ser incursas no direito penal positivo, porque a sua esphera é mais
-ampla e mais recondita, os codigos não a attingem.</p>
-
-<p>Escreveu um grande jurisconsulto: «quanto aos deveres para com
-os outros, a lei penal não deve, pelo mesmo principio, exigir
-imperativamente senão o cumprimento dos que são correlativos aos
-direitos, cuja protecção poderia legitimar o emprego da força. Fica
-pois por considerar se a violação d’um dever <em>exigivel</em>, quando
-ella não sahe dos limites do mal puramente moral, cahe sobre o imperio
-d’esta lei. É o mesmo que procurar, por outros termos, se o pensamento,
-se a resolução criminosa pode tornar-se o objecto da justiça humana.
-Porque a violação d’um dever exigivel não permanece encerrada nos
-limites do mal puramente moral, senão emquanto o projecto criminoso,
-não tendo sido seguido de nenhum acto material, não tenha ainda
-produzido soffrimento directo, clamor ou perigo. Ora, é evidente que em
-these geral nada poderia ainda legitimar o emprego da força contra uma
-perturbação qualquer trazida á ordem moral. Os individuos e a sociedade
-não tem ainda sido impedidos no exercicio dos seus direitos, no livre
-desenvolvimento da sua legitima actividade. A defeza não foi fundada
-para reagir contra o mal puramente moral: a justiça social não pode
-pois applicar-lhe o castigo<a id="FNanchor_18" href="#Footnote_18" class="fnanchor">[18]</a>.</p>
-
-<p>A liberdade moral não deve ser confundida com a liberdade juridica.
-Aquella é o poder que o homem tem de se determinar,<span class="pagenum" id="Page_39">[Pg 39]</span> emquanto esta é
-o direito de desenvolver as faculdades n’uma medida que não exclue
-o desenvolvimento da liberdade ou do direito de outrem. Os seus
-limites são a base e o objecto do direito considerado como a regra
-das relações sociaes. Em todos os casos porem a liberdade moral é uma
-condição essencial da existencia do direito<a id="FNanchor_19" href="#Footnote_19" class="fnanchor">[19]</a>. Negar portanto o livre
-arbitrio é destruir o direito, é suprimir a justiça. Nenhuma sociedade
-civilisada podia assentar no determinismo mecanista de Democrito
-ou de Hobbes. Se esta theoria é hoje renovada pelos criminalistas
-revolucionarios, será por honra e fortuna da civilisação justamente
-posta de parte pelos jurisconsultos circumspectos.</p>
-
-<p>Como somos humilde discipulo da philosophia neo-critica e ardente
-e sincero adepto da grandiosa moral kantiana, julgamos util dar
-aqui a conhecer, ainda que summariamente, seguindo um seu illustre
-commentador, a solução original e profunda que o genial pensador deu
-ao problema da liberdade. Kant affirma o determinismo em nome da
-sciencia e proclama a liberdade em nome da moral. Por um lado Kant é
-determinista tão rigoroso como o proprio Leibnitz. Em nome do principio
-da causalidade affirma o encadeamento necessario de todos os phenomenos.</p>
-
-<p>Este determinismo absoluto é a condição da sciencia, a propria condição
-do pensamento. Mas por outro lado Kant é o mais puro e o mais sincero
-dos moralistas. Acceita a noção do dever, da moralidade em toda a sua
-plenitude. O dever, diz Kant, implica poder e é em nome do dever que
-affirma a liberdade. Como conciliar estas duas affirmações?</p>
-
-<p>Kant resolveu a difficuldade pela sua theoria do conhecimento.
-Distinguiu dois mundos, o mundo dos <em>phenomenos</em>, isto é, o mundo
-das apparencias sensiveis, que é objecto da sciencia, e o mundo dos
-<em>nomenos</em>, isto é, o das realidades absolutas, ou intelligiveis,
-onde a metaphysica tenta, mas em vão, fazer nos penetrar. A grande
-differença entre estes dois mundos, resulta do espaço e do tempo, que
-são a lei do mundo apparente ou sensivel e não a lei do mundo real
-ou intelligivel. O mundo sensivel é a apparencia que torna o mundo
-intelligivel projectado e refractado no espaço e no tempo. Como ha
-dois mundos, ha tambem duas especies de causalidades. Ha a causalidade
-empirica que se realisa no<span class="pagenum" id="Page_40">[Pg 40]</span> tempo e ha a causalidade intelligivel que
-se realisa fóra do tempo. A causalidade empirica é o determinismo.
-No tempo os factos são antecedentes e consequentes, succedem-se
-e determinam-se como os momentos do tempo. Mas onde se exerce a
-causalidade intelligivel, não ha antes nem depois, não ha antecedente
-nem consequente: esta causalidade é, pois, a propria liberdade.</p>
-
-<p>Assim se resolve a antinomia: o determinismo e a liberdade são
-verdadeiros um e outro, mas para dois mundos differentes: o
-determinismo é verdadeiro para o mundo sensivel para o homem phenomeno,
-a liberdade é verdadeira para o mundo intelligivel, para o homem
-<em>nomeno</em>.</p>
-
-<p>No absoluto a nossa vontade pronuncia um <i>fiat</i> eterno e como
-tal livre, este <i>fiat</i> faz-nos ser o que somos; constitue
-a nossa essencia, o nosso caracter <em>intelligivel</em>. D’este
-caracter <em>intelligivel</em> deriva o nosso caracter empirico que é a
-manifestação do primeiro na vida phenomenal, e que assignala com o seu
-cunho as nossas diversas acções. Tudo em nós resulta necessariamente
-d’estes dois factores. Tam grandiosa e profunda concepção satisfaz a
-razão especulativa e a consciencia moral; põe ao abrigo de todas as
-contingencias os direitos da sciencia, e os direitos da ethica<a id="FNanchor_20" href="#Footnote_20" class="fnanchor">[20]</a>.
-Devia satisfazer a um tempo os partidarios do fatalismo e os do
-determinismo salvaguardando no entanto a liberdade. Os phenomenos do
-mundo cosmico podem ser, como pretendem os fatalistas, subjeitos a uma
-causa unica sobrenatural, ou como querem os deterministas, attribuidos
-a causas multiplas ou naturaes. Fatalistas, pantheistas e theistas,
-deterministas psychologicos e materialistas, todos deviam applaudir
-uma solução, que reconhece nas suas theorias uma parcella de verdade.
-Não acontece assim, todavia. O determinismo nos seus cambiantes
-continua affirmando que, o homem se resolve <em>sem motivos</em>, ou
-sem <em>vontade</em>, ou que a <em>vontade segue sempre o motivo mais
-forte</em>.</p>
-
-<p>Todos os argumentos do determinismo são já bem conhecidos:—do
-principio da causalidade e da analyse do acto volitivo, da estatistica
-e da theoria mecanica das relações da vida psychica com a physiologica.</p>
-
-<p>A asserção de que todo o phenomeno tem a mesma razão n’uma força, não
-é de modo nenhum incompativel com a liberdade;<span class="pagenum" id="Page_41">[Pg 41]</span> o acto livre tem por
-causa não só os motivos, mas ainda a vontade. Objectam que a vontade
-segue sempre o motivo mais forte, mas esse motivo não é mais forte por
-si mesmo, senão porque a nossa vontade o torna tal determinando-se por
-elle, e determinou-se por elle, porque o julgou melhor.</p>
-
-<p>O argumento da estatistica não tem valor, porque a estatistica só
-determina medias, devidas a causas geraes, e de modo algum os factos
-particulares ou individuaes. Nenhum demographo nos diz pelas suas leis
-que tal individuo em tal anno ha-de ser necessariamente homicida.</p>
-
-<p>A theoria da conservação da força, applicada aos seres vivos, não passa
-ainda d’uma hypothese. Todavia, é evidente que a vontade não cria os
-movimentos que imprime aos orgãos, mas quando é sã e energica, serve-se
-a seu talante das forças preexistentes. A liberdade fica sempre o poder
-de tomar a iniciativa da sua actividade.</p>
-
-<p>As escolas fatalistas não podem constituir a moral. Augusto Comte
-pretende na esteira do fatalismo metaphysico, com o altruismo,
-imagem truncada do sentimento do amor, architectar uma ethica para
-seu governo. O altruismo é uma tendencia irresistivel para outrem,
-considerado esse outrem como ponto de convergencia, e o egoismo é uma
-tendencia fatal para o <em>eu</em> como centro. Na essencia o movel é
-sempre e absolutamente o interesse, ou do eu ou de outrem. Os inglezes
-reduzem justamente esta escola a uma variante da moral egoista. Que
-importa á consciencia que o desejo seja de expansão ou de concentração,
-se o impulso é sempre interesseiro? N’um e n’outro caso a lei do dever
-que é o distinctivo mais nobre da humanidade fica vergonhosamente
-esquecida. O positivismo, como temos visto, sempre que faz metaphysica
-tem o mau gosto de ligar-se por um lado ao fatalismo deprimente e por
-outro ao materialismo grosseiro.</p>
-
-<p>A moral é a sciencia que traça a linha directora do homem no
-cumprimento do dever. Todos reconhecem, de um modo intuitivo, que,
-quem nos esclarece na investigação ou na pratica dos actos moraes,
-é a consciencia. Ella o juiz seguro e o juiz unico que nos ensina a
-conhecer exactamente a natureza da acção e a intenção do seu auctor.
-A intenção, porém, que unicamente se limita a um simples desejo e que
-não é seguida de nenhum esforço para a execução, não chega a ser um
-acto moral. A intenção dá valor ethico ao acto, mas<span class="pagenum" id="Page_42">[Pg 42]</span> tambem o proprio
-acto serve para apreciar indirectamente a natureza e a sinceridade
-pura das intenções do agente. O methodo para estudar esta sciencia
-consiste em examinar qual a noção moral e quaes os resultados que a
-constituem. A consciencia moral, não a psychologica, é quem fornece á
-razão a concepção de uma lei que absolutamente devemos seguir. Se a lei
-moral se convertesse na applicação em alguma cousa de material teriamos
-necessidade de despi-la dos elementos exteriores, e mostrar que ella
-não se revela nunca em nós como um effeito, mas sim como antecedente.
-A lei moral é um principio noologico para elle proprio e parece ter um
-dominio transhumano.</p>
-
-<p>A lei do bem impõe-se absolutamente; quer o conteudo d’esse bem seja
-a paz da alma, o prazer sensivel, a utilidade, ella é sempre o centro
-organico de todos os nossos actos. Ninguem póde renunciar a este
-imperio universal; os proprios adversarios de Kant, que chamam ao
-imperativo, desdenhosamente, o <em>despotismo da regra</em>, não podem
-esquivar-lhe a sua consciencia.</p>
-
-<p>É preciso comprehender a moral formalista de Kant para pôr de accordo
-o seu dogmatismo pratico com o seu scepticismo especulativo. A
-moral formal não depende das condições da vida real e concreta das
-sociedades, assim como as mathematicas puras não dependem em nada das
-applicações ás sciencias experimentaes e ás artes bellas ou mecanicas.
-A moral, tal como Kant procurou estabelece-la, resume-se na idéa
-de uma vontade livre, cuja existencia intima não depende de nenhum
-movel empirico. Por isso tal concepção é apparentemente extranha a
-muitos espiritos e se acha affastada das idéas communs. Para Kant, a
-liberdade da vontade é uma autonomia que faz por si só a lei moral.
-Este caracter de independencia absoluta não póde encontrar-se senão
-n’uma lei formal, tomada esta palavra no sentido philosophico. Kant não
-procura a essencia do bem na ordem universal; é no facto subjectivo da
-obrigação que tem a sua origem objectiva. Uma cousa não é obrigatoria
-porque é boa, é boa porque é obrigatoria. A essencia do bem está <em>na
-conformidade d’uma vontade com uma lei que impera</em>. A necessidade
-d’esta lei é completa e absoluta e tem ao mesmo tempo um caracter ideal
-e real, racional e empirico, como as leis logicas e mathematicas.
-Ha por isso quem chame á ethica kantiana, a moral da mathematica. A
-obrigação moral é uma especie<span class="pagenum" id="Page_43">[Pg 43]</span> de necessidade, mas dizer que qualquer
-é obrigado a fazer uma cousa, não é dizer que qualquer é forçado a
-faze-la, porque a obrigação assim entendida excluia a liberdade e
-aniquilava a moral. O verdadeiro principio da ethica não póde ser um
-ideal de perfeição, mas um ideal formal que tem o seu fundamento no
-conjuncto das faculdades que constituem a natureza superior do homem
-e cuja realisação é independente da evolução da humanidade atravez
-das differentes phases da vida individual e social. A moral pratica
-que dá normas ás acções humanas é que varia com as diversas condições
-externas. A força e a firmeza da vontade, a clareza e o alinho do
-espirito imprimem cunho ao caracter moral, a paz e a pureza do coração
-são a saude da alma, a origem da felicidade. Muitas veem a ser as
-causas pathologicas que podem influir na determinação dos phenomenos
-volitivos, como o demonstra Ribot no seu interessante livro <i xml:lang="fr" lang="fr">Les
-maladies de la volonté</i>. É obvio que sem livre arbitrio não ha
-moralidade.</p>
-
-<p>A tendencia das paixões, muitas vezes, converte-se n’uma ideopathia,
-cuja força se traduz em actos de um caracter duplamente forte. É esta
-a feição de certos sentimentos—ir recto ao fim, e, á maneira das
-acções reflexas, ter uma adaptação em um unico sentido, unilateral, ao
-contrario da adaptação originada n’um principio racional, que é, na
-deliberação, multilateral.</p>
-
-<p>O dever é muitas vezes pela consciencia humana mal entendido, e a
-maneira de o entender varia com as condições mesologicas e com a
-ideosyncrasia individual. A obrigação moral póde ser vivamente sentida
-e muito mal entendida, facto que se observa a cada instante na vida
-historica da humanidade. Cada epoca da evolução humana apresenta uma
-série de factos que imprimem caracter, isto é, que são a expressão
-psychologica de um certo modo de sentir com côr propria e com tom
-particular, sem comtudo deixar de ser a mesma lei do dever que
-constantemente os inspira. Toda esta diversidade na historia do mundo
-moral é puramente externa; os phenomenos sociaes que principalmente
-influem sobre ella são a sympathia, a imitação, o contagio moral, a
-opinião, o costume, etc. É mister, na apreciação das acções moraes,
-distinguir duas cousas: 1.ᵃ a intenção com que nós praticamos o
-acto, 2.ᵃ o valor d’esse mesmo acto. Apreciar cada um a sua intenção
-é facilimo, porque é de uma clareza evidente. Não succede o mesmo
-com a apreciação do valor das acções<span class="pagenum" id="Page_44">[Pg 44]</span> sociaes que sendo difficil,
-é precisamente o que explica a variedade e o progresso da moral.
-A interpretação do bem e do mal no tempo e no espaço não é sempre
-identica, soffre profundas variações e differentes vicissitudes na
-evolução social, mas o que não soffre vicissitudes é a lei em virtude
-da qual a consciencia affirma a distincção entre as idéas do bem e do
-mal, á evidencia das quaes ninguem póde eximir-se.</p>
-
-<p>Perante a consciencia a idéa do bem garante-nos que a sua pratica é
-meritória, se é livre, independentemente das suas consequencias, porque
-a consciencia moral implica a idéa de uma lei e a obediencia livre
-a essa lei. Segundo Kant, o dever é um mandato que se nos apresenta
-imperioso sem que possamos perguntar-lhe pelos seus titulos e pela sua
-razão de ser. O seu valor intrinseco é para nós desconhecido.</p>
-
-<p>—<a id="FNanchor_21" href="#Footnote_21" class="fnanchor">[21]</a>Julgam os criminalistas italianos dever admittir a existencia
-d’um typo criminal; esta opinião é adoptada por um grande numero de
-criminalistas francezes. Segundo esta escola, distinguem-se claramente
-os criminosos, por seus caracteres physicos e psychicos, dos homens
-que pertencem ao mesmo meio e que vivem no mesmo tempo. Por esta arte,
-seria a maior parte dos criminosos fatalmente condemnada de nascimento,
-pela sua organisação physica e mental, ao latrocinio e ao assassinato,
-á violação ou ao incendio. O que são estes criminosos de nascimento?</p>
-
-<p>Serão loucos, por ventura, ou os representantes, no meio da civilisação
-actual, d’um estado social mais remoto, de costumes mais grosseiros
-e mais crueis? Estas duas theses já foram sustentadas, e até ambas o
-foram por Lombroso, o chefe da escola, que, depois de ter feito do
-criminoso um selvagem, foi levado a consideral-o como um alienado,
-como um louco moral, sem renunciar todavia completamente á opinião que
-abraçara o principio.</p>
-
-<p>Foi para reagir contra estas theorias que M. Tarde<a id="FNanchor_22" href="#Footnote_22" class="fnanchor">[22]</a> escreveu e
-colligiu em volume ha tres annos, os seus brilhantes e profundos
-estudos. Sem rejeitar absolutamente a existencia d’um typo criminal,
-procurava demonstrar que este typo profissional e que os traços communs
-aos malfeitores se explicavam, na maior parte, pela communidade de seus
-costumes.<span class="pagenum" id="Page_45">[Pg 45]</span> M. Joly, tomando entre mãos e por sua conta esta these,
-percorreu cuidadosamente as estatisticas e os inqueritos officiaes,
-interrogou medicos, administradores e magistrados, conversou com os
-inspectores de policia e com os directores de prisão, consultou as
-melhores obras d’anthropologia criminal, e mercê a todos os factos que
-recolheu, analysou e classificou, fez dos criminosos um retrato que
-pouco se assemelha ao que delineou Lombroso.<a id="FNanchor_23" href="#Footnote_23" class="fnanchor">[23]</a> Todavia os factos são
-os mesmos, mas vistos por outros olhos.</p>
-
-<p>Antes de procurar qual a interpretação que convem dar ao typo criminal,
-cumpre saber se ha realmente um typo criminal. Ora, é precisamente isso
-que parece contestavel. É de crer que a escola italiana haja ligado
-demasiada importancia aos caracteres physicos dos criminosos; porém
-estes caracteres não teem nem tanta constancia nem tanto valor como
-se imagina. As anomalias cranianas e cerebraes que foram verificadas
-nos criminosos são pelo menos tão frequentes nos homens de bem. Tem os
-primeiros os cerebros frequentemente asymetricos; a verdadeira razão
-d’isto é que os cerebros perfeitamente regulares são muito raros.</p>
-
-<p>Segundo os estudos de M. Bordier, resulta com effeito, que,
-ordinariamente, a curva frontal está reduzida nos craneos de
-assassinos, ao passo que a curva parietal antero-posterior se acha
-desenvolvida; mas d’esta estructura craneana só se deprehende que, para
-volume cerebral igual, ha uma certa inferioridade intellectual e uma
-certa exageração da actividade motora; o que é facil encontrar-se nos
-individuos que não praticaram crime algum nem teem tendencias para o
-praticar.</p>
-
-<p>Não podem entender-se os criminalistas ácerca dos traços distinctivos
-que attribuem aos criminosos: são de parecer alguns auctores que o
-criminoso é mais a miudo trigueiro que louro, mas estes auctores são
-italianos. A importancia que querem attribuir á grande frequencia da
-covinha media nos criminosos é muito diminuida pelo facto de se achar
-esta covinha nos judeus, e nos arabes, povos de criminalidade inferior
-com relação aos europeus, quatro vezes mais frequentemente do que nos
-não-criminosos. Não se póde, por outra parte, duvidar de que o genero
-de vida, a que se devem submetter os criminosos, exerça uma acção mais
-ou menos profunda sobre a sua organisação, por isso que muitos ladrões<span class="pagenum" id="Page_46">[Pg 46]</span>
-e até assassinos começam de muito novos a sua vida de aventureiros.</p>
-
-<p>É fóra de duvida que os criminosos teem uma physionomia adquirida;
-nem todos, aliás, teem esta physionomia, bem longe d’isso, e custaria
-muito constituir um typo unico a que se adaptassem igualmente os
-pick-pockets e os vagabundos, os fallidos, os moedeiros falsos e os
-assassinos de profissão. De resto, todos os que se teem occupado dos
-presos de pouca edade, M. Roukavichnikoff, por exemplo, teem ficado
-espantados da rapidez com que a sua expressão habitual se modifica,
-quando os collocam n’um meio differente d’aquelle em que até ali tinham
-vivido. O criminoso preso não se parece com o criminoso livre; tem uma
-physionomia muito caracteristica, que perde ao deixar a prisão, e é
-nos presos, não se deve esquecer, que foram feitas, na maior parte,
-as observações dos criminalistas. Parece pois prematuro, pelo menos,
-falar d’um typo criminal hereditario: os caracteres anatomicos dos
-criminosos, aquelles mesmos que parecem mais salientes (as orelhas
-volumosas, em fórma de azelhas, a barba rara, o prognatismo, o
-desenvolvimento exagerado dos queixos) não lhes são particulares.</p>
-
-<p>Terão, pelo menos, os criminosos, caracteres psychicos que os
-separem claramente dos outros homens? É tambem com a negativa que
-responde M. Joly. Ficamos perplexos quando, depois de ter lido os
-conscienciosos e profundos capitulos, que este escriptor consagrou á
-imaginação, intelligencia, sensibilidade, vontade e sentimentos moraes
-dos criminosos, perguntamos a nós mesmos se ha motivos para dar um
-logar á parte, á psychologia do criminoso, ao lado da psychologia do
-selvagem e da creança. Não se deprehende que os criminosos formem,
-como os alienados, uma familia natural; por mais sensivel que seja
-a differença entre um maniaco e um degenerado ou um melancolico, ha
-porém entre todos os loucos similhanças de tal fórma, que se poderia
-quasi constituir, ao lado da psychologia geral normal, uma psychologia
-morbida geral.</p>
-
-<p>As dissimilhanças, pelo contrario, são extremas, sob o ponto de vista
-psychologico, entre os criminosos e talvez fosse necessario reconhecer
-que o termo «crime» só tem uma significação social e moral. Se achamos
-symptomas de alienação mental n’um contemporaneo de Alcibiades, podemos
-affirmar que era louco; não podemos no entanto tratar de<span class="pagenum" id="Page_47">[Pg 47]</span> criminoso
-um Grego da mesma epoca por ter praticado actos que as nossas leis
-qualificam de crimes. Estamos no direito de inferir a existencia d’um
-mesmo estado mental em dois alienados, se estiverem sob o domínio
-de obsessões d’um caracter identico, por termos observado que estas
-obsessões são os symptomas d’uma doença que segue um andamento regular
-e que está ligada a perturbações psychicas determinadas.</p>
-
-<p>Mas que ha de commum entre o operario que alterca com o seu collega
-n’uma taberna, e entre o ladrão que assassina o homem que despoja
-para o impedir de gritar, e o marido que mata a mulher por ciumes ou
-pelo respeito á sua honra? O acto exterior é identico, os motivos que
-determinaram este acto são absolutamente differentes d’um homem para
-outro. Serão iguaes as razões que determinam ao roubo todos os ladrões?
-Não terá sido antes, para este, o mau exemplo que o impellisse, ao
-passo que para est’outro influisse a preguiça, e para aquelle o desejo
-de satisfazer ás exigencias d’uma amante? Existem outras semelhanças
-a não serem exteriores e grosseiras entre o especulador velhaco e o
-regateiro ladrão?</p>
-
-<p>Os actos d’um alienado, seja qual fôr o meio em que viva este alienado,
-teem um caracter muito pronunciado que permitte distingui-los dos actos
-d’um homem de juizo são; mas não podemos ajuizar se um acto é criminoso
-ou não, a não ser que conheçamos ao mesmo tempo o meio social a que
-pertence o auctor do acto e os motivos que o levaram a pratica-lo.</p>
-
-<p>Cumpre pois, a nosso vêr, não fallar em criminoso: é um ente de razão,
-uma entidade abstracta. Ha um grande numero de alienados entre os
-criminosos; mas a psychologia dos alienados criminosos é a mesma que a
-dos outros alienados: o degenerado que tem impulso para o assassinato
-ou para a violação não se differença em nada do onamatomano ou do
-dipsomano; um epileptico não merece por modo algum ser separado dos
-outros epilepticos por ter morto a sua mãe com um machado, e um idiota
-não deixa de ser idiota por ter deitado fogo, para se divertir, a uma
-meda de feno.</p>
-
-<p>Quanto aos criminosos que não são enfermos, poucas particularidades
-apresentam a sua intelligencia e a sua sensibilidade, que se não possam
-facilmente explicar pelo genero de vida a que a maior parte d’elles se
-entregam. A difficuldade de admittir um typo criminal congenito é tanto
-maior<span class="pagenum" id="Page_48">[Pg 48]</span> quanto não ha nada que prove nos factos escolhidos por Lombroso
-e sua escola, que esse typo seja hereditario; ha poucas familias de
-criminosos, e são causas sociaes e não psychologicas as que produziram
-as raras «dynastias» de assassinos que teem havido occasião de
-observar. A intelligencia dos criminosos de profissão é ordinariamente
-pouco desenvolvida; não devemos deixarmo-nos illudir pelo engenho
-muitas vezes maravilhoso com que combinam e executam os «lances» que
-projectam, e pela manha que empregam para se subtrahirem ás pesquisas
-da policia. Em geral, os malfeitores só teem um numero de idéas muito
-restricto; estas idéas occupam constantemente o seu espirito, todos os
-esforços da sua intelligencia convergem para essas idéas; fóra d’este
-circulo limitado de preoccupações, são quasi sempre de espirito tardo e
-mediocre; excessivamente rotineiros, teem uma certa tendencia para se
-servirem indefinidamente dos mesmos meios. Cada ladrão acostuma-se aos
-processos que escolhe e deshabitua-se de todos os outros.</p>
-
-<p>«O conjuncto das astucias de todos os ladrões reunidos é uma cousa
-prodigiosa, como o conjuncto das astucias dos animaes; mas na
-realidade, cada um só emprega uma»<a id="FNanchor_24" href="#Footnote_24" class="fnanchor">[24]</a> de resto, se estas astucias
-são a miudo frustradas, é porque geralmente, os criminosos carecem
-de sequencia nas idéas; cançam-se depressa, teem confiança no acaso,
-acreditam estupidamente na fatalidade, apressam-se em tirar proveito do
-crime que commetteram; e tal é a sede de gozos que os aperta, que para
-satisfazerem os seus appetites breve chegam a descurar toda a sorte
-de precauções. As mais das vezes a imaginação dos criminosos é muito
-mediocre.</p>
-
-<p>Se as imagens que os perseguem de vez em quando e os arrastam ao
-crime teem uma intensidade tão forte, é mesmo por causa da pobreza,
-da esterilidade da sua imaginação: toda a imagem, isolada, adquire um
-poder extremo. A litteratura e a arte dos criminosos nenhum caracter
-especial apresentam: se o ladrão ou o assassino ignorante compõe ás
-vezes versos, é porque é «povo»,<a id="FNanchor_25" href="#Footnote_25" class="fnanchor">[25]</a> porque a situação d’elle o torna
-scismador, porque tem ocios que é forçoso encher. A tatuagem não é
-unicamente costume dos criminosos; é um facto de sobrevivencia, um
-costume que persistiu muito tempo<span class="pagenum" id="Page_49">[Pg 49]</span> nas classes inferiores e que se vae
-apagando: as meretrizes, os marinheiros, alguns operarios, pintam-se
-como os criminosos. «Se os criminosos se distinguem dos homens do povo
-não é pelo amor aos letreiros, ás imagens, ás tatuagens e á linguagem
-da imaginação: é pela natureza das cousas que gostam desenhar, de
-recordar e de exprimir.»<a id="FNanchor_26" href="#Footnote_26" class="fnanchor">[26]</a></p>
-
-<p>A sensibilidade physica dos malfeitores não parece ser tão
-profundamente alterada como o sustenta a escola italiana: convem,
-talvez, deixar uma boa parte á simulação. Nada ha menos demonstrativo
-do que a approximação que faz Lombroso do criminoso e do selvagem,
-tanto mais quanto que parece que se exagerou demasiadamente a
-insensibilidade dos proprios selvagens. Encontram-se factos
-interessantes a este respeito nas <i>Cartas edificantes e curiosas</i>.
-Toda a sensibilidade dos criminosos está pervertida e enferma, eis toda
-a verdade; a vida irrequieta que levam, a ociosidade, a depravação, e
-principalmente a depravação contra a natureza, tão frequentes entre
-elles, os excessos alcoolicos, são motivos sufficientes para isso. O
-carcere tem quasi sempre sobre elles uma acção calmante e deprimente
-ao mesmo tempo; a sua sensibilidade aquieta-se e adormece. Chegam,
-gradualmente, a uma indifferença profunda, a um verdadeiro horror da
-acção e da lucta que faz com que muitos d’elles encarem com terror o
-momento de deixar a prisão. A vontade dos criminosos enfraquece-se
-e exalta-se ao mesmo tempo, é o resultado necessario dos actos que
-praticam e dos costumes que contrahem fatalmente; mas a sua vontade
-nem por isso deixa de ser uma vontade normal. Os desejos que impellem
-para o crime os malfeitores nada teem de commum com os impulsos
-irresistiveis dos epilepticos e dos degenerados. Nem tão pouco devemos
-considerar os criminosos como uns «abulicos», isto é como joguetes
-irresponsaveis e semi-inconscientes das circumstancias em que o
-acaso os collocou. O que é certo é que a sua vontade em geral nem é
-aniquilada nem fortificada pela vida que levam; torna-se desigual
-e caprichosa, ora desfallecida ora arrebatada. Porém, com o tempo,
-enfraquece; gasto pela existencia aventureira a que está condemnado,
-o criminoso já nem força tem para querer o crime, não podendo pois
-commetter crimes, desforra-se em commetter delictos.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_50">[Pg 50]</span></p>
-
-<p>O sentimento moral não desappareceu, na maior parte dos criminosos, e
-quero aqui falar dos criminosos de profissão; raras vezes se deixa de
-encontrar consciencia alguma da culpabilidade dos actos que praticaram.</p>
-
-<p>Os accusados que mostram esse cynismo e essa impassibilidade que nos
-espanta por vezes nos interrogatorios, são quasi sempre individuos
-feridos de debilidade mental ou degenerados.</p>
-
-<p>A maior parte dos criminosos «seduziram-se» a si proprios para
-se arrastarem ao crime; tiveram que sustentar verdadeiras luctas
-interiores. Os malfeitores ainda novos tratam de justificar os seus
-actos com arrazoados declamatorios contra a sociedade; os presos velhos
-não gostam de fallar no que teem feito.</p>
-
-<p>Raro é que os criminosos não se perturbem deante da morte e que não
-manifestem nos derradeiros momentos sentimentos de arrependimento e de
-fé religiosa: quasi todos accolhem com prazer as visitas do capellão.
-É verdade que é preciso deixar uma boa parte á hypocrisia e ás crenças
-supersticiosas; mas o que não é menos certo é que observadores, poucos
-dispostos a illudir-se, ficaram muitas vezes assombrados da fé sincera
-que parecia acordar no coração de certos malfeitores no fim de seus
-dias. Não tem isto nada que admirar.</p>
-
-<p>No silencio da prisão, calam-se as paixões, e os que nada já tem que
-temer ou que esperar da vida podem frequentemente voltar inconscientes
-ás crenças que a educação lhe tinha dado; podem ouvir, no mais
-recondito do peito, como que um echo enfraquecido d’estes sentimentos
-moraes e sociaes que lentamente se formavam na especie com o andar da
-evolução.</p>
-
-<p>Não são geralmente sem duvida motivos desinteressados que os inclinam
-para o arrependimento, mas convém que sejamos menos exigente que M.
-Despine: não nos causa admiração o não achar-se nos criminosos esse
-puro respeito do dever que o proprio Kant considerava superior á
-natureza humana.</p>
-
-<p>Não é necessario reflectir muito para ver a differença extrema que
-existe entre este estado de espirito e o dos alienados criminosos; não
-parece possivel a confusão, a não ser entre alguns debeis e certos
-criminosos, muito ignorantes, inintelligentes e grosseiros.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_51">[Pg 51]</span></p>
-
-<p>Segundo as estatisticas, as mulheres commettem em proporção muito
-menos crimes do que os homens; mas essas estatisticas precisam muito
-de ser interpretadas. Um grande numero de crimes ha que as mulheres
-não teem occasião nem força de commetter, e quando se tracta de actos
-ao seu alcance, as proporções mudam logo; sobre 100 envenenamentos,
-ha 70 commettidos por mulheres. De resto, ellas são com frequencia
-as instigadoras, as cumplices secretas de crimes que não querem
-executar ellas mesmas. A sua consciencia se perverte mais completa e
-rapidamente; são mais capazes que o homem de actos de crueza fria e
-reflectida. Ora hypocritas, ora ousadas e cynicas, gostam de mentir e
-de enganar; menos capazes do que o homem de verdadeiro arrependimento,
-são mais estreitamente do que elle aferradas ás practicas
-supersticiosas. É muito difficil de as fazer voltar para o caminho
-recto depois de se terem transviado. Não nos devemos admirar d’isso;
-emquanto a sua sensibilidade seja instavel, a mulher é tyrannicamente
-subjugada pelos seus habitos; as idéas, as razões teem pouca influencia
-sobre ellas; a vida da prisão, silenciosa e regular, custa-lhe mais a
-supportar que ao homem; não póde prescindir de sympathia e de ternura á
-roda d’ella; depressa se corrompe quando não se sente amada.</p>
-
-<p>É evidente que, se o typo criminal não existe, a questão de saber se
-esse typo é anastral não se póde formular. Mas M. Joly vae mais além,
-quando affirma que, admittindo a hypothese da existencia d’um typo
-criminal, é impossivel explical-a pelo atavismo. O criminoso não se
-parece com o selvagem, apezar das affirmações da escola italiana; o
-roubo dos moveis é castigado com rigor nos povos primitivos; todos
-sabem que castigos terriveis attrahe sobre si o culpado de violação das
-prescripções religiosas; ha para os casamentos, para todos os actos
-de vida regras precisas ás quaes é obrigatorio submetter-se e que de
-facto, raras vezes são violadas. Os proprios australios, segundo o
-testemunho de Perron d’Arc, sabem distinguir entre uma vingança justa e
-em acto de brutalidade; o rapto, o adulterio, o incesto, as offensas a
-um chefe são castigadas com a morte.<a id="FNanchor_27" href="#Footnote_27" class="fnanchor">[27]</a></p>
-
-<p>Na realidade, muitas ideas que, lentamente se foram deslindando, estão
-ainda confusos na mente d’uns selvagens: a<span class="pagenum" id="Page_52">[Pg 52]</span> idéa do peccado, a idéa
-do crime e a do prejuizo praticado contra alguem, estão estreitamente
-ligadas; foi preciso uma longa evolução social para permittir ao
-direito criminal constituir-se separadamente do direito civil e da lei
-religiosa. O que, em summa, faz falta ao selvagem, é a noção juridica
-do crime; e não devemos ficar muito surprehendidos com isso.</p>
-
-<p>Tratou-se de explicar o crime por uma falta de adaptação mutua do
-criminoso e da sociedade; mas isso não é mais do que uma definição
-do crime, ou melhor, a constatação d’um facto, todavia não é uma
-explicação. O que seria preciso explicar é porque o criminoso é incapaz
-de se adaptar ao meio social em que vive. Ha para isso duas especies
-de causas: causas sociaes e causas individuaes. As causas sociaes são
-as que M. Joly se propõe estudar detidamente no seu proximo volume.
-As causas individuaes são os appetites, os desejos, as maneiras de
-sentir e de querer, em summa, todo o caracter do criminoso; o crime é
-o resultado d’um conflicto entre uma sociedade que está submettida a
-certas regras e um homem que não póde ou não quer, em conformidade com
-a structura do seu caracter, sujeitar-se a observal-as.</p>
-
-<p>Todas as vezes que o conflicto se torna agudo e que o individuo
-está resolvido a praticar actos de certa gravidade, estes actos são
-qualificados de crimes; mas uma grande serie de actos cabem entre
-actos socialmente bons e os crimes; não ha fronteira alguma social
-que separe os crimes e os delictos das faltas contra a honra ou a
-delicadeza, a distincção é uma distincção juridica, imposta pelas
-necessidades practicas. O limite entre os crimes e os actos que a
-justiça deixa impunes é um limite arbitrario; varia d’uma legislação
-para outra. O criminoso é um homem como os mais; mas tem paixões muito
-fortes, não sabe resistir-lhes nem satisfazel-as por meios legaes; não
-tem a coragem de se resignar nem a de trabalhar e luctar, quer gozar,
-mas sem esforços, quer por fraude, quer pela força, apoderar-se-ha
-do que deseja. Talvez achasse meio, em outra sociedade, de empregar
-utilmente a fórma de actividade que possue; mas prefere resignar-se ao
-crime, que sujeitar-se a um officio que o aborrece. Cumpre notar que é
-principalmente do verdadeiro criminoso, do criminoso de profissão que
-se trata aqui, mas não serão tambem criminosos, criminosos incompletos,
-bem entendido, os negociantes pouco escrupulosos, os jornalistas mal
-reputados,<span class="pagenum" id="Page_53">[Pg 53]</span> os seductores de meninas, os operarios ebrios e brigões,
-promptos a fazerem uso da faca? O criminoso é essencialmente um
-preguiçoso, mas é um preguiçoso dotado por vezes de alguma energia; se
-não tiver essa energia de curta duração, se tiver paixões menos vivas
-e alguns escrupulos ainda, o preguiçoso sem dinheiro é incapaz de o
-ganhar, ficará sendo toda a vida um vagabundo sem se tornar jámais
-um criminoso, é sobre tudo entre os vagabundos que se recrutam os
-criminosos de profissão, mas a vagabundagem está longe de conduzir ao
-crime. «O crime do homem póde começar pela vagabundagem da creança,
-como tambem póde principiar pela falta de delicadeza, pela intriga,
-pela immoralidade elegante, pelo espirito de lucro. Nada prova que
-d’ahi resulte inevitavel e necessariamente.»<a id="FNanchor_28" href="#Footnote_28" class="fnanchor">[28]</a> A prostituição da
-mulher corresponde á vagabundagem do homem: da mesma fórma essa não
-constitue por si mesma crime nem delicto, como tão pouco conduz
-necessariamente ao crime, ha meretrizes muito probas, muito capazes
-de conceber amizades desinteressadas, muito affectuosas para com seus
-filhos, muito sinceras; ha até varias que conservaram sentimentos
-religiosos, mas todavia é no mundo das prostitutas que se recrutam
-a maioria das ladras. A vida que levam predispõe as ao crime, mas
-está bem longe de as condemnar necessariamente a isso; para a maior
-parte d’ellas, o seu officio é um officio verdadeiro que exercem com
-probidade; não fallam das ladras senão com desprezo, e das más mães com
-uma especie de horror.</p>
-
-<p>As classes criminosas não teem maior estabilidade do que as outras;
-renovam-se incessantemente; ha poucas familias de malfeitores. Apenas
-existe uma classe, para dizermos a verdade, que é este montão instavel
-de seres cahidos; mil motivos diversos dão origem aos criminosos, por
-isso é que ha muitos typos de criminosos, muito distinctos entre si;
-as unicas semelhanças são semelhanças exteriores que teem as suas
-causas no mesmo genero de vida e costumes communs. Eis os typos que M.
-Joly julgou dever distinguir: os inertes, os violentos, os viciosos,
-os calculadores ferozes; facilmente achariamos na vida ordinaria quem
-lhes fique parallelo. Mas a distincção que domina todas as mais é a do
-criminoso por accidente e a do criminoso por habito. Entre os crimes,<span class="pagenum" id="Page_54">[Pg 54]</span>
-ha alguns que são verdadeiros accidentes; os que os praticaram apenas
-são responsaveis, o acto que commetteram lhes é decerto modo extranho;
-convem necessariamente castiga-los, elles não tornarão a fazer o mesmo,
-tem-se a certeza d’isso antecipadamente. Mas em compensação, quantos
-crimes ha que parecem ser accidentaes, e que foram preparados por toda
-a vida anterior pelos que d’elles se tornaram culpaveis. Um crime póde
-não ser premeditado, não ter sido desejado sem deixar por isso de
-ser a obra verdadeira d’aquelle que o praticou. O accidente acontece
-quasi sempre áquelle que se expoz para succumbir, que não tratou de
-fugir ás tentações demasiado fortes; semelhante acto é o producto
-d’uma vontade, mas d’uma vontade que se abandona. Para um homem
-accidentalmente culpavel, o verdadeiro perigo, é que o seu crime fique
-impune; o medo do castigo se embota, o remorso do crime se acalma,
-o culpado é orgulhoso da sua habilidade, acostuma-se a contar com o
-acaso como um jogador que começou por ganhar. Pouco a pouco deixa-se
-arrastar a um novo crime. Se se deixar então prender, se fôr condemnado
-a prisão, o contacto com os presos, as horas pesadas e vazias que passa
-nos dormitorios e nos pateos, acabam a obra que a vida de aventuras
-começou, a vida inquieta e perturbada que levou por muito tempo.
-A situação difficil que é propria do homem livre, lhe torna quasi
-impossivel voltar para o seu officio, a não ser que tenha uma rara
-energia; um unico officio fica aberto deante d’elle o de malfeitor: o
-criminoso de costume, tornou-se criminoso de profissão.</p>
-
-<p>O que estabelece uma linha de separação bem clara entre os criminosos e
-alienados, é precisamente que, para um grande numero de criminosos, o
-roubo é uma profissão; é um officio de que vivem. Isolado, o criminoso
-não póde senão com custo exercer a sua industria, precisa forçosamente
-cumplices. Parece, segundo as estatisticas que as associações
-criminosas se tenham tornado muito mais raras do que out’ora; mas é
-uma pura apparencia; o Estado mais perfeitamente armado, a policia
-melhor organisada, as communicações mais faceis e rapidas tornaram mais
-difficil a formação de quadrilhas regulares, de associações submettidas
-a um chefe; mas contrariamente ás affirmações dos relatorios officiaes,
-o espirito de associação dos malfeitores não tem diminuido; não ha
-ladrão sem encobridor; os malfeitores precisam<span class="pagenum" id="Page_55">[Pg 55]</span> ser informados dos
-ataques que podem realisar, é necessario que os indicadores preparem
-o terreno, «alimentem o negocio» antes de se atreverem a tentar. Uns
-são muito habeis na execução d’um plano que não saberiam imaginar;
-outros carecem da força e da destreza que se precisam para executar os
-planos que elles proprios traçaram; d’ahi resulta uma divisão natural
-do trabalho. Ha certas especies de delictos e de crimes que só se podem
-commetter com gente bastante. Para pôr em circulação a moeda falsa,
-é preciso serem tres pelo menos, um fabricante e dois emissores; é
-a forma mais habitual da associação criminosa: Ha trios de ladrões
-á roleta e de salteadores de casas, como os ha tambem de moedeiros
-falsos. O trio geralmente forma-se entre vadios, os frequentadores de
-bailes publicos, dos botequins baratos, de casas mobiladas suspeitas, e
-das tabernas pobres; durante o verão, é vadiando nos parques, ao longo
-do caes, ou sentado nos bancos dos passeios exteriores que o ladrão
-tem a probabilidade de encontrar socios. Estas associações fazem-se e
-desfazem-se facilmente; são frequentes vezes ligadas umas ás outras
-por laços mais ou menos estreitos. É nas prisões que estes laços se
-apertam ainda mais, que os bandos tomam uma organisação mais forte; os
-roubos bem feitos são os que se meditam na prisão. Todos os presos se
-conhecem, quando estão em liberdade sabem encontrar-se.</p>
-
-<p>Uma fórma de associação ainda mais geral, é a da meretriz e do seu
-rufião. A burla é n’esse meio a fórma de expoliação que está mais
-em voga; é principalmente no mundo da prostituição anti-physica que
-grassa, e ahi o rufião é quasi sempre um assassino. Ao lado d’estas
-associações restrictas começam a organisar se vastas associações
-internacionaes que estão destinadas, se a repressão se descuida, a
-estenderem-se sobre o mundo inteiro: M. Joly dá interessantissimos
-exemplos d’este facto que lhe foram fornecidos pelo serviço policial.</p>
-
-<p>Tal é, em resumo, a ideia que se póde fazer dos criminosos, segundo o
-livro de M. Joly. Não estamos muito longe de compartilhar esta ideia;
-parece-nos porém que M. Joly não determinou com exactidão as relações
-que existem entre o crime e a alienação mental. Não ha duvida que o
-criminoso e o alienado sejam muito differentes um do outro; mas existe,
-entre os reus que os tribunaes condemnam, uma proporção mais importante
-de alienados do que julga M. Joly,<span class="pagenum" id="Page_56">[Pg 56]</span> e se tomasse conta dos absolvidos
-por incompetencia do tribunal e por falta de provas, ver-se-hia que
-n’uma grande parte os crimes contra as pessoas, e sobre tudo os crimes
-sexuaes são commettidos por irresponsaveis. Os idiotas, os imbecis,
-os debeis, os degenerados, os epilepticos, os delirantes chronicos
-podem em certas occasiões tornar-se todos criminosos em razão das
-perturbações psychicas que apresentam; esta occasião apresenta-se-lhes
-com frequencia e em geral sabem aproveital-a. Os paralyticos geraes
-povoam os tribunaes correccionaes, e muitos negocios de «chantage»
-não teem outra origem senão as concepções delirantes d’um degenerado
-perseguidor. A loucura não é desgraçadamente uma doença rara, e
-não admira que seja entre os seres cuja vontade está enferma, a
-sensibilidade pervertida e a imaginação exaltada, que os criminosos se
-recrutem mais facilmente.</p>
-
-
-<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_13" href="#FNanchor_13" class="label">[13]</a> É para notar como os poucos escriptores que recentemente
-em Portugal teem tratado de criminologia se revellam todos contra a
-idea da liberdade individual, dizendo-se positivistas e enfileirando-se
-confusamente na escola metaphysica do determinismo materialista.
-Vejam-se as obras dos srs. A. Azevedo Castello Branco, Julio de Mattos,
-e até certo ponto ainda os trabalhos dos srs. Bernardo Lucas e dr.
-Basilio Freire.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_14" href="#FNanchor_14" class="label">[14]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Les irresponsables devant la justice</i>, par A.
-Riant, Docteur en médecine, licencié en droit, lauriat de la Faculté de
-droit de Paris, ancien secrétaire de la Société de Médecine legale de
-France, etc.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_15" href="#FNanchor_15" class="label">[15]</a> Este trecho já serviu de argumento sentimental a um
-illustre jornalista portuguez.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_16" href="#FNanchor_16" class="label">[16]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Élements du droit pénal</i>, pag. 80 par M. Ortolan.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_17" href="#FNanchor_17" class="label">[17]</a> Cl. Bernard, <i xml:lang="fr" lang="fr">La science experimentale</i>, Physologie
-du coeur, pag. 361.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_18" href="#FNanchor_18" class="label">[18]</a> <i>Tratado do Direito Penal</i>, por P. Rossi. Pag.
-260-261.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_19" href="#FNanchor_19" class="label">[19]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">L’ordre social et l’ordre moral</i> por A. Bertauld,
-pag. 18.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_20" href="#FNanchor_20" class="label">[20]</a> Elie Rabier, op. cit.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_21" href="#FNanchor_21" class="label">[21]</a> O trecho que segue é devido á penna de L. Marillier,
-publicado em artigo na <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue Scientifique</i>. n.ᵒ 16, de 1889.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_22" href="#FNanchor_22" class="label">[22]</a> J. Tarde, <i xml:lang="fr" lang="fr">La criminalité comparée</i>, 1886.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_23" href="#FNanchor_23" class="label">[23]</a> H. Joly, <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, étude sociale, 1888.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_24" href="#FNanchor_24" class="label">[24]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, pag. 171.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_25" href="#FNanchor_25" class="label">[25]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, pag. 177.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_26" href="#FNanchor_26" class="label">[26]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, pag. 188.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_27" href="#FNanchor_27" class="label">[27]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, pag. 13.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_28" href="#FNanchor_28" class="label">[28]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime</i>, pag. 42.</p>
-
-</div>
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_57">[Pg 57]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="III">III</h2>
-</div>
-
-<div class="section">
-
-<p>A base do direito de punir. O papel da psychopathia na
-responsabilidade legal. O fanatismo, a suggestão hypnotica e a pena
-capital. A influencia legitima da consciencia moral em direito penal.</p>
-</div>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p xml:lang="fr" lang="fr">Les crimes purement moreaux, et qui ne laissent aucune prise à la
-justice humaine, sont les plus infâmes.</p>
-
-<p class="right">
-H. BALZAC.<br />
-</p>
-</div>
-
-
-<p>O direito ideal com o seu caracter de inviolavel, de absoluto, de
-universal, não póde ter por principio o <em>desejo</em> de Helvetius,
-a <em>necessidade</em> de Tracy, a <em>força</em> de Hobbes, ou a
-<em>utilidade social</em> de Spinosa, o unico fundamento legitimo do
-direito é a liberdade ou a <em>autonomia da pessoa</em>, segundo a
-expressão de Kant: «O dever e o direito são irmãos, diz Victor Cousin,
-a sua mãe commum é a liberdade.»</p>
-
-<p>O direito penal classico estudou perante a psychologia normal e perante
-a ethica a base do direito de punir, com muito mais profundidade e
-alteza de vistas, do que as escolas revolucionarias contemporaneas.
-Tissot e Romagnosi fizeram a analyse completa das condições
-indispensaveis sobre que assenta o direito de repressão. É preciso
-reconhecer todavia que ha uma porção de verdade em todas as opiniões,
-pois que elles teem todas uma certa razão de ser, quer em nossos
-instinctos apaixonados, quer na nossa consciencia.<span class="pagenum" id="Page_58">[Pg 58]</span> «Assim,<a id="FNanchor_29" href="#Footnote_29" class="fnanchor">[29]</a> em nome
-dos principios precedentemente estabelecidos podemos dizer com verdade
-que ao homem não toca mais o <em>dever de punir para punir</em>, do que
-missão e meios de manter a ordem absoluta do mundo moral; tão pouco lhe
-toca o <em>direito de punir para punir</em> ou com o fim de restabelecer
-embora a ordem juridica, e só pela consideração da necessidade
-moral, ou d’essa ordem em si; mas tem o direito de <em>punir para se
-defender</em> ou no interesse da sua conservação. A sociedade investida,
-no interesse geral, do exercicio d’este direito, vendo, aliás, na lesão
-praticada em um dos seus membros um perigo e uma ameaça para todos os
-outros, com razão se preoccupa pelo futuro, e procura prevenir, com
-uma pena aliás justa a repetição da injustiça. O direito de defesa não
-se applica (sómente) ao individuo desarmado, preso, algemado e desde
-então impotente; o direito da defesa applica-se ao futuro, applica-se
-á intimidação, e quando a sociedade fere para se defender, é menos
-para se defender contra aquelle a quem fere, do que para se defender
-contra a repetição, contra a renovação dos crimes que ella prescreveu
-e puniu.<a id="FNanchor_30" href="#Footnote_30" class="fnanchor">[30]</a> Ninguem contesta o direito de defesa; negá-lo seria negar
-o direito de existir. E como se reconheceria por isso mesmo o direito
-de vida e de morte a uns homens sobre outros homens, seria faltar ao
-mesmo tempo á justiça e á logica. Fica pois estabelecido que o direito
-de punir, se por isso se entende o direito de defesa, existe e até
-como existencia necessaria, pois que da sua negação resultaria uma
-contradicção, isto é, o impossivel. Toda a difficuldade consiste, pois,
-em saber se o direito de punir, no sentido de expiação, de retribuição
-do mal pelo mal, de meio de correcção ou de reparação moral, é um
-direito para o homem, e até o deve exercer, que isso lhe cumpre. Ora,
-suppondo que seja de justiça fazer a outrem o mal que se recebeu,
-haveria n’isso um problema de uma difficuldade quasi insoluvel para o
-homem. Bem podemos, sem duvida, apreciar comparativamente as cousas
-materiaes da mesma especie; é assim que uma moeda de cobre ou prata
-equivale a outra do mesmo peso e do mesmo metal e feitio, ou que um
-metro de tecido de uma certa qualidade conhecida póde equivaler ainda
-a um outro, ainda que n’estes já se apresentam differenças que se não
-percebem facilmente.<span class="pagenum" id="Page_59">[Pg 59]</span> Mas as difficuldades são notavelmente grandes e
-embaraçosas se compararmos não já materia com materia, mas cada materia
-susceptivel de ser um objecto de direito em relação a um proprietario
-ou a outro, se considerarmos a acção culpada em relação ao grau de
-intelligencia, de liberdade e de moralidade do agente. Para exercer
-exacta e boa justiça não basta conhecer mais ou menos perfeitamente o
-corpo de delicto, a natureza do mal commettido; é necessario apreciar
-além d’isso o grau de maldade que presidiu á acção, e o grau de
-soffrimento d’ahi resultante.</p>
-
-<p>Ora nós temos como certo que não ha homem, nem tribunal no mundo no
-caso de proferir uma sentença sobre qualquer delicto revestida d’esta
-precisão necessaria. Ainda mais, nem os mesmos agentes ou pacientes
-são capazes de se julgar perfeitamente a este respeito, cada um no que
-pessoalmente lhe diz respeito; com mais forte razão mal poderão elles
-ser bem julgados um pelo outro ou ambos por terceiros. Assim, n’este
-ponto de vista, é o homem absolutamente incapaz de administrar boa
-justiça. Isto ainda assim na supposição de que o homem emprehendesse
-esta temivel empreitada, era tão perspicaz, tão attento, tão amigo
-da justiça quanto o póde ser um mortal. Que seria se as paixões, os
-preconceitos, a preguiça, a ignorancia viessem a turvar ainda um
-julgamento aliás tão difficil de proferir! Felizmente é isso antes um
-problema moral, que um problema juridico, e o legislador, o principe, o
-juiz, não sómente não estão obrigados a resolvê-lo, porque não é essa
-a sua missão, mas bem pelo contrario deveria impor-se-lhes a obrigação
-de se absterem de tal. Não podendo absolutamente fazer reinar a ordem
-moral pura nos corações, cumpre-lhe deixar esse cuidado áquelle que só
-póde penetrar em tal abysmo, ao unico poder capaz de lhe dar remedio.</p>
-
-<p>Que seria, por outro lado, esta retribuição do mal pelo mal, suppondo
-que ella fosse possivel no homem? Qual o seu fim? Justa é que nós
-desejamos que seja e isso basta para que seja sabia. Só Deus é assaz
-intelligente e assás poderoso para fazer com que um criminoso passe
-pela justa medida de soffrimento que merece a sua maldade considerada
-em relação ao soffrimento occasionado. Mas esta retribuição de um mal
-physico por um outro mal da mesma natureza reparará, póde acaso reparar
-o mal moral, a culpabilidade? Póde fazer como que não tenha existido?
-Esta virtude nem<span class="pagenum" id="Page_60">[Pg 60]</span> mesmo Deus lh’a póde dar. Não destroe pois em nada
-absolutamente o mal moral do delicto; não o apaga de modo algum, e se
-a expiação se definisse «a reparação do mal moral pelo mal physico,» a
-expiação seria absurda e impossivel. Entender-se-ha, ao contrario, por
-expiação a reparação do mal physico, de um pelo mal physico d’outro?
-Nenhuma expiação possivel ainda n’este sentido, pois que o mal physico
-occasionado pelo delicto não foi por isso menos soffrido, quer o
-delinquente soffra ou não soffra um mal igual. Só a reparação civil,
-que não devemos confundir com a pena, só ella poderia operar ás vezes
-uma compensação mais ou menos sufficiente. Mas a pena propriamente dita
-não póde absolutamente produzir nada semelhante, a menos, todavia que a
-necessidade e a satisfação da vingança não sejam aqui dadas como base
-do direito de punir, o que não é sem duvida o pensamento d’aquelles
-que sustentam a existencia d’um semelhante direito. Mas ainda que
-esses sentimentos podessem ser tomados em mui séria consideração e que
-se podesse definir a expiação «o direito de vingança» seguir-se-hia
-que bastaria aggravar todo o delicto pelo assassinato para tirar toda
-a razão de punir o criminoso; bastaria avultar o crime para obter a
-impunidade; ou antes ainda bastaria, para desarmar a justiça, que a
-victima quizesse perdoar ao algoz. Finalmente, se a expiação é «um
-meio physico de fazer nascer no criminoso o arrependimento, o respeito
-da justiça, a sympathia e o amor da humanidade», em presença d’esta
-definição tambem o homem não tem direito a punir: 1.ᵒ porque n’isso
-se trata d’um estado moral interno que não tem missão de estabelecer,
-pelo menos em nome do direito; 2.ᵒ porque não conhece esse estado;
-3.ᵒ porque não ignora os meios proprios de o procurar; 4.ᵒ porque se
-privaria da applicação do principio de reciprocidade no caso do crime
-capital, pois que não poderia exercel-o, quer houvesse arrependimento,
-quer não: se o houvesse, seria inutil a pena; se o não houvesse,
-seria necessario não o tornar impossivel com a morte do criminoso;
-5.ᵒ porque em todo o caso o arrependimento tornaria a pena inutil e,
-portanto, injusta; 6.ᵒ porque a hypocrisia surprehenderia muitas vezes
-a justiça; 7.ᵒ porque a pena seria antes uma occasião de fraude; 8.ᵒ
-porque se a pena só fosse um meio de trazer o arrependimento, haveria
-o direito de a prolongar ou de a aggravar indefinidamente até obter
-se o fim; 9.ᵒ porque todas as penas<span class="pagenum" id="Page_61">[Pg 61]</span> do mundo, principalmente quando
-excedem a culpabilidade, são meios mui poucos seguros de trazer ao
-reconhecimento da falta commettida; podem reter, mas não converter. A
-mudança moral do criminoso não póde ser portanto o fim essencial da
-pena, ou, se o é, está nas mãos de Deus, que só póde saber fazer o que
-convem a este respeito. Mas não poderia Deus delegar nos homens, nos
-soberanos o direito de punir? Eis o que se tem discutido muitas vezes
-e discute ainda. Nós seriamos d’este parecer se elle ao mesmo tempo
-se dignasse delegar-lhes a sua sabedoria; de outro modo não podemos
-comprehender que lhes confira um direito que elles são naturalmente
-incapazes de exercer. A melhor prova portanto, a nosso ver, de que
-elle deixou ficar para si só o direito de punir, é que elle recusou ao
-homem as luzes e o poder necessarios para exercê-lo justa e utilmente.
-Esta impossibilidade de uma plena justiça n’este mundo é um dos mais
-poderosos argumentos em favor de uma vida futura, se é que admittimos,
-como não podemos deixar de admittir, um Deus santo e providente.</p>
-
-<p>O homem está tão longe de poder punir, como vulgarmente se entende esta
-parte da justiça; é tão duvidoso que tenha recebido este direito por
-delegação celeste, que o mesmo Deus não poderia exercel-o, a menos que
-não repugnasse á sua bondade e á sua santidade suprema fazer soffrer
-a uma creatura um mal physico sem outro resultado que esse mesmo
-soffrimento, motivado somente n’um soffrimento igual supportado por uma
-outra creatura em consequencia da acção punida. Nós reconhecemos que a
-justiça absoluta não parece reclamar contra esta penalidade vingadora,
-que até parece reclamá-la; sabemos que a justiça não tem necessidade
-de ser util para ser legitima, que tem em si mesma sua propria razão
-de ser, que faz parte da ordem moral, da ordem do direito. Mas, visto
-que acima da ordem juridica, que é puramente negativa, ha no mundo
-moral ainda um grau superior de perfeição, a de um bem moral positivo,
-porque não seria a pena, restabelecendo a ordem negativa, corrigindo
-a desordem, um meio para uma ordem melhor, um encaminhamento para o
-bem? E se Deus tem a intelligencia e o poder necessario para assim
-fazer sair o bem do mal, porque o não faria? Porque deixaria elle aos
-homens o direito de corromper as suas disposições, de separar os meios
-do fim, de aggravar o estado moral do mau tornando-o<span class="pagenum" id="Page_62">[Pg 62]</span> peor pela pena?
-Acautelemo-nos todavia de cair n’uma vã disputa de palavras visto que
-fica assente chamar direito de punir o direito de se proteger, de se
-defender, seria pelo menos pueril disputar a tal respeito; mas para
-não disputar mais, é necessario entendermo-nos. Em resumo: o homem
-não tem missão de punir, para punir, isto é para restabelecer a ordem
-moral perturbada pelo delicto, para fazer reinar a justiça absoluta,
-applicando ao deliquente a lei por que elle se torna culpado. Não; e
-posto que haja n’isso uma justiça, absoluta, objectiva a restabelecer;
-ainda que o direito de punir propriamente dito só esteja n’isso e não
-em outra causa; posto que o principio da reciprocidade, seja mystico,
-falso, absurdo e fanatico, sem regra como sem medida; ainda que pareça
-que o homem tem não sómente o direito, mas ainda o dever de fazer
-reinar a justiça, encarada assim, pertence á ordem absoluta das cousas,
-ao bem ou á moral em si, e o homem não tem a missão de fazer reinar
-esta ordem senão na sua pessoa individual e não na sociedade; porque
-lhe é aliás impossivel estabelecer este reinado da justiça absoluta
-de uma maneira perfeita, visto que elle não conhece sufficientemente
-os caracteres moraes do delicto, a natureza e o grau de soffrimento
-d’aquelle a quem lesou, visto que não possue os meios mais proprios
-para operar perfeitamente perante a reciprocidade pela escolha perfeita
-da natureza e da medida da pena; o direito de punir que lhe resta não
-é, fallando com propriedade, senão o direito de suavisar até um certo
-ponto o soffrimento que elle sente pelo delicto, de entrar na paz de
-uma segurança um instante perturbada, e de ter para o futuro uma certa
-segurança. A pena tem pois, <em>para o homem</em>, sua razão n’este
-interesse; razão subjectiva, relativa, mas indispensavel; estranha até
-ahi todavia á necessidade moral absoluta de reparar a desordem levada
-pelo delicto ao mundo moral. Mas se a pena, tal como o homem tem o
-direito, senão o dever de a applicar, tem sua razão relativa ou humana
-no interesse privado e publico, tem sua regra e sua medida na justiça
-absoluta, justiça que o interesse, um interesse qualquer, não tem o
-direito de violar.»<a id="FNanchor_31" href="#Footnote_31" class="fnanchor">[31]</a></p>
-
-<p>É importante o papel do pensamento, perante a responsabilidade moral
-e legal no crime e na loucura, por isso a<span class="pagenum" id="Page_63">[Pg 63]</span> psychologia sobreleva
-aqui a todas as sciencias. «É essencial precisar a funcção do ser
-<em>psychico</em> do pensamento sob os modos de ver da responsabilidade
-moral e legal, e n’esta parte ainda nós nos encontraremos em presença
-de dois systemas exclusivos. «A cellula cerebral, diz o dr. Voisin,
-é a officina do pensamento». Logo, a alteração do pensamento, isto
-é, a loucura resultaria do desarranjo do tecido cerebral; o que é a
-traducção d’este principio materialista: o pensamento é uma secreção do
-cerebro. Por outra parte, dizem grande numero de espiritualistas que
-a loucura é a doença da alma. Um abysmo separa estas duas doutrinas;
-mas não se vê bem o que cada uma d’ellas tem de exagerada? Não existe
-nenhum laço entre o estado physico e os factos de consciencia? É
-preciso desconhecer inteiramente o valor intrinseco das faculdades
-intellectuaes e naturaes, o estado do cerebro e dos nervos, negar
-a influencia do temperamento sobre a determinação do caracter? Se
-não foi possivel ainda elucidar a contento de todos estes mysterios
-scientificos, se o problema das origens e das manifestações do
-pensamento permanece á beira d’uma solução, a culpa d’isto é sobretudo
-d’aquelles que, em campos oppostos, se recusam a toda e qualquer
-concessão e paralysam por preconceito de eschola os progressos da
-sciencia. Negar ao cerebro toda a acção sobre o pensamento, não ver
-n’elle senão um simples intermediario, senão um agente de transmissão,
-é tão exagerado como considerá-lo o grande motor e o unico centro
-intellectual. Para nós, o pensamento, é um trabalho cerebral
-manifestando-se á consciencia, seu director e seu juiz, isto é, o ser
-psychico dominando em principio o ser organico. Póde o pensamento
-ser inconsciente, e o trabalho cerebral estar latente para o sujeito
-em si como o está muitas vezes para os que o cercam? Não hesitamos
-em responder affirmativamente. A formula do <em>automatismo</em>, que
-devemos ao genio de Descartes, estabelece a lei geral que regula
-a maior parte das manifestações exteriores da vida; e está hoje
-reconhecido que os centros nervosos e certos grupos de cellulas
-transformam as sensações em movimentos. Tomemos ao acaso o exemplo mais
-commum, o do <em>andar</em>, no qual a potencia automatica se revela
-tão manifestamente. Aqui a <em>vontade</em> dá as suas ordens os orgãos
-seguem-nas, e não cuida ao menos na execução; o servo substituiu
-o senhor, e o senhor não intervirá senão em momento opportuno; a
-vontade não obra senão para ir ou ficar. Contestar-se-nos-ha<span class="pagenum" id="Page_64">[Pg 64]</span> além
-d’isto que o concurso da vontade seja necessario para o cumprimento
-de certos actos apparentemente espontaneos? É evidente emfim, que
-em certos momentos não podemos affastar jámais do nosso espirito as
-idéas que nos cercam, que não podemos mandar como soberanos os nossos
-pensamentos, que não podemos fazer reviver factos que outr’ora nos
-commoveram, e cuja lembrança se revelará um dia inesperadamente, sem
-causa apparente. Basta só este ultimo phenomeno para estabelecer que o
-pensamento póde ser inconsciente, porque não se tem manifestado; aqui,
-o trabalho intellectual não se tem operado sob o impulso da vontade.
-Se escrevessemos um trabalho sobre este assumpto, poderiamos citar em
-nosso apoio exemplos numerosos a que Carpenter chamou a <em>cerebração
-inconsciente</em>. O philosopho, o jurisconsulto, o poeta, depois de
-terem procurado em vão uma formula, uma solução, uma idéa, encontram-na
-muitas vezes quando o seu pensamento menos o pensa, outras, sem a
-procurar são postos em posse d’uma idéa nova.</p>
-
-<p>Um mathematico, depois de ter renunciado á solução d’um problema
-difficil, encontral-o-ha subitamente e de improviso. Mas nós voltaremos
-ao automatismo, quando fallarmos dos sonhos e do somnambulismo, e
-veremos então a influencia que póde ter o trabalho involuntario do
-espirito sobre as acções humanas ácerca da responsabilidade. Basta-nos
-indicar agora que o pensamento póde ser inconsciente, que não é sempre
-o escravo docil da vontade, que pode subtrahir-se ao seu imperio. E
-não se póde dizer que este estado de que fallamos seja loucura porque
-estes phenomenos dão-se em todos os homens, são geraes e soffrem-nos as
-naturezas mais completas. Por isso mesmo, a existencia do pensamento
-não incommoda o ser organico; o que incommoda é a sua manifestação
-exterior, é a acção que imprime aos orgãos e suas funcções. O <em>ser
-psychico</em>, isto é, a consciencia, a razão, a vontade e o ser
-organico, isto é, a materia, o instrumento, o servidor, são os dois
-elementos que constituem o homem e fundem-se em uma admiravel e
-mysteriosa unidade. Cada um d’estes elementos tem o seu destino. No
-principio e no estado normal, o primeiro manda e o segundo obedece.
-Do desenvolvimento regular e completo d’aquelle, da sua potencia
-sobre as faculdades, da sua acção sobre os orgãos dimana o <em>livre
-arbitrio</em>, que se manifesta sempre que o ser psychico exerça um acto
-de soberania sobre as forças humanas. A lei que é<span class="pagenum" id="Page_65">[Pg 65]</span> a vida vegetativa ou
-instinctiva na escala inferior da natureza é para o homem substituida
-por uma outra lei, o livre arbitrio; e este será a vida moral,
-intelligente, consciente, responsavel. Se eu não visse na sua origem
-seres psychicos differentes uns dos outros, se m’os representasse
-todos da mesma essencia e da mesma natureza, se suppuzesse que esta
-parte immaterial de nosso ser está collocada n’um involucro corporeo
-sempre identico, não é menos certo que a alma póde modificar-se,
-passar reciprocamente do bem ao mal, desenvolver-se ou abortar. Tanto
-a alma, como o corpo tem as suas doenças, as suas debilidades, os seus
-descaimentos; mas, como o corpo, ella pode curar-se, se o mal não tem
-feito já taes progressos que torne todo o meio curativo impraticavel. A
-alma mal formada, mal dirigida do principio, não saberia exercer sobre
-o ser um imperio sufficiente e moralisador, não saberia operar sobre as
-paixões e reformar os defeitos da nossa organisação. Progressivamente,
-o mal augmenta, e chega um momento em que as proprias paixões, em
-logar de serem dominadas, dominam ellas. A força moral superior é
-anniquilada, o escravo revolta-se, e, destruindo a auctoridade do amo,
-triumpha. O poder da alma sobre as sensações, as idéas e os sentimentos
-desapparecem, ficam escravisados. A usurpação é sempre a consequencia
-da impotencia. Por mais que diga a escola positivista, a alma, o
-merito e o demerito, a noção do bem e do mal, o livre arbitrio, a
-responsabilidade, não são chimeras. «Tirae a liberdade, disse Fénelon,
-toda a vida humana é destruida, não fica sobre a terra nem vicio, nem
-virtude, nem merito.» Mas na propria duvida, na impotencia em que esta
-escola se encontra em demonstrar a verdade dos seus principios, pois
-que de boa fé se deve reconhecer que tem phenomenos inexplicaveis,
-porque não se refugiar pois, n’esta doutrina espiritualista que
-restitue ao homem a sua dignidade, que é consoladora, que eleva?
-O principio do merito e do demerito, o principio eterno de toda a
-moralidade humana, será pois o ponto de partida d’este estudo; elle
-deve ser nossa luz e nosso guia, atravez das obscuridades da materia e
-dos systemas contradictorios dos auctores. Ora, encontraremos nas duas
-origens, nos dois elementos, a alma e o corpo, os mesmos principios da
-responsabilidade e da penalidade.»<a id="FNanchor_32" href="#Footnote_32" class="fnanchor">[32]</a></p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_66">[Pg 66]</span></p>
-
-<p>Para fazer a hypotypose rigorosa do delinquente, não basta ser
-psychologo, é preciso tambem ser escriptor. Nem todos os tratadistas
-teem na sua intelligencia um telescopio cujo diametro de objectiva e
-distancia focal possam adequar-se a estudos de natureza tão melindrosa
-e tão complexa. É menos difficil talvez com um cosmolabio medir o mundo
-do que com um psychometro medir e pesar a intensidade dos attributos
-moraes do homem delinquente. Por mais que os aristarchos enthusiastas
-da anthropologia apregoem em estylo farfalhudo a acephalocardia moral
-do criminoso, o estudo introspectivo e experimental da consciencia
-pouquissimo a esse respeito nos diz por ora de positivo.</p>
-
-<p>Escreve o sr. Oliveira Martins:</p>
-
-<p>«Se esta camada movediça assenta sobre a rocha ignea da ferocidade
-primitiva na stratificação geologica do crime, outra cathegoria
-de criminosos apparece como na terra surgem as massas eruptivas.
-Aos crimes do sangue e aos crimes do desejo, sommam-se os crimes
-do fanatismo. Profundo, candente, satanico, o criminoso fanatico
-irrompe com a violencia teimosa de um barbaro, mas trazendo comsigo
-ao mesmo tempo a fé, a abnegação, a candura de um martyr. O que faz
-chamar-se-lhe doido é que os outros crimes são expressões anormaes ou
-mostruosas do egoismo individual; ao passo que este se apresenta como a
-monstruosidade da paixão collectiva, que tanto armou os regicidas, como
-decidiu os martyres a ganharem a palma viridente. O que impressiona
-de um modo extranho e apparentemente inexplicavel, é que nos outros
-criminosos a razão do crime está n’uma fatalidade positiva; organica
-ou social, n’uma fatalidade em todo o caso inconsciente; ao passo
-que n’estes se encontra uma consciencia completa das causas e dos
-fins, e a par da lucidez quanto aos motivos, uma aberração total
-quanto á criminalidade dos actos. Os crimes da paixão segundo o typo
-classico de Othello, podem reduzir-se á mesma cathegoria dos crimes
-do fanatismo religioso ou politico. O attentado typico d’esta especie
-é o homicidio; porque uma critica nebulosa ou crepuscular denuncia
-ao fanatico um certo homem como causa; quando sempre, pode dizer-se
-assim, os homens são apenas effeitos de causas muito mais complexas.
-Bruto assassinou Cesar, mas nem por isso a republica se restaurou em
-Roma, Judith decapitou Holophernes, mas nem por isso Jerusalem deixou
-de cahir. Os nihilistas russos mataram<span class="pagenum" id="Page_67">[Pg 67]</span> Alexandre II, mas o cesarismo
-moscovita mantem-se. O regicidio é o typo historico moderno do crime
-por fanatismo. Hoje que aos absolutismos succederam as democracias são
-verdadeiros reis os centos de homens que em cada paiz dictam as leis
-e imperam sobre a opinião. Sobre elles impende a responsabilidade que
-outr’ora pesava sobre a cabeça dos tyrannos; e são, como elles eram,
-o alvo de todos os anathemas. As erupções do fanatismo religioso ou
-politico surgem nos periodos de commoção social. Approximar estes dois
-factos, fazendo resaltar o seu parallelismo constante seria longo e
-desnecessario. Toda a gente reconhece isto. A historia das allucinações
-collectivas tem a mesma extensão que a das podridões sociaes: são as
-flores venenosas que brotam do esterquilinio, ou os tortulhos molles
-que na sombra humida vão minando o palacio dourado da sociedade
-venturosa.»</p>
-
-<p>A ambição é uma tendencia congenita fortificada por inclinações
-exaggeradas e pervertidas a mór parte das vezes nascidas de
-predisposições organicas para a paixão ou de funestas influencias
-moraes. É assim que o fanatico encubado consente que a paixão vença a
-vontade.</p>
-
-<p>Os grandes alienistas e abalisados jurisconsultos formulam, como
-postulados da responsabilidade legal, o livre arbitrio, não confundem
-nunca o alienado com o criminoso, estabelecem como caracter distinctivo
-do criminoso a posse da liberdade. O alienado, diz o dr. Ball,
-auctoridade em psychopathia, é um homem que, em consequencia d’uma
-perturbação profunda das faculdades intellectuaes, perdeu mais ou menos
-completamente a sua liberdade moral e cessou, por emquanto, de ser
-responsavel das suas acções perante a justiça.» Esta definição admitte
-a liberdade como a essencia <em>mater</em> da alma, mas é incompleta,
-porque se esquece das perturbações da ordem <em>affectiva</em>, tão
-numerosas e as quaes podem levar o agente á irresponsabilidade.</p>
-
-<p>O dr. Dally sustentou a these seguinte: que no ponto de vista dos
-interesses da sociedade e da sciencia, alienados e sãos d’espirito,
-são responsaveis pelo mesmo titulo e que nada varia senão a fórma
-das responsabilidades: para o criminoso o castigo, para o alienado o
-asylo; «a utilidade, unico fundamento da pena exige que a sociedade se
-preserve do alienado criminoso como do criminoso, pois que os actos dos
-alienados não são menos perigosos que os dos delinquentes.<a id="FNanchor_33" href="#Footnote_33" class="fnanchor">[33]</a>»<span class="pagenum" id="Page_68">[Pg 68]</span> Isto
-escrevia o dr. Dally, já em 1863, e os criminalistas da escola italiana
-chamam-lhe pomposamente a theoria hodierna. Um alienado que commetteu
-um assassino póde-se curar, com que direito se conserva preso depois
-da cura? Tal captiveiro não seria nem racional nem util.<a id="FNanchor_34" href="#Footnote_34" class="fnanchor">[34]</a> N’outro
-capitulo já demonstramos a falsidade de tal criterio de punir.</p>
-
-<p>A suggestão hypnotica em medicina legal é já um problema discutido
-nas escolas alienistas de Paris e de Nancy, e cuja importancia urge
-reconhecer. O individuo no estado hypnotico é inteiramente despojado
-das prerogativas da sua personalidade, que ficam sendo exercidas pelo
-agente que veiu installar-se na vida psychica, condicionada pelo seu
-systema nervoso. É indispensavel admittir a possibilidade de suggestões
-criminosas, e a investigação juridica do seu auctor, sempre que o
-hypnotisado não foi a causa livre da sua hypnose, porque na hypothese
-contraria, quem consentiu em ser hypnotisado e que commette um crime
-por suggestão tem a responsabilidade penal do acto que praticou.<a id="FNanchor_35" href="#Footnote_35" class="fnanchor">[35]</a></p>
-
-<p>Os trabalhos de Gilles de la Tourette, Ladame, Puglieri, Bernheime,
-Liégeois, Brouardel, Motet, etc., teem evidenciado os inconvenientes
-da pratica do hypnotismo.<a id="FNanchor_36" href="#Footnote_36" class="fnanchor">[36]</a> Apresentada essa allegação juridica nos
-tribunaes, a irresponsabilidade em nome da suggestão criminosa, e
-admittida a hypothese de que todos os individuos são susceptiveis do
-estado da hypnose, é de presumir que todos os reus se apresentassem
-como victimas de mysteriosa ou vingadora suggestão criminal; e como
-ha uma difficuldade quasi insuperavel de verificar esta simulação, os
-accusados deviam ser absolvidos, ficando ainda com o direito de se
-vingarem de qualquer inimigo, attribuindo-lhe a suggestão, como já teem
-feito alguns hystericos. Muitas mulheres nevropathas teem attribuido a
-violação e o rouço a homens que nunca se approximaram d’ellas.</p>
-
-<p>Lombroso, como diz Tarde, quer que a criminalidade seja devida a uma
-suggestão posthuma, exercida sobre os vivos pelos nossos antepassados
-prehistoricos.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_69">[Pg 69]</span></p>
-
-<p>Podemos dizer como o dr. Culerre: o crime hypnotico é possivel, mas
-devemos apressar-nos a accrescentar que os progressos da sciencia nunca
-crearam um criminoso e que o hypnotismo não augmentará o numero dos
-scelerados.<a id="FNanchor_37" href="#Footnote_37" class="fnanchor">[37]</a> Ha quem pretenda aproveitar o estado da hypnose para
-extorquir o segredo do crime. Em nosso entender privar um individuo da
-sua liberdade moral, que é a mais alta prerogativa da especie humana,
-para lhe devassar os arcanos da sua consciencia, é um attentado contra
-o qual a razão e a dignidade conclamam. Porém quando até tal processo
-levasse ao reconhecimento do delinquente, as suas revelações não podiam
-merecer séria confiança do tribunal, porque podiam ser falsas como
-succede com muitas denuncias da hypnose, sobre tudo na fórma hysterica.
-Tão perigoso caminho seria um retrocesso aos tempos da tortura, em que
-a justiça queria arrancar segredos com o supplicio da intensidade da
-dôr e muitas vezes obtinha apenas angustiosas falsidades.</p>
-
-<p>Um dos tristes serviços que o hypnotismo podia prestar á humanidade,
-era nas execuções de pena de morte, substituir os actuaes processos
-pela eliminação instantanea e sem soffrimento. Admittida a hypothese de
-se poder fazer parar o coração durante a somniação hypnotica é evidente
-que se póde matar um individuo até sob uma suggestão agradavel, dado
-o caso do hypnotisado ser suggestionavel. Uma grande emoção provocada
-pela suggestão durante a hypnose seria o sufficiente talvez. Broca e
-Ward sob o influxo da anesthesia hypnotica e da somniação plena da
-hypnose fizeram notaveis operações cirurgicas. Estando todavia, o
-condemnado de posse da idéa do dia fatal em que o querem matar, será
-talvez difficil que a hypnose se realise. Em qualquer caso tambem a
-acção do acido prussico, por exemplo, applicado a distancia durante
-a hypnose em solução concentrada e dose forte, deve segundo Borru,
-Burot e Luys produzir a morte. É evidente que os envenenadores por
-este processo podem exercer a sua profissão sem que no organismo
-fiquem vestigios do crime, o que é um novo e difficil problema para a
-medicina legal. O dr. Ch. Vibert, Liégeois e outros medicos legistas já
-estudaram o problema sob este aspecto.</p>
-
-<p>Joseph Kimmler será o primeiro condemnado a ser justiçado pela
-electricidade. Esta invenção vem da America do<span class="pagenum" id="Page_70">[Pg 70]</span> Norte. Vão ser postos
-de parte os cepos, os cestos as guilhotinas, as forcas e todos os
-grosseiros apparelhos do supplicio inventados pelo homem para se dar o
-logar ás correntes electricas.</p>
-
-<p>O machinismo está recebendo a ultima demão. Foi já experimentado
-com animaes corpulentos: e as experiencias deram optimo resultado.
-O programma para as ultimas horas do paciente é como segue:
-Será prevenido do que o espera na manhã do supplicio. Terá, se
-quizer, consolações da Egreja. Depois d’isso os ajudantes do...
-da electricidade, entrarão no carcere, para darem principio á
-<i>toilette</i> funebre. Calçam-lhe uns sapatos que teem nas solas duas
-chapas de metal, em communicação com fios metallicos que atravessam
-os tacões. As mãos do paciente são amarradas sobre o peito. O tronco
-é apertado por uma correia com fivela, e tendo a cada um dos lados
-uma chapa com gancho. Na cabeça põem-lhe um capacete, com um disco
-do metal ao alto, e de que parte um fio de cobre em espiral, que
-rodeia a cabeça. No momento de lhe collocarem o capacete, põe-se sob
-o fio uma esponja pequena embebida em agua salgada boa conductora da
-electricidade, como se sabe.</p>
-
-<p>Feito isto levam-o para a cella das execuções, onde se encontram os
-magistrados que tenham de assistir ao acto. Sentam o condemnado n’uma
-cadeira de pau, costas inclinadas. Os ganchos da correia que a liga
-prendem-se a duas argolas de outras correias que se apertam, até
-immobilisar o paciente.</p>
-
-<p>Em frente da cadeira ha um tamborete onde os pés do condemnado se
-apoiam e se fixam. Do tecto pendem dois fios conductores isolados. E na
-parede um mostrador indicará a intensidade da corrente electrica. No
-aposento immediato estão todas as peças de machinismo executor. Findos
-estes preparativos prende-se um dos fios que pendem do tecto ao disco
-metallico do capacete. O outro liga-se aos fios dos tacões.</p>
-
-<p>Em seguida lança-se sobre a cabeça do paciente um veu negro e toca-se
-no botão fatal, o misero terá tempo de sobejo para morrer de terror.</p>
-
-<p>O resto é instantaneo. O cerebro cessará entre a mór parte dos
-infelizes de funccionar antes, muito antes de lá chegar a sensação do
-choque.</p>
-
-<p>Só a descripção é um monte de torturas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_71">[Pg 71]</span></p>
-
-<p>De todas as funcções sociaes é o direito penal aquella que provoca mais
-graves questões:<a id="FNanchor_38" href="#Footnote_38" class="fnanchor">[38]</a></p>
-
-<p>1.ᵒ Com que direito e com que fim se apodera o homem do seu semelhante,
-para lhe infligir, a sangue frio e de caso pensado, o mal que se
-denomina pena?</p>
-
-<p>2.ᵒ D’esta fórma procede elle apenas na qualidade de ministro d’uma
-justiça superior, cuja execução lhe foi commettida?</p>
-
-<p>3.ᵒ Deve, pelo contrario, quando pune, propor-se unicamente manter a
-ordem social, fazendo respeitar o direito; e por meio de que processos
-póde attingir este fim?</p>
-
-<p>4.ᵒ Não lhe correria o dever de combinar estes dois principios,
-restringindo a sua acção aos limites que cada um impõe?</p>
-
-<p>É á solução parcial d’estes problemas que consagramos este trabalho,
-estudando-os, muito particularmente, sob o ponto de vista das relações
-que cumpre reconhecer entre o direito e a moral.</p>
-
-<p>Estes problemas provocaram grande numero de systemas, que, apesar das
-suas quasi infinitas variedades, podem, segundo parece, classificar-se
-em tres grandes categorias principaes, que tendem a approximar-se, e
-mesmo por vezes a confundir-se nos seus desenvolvimentos, sem comtudo
-menos se ficarem distinguindo quanto ao especial ponto de partida de
-cada uma d’ellas.</p>
-
-<p>Os primeiros não vêem no direito penal mais do que o exercicio d’uma
-justiça superior pelo poder social revestido d’esta terrivel missão.
-Consideram geralmente esta justiça como uma necessaria retribuição do
-mal pelo mal, especie de expiação, que se tem a si propria como seu fim
-unico; o que fez com que se lhes conferisse a denominação de theorias
-absolutas.</p>
-
-<p>Os segundos, muito pelo contrario, não vêem na actividade penal mais
-do que um meio de fundar e manter uma certa ordem social tida como
-necessaria para fazer respeitar o direito. Divergem consideravelmente
-entre si pelos meios de que se servem para attingir este fim.
-Qualificam-nos de theorias relativas, porque não justificam a acção
-penal<span class="pagenum" id="Page_72">[Pg 72]</span> senão pelo fim externo que deve attingir, e porque a encerram
-nos limites do que uma tal acção reclama.</p>
-
-<p>Os terceiros tentam combinar os dois principios, limitando-os, e, alem
-d’isso talvez, fortificando-os um pelo outro. Por uma parte, pretendem
-exercer a justiça superior nos limites apenas do que as exigencias
-sociaes reclamam. Por outra, esforçam-se por satisfazer estas, mas
-unicamente dentro dos limites do que essa justiça auctorisa.</p>
-
-<p>Levar-nos-hia em demasia longe o expor e criticar minuciosamente estes
-numerosos systemas.<a id="FNanchor_39" href="#Footnote_39" class="fnanchor">[39]</a> Devemos restringir-nos ao que seja necessario
-para expor e motivar convenientemente as idéas em que se nos afigura
-que devemos demorar-nos; e trataremos seguidamente do que respeita ás
-relações do direito e da moral.</p>
-
-<p>Não existe, nem póde existir, senão uma base unica sobre que estas duas
-leis possam solidamente apoiar-se. Esta base é o destino da humanidade
-considerado em seu conjuncto, na collectividade e em cada um dos
-individuos que a compõem.<a id="FNanchor_40" href="#Footnote_40" class="fnanchor">[40]</a></p>
-
-<p>A mira commum d’essas leis, que teem d’esse modo uma origem commum e um
-fim commum, parece-nos ser a realisação d’um tal destino; mas nem por
-isso menos lhes impendem missões distinctas, pelo que respeita tanto ao
-que a cada uma d’ellas cumpre realisar, como aos processos a que devem
-recorrer.</p>
-
-<p>Sentir-se ao mesmo tempo livre e obrigado a conformar-se
-espontaneamente com as exigencias d’uma norma superior é o que
-constitue a base e o ponto de partida da lei moral ao revelar-se na
-consciencia. Estes dois sentimentos estão indissoluvelmente unidos;
-suppõem-se reciprocamente, e cada um d’elles communica ao outro o
-unico valor verdadeiro que o póde revestir: uma liberdade, de que nada
-houvesse a fazer, seria uma força sem emprego, uma bem mysteriosa
-inutilidade, que a si propria se aniquillaria tornando-se<span class="pagenum" id="Page_73">[Pg 73]</span> escrava de
-brutaes instinctos; uma lei que fatalmente a si propria se executasse
-seria um mechanismo degradante, sob cuja acção a dignidade humana
-desappareceria totalmente.</p>
-
-<p>Accrescentemos, se tanto é preciso, que a conformidade com uma regra,
-sem outro motivo que não seja o temor, não levaria a resultados muito
-diversos.</p>
-
-<p>Temos até aqui fallado apenas d’uma lei cuja existencia se revela pelos
-sentimentos da consciencia. Precisamos agora indagar a que fonte deve
-recorrer-se para se obter o conhecimento d’essa lei. Cifra-se a questão
-em investigar onde podem encontrar se os indicios do destino de que
-fallamos.</p>
-
-<p>A regra a seguir é a que por este destino, tanto individual, como
-geral, se impõe. Pode haver-se tal conhecimento pelo attento estudo
-do homem considerado na natureza e na historia, quer em si proprio,
-em suas necessidades, instinctos physicos e aspirações mais elevadas,
-quer em suas relações com o mundo social ou physico em que deve
-desenvolver-se. A existencia tem um fim que, á custa de esforços, é
-preciso attingir, ou o procuremos nas manifestações d’uma suprema
-intelligencia e d’uma suprema vontade, ou paremos na contemplação
-de certas leis, cuja acção parece revelar-se em um demorado
-desenvolvimento; leis a respeito das quaes talvez se devesse perguntar,
-mais do que é costume, se em si mesmas não são as manifestações ou os
-orgãos d’um Deus pessoal.</p>
-
-<p>A vida moral está, as mais das vezes, occulta nos arcanos do mundo
-interno; não se manifesta exteriormente senão por indicios ácerca de
-cuja apreciação é facil haver enganos. Por um lado, ella domina toda
-a existencia, os sentimentos, os desejos, as vontades, tanto como as
-acções. Por outro, só actua por convicção. Não podendo viver senão de
-liberdade, retrae se ou expande-se segundo as influencias externas mais
-ou menos fortes.</p>
-
-<p>As caracteristicas do direito mostram-no-lo bem diverso. É no exterior
-que se produz e que actua por meio de um organismo completo para este
-effeito destinado. Só o deve comtudo fazer nos limites do que seja
-necessario para acudir, e, muitas vezes, para resistir á acção da
-liberdade individual, nos casos em que isso é preciso para a manutenção
-da ordem. Serve-se do constrangimento e exerce-o por meios materiaes.
-O homem exterior e social é que faz objecto<span class="pagenum" id="Page_74">[Pg 74]</span> das suas mais directas
-preoccupações; o homem interior e individual subtrae-se-lhe geralmente,
-salvo nas relações que pode ter com certos factos externos e sociaes.</p>
-
-<p>A sua principal missão parece ser o garantir a cada um o que lhe deve
-pertencer, crear e manter a ordem precisa ao desenvolvimento physico,
-intellectual e moral, prevenir e reparar, quanto possivel, qualquer mal
-que provenha de ataques ou de infracções contra essa ordem.</p>
-
-<p>Se fosse absolutamente necessario fixar o grao d’importancia respectiva
-do direito e da moral, fariamos predominar esta ultima; é ella que
-mais directamente tende a tornar-nos o que devemos ser. O direito
-parece figurar mais como meio do que como fim na economia geral do
-nosso desenvolvimento. Apressemo-nos a acrescentar que figura como
-elemento indispensavel. Cumpre, alem d’isto, observar que estas
-duas leis, embora separadas pela divergencia das attribuições e dos
-processos, nem por isso conservam menos profundos vestigios da sua
-origem commum e do fim superior para que devem tender os seus communs
-esforços. Devem respeitar-se e auxiliar-se reciprocamente. Compete ao
-direito restringir-se ao campo de actividade que especialmente lhe
-está destinado; deve, tanto quanto possivel, respeitar a liberdade
-necessaria para o desenvolvimento moral; deve evitar o que possa
-offender as bases sobre que este assenta. A moral, pela sua parte, deve
-respeitar as exigencias do direito e os processos que lhe são proprios.</p>
-
-<p>Parece que estes principios resultam da natureza das cousas;
-poder-se-hia suppor facil fazer derivar d’elles consequencias cuja
-auctoridade se fizesse geralmente reconhecer. Mas não é assim; questões
-são aquellas a respeito das quaes se está longe da harmonia; achamo-nos
-em presença de tres grandes categorias de systemas mencionados acima;
-talvez que melhor os possamos apreciar, agora que enunciamos alguns
-principios que nos dirigirão. Pode o assumpto dividir-se commodamente
-em quatro paragraphos que tratem successivamente: 1.ᵒ das doutrinas
-absolutas e das suas degenerescencias; 2.ᵒ das doutrinas mixtas; 3.ᵒ
-das doutrinas relativas taes quaes as concebemos; 4.ᵒ d’uma comparação
-entre estas ultimas e as doutrinas mixtas.</p>
-
-<p>§ 1.ᵒ Segundo os sectarios das theorias absolutas, á acção penal está
-reservado um desenvolvimento muito maior do que aquelle de que dariam
-idéa os principios acima enunciados.<span class="pagenum" id="Page_75">[Pg 75]</span> «Ha n’ella, dizem, mais do que
-um direito, é um verdadeiro dever cuja observancia se exige d’um modo
-imperativo.»</p>
-
-<p>«Embora a sociedade humana se dissolvesse pelo unanime consenso de
-todos os seus membros, dizia Kant, deveria ser executado o ultimo
-assassino que se achasse preso, afim de que cada um soffresse o castigo
-dos seus actos, e de que o sangue vertido não cahisse sobre o povo que
-não tivesse reclamado essa punição.<a id="FNanchor_41" href="#Footnote_41" class="fnanchor">[41]</a>»</p>
-
-<p>Em um tal systema, o fim social e juridico da pena desapparece e
-absorve-se n’uma ordem d’idéas muito mais vasta: já se não tracta de
-defesa e de protecção, mas de expiação. É certo que se nos diz que os
-processos d’esta justiça superior realisam accessoriamente o fim social
-e humano da pena.<a id="FNanchor_42" href="#Footnote_42" class="fnanchor">[42]</a></p>
-
-<p>Não nos demoraremos a indagar o que n’esta ultima asserção, que nos
-parece muito contestavel, póde haver de verdadeiro. É evidente que
-isso depende muito das idéas que se formam ácerca da ordem que convem
-realisar. Julgamos poder limitar-nos a dirigir as seguintes perguntas
-aos sectarios d’estas doutrinas: Tendes sufficientes provas de que uma
-tão terrivel missão haja sido confiada ao Estado? Não seria natural
-pensar que, se o soberano legislador, de quem esta justiça dimana,
-a não exerce por si proprio na economia actual, é porque julgou
-conveniente reserval-a para outros tempos? Não póde ter querido que
-nós caminhemos n’esta vida, mais pela fé do que pela vista, em uma tal
-ordem de idéas?</p>
-
-<p>Estaes bem certos de que formaes noções exactas ácerca da natureza
-d’esta justiça suprema? Não poderia haver n’isso mysteriosos arcanos
-que escapem aos nossos olhos? O Estado, que encarregaes d’esta missão,
-possue sufficientemente as faculdades intellectuaes e moraes que ella
-suppõe? Possue o necessario poder de observação? Disporia, alem d’isso,
-de penalidades bastante flexiveis e divisiveis para corresponderem ás
-gradações tão variadas da culpabilidade moral? Se se arroga o direito
-de infligir todas as penas, não deverá conceder egualmente todas as
-recompensas merecidas? Não haveria n’isto uma fonte de dificuldades e
-até de novas impossibilidades?</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_76">[Pg 76]</span></p>
-
-<p>Fazer seguir immediatamente todas as acções das penas ou das
-recompensas que devam corresponder-lhes, não seria despojar a vida
-moral da auréola de desinteresse ou de fé que constitue a nobreza
-d’ella? Sempre comprimida no exterior, não acabaria por succumbir nas
-profundezas intimas que pareceria deverem ser o seu ultimo refugio?</p>
-
-<p>Taes são as idéas que mais frequentemente se encontram na base do
-que se chama—theorias absolutas; e taes as objecções que suscitam.
-Enganar-nos-hiamos comtudo, se suppozessemos identicos entre si todos
-os systemas que nasceram d’estas theorias ou que a ellas se prendem.
-Nelles se encontram, muito pelo contrario, differenças, e até graos.</p>
-
-<p>Uns abrangem todo o dominio da moral em suas vastas concepções,
-salvo em recuar ante as resistencias e as impossibilidades que se
-levantariam, se se tratasse de fazer uma applicação completa d’estas
-ultimas.</p>
-
-<p>Outras circumscrevem-se ao campo mais restricto do direito.
-Subdividem-se porque uns submettem os factos que os preoccupam ás
-regras da sancção moral, ao passo que outros buscam uma sancção
-especial.</p>
-
-<p>As bases em que se firmam estes systemas não são sempre as mesmas;
-uns não vão além dos sentimentos, quasi somos levados a dizer, dos
-instinctos da consciencia. D’isto achamos um notavel exemplo no
-discurso com que D. Cirilo Alvarez, então presidente da Academia de
-Jurisprudencia e de Legislação de Madrid, inaugurava, em 26 de outubro
-de 1872, o curso annual das deliberações d’esta sociedade.</p>
-
-<p>Eis o que se lê n’esse discurso destinado a justificar a pena de morte:</p>
-
-<p>«O fim da justiça penal não é a emenda e a correcção dos culpados. A
-lei penal corresponde a um fim social mais elevado: ao restabelecimento
-da ordem moral, abalada pelo crime, á lei de responsabilidade que pesa
-sobre o homem por motivo de suas más acções, a essa lei inexoravel da
-expiação e da penitencia que tem origem no remorso, n’esse phenomeno
-interno do nosso espirito a que não podemos subtrahir-nos... É n’essa
-lei de responsabilidade, n’essas manifestações da consciencia, n’esses
-soffrimentos da alma, que se produzem sempre conforme a gravidade dos
-factos, que se encontra a base da lei penal em todas as gradações
-fixadas pela legislação e pela sciencia, para distinguir a fraqueza do
-vicio, o vicio do crime.»</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_77">[Pg 77]</span></p>
-
-<p>«É também n’esses phenomenos moraes, e unicamente n’elles, que se
-encontra a explicação philosophica d’essas palpitações da consciencia
-universal em presença do crime, palpitações que se revelam pela
-inquietação e pela agitação dos espiritos, pela indignação e pela
-colera das multidões contra o criminoso.<a id="FNanchor_43" href="#Footnote_43" class="fnanchor">[43]</a>»</p>
-
-<p>Outros recorrem a um mais profundo estudo da vida, ou a certas
-combinações logicas das idéas. Diz-se, por exemplo, que a pena é uma
-nova afirmação da lei, que a negação implicitamente resultante do crime
-ou do delicto torna indispensavel. Quer isto dizer, em termos mais
-simples, que a pena é uma sancção necessaria da lei.</p>
-
-<p>Outros ainda, elevando-se, segundo a nossa opinião, a uma concepção
-mais digna da justiça divina, attribuem-lhe um fim de regeneração do
-culpado. Collocam-se assim, desde o começo, fóra do absoluto completo,
-de que se afastam a distancias muito diversas segundo as applicações
-que fazem do seu principio superior. Póde-se effectivamente attender á
-moral no seu conjuncto, ou apenas ao direito. Póde-se, n’esta ultima
-hypothese, procurar uma verdadeira regeneração moral, mudando até o
-fundo do caracter, ou, pelo contrario, não se ir alem do que se poderia
-chamar uma regeneração social, que tenda unicamente a conseguir que o
-culpado deixe de ser um perigoso membro da sociedade, ainda que não
-fosse senão pelo temor dos castigos. Assim reentra-se no dominio das
-theorias relativas.</p>
-
-<p>Consagramos certissimamente todas as nossas sympathias aos esforços
-empregados para obter a regeneração moral do culpado; mas não suppomos
-possivel tomal-a para principal base do direito penal. É um fim que se
-precisa recommendar ao zelo dos philantropos; mas, se o considerassemos
-como entrando directamente nas attribuições do Estado, suscitaria
-isto, em parte ao menos, as objecções por nós apresentadas contra as
-verdadeiras theorias absolutas; o Estado não possue nem as faculdades,
-nem os meios que presuppõe o exercicio d’uma tal missão. Para elle só
-póde haver n’isto um fim necessario e occasional, mas deve zelosamente
-procurar attingil-o nos limites do que cabe á sua natural competencia.</p>
-
-<p>§ 2.ᵒ—As theorias absolutas teem ainda muitos adeptos;<span class="pagenum" id="Page_78">[Pg 78]</span> mas, como
-dissemos, offerecem numerosas variedades. Podemos até dizer que os
-costumes juridicos das nossas civilisações occidentaes haviam de
-oppor-se a que se fizesse d’ellas completa applicação. Era para
-desejar que se fixassem limites precisos ao seu desenvolvimento. Foi
-o que as doutrinas que chamámos mixtas se esforçaram por conseguir,
-encerrando-as no ambito marcado pelas necessidades da ordem social.
-Conciliar e limitar um pelo outro os dois principios que parecem
-disputar-se o campo do direito penal era, certissimamente, uma bella
-idéa; teria prestado grandes serviços, se tivesse podido realisar-se.
-Vejamos o que ha a tal respeito.</p>
-
-<p>Julgamos poder citar o nosso antigo compatriota Rossi como tendo
-apresentado o typo mais explicito, mais nitido e melhor conhecido
-d’esta categoria de systemas. Seja qual fôr o futuro reservado á sua
-obra, sempre terá de reconhecer se n’ella a manifestação d’um grande
-talento: «M. Rossi é, no seu genero, o primeiro jurisconsulto do
-seculo» dizia-nos um dia o nosso illustre mestre, De Savigny.</p>
-
-<p>Entendemos dever accrescentar que, mesmo que se viesse a abandonar esta
-obra, não se lhe diminuiria o merito de ter exposto as questões com uma
-precisão completa, sem nenhuma d’essas obscuridades, que dão muitas
-vezes logar a que se interpretem conforme convem as idéas apresentadas
-como fundamentaes.</p>
-
-<p>Perdoar-se-nos-hão estas linhas dictadas pelo reconhecimento. Tanto
-mais justificaveis nos pareceram ellas, quanto suppomos dever combater
-uma corrente de idéas muito respeitaveis, e que foram revestidas d’uma
-grandissima auctoridade. Ha muitissimo tempo que nos apartámos d’ellas.
-Este trabalho póde a muitos respeitos ser tido como uma nova edição
-das theses que publicámos em 1836 para solicitar o grao de licenceado.
-Confirmaram-nos em grande parte na nossa maneira de ver mais de 40
-annos de estudo e de experiencia.</p>
-
-<p>«O fim da justiça absoluta, dizia Rossi, consiste no proprio
-cumprimento d’ella; é porque é; attinge todas as infracções da lei
-moral; assenta nos principios eternos do justo e do injusto; é um
-attributo do Ser infinito. O mal merece o mal; o homem injusto deve
-reparação á justiça; é uma sancção necessaria; a ordem moral deve ser
-restabelecida pela pena. Esta justiça comtudo não desenvolve toda a<span class="pagenum" id="Page_79">[Pg 79]</span>
-sua acção n’este mundo. O direito penal compõe-se d’uma parte absoluta
-e d’uma parte relativa, de principios de justiça e de regras de
-utilidade.</p>
-
-<p>A justiça do homem não deve ultrapassar a justiça absoluta; não deve
-mesmo absorvel-a; não deve castigar senão no interesse da ordem social,
-e nos limites apenas da culpabilidade moral. Acha-se ella, por assim
-dizer, encerrada em tres circulos concentricos: o da justiça intrinseca
-da punição, o da manutenção da ordem social, o de meios proprios para
-attingir com utilidade esse fim pela acção penal. É uma delegação
-parcial da justiça divina confiada a seres imperfeitos e falliveis,
-que d’elle só devem fazer uso para um fim restricto e determinado, a
-garantia dos elementos constitutivos da ordem social.<a id="FNanchor_44" href="#Footnote_44" class="fnanchor">[44]</a>»</p>
-
-<p>N’esta categoria de systemas observa-se naturalmente uma variedade
-maior ainda do que nas doutrinas absolutas, porque se complica com
-elementos mais numerosos. De pleno accordo ácerca da necessidade de
-se não ir além do que as exigencias sociaes reclamam, adoptam uns
-as regras applicaveis á responsabilidade moral, demandam outros uma
-sancção mais apropriada á natureza especial do direito. Carrara,
-senador do reino de Italia e professor de direito penal na Universidade
-de Pisa, parece-nos dever citar-se como exemplo d’esta ultima
-tendencia. Affigura-se-nos que a sua doutrina deve ser classificada
-no numero das que chamámos mixtas, porque invoca, diversas vezes,
-uma cessão parcial da justiça absoluta como base do direito penal,
-criticando, com grande vivacidade, as idéas que professa Rossi. Cremos
-que o seu systema póde consubstanciar-se em algumas proposições
-fundamentaes:</p>
-
-<p>«Existe uma justiça absoluta, de que só uma parte foi cedida ao poder
-social para manter a ordem e proteger o direito. Esta justiça penal
-deve reparar o mal proveniente do delicto; deve, n’este intuito,
-combater os impulsos que podem resultar do máo exemplo dado pelo
-culpado, e restabelecer no espirito dos innocentes os sentimentos
-de segurança, d’elle afugentados pelo facto punivel.» Não é á
-culpabilidade<span class="pagenum" id="Page_80">[Pg 80]</span> moral que tem de ir buscar se a gradação das penas, mas
-ao que Carrara qualifica de força ou intensidade do delicto, ou seja ao
-<i>quantum</i> de vontade livre manifestada pelo facto e á influencia
-exercida por este sobre os resultados produzidos.</p>
-
-<p>Os escriptos de Carrara offerecem provas numerosas d’uma grande
-erudição e d’um notavel talento d’analyse. Não hesitamos em collocal-o
-á frente dos criminalistas da epocha actual. É uma posição adquirida
-por consideraveis trabalhos, pela veneração de que os muitos
-discipulos o cercam, e pela inesgotavel fonte de ensinamentos que os
-escriptos d’elle fornecem, mesmo quando se divirja do seu modo de ver.
-Inclinamo-nos a pensar que o seu systema poderia dispensar a idéa d’uma
-delegação parcial da justiça absoluta, porque o auctor firma-se em
-bases que se esforça por fazer derivar da natureza do direito.<a id="FNanchor_45" href="#Footnote_45" class="fnanchor">[45]</a></p>
-
-<p>Outros auctores, embora dizendo-se partidarios das theorias relativas,
-não podem comtudo deixar de fazer concessões ao elemento moral, o que
-dá em resultado a necessidade de indagar qual a justificação d’estas
-concessões, e, sendo possivel, até onde devem chegar.</p>
-
-<p>Citaremos como exemplo Franck, que, depois de ter repellido toda e
-qualquer idéa d’uma expiação confiada ao poder social, e vivamente
-refutado o systema de Rossi, parece apresentar-se resolutamente
-como partidario das theorias relativas, mas sem que attribua menos
-importancia ao elemento moral na fixação das penas. Não é fácil,
-parece-nos, encontrar no livro d’elle os meios de se reconhecer
-sufficientemente este facto pela applicação de algum principio
-superior. O systema afigura-se-nos conseguintemente affecto d’uma
-especie de dualidade.<a id="FNanchor_46" href="#Footnote_46" class="fnanchor">[46]</a></p>
-
-<p>A mesma ordem de idéas revelam os escriptos de Bertauld.<a id="FNanchor_47" href="#Footnote_47" class="fnanchor">[47]</a> Reconhece
-que a doutrina d’um direito de punir fundado na justiça moral, limitada
-pela utilidade social, ganhou,<span class="pagenum" id="Page_81">[Pg 81]</span> durante a primeira metade do nosso
-seculo, um largo campo na philosophia do direito. Adquiriu, diz elle,
-uma verdadeira supremacia. Guizot, de Broglie, Rossi, de Rémousat
-defenderam-na, e, graças a elles, está escripta em nossas leis, e
-especialmente na reforma do Codigo Penal de 28 d’abril de 1832.
-Comtudo, acrescenta, encontra ella hoje contradictores.</p>
-
-<p>Bertauld expõe d’esta maneira as suas idéas, depois de ter lembrado e
-criticado as professadas por Franck:</p>
-
-<p>«Inflige-se o castigo ao infractor por motivo da sua infracção e não
-em virtude das infracções que se temem para o futuro... Houvesse
-certeza de que a infracção não poderia repetir-se, tanto da parte do
-agente como de quaesquer outros, e a lei violada poderia legitimamente,
-porque é uma lei, executar-se... A sociedade reclama do seu chefe, por
-força do seu proprio direito, uma expiação: não a reclama em nome e
-em virtude d’uma delegação de Deus... O direito de punir em si, não
-deriva d’uma vontade superior.» O auctor acrescenta mais adiante: «O
-poder social que não póde ordenar cousa alguma immoral, e que nem
-mesmo tem rasões para ordenar tudo o que é moralmente obrigatorio,
-gosa do direito de impor, com a sua sancção penal, quando o interesse
-collectivo que representa e reclama, acções ou abstenções que a lei
-moral não prescreve nem condemna. Eu quero que a penalidade social
-seja uma expiação e a liquidação d’uma divida, mas é uma expiação e a
-liquidação d’uma divida não para com Deus, mas para com a sociedade.»</p>
-
-<p>Não fazemos uma obra de critica; poremos de lado qualquer discussão;
-diremos unicamente que é impossivel não ficar desejando explicações
-mais amplas ácerca do <em>porquê</em> e do <em>como</em> d’este systema, e,
-muito particularmente, ácerca da medida das penas, teremos de abstrahir
-completamente dos graos de culpabilidade moral?</p>
-
-<p>O auctor em outro logar acrescenta ainda: Se se diz, segundo a nossa
-opinião, que o direito de punir deriva do direito de auctoridade, a
-questão unica será saber o que é que o soberano pode legitimamente
-prescrever ou ordenar, e regular a importancia das sancções pela
-importancia das prescripções.</p>
-
-<p>O soberano poderá preceituar tudo o que exigir a conservação e
-o desenvolvimento da ordem social e nunca preceituará<span class="pagenum" id="Page_82">[Pg 82]</span> cousa
-alguma incompativel com a lei moral, porque não ha ordem social em
-contradicção com esta lei.<a id="FNanchor_48" href="#Footnote_48" class="fnanchor">[48]</a> Quereriamos saber até onde deve chegar
-esta harmonia entre o direito e a moral. Trata-se apenas do que
-cumpre preceituar, ou tem ella de ampliar-se até ao grao das penas?
-Perguntaremos, se se nos responder n’este segundo sentido, quaes são as
-differenças praticas entre este systema e o de Rossi.</p>
-
-<p>Lendo as numerosas criticas actualmente dirigidas contra este ultimo,
-necessariamente se nos depara com frequencia esta observação:
-repellindo tal systema, é-se, comtudo, levado, ao que parece, n’uma
-corrente de idéas não sem analogia com as que acabamos de combater.
-Não haveria, em tal caso, legitimas aspirações da consciencia? Seria
-possivel satisfazel-as com uma suficiente precisão?</p>
-
-<p>É o problema que quereriamos resolver, quanto possivel, na fraca medida
-das nossas forças.</p>
-
-<p>A maior dificuldade com que luctam os verdadeiros systemas mixtos
-consiste na conciliação de dois elementos que parecem excluir-se
-reciprocamente: o relativo e o absoluto. Estão alem d’isto naturalmente
-expostos ás objecções que se oppõem a cada um dos dois principios
-que se esforçam por combinar. A grande superioridade que se arrogam
-consiste em evitar os excessos a que poderia levar cada um d’estes
-principios tomado isoladamente. Duvidamos de que realmente possam
-conseguir esse fim; entendemos, de mais a mais, que nas theorias
-puramente relativas, quando sensatamente entendidas, podem encontrar-se
-garantias analogas, sem que offereçam eguaes perigos. Parece-nos que
-os receios suscitados por estas ultimas, e as accusações que se lhes
-dirigem, respeitam muito menos aos principios que lhes servem de base,
-do que ás idéas frequentissimamente incompletas, mesquinhas e parciaes
-que d’ellas se teem formado. Não o escondemos a nós mesmos: ha contra
-ellas bastantes prejuizos que queremos combater, porque nos parece isto
-indispensavel para attingirmos o fim que nos propomos.</p>
-
-<p>Em nossa opinião, prestar-se-hia um grande serviço á sciencia do
-direito penal, se a desembaraçassem, d’uma vez para sempre, das velhas
-idéas d’uma delegação total ou parcial da justiça de Deus. Não é que
-resolvamos inclinar-nos<span class="pagenum" id="Page_83">[Pg 83]</span> sem reservas ante as soberanias d’este mundo.
-Julgamol-as, a ellas proprias, subordinadas a uma regra superior; uma
-regra, porém, especial e humana, não porque deixe de ter uma origem
-superior, mas porque respeita á nossa existencia terrena, á missão que
-impõe aos representantes da ordem social.</p>
-
-<p>Cumpre não nos illudirmos: novas criticas que se dirigissem contra
-as theorias mixtas não teriam provavelmente resultados diversos dos
-precedentes; se se quer que desappareçam, é preciso satisfazer, em
-parte, ao menos, ás necessidades e aos sentimentos que as determinaram.
-Vejamos se, sem ir além das theorias puramente relativas, não é
-possivel conseguir aquelle fim.</p>
-
-<p>Digamol-o desde já; não temos a pretensão de haver descoberto fosse
-o que fosse; nada mais fizemos do que tratar de apontar phenomenos
-geralmente conhecidos, perguntando a nós mesmos se não é possivel achar
-n’elles a solução desejada; é o resultado d’este estudo que vimos
-submetter á critica.</p>
-
-<p>Quando acaba de commetter-se um crime, é natural preoccupar-nos com os
-meios pelos quaes se poderia evitar a repetição d’elle.</p>
-
-<p>Parece que é o auctor do facto a primeira pessoa contra quem deve
-proceder-se; como impedil-o, porém, de o renovar? Só por tempo,
-relativamente breve, podem collocal-o na impossibilidade physica de
-recomeçar. Seria louvavel e não deveria certamente perder-se de vista o
-trabalhar para o seu aperfeiçoamento moral; mas é uma empreza de largo
-folego e cujos resultados são muito incertos. Recorre-se geralmente á
-intimidação; oppõe-se o temor da pena ás seducções do crime.</p>
-
-<p>Tudo isto póde justificar-se; mas resta saber se são medidas
-sufficientes. Póde considerar-se o perigo social como inteiramente
-concentrado na pessoa do criminoso? O facto que acaba de dar-se não é,
-pelo contrario, o indicio e a consequencia d’um phenomeno mais geral,
-que exige uma reacção mais ampla.</p>
-
-<p>É bem certo que o perigo que é preciso combater existia antes da
-realisação do facto, porque o facto produziu-se. Basta, além d’isto,
-estudar, pouco que seja, o movimento da vida social, para reconhecer
-que as infracções que se trata de prevenir teem a sua origem n’um
-conjuncto de impulsos<span class="pagenum" id="Page_84">[Pg 84]</span> mais ou menos poderosos. Estas forças perigosas
-são, no fundo, as mesmas, antes e depois da perpretação do crime;
-apparecem como o objecto principal da reacção necessaria: é dos
-delinquentes futuros que principalmente é preciso tractar. O facto de
-se delinquir sob a acção d’estas forças é apenas uma circumstancia
-especial que não deve ser completamente despresada, mas que só póde
-exercer uma influencia restricta.</p>
-
-<p>Os principaes partidarios d’esta acção geral d’uma força preventiva,
-servem-se de expressões muito energicas para significarem o modo
-como esta acção deve exercer-se. Falam d’um constrangimento ou d’uma
-dynamica psychologica<a id="FNanchor_49" href="#Footnote_49" class="fnanchor">[49]</a>, do temor tendente a reprimir as tentações
-perigosas<a id="FNanchor_50" href="#Footnote_50" class="fnanchor">[50]</a>, do mal que excede o proveito que o criminoso deve colher
-do delicto<a id="FNanchor_51" href="#Footnote_51" class="fnanchor">[51]</a>. Parecem-nos, em si, exactas estas expressões, salvos os
-correctivos de que adiante falaremos.</p>
-
-<p>Este conjuncto de systemas justifica-se, em principio, pela absoluta
-necessidade de fazer respeitar o direito, recorrendo em caso de
-necessidade, ao constrangimento. Assenta n’um facto de observação
-facil de verificar, e que leva a um conjuncto de regras geraes quanto
-á ponderação das penas; tracta-se apenas de estudar o meio social em
-que se quer actuar, e de preceituar penas correlativas ou á importancia
-dos interesses a proteger, ou á força dos impulsos contra que é
-preciso luctar. Pode-se frequentemente recorrer á experiencia em tal
-assumpto. Os outros systemas levam quasi necessariamente a uma especie
-de casuistica em que é preciso conceder muito á livre apreciação dos
-tribunaes.</p>
-
-<p>A acção preventiva<a id="FNanchor_52" href="#Footnote_52" class="fnanchor">[52]</a>, cujos principaes caracteristicos acabamos
-de apontar, tem sido objecto de criticas muito asperas; diz-se que
-ha n’ella alguma cousa de degradante e de brutal; é um recurso ao
-terror; maltractam o culpado como um instrumento destinado a servir de
-exemplo. O legislador torna-o uma victima dos proprios erros; elle é
-que é culpado;<span class="pagenum" id="Page_85">[Pg 85]</span> devia prescrever penas bastantes para que não houvesse
-contravenções; enganou-se nas observações e nos calculos; não satisfez
-á missão de que se incumbira. Chega-se mesmo a dizer que, em um tal
-systema, não é necessario provar a culpabilidade para se infligir
-uma pena, visto que o supplicio d’um innocente póde produzir o mesmo
-effeito preventivo que o de um criminoso. Acrescenta-se que cada nova
-infracção deveria augmentar as severidades da lei, por ficar assim
-demonstrada a insufficiencia das antigas penalidades.</p>
-
-<p>Digamol-o desde já: Não ha principio que não conduza a consequencias
-inaceitaveis, logo que, separando-o d’aquelles com que devia
-combinar-se, o levem, n’esse estado de isolamento, até aos seus
-ultimos desenvolvimentos logicos. Cumpre, alem d’isso, reconhecel-o:
-os proprios partidarios d’uma acção preventiva não estão isentos de
-defeito no modo por que diligenciaram definil-a e justifical-a.</p>
-
-<p>Fala-se d’uma maneira demasiadamente directa e exclusiva d’uma
-protecção da sociedade contra os attentados a que está exposta. Faz-se
-nascer assim a idéa d’uma lucta de todos contra cada um, lucta em que
-este seria quasi necessariamente sacrificado.</p>
-
-<p>É preciso renunciar a taes formulas, e proclamar em alta voz: A ordem
-social não se justifica e não tem rasão de ser senão como meio de fazer
-reinar o direito. Esta regra superior impõe-se a todos, tanto aos
-estados como aos individuos; dá a cada um o que lhe compete, e cobre
-com a sua protecção o accusado e o culpado mesmo, tanto como o queixoso
-e a victima. É um dos principaes merecimentos de Carrara ter muito
-particularmente insistido na idéa d’uma defesa do direito como base da
-sociedade.<a id="FNanchor_53" href="#Footnote_53" class="fnanchor">[53]</a></p>
-
-<p>Com demasiada frequencia se considera que o estado desempenha
-unicamente o papel d’um gendarme encarregado de vigiar por que os
-individuos se não invadam reciprocamente o campo de actividade que
-lhes é destinado. Esta doutrina, favorecida pelo systema de Kant,
-devia levar ao individualismo que hoje predomina; póde egualmente
-fazer considerar exclusivamente exterior em demasia a ordem que ao
-direito incumbe manter. É preciso não o esquecer: esta ordem exterior
-não é mais do que uma base sobre que deve<span class="pagenum" id="Page_86">[Pg 86]</span> produzir-se um completo
-desenvolvimento intellectual e moral; n’isto é que está o principal
-fim: não haveria senão mentira em qualquer ordem exterior que, para se
-produzir, offendesse esse desenvolvimento superior.</p>
-
-<p>São de molde a tranquillisar os espiritos as observações que
-precedem, porque reduzem ao seu justo valor os defeitos invocados
-pelos adversarios d’uma acção preventiva em direito penal. O accusado
-certamente achará garantias sob um regimen em que deve ser protegido o
-direito de todos.</p>
-
-<p>Não é ser tratado como um instrumento, e sacrificado a um fim estranho,
-o soffrer um regimen a cujos rigores deu causa a negligencia e a
-vontade culposa. É isto tanto mais verdadeiro, quanto este facto é uma
-condição necessaria para a manutenção d’uma ordem de cousas com que
-cada um aproveita, e que deve cada um respeitar como uma lei da sua
-natureza.</p>
-
-<p>O temor de um materialismo exagerado, quer pelo que respeita ás
-tendencias contra que julgam dever luctar, quer pelo que respeita aos
-reagentes que procuram oppor-lhes, não se justifica sufficientemente
-pelos principios do systema; nada ha n’esses principios que
-necessariamente conduza a um tal materialismo; os impulsos que devem
-combater-se para se satisfazer a esta doutrina são de diversas
-naturezas, bem como o são os meios de se lhes resistir.</p>
-
-<p>A acção preventiva do direito penal tambem não tem necessariamente
-como consequencia levar a exaggeradas severidades, sacrificando tudo a
-uma certa ordem exterior, e redobrando de rigor a cada nova infracção.
-N’este systema, como nos outros, não se poderia ter a pretensão de
-manter a ordem d’uma maneira absoluta: não pode esquecer-se que é
-precisa, tendo em vista um fim superior, a sujeição a certos limites,
-e o respeito pela maior somma possivel de liberdade. Leva-nos isto ao
-estudo das relações que devem existir entre o direito e a moral. Chegou
-o momento de melhor profundarmos as particularidades d’este assumpto;
-esse é, como já vimos, o fim principal do presente estudo.</p>
-
-<p>Convem fazer notar que, propondo-nos oppor o reagente da pena ás
-seducções do delicto, é sobre a vontade, isto é, sobre um elemento
-essencial da vida moral, que procuramos actuar.</p>
-
-<p>Se falta completamente esta liberdade, não pode tratar-se da pena,
-porque o elemento sobre que esta devia exercer<span class="pagenum" id="Page_87">[Pg 87]</span> influencia não existe.
-Chegamos assim aos mesmos resultados a que chegariamos, se unicamente
-nos preoccupassemos com uma culpabilidade moral que não poderia dar-se
-em tal hypothese. Mas esta ausencia e esta diminuição de liberdade
-podem apresentar gradações e provir de causas diversas, por uma parte
-de violentos impulsos, e, por outra, d’um estado normal e doentio.
-Occupemo-nos successivamente d’estes dois casos, attendendo ás relações
-do direito e da moral.</p>
-
-<p>1.ᵒ Quanto ao obstaculo proveniente dos fortes impulsos, é preciso
-distinguir entre duas hypotheses:—a) Esses impulsos são de tal ordem
-que fazem desapparecer completamente a liberdade. Parece que, sendo
-assim, deve desapparecer qualquer imputabilidade segundo uma e outra
-lei, resalvando-se os casos em que esses impulsos proviessem d’um
-desenvolvimento de paixão contra o qual teria sido possivel luctar.
-Pode acontecer, todavia, que o direito se declare impotente em casos
-em que a moral não haja perdido toda a competencia; tal seria o de
-dois naufragos que se disputassem um destroço insufficiente para
-salvar ambos. Em geral seria difficil recusar um tributo de louvor e
-de admiração áquelle dos dois que se sacrificasse pelo outro. Podia
-egualmente succeder que devesse infligir-se uma censura mais ou menos
-severa a um ou a outro, conforme as circumstancias.</p>
-
-<p>Poderia até dar-se uma verdadeira violação de direito. Mas, n’uma
-tal posição, o estado de natureza e os instinctos vitaes predominam
-com tamanha força, que não seria escutada a ameaça d’uma pena, e que
-dificilmente se justificaria a imposição d’ella—b) Esses impulsos
-deixam subsistir um certo grau de liberdade reconhecido por uma e
-outra lei. A moral distinguirá: verá circumstancias attenuantes na
-acção d’essas causas, se, em si, forem innocentes ou louvaveis; verá
-circumstancias aggravantes, se forem condemnaveis. E o que será feito
-do direito penal? Não deveriam calcular-se unicamente pela força de
-taes impulsos as exigencias da acção preventiva? Não se poderia mesmo
-avançar que é preciso proceder com rigor, tanto maior quanto maior é
-a falta de reacção moral? Não se poderia citar como exemplo um pae de
-familia que a miseria impelle até o roubo para prover á sustentação da
-mulher e dos filhos? Não pode parecer necessario redobrar de severidade
-para luctar contra impulsos taes?</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_88">[Pg 88]</span></p>
-
-<p>2.ᵒ A mesma dissidencia e as mesmas questões se levantam quanto
-aos obstaculos que um estado anormal ou doentio póde impor ao
-desenvolvimento da liberdade. N’elle verá geralmente a moral
-circumstancias attenuantes. Póde, ao contrario, pensar-se que em
-direito penal, é necessario ferir com tanta maior força quanto mais
-obtuso e quasi embrutecido fôr o individuo de que se trate.</p>
-
-<p>Escusamos de o dissimular: estes conflictos e estas questões
-apresentam-se nitidamente ao espirito, se apenas se attende á ordem
-material, e á necessidade de a manter estrictamente e rigorosamente.
-Talvez se fosse tentado a acceitar, a tal respeito, o dilemma admittido
-pelo criminalista italiano Giuliani, ferveroso discipulo de Romagnosi:</p>
-
-<p>«<i>Se se admitte um principio differente d’aquelle segundo o qual as
-penas devem ser graduadas em conformidade com a força dos impulsos
-que conduzem ao mal, esse principio deverá conduzir a differentes
-resultados; exigirá uma pena mais ou menos forte. Essa pena será
-excessiva ou insufficiente. Seria injusta n’este ultimo caso, tanto
-para com a sociedade, que tem o direito de ser efficazmente protegida,
-como em relação ao culpado, que se veria atormentado sem que d’isto
-resultasse nenhum bem publico.</i>»<a id="FNanchor_54" href="#Footnote_54" class="fnanchor">[54]</a> Vejamos comtudo se não deve
-resultar uma outra resposta d’um estudo mais profundo do assumpto.</p>
-
-<p>Vimos quaes podem afigurar-se ser as exigencias d’uma ordem puramente
-material; cumpre-nos indagar quaes devem ser as da ordem moral, e qual
-a influencia que sobre as primeiras são chamadas a exercer.</p>
-
-<p>A consciencia é, como o dissemos já, o elemento primordial e
-necessario de todo o desenvolvimento moral. Cada um de nós escuta,
-nas profundidades do seu ser, uma voz que lhe diz: Tu és livre; mas
-este nobre privilegio traz comsigo mesmo o principio d’uma austera e
-terrivel responsabilidade, porque é preciso fazer d’elle o uso exigido
-por uma lei superior. Ha entre o bem e o mal uma distincção que,
-nem por ser algumas vezes offuscada pela ignorancia ou pela paixão,
-deixará de se fazer reconhecer: é preciso procurar o primeiro e evitar
-o segundo. Degrada-se e compromette-se quem não obedece a esta regra,
-porque se colloca voluntariamente fóra do caminho que devia trilhar.</p>
-
-<p>Esta voz faz-se perpetuamente ouvir para nos evocar á<span class="pagenum" id="Page_89">[Pg 89]</span> realidade das
-cousas. Tem-se visto luctar com vantagem contra o septicismo d’uma
-escola que um espiritualismo exagerado levava a desconhecer o mundo
-externo.<a id="FNanchor_55" href="#Footnote_55" class="fnanchor">[55]</a> Lucta actualmente contra o materialismo e o fatalismo:
-confiamos em que não será suffocada. É bem certo que não se poderia
-abstrahir d’este testemunho directo da nossa natureza superior:
-não é sem motivos e não deve ser em vão que se faz ouvir com tal
-persistencia. Vejamos agora que influencia deve exercer no direito
-penal.</p>
-
-<p>Faremos observar, em primeiro logar, que não é unicamente um elemento
-individual: apresenta-se tambem debaixo d’uma fórma collectiva e
-social. Cada nação vive d’uma vida moral que lhe é mais ou menos
-propria e que se manifestou por muito tempo no direito consuetudinario
-cuja origem só póde explicar-se por uma auctoridade expontaneamente
-reconhecida. Mudaram os tempos: parece não bastar este modo de
-proceder, e substitue-se-lhe um largo desenvolvimento do poder
-legislativo; mas não conserva menos cada povo um fundo de vida moral
-que lhe é propria, e que lhe constitue uma das linhas principaes do
-caracter nacional.</p>
-
-<p>Occupemo-nos agora de cada um d’esses dois aspectos da consciencia em
-face do direito penal.</p>
-
-<p>Qualquer acto da vida moral é seguido, na consciencia individual,
-d’um sentimento de approvação ou de reprovação que, em si mesmo,
-constitue já uma especie de sancção pela impressão de contentamento
-ou de descontentamento que deriva d’elle. Esta manifestação primeira
-póde parecer que não está directamente em relação com o direito; mas
-ainda vae alem; como precedentemente dissemos, vem juntar-se-lhe
-uma impressão de merito ou de demerito. A felicidade promettida aos
-bons não provoca geralmente nenhuma pretensão directa relativamente
-ao direito: seria impossivel encarregar o Estado de directamente
-satisfazer a tanto, d’uma maneira ampla. Mas exercendo de facto o
-Estado o poder de infligir penas, pergunta-se se não deveriam seguir-se
-os avisos da consciencia no exercicio d’essas funcções, e até que ponto
-póde convir o embrenhar-se n’esse caminho.</p>
-
-<p>O mao merece ser desgraçado! Estas austeras vozes repercutem-se<span class="pagenum" id="Page_90">[Pg 90]</span>
-de edade em edade com demasiada persistencia para que seja licito
-abstrahirmos d’ellas completamente. Parece, alem de tudo, muito
-difficil que um ser intelligente e sensivel não soffra fora do caminho
-que deve trilhar. Deve-se comtudo ter cautella em não materialisar este
-sentimento exigindo que o Estado o satisfaça directamente. Não temos
-de repetir aqui os argumentos que apresentámos acerca das doutrinas
-absolutas, quer consideradas em si, quer nas diversas combinações que
-se tem tentado effectuar entre o principio da expiação e as exigencias
-d’uma protecção social. Quanto mais estudamos essas combinações, mais
-nos convencemos da impossibilidade de as conseguir, e dos perigos que
-se correm, tentando-o. D’aqui não resulta comtudo que o direito penal
-possa abstrahir completamente dos juizos da consciencia. É verdade
-que nenhuma medida commum existe entre o sentimento abstracto de
-demerito que se prende á culpabilidade moral, e as penas geralmente
-physicas infligidas pelo Estado; mas seria engano concluir que nunca
-podem levantar-se conflictos entre estes dois elementos. Já o vimos:
-as exigencias sociaes parecem algumas vezes reclamar severidades que
-se não harmonisam com a verdadeira culpabilidade moral; deriva d’ahi
-certissimamente um sentimento doloroso para a consciencia. Qual deve
-ser a influencia d’um tal facto sobre a pratica do direito?</p>
-
-<p>Digamol-o em primeiro logar: esse sentimento é, em si, natural e
-legitimo. Soffrer quando se vê exercer uma demasiada severidade, não é
-o mesmo que reclamar penas mais rigorosas. É mais grave infligir um mal
-immerecido do que abster-se ou restringir-se dentro de limites tidos
-por estreitos em demasia. Para preencher lacunas taes, eis ahi sempre
-a auctoridade superior, de cuja justiça se quereria ver o exercicio.
-Acrescentemos que, sendo a consciencia moral um dos principaes
-elementos do progresso individual e social, não pode admittir-se que o
-Estado não tenha de preoccupar-se com elle, ainda que não fosse senão
-para respeitar e deixar que se cumprisse uma obra tal.</p>
-
-<p>O que dissemos ácerca das relações que devem existir entre as duas leis
-indica sufficientemente que a vida humana não pode dividir-se em duas
-partes; uma puramente juridica e outra puramente moral; existe entre
-estes dois elementos uma acção e uma reacção necessarias e reciprocas;
-demonstra-o a natureza das cousas, e confirma-o a historia: se tem<span class="pagenum" id="Page_91">[Pg 91]</span>
-de viver n’um mundo em demasia contrario ás suas crenças e ás suas
-aspirações, o homem moral tende a insurgir-se ou a degradar-se; as mais
-das vezes, succede-lhe uma e outra cousa ao mesmo tempo. A demasiada
-severidade das penas dá muito particularmente este resultado. Deriva
-d’ella um sentimento de incerteza e de mal-estar; o accusado parece ser
-uma victima que cumpre lastimar e tractar de subtrahir á sorte injusta
-que a ameaça. É assim que a impunidade tende a produzir-se no meio da
-anarchia e d’uma desmoralisação geral. O proprio Feuerbach, um dos mais
-rigorosos partidarios do constrangimento psychologico, reconhecia a
-necessidade de nos curvarmos perante um poder tal.<a id="FNanchor_56" href="#Footnote_56" class="fnanchor">[56]</a> Digamos ainda
-que os sentimentos da consciencia não podem senão embotar-se n’um meio
-social que os não considera sufficientemente. Vendo-os desconhecer com
-demasiada frequencia, fica-se em duvida se não seriam vãs illusões.</p>
-
-<p>Ha, pois, que fazer concessões á consciencia moral. Comparando com as
-doutrinas mixtas as idéas cujos traços principaes acabamos de expor,
-é que veremos qual a natureza d’essas concessões, e até onde devem
-ir. Taes idéas não offerecem aliás nenhuma novidade: são apenas a
-maneira de viver cada vez mais consagrada pelos factos. O systema das
-circumstancias attenuantes reconhecidas pelo jury, no fundo não é mais
-do que a realisação pratica de taes concepções.</p>
-
-<p>§ 4.ᵒ—As differenças caracteristicas que distinguem estas theorias das
-antigas theorias mixtas parecem-nos evidentes; mas não é menos preciso
-resumil-as e pol-as em relevo com toda a exactidão e precisão possiveis.</p>
-
-<p>Assentam estas doutrinas mixtas, no fundo, sobre a combinação de
-quatro idéas que apresentam como principios, cuja estricta observancia
-é necessaria em vista das garantias e dos limites que para o direito
-penal d’elles devem resultar:</p>
-
-<p>1.ᵒ Ha uma justiça absoluta que retribue o mal com o mal, tendo em
-vista uma expiação que tem a causa em si propria;</p>
-
-<p>2.ᵒ A ordem social exige, para se conservar, que se inflijam certas
-penas aos que a perturbem;</p>
-
-<p>3.ᵒ Esta penalidade exerce-se em virtude e em execução d’uma delegação
-parcial da justiça absoluta;</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_92">[Pg 92]</span></p>
-
-<p>4.ᵒ Esta delegação não é admissivel senão nos limites do que é
-necessario e possivel para a manutenção da ordem social.</p>
-
-<p>A idéa d’uma expiação absoluta, como base unica da justiça suprema, é,
-como já dissemos, mais ou menos difficil de conceber.</p>
-
-<p>A delegação parcial d’esta justiça não parece nem justificada
-nem exequivel. Afiguram-se taes doutrinas, em todos os casos,
-demasiadamente superiores ás nossas faculdades e demasiadamente
-discutiveis, para que seja possivel tomal-as como base d’um poder tão
-temivel.</p>
-
-<p>Acrescentaremos que as garantias e os limites que se procuram n’esta
-combinação bem poderiam ser illusorios, e que não deixariam de
-offerecer perigo.</p>
-
-<p>Expor-se-hia a bastantes decepções quem buscasse na justiça absoluta
-garantias e limites contra os rigores da justiça social; porque esta,
-para justificar as severidades que julga necessarias, apenas tem de
-elevar um ou muitos graos toda a escala da penalidade moral. O que é
-facil na falta de qualquer medida commum aos dois generos de penas
-e em presença da infinita grandeza do soberano legislador cujas
-determinações foram violadas. Não se tem já pretendido que todas as
-medidas e todas as gradações desapparecem em presença do infinito?</p>
-
-<p>Offerece este systema duas fontes de perigos: 1.ᵒ Não é impossivel que
-n’elle se encontre, em vez d’uma diminuição um augmento da penalidade;
-2.ᵒ é possivel tambem que n’elle se encontrem limites que não permittam
-satisfazer as exigencias sociaes.</p>
-
-<p>a) Já o dissemos: é uma ardua tarefa conciliar as regras absolutas da
-expiação moral, tal qual se concebe geralmente n’essas doutrinas, com
-as necessidades puramente relativas da ordem social.</p>
-
-<p>Nem sempre será facil fugir ao que ha de naturalmente imperioso na
-primeira ordem de idéas; poderá ser-se levado a elevar tal ou tal
-pena sem verdadeira necessidade social, unicamente para manter uma
-certa harmonia na gradação reclamada pela lei moral. Poderia conduzir
-a consequencias semelhantes o desejo de evitar um mao exemplo que
-parecesse resultar de taes contrasensos.</p>
-
-<p>Se se admitte um só principio justificativo da pena, unicamente se
-applicará esta depois de rigorosamente verificado se esse principio a
-reclama.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_93">[Pg 93]</span></p>
-
-<p>Se se admittem dois, poderá succeder que se seja mais facil na
-applicação d’um, em virtude da evidencia que se manifeste quanto á
-applicação do outro. Uma culpabilidade moral n’um alto grao de certeza
-poderá fazer com que se attenda mais ou menos de leve á verificação das
-necessidades sociaes. Adquirir-se-ha pelo pensamento a segurança de
-que, no fim de tudo, o accusado, soffrendo a pena, unicamente soffrerá
-o que mereceu.</p>
-
-<p>O systema não terá, sem duvida, sido estrictamente observado n’estes
-dois casos; mas não é superfluo attender ás possiveis fraquezas da
-nossa pobre humanidade.</p>
-
-<p>b) Cumpre reconhecer que, muito frequentemente, as penas que parecem
-necessarias pelo que respeita á segurança social, parecem exceder a
-culpabilidade moral, no sentido, ao menos, de que tal circumstancia
-póde reclamar uma elevação da acção repressiva, sem que o facto
-represente em si um correspondente aggravo moral. A justiça militar em
-tempo de guerra e certas medidas de salubridade e de ordem publicas
-parece terem taes exigencias.</p>
-
-<p>É interessante notar a attitude de M. Rossi ao fallar das medidas
-tendentes a prevenir a invasão das doenças epidemicas ou contagiosas.
-Depois de ter provado a severidade muito rigorosa a que se costuma
-recorrer em taes circumstancias, esforça-se por justifical-a dizendo
-que se é moralmente muito culpado quando, por imprudencia, se expõe um
-paiz aos ataques d’um semelhante flagello.<a id="FNanchor_57" href="#Footnote_57" class="fnanchor">[57]</a></p>
-
-<p>É o que geralmente se faz: accommoda-se a culpabilidade moral ao perigo
-social. Offerecem-se aqui duas observações:</p>
-
-<p>1.ᵃ se devesse sempre existir uma tal proporção, não vemos que
-accrescimo de garantias e que limites se obteriam combinando os dois
-principios.</p>
-
-<p>2.ᵃ Já vimos, falando dos obstaculos que se oppõem ao pleno
-desenvolvimento da liberdade, que uma tal harmonia nem sempre existe.
-Parece alem d’isso ser preciso ir mais longe, e reconhecer a este
-respeito um motivo quasi permanente de desaccordo. O direito carece
-de apoiar-se em principios abstratos conducentes a regras geraes; a
-moral depende frequentemente de convicções individuaes que transfiguram
-algumas vezes as regras sociaes em formulas mais<span class="pagenum" id="Page_94">[Pg 94]</span> ou menos importunas,
-cuja conveniencia se não justifica sufficientemente quer em si mesma, e
-d’um modo geral, quer em attenção a taes circumstancias particulares.</p>
-
-<p>Estas regras podem até afigurar-se manifestamente injustas e nocivas.
-Nem por isso devem respeitar-se menos em direito estricto e rigoroso.
-É o que demandam as exigencias da ordem. Mas, collocadas no ponto
-de vista puramente moral, seria difficil abstrahir completamente
-dos escrupulos e até das extravagancias e dos erros da consciencia
-individual. A opinião publica não se engana: sem criticar uma certa
-pena como em demasia severa, longe está ella de a tomar sempre como
-medida da censura que dirige contra o agente. Dá-se certamente alguma
-cousa semelhante no tocante ás medidas sanitarias. É-se sem duvida
-culpado de expor um paiz aos ataques d’um mal que se teme, mas é
-facil haver illusões a este respeito. Póde alem de tudo acontecer que
-imperiosos deveres venham combater e diminuir a auctoridade da lei.</p>
-
-<p>Vejamos o que, sob este ponto de vista, deve pensar-se das idéas que
-defendemos como base do direito penal. Não temos aqui mais do que
-um principio unico que tenta proteger todos os direitos e todos os
-interesses commettidos á sollicitude do Estado. São as necessidades
-sociaes que devem predominar em um tal systema; mas não se referem só á
-ordem material; devem attender á ordem superior a que esta servirá de
-ponto de partida e de meio.</p>
-
-<p>O elemento moral figura n’elle sob um aspecto inteiramente diverso do
-que tem nas theorias mixtas. Não se trata d’uma doutrina nascida de
-locubrações scientificas e impondo-se imperativamente: consideramos
-a consciencia um facto que é preciso respeitar, e a que é preciso
-attender, em vista da sua grande importancia moral e da influencia
-que exerce na auctoridade e na verdadeira efficacia da lei penal.
-Apresenta-se, como já vimos, sob dois aspectos. Vejamos que papel é
-necessario distribuir-lhe no desenvolvimento da actividade repressiva.</p>
-
-<p>Compõe-se esta actividade de dois elementos: 1.ᵒ um certo numero de
-regras mais ou menos abstractas e geraes, preceituadas pelo poder
-legislativo; 2.ᵒ a applicação d’essas regras aos casos particulares
-n’ellas previstos.</p>
-
-<p>1.ᵒ Quanto ao primeiro d’esses dois elementos, não devemos
-certissimamente, ir além do que chamamos moral publica<span class="pagenum" id="Page_95">[Pg 95]</span> ou consciencia
-nacional. É n’isso, n’esse conjuncto de tradicções, de convicções e de
-sentimentos derivados da historia de cada povo, que bem manifestamente
-se encontram as bases da vida collectiva e social d’elle; é ahi que ao
-mesmo tempo deve procurar-se a obra do seu passado e o ponto de apoio
-sobre que deve desenvolver-se o seu futuro. É um poder que só com
-respeito deve considerar-se em attenção á origem e á sua importancia.
-Não é preciso lisongear ninguem, e o povo, ainda menos talvez do que
-os individuos. Mas todo o povo, de que não deve desesperar-se, tem
-na sua vida intima um certo numero de idéas moraes reconhecidas mais
-ou menos sãs. É isso que constitue o lado bello do caracter nacional
-e da moral publica. É esse fundo commum que o legislador deve tomar
-para base da sua obra, se quer que o povo se desenvolva livremente e
-viva de vida propria. É n’esse facto d’uma consciencia nacional que é
-preciso attentar, no que tem de verdadeiramente acceitavel. É n’elle
-que convem buscar apoio para combater os impulsos perigosos que são o
-objecto da acção penal. É d’elle que se torna necessario respeitar as
-susceptibilidades.</p>
-
-<p>Ha um nucleo de vida moral, uma base de progresso futuro que é preciso
-manter cuidadosamente. Digamol-o comtudo: esta parte sã da consciencia
-nacional é muito affectada por um sentimento doloroso quando assiste
-a condemnações que lhe parecem em demasia severas, mas geralmente não
-leva tão longe as suas exigencias como deveriam fazel-o as doutrinas
-mixtas, para se manterem verdadeiramente fieis aos seus principios.</p>
-
-<p>Ha necessidades sociaes que cada um deve acceitar porque se impõem
-imperiosamente. Quem voluntariamente abriu lucta com a lei reconhece
-ter justamente incorrido nas penas que ella preceitua, embora
-procedesse com as mais honrosas intenções. Ha muito que este facto
-se aponta: um dos homens que a historia mais cercou de respeito,
-Washington, era regularmente um rebelde. Quem ousaria accusal-o de
-culpabilidade moral, e, se tivesse succumbido na sua empreza, quem se
-molestaria com uma condemnação proferida contra elle? Quaes teriam
-sido, em semelhante hypothese, os sentimentos d’um partidario das
-doutrinas mixtas?</p>
-
-<p>2.ᵒ—A influencia da consciencia nacional reapparece ainda, mas d’um
-modo menos directo, no exercicio da acção judiciaria. É d’um facto
-individual que se tracta; é o que<span class="pagenum" id="Page_96">[Pg 96]</span> se passou na consciencia do agente
-que cumpre apreciar moralmente. Se se quer ser justo e equitativo,
-não é possivel abstrair das circumstancias do facto, dos impulsos e
-das convicções especiaes sob cuja influencia o acto se produziu. Mas
-o meio moral predominante no paiz deverá necessariamente exercer uma
-larga influencia em tal apreciação. O que de resto é justo, porque são
-em geral esses principios de moral publica que actuaram, deveram ou
-poderam actuar na perpretação do facto; são elles que o juiz deve tomar
-em consideração, mais do que as suas convicções individuaes, que podem
-afastar-se muito da corrente geral.</p>
-
-<p>Acrescentemos que deve haver harmonia entre a acção legislativa e a
-judiciaria, d’onde resulta que esta ultima deve, como a primeira, fazer
-concessões á consciencia racional. Que nós, se se nos perguntar até
-onde se deve ir n’este caminho, diremos que seria difficil formular a
-tal respeito regras absolutas; são questões essas a respeito das quaes
-o legislador e o juiz devem ter um certo poder d’apreciação.</p>
-
-<p>Tudo o que podemos dizer é que, se fosse preciso escolher entre
-os effeitos d’uma ordem material que só assentasse no temor, e a
-auctoridade moral d’uma pena acceite pela consciencia, não hesitariamos
-em nos inclinarmos para esta ultima. Estamos persuadidos de que,
-satisfazendo ás mais altas aspirações da nossa natureza, essa escolha
-estaria bem longe de comprometter a ordem tal qual deve reinar.</p>
-
-<p>Ainda uma vez, a ordem material deve ser considerada como condição
-d’uma ordem superior que se lhe não deve sacrificar. É ahi que se
-encontra a solução do problema que nos propozemos. É pela elevação da
-ordem social á sua verdadeira altura, sem perder de vista o fim ultimo
-para que deve tender, fazendo entrar n’ella todos os elementos que deve
-conter, que se dá satisfação, tanto quanto possivel, aos sentimentos
-moraes que n’ella podem achar-se mais ou menos offendidos.</p>
-
-<p>É certo que esta corrente d’ideias apenas conduz a uma especie de
-transacção, e que em tal assumpto, mais que em qualquer outro, sente-se
-a necessidade d’um apoio em principios fixos. É a objecção que nos
-apresentava um dos mais distinctos dos nossos antigos magistrados, que
-desempenhava então as funcções de procurador geral, e que morreu ha
-pouco. Todas as nossas sympathias seriam votadas a taes sentimentos, se
-fosse possivel dar-lhes uma conveniente satisfação.<span class="pagenum" id="Page_97">[Pg 97]</span> A questão é essa,
-e cremos tel-a estudado com uma conscienciosa perplexidade.</p>
-
-<p>Não basta crear principios, é preciso que assentem n’uma base solida
-e possam combinar-se sem se chegar a resultados incompativeis. É
-necessario encarar a vida tal qual se nos apresenta, e quanto mais
-observamos, mais nos parece demonstrado que as complicações sociaes são
-difficeis de se reger por meio de regras abstractas, que se desenvolvam
-com um rigor mathematico. Devemos dar-nos por felizes quando podemos
-reconhecer certos principios dirigentes. Julgamos tel-o conseguido no
-presente estudo, sem deixarmos de dar aos factos toda a importancia que
-devem ter.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_98">[Pg 98]</span></p>
-
-
-<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_29" href="#FNanchor_29" class="label">[29]</a> Tissot, <i xml:lang="fr" lang="fr">Le droit pénal, etudié dans ses principes</i>,
-t. I, pag. 197.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_30" href="#FNanchor_30" class="label">[30]</a> Boitard, <i xml:lang="fr" lang="fr">Leçons sur le Code pénal</i>, pag. 66.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_31" href="#FNanchor_31" class="label">[31]</a> Cf. entre outras obras sobre o direito de punir em geral,
-F. J. Goebel, <i xml:lang="fr" lang="fr">De legitima sui defensione</i>.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_32" href="#FNanchor_32" class="label">[32]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue générale du droit, de la législation et de la
-jurisprudence en France et de l’étranger</i>, Echn. Labotat—Paris,
-pag. 32 e 35.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_33" href="#FNanchor_33" class="label">[33]</a> <i>Ann. médic, psych.</i>, tome II, pag. 273.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_34" href="#FNanchor_34" class="label">[34]</a> Lelorrain, <i xml:lang="fr" lang="fr">De l’aliené au point de vue de la
-responsabilité pénale</i>, pag. 90.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_35" href="#FNanchor_35" class="label">[35]</a> Dr. Giulio Belfiore, <i xml:lang="fr" lang="fr">L’ipnotismo e gli stati
-affini</i>, pag. 299.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_36" href="#FNanchor_36" class="label">[36]</a> Ferreira-Deusdado, <i>Ensaios de philosophia actual</i>,
-pag. 179.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_37" href="#FNanchor_37" class="label">[37]</a> A. Culerre, <i xml:lang="fr" lang="fr">Magnetisme et Hypnotisme</i>, pag. 372.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_38" href="#FNanchor_38" class="label">[38]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Étude sur l’influence légitime de la conscience morale
-en droit pénal</i>, par Charles Brocher, professeur á l’Université
-de Genéve.—Paris. Este trabalho, que vae até ao fim do cap., foi
-traduzido por indicação nossa, na <i>Revista de Educação e Ensino</i>,
-4.ᵒ anno, pag. 339 e seguintes, pelo nosso illustre amigo o sr. Alfredo
-da Cunha, talentoso advogado e distincto homem de lettras.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_39" href="#FNanchor_39" class="label">[39]</a> Julgamos poder indicar especialmente as obras
-seguintes: Hepp, <i lang="de" xml:lang="de">Darstellung und Beùrtheilung der deutschen
-Strafrechtssysteme. Ueber die Gerechtigkeits, und Nutzungstheorien des
-Auslandes</i>—Rœder, <i lang="de" xml:lang="de">Verbrechen und Strafe</i>.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_40" href="#FNanchor_40" class="label">[40]</a> V. tambem a introducção do nosso <i xml:lang="fr" lang="fr">Etude sur la légitime
-et les réserves</i>. Paris et Genève, 1868. V. tambem os nossos
-<i xml:lang="fr" lang="fr">Etudes sur le droit naturel</i> na <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue générale du droit</i>.
-Paris, 1877 (<i xml:lang="fr" lang="fr">Exposé critique des Institutes de droit naturel</i>, de
-M. Lorimer).</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_41" href="#FNanchor_41" class="label">[41]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Droit Naturel</i>, traducção Barni, p. 197.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_42" href="#FNanchor_42" class="label">[42]</a> V. especialmente Abegg, <i lang="de" xml:lang="de">Die verschiedenen
-Strafrechtstheorien</i>.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_43" href="#FNanchor_43" class="label">[43]</a> Este discurso acha-se entre os documentos da dita
-Academia.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_44" href="#FNanchor_44" class="label">[44]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Traité du droit pénal.</i> V. especialmente:
-Introducção, Livro I, cap. 9, 12, 13; Livro III, cap. 4.—V. em sentido
-proximamente analogo, o artigo publicado pelo Duque de Broglie na
-<i xml:lang="fr" lang="fr">Revue française</i>, 1828, e a obra de Guizot sobre <i xml:lang="fr" lang="fr">La peine de
-mort</i>, cap. 6.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_45" href="#FNanchor_45" class="label">[45]</a> V. especialmente o <i xml:lang="fr" lang="fr">Programme d’un cours de droit
-criminel</i>, cujo 1.ᵒ volume foi traduzido por M. Baret, em 1876.
-Expozemos e criticamos os principios geraes d’esta doutrina n’um artigo
-que se imprimia quasi simultaneamente com estas linhas na <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue de
-droit international de Gand</i> (1878).</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_46" href="#FNanchor_46" class="label">[46]</a> Franck, <i xml:lang="fr" lang="fr">Philosophie du droit pénal</i>, cap. V, pag.
-189 e seguintes.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_47" href="#FNanchor_47" class="label">[47]</a> V. especialmente <i xml:lang="fr" lang="fr">La liberté civile</i>, pag. 457, 475
-e seguintes, pag. 486.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_48" href="#FNanchor_48" class="label">[48]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Cours de code pénal</i>, Append. pag. 652, da edição
-de 1864.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_49" href="#FNanchor_49" class="label">[49]</a> Feuerbach, <i lang="de" xml:lang="de">Lehrbuch des peinlichen Rechts</i>, § 12.
-Romagnosi, <i lang="it" xml:lang="it">Genesi del diritto penale</i>, §§ 334 a 336, 339, 1273.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_50" href="#FNanchor_50" class="label">[50]</a> Carmignani, <i lang="it" xml:lang="it">Teoria delle leggi delia sicurezza
-sociale</i>, t. III, ap. 22, 65, 69, 75, 87, 94, 176; t. IV, p. 5.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_51" href="#FNanchor_51" class="label">[51]</a> Bentham, <i xml:lang="fr" lang="fr">Théorie des peines</i>, ch. 5.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_52" href="#FNanchor_52" class="label">[52]</a> V. especialmente, no que respeita á prevenção individual,
-Roeder <i lang="de" xml:lang="de">Verbrechenund Strafe</i>, p. 73; e a mesma obra, p. 105 e
-seguintes, pelo que respeita aos systemas que se propõem á regeneração
-do criminoso.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_53" href="#FNanchor_53" class="label">[53]</a> V. o <i xml:lang="fr" lang="fr">Programme</i> anteriormente citado, t. 1.ᵒ §
-611, e <i>passim</i>, e <i lang="it" xml:lang="it">Prolusione al corso accademico di diritto
-penale</i>, anno 1873-1874.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_54" href="#FNanchor_54" class="label">[54]</a> <i lang="it" xml:lang="it">Instituzioni di diritto criminale</i>, 2.ᵃ ed., pag.
-116 do t. I.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_55" href="#FNanchor_55" class="label">[55]</a> Alludimos especialmente á escola de Kant e ás derivadas
-d’ella. V. o que a este respeito dissemos em o nosso <i xml:lang="fr" lang="fr">Étude sur la
-vie et les oeuvres de K.—S. Zachariæ</i>.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_56" href="#FNanchor_56" class="label">[56]</a> <i lang="de" xml:lang="de">Lehrbuch des gemeinen peinlichen Rechts</i>, § 18,
-notas.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_57" href="#FNanchor_57" class="label">[57]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Droit constitutionel</i>, t. II, p. 267 e 282.</p>
-
-</div>
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_99">[Pg 99]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="IV">IV</h2>
-</div>
-
-<div class="section">
-
-<p>A existencia congenita do sentimento religioso. A utilidade da
-sua acção disciplinadora. Vantagens d’este elemento na educação
-correcional. A opinião dos criminalistas italianos e d’um notavel
-principe da Egreja.</p>
-</div>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p>A religião é o problema por excellencia dos tempos modernos.</p>
-
-<p class="right">
-JOHN TYNDALL.<br />
-</p>
-
-<p xml:lang="fr" lang="fr">Si la religion n’est pas le fondement de la morale, elle est le
-fondement de son efficacité pratique.</p>
-
-<p class="right">
-PAUL JANET.<br />
-</p>
-</div>
-
-
-<p>A crise que está atravessando a moral e o sentimento religioso é um
-problema grave. O nosso seculo é a epoca de transição entre um passado
-insufficiente e um futuro prenhe de audaciosos acontecimentos, que os
-espiritos circumspectos e que veem largo, não ousam encarar sem um
-grande espanto ou um justo receio.</p>
-
-<p>Os revolucionarios e os innovadores não se inquietam, porque esperam
-ver um dia o genio do homem sair victorioso do combate titanico, que
-a sciencia travou contra as forças da natureza, escondidas ainda na
-intelligencia humana. Mas o conteudo do decimetro cubico da nossa massa
-encephalica fica absolutamente satisfeito com a sciencia positiva? A
-religião é uma fórma transitoria da evolução humana como<span class="pagenum" id="Page_100">[Pg 100]</span> pretendem os
-positivistas? É uma invenção dos sacerdotes como queriam os philosophos
-do seculo passado? Tem origem n’um sentimento passageiro, como dizia o
-poeta romano: <i lang="la" xml:lang="la">primus in orbe deos fecit timor</i>?</p>
-
-<p>Ao estudarmos as religiões na sua continuidade historica, na filiação
-dos cultos, no encadeamento logico das concepções, vemos que o passado
-é a génese inexgotavel do futuro. Ainda que a civilisação verta sobre
-a alma da humanidade muitos gozos e beneficios a razão achal-os-ha
-impotentes para a satisfazer. A religião é, na vida humana sensivel,
-comtemporanea da dôr e durará tanto como ella. O seu objecto ficará
-sempre como sublime aspiração para um ideal que não abranje só este
-mundo, e que como uma columna de fogo illuminará nas crises dolorosas
-a senda mysteriosa da consciencia humana. O homem dirige-se pelas
-idéas verdadeiras ou falsas, mas dirige-se e consola-se tambem pelo
-sentimento. Póde affirmar-se que são principalmente os sentimentos
-os moveis da nossa actividade e que a nossa vida moral, no que ella
-tem de externo á lei do dever, dimana sempre d’um sentimento ou d’uma
-emoção a procurar ou a evitar. É possivel que n’um futuro longinquo,
-a sciencia acabe sobre a terra por substituir completamente o cerebro
-ao coração, o raciocinio ao sentimento, tornando a alma humana inane
-ao aguilhão do desejo e indifferente ás emoções da sensibilidade. No
-momento evolucionario em que não houver nem amor, nem dedicação, nem
-piedade, nem ternura, nem sinceridade, n’esse dia a vida humana, tal
-como a concebemos, terá desapparecido n’um horror de tristeza, na
-profundissima treva cantada por Byron. As puras abstracções da sciencia
-não podem dirigir, nem satisfazer a humana aspiração. Nenhuma realidade
-contingente póde encher a vida immensa da nossa alma.</p>
-
-<p>Penetrando pela analyse nos factos passados da humanidade, reconhecemos
-em grande parte, que muitas das suas concepções mais consoladoras e
-mais queridas, com as quaes ella explicava a natureza das cousas,
-cairam á luz das investigações severas da sciencia como phantasmagorias
-enganosas. Aos velhos deuses, ainda que invejosos e crueis,
-susceptiveis ao menos de misericordia, succedeu a fatalidade inexoravel
-da lei, que é surda á supplica do crente e inaccessivel á esperança do
-afflicto. Alguns espiritos demasiado positivos promettem á humanidade
-pela sciencia um futuro reinado de Astrêa, quando em verdade nunca
-durante o imperio incontestado<span class="pagenum" id="Page_101">[Pg 101]</span> dos deuses o homem foi tão escravo
-como é hoje em frente das leis desapiedadas e brutaes da natureza. São
-todas as religiões positivas uma illusão, uma chimera? Supponhamos, sem
-o conceder todavia, que sim. Mas não ha na sciencia muita hypothese
-gratuita, muita theoria enganosa? Eu prefiro a crença na doutrina que
-tem servido de doce abrigo e de suave conforto á humanidade desditosa,
-á explicação hypothetica fornecida pela dura realidade da sciencia, mas
-que rouba ao coração humano o sentimento augusto da esperança, que é
-mais verdadeiro que o da propria felicidade.</p>
-
-<p>Não póde negar-se que todo o sentimento religioso tem um fundo de
-verdade. É-nos desconhecida a natureza intima, o principio que inspira
-essas manifestações, mas essa ignorancia existe a proposito de muitos
-phenomenos scientificos. Por ventura conhecemos, por exemplo, a
-natureza intima da electricidade?</p>
-
-<p>Se o sentimento religioso tem sempre um fundo de verdade, resulta
-até perante a sciencia que a religião é evidentemente util. A
-especulação religiosa foi o primeiro factor intellectual que elevou a
-alma humana acima da animalidade «sendo, como diz Littré, necessario
-e indispensavel um systema philosophico ou conjuncto de idéas por
-meio das quaes tudo seja explicado; na ausencia do verdadeiro que
-estava ainda na sombra de um longinquo futuro, os homens crearam-no
-hypothetico, mas não arbitrario; transitorio, mas conforme ao estado
-intellectual do momento. Estes systemas foram a theologia e a
-metaphysica.»</p>
-
-<p>Esta affirmação de que o estado theologico é transitorio é o reflexo da
-falsa lei comteana dos tres estados. Não ha tres methodos radicalmente
-oppostos de philosophar, o methodo é essencialmente o mesmo, a
-integração das causas é que progressivamente converte principios
-explicativos menos geraes n’uma lei universal. Escreveu Diderot na sua
-<i>Carta sobre os cegos para uso dos que vêem</i>. «Se a natureza nos
-offerece um nó difficil de desfazer, deixemol-o pelo que vale e não
-empreguemos a cortal-o a mão de um ser que em seguida se torna para nós
-um novo nó mais indissoluvel que o primeiro. Perguntaes a um indio como
-está o mundo suspenso nos ares; responder-vos-ha que descança no dorso
-de um elephante; e o elephante sobre que assenta? Sobre uma tartaruga.
-E esta quem a sustenta?... O indio causa-vos dó!»</p>
-
-<p>A existencia do homem, diz J. Stuart Mill, apresenta-se<span class="pagenum" id="Page_102">[Pg 102]</span> primeiro
-envolta no mysterio: a estreita região da nossa experiencia é como uma
-pequena ilha perdida n’um mar immenso que eleva os nossos sentimentos
-ao mesmo tempo que estimula a nossa imaginação pela sua immensidade e
-pela sua obscuridade.</p>
-
-<p>O que obscure mais o mysterio, é que o dominio da nossa existencia
-terrestre não é sómente uma ilha no espaço infinito, mas tambem
-no tempo infinito. O passado e o futuro furtam-se egualmente ás
-nossas vistas: não sabemos nem a origem, nem o fim de nenhuma cousa
-existente.<a id="FNanchor_58" href="#Footnote_58" class="fnanchor">[58]</a> A religião e a poesia pelas suas concepções idealmente
-bellas e grandiosas é que mitigam em parte a sêde da nossa alma. A
-influencia da religião melhora e ennobrece no individuo a natureza
-humana. As religiões da humanidade civilisada, incluiram nos seus
-preceitos os melhores principios de moral, que a razão e a bondade
-poderam crear com elementos tirados quer da philosophia, quer da
-historia heroica, quer d’outra parte.<a id="FNanchor_59" href="#Footnote_59" class="fnanchor">[59]</a></p>
-
-<p>A religião na sua pureza ideal é o refugio das almas superiormente
-delicadas, e nas suas fórmas regularmente cultuaes e dogmaticas é
-a philosophia das massas, cujo influxo pesa salutarmente no seu
-espirito pelo amor ou pelo receio. Não desprezemos nada do que póde
-melhorar-nos, porque a nossa felicidade é a hypothese, emquanto o
-infortunio é a realidade.</p>
-
-<p>Não temos a certeza positiva de ser immortaes, mas temos a consciencia
-de ser feitos para a immortalidade. Nutrimos o horror pelo nada e
-o amor pela idéa de viver eternamente. Quando offerecemos o nosso
-coração, quando dedicamos o nosso affecto, é para sempre, cada uma
-das nossas faculdades aspira a fins que não attingem só este mundo.
-Esta vida é preludio d’uma tarefa immensa que tem por guia a visão
-do infinito. A razão almeja constantemente por uma verdade absoluta,
-a vontade aspira a uma virtude perfeita. A natureza indestructivel
-da alma deve ser acceite por todos os que admittem a permanencia
-de força, substancia que não póde cessar. Mas esta immortalidade é
-irrisoria porque não salva a bondade do nosso esforço, nem assegura o
-desenvolvimento da nossa perfectibilidade. Viver e mudar são synonimos,
-todavia viver é triumphar da mudança, reconhecendo a personalidade.<span class="pagenum" id="Page_103">[Pg 103]</span> O
-homem deve ser immortal, porque tudo é immortal e indestructivel, desde
-o imperceptivel verme, desde o grão de areia, desde a gota d’agua até
-ao astro o mais colossal e o mais radiante. Mas a vida na immortalidade
-humana, deve recordar a personalidade. A religião e a poesia são as
-duas fórmas mais elevadas que reveste esta modalidade do nosso ser,
-por isso o vago sentimento poetico e o indefinido sentimento religioso
-serão eternos. O caminhar da civilisação póde mudar a corrente do
-sentimento religioso, mas jámais poderá esgotar-lhe a nascente.<a id="FNanchor_60" href="#Footnote_60" class="fnanchor">[60]</a> A
-religião é uma necessidade do coração e uma necessidade racional.</p>
-
-<p>Magistratura civil e magistratura espiritual na sua funcção sociologica
-completam-se mutuamente. O juiz pune, o professor e o sacerdote
-podem emendar o delinquente. Diz S. João Chrysostomo, fallando dos
-magistrados: «quanto a vós se deixaes o criminoso impune contribuis
-para que elle se torne peior; se o condemnaes ao supplicio, não
-conseguis emendal-o. Eu não o deixo ir impune, mas nem por isso o
-castiguei ao vosso modo; procuro-lhe a penitencia que me parece justa e
-assim faço com que elle por si mesmo se corrija do mal que praticou.» É
-innegavel que o sentimento religioso é uma mordaça para o delinquente.
-Se em certas comarcas e em dadas regiões, apezar da influencia do
-sentimento religioso o crime existe em grande escala, qual não seria a
-progressão criminosa se a crença religiosa não existisse? Attribuir á
-religião n’este caso o augmento da estatistica do crime, seria o mesmo
-que attribuir á medecina a morte pelo cholera, onde elle é endemico.</p>
-
-<p>Ha entre a crença religiosa e a lei do dever uma ligação assás
-estreita, intima; o imperio da primeira avigora e fortalece a
-segunda. Não queremos com isto dizer que o principio da obrigação
-moral não tenha um valor proprio, como todas as idéas racionaes,
-independentemente da idéa religiosa, mas como é inoculada geralmente
-em nome do sentimento religioso, é pela sua acção, como diz Javary,
-que se tem espalhado e que se mantem, em grande parte, na sociedade.
-Nos individuos ignorantes e de paixões brutaes a concepção abstracta
-da lei moral, separada da religião, é incapaz de exercer praticamente
-o seu imperio. Não ha a possibilidade de fazer philosophos de todos os
-homens, por isso é mister<span class="pagenum" id="Page_104">[Pg 104]</span> que os desherdados da luz recebam na sua
-alma a moral pela religião e a metaphysica pela theogonia. A religião
-é, como pensa Kant, não o fundamento da moral, é antes a moral que
-nos conduz á religião; a philosophia aprecia a alteza e o valor das
-religiões pela moral que ellas pregam. Qualquer organisação religiosa,
-por pouco que ella valha, serve sempre de disciplina ás consciencias e
-tem a vantagem d’exercer uma acção reguladora na ordem social. Já Vico
-disse que sob a influencia da religião se formaram as mais illustres
-sociedades do mundo, o atheismo não fez nada.</p>
-
-<p>De vez em quando o luar da historia humana apparece tragicamente
-avivado pela revelação d’um grande crime. O psychologo e o jurista
-estudam o delinquente e o delicto. Esta ordem de phenomenos ainda
-está n’um periodo de discussão e de elaboração. Ha muito a esperar da
-educação moral e religiosa no seio da familia, ministrada com carinhosa
-intensidade e dirigida por elevados preceitos confirmados por bellos
-exemplos. Regeitemos por isso as exaggerações pessimistas da parte da
-escola anthropologica italiana, que crê toda a educação esteril para
-melhorar o criminoso.</p>
-
-<p>A este respeito escreve Garofalo em defeza da educação religiosa:</p>
-
-<p>«Sem duvida as emoções religiosas tem grande influencia quando tem
-sido excitadas desde os primeiros annos. Deixam sempre vestigios
-que embora enfraquecidos pelo tempo, não desapparecem nunca, até
-no abysmo da fé. A impressão dos mysterios religiosos sobre a
-imaginação é de tal modo viva que as regras de procedimento impostas
-em nome da divindade podem tornar-se instinctivas, porque,—como
-disse Darwin,—«uma crença <em>inculcada</em> constantemente durante
-os primeiros annos da vida quando o cerebro é mais impressionavel,
-parece quasi adquirir a natureza d’um instincto, é a que se produz
-independentemente da razão.»<a id="FNanchor_61" href="#Footnote_61" class="fnanchor">[61]</a> A influencia d’um codigo de
-moral—accrescenta Spencer—defende antes das <em>emoções</em> provocadas
-por seus imperativos, que do sentimento de utilidade em lhe obedecer.
-Os sentimentos inspirados na infancia <em>pelo espectaculo da sancção
-social e religiosa</em> dos principios moraes, exercem sobre o
-procedimento uma influencia <em>muito maior</em> ainda que a idéa do
-bem-estar, que se obtém pela obediencia aos principios<span class="pagenum" id="Page_105">[Pg 105]</span> d’este genero.
-Quando os sentimentos, que o espectaculo d’estas sancções faz nascer,
-chegam a faltar, a fé utilitaria <em>não basta</em> ordinariamente para
-levar á obediencia.—<em>Até nas raças melhor educadas</em>,—accrescenta
-elle, entre os homens superiores, nos quaes as <em>sympathias</em>,
-tornadas <em>organicas</em>, são a causa de que elles se conformem
-espontaneamente com os preceitos altruistas, a sancção social, derivada
-em parte da sancção religiosa, adquire uma certa importancia sobre a
-influencia d’estes preceitos; pois, ella a tem muito grande sobre as
-acções das pessoas d’um espirito menos elevado.</p>
-
-<p>«O mesmo auctor reconhece uma influencia perniciosa no preconceito
-irreligioso ou anti-theologico.—Diz áquelles que creem que a sociedade
-póde conformar-se em tudo com os principios da moral: «Como se poderia
-avaliar a quantidade de espirito de direcção necessaria, sem regras
-recebidas hereditariamente e que constituem auctoridade, para obrigar
-os homens a comprehender porque, sendo dada a natureza das cousas,
-seja pernicioso um certo modo de obrar e aproveitavel outro; para as
-forçar a ver além do resultado immediato, e a discernir claramente os
-resultados indirectos e affastados, taes como se produzem sobre elles
-mesmos, sobre os outros, e sobre a sociedade?</p>
-
-<p>«Não é pois duvidoso, para os positivistas, que a religião seja uma das
-mais activas entre as forças da educação. Mas para isto são necessarias
-duas condições,—a primeira quando se trata d’uma creança,—a segunda,
-que o ensino da moral seja o verdadeiro alvo do ensino religioso, o que
-desgraçadamente não acontece quasi nunca em muitos paizes catholicos,
-onde um clero ignorante, sobretudo nas parochias ruraes, se occupa
-geralmente de praticas completamente vasias de significação para a
-direcção moral, e cujo fim visa a assegurar a mais inteira obediencia
-dos fieis, que entretanto desamparam as paginas sublimes do Evangelho.
-Ha ainda uma outra cousa a notar: é que o poder da religião sobre a
-moralidade individual parece deter-se precisamente nos casos mais
-graves, isto é, quando elle encontra <em>inclinações criminosas</em>.
-Nada mais natural. Com effeito, se o ensino para tornar-se util, deve
-ser acompanhado da <em>emoção</em>, como se póde esperar que esta emoção
-seja excitada nos homens, que, por um defeito de organisação physica
-tem <em>uma sensibilidade moral muito menor que</em> a normal? E<span class="pagenum" id="Page_106">[Pg 106]</span> como se
-póde pensar então que elles cheguem nunca á pura idealidade da religião?</p>
-
-<p>«Que importa isso, dir-nos-hão. O temor do castigo na outra vida
-será sempre um freio assaz poderoso para bem dos individuos que não
-teem podido elevar-se ao verdadeiro ideal religioso. Isto póde ser
-verdadeiro para homens d’um espirito pratico, tranquillo, e calculador,
-não seguramente para aquelles que tem um <em>caracter criminoso</em>,
-porque a imprudencia, a imprevidencia, a leviandade, distinguem sobre
-tudo este caracter. Se, em todas as occasiões, para a satisfação
-immediata, de suas paixões, elles não olham para o dia immediato,
-como se ha de esperar d’elles que olhem para o fim da vida? Outros
-delinquentes formam esta classe que se chama dos <em>impulsivos</em>.
-Elles obram por impulso do seu temperamento colerico ou nevropathico,
-ou pelo do alcoolismo; é pois pouco provavel que no momento de
-offender as sancções religiosas lhe venham ao espirito. Outros emfim
-encontram-se na condição de <em>névrosthenia moral</em> que os torna
-impotentes para resistir ás influencias do meio: pode-se porventura
-imaginar que a sua instrucção seja sufficiente para lhe dar iniciativa
-e energia?</p>
-
-<p>«É assim que o estudo experimental do criminoso destroe muitas
-illusões, e que confirma a conclusão que já demos, fallando da educação
-em geral, isto é, que se um caracter póde ser por ella aperfeiçoado,
-é muito duvidoso que possa jámais supprir uma lacuna da organisação
-psychica, tal como a ausencia dos sentimentos altruistas. Emfim, é
-verdade que esta especie de religião, que está ao alcance do maior
-numero, ameaça espantosamente o criminoso? Não, porque se lhe tem
-fallado ao mesmo tempo da misericordia Divina, e elle crê que um
-acto de arrependimento em qualquer tempo e logar, será uma reparação
-sufficiente para uma vida passada inteiramente no vicio. É assim que se
-póde explicar o facto muitas vezes verificado em ladrões e assassinos,
-muito devotos da Virgem e dos Santos. Um caso muito differente póde
-explicar-se do mesmo modo: senhoras muito crentes podem passar toda
-a sua vida no adulterio, e, na egreja, chorarem ajoelhadas ao pé da
-cruz. Porque a luxuria é um peccado mortal, como o odio e a cholera,
-mas a benção d’um padre póde egualmente absolvel-os a todos. Parece-me
-ouvir responder; é que estas pessoas não teem o verdadeiro sentimento
-religioso; é que a sua religião<span class="pagenum" id="Page_107">[Pg 107]</span> não é senão superstição! Mas póde a
-religião do maior numero ser outra cousa? Nas pessoas vulgares, em
-todas as religiões, encontra-se a idéa do anthropomorphismo de Deus. É
-assim como se tem muito bem notado—«que o homem brando e honrado adora
-um Deus de amor e de perdão; e que o homem perverso e immoral fórma
-um Deus cruel e odiento.»<a id="FNanchor_62" href="#Footnote_62" class="fnanchor">[62]</a> E se o verdadeiro sentimento religioso
-é cousa de tal modo rara que bem poucos espiritos nobres podem
-pretendel-o, será temerario dizer que estes mesmos espiritos não teriam
-tido necessidade d’elle para não commetter crimes; que, embora elles
-não tivessem sido crentes, teriam sido da mesma fórma pessoas de bem?
-Apezar de tudo, é preciso admittir que, <em>nos mesmos limites em que a
-educação póde ser operante</em>, a religião é um seu auxiliar, porque
-ella póde desenvolver bons principios e reforçar caracteres fracos. Um
-governo esclarecido deveria, pois, fornecer esta força moralisadora,
-ou pelo menos não lhe crear obstaculos. Em quanto ao mais, o que póde
-fazer não é grande coisa. Em um paiz sceptico todos os seus esforços
-seriam inuteis, e no seio de uma nação animada da fé dispensa-se a
-sua approvação. Tem-se visto religiões do Estado decairem e morrerem;
-o christianismo invadir irresistivelmente o Imperio romano, da mesma
-fórma que o budhismo a Asia Oriental. Em nossos tempos um governo só
-tem a religião que encontra na nação. Da mesma fórma que no seio d’uma
-familia todo o ensino será nullo sobre o coração dos filhos se seus
-pais não lhes patenteiam a todos os momentos a sua inteira submissão
-a estes mesmos preceitos, o Estado não poderá moralisar nunca senão
-<em>pelo exemplo</em>, e o melhor exemplo que pode dar é <em>a justiça</em>
-a mais severa, a mais imparcial, a mais facil de obter.»<a id="FNanchor_63" href="#Footnote_63" class="fnanchor">[63]</a></p>
-
-<p>Sobre o mesmo assumpto escreve Tarde:</p>
-
-<p>«Limitemo-nos á estatistica criminal e concluamos mais esta vez ainda
-que o mal crescente, indicio aliás de um melhoramento occulto, que
-ella expõe aos nossos olhos, não se póde imputar nem á policia, nem
-á justiça, nem á civilisação, nem tão pouco á lei penal, mas antes
-quem sabe, ao retrocesso dos instinctos caritativos e á exaltação
-das paixões<span class="pagenum" id="Page_108">[Pg 108]</span> revolucionarias. Sem embargo, desconheceremos nós a
-acção favoravel, ou não favoravel á criminalidade, de cousas taes
-como a instrucção, o trabalho, a riqueza e a indifferença nas crenças
-religiosas? Indiquemos em poucas palavras qual a resposta que temos
-a dar a estas interrogações. Pelo que respeita á ultima, é fóra de
-duvida que o medo do inferno, demos-lhe o seu nome, por mais que tenha
-enfraquecido e ainda que venha até a extinguir-se inteiramente, ao
-menos nos adultos, assim como o desejo do ceo e o amor de Deus, as
-regras e os habitos moraes de nossos paes, bem como de nossa infancia,
-para cuja formação contribuiram aquelles sentimentos, nem por isso
-subsistem ou subsistirão menos, mas cada dia mais abalados, mais
-incapazes de resistir aos embates das tentações. Para que o havemos de
-dissimular, o diabo tem talvez contribuido tanto como o carrasco para
-<em>formar o coração</em> dos europeus passados e presentes inclusive
-os d’aquelles a quem a pena de morte e as superstições mais revoltam.
-Christã ou não, a França permanecerá ainda muito tempo christianisada,
-do mesmo modo que bonapartista ou não, desde a idade organica do
-Consulado, está ella, queira ou não queira bonapartisada e até á
-medulla dos ossos. Todavia esta sobrevivencia da moral religiosa aos
-dogmas, como a das instituições a seus principios, só tem um tempo?
-e onde irão as gerações vindouras beber a sua moralidade quando
-estiver esgotada a antiga fonte? N’outros termos, para luctar contra
-as tendencias destruidoras, que sentimentos fecundos differentes dos
-precedentes nutrirão essas gerações, ou se deverá fortificar n’ellas?
-Porque, são sentimentos, e diremos melhor principios, isto é restos de
-convicções estaveis, inconscientes, definitivas, e não ideias, isto é
-convicções em via de se formarem e prestes a descerem do espirito ao
-coração e do coração ao caracter, o que se trata de suscitar aqui.»</p>
-
-<p>Sobre o mesmo assumpto Dupanloup, o egregio prelado faz as seguintes
-considerações:<a id="FNanchor_64" href="#Footnote_64" class="fnanchor">[64]</a></p>
-
-<p>«Todos sabem quanto a <i>Instrucção</i> e a <i>Disciplina</i> devem
-á Religião, e bem poucos deixarão de ter experimentado quanto é
-profunda a influencia da Religião e da virtude sobre a<span class="pagenum" id="Page_109">[Pg 109]</span> <i>Educação
-intellectual</i>. O coração mais puro purifica o espirito, torna-o
-mais sensivel ás impressões do bello, mais docil aos ensinamentos do
-verdadeiro e fal-o saborear com vivacidade o doce e nobre prazer de
-escutar a rasão.</p>
-
-<p>Sob os auspicios da Religião, a verdade penetra na intelligencia, não
-como uma secca theoria que apenas conquista uma especie de adhesão
-passiva, mas como que alguma cousa de vivente, de substancial, que
-fecunda o espirito e o eleva e por elle chega á alma para a vevificar
-toda inteira.</p>
-
-<p>Pela Religião, sente-se o Espirito fortemente appoiado n’um principio
-de fé e não vai chocar-se com todas as incertezas humanas; eleva-se ao
-ponto de vista divino, para ver de mais alto e mais longe que viram os
-mais sabios.</p>
-
-<p>Eliminai a <i>Religião</i>, e a Instrucção não será mais que um vão
-pasto offerecido á curiosidade ou ao orgulho, ella não fará amar
-profundamente o verdadeiro; os mais elevados pensamentos perdem-se
-em ambitos acanhados; a verdade fria e inanimada pára no espirito e
-não sabe ir até ao coração. Ella exalta sobremaneira a intelligencia,
-como por vezes o tenho visto, e é um dos maiores perigos da Educação
-puramente humana, ella exalta a intelligencia em detrimento do caracter
-e da consciencia, em certas naturezas avidas de conhecer; ou então a
-deixa inerte e esteril em outras, cuja intelligencia só poderia ser
-chamada ao movimento e á vida pelo grito da consciencia ou pelas ternas
-insinuações da Religião. N’estas naturezas mediocres, a Instrucção
-reduzida a si mesma, não é nada, ou, quando muito, apenas é um deposito
-confiado á guarda inactiva da memoria, uma serie de conhecimentos,
-uma avida nomenclatura, um montão indigestivo de sciencia sem luz, de
-factos sem ligação e sem vida.</p>
-
-<p>A <i>Disciplina</i> é a seu turno ennobrecida pela instrucção: deve ser
-elevada á dignidade de guarda da intelligencia; mas é sobre tudo pela
-<i>Religião</i> que a disciplina se torna uma verdadeira potencia moral
-na Educação.</p>
-
-<p>Pela <i>Religião</i>, a Disciplina não é sómente o olho do superior e a
-garantia da obediencia material; é o olho de Deus e a inspiração de uma
-nobre docilidade.</p>
-
-<p>É sob os auspicios da Religião sómente que a disciplina se torna a
-protectora dos costumes e a guarda da innocencia; o penhor dos grandes
-estudos; a inspiração do bom espirito; a dispensadora e a thesoureira
-do tempo; e nervo do regulamento<span class="pagenum" id="Page_110">[Pg 110]</span> interior e a mola poderosa de toda a
-Educação.</p>
-
-<p>Sem Religião, pelo contrario, a Disciplina não é mais que uma policia
-de caserna, aviltante para aquelles que a soffrem, mais aviltante ainda
-para aquelles que a fazem soffrer.</p>
-
-<p>Por mais severa que seja, nunca poderá chegar ás almas e a isso
-desafio. Logo apesar da severidade, nenhuma consciencia, intratavel,
-sem freio nas paixões secretas e menos respeito.</p>
-
-<p>Jámais conseguirá esta disciplina toda material, toda exterior, educar
-o homem, a não ser que se queira fazer da sociedade uma colonia
-militar, para a qual seria a Educação encarregada de formar conscriptos!</p>
-
-<p>Fique-se bem sabendo, nada ha de commum entre o regimen despotico de
-alguns collegios e esta nobre Disciplina das almas, que é a verdadeira
-<i>Educação</i> da mocidade.</p>
-
-<p>Na Educação, não basta que se obedeça, é necessario que haja gosto na
-obediencia. E o que faz amar a obediencia? a Religião, só a Religião.</p>
-
-<p>Oh! sem duvida é muito mais facil de exercer a Disciplina militar,
-a Disciplina de mão armada: será sempre mais facil commandar corpos
-que almas. Dispõe-se da força, os corpos humilham-se, mas as almas
-resistem; ou se se humilham, é porque foram embrutecidas por uma
-obediencia servil.</p>
-
-<p>Que notavel differença na Educação christã! Para esta ha mister uma
-arte profunda; e é d’esta arte que se disse: <i lang="la" xml:lang="la">Ars artium, regimen
-animarum</i>.</p>
-
-<p>Ás almas se applicam todos os esforços da direcção christã: a ordem
-moral eis o fim a que se pretende chegar. A ordem material tem sua
-importancia, não ha duvida, mas estabelece-se naturalmente, por uma
-simples consequencia e como um reflexo exterior da ordem moral; em
-quanto que n’essas outras escolas, onde se ostentam pomposamente os
-rigores de uma inflexivel disciplina, muitas vezes não ha no intimo do
-seu organismo, senão desordem e anarchia. Tudo quanto ahi se quer é que
-essa anarchia e essa desordem não constem cá fóra. Que, depois d’isso,
-as creanças ignorem o que é a virtude e a felicidade, pouco importa!
-Que não haja Educação para o coração, para a consciencia, tambem pouco
-importa! Ah! eu não conto aqui, senão o que todos sabem e foi com a
-auctoridade de mais de um exemplo que se disseram<span class="pagenum" id="Page_111">[Pg 111]</span> estas palavras
-bem verdadeiras; <i>A mais severa Disciplina pode esconder vicios
-medonhos</i>.<a id="FNanchor_65" href="#Footnote_65" class="fnanchor">[65]</a></p>
-
-<p>Desgraçados dos paes que n’este ponto, se descuidam, elles chorarão um
-dia amargamente! Desgraçado do paiz onde a Educação publica chegou a
-este ponto: serão ahi raros os bons cidadãos!</p>
-
-<p>As sagradas Escripturas disseram uma bella e profunda verdade quando
-definiram a <i>Disciplina—a guarda das leis, Disciplina, costodia
-legum</i>.</p>
-
-<p>É com effeito o que deve ser e o que nós temos visto. Mas como póde
-a disciplina cumprir dignamente esta grande e augusta missão? É
-inspirando o respeito e o amor d’essas mesmas leis que são confiadas
-á sua guarda. Se ella é toda material, só ensina o respeito da força,
-isto é, o medo servil que fana as almas sem lhes tirar a tendencia para
-a revolta; se é religioso e moral, ensinará a respeitar o principio
-da auctoridade e a lei que é a expressão das mesmas; submetterá as
-almas ao imperio d’essas santas noções sobre as quaes repousa a ordem
-social, quer se trate da grande sociedade humana, que é a patria, quer
-se trate d’essa outra sociedade mais circumscripta e mais humilde, mas
-depositaria dos destinos da primeira, do collegio: ahi onde se faz
-a aprendizagem das virtudes ou dos vicios, pelos quaes serão um dia
-rebustecida ou perturbada, a paz e a prosperidade publicas.</p>
-
-<p>Perdoem ter-me deixado arrastar pela importancia d’esta questão.
-Limitar-me-hei, pois, a repetil-o: é necessario na Educação que a
-Disciplina não seja observada á força, mas respeitada e amada de
-coração. De outro modo, as almas soffrem e a Educação não passa de uma
-obra de violencia, algumas vezes cheia de horror.</p>
-
-<p>Mas, se nada póde egualar a influencia da Religião sobre a disciplina,
-ao mesmo tempo que sobre os estudos e o desenvolvimento natural do
-espirito; sobre o caracter e os defeitos da creança, e sobre os
-destinos da sua vida inteira, a <i>Religião</i>, do seu lado, reclama o
-concurso dos dois outros grandes meios d’Educação.</p>
-
-<p>Sem a <i>Instrucção</i> e sem a <i>Disciplina</i>, não formaria a
-Religião homens dignos d’ella.</p>
-
-<p>A Religião quer ser esclarecida: gosta dos caracteres firmes<span class="pagenum" id="Page_112">[Pg 112]</span> e rectos:
-espiritos imbecis ou caracteres abatidos e indolentes sómente seriam
-bons para a deshonrar.</p>
-
-<p>Em vão experimentaria formar-lhes coração e intelligencia.</p>
-
-<p>A Disciplina que, como se deixa perceber, é, sem a Religião, o quer
-que seja de material e triste, é a seu turno para a Religião um
-indispensavel auxilio.</p>
-
-<p>Pelo silencio e pela paz mantem a concentração; prepara o caminho ás
-lições da sabedoria christã ou ás impressões da graça.</p>
-
-<p>Conter ou reprimir os desmandos da vontade arrastada para longe do
-dever pelas paixões ou pela inexperiencia da idade; submetter sem
-humilhar, mandar sem aviltar, elevar abatendo, fortalecer e fazer
-avançar detendo impedir que as faculdades se não desvairam e se não
-enfraqueçam dissipando-se: proteger ao mesmo tempo a piedade, os
-estudos e os costumes; tal é a obra, <em>tal é o dever da educação
-disciplinar</em>.</p>
-
-<p>Como poderia a <i>Religião</i> dispensar o auxilio da Disciplina?</p>
-
-<p>A <i>Instrucção</i>, da sua parte, offerece á <i>Religião</i> o seu
-poderoso concurso.</p>
-
-<p>Abrir e desenvolver a intelligencia da creança, despertar-lhe
-o pensamento, fazer nascer n’ella ideias sãs, formar-lhe e
-desenvolver-lhe a penetração, o bom senso, a applicação do espirito;
-enriquecer-lhe a memoria, formar-lhe a razão e a palavra, fecundar-lhe
-a imaginação, polir-lhe o gosto, exercitar-lhe o juizo; <em>é o dever da
-Educação intellectual e a gloria da Instrucção</em>.</p>
-
-<p>Quem poderá desconhecer todo o bem que a <i>Religião</i> póde d’ella
-esperar?</p>
-
-<p>Espiritos assim preparados, engrandecidos, elevados, fortalecidos,
-comprehenderão melhor as altas verdades christãs.</p>
-
-<p>O joven que cultivou convenientemente o seu espirito terá um coração
-mais delicado, uma alma mais generosa, ao mesmo tempo que uma razão
-mais elevada.</p>
-
-<p>Nos estudos classicos encontrou elle o bello e o verdadeiro sob suas
-fórmas litterarias; quando com a Religião elles lhe apparecem no seu
-mais alto esplendor, com que enthusiasmo os não acolhe?</p>
-
-<p>Vê-se por tanto, como a <i>Disciplina</i> e a Instrucção não podem
-passar sem a <i>Religião</i>, a Religião não póde passar sem ambas para
-attingir o grande fim da Educação.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_113">[Pg 113]</span></p>
-
-<p>Emfim conservar a força da creança, velar pela sua vida, auxiliar sua
-constituição physica em se fortificar, desenvolvendo-se, proceder de
-fórma que seus membros sejam sempre flexiveis e vigorosos, que um
-sangue generoso e puro lhe circule nas veias, que esta chamma celeste,
-que brilha em seus olhares, não amorteça nem se extinga mais: que este
-amavel colorido, este encanto inexprimivel que embelleza a fronte
-da infancia virtuosa, este não sei que de feliz que vem dos dons do
-ceo, não desappareça sob tristes nuvens; é o dever da <i>Educação
-physica</i>; e este dever não se cumpre senão pelos cuidados mais
-attentos, mais delicados, mais respeitosos. Mas não vemos nós, sem
-necessidade de que nol-o demonstrem, que influencia têem estes cuidados
-preciosos, n’uma casa d’Educação, sobre a disciplina, sobre o bom ou
-mau exito dos estudos, sobre a mesma piedade?</p>
-
-<p>E não se comprehende ao mesmo tempo o que a Instrucção e o trabalho,
-o que a Ordem e a Disciplina, e sobre tudo o que a Religião, podem
-em troca, para a conservação da saude e das forças, conservando os
-costumes? Já o têem dito, a Religião é o aroma que não deixa corromper
-a sciencia. Nós tambem o dissemos: a verdade é o balsamo divino que
-conserva a vida e a frescura da creança. E é só a disciplina moral e
-religiosa que guarda a virtude.</p>
-
-<p>Acabarei tudo isto por algumas explicações que não deixam de ter
-interesse e dar luz: assim, por exemplo, é a <i>Educação physica</i>,
-hygienica que conserva por todas as partes, n’uma casa de Educação, com
-um cuidado e uma vigilancia infatigaveis, o <em>aceio</em>, que todos os
-mestres da moral e da virtude christã, com razão e d’um sentido muito
-verdadeiro têem chamado uma virtude: e é o <em>aceio</em> que contribue
-para dar e para conservar um certo vigor corporal, uma certa dignidade
-exterior que mantém a dignidade e o vigor da alma.</p>
-
-<p>E no entanto a Religião impede que o aceio degenere em <em>fatuidade</em>
-em mollesa e que cessa a virtude onde começa o excesso.</p>
-
-<p>É ainda a <i>Educação physica</i> que dá uma justa medida de repouso
-á <i>Educação intellectual</i>, concede ao espirito o descanço
-conveniente, faz succeder ás horas do estudo as horas do recreio; mas,
-do lado, a prudente e firme <i>Disciplina</i> não permitte que se dêem
-de mais; não tem nada de austero nem de affectado; mas prepara o prazer
-pelo trabalho e desenfada<span class="pagenum" id="Page_114">[Pg 114]</span> do trabalho pelo prazer e, sob sua prudente
-direcção, as folgas e os brinquedos convenientemente se entremeia com
-as occupações graves e sérias.</p>
-
-<p>Finalmente a <em>administração economica</em> de uma casa procura para
-todos, mestres e discipulos, uma certa independencia intellectual, uma
-nobre segurança, um feliz esquecimento dos cuidados materiaes da vida,
-cuja isempção é favoravel ao recolhimento da piedade e das lettras.</p>
-
-<p>É com este fim que ella escolhe um bello local; uma casa vasta, bem
-accommodada ás necessidades da Disciplina; sallas espaçosas, grandes
-dormitorios, aulas bem arejadas, uma bella capella, magnificos jardins.
-É tambem ella que admitte professores convenientes não só pela saude,
-como pela decencia e dignidade litteraria; que dispõe tudo como é
-necessario á idade dos alumnos, a essa idade tão tenra, tão viva, tão
-ardente e tão admiravelmente applicada, que sabe ser silenciosa e
-immovel, doze horas em cada dia, durante dez annos!</p>
-
-<p>E entretanto a <i>Religião</i>, que é o bom senso superior de todas as
-cousas, requer que esta casa esteja sem luxo, que seja de uma nobre
-simplicidade, magnifica somente pela elevação, pela boa ordem e pelo
-espaço conveniente ao grande numero dos seus jovens habitantes.</p>
-
-<p>Quer ver banidos os moveis faustuosos, as ninharias deslumbrantes, os
-ornamentos superfluos e tudo que respire vaidade e molleza, reserva
-para o sanctuario os vasos de ouro e de prata, os estofos ornados de
-enfeites, as pedras preciosas, os perfumes exquisitos.</p>
-
-<p>Não multiplicarei mais estes pormenores; os indicados bastam para o
-meu designio, eram-lhe necessarios. Nada importava tanto como lançar
-assim algumas luzes sobre a influencia, que cada um dos grandes meios
-d’Educação exerce sobre a Educação inteira e tambem revelar a estreita
-união que as deve fazer concorrer para o mesmo fim, se quizermos que
-este fim seja completo e efficazmente attingido, se quizermos que a
-educação seja uma realidade.</p>
-
-<p>Ora, pois que é tempo de concluir, inspirar a tenras almas o gosto de
-uma vida seria e applicada, que ha-de produzir um dia a gravidade dos
-costumes e a fidelidade aos deveres;</p>
-
-<p>Excitar ao amor do trabalho, o gosto intelligente das lettras, das
-sciencias, das artes, da industria, da agricultura e<span class="pagenum" id="Page_115">[Pg 115]</span> do commercio,
-segundo as differentes especialidades da Educação, e o ardor por todos
-os conhecimentos bellos, pelos nobres progressos, que desde tantos
-seculos se tornaram o apanagio da nossa patria;</p>
-
-<p>Sob os auspicios da Religião, submetter, regularisar, dirigir as
-paixões no tempo conveniente, de modo que se deixem senhorear e que,
-longe de serem um obstaculo ao bem, sejam o instrumento util das
-grandes cousas;</p>
-
-<p>Formar para este saber-viver, que consiste em se constranger uma pessoa
-a si mesma, sem constranger os outros e que deslumbra menos pela bellas
-maneiras, que encanta pela simplicidade e impõe pelo respeito;</p>
-
-<p>Em uma palavra sob a Direcção de uma disciplina igualmente suave e
-firme, pelo ascendente de uma auctoridade sempre querida e respeitada
-constituir e manter solidos e brilhantes estudos litterarios, ou
-industriaes, agriculas e commerciaes, ao mesmo tempo que costumes
-puros, uma docilidade generosa, uma fé esclarecida e uma piedade
-profunda;</p>
-
-<p>Estabelecer, emfim, por isso mesmo, entre mestres e discipulos esses
-doces e poderosos laços que nunca se quebram, essas lembranças de
-dedicação e de reconhecimento, d’affeição e de respeito, que são a
-mais suave recompensa dos professores, como se tornam, no coração
-dos discipulos, uma d’essas felizes e inolvidaveis impressões que
-sobrevivem a tudo;</p>
-
-<p>Formar assim por meio simples e poderosos, esses jovens espiritos para
-a intelligencia do verdadeiro, que é a luz mesma de Deus; esses jovens
-corações ao amor do bem, que é o esplendor da verdade, e a sua vida
-inteira á pratica do bem; fazer-lhes sentir por isso nas impressões e
-nas recordações da sua Educação, a felecidade, a verdade e a virtude, e
-ao mesmo tempo a mais alta dignidade de sua natureza.</p>
-
-<p>Repito-o, tal é a grande obra, tal é o fim essencial da Educação; tal é
-a alta e santa missão dos professores da mocidade.</p>
-
-<p>Eis a <i>Educação geral essencial</i> a quem tem direito todo o homem
-que vem a este mundo.</p>
-
-<p>É a Educação humana por excellencia! Mas proclamo-o de novo, e agora
-se comprehenderá melhor que nunca: é isto essencialmente, e superior a
-tudo, uma obra de religioso respeito.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_116">[Pg 116]</span></p>
-
-
-<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_58" href="#FNanchor_58" class="label">[58]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Essais sur la religion</i>, pag. 95, J. Stuart Mill.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_59" href="#FNanchor_59" class="label">[59]</a> Ob. cit. J. Stuart Mill.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_60" href="#FNanchor_60" class="label">[60]</a> Ferreira-Deusdado, <i>Ensaios de philosophia actual</i>,
-pag. 79.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_61" href="#FNanchor_61" class="label">[61]</a> Darwin, <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Origine de l’homme</i>, ch. III.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_62" href="#FNanchor_62" class="label">[62]</a> E. Ferri, <i xml:lang="fr" lang="fr">Le Sentiment religieux chez les
-meurtiers</i>—Tuima Fr. Bocca—vol. III pag. 276, 282.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_63" href="#FNanchor_63" class="label">[63]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">La Criminologie</i>, par R. Garofalo, Paris 1888—pag.
-137, 142.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_64" href="#FNanchor_64" class="label">[64]</a> Este excerpto foi traduzido por indicação nossa pelo
-sr. A. A. de Almeida Netto e publicado na <i>Revista de Educação e
-Ensino</i>, n.ᵒ 7, p. 331 e seguintes.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_65" href="#FNanchor_65" class="label">[65]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Lettre sur l’Education</i>, por M. Laurentie.</p>
-
-</div>
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_117">[Pg 117]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="V">V</h2>
-</div>
-
-<div class="section">
-
-<p>Educação e criminalidade. Relação entre o elemento moral e o elemento
-intellectual. O progresso. Buckle, Spencer e F. Bouillier. Perigos da
-instrucção sem educação moral ou religiosa. A cultura intellectual é
-um instrumento, que não fórma directamente o caracter. Necessidade de
-fortificar o espirito pela recta direcção do sentimento moral e dos
-principios do dever. O criminalista G. Tarde e a educação litteraria e
-esthetica.</p>
-</div>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p>Não se esconde, antes pelo contrario se mostra já claramente visivel
-até aos poucos amigos de ver, como a primeira educação constitue um
-poderosissimo factor, ao mesmo tempo de disciplina e desinvolvimento,
-de ordem e de progresso; como em seu encalço a pessoa e a propriedade
-sobem em segurança e dispensam em protecção, medram e prosperam
-os interesses ethicos e politicos, a justiça é menos difficil e o
-consenso para a administração mais intelligente.—(Relatorio geral do
-Conselho Superior de Instrucção Publica, pag. 34, 1885).</p>
-
-<p class="right">
-JAYME MONIZ.<br />
-</p>
-</div>
-
-
-<p>Cumpre ao pedagogo indagar se a virtude, se o bem moral augmenta no
-individuo á medida que a intelligencia se esclarece pela instrucção,
-e na sociedade á medida que a sciencia, a arte e a industria se
-desenvolvem. Trata-se de saber se o homem instruido, ou se os
-individuos mais cultos nas sociedades mais adiantadas, formam uma
-idéa mais clara da justiça e comprehendem<span class="pagenum" id="Page_118">[Pg 118]</span> melhor o principio dos
-seus deveres e se os praticam d’um modo mais desinteressado e mais
-completo. Para saber se ha progresso moral no individuo ou nas
-sociedades é preciso distinguir o que é immutavel do que é perfectivel
-na natureza psychica do homem. As faculdades e as leis do nosso
-espirito, as inclinações fundamentaes do nosso coração, todos os
-elementos psychicos essenciaes da nossa natureza, não se alteram com
-a constancia da actividade reflectida, nem com o desenvolvimento da
-civilisação. Cada homem, como diz Montaigne, leva em si a fórma inteira
-da condição humana. O individuo da nossa especie estudado por Laucio
-ou por Platão é o mesmo que estudado por Kant ou por H. Spencer. Assim
-como na natureza cosmica as leis e os agentes permanecem os mesmos,
-qualquer que seja o augmento dos productos que d’ella tira a cultura
-scientifica, do mesmo modo os elementos primordiaes da natureza
-psychica são immutaveis, embora sejam diversos os seus productos nas
-mudanças da civilisação.</p>
-
-<p>O progresso, diz Proudhon «tem a sua base de operações na justiça
-e a sua força motriz na liberdade. De feito nada existe de elevado
-no desinvolvimento social sem o sentimento do dever e sem o uso da
-liberdade.</p>
-
-<p>Ha dois aspectos sob os quaes póde ser considerado o progresso da
-consciencia moral—um theorico, outro pratico. Ao estudarmos o complexo
-de idéas moraes n’um individuo ou n’uma epocha, a variedade dos juizos
-sobre as acções justas ou injustas, reconhecemos que ha um fundo
-inalteravel de principios absolutos que se manifestam no sentimento
-que cada homem tem a respeito do que o eleva acima da animalidade. Na
-analyse dos elementos moraes, d’um instante do tempo ou d’um ponto
-do espaço, observamos que ha alguma cousa de fixo e alguma cousa de
-progressivo. O primeiro é o elemento theorico, o segundo é o pratico.</p>
-
-<p>O que constitue o valor moral das acções permanece invariavel, isto é
-o dever absoluto, que se impõe a cada um de actuar conforme o que elle
-crê o bem e de evitar o que elle crê o mal, procedendo com inteira boa
-fé e completa sinceridade.</p>
-
-<p>A existencia e o uso da energia moral é indispensavel em toda a
-condição de vida sociologica; não se póde conceber um estado da
-humanidade, sem que n’elle tenha logar a virtude.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_119">[Pg 119]</span></p>
-
-<p>O desenvolvimento da civilisação favorece o progresso da ethica geral,
-porque alarga cada vez mais a area dos deveres reciprocos. O selvagem
-não sente obrigações senão dentro da sua pequena tribu. A vida e
-a propriedade alheia são para elle uma variedade da caça. O grego
-ante-socratico só percebe a idéa de probidade no sentido autochtono
-da palavra e dentro das fronteiras da Hellade. O romano do imperio
-inspirado na philosophia estoica e educado na sociedade romana já
-estende as suas relações até aos limites dominadores do codigo e do
-gladio latino. O christão medieval obedece á acção moral do evangelho
-e n’uma esphera já assaz ampla, illuminada pelo sentimento radioso
-da caridade, reconhece a egualdade de todos os homens perante Deus.
-Não obstante o seu horror sagrado pelos pagãos e pelos infieis sente
-deveres a cumprir para com todos.</p>
-
-<p>Não ha descobrimentos nem invenções em moral, em quanto aos seus
-principios fundamentaes, mas póde have-los nas suas consequencias e
-nas suas applicações. Como diz Francisco Bouillier, é o progresso
-das luzes na moral que se traduz nas instituições, nas leis e nos
-costumes. Na ordem intellectual o progresso demonstra se por uma
-especie de inventario do desenvolvimento de conhecimentos. O progresso
-moral do individuo não póde verificar-se, porque se dá no segredo da
-consciencia, no amago do coração ou no arcano da vontade. A obrigação
-de proceder segundo a lei do bem exige por toda a parte, em todas as
-condições do tempo, os mesmos principios e os mesmos fins. O valor
-moral deve medir-se unicamente pelo grau da intenção, do esforço e
-do sacrificio. A intenção moral é tão veneravel em qualquer selvagem
-como em Socrates, em D. João de Castro ou em Washington. O tempo ou a
-condição não influem sobre o valor intimo da acção ethica.</p>
-
-<p>As virtudes sociaes são mais cultivadas nas relações pequenas, em
-que os homens vivem em mais intima connexão, do que nos grandes
-centros, onde as relações são mais vastas. A concepção moral d’um typo
-idealisado varia segundo as circumstancias do tempo e do espaço, posto
-que o principio ethologico seja sempre substancialmente o mesmo. Um
-typo de virtude forma-se primeiro pelas circumstancias da nação ou
-da epoca, depois constitue-se em modelo sobre o qual se architectam
-theorias. Aristides ou Catão são dois typos de virtude creados pelo
-meio atheniense e romano. É assim<span class="pagenum" id="Page_120">[Pg 120]</span> que os povos organisados teem
-uma ethica nacional differente, posto que o principio que a inspire
-seja substancialmente o mesmo. Assim as circumstancias geographicas,
-ethicas, religiosas ou outras, que fazem uma nação militar e outra
-industrial, produzirão em cada uma um typo de exellencia moral
-differente. Os heroes nacionaes da historia da França ou da Inglaterra,
-são na sua psychologia moral assás differentes por numerosos caracteres.</p>
-
-<p>A moral ensinada nos livros tende a unificar-se, mas a ensinada na
-familia conserva um caracter mais multiplo. Ora é exactamente a moral
-da familia a que prevalece. Os paes, os irmãos, os companheiros de
-creanças são quem mais influe sobre a formação do caracter. A escola
-ministra a cultura intellectual e ethica, mas esta vem sobre tudo do
-lar, fonte dos prazeres mais puros, doce refugio e salva-guarda da
-honra, da familia e da nação.</p>
-
-<p>Na humanidade inculta as paixões são mais violentas e mais grosseiras,
-e a vontade é mais energica tanto para o vicio como para a virtude.
-São grandes na virtude e no crime. Basta comparar a historia antiga
-com a historia contemporanea. Em certo grau de progresso intellectual
-a violencia repugna, mas é substituida pela corrupção; se a violencia
-humilha, todavia não avilta nem desmoralisa como a corrupção. Com o
-desinvolvimento pacifico das sociedades, a vontade enerva-se e as
-paixões recebem em vez d’uma expansão violenta, que gera as acções
-epicas, uma concentração suave que não é mais do que o egoismo.</p>
-
-<p>Os malfeitores de dada cathegoria entregam-se a actos selvagens e
-barbaros em sociedades policiadas, porque se inspiram n’uma athmosphera
-permanentemente cheia de sentimentos de odio e de vingança, nascidos
-d’um juizo perturbado que tem uma falsa noção das conveniencias e do
-dever.</p>
-
-<p>Nas revoluções e na guerra das sociedades modernas, os homens de
-faculdades normaes, sem ser em legitima defeza, esquecem todos os
-precedentes moraes da civilisação para se entregarem á barbaria.
-Aquelle ambiente em que o horisonte está tingido de sangue fa-los
-retrogradar dezenas de seculos. Os biologos explicam este phenomeno
-pela hereditariedade, os theologos explicam-no pelo peccado original;
-as concepções divergem, mas a explicação do facto é a mesma. A guerra
-foi durante muitos seculos a principal fórma da actividade humana, e
-este habito repetido durante muito<span class="pagenum" id="Page_121">[Pg 121]</span> tempo, passou a instincto, vindo
-conseguintemente a ser hereditario. Hoje o mesmo instincto ergue-se
-sempre que as circumstancias o reclamam, passando uma esponja pelas
-acquisições moraes nascidas da civilisação.</p>
-
-<p>O espirito humano tem em todos os phenomenos moraes a faculdade de
-recusar a sua adhesão a qualquer tendencia que o solicite. Nos proprios
-phenomenos de sensibilidade o imperio da vontade possue o poder de
-intervir e a sua acção póde, dirigida pelas idéas, disciplinada pelo
-habito e fortalecida pelo exemplo, contrahir sentimentos nobres e
-amortecer inclinações ruins. Ainda que a existencia do senso moral no
-criminoso seja demasiado tenue, a instrucção ampliando as relações
-funestas que resultam da pratica do crime, veem mostrar ao criminoso
-as tristes consequencias do delicto e os nobres estimulos e delicados
-prazeres que gera a obra da virtude. Toda a educação resulta de bem
-dirigir a acquisição dos habitos. A vontade é o mobil das nossas acções
-e a força civilisadora por excellencia. Fortalece-la pois com exemplos
-elevados, deve ser o destino da educação.</p>
-
-<p>Apezar da absoluta independencia intima da liberdade, os habitos e os
-outros moveis fornecidos pela sensibilidade ou pela intelligencia, que
-se modificam com a educação, actuam constantemente como objecto das
-resoluções. A noção clara do dever moral que se aviva com a instrucção,
-não determina necessariamente a sua pratica, todavia é mais um grau de
-probabilidade para a execução do bem.</p>
-
-<p>A cultura intellectual dilata o poder da liberdade e modifica por
-tanto o genero do crime, porém não o supprime; mas a cultura do
-sentimento moral, inoculando o principio do dever, desvia o homem da
-senda do crime, e se o homem é como cremos até certo ponto o artista
-do seu destino, póde, pela educação com afinco obstinado e inflexivel,
-aniquilar na sua alma as inclinações ruins e substitui-las por
-aspirações d’uma ethica elevada.</p>
-
-<p>É evidente que nós defendemos a necessidade da cultura moral, pondo
-como fundamento a liberdade; declarar que o homem não é livre nos seus
-actos, é não só destruir o sentimento do merito, mas ferir a nossa
-especie na sua dignidade.</p>
-
-<p>Os mais esplendidos productos de enthusiasmo moral que se referem a uma
-força suprema de convicções, raras vezes existem em espiritos muito
-cultivados, porque são vehementemente sensiveis á possibilidade do
-erro, ao peso das circumstancias<span class="pagenum" id="Page_122">[Pg 122]</span> e á collisão dos argumentos. A alta
-cultura intellectual, que disperta novas concepções do dever, é menos
-alimentadora do fanatismo do que a ignorancia e a mediocridade mental.</p>
-
-<p>Thomaz Buckle prefere no governo dos povos os homens illustrados e
-corrompidos aos ignorantes e austeros; diz que em todos os tempos os
-homens mais sinceros e mais puros teem sido os que fizeram derramar
-mais sangue innocente com menos escrupulo e com menos piedade. Os mais
-crueis inquisidores de Hespanha foram homens de intenções puras, o que
-os tornou mais nefastos por inaccessiveis á corrupção ou á ameaça. O
-melhor dos imperadores romanos Marco Aurelio,<a id="FNanchor_66" href="#Footnote_66" class="fnanchor">[66]</a> foi um dos que mais
-perseguiu os christãos, em quanto Commodo e Elagabalo os deixaram viver
-em paz.</p>
-
-<p>Buckle julga esteril o elemento moral como causa do progresso da
-civilisação. Defende este paradoxo, levado pela idéa de que houve
-fanaticos sinceros e desinteressados que foram um flagello da
-sociedade, emquanto homens engolphados na corrupção moral e falhos de
-convicções serviram a civilisação. É evidente para encurtar razões,
-que o mais alto progresso intellectual, desajudado do elemento moral,
-não podia constituir uma sociedade, porque se desapparecessem da
-consciencia a probidade, a honra, a virtude publica e privada, não
-podia subsistir a familia alicerce e cellula da vida social.</p>
-
-<p>Para Buckle toda a superioridade social se encerra na fecundidade
-do elemento intellectual. O elemento moral é esteril no progresso
-da civilisação. As proprias virtudes resultam da cultura mental. O
-illustre escriptor inglez adduz muitos exemplos para comprovar o seu
-paradoxo, mas não explicou a baixeza de caracter do seu compatriota
-o genial F. Bacon, os seus crimes de concussão, e o seu vilissimo
-procedimento para com o seu bemfeitor, o desditoso conde de Essex.</p>
-
-<p>Como explica egualmente as fraquezas de Seneca, que é ao mesmo tempo
-philosopho e auctor aviltado da <i lang="la" xml:lang="la">Consolatio ad Polybium</i>, e
-defensor de Nero, accusado perante o senado de parricidio? Por ventura,
-nem Bacon, nem Seneca tinham<span class="pagenum" id="Page_123">[Pg 123]</span> bastante clareza de entendimento para
-comprehenderem os seus deveres ethicos? Porque é que o seu altissimo
-talento os não salvou d’estas fraquezas?</p>
-
-<p>Faltava-lhe a energia do sentimento do dever que é a augusta
-superioridade que distingue o homem no mundo e o individuo na
-sociedade. Seneca não foi um perverso, mas foi um suicida moral a
-quem falleceu, durante parte da sua vida publica, a coragem que até
-certo ponto resgatou no final com o heroico suicidio physico. Não ha
-progresso, não ha verdadeira civilisação sem a virtude. Os sonhos do
-homem sobre a terra são a esperança do reinado da justiça. O amor
-individual da justiça converte-se para a humanidade no sentimento que a
-eleva e que a engrandece; ora a justiça social é a expressão intensa do
-bem e o bem é a finalidade d’este mundo.</p>
-
-<p>É uma these difficultosa saber até que ponto, a educação moral,
-ministrada na familia e na escola pelo sentimento, pelos principios
-e pelo exemplo, póde moralisar aquelle que a recebe. Apresenta-se a
-alguns psychologos como duvidoso se a instrucção considerada em si,
-restringida exclusivamente á receptividade de conhecimentos, desinvolve
-maior inclinação para enfraquecer os elementos viciosos do espirito do
-que para mudar a direcção e a qualidade do crime.</p>
-
-<p>É obvio que n’este caso se entende sómente a cultura intellectual e
-technica e de modo nenhum se adapta á educação moral e religiosa.
-Cerebro sem coração, penetração intellectual sem bondade, talento
-sem moralidade, são poderes que mais podem servir para a execução da
-perversidade do que para a pratica do bem.</p>
-
-<p>As faculdades intellectuaes e as aptidões technicas são valiosissimas
-na vida social, mas encaminhadas para fitos maus podem trazer para a
-humanidade em vez do progresso a destruição, em logar da felicidade a
-desgraça. É obvio que não fallamos dos delinquentes cujo delicto nasceu
-de más circumstancias economicas, da inaptidão para ganhar a vida,
-porque para estes a cultura technica teria evitado a senda do crime,
-visto que este não é proveniente da ausencia ou perversão do senso
-moral.</p>
-
-<p>Assim a nossa antiga policia secreta recrutava os seus guardas e os
-seus chefes entre os gatunos mais astutos e mais dextros. Depois de
-membros do corpo de policia faziam-se homens probos e empregados
-zelosos, o que demonstra<span class="pagenum" id="Page_124">[Pg 124]</span> que não eram seres incorrigiveis e que não
-abraçavam a vida do furto por inclinação congenita, mas por necessidade
-economica do meio em que tinham vivido.</p>
-
-<p>É pela educação moral que os individuos e as gerações se formam e
-constituem um typo social. A acção suggestiva do ambiente começa para
-o homem antes de despertarem os primeiros clarões do entendimento. De
-instante a instante, de dia a dia os que cercam a creança, formam-lhe o
-sentimento e as inclinações, de modo que a sua vida moral ao attingir o
-pleno desenvolvimento, é quasi a summula das idéas e dos sentimentos,
-que hauriu nas condições mesologicas em que germinou, cresceu e floriu.</p>
-
-<p>Não queremos com isto dizer que a idéa da personalidade fica aniquilada
-deante do influxo do meio; ha muitos individuos que se revoltam contra
-o existente e que são refractarios ás suggestões provocadas desde a
-infancia, mas póde dizer-se que todos conservam a sua individualidade
-em maior ou menor grau, exercendo a sua acção sobre a familia, sobre
-os amigos e sobre os visinhos. Os de faculdades mais poderosas, ou de
-vontade mais energica fazem irradiar a sua acção sobre uma esphera mais
-ampla no tempo e no espaço; pela força como por exemplo Alexandre Magno
-ou Cezar, pelo livro como Platão ou Aristoteles, pela palavra como
-Demosthenes ou S. Paulo. Estes que teem assim uma acção decisiva na
-historia são justamente chamados grandes homens.</p>
-
-<p>O pedagogo cuidando do ensino intellectivo deve antes de tudo applicar
-a sua attenção ao lado moral, inoculando o sentimento do dever,
-ensinando a supremacia do direito, desenvolvendo a concepção do bem,
-a consciencia da vontade livre e o sentimento da responsabilidade.—O
-primeiro dever do educador é capacitar a creança de que ella vem a ser
-a senhora do seu destino.</p>
-
-<p>Na ordem do ensino deve inspirar-se-lhe primeiramente um elevado
-principio religioso, alliado ao sentimento moral, depois o
-desenvolvimento da habilidade intellectual no ponto de vista do
-raciocinio e da applicação pratica. Só mais tarde pelo conhecimento das
-operações intellectuaes, é que pela abstração, póde isolar o principio
-religioso da idéa moral, desenvolvendo todavia harmonicamente as tres
-syntheses da actividade psychologica, a synthese affectiva ou do
-sentimento, a synthese especulativa ou da intelligencia e a synthese
-activa ou da vontade.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_125">[Pg 125]</span></p>
-
-<p>A cultura intellectual separada da educação moral é insufficiente
-senão nociva para a formação do caracter. Mudança no entendimento póde
-produzir mudança na moral, mas uma alteração d’essa natureza póde
-despertar tanto disposições elevadas como deprimentes. É facto corrente
-na historia dos individuos e das nações, encontrar homens e epocas
-brilhantes pelas manifestações especulativas e estheticas, coexistindo
-com uma grande depressão moral.</p>
-
-<p>A cultura moral, diz Baudrillard, ainda com uma luz muito minguada vale
-mais do que o desenvolvimento intellectual, mal dirigido, tam frequente
-em os nossos grandes centros.<a id="FNanchor_67" href="#Footnote_67" class="fnanchor">[67]</a> A decadencia dos costumes no
-proletariado das grandes cidades vem sobretudo da descrença religiosa e
-da ausencia de educação moral.</p>
-
-<p>A cultura intellectual é sem duvida um grande bem e todos os apostolos
-que lhe dedicam os seus sinceros esforços devem merecer ardentes
-applausos dos bons cidadãos.</p>
-
-<p>Mas a instrucção sem o respeito da disciplina hierarchica, sem o
-sentimento da honra, sem a idéa do dever, n’uma palavra, sem educação
-moral, póde tornar-se mais nociva do que a propria ignorancia.</p>
-
-<p>Quando o saber ler e escrever serve apenas, para adquirir noções
-perigosas, chamariz de direitos phantasticos sem obrigações, quando
-serve para aprender o desprezo das leis, o irrespeito e o odio pela
-auctoridade, quando serve para falsificar firmas, para macular em
-pasquins anonymos a honra alheia teria sido muito melhor para a
-sociedade o não haver-lhe ministrado esse instrumento desajudado
-da educação do caracter. É uma illusão suppor-se que a cultura da
-intelligencia só por si basta para melhorar o caracter; essa cultura
-sem o sentimento do dever acompanhado d’um cortejo de crenças que o
-tornem mais sensivel, mais vivo e mais poderoso, será um deserviço
-feito á sociedade.</p>
-
-<p>Não ha felicidade sem a continencia e a moderação nas ambições, segundo
-as circumstancias de cada um. Escreve um distincto jornalista: «O
-anarchismo faz hoje <i>pendant</i> ao epicurismo. Por cima estala
-o Champagne, por baixo o anathema; por cima rodam caleches, por
-baixo nas viellas tenebrosas rola obscuramente o trovão surdo de
-um protesto odiento. Em cima goza-se, em baixo nos subterraneos<span class="pagenum" id="Page_126">[Pg 126]</span>
-sociaes, cubiça-se. E como efflorescencia morbida d’estes dois estados
-egualmente doentios, apparecem nas livrarias elegantes os productos de
-uma litteratura requintada até á pornographia, e correm pelos sotãos
-lobregos dos proletarios as folhas soltas da propaganda anarchista,
-como outr’ora—bons tempos ingenuos!—a historia da imperatriz Porcina
-e os romances de cordel. Essas folhas lêem-se como evangelhos que
-a desordem epicurista dos que estão por cima commenta e sublinha.
-São ellas que ensinam os oradores dos clubs e que arrastam ao crime
-os fanaticos, por temperamento, por misanthropia, por genio ás
-vezes—por <i>pose</i> tambem, n’esta epocha singular em que o delirio
-do <i>reclame</i> faz com que a novidade seja cultivada com amor, e
-mereçam attenção e curiosidade egual um bandido como Pranzini, ou um
-grande homem como Bismarck. É que no regimen do epicurismo reinante,
-as coisas perdem a significação moral, e só vale o que impressiona
-imaginações de sybaritas, constantemente em procura de sensações novas.
-Um crime é picante, especialmente se reveste circumstancias dramaticas
-ou romanticas; uma boa acção, um acto simples e digno, são semsaborias.
-Que admira, portanto, a <i>pose</i> e a petulancia dos actores da
-comedia do crime? São, como os actores de todos os palcos, os queridos
-da gente <i>blasée</i>. Ás vezes, porém, toma ares tragicos, e n’esses
-momentos a sociedade estremece de medo. É por isso que os crimes do
-fanatismo são os que mais aggravam, e aquelles para que se reclama
-a maxima punição; ao passo que os crimes bestiaes teem por vezes
-um encanto morbido. É que estes exprimem apenas casos individuaes,
-emquanto os primeiros abalam visceralmente a propria estructura social.
-O instincto da conservação manifesta-se ás vezes d’um modo brutal,
-sempre falho da serenidade critica e comprehensiva. Pensem n’isto os
-que negam á sociedade uma vida, um temperamento, sentimentos e nervos
-proprios, capazes de commoção e paixões. Pensem, e tirem as illações
-consequentes. Uma das illusões dos doutrinarios individualistas foi a
-distincção entre crimes civis e crimes politicos. Para os primeiros,
-toda a severidade; para os segundos, toda a indulgencia. Imaginava-se
-que acima do nós pairava uma atmosphera de bem e de harmonia, dentro da
-qual apenas se podiam dar divergencias do opinião, confessaveis sempre,
-embora violentas por vezes. Essa illusão passou, como tantas outras,
-para dar,<span class="pagenum" id="Page_127">[Pg 127]</span> porém, logar a uma verdadeira aberração; ao criminoso por
-fanatismo ou por paixão chama-se doido, e declara-se irresponsavel.»</p>
-
-<p>A instrucção é um instrumento de que se póde fazer bom ou mau uso. Ha
-proletarios que só lêem o cathecismo d’um socialismo barato ou uma
-imprensa que serve para apostolar a calumnia, o erro, a iniquidade e
-todas as paixões ruins. Ha individuos que se aperfeiçoam na escripta
-para poder falsificar firmas, ha quem estude chimica toxicologica para
-envenenar o seu similhante. Porém d’estes factos podemos concluir que o
-aprendizado da escripta e da chimica são um mal? N’esse caso deviamos
-supprimir a agua e o fogo que produzem o horror das inundações e dos
-incendios.</p>
-
-<p>A instrucção é sempre um elemento para a satisfação de necessidades
-organicas e artisticas, e o ensino moral é uma nascente inspiradora do
-bem.</p>
-
-<p>O desequilibrio entre o capital e o trabalho gera muitas paixões e
-produz numerosos crimes. Se compararmos o presente com o passado,
-apezar das crises industriaes e commerciaes, do sentimento de
-imprevidencia, é innegavel que a pobreza diminuiu. O bem material tem
-consideravelmente augmentado, mas o desejo da commodidade tem excedido
-os meios de a satisfazer. O que se faz mister é uma energica educação
-da vontade que imponha o seu imperio salutar aos apetites desregrados,
-ás ambições que excedem a condição social do individuo e aos maus
-conselheiros nascidos da inveja e da vaidade. Sem a temperança dos
-desejos, segundo as circumstancias não ha na alma humana felicidade nem
-paz.</p>
-
-<p>Escreve H. Spencer:</p>
-
-<p>«Persuade-se muita gente, imbuida de certos erros de estatistica, de
-que a educação do Estado devia reprimir o crime. Estão os jornaes
-cheios de comparações entre o numero dos criminosos que sabem
-ler e escrever e o dos analphabetos; e, como este ultimo é muito
-superior áquelle, acceita-se a conclusão de que a ignorancia é a
-causa dos crimes. Não acode ao espirito a idéa de inquirir se outras
-estatisticas, baseadas no mesmo systema, não provariam com a mesma
-força que o crime é causado pela falta de lavagem de corpo e de roupa
-ou pela má ventilação das habitações ou por não se dormir em quartos
-separados. Entrem em uma cadeia e perguntem quantos são os presos que
-tinham o habito de se lavar de manhã. Ver-se-ha que a criminalidade
-está ordinariamente a<span class="pagenum" id="Page_128">[Pg 128]</span> par da falta de limpeza do corpo. Contem-se
-os que tinham mais de uma andaina de fato; a comparação das sommas
-ha de mostrar que é bem diminuto o numero dos que tinham roupa para
-mudar. Pergunte-se se elles moravam em ruas largas ou dentro do
-pateos; saber-se-ha que quasi todos os criminosos das cidades saem das
-habitações immundas. Assim acharia tambem na estatistica a justificação
-não menos completa da sua crença o partidario fanatico da absoluta
-abstinencia de bebidas espirituosas ou dos melhoramentos hygienicos.
-Se, porém, não acceitais a fortuita conclusão de que a ignorancia e o
-crime são causa e effeito; se tomais conta em que, como acabais de ver,
-com egual fundamento era facil attribuir o crime a outras causas muito
-diversas,—podeis achar que existe uma relação real entre o crime e um
-modo inferior de vida, filho geralmente de uma inferioridade original
-de natureza; que, emfim, a ignorancia não passa de um concomitante, que
-póde tanto ser a causa do crime como muitas outras cousas. Os auctores
-de quebras fraudulentas, os fundadores de companhias phantasticas,
-os fabricantes de generos falsificados, os que empregam marcas
-falsas, os que vendem com pesos falsos, os proprietarios de navio sem
-condições de navegações, os que roubam as companhias de seguros, os
-traficantes, a maior parte dos jogadores—são todos gente educada. Ou,
-para irmos ao extremo do rebaixamento moral, entre os envenenadores de
-todas as epochas não ha porventura um numero consideravel de pessoas
-bem educadas, um numero tão grande, em proporção com as classes
-illustradas, como é o numero total dos assassinos comparado com a
-população total? Mas é até absurda <i lang="la" xml:lang="la">a priori</i> esta confiança
-nos resultados moralizadores da cultura intellectual, negados tão
-categoricamente pelos factos.</p>
-
-<p>E em verdade que especie de relação póde existir entre o saber que
-certos grupos de caracteres representam umas certas palavras e o
-adquirir um sentimento mais nobre do dever? Como é que a facilidade
-de formar signaes que representam sons póde fortalecer a vontade de
-fazer bem? De que modo póde o conhecimento da taboada da multiplicação
-ou a pratica das addições e das divisões desenvolver os sentimentos
-de sympathia a ponto de reprimir a tendencia de offender o proximo?
-Como é possivel que os themas de orthographia e de analyse grammatical
-nutram o sentimento da justiça, e por que razão emfim os apontamentos
-sobre geographia colligidos<span class="pagenum" id="Page_129">[Pg 129]</span> com toda a perseverança hão de augmentar
-o respeito pela verdade? O parentesco de taes causas com taes effeitos
-não é maior do que o da gymnastica que exercita os dedos com a que
-robustece as pernas. Quem esperasse ensinar geometria com licções de
-latim, ou piano com as regras de desenho, todos o julgariam no caso de
-entrar para uma casa de orates: e comtudo não seria mais disparatado do
-que aquelles que, disciplinando as faculdades intellectuaes, imaginam
-crear sentimentos melhores.»</p>
-
-<p>Spencer escolhe de proposito as formas da cultura intellectual que
-menos se podem aproveitar para ensinamentos moraes. No entanto o
-professor póde, em nosso entender, achar em qualquer cathegoria de
-ensino scientifico uma relação que influa no sentimento do alumno.</p>
-
-<p>Não póde dizer-se nunca, como pretende Spencer, que haja
-<i>irrelação</i> entre o conhecimento especulativo e a pratica do
-bem. A imaginação e a sensibilidade elaboram productos psychicos que
-tem a sua origem na intelligencia, os quaes veem a ser condições de
-volição. O entendimento nas suas funcções de acquisição de idéas, da
-sua conservação, da sua elaboração e do principio racional que as
-dirige tem necessariamente muitas vezes de lhe communicar emoções que
-influem directa ou indirectamente sobre a vontade. A imaginação é a
-faculdade do ideal, a intelligencia a do real, a primeira conhece, a
-segunda inventa. É pela imaginação que o homem se distrae e se consola
-das vicissitudes da vida real, creando um mundo subjectivo que é o
-principal impulsionador da vontade.</p>
-
-<p>As sciencias mathematicas, physico-chimicas, biologicas e grammaticaes,
-teem na verdade uma influencia muito longiqua na vida moral. O mesmo
-não póde dizer-se das sciencias historicas e da litteratura. Ninguem
-desconhece a influencia moral notavelmente fecunda, nascida das
-lettras-classicas, da leitura por exemplo das <i>Vidas parallelas dos
-homens illustres</i> de Plutarcho, que é ao mesmo tempo historiador
-e moralista, fazendo da historia um verdadeiro ensinamento moral. As
-estatisticas registam todos os dias a influencia perniciosa dos maus
-romances sobre o crime e o suicidio. É bem conhecido o influxo moral
-da cultura helleno-romana sobre os espiritos directores da revolução
-franceza. As circumstancias e os principios philosophicos deram o
-motivo, mas Roma deu-lhe principalmente a inspiração.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_130">[Pg 130]</span></p>
-
-<p>O effeito da cultura intellectual poderá ser para a formação do
-caracter favoravel ou deprimente, excellente ou detestavel, o que de
-modo nenhum será, é indifferente e sem relação, como quer Spencer.
-A dependencia em que estão as nossas funcções psychicas é tal que
-pensamos porque sentimos, e queremos porque o sentimento e o pensamento
-são a materia prima da nossa actividade volitiva. Não ha volição,
-por conseguinte não ha acto moral sem motivo sensivel, intellectivo
-ou racional, e todos estes actos se refletem na consciencia; logo é
-evidente que ha relações reciprocas e influencias mutuas entre a vida
-intellectual e o desenvolvimento moral.</p>
-
-<p>Para Spencer não ha relações entre a acção e as lições moraes e
-intellectuaes, ha sómente entre a acção e o sentimento; entre a cultura
-intellectual e o sentimento moral ha uma <em>irrelação</em>. Diz com
-razão F. Bouillier que não existe tal <em>irrelação</em>, ainda que a
-relação não seja sempre proporcional e constante. Não póde negar-se
-que entre todos os phenomenos psychologicos existe uma connexão intima
-que se encontra sobretudo na unidade da consciencia. A vida moral tem
-necessariamente relações com a vida sensivel e intellectiva.</p>
-
-<p>Mas no que de modo nenhum, se póde seguir Herbert Spencer, é em
-restringir a educação moral ao exercicio do sentimento, pondo fóra
-por conseguinte como esteril, a acção emotiva de elevados principios
-ethicos, de bellas maximas moraes e de sublimes exemplos em holocausto
-do dever. Não só estes factos geram no espirito por uma elaboração
-consciente ou automatica novas emoções e fecundas idéas moraes, mas
-ficam como motivos para dirigirem a vontade. Uma das sciencias que deve
-ser para o bom professor um fecundo meio de ensino moral é a historia.</p>
-
-<p>A opinião, o costume, a imitação instinctiva, o influxo moral são os
-principaes factores do caracter, especialmente no periodo psychologico
-de maior plasticidade mental. Os movimentos da nossa vontade seguem os
-sentimentos e tambem os pensamentos.</p>
-
-<p>É frequente ver publicistas, apostolos d’uma democracia barata,
-prégarem como remedio infallivel e salvador de todos os males a
-diffusão da instrucção primaria, mas secular. O sentimento que os
-anima é mais um odio cego contra as idéas religiosas, um fanatismo de
-intolerancia contra as doutrinas<span class="pagenum" id="Page_131">[Pg 131]</span> christãs, do que a convicção profunda
-dos beneficios do estudo e da sciencia.<a id="FNanchor_68" href="#Footnote_68" class="fnanchor">[68]</a></p>
-
-<p>Entre nós apparecem quotidianamente periodicos e pamphletos, propagando
-o fanatismo irreligioso, mais nocivo e nefasto que o pernicioso
-fanatismo de religião.</p>
-
-<p>São esses democratas de cultura superficial e viciada que proclamam
-a falsa banalidade «abrir uma escola é fechar uma prisão» querendo
-desterrar ao mesmo tempo do lar e do ensino publico a educação moral e
-religiosa.</p>
-
-<p>Diz F. Bouillier: «o fim de todos os hereticos e de todos os fanaticos
-foi até ao presente introduzir uma crença, uma fé ardente no lugar
-d’outra crença e d’outra fé; fanatismo e scepticismo eram dois termos
-contradictorios. As cousas mudaram; é um fanatismo puramente negativo
-e sceptico, um fanatismo do vacuo, por assim dizer, que pretende
-exterminar em pretendido proveito da democracia e da moral, o que resta
-das idéas religiosas nas cidades e nos campos. Temos horror a estes
-tristes fanaticos que com o odio na alma, sem nenhuma outra crença, sem
-nenhuma outra fé para desculpa, incitam á destruição dos templos e até,
-o temos nós visto, á matança dos sacerdotes.»</p>
-
-<p>Ha uma necessidade secreta e imperiosa na vida espiritual da fé
-philosophica e da fé religiosa. Só os individuos que rastejam pela alma
-dos brutos, é que se suppõem isentos d’esta mysteriosa necessidade.
-A falta do sentimento religioso é condição dos individuos de cultura
-inferior e de mediocre talento viciosamente dirigido. O sabio, o
-homem de genio profundo, a alma popular singella e penetrante são por
-natureza seres religiosos. Tudo na terra está na inter-dependencia do
-universo e a cada instante a nossa razão descobre relações com outros
-mundos, cada vez mais longinquos, o que prova que o espirito não exgota
-n’este mundo a a sua essencia.</p>
-
-<p>Escreve o distincto criminalista G. Tarde:</p>
-
-<p>«Não nos admiremos pois de se não descobrir na estatistica criminal
-o vestigio de nenhuma influencia benefica exercida pelo progresso
-da instrucção primaria na criminalidade. É bem visivel a acção da
-instrucção sobre a loucura e<span class="pagenum" id="Page_132">[Pg 132]</span> sobre o suicidio que augmentam a par dos
-seus progressos; de modo algum se percebe a sua acção nomeadamente
-restrictiva na criminalidade. O relatorio oficial bem o manifesta e
-deplora. Mostra-se n’um mappa que os departamentos onde a população
-dos illitteratos é maior, esses estão sempre longe de mostrar
-maior numero de accusados comparativamente com o numero dos seus
-habitantes. Por outro lado, nos campos, onde ha menos instruidos,
-contam-se oito accusados por anno em cem mil habitantes, e nas cidades
-desaseis. Exactamente o dobro. E todavia deverá inferir-se que o grau
-d’instrucção d’um povo é indifferente no ponto de vista criminal?
-Não. Em primeiro logar influe evidentemente na qualidade, senão na
-quantidade dos delictos. E o mesmo succede com o grau da riqueza.
-Algumas luzes mais, o goso de mais algumas commodidades desenvolvem
-certos appetites, comprimem outros, transtornam emfim a hierarchia
-interior dos nossos desejos, origem de todos os crimes e delictos.
-Nos departamentos pobres, são eguaes em numero os crimes contra as
-pessoas aos crimes contra as propriedades. Nos departamentos ricos
-excede muito a proporção d’estes ultimos. Se a estatistica comparada
-dos roubos esmiuçasse este artigo conforme a natureza dos objectos
-roubados,—menção sociologicamente mais util que as indicações
-relativas á idade dos roubadores,—ver-se-ia sem duvida que, de ha 40
-ou 50 annos a esta parte, desde que a França enriqueceu, tem diminuido
-o numero proporcional dos roubos de colheitas e que pelo contrario tem
-augmentado e augmenta ainda o de joias, de dinheiro, etc. Assim succede
-com a proporção dos delictos contra os costumes, das rebelliões,
-gatunices, etc., que tem crescido espantosamente, effeito provavel da
-emancipação e da subtileza dos espiritos.</p>
-
-<p>Mas se apreciarmos a questão pelo lado da instrucção simplesmente
-primaria, forçoso será reconhecer que a quantidade dos crimes e
-dos delictos tomados em globo, de nenhum modo é influenciada pela
-sua diffusão. Pelo contrario, a acção beneficiadora da instrucção
-secundaria e sobre tudo superior não é duvidosa. A prova d’isto está na
-fraquissima contribuição das profissões liberaes, das classes lettradas
-para o contingente criminal da acção: resultado, notemol-o, que não
-é devido á riqueza relativa d’estas classes porque a menos rica, a
-dos agricultores participa d’este privilegio por qualquer outra causa
-por indagar, provavelmente por ser<span class="pagenum" id="Page_133">[Pg 133]</span> a mais laboriosa, e a classe dos
-commerciantes, de todas porventura a mais rica apresenta phenomeno
-inverso. Não é certamente a fé religiosa a que mais actua nas classes,
-mais instruidas. Actúa n’ellas muito menos. Não é emfim porque estas
-classes tenham pelo trabalho mais decidida energia; n’este ponto
-excede-lhes tanto a classe dos commerciantes e dos industriaes, quanto
-a classe agricola excede á d’estes. É pois, creio eu, á sua instrucção
-levada a um certo grau ou antes á sua educação de uma natureza especial
-que havemos de attribuir a moralidade relativa d’estas differentes
-classes sociaes. É para notar que a influencia moralisadora do saber
-começa no momento em que elle deixa de ser uma ferramenta apenas e se
-torna um objecto d’arte. Se a instrucção, pois, viesse a ser sómente
-profissional, se deixasse de ser esthetica, quando não classica,
-perderia sem duvida alguma a sua virtude de ennobrecimento. Porque?
-Porque o bem não póde ser concebido senão como o <em>util social</em> ou
-o <em>bello interior</em>, e porque d’estes dois unicos fundamentos da
-moral (postos de parte os preceitos divinos,) o primeiro, o fundamento
-utilitario, implica necessariamente o segundo; porque nos conflictos
-tão frequentes do interesse geral e do interesse particular, sobre
-que se ha-de appoiar o individuo para sacrificar este áquelle, para
-amar aquelle mais do que este? Unicamente sobre o amor do bello, desde
-muito tempo cultivado por uma educação apropriada e sobre a persuação
-de que se embelleza interiormente por este sacrificio, louvado ou
-não, conhecido de todos ou somente de si mesmo. Este motivo bastaria
-para recommendar ao porvir os estudos litterarios, a arte e tambem
-as especulações philosophicas, todas as cousas que, interessando o
-homem ao seu objecto por este objecto, o desinteressam por si mesmo e
-lhe revelam no fundo d’este desinteresse o seu supremo interesse, no
-fundo do inutil o bello. Quando elle sabe conhecer certas impressões
-delicadas, toma-lhe gosto e o desejo de as tornar a achar fal-o
-repellir as satisfações baixas que lhe fechem o caminho que d’ellas o
-approximam. Porque, se a alta cultura moralisa, é porque a moralidade
-é a primeira condição subentendida da alta cultura, como a primeira
-condição da flora alpestre é um ar puro. Eu sei que poucos são os
-bons pelo amor da arte, os estheticos da moral, os novos mysticos, em
-quanto que é crescido o numero d’aquelles que hoje o são com medo da
-policia ou da deshonra,<span class="pagenum" id="Page_134">[Pg 134]</span> como outr’ora o eram com medo do diabo ou
-da excommunhão. Mas emquanto, á imitação d’estes ultimos, se pensa
-em aperfeiçoar o Codigo penal, não seria mais urgente augmentar a
-minoria dos primeiros, espalhando por todos e principalmente levantando
-entre as primeiras familias humanas, d’onde dimana o exemplo, o culto
-das bellas inutilidades indispensaveis? Em summa, tão raros são os
-homens que, por sentimento da sua dignidade pessoal, especie de gosto
-esthetico reflectido e chamado sciencia, são corajosos, francos,
-dedicados, apesar da vantagem evidente que elles encontrariam as mais
-das vezes em ser cobardes, egoistas e mentirosos? Conforme o modelo,
-assim o valor das copias. Felizmente para nós os nossos modelos
-invisiveis, os semi deuses venerados na educação dos collegios, grandes
-theoricos, grandes artistas, inventores de genio, eram a flor da
-honestidade humana e a logica assim o queria, porque teria sido para
-elles uma contradicção nos termos ter sido da verdade pura por exemplo
-e procurar illudir a outrem, em quanto que não é contradictorio por
-fórma alguma aprender a chimica para envenenar uma pessoa, estudar
-o direito para usurpar os bens do visinho, d’onde se conclue que a
-honestidade dos chimicos, dos jurisconsultos, dos medicos, dos sabios,
-é incompativel com os seus estudos propriamente scientificos no sentido
-profissional e utilitario da palavra. Mas os grandes homens de que
-eu fallo foram moraes por necessidade intellectual d’abnegação e de
-franqueza e posto que esta necessidade se não faça sentir na media
-das pessoas instruidas, elles dão-lhe tom, imprimem-se mais ou menos
-em cada novo alumno e propagados assim em innumeraveis exemplares,
-recommendam-se por sua estampa ás naturezas mais vulgares como um bello
-cunho liso e brilhante em moedas de cobre.</p>
-
-<p>Tem-se zombado tanto dos nossos estudos classicos! Todavia é para notar
-que, onde elles se cultivam melhor, ahi florescem as virtudes sociaes,
-e que, apezar das mais avultadas tentações, das mais vivas paixões, das
-mais variadas necessidades, da mais completa emancipação do pensamento,
-apesar emfim dos maiores recursos para o crime e das facilidades
-relativas que tem o criminoso de se subtrair á acção das leis, não
-obstante tudo isso, a criminalidade ahi está no seu <em>minimum</em>. Não
-é talvez sem uma rasão profunda que, precisamente quando o catholicismo
-recebeu o seu primeiro<span class="pagenum" id="Page_135">[Pg 135]</span> grande abalo, no decimo sexto seculo, teve
-nascimento o <em>humanismo</em>, como por uma especie de contrapeso.
-Não tenho pois de que me admirar vendo no decimo oitavo seculo, ao
-segundo grande assalto do dogma, entre os encyclopedistas ou outros,
-o respeito singular das tradições litterarias e dos typos consagrados
-da arte, a admiração quasi supersticiosa de Virgilio e de Racine
-crescerem á medida dos progressos da sua irreligião irreverenciosa
-para tudo o mais. Pelo contrario, tem-se notado que os romancistas
-do Imperio e de 1830, luctando contra as tradições litterarias e o
-culto da arte classica, se tinham apoiado no sentimento christão
-reanimado ou galvanisado, conservadores aqui tanto, quanto innovadores
-além. Todos estes contrastes têem parecido estranhos aos que não
-têem feito caso de descobrir n’isto a instinctiva compensação de uma
-fonte de fé e de moralidade em substituição de uma outra.—Apparentes
-inutilidades ha que são funcções superiores. Dá-se por isso, quando
-ellas são cortadas. De que servem, dizia-se, as bellas florestas
-inexploradas das montanhas? E deitaram-nas abaixo para cultivar o
-solo inclinado que ellas sustinham; e desde então as inundações dos
-rios têem causado estragos de que os antigos nunca ouviram fallar.
-Como se uma pouca de verdura sombreando a sua nascente fosse bastante
-para moderar o seu primeiro impulso.—Outro tanto podemos talvez
-dizer d’essas outras superfluidades que se chamam <em>lettras</em>,
-artes, e d’aquellas que para o vulgo têem valor identico, as festas
-tradicionaes, populares, domesticas ou religiosas, os folguedos, os
-anniversarios costumeiros, como altas florestas de pinheiros. Um povo
-que n’um pensamento utilitario, sacrifica as suas alegrias puras, virá
-a deplorar a sua perda; e quando nos corações desencadeados não houver
-já cousa que no seu declive sustenha a ambição, o amor, a inveja,
-o odio, a cubiça, ninguem deverá admirar-se de ver cada anno subir
-a maré da sua criminalidade transbordante. A minha conclusão é que
-seria grande o perigo de enfraquecer nos collegios o lado esthetico
-da educação, que convem fortificar ali de preferencia, depois de se
-ter supprimido na escola o ensino religioso. O momento seria tanto
-mais mal escolhido, quanto pela primeira vez o poder politico, d’onde
-acaba sempre com o tempo por derivar a força proselytica, o prestigio
-exemplar, o verdadeiro poder social em uma palavra, é tirado aos
-professores liberaes, onde a<span class="pagenum" id="Page_136">[Pg 136]</span> criminalidade é de 9 accusados por anno
-para 100:000 pessoas d’estas cathegorias e conferido, não ás classes
-agricolas, onde é de 8 para o mesmo numero de agricultores, mas na
-realidade ás populações industriaes e commerciantes das cidades, onde
-é de 14 e 18 para um igual numero de industriaes e commerciantes.
-Porque não é com exactidão que se diz que o nosso paiz se democratiza.
-Democratizar-se não é termo que sirva para uma nação onde tres quartas
-partes do povo são camponezes, assentaria melhor, permittam-me o verbo,
-<em>rustificar-se</em>, ou, para exprimir a cousa com justa conveniencia,
-estender e fortalecer os costumes, as preocupações, as idéas agricolas
-e ruraes. Mas o contrario succede pela emigração espantosa dos campos
-para as cidades, e ainda mais pela importação dos costumes urbanos, das
-idéas urbanas, para o centro dos campos. A França commercializa-se,
-industrializa-se, se o querem; não se democratiza. A cousa tem o seu
-lado bom, o seu lado excellente, tenho-a applaudido a muitos respeitos
-mas tinha de mostrar aqui tambem o reverso da medalha. Se, como eu
-julguei mostral-o em outro logar a origem da criminalidade profissional
-só póde ser estancada em primeiro logar por uma expansão maior de
-beneficencia e pela creação de numerosas sociedades de patronato,
-importa que as novas classes dirigentes, tanto e mais que as antigas,
-tenham aprendido a praticar o culto do bem, do bello para o bello.
-E se, em segundo logar, o remedio para o mal da criminalidade geral
-se acha em parte na estabilidade do poder politico, é preciso não
-esquecer que sem uma forte dose de dedicação da parte dos governos e de
-confiança da parte dos governados, não ha governo de possivel duração.
-A concorrencia d’estas duas condições é rara! Ora é um povo sincero que
-se confia cegamente a um despota, a um egoista de talento ou de genio,
-ora é um homem de Estado dedicado aos interesses do paiz que se esbarra
-com uma desconfiança geral que o paralysa; mas ha esta differença a
-notar que, muitas vezes com o tempo, a dedicação dos chefes leva a
-confiança ás massas, emquanto que nunca se viu a confiança dos povos
-fazer nascer a abnegação no coração dos seus governantes. É pois
-primeiro que tudo o desinteresse, a generosidade, o amor intelligente
-do bem publico, que se deseja encontrar nos homens chamados a
-governarem, pois que o resto póde vir como consequencia. D’aqui resulta
-que as nossas duas precedentes conclusões concordam igualmente<span class="pagenum" id="Page_137">[Pg 137]</span> para
-proclamarmos a necessidade do sacrificio, a insufficiencia do mobil
-do interesse pessoal, e a opportunidade de elevar por consequencia a
-educação esthetica o mais possivel, tanto como diffundir a instrucção
-profissional o mais longe que possa ser.»</p>
-
-<p>Tarde (G.) dá grande importancia á cultura do sentimento esthetico
-nos effeitos da criminalidade. De feito, a emoção do prazer e o
-sentimento de admiração, que resultam da contemplação do bello, elevam
-os nossos juizos e melhoram a nossa alma. Kant resumiu os caracteres
-subjectivos do bello, definindo-o o objecto d’uma satisfação,
-desinteressada, universal e necessaria. É grande a sua analogia com o
-bem, porém distingue-se, porque este mira não só á perfeição geral mas
-essencialmente á perfeição moral.</p>
-
-<p>O sentimento esthetico como criterio moral é incompleto; posto que toda
-a moralidade seja bella e que o ideal esthetico nos excite á pratica
-do honesto e nos inspire o desejo de o realisar; não nos obriga como o
-principio do bem, ao cumprimento do dever. A moralidade deve existir
-sempre na arte, porém não a absorver, visto que tem por especial
-missão, crear o bello, não ensinar o bem. No entanto ella carece sempre
-do attributo moral porque a immoralidade fere a consciencia e altera
-o prazer esthetico. Ninguem póde negar, que o bello, exercendo a
-sympathia desinteressada, é um alliado do bem, mas este conserva a sua
-individualidade.</p>
-
-<p>Na escola a educação esthetica não póde supprir a educação do
-sentimento moral e religioso. Os italianos têem como nenhum outro povo
-notaveis aptidões estheticas e afamados monumentos artisticos, onde
-pódem beber as grandes e delicadas emoções da belleza e todavia são
-o povo onde a estatistica criminal mais avulta. A renascença é uma
-das idades mais esplenderosas e mais fecundas na creação do bello e
-todavia apresenta se ao historiador como um periodo de aviltamento e de
-depravação moral tanto nos grandes crimes como em detestaveis vicios, o
-que prova a coexistencia d’uma alta civilisação intellectual e material
-com a depravação.</p>
-
-<p>A approximação excessiva das idéas do bello e do bem provêm da theoria
-da escola escoceza, que reduz a consciencia moral a um sentido, que nos
-deu a natureza, similhante ao do gosto e ao do paladar. O homem segundo
-este systema aprecia o bem como o bello, não pela razão, mas pelo
-sentimento immediato que experimenta. H. Spencer, que é n’este ponto<span class="pagenum" id="Page_138">[Pg 138]</span>
-discipulo de Reid e de Darwin considera o <em>sentido moral</em> como um
-legado hereditario na especie. O prazer moral n’este caso não differe
-dos outros prazeres, não ha motivos de preferencia. Como se vê é uma
-forma do empirismo moral.</p>
-
-<p>É extremamente benefico para a alma o sentimento d’uma belleza moral,
-placida, serena e vigorosa, inspirada por um ser que goza de todas as
-forças; que se encerram nas condições d’um typo poetico, que preenche
-completamente a sua grandiosa missão no mundo. Esta belleza, quando
-real, filha da natureza ou da sociedade, como diz Krause, tem mais
-<em>plenitude</em>, porque a natureza cria as suas obras d’um modo
-integral com todas as peças nas suas relações mutuas emquanto o bello
-ideal tem mais <em>expressão</em>, porque o espirito cria as suas obras
-de um modo independente, dispondo dos elementos de representação á sua
-vontade. A primeira belleza é o fim da arte naturalista, a segunda o da
-arte classica.</p>
-
-<p>O egregio criminalista Tarde quando se refere á educação esthetica,
-sollicita a attenção para as vantagens da educação litteraria.
-Certamente a poesia, o drama, a eloquencia escripta, a historia
-narrativa occupam o primeiro lugar na cultura do sentimento moral, da
-imaginação e do gosto, não só pela intensidade da emoção, que produzem,
-mas porque communicam idéas d’um valor mais preciso e mais nitido.
-Depois da educação religiosa e da educação moral, aquella que mais
-enriquece, eleva e fortalece o coração, é a educação artistica. Todavia
-é certo tambem, que em todas as formas da actividade psychologica se
-póde utilisar adequadamente o elemento moral.</p>
-
-
-<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_66" href="#FNanchor_66" class="label">[66]</a> É para notar contra a opinião de Buckle que Marco Aurelio
-foi talvez o homem de estado mais esclarecido da antiguidade. O exemplo
-parece mal escolhido.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_67" href="#FNanchor_67" class="label">[67]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">De la Famille et de la éducation</i>, pag. 74.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_68" href="#FNanchor_68" class="label">[68]</a> Veja-se <i xml:lang="fr" lang="fr">Morale et Progrès</i> por Francisco Bouillier,
-Inspector Geral de Instrucção Publica, pag. 291. É uma analyse profunda
-d’este estado que se póde applicar a todas as nações neo-latinas.</p>
-
-</div>
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_139">[Pg 139]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="VI">VI</h2>
-</div>
-
-<div class="section">
-
-<p>Os effeitos da acção educativa. A hereditariedade, o meio; Garofalo. O
-gosto pelo adorno é na mulher como sustenta B. Perez uma manifestação
-esthetica e nunca uma approximação do typo criminoso. A arte e a
-moral. Educação physica, a escola e a doença.</p>
-</div>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p>Toda a despeza que os paes fizerem na educação de seus filhos será
-frustrada se elles não tomarem sobre si a maior parte da obrigação de
-mestres e ayos com preceitos e com exemplo.</p>
-
-<p class="right">
-MARTINHO DE MENDONÇA.<br />
-</p>
-</div>
-
-
-<p>É innegavel que a educação, o meio social e a hereditariedade são os
-guias principaes que dirigem o individuo durante toda a sua vida. Se a
-acção educativa não é, como pretendem alguns sociologos, efficaz para
-reformar os sentimentos do individuo, porque elles são o resultado
-hereditario de lentas elaborações, é o todavia para reformar uma
-geração, para criar uma sociedade futura, mais justa, mais moralisada
-e mais cheia de sentimentos bons e generosos. O sentimento é um dos
-factos psychologicos, que maior influencia exerce sobre o caracter;
-insuflar pois na alma o sentimento religioso, o sentimento esthetico, o
-sentimento moral, é melhorar o individuo, é engrandecer a sociedade.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_140">[Pg 140]</span></p>
-
-<p>A educação em alguns casos possue relativamente pouco poder
-para modificar os sentimentos e tem de exercer a sua acção pela
-intelligencia afim de dirigir a acquesição dos habitos. A acção
-volitiva sobre a intelligencia começa hesitante, disciplinando as
-numerosas associações de movimentos reflexos necessarios para dirigir
-certos musculos em determinado sentido. Por ultimo basta que os nervos
-sensitivos levem aos centros nervosos o grau determinado de impressões
-para a excitação ser immediatamente produzida. É assim que os habitos
-se adquirem e que transmittidos pela hereditariedade se convertem em
-instinctos. Se a acção educativa é pouco efficaz no individuo, ficará
-de reserva para os seus descendentes.</p>
-
-<p>Como é sabido a associação das idéas é uma das operações mais
-importantes na formação da estructura intellectual. Ha necessidade
-de habituar o espirito a formar juizos segundo certas relações das
-cousas, no intuito de tirar do valor d’essas relações todo o partido
-possivel em favor da educação do caracter. É preciso ensinar a
-creança a ligar na sua consciencia d’uma maneira irreductivel, ás más
-obras sentimentos de vergonhosa reprovação e de dôr, e ás boas obras
-sentimentos de honra, de merito e de respeito para que se habitue
-a aborrecer os primeiros e a amar os segundos. Estas associações
-tornadas indissoluveis e ás vezes inconscientes é que formam o nosso
-caracter e regulam o nosso procedimento na vida moral. O exercicio
-intensivamente repetido das nossas operações intellectuaes torna-se
-com a frequencia cada vez mais automatico, e como os actos automaticos
-são inconscientes, parece que a humanidade caminha a passos rapidos
-para o inconsciente, porém não succede assim, porque os resultados das
-operações não se tornam inconscientes, o que se torna inconsciente são
-estas associações mechanicas dos elementos adquiridos pela experiencia
-e transmittidos pela hereditariedade. É claro que a consciencia a que
-nos acabamos de referir não é a consciencia moral, porque essa não
-augmenta nem diminue com a herança accumulada, permanece inalteravel,
-impondo á vontade a necessidade de executar uma acção em obediencia
-á lei do dever. A intelligencia culta esclarece melhor o valor dos
-motivos actuantes, mas a verdadeira superioridade moral d’um individuo
-ou d’uma nação está em respeitar a lei.</p>
-
-<p>No caracter é preciso distinguir o que é congenito e o que<span class="pagenum" id="Page_141">[Pg 141]</span> vem pela
-influencia do meio e da educação. Para as disposições nativas é
-difficilimo alcançar extirpação radical, mas para as adquiridas toda
-a formação do caracter depende de bem dirigir os habitos, sobretudo,
-no periodo psychogenico. As inclinações innatas podem ser attenuadas
-dentro de certos limites e até vencidas por considerações de interesse
-proprio ou pela inoculação d’uma paixão elevada que lucte contra uma
-paixão ruim.</p>
-
-<p>Punir é uma triste necessidade social, evitar que o crime exista é que
-deve ser a principal funcção das sociedades que aspiram á tranquilidade
-e á segurança economica. Pretender a extincção total do crime seria
-uma aspiração chimerica, mas diminuir a sua frequencia pela acção
-educativa e por outros melhoramentos e circumstancias, que desinvolvem
-o bem estar social, é <i>desideratum</i>, que progressivamente póde
-converter-se em realidade.</p>
-
-<p>O grande contingente dos criminosos é recrutado entre os menores
-abandonados, filhos de paes crapulosos, que no alvorecer da vida lhes
-deram tristes exemplos. Para estes a rapinagem converte-se n’uma
-profissão, primeiro impellidos pela necessidade, depois atrahidos pelo
-habito. A ausencia de educação moral faz com que tenham por unicos
-prazeres o ocio, a embriaguez, a libertinagem, a vãgloria, o jogo,
-que são outros tantos incentivos para a pratica do crime. É já um
-aphorismo em jurisprudencia que muito mais vale prevenir os crimes do
-que punil-os. A educação posta ao serviço da sciencia social preventiva
-do crime, é a alavanca mais poderosamente salutar, para destruir as más
-inclinações e converter em habito o amor do bem e a pratica do justo. A
-acção educativa é muito mais efficaz na creança que no adulto, por isso
-são preferiveis os asylos de imfancia ás penitenciarias correccionaes;
-os primeiros evitam em parte as segundas.</p>
-
-<p>Sobre a influencia da educação nos instinctos criminaes escreve
-Garofalo, o porta-bandeira da jurisprudencia anthropologica: «Muitos
-philosophos crêem na possibilidade de modificar os sentimentos moraes
-pela educação ou pelas influencias do meio e na possibilidade de
-transformar o meio social mediante o poder do Estado. Duas questões se
-seguem, uma psychologica, outra social e sobretudo economica, e ambas
-merecem um detido exame. Começaremos pela questão da influencia que
-pode ter a educação sobre as tendencias dos criminosos afim de podermos
-apreciar o que ha de verdadeiro e de<span class="pagenum" id="Page_142">[Pg 142]</span> acceitavel na theoria penal,
-chamada correccionalista. O problema da educação seria, com effeito, da
-maior importancia para a sciencia penal se, por meio de ensinamentos
-fosse possivel transformar o caracter do individuo <em>já vindo da
-infancia</em>. Desgraçadamente parece demonstrado que a educação só
-representa uma d’essas influencias actuantes <em>nos primeiros annos
-da vida</em> e que, como a herança e a tradição contribuem para formar
-o caracter. Estando este fixado como a physionomia no physico, fica
-o que hade ser toda a vida. Ponho até em duvida que um instincto
-moral ausente se possa criar pela educação no periodo da primeira
-infancia. Em primeiro logar, quando se trata da infancia, a palavra
-educação não deve ser tomada em sentido pedagogico, significa antes
-um conjuncto inteiro de influencias exteriores, uma serie completa
-de scenas que a creança vê desenrolarem-se continuadamente e que lhe
-imprimem habitos moraes, ensinando-lhe experimentalmente, e quasi
-inconscientemente, qual é o procedimento a seguir nos differentes
-casos. São os exemplos da familia, ainda mais que os ensinamentos
-que actuam em seu espirito e em seu coração. Mas dando-se á palavra
-<em>educação</em> uma significação extensa, não havemos a certeza do seu
-effeito, ou ao menos, esse effeito de modo algum se pode medir.<a id="FNanchor_69" href="#Footnote_69" class="fnanchor">[69]</a>
-Podem-nos fazer notar que quasi todas as creanças parecem privadas de
-senso moral nos primeiros annos da sua vida; a sua crueldade para com
-os animaes é conhecida assim como a sua tendencia para se apoderarem
-do que pertence aos outros; são inteiramente egoistas, e quando se
-trata de satisfazer os seus desejos, nada absolutamente se preoccupam
-com os desgostos que os outros soffrem. Na maior parte dos casos,
-tudo isto muda em chegando a adolescencia; mas podem-nos objectar que
-esta transformação psychologica é o effeito da educação ou sómente
-se hade ver n’isto um phenomeno d’evolução organica, semelhante á
-evolução embryogenica, que faz percorrer o feto pelas differentes
-formas da animalidade, desde as mais rudimentares até ás do homem?
-Tem-se dito que a evolução do individuo reproduz em ponto<span class="pagenum" id="Page_143">[Pg 143]</span> pequeno a
-da especie. Assim no organismo psychico, os instinctos que primeiro
-apparecem, seriam os do animal, depois os mais egoistas, os do homem
-primitivo, aos quaes viriam ajuntar-se successivamente os sentimentos
-ego-altruistas, e altruistas, adquiridos pela raça primeiramente, em
-seguida pela familia e finalmente pelos paes da creança. Seriam outras
-tantas juxtasposições d’instinctos e de sentimentos, que todavia não
-seriam devidos á educação, ou á influencia do meio ambiente, mas
-simplesmente á herança. «A consciencia, diz M. Espinas, cresce como
-o organismo e parallelamente a elle, encerrando aptidões, fórmas
-predeterminadas de pensamento e de acção, que são emanações directas
-de consciencia, anteriores <em>eclipsadas um instante é certo na
-obscuridade da transmissão organica</em>, mas reapparecendo um dia
-com caracteres de semelhança não equivocas, que logo se confirmam
-cada vez mais pelo exemplo e pela educação. <em>Uma geração é um
-phenomeno de fissiparidade transportado na consciencia.</em> Esta
-hypothese não é inverosimil, ainda que seja impossivel demonstral-a
-rigorosamente porque seria para isso necessario poder distinguir, no
-desenvolvimento moral d’uma creança, o que é devido á herança do que
-é devido á educação. E como o conseguiriamos, tanto mais que estas
-duas influencias actuam ordinariamente na mesma direcção, porque,
-quasi sempre <em>derivam das mesmas pessoas, dos paes? A educação
-domestica não é senão a continuação da herança</em>; o que não foi
-transmittido organicamente, sel-o-ha pela força dos exemplos e de uma
-maneira igualmente inconsciente. Nunca se poderá calcular a que ponto
-chegaria uma d’estas duas forças sem o soccorro da outra. É por isso
-que Darwin, d’um lado, tem o direito de dizer que se se transportasse
-a um mesmo paiz um certo numero de irlandezes e de escocezes, passado
-algum tempo, seriam aquelles dez vezes mais numerosas que estes, mas
-os escocezes, por causa de suas qualidades hereditarias, estariam á
-frente do governo e das industrias.—E Fouillée póde tambem replicar:
-«deitae nos berços de amas escocezas crianças irlandezas, sem que os
-paes possam dar pela substituição: fazei-os educar como escocezes e
-talvez vejais com a maior admiração identico resultado.» Mas, esta
-segunda experiencia ainda não foi ensaiada e é até provavel que nunca
-se cheguem a fazer experiencias taes. Ha sem duvida milhares de
-crianças que não são educadas por seus paes, mas de ordinario são<span class="pagenum" id="Page_144">[Pg 144]</span>
-desconhecidos estes ultimos. Emfim, é sempre preciso dar informações
-dos phenomenos d’atavismo, que permanecem ainda na obscuridade e que se
-não podem determinar; de sorte que tudo conspirava para que o problema
-fique sem solução. Muitas vezes succede que os instinctos paternos são
-abafados ou attenuados pelos exemplos maternos; outras vezes dá-se o
-contrario. Mas isto nada prova em favor da efficacia educativa, porque
-pode-se sustentar com igual apparencia de verdade que o effeito é
-simplesmente devido á superioridade final de uma das duas heranças.
-O que bem se póde affirmar é que a influencia <em>hereditaria</em> nos
-instinctos moraes está <em>demonstrada</em>, emquanto que o da educação é
-<em>duvidosa</em>, mas <em>provavel</em> uma vez que se tome no sentido dos
-<em>exemplos</em> e dos <em>habitos</em>; que a considerem como sempre cada
-vez mais <em>fraca, á medida que a idade avança</em> e que simplesmente
-se lhe attribue uma acção <em>capaz de modificar</em> o caracter, isto é
-podendo, mas não extirpar os instinctos perversos, que ficariam sempre
-latentes no organismo psychico. É o que explica como a perversidade,
-talvez atavica, revelada por algumas crianças em tenra idade, jámais
-pôde ser corrigida em toda a sua vida, apesar do procedimento mais
-exemplar de seus paes e das pessoas que com ellas vivem em contacto
-e a despeito dos cuidados mais assiduos e dos melhores ensinamentos.
-Pelo contrario, parece incontestavel que a <em>influencia deleteria</em>
-de uma <em>má educação</em> ou de um meio ambiente depravado, pôde
-abafar inteiramente o senso moral transmittido e substituil-o pelos
-maus instinctos. De sorte que a <em>criação artificial de um bom
-caracter seria sempre pouco estavel, emquanto a de um mau caracter
-seria completa</em>. Isto explica-se facilmente, segundo M. Ferri,
-quando pensamos que os germens maus ou instinctos anti-sociaes, que
-correspondem á idade primitiva da humanidade, estão mais profundamente
-enraizados no organismo psychico, precisamente porque elles remontam a
-uma data mais affastada na raça. São pois mais fortes do que aquelles
-que foram substituidos pela evolução. Por isso, é que os instinctos
-selvagens «não sómente não podem ser nunca inteiramente abafados; mas
-apenas o meio ambiente e as circumstancias da vida, favorecem a sua
-expansão, brotam com violencia, porque, dizia Carlyle, a civilisação
-não é mais que um involucro sob o qual pode sempre arder em fogo
-infernal a natureza selvagem do homem.»</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_145">[Pg 145]</span></p>
-
-<p>Agora se a influencia da educação <em>pelo que respeita ao sentido
-moral</em>, é duvidosa, <em>mesmo durante a infancia</em>, o que será
-ao sahir d’este periodo? M. Sergi crê que o caracter é formado por
-camadas sobrepostas, que podem cobrir e esconder inteiramente o
-caracter congenital; o meio ambiente a educação experimental, os
-mesmos ensinamentos poderiam produzir uma nova camada, não só durante
-a infancia, mas durante toda a vida do homem. Esta hypothese não
-é admissivel, a meu ver, salvo se supposermos que as camadas mais
-recentes nunca alteram o typo já formado do caracter. Ninguem duvida
-de que o organismo psychico não tenha o seu periodo de formação e
-de desenvolvimento tanto como o organismo physico. O caracter, como
-a physionomia, declara-se desde a mais tenra idade. Póde tornar-se
-mais docil ou mais rispido, amaciar, embotar as unhas ou aguçal-as,
-disfarçar-se na vida ordinaria; mas, como poderia elle perder o seu
-typo? Ora um typo differente do caracter, e do homem desprovido dos
-mais elementares sentimentos moraes, é um defeito organica que deriva
-da herança, do atavismo ou d’um estado pathologico. Como poderiamos
-suppor que influencias exteriores reparem este defeito congenital?
-Seria uma criação <i lang="la" xml:lang="la">ex nihilo</i>, a producção <em>artificial
-do sentido moral</em> pertencente á <em>raça</em>, mas de que o
-<em>individuo</em> se encontra <em>excepcionalmente</em> desprovido! Eis
-o que é dificil de conceber, o que parece até impossivel, quando se
-não trata já de uma criança. Isto não é negar o poder da educação.
-Quem póde duvidar dos seus prodigios quando se trata de aperfeiçoar
-um caracter, de tornar mais delicados os sentimentos já existentes,
-de trabalhar no estofo, n’uma palavra? O que lhe não reconhecemos
-é o poder de tirar alguma cousa do nada. É sobre este ponto que um
-illustre psychologo, o dr. Despine, se contradiz, me parece a mim,
-da maneira mais espantosa. É certamente a elle que nós devemos uma
-serie de observações sobre os criminosos confirmando a sua anomalia;
-foi elle até que formulou uma theoria muito approximada á nossa,
-sobre a ausencia do sentido moral, não sómente entre os assassinos
-a sangue frio, mas tambem nos grandes criminosos violentos. Foi
-ainda elle quem affirmou que «a educação mais diffusa não pode crear
-faculdades, só póde cultivar as que existem ao menos em germen. As
-faculdades intellectuaes por si sós não procuram os conhecimentos
-instinctivos dados pelas faculdades moraes; não teem esse<span class="pagenum" id="Page_146">[Pg 146]</span> poder,»
-que «é facil reconhecer nas faculdades moraes a origem dos motivos
-d’acção que devem apresentar-se ao espirito do homem nas diversas
-circumstancias em que este pode encontrar-se» e, emfim que «todos
-os raciocinios, todos os actos intellectuaes, não provarão já o
-sentimento do dever, não provarão as affeições, o medo, a esperança
-o sentimento do bello.» E apesar d’isto é este mesmo auctor quem
-propõe um <em>tratamento moral palliativo e curativo</em> para os
-criminosos, tratamento que elle resumiu da maneira seguinte: Impedir
-toda a communicação entre os individuos moralmente imperfeitos.—Não
-os deixar na solidão, porque elles não possuem na sua consciencia,
-nenhum meio de emenda.—Conserval-os constantemente em contacto com
-pessoas moraes, capazes de os vigiar, de estudar a sua natureza
-instinctiva, de imprimir n’esta e dar aos seus pensamentos uma boa
-direcção, inspirando-lhes ideias d’ordem, e fazendo nascer n’elles o
-gosto e o habito do trabalho. O estado deveria pois tomar a seu cargo
-estes cuidados assiduos, constantes pelos encarcerados; vigiar os seus
-progressos, como se pratica n’um collegio de pequenos; tentar, por
-meio de exemplos, pela experiencia, pela instrucção, suavisar-lhes
-o caracter, tornal-os affectuosos, probos, cheios de caridade e de
-zelo. A ideia da applicação de uma semelhante therapia moral a muitos
-milhares de criminosos é, praticamente, uma utopia. Não fazia falta
-collocar ao lado de cada prezo um anjo consolador, por assim dizer?
-As pessoas chamadas para um semelhante emprego deveriam ser dotadas
-das mais nobres qualidades, das mais raras no homem; a paciencia, a
-vigilancia, a severidade e com um conhecimento profundo do coração
-humano, deveriam ter instrucção e dedicação. Onde se encontrariam em
-numero suficiente medicos das almas nas condições requeridas? Quaes
-seriam as finanças que poderiam supportar semelhantes despezas? Mas,
-suppondo por um pouco que as dificuldades praticas não levantariam
-um obstaculo insuperavel a este systema, quaes seriam os effeitos do
-seu emprego? O individuo, uma vez separado de toda a sociedade e não
-tendo já sob os olhos as tentações continuas da vida ordinaria, não
-experimentaria já em seu coração as impulsões criminosas. A causa
-occasional essa faltar-lhe-hia, mas o germen criminal continuaria a
-residir n’elle em estado latente, prompto a mostrar-se, assim que as
-condições precedentes da sua existencia normal viessem a reproduzir-se.
-A emenda pois seria<span class="pagenum" id="Page_147">[Pg 147]</span> apenas apparente, se é que não era fingida.
-Poder-se-hia acaso fallar de uma pedagogia experimental? Mas, se
-é certo que os instinctos moraes da humanidade foram criados por
-milhões de experiencias utilitarias feitas por nossos antepassados
-durante milhares de seculos, como se poderá imaginar a sua repetição
-artificial n’um espaço de tempo tão curto como a vida d’um individuo,
-cujo instincto não herdou, fructo d’estas experiencias das gerações
-passadas? É evidente que nada podemos tentar fóra do raciocinio. Tem-se
-tratado depois de fazer propostas mais praticas. Em primeiro logar
-seria inutil applicar a cura moral de um modo <em>directo</em>, conforme
-a utopia de Despine; mas effectuar-se-hia por si mesma, mediante um
-bom regime penitenciario. O isolamento, o silencio, o trabalho, a
-instrucção traziam a reconsideração e as boas resoluções, capazes de
-regenerar o condemnado. Mas, quanto ao isolamento «para o pobre e para
-o desgraçado, para o homem que tudo perdeu e cahiu,—diz eloquentemente
-Mittelstad,—não é a separação da sociedade humana que lhe faz falta
-é sim o amor e o contacto d’esta...» E quanto ao trabalho diz ainda o
-mesmo auctor: «Não resta presentemente para nós humanistas da escola
-correccionalista, senão o vago desesperador d’este dilemma, a ouvir-se
-n’estas palavras: «<em>trabalho educativo dos presos</em>». Querem elles
-o effeito benefico do trabalho sobre os costumes? Então é preciso
-que elle se exerça sem coerção e que se substitua a detenção pela
-liberdade ou antes querem elles a coerção ao trabalho? Então eil-os
-de novo no campo da dor penal, e o fim da emenda, que é d’elle?!<a id="FNanchor_70" href="#Footnote_70" class="fnanchor">[70]</a>
-Mas ao trabalho obrigatorio, respondem os correccionalistas, deve
-alliar-se a educação do espirito e do coração com o auxilio de escolas,
-onde os condemnados, ordinariamente grosseiros e ignorantes, podem
-adquirir os conhecimentos do bem e da verdade, que lhes fazem falta.
-Desgraçadamente, como nós o veremos em breve, a experiencia tem
-demonstrado que a efficacia da escola é ordinariamente nulla sobre a
-moral individual. Tem-se um delinquente adulto, privado de uma parte
-do senso moral, o<span class="pagenum" id="Page_148">[Pg 148]</span> instincto da piedade; pretende-se inculcar-lhe este
-instincto por meio do ensino, isto é repetindo-lhe que um dos deveres
-do homem é ser compassivo, que a moral prohibe fazer mal aos nossos
-semelhantes e assim outras cousas muito bonitas... O delinquente
-porem só adquirirá, se o não tiver já, um certo criterio para saber
-conduzir-se mais seguramente conforme os principios da moral. N’uma
-palavra, adquirir ideias, não sentimentos. E depois? O homem é bom não
-pela reflexão, mas por instincto que lhe falta. Como proceder para
-supprir este defeito organico? Elle verá o bem, mas fará o mal, quando
-o mal lhe convir e lhe causar prazer.</p>
-
-<p class="poetry">
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Vejo e approvo o que é melhor</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Mas sigo o peior.</i><a id="FNanchor_71" href="#Footnote_71" class="fnanchor">[71]</a></span><br />
-</p>
-
-<p>Por mais que se lhe repita que o interesse social tem muito mais
-importancia que o interesse individual; que este, no fim de contas,
-se confunde até com aquelle: que, como membros da sociedade, nós
-devemos, em certos casos, sacrificar o nosso egoismo, para que assim
-procedam comnosco. Ou antes tomando por base um principio religioso,
-falle-se-lhe da felicidade de uma vida futura para o homem justo e
-de condemnação eterna que espera os perversos. Na essencia, tudo se
-reduz a um raciocinio: se tu praticares uma tal acção, advir-te-ha
-mal. <em>Logo para evitar isto, não deverás praticar aquillo.</em> Mas,
-se o delinquente prefere satisfazer antes a sua propria paixão, que
-entregar-se a qualquer outro prazer, a qualquer outra esperança, o
-raciocinio então já não tem valor para elle, o que poderia impedil-o de
-commetter um novo crime, não é ver claramente o que os outros, e não
-elle, consideram como um interesse predominante,—mas seria necessario
-que elle <em>experimentasse a mesma repugnancia</em> que os outros
-experimentam pelo crime; porque o que explica toda a acção humana,
-é, em ultima analyse, o caracter do individuo e sua maneira geral de
-sentir.</p>
-
-<p>Ora um raciocinio não poderá nunca criar um instincto. Este não póde
-ser senão natural ou transmittido, ou antes adquirido inconscientemente
-por um effeito do meio ambiente. Eis-nos pois novamente em face dos
-dois agentes principaes a herança e o meio. A educação, uma vez que
-ella não represente<span class="pagenum" id="Page_149">[Pg 149]</span> senão ensinamentos, é de um effeito nullo, ou
-pouco menos, se o meio continúa o mesmo, isto é se o criminoso, depois
-da expiação da sua pena ou culpa se tornar a achar no mesmo meio
-que d’antes occupava. É conhecida a historia d’aquelles negrinhos
-que depois de terem sido educados e instruidos na Europa, foram
-reconduzidos aos seus respectivos paizes para <em>civilisarem</em> os
-seus compatriotas. Assim que elles se viram de novo entre estes, tudo
-esqueceram, tanto a grammatica e as suas regras como as boas maneiras
-que tinham aprendido; despojaram-se dos seus vestidos, retiraram-se
-para as florestas e eil-os outra vez selvagens como seus paes, que
-aliás nem tinham conhecido! Eis aqui precisamente a que chegaria o
-systema correccionalista; julgue-se do resto pelos ensaios que já se
-teem tentado: o systema cellular, o de Auburn, o systema Irlandez,
-etc. O numero das reincidencias por toda a parte tem augmentado, á
-medida que se teem suavisado as penas e abreviado a sua duração. Em
-França na proporção de 21 p. c. em 1851, chegou a 44 p. c. em 1882
-para os <em>delictos</em> e de 23 a 52 p. c. para os <em>crimes</em>. A
-reincidencia—dizia o Ministro—continua a sua marcha invasora... O
-augmento do numero dos malfeitores em estado de reincidencia legal
-é, em dez annos de 39 p. c., perto de 2 quintas partes. A maré da
-reincidencia continua a subir. Relatorio de 28 de março de 1886 onde se
-deplora o mesmo facto. Na Belgica a reincidencia attingira a proporção
-de 56 p. c. em 1870 e de 52 p. c. em 1873. Houvera diminuição desde
-1874 até 1876, mas em 1879 chegou a proporções assustadoras (49 p.
-c.!) Na Italia, desde 1876 até 1885, a reincidencia dos condemnados
-pelos tribunaes subiu de 10¹⁄₂ p. c. A mesma progressão em Hespanha.
-Ha tambem augmento, ainda que menos pronunciado, na Austria e na
-Carinthia. Tudo isto prova experimentalmente o absurdo da theoria
-correccionalista, das suas applicações pelo menos. Nem podia deixar
-de ser assim, porque nos seus principios ha contradicção flagrante.
-Com effeito, emquanto que de um lado se declara que o fim da pena é a
-<em>correcção</em> do culpado do outro lado estabelece-se uma <em>medida
-fixa</em> de pena para cada delicto, isto é um certo numero de mezes ou
-de annos de detensão n’uma casa do Estado; o que—como o disse o juiz
-Wilert—se parece com o tratamento que um medico prescrevesse ao seu
-doente, com a indicação do dia em que lhe deveria dar alta do hospital,
-quer elle estivesse curado ou<span class="pagenum" id="Page_150">[Pg 150]</span> não. Tudo quanto se póde saber do
-naufragio d’esta theoria são as instituições para a infancia abandonada
-e para os adolescentes que começaram a mostrar más inclinações. Quanto
-aos adultos, apenas se póde tentar fazel-os adquirir o <em>habito</em>
-de um genero de vida que elles <em>deveriam desejar poder continuar
-sempre</em>, porque será mais util <em>para elles</em> que qualquer outra
-actividade em o novo ambiente para onde os transportarem. É assim
-que aquelles d’entre os criminosos que não são inteiramente homens
-degenerados poderão deixar de ser nocivos á sociedade. Isso só é
-realisavel pela deportação ou por colonias agricolas que se estabeleçam
-nas regiões pouco habitadas da mãe-patria, com a condição de que
-esta especie de exilio seja perpetuo, ou que ao menos se não fixe
-d’antemão o tempo da sua duração, afim de que se não libertem senão os
-raros individuos cuja regeneração pelo trabalho possa realmente ser
-verificada. São casos excepcionaes. Mas nos casos ordinarios é absurdo
-pensar que depois de uma ausencia mais ou menos longa, um delinquente
-possa reapparecer no meio que é sua pequena patria sem ahi passar pelas
-mesmas influencias que o tinham impellido para o crime.»</p>
-
-<p>Em toda a critica feita por Garofalo á escola correccionalista ha
-excellentes argumentos, muitos preconceitos systematicos e algumas
-contradicções. Nos capitulos anteriores já nós combatemos muitas das
-hypotheses d’esta escola. Os seus defeitos nascem por um lado d’uma
-funesta e erronea orientação philosophica, por outro lado da exagerada
-extensão generalisadora, dada aos factos sommaticos, generalisação que
-de modo nenhum scientificamente elles abrangem. O principal argumento
-é—que a educação é impotente para vencer os instinctos hereditarios,
-quando em boa psychologia se póde demonstrar, que a acção educativa,
-quando efficaz, aniquilla as más qualidades herdadas, substituindo-as
-pelos salutares beneficios adquiridos pela civilisação.</p>
-
-<p>A má educação na familia é um influxo mais corruptor e mais profundo do
-que o meio social. O instincto de imitação actua como importantissimo
-elemento para a formação do caracter.</p>
-
-<p>A educação segundo a anthropologia franceza modifica o encephalo, o
-seu influxo faz augmentar ou diminuir a capacidade da caixa craneana,
-apressar ou retardar o encerramento das soturas e a sua ossificação. É
-innegavel que o cerebro<span class="pagenum" id="Page_151">[Pg 151]</span> é a condição do pensamento e sendo modificado
-por factos exteriores ou internos, vem a ser ainda que indirectamente,
-tambem modificadas as suas faculdades.</p>
-
-<p>Paulo Broca affirma que segundo o costume de Taiti os indigenas crêem
-poder fabricar, á vontade, homens de conselho ou homens de guerra
-achatando nas creanças a parte posterior da cabeça no primeiro caso e o
-frontal no segundo.<a id="FNanchor_72" href="#Footnote_72" class="fnanchor">[72]</a></p>
-
-<p>Não póde nenhum penologo deixar de prestar justiça aos meritos e
-de reconhecer os esforços da escola italiana, comtudo é impossivel
-acceitar a extraordinaria affirmação de que todos os malfeitores são o
-reapparecimento do homem primitivo e que o meio de verificar este typo
-são especialmente os caracteres externos.</p>
-
-<p>A theoria biologica do transformismo está invadindo d’um modo
-anti-scientifico os principios explicativos dos phenomenos
-psychologicos e sociaes, é preciso na sua applicação um pouco mais de
-logica.</p>
-
-<p>«Os nossos anthropologos consideram como herança da antiga barbarie a
-predilecção que a mulher tem pelos adornos, que Isaias e Plauto, antes
-dos nossos prégadores e dos nossos comicos, reprehenderam como um senão
-e como um vicio.</p>
-
-<p>A arte dos adornos, na opinião d’elles, é uma das primeiras que o
-homem conheceu. Precedeu o vestuario. O selvagem de pelle aspera e
-cabelluda, de costumes bestiaes, não sentia nenhuma necessidade de
-se vestir. Mas o orgulho, o cuidado de se defender, o desejo sempre
-crescente de se differençar e de metter medo, fizeram com que elle
-pintasse e ornasse o corpo conforme o seu ideal rudimentar de belleza.
-O adorno é mais que tudo a insignia do guerreiro, que quer fazer maior
-e exagerar o seu typo. «Na origem das sociedades, é o homem que traz
-os braceletes, manilhas, brincos, collares, pinjentes, alfinetes para
-o cabello, plumas de cores vivas; é elle que se pinta, que emprega a
-tatuagem, para chamar a vista, para fascinar o inimigo, affirmar a
-sua cathegoria entre os seus eguaes, e excedel-os se póde; um penacho
-é uma coroa.<a id="FNanchor_73" href="#Footnote_73" class="fnanchor">[73]</a>» Mais tarde com o progresso relativo das artes e
-da abastança, o nivel da mulher, destinado a ficar sempre inferior
-ao homem, alevantou-se um nada, o senhor, que primeiramente fiava,
-tecia e ennastrava permittiu-lhe que se<span class="pagenum" id="Page_152">[Pg 152]</span> occupasse n’esses humildes
-trabalhos, não lhe desagradou vel-a adornar-se para elle, o luxo em
-torno do senhor era com effeito apenas a amplificação da sua propria
-magnificencia. Como elle achava de continuo meios novos de assignalar
-a sua superioridade, deixou para a mulher os adornos que já não eram o
-seu prestigio unico, o progresso da civilisação, é realisado sobretudo
-pelo homem e para o homem, e o apartamento faz-se cada vez mais
-sensivel entre os dois sexos.</p>
-
-<p>É por isso que a mulher conforme dizem os anthropologos representa o
-typo inferior da especie, adorna-se e enfeita-se ainda com melhor gosto
-sem duvida, mas com a mesma paixão que o selvagem e o homem primitivo.
-Do selvagem ao criminoso innato a distancia é pequena, e a assimilação
-d’um ao outro reflectiu-se na mulher. Se o criminoso representa nas
-nossas sociedades civilisadas, a selvageria primitiva, encontra-se
-entre elle e a mulher semelhanças notaveis. «Ellas são mais prognathas
-que os homens, tem o craneo menos volumoso (Topinard) e o cerebro menos
-pesado, mesmo com estatura egual e as fórmas cerebraes tem o que quer
-que seja infantil, e embryonario; são mais que os homens canhotas ou
-ambisdextras; tem, se é licito dizer-lho a ellas, o pé mais chato e
-menos arqueado; emfim, ellas são menos musculosas e tão completamente
-imberbes como abundantes de cabêllo. São estes outros tantos traços
-communs com os nossos malfeitores. Mas isto ainda não é tudo. A mesma
-imprevidencia, a mesma vaidade, dois caracteres que Ferri assignala
-com razão como dominantes no criminoso».<a id="FNanchor_74" href="#Footnote_74" class="fnanchor">[74]</a> Paro aqui n’esta ultima
-parecença. Não poderia admittir em nenhum ponto de vista a assimilação
-do typo feminino ao typo selvagem ou criminoso. Com os mesmos titulos
-que o homem, mas com um feitio proprio, a mulher é um ente civilisado.
-Cada um tem aproveitado o progresso e collaborado com o seu quinhão,
-conforme o seu destino social.</p>
-
-<p>O papel da mulher é sobretudo «agradar ao homem» diz Rousseau; «e a
-belleza da mulher é o signal da sua missão,» diz Proudhon; Renan poude
-portanto dizer com razão que adornando, aperfeiçoando, idealisando a
-sua belleza, «ella pratica uma arte, arte especial, em certo sentido a
-mais encantadora das artes.»</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_153">[Pg 153]</span></p>
-
-<p>Tenham paciencia os anthropologos extremos, a predilecção pelos
-adornos, restringida pelo pudor e o bom senso, assignala antes uma
-perfeição do typo humano na mulher. Mas nós precisamos defender tambem
-a creança contra as pretensões abusivas de certos philosophos. Se a
-mulher, reproduz em certas proporções o typo selvagem e primitivo,
-a creança reproduz-lhe as differentes phases. O desenvolvimento
-individual não é senão uma fórma abreviada do desenvolvimento da
-especie desde o seio da mãe e durante muitos annos, a creança repete
-a serie da evolução prehistorica. Aos seis mezes, ao anno, aos dois
-annos, mesmo aos tres, o que domina n’elle é o selvagem. Conheço
-transformista a quem não custaria mostrar-nos no «Bébé» primeiro o
-selvagem da pedra lascada, depois o da pedra polida, e emfim o da edade
-de bronze, tudo isto muito exactamente.</p>
-
-<p>Admittamos a theoria por hypothese e verifiquemos.</p>
-
-<p>O encommodo que o contacto e a pressão da roupa, produz no recemnascido
-lembrará, estou d’accôrdo, a feliz e livre nudez do velho antepassado.
-O curioso é que este mimo primordial persiste entre muitas creanças,
-aliás, muito bem dotadas, e que a insensibilidade da pelle é um
-dos caracteres attribuidos ao typo criminoso «ou selvagem». Não me
-encarrego de explicar a contradicção. Mas lá vae outra: desde o decimo
-segundo ao decimo quinto mez, a predilecção nascente pelo adorno
-coexiste com o prazer de estar nuazinha. Deveriamos vêr n’isto duas
-phases successivas de selvageria que se fundiam?</p>
-
-<p>Nós chegamos, despresando as transições á edade de tres ou quatro annos
-e podemos suppôr-nos no limiar da pedra polida. Ora n’esta épocha, e
-sobretudo na epocha do bronze, o adorno era em geral o privilegio do
-sexo forte. Deveriamos pois, achar a predilecção mais precoce e mais
-viva nos rapazes que nas meninas; sem o que a doutrina da repetição
-historica nos parece estar em perigo. A não ser que se supponha tambem
-(uma hypothese a mais ou a menos, não é coisa de grande monta) n’essas
-edades distantes a paixão pela argola de metal e por um trapo não fosse
-um desejo bastante violento para se assemelhar ao sentimento da posse.
-Mas vamos aos factos e estudemos sem idéa antecipada as creanças dos
-dois sexos.<a id="FNanchor_75" href="#Footnote_75" class="fnanchor">[75]</a>»</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_154">[Pg 154]</span></p>
-
-<p>Póde affirmar-se<a id="FNanchor_76" href="#Footnote_76" class="fnanchor">[76]</a> que as bellas artes indirectamente concorreram
-para o desenvolvimento moral da humanidade. As faculdades estheticas
-são até certo ponto intermediarias entre as faculdades puramente moraes
-e as faculdades puramente intellectuaes. Ha homens para quem não é
-possivel despertar uma certa actividade especulativa sem submetter
-a sua intelligencia a um regimen esthetico previo. Este influxo é
-salutar e reage sobre o espirito e sobre o coração, podendo constituir
-espontaneamente um dos processos mais poderosos da pedagogia. É
-incontestavel que o convivio com as bellezas da natureza ou da arte
-purifica a sensibilidade, eleva o espirito, engrandece o horisonte
-onde a alma se move, torna o sentimento da dignidade mais vivo e mais
-delicado, expungindo do coração o que é vil e miseravel, senão para
-sempre ao menos emquanto dura a vibração do enthusiasmo. Estes são os
-fins indirectos, mas o fim essencial da arte é interpretar idealmente
-as bellezas da natureza e com ellas deleitar-nos.</p>
-
-<p>É uma das glorias mais formosas dos espiritos d’escol na civilisação
-moderna, dar um logar cada vez mais amplo á sensibilidade humana
-no banquete dos prazeres intellectuaes. H. Spencer, levado por um
-preconceito nacional que caracterisa exclusivamente o espirito
-inglez, antepoz d’um modo particular a utilidade ao sentimento
-esthetico, a sciencia á arte. Propugna este paradoxo com a finura do
-seu immenso talento,—representando uma inconsolavel mãe que perde o
-seu filho, cuja saude comprometteu pela ignorancia da hygiene, e a
-quem não consolará uma leitura da Divina Comedia de Dante no texto
-original.—Podem saber-se umas noções de hygiene e conhecer o italiano,
-sem que estas duas ordens de idéas se excluam, pelo contrario podem
-harmonisar-se e completar-se. Seria revoltantemente injusto privar o
-espirito da mulher de emoções tão delicadas e tão latificantes como o
-attractivo da poesia e os encantos da arte.</p>
-
-<p>As obras litterarias, d’um requinte subtil, são unicamente para os
-espiritos excepcionalmente cultos e delicados, mas as universaes
-bellezas da arte grega e latina, e muitas ha n’este genero, estão ao
-alcance de todas as intelligencias. Ao<span class="pagenum" id="Page_155">[Pg 155]</span> ler, por exemplo, o dialogo
-do divino Platão, o <i>Criton</i>, onde se narra pormenorisadamente a
-morte sublime de Socrates, ou a descripção que Herodoto faz da passagem
-do desfiladeiro das Termopylas, ou da batalha de Marathona, ninguem
-deixará de sentir uma emoção benefica e consoladora, pela belleza da
-narrativa e pela grandiosidade heroica dos factos. A circumstancia
-de obrigar o nosso espirito a pensar e a fallar da vida do mundo
-hellenico-romano não só nos incute aquelle delicado sabor esthetico,
-mas imprime ao nosso caracter aquella energia moral intemerata e
-athletica, que parecia feita do bronze da lança de Minerva. Meditamos
-n’aquella unidade e harmonia, que tanto distingue a civilisação grega
-e de que tanto carece a sociedade moderna. O nosso espirito chega a
-sentir saudades d’esse passado, vendo como essa unidade e essa harmonia
-foram impostas pelo sentimento artistico, cujo esplendor foi a funcção
-historica d’esse glorioso povo. Nenhuma nação do mundo, em tão limitado
-espaço e em tão pouco tempo, fez tanto e tão bem. O que nos resta da
-formosa Hellade, passados mais de dois mil annos, ainda nos maravilha
-e nos encanta, as deliciosas reliquias da sua alma são um lenitivo aos
-nossos desgostos, como o capitoso <i>nepenthes</i> de que falla Homero.</p>
-
-<p>Não é meu intuito fazer n’esta occasião um curso de sciencia da
-educação; porém não será fóra de proposito mostrar de modo rapido
-como a cultura esthetica do espirito humano pela litteratura e pelas
-bellas artes póde contribuir para o seu aperfeiçoamento moral. Querendo
-esclarecer esta questão basta analysar as relações que unem o bem e
-o bello, visto que as lettras e as bellas artes são as expressões do
-bello, e que a idéa do bem serve de guia a tudo o que póde contribuir
-para o nosso aperfeiçoamento. Ha quem sustente a these opposta, J. J.
-Rousseau trata com desamor as sciencias e as artes porque vê n’ellas um
-instrumento não de progresso moral mas de corrupção. O genio grego e
-romano era d’uma opinião opposta, admittindo quasi a identidade do bem
-e do bello, e confundindo muitas vezes as duas idéas. O bello e o bem
-dimanam d’uma unica idéa, a idéa de ordem que é tão precisa á esthetica
-como á moral. Evidentemente o bello não poderia existir na arte sem
-a harmonia, a regularidade; em pintura as leis da perspectiva, da
-proporção, impõem-se ao artista; a musica tem como condição, a medida e
-o rhythmo; o drama não poderá libertar-se das<span class="pagenum" id="Page_156">[Pg 156]</span> tres unidades no tempo,
-no espaço e na acção: ora é obvio que é sempre a idéa de ordem que se
-manifesta n’estas concepções sob aspectos diversos. Succede o mesmo em
-moral, a ordem é uma condição da virtude. O homem honesto carece da
-razão, do senso commum e da medida que regula todos os seus actos.</p>
-
-<p>Ha uma relação intima entre o bem e o bello; porque teem um principio
-commum, poder-se-hia mesmo, dentro de certos limites, substituir o
-gosto esthetico á consciencia moral. A harmonia reinaria em todos os
-nossos actos tendo o bello invariavelmente, na sua significação mais
-grandiosa, como norma do procedimento. O bello repelle a grosseria
-e a bruteza, é sempre fiel á honra, á pollidez e á virtude. É além
-d’isso desinteressado, não serve senão para deleitar a alma; perante um
-objecto bello não somos egoistas, satisfazemo-nos em contemplal-o, não
-desejamos appropriar-nos d’elle para uso exclusivo.</p>
-
-<p>O gozo esthetico affasta as paixões ruins e depura a alma; com effeito
-depois de um homem ter passado horas na comtemplação ou leitura das
-grandes obras onde ha opulencia de belleza, não poderá entregar-se ás
-brutalidades da embriaguez e das paixões degradantes.</p>
-
-<p>Ha distracção mais fina e mais delicada, conforto moral mais consolador
-do que a leitura do <i>Prometheu</i> de Eschylo, da <i>Antigone</i> de
-Sophocles, ou da <i>Historia da guerra do Peleponeso</i> de Thucydides?</p>
-
-<p>As bellas lettras não corrompem o homem, o que o corrompe é a riqueza,
-e esta coincide quasi sempre com as epochas de desenvolvimento
-artistico e litterario: d’ahi vem a confusão de se attribuir, como na
-<em>renascença</em>, a decadencia moral ás artes, quando ella provém do
-excesso de riqueza. Com effeito o bello tem fórmas que são estranhas
-ao bem; Cesar, ás vezes, fez uso immoral do seu genio, mas a nossa
-admiração e o nosso criterio distingue bem dos seus vicios o seu
-extraordinario heroismo.</p>
-
-<p>Ha homens d’uma grande inferioridade moral que manifestam grande
-admiração pelas artes. Ludovico de More, duque de Milão, que passou
-politica e estheticamente por um grande principe, e que protegeu
-copiosamente as artes, chegando a fundar uma academia na sua côrte,
-retribuindo largamente os grandes artistas Bramante e Leonardo de Vinci
-tem uma vida de tyranno cheia de perversidades e de crimes.<span class="pagenum" id="Page_157">[Pg 157]</span> Outro
-exemplo assaz saliente é Nero. Modernamente póde citar-se Napoleão I
-que é um todo extraordinario e de quem de Candolle, fazendo-lhe um
-retrato moral execravel diz que tinha um fraco sentimento das artes
-plasticas e nenhuma disposição para a musica, sem embargo de ter
-ostentado que as amou. Sem duvida todos os tyrannos, que protegem
-as artes é mais pela vaidade propria e como chamariz da admiração
-alheia, do que pelo sentimento intimo da contemplação do bello.
-Conseguintemente estes não podem servir de norma para apreciar a acção
-moral do sentimento artistico.</p>
-
-<p>«Na transmissão educativa transformada ao impulso da civilisação
-moderna ha, como consequencia de grandes causas de erro,
-alterações pathologicas individuaes que se podem grupar em duas
-classes—<em>alterações anatomicas e alterações funccionaes</em>.<a id="FNanchor_77" href="#Footnote_77" class="fnanchor">[77]</a></p>
-
-<p>Este segundo grupo ainda convem dividil-o em <em>perturbações da vida
-animal e perturbações da mentalidade</em>.</p>
-
-<p>Não é que estas differentes anomalias se destaquem realmente e possam
-apparecer exclusivamente sós n’um dado individuo, mas pela razão de
-todas as classificações—a commodidade e o methodo de estudo.</p>
-
-<p>O typo normal especifico do homem actual soffre, em virtude da
-adaptação escolar um desvio bastante notavel e importante, no ponto
-de vista anthropologico que comprehende o individuo, a especie e as
-sociedades.</p>
-
-<p>A alteração d’este typo é o resultado das deformações a que o individuo
-é sujeito durante a actividade escolar. Estas deformações são o
-producto das posições viciosas que tomam os alumnos ou que lhes fazem
-tomar no exercicio quotidiano de desenvolvimento intellectual e de
-acquisição scientifica.</p>
-
-<p>Este exercicio prolongado por mezes e annos, nas más condições
-mesologicas que ordinariamente se encontram na escola, e sem a devida
-compensação do exercicio physico, bem pensado e dirigido, constitue
-um agente poderoso de transformação individual que a hereditariedade
-reforça e fixa, já pela tendencia transmittida, já pela transmissão de
-mudança que o habito operou no individuo.</p>
-
-<p>N’estas considerações abrangemos com a maxima generalisação<span class="pagenum" id="Page_158">[Pg 158]</span> todas as
-modificações de que é susceptivel o individuo humano convencionalmente
-adaptado ao meio escolar.</p>
-
-<p>Especialisando convenientemente, encontramos no primeiro grupo definido
-os desvios da columna vertebral.</p>
-
-<p>D’esta classe só pretendemos estudar, conforme o nosso ponto de vista
-particular, os desvios <em>não symptomathicos</em> de qualquer affecção.</p>
-
-<p>Excluidos estes apresentam-se-nos na escola dois generos de incurvações
-rachidianas:—<em>incurvações antero-posteriores e incurvações
-lateraes</em>.—Pertencem ao primeiro genero a <em>cyphose</em> e a
-<em>lordose</em> e ao segundo a <em>scoliose</em> como especie unica, mas
-com variedades mais ou menos accentuadas.</p>
-
-<p>A cyphose dá uma incurvação exagerada á espinha dorsal e é
-ordinariamente limitada á região dorsal, pelo que póde considerar-se
-como uma ampliação da curvatura d’essa região. É produzida pelas
-attitudes demoradas, com o dorso curvado, lendo, escrevendo ou
-costurando, e devida, em parte, á necessidade creada pela myopia
-de inclinar muito o tronco para approximar os olhos do trabalho em
-execução.</p>
-
-<p>Esta especie de desvio encontra-se mais frequentemente do que parece e
-nem sempre se torna notavel. Mas observa-se vulgarmente nas modernas
-gerações que passam a sua adolescencia na escola um arqueamento
-pronunciado no dorso e a saliencia posterior anormal dos hombros,
-projectando para diante a cabeça e o pescoço. É o que se encontra mais
-frizantemente na velhice mais adiantada, principalmente nos individuos
-cuja profissão ou habito obriga á incurvação prolongada do tronco, por
-exemplo, escrivães, costureiras, cavadores. Na outra especie d’este
-genero—a lordose—a convexidade da curvatura é anterior e dá-se na
-região lombar e quando muito na cervical. É uma incurvação que tem mais
-geralmente logar nas mulheres e que, como deformação escolar tem a sua
-etiologia na attitude forçada a que são obrigadas as alumnas para se
-manterem direitos em assentos sem espaldar.</p>
-
-<p>Por muito distantes que pareçam estar estas ideias, ha entre ellas uma
-relação mais proxima, infelizmente do que entre escola e educação;
-porque tal como educação e escola se consideram hoje, o que se adquire
-mais facilmente do que uma educação bem dirigida e equilibrada é um
-certo grau de morbidez caracteristico dos individuos que vivem em
-logares<span class="pagenum" id="Page_159">[Pg 159]</span> restrictos e que são adaptados a um modo de vida artificial e
-anomalo.</p>
-
-<p>A escola, como equivalente de estufa ou de viveiro, dá productos
-de degenerescencia que são o resultado mais contraproducente da
-civilisação moderna, d’este pretendido progresso humano que nos leva
-por vezes a um pessimismo doloroso e desolador em vez de nos conduzir a
-um aperfeiçoamento a que já teria decerto chegado a nossa especie, se
-varios elementos perturbadores não influissem na sua evolução.</p>
-
-<p>É que realmente tem-se desenvolvido mais a intelligencia do que a
-energia physica e alcançou-se com este desequilibrio uma tal devassidão
-dos elementos psychicos na educação que se obtem frequentes resultados
-negativos, agora, isto é, na epoca em que os programmas attingiram o
-maximo desenvolvimento.</p>
-
-<p>Se collocarmos em parallelo esta exhuberancia dos programmas e do
-ensino intellectual com a marcha evolutiva da educação physica e
-moral e com a nosographia, particularmente na applicação á escola,
-tornar-se-ha bem avultante, apesar de todos os aperfeiçoamentos
-apparentes, o amesquinhamento das raças, mesmo nas manifestações
-intellectuaes, que tanto se obstinam as boas sociedades em fazer
-realçar, embora á custa da salubridade individuar e collectiva,
-produzindo a final um definhamento cujos signaes se pronunciam cada
-vez mais nas descendentes das velhas raças europeas civilisadas, mas
-decadentes.</p>
-
-<p>Esta conclusão é tanto mais legitima quanto maior numero de exemplos a
-Historia apresenta de genios, de sabios, de celebridades de diversos
-typos, que representam em grande parte a negação da escola, e foram
-comtudo grandes, livres na sua expansibilidade genial, e vieram a
-occupar as culminancias sociaes, como as aguias e os açores nas
-eminencias dos rochedos olhando o mundo com o desprezo que lhe permitte
-a potencia das suas azas e das suas garras.</p>
-
-<p>Justamente, muitos genios, precisaram, para mais largamente exercitarem
-o seu vôo, forçar os gradeamentos tristonhos das gaiolas de educação
-a que em vão pretenderam sujeital-os e para alguns, como Darwin, por
-exemplo, só depois de passado o tempo escolar poderam manifestar as
-suas aptidões, porque na escola eram tidos como menos aptos.</p>
-
-<p>O que é tristemente certo e independente de qualquer pessimismo é
-que, apesar da extraordinaria ampliação dos<span class="pagenum" id="Page_160">[Pg 160]</span> programmas de ensino,
-os sabios que ainda hoje ha e os que ainda são robustos pertencem á
-geração anterior, contemporaneos de Chevreul, e anteriores ainda ao
-movimento escolar moderno, emquanto que da geração actual, sahida da
-estufa educativa não se distinguem, proporcionalmente, na quantidade
-e na qualidade, os genios, os sabios, por estudos, por descobertas
-que possam tornal-as equivalentes a Pasteur, a Trousseau, a Broca, a
-Lombroso, a V. Hugo, a Tourgueneff, a Wagner, a Delacroix, e a tantos
-outros que, por assim dizer, monopolisaram a originalidade, o poder
-descobridor e inventivo que tem apenas um echo nas sociedades hodiernas.</p>
-
-<p>O ensino collectivo, escolar, restricto, apenas mais complicado,
-mas não muito mais vasto do que nas epochas passadas, fornece á
-vida pratica productos de fabrica, industriaes levando a respectiva
-marca—os stigmas da degenerescencia. São resultados de tentativas
-frustres, talvez typos de transição, mas a sociedade não se acha
-realmente mais adiantada, menos viciosa, antes pelo contrario. E se,
-nas revelações exteriores da actividade commum, ainda se admira alguma
-obra grandiosa como a celebração do centenario da Republica franceza,
-essa maravilha é feita de passadas glorias, é obra de adultos e de
-velhos experimentados e sabedores, é resultante de exforços conduzidos
-scientificamente de outras eras, o aproveitamento de descobertas
-anteriores; o que tem de novo é a fórma e a applicação. Tal é, por
-exemplo, o phonographo Tainter—Edison. É preciso lembrar que a torre
-Eiffel não se ensina a construir na escola.</p>
-
-<p>Seria de certo exigir muito, mas por isso bastam á escola principios,
-noções, idéas, e a escola de hoje, moldada nas reformas recentes, tem
-pouco d’esse indispensavel material, por muito que lá se trabalhe;
-porque ha sensivelmente falta de ordem, de equilibrio, de methodo,
-e d’este trabalho desordenado sae, como no poema surprehendente de
-V. Hugo—<i xml:lang="fr" lang="fr">Puissance egale bonté</i>—um <em>gafanhoto brilhante</em>
-mas... destruidor de culturas. Será isto uma consequencia da
-degeneração das raças que habitam o velho continente ou simplesmente o
-resultado da educação como até aqui tem sido dirigida? É o que tratamos
-de estudar.</p>
-
-<p>Em primeiro logar as nações arrastadas por uma corrente de
-industrialismo teem hoje o triplo fim—industria, commercio e luxo.
-Desde muito tempo que a actividade civilisada<span class="pagenum" id="Page_161">[Pg 161]</span> se reduz totalmente
-á industria, tendencia que mais se accentuou desde o começo d’este
-seculo. O principio é a fabrica, o meio é o commercio e o fim é o luxo.</p>
-
-<p>De modo que cada vez é mais pequena a esphera da actividade
-desinteressada, scientifica ou artistica. Hoje tudo quanto trabalha não
-tem singelamente como fim a existencia e o bem estar normal, primitivo;
-ha em vista o luxo e a gloria, que é tambem um luxo.</p>
-
-<p>Na consecução d’este fim multiplo a humanidade desviada da sua linha
-natural de aperfeiçoamento entra no dominio da pathologia. Esta
-explica-nos como, a despeito do progresso de todas as epochas, dos
-seculos passados e do presente, as raças que se chamam civilisadas vão
-cahindo n’uma degeneração tristissima, porque, como dizia Theophilo
-Gautier, a ruina humana é a mais triste das ruinas.</p>
-
-<p>As sociedades tem ainda os grandes contagios, a tuberculose, o
-arthritismo, o crime, o alcoolismo e variadas fórmas de nevrose que
-constituem um grupo nosologico á parte e o assumpto de um vasto estudo,
-porque o industrialismo usurpa em seu favor os mais generosos exforços
-e arrasta até os artistas e os homens de sciencia, e os hygienistas
-mal podem vibrar a sua palavra auctorisada no meio do ruidoso labor
-dos tantos industriaes e mal conseguem vencer a astucia de tantos
-<em>industriosos</em>.</p>
-
-<p>Obedecendo á mesma lei, a escola é tambem uma fabrica onde se trabalha
-em <em>alta pressão</em> conforme a phrase do dr. J. Rochard, produzindo
-o que este illustre hygienista francez chama <i xml:lang="fr" lang="fr">petits savants à
-lunettes, myopes, chétifs bourrés de chiffres et de formules</i>...</p>
-
-<p>Esta adulteração não póde passar sem reparo perante aquelles que prezam
-sinceramente a sciencia e as legitimas manifestações intellectuaes,
-visto que a cultura, como ella é presentemente feita, dá productos
-analogos aos que uma horticultura banal obtem pela transformação de
-plantas naturalmente simples e bellas em monstros botanicos para
-admiração do vulgo e vaidade do jardineiro.</p>
-
-<p>Com os primeiros exercicios escolares começam as deformações anatomicas
-e consequentemente as alterações funccionaes que tomam facilmente um
-feitio peculiar de modo que a escola, fóra dos preceitos, muitas vezes
-da hygiene mais elementar, entra largamente na secção etiologica da
-pathologia geral, onde, com sentimento, não vemos a menor adhesão<span class="pagenum" id="Page_162">[Pg 162]</span>
-especifica a este grupo de causas, a não ser muito largamente.</p>
-
-<p>Este esquecimento admira-nos tanto mais quanto achamos o parentesco
-pathogenico de muitas lesões e desvios anatomico-physiologicos na
-nosologia escolar.</p>
-
-<p>É preciso não esquecer um só momento que é dos primeiros annos que
-depende o resto da existencia de cada homem e que abandonado ou mal
-dirigido n’esses primordios da vida fica vitaliciamente entregue á sua
-hereditariedade e ás commoções do meio social e climaterico.</p>
-
-<p>Fallámos da hereditariedade e parece-nos dever declarar aqui que este
-importantissimo factor não fica por nós posto de parte no estudo da
-nosographia escolar a que nos dedicamos. Mas se effectivamente a
-creança vem para a escola na posse de uma herança morbida qualquer,
-a escola não modifica vantajosamente, nem no physico nem no moral, e
-muitas vezes, nem no intellecto, o individuo que lhe foi confiado.</p>
-
-<p>Pelo contrario, as mais das vezes, a escolariedade imprime á creança ou
-ao adolescente os caracteres morbidos que mais se accentuam de geração
-em geração, pela hereditariedade.</p>
-
-<p>N’um precedente estudo indicamos as alterações anatomicas de que o
-individuo humano é passivel na escola<a id="FNanchor_78" href="#Footnote_78" class="fnanchor">[78]</a> e dividimos as alterações
-funccionaes em dois grupos:—perturbações da vida animal e perturbações
-mentaes.</p>
-
-<p>Procuraremos por ora occupar-nos um pouco d’esta primeira sub-divisão.</p>
-
-<p>O que se nos impõe logo como defeito escolar é a insanidade commum a
-todas as acumulações humanas, como de quaesquer reuniões de animaes em
-espaço limitado e sempre demasiadamente acanhado.</p>
-
-<p>Todas as vezes que ha agglomeração de individuos que precisam de ar
-para viver, e teem de ficar encerrados n’um recinto mal ventilado,
-ou de, modo nenhum ventilado, é claro que vão cerceiando uns aos
-outros o ar de que cada um carece. Ao cabo de uma hora ou ainda menos,
-acha-se a atmosphera sensivelmente modificada, diminuida no seu
-oxygenio e augmentada no gaz carbonico, alem de outros productos de
-desassimilação que se eliminam pelos pulmões e pela pelle. Herscher
-demonstrou pelo calculo que n’uma aula tendo 8 metros cubicos por
-alumno a viciação de ²⁄₁₀₀₀ de<span class="pagenum" id="Page_163">[Pg 163]</span> anhydrido carbonatico é attingida em
-uma hora, se não se estabelece a ventilação. Attendendo a que a maior
-parte dos estabelecimentos escolares não fornecem, mesmo dada alguma
-ventilação, aquelles 8 metros cubicos a cada alumno, principalmente nos
-dormitorios, póde concluir-se, embora grosseiramente, que a viciação
-da atmosphera n’estes institutos é mais consideravel do que a media
-fornecida pelo calculo de Herscher.</p>
-
-<p>O anhydrido carbonico vae-se diluindo no ar e, logo que exceda a
-proporção de 3 a 4 por 1000, este torna-se irrespiravel. Ora a
-ventilação tem sido um problema de solução delicada e ordinariamente
-não se faz bem, porque quasi nunca as edificações escolares satisfazem
-a esta exigencia, entre nós e mesmo n’outros paizes, se prestarmos fé
-ás queixas de hygienistas e visitadores de escolas do estrangeiro.</p>
-
-<p>O collegial soffre, pois, durante grande parte do dia e portanto
-durante grande parte da sua vida, a influencia do ar deleterio, e
-patenteia-se ao observador mais especialmente instruido a anemia
-caracteristica dos individuos que persistem muito tempo em logares mal
-arejados.</p>
-
-<p>Combinando a falta do ar com a falta de movimentos necessarios ao
-regular desenvolvimento do organismo tem-se uma grande diminuição da
-vitalidade geral, uma diminuição da capacidade total respiratoria, e
-portanto uma debilidade que predispõe para qualquer estado morbido
-determinado pela incidencia das causas pathogenicas. De facto a vida
-escolar predispõe para a tysica, já pela falta de ar livre, já pelas
-attitudes contrafeitas que originam deformações da espinha dorsal e
-do thorax e dão perturbações da respiração, o que, conjunctamente com
-a mobilidade demasiado restricta que traz a atrophia dos orgãos, dá a
-apparencia estiolada e o fundo morbido correspondente.</p>
-
-<p>Além d’isto, ha uma actividade cerebral forçada, exaggerada que rouba
-aos outros orgãos o fluido nutritivo, fatiga os centros nervosos e
-contribue para o desequilibrio funccional que de ordinario se observa
-nos escolares.</p>
-
-<p>A este respeito diz o professor Peter: «Não ha só trabalho excessivo
-e reparação insufficiente, ha ruminação do ar nas salas de estudo mal
-ventiladas durante a estação quente e de modo algum na estação fria,
-ruminação do ar nos dormitorios menos arejados do que as salas de
-estudo, ha durante a maior parte do dia a clausura longe do sol, isto
-é o estiolamento, a<span class="pagenum" id="Page_164">[Pg 164]</span> immobilisação nos bancos, isto é, os musculos em
-repouso e o cerebro em trabalho forçado. E tal que tinha nascido para
-bom cultivador saudavel, torna-se um tuberculoso forte em themas.»</p>
-
-<p>Quando tudo isto fosse apenas previsão do nosso espirito ou exhalação
-acrimoniosa de um pessimismo da moda, não seriam confirmadas estas
-observações pelos resultados da estatistica.</p>
-
-<p>Assim, conforme a estatistica de Finkelnburg, em Berlim por 100
-creanças que morrem tysicas ha 4,81 de 5 a 10 annos de idade; 12,96
-de 10 a 15 annos e 31,88 de 15 a 20 annos. Vê-se que esta mortalidade
-augmenta com o numero de annos e como o ensino é mais desenvolvido e
-complicado quanto maior é a idade escolar, póde concluir-se, tendo
-em vista a situação da creança e do adolescente na escola, que esta
-favorece a evolução da terrivel doença.</p>
-
-<p>Quando menos encontram-se nos escolares, e com certa frequencia
-as congestões abdominaes, produzidas pela estação sentada durante
-muito tempo e as congestões de cabeça, que se traduzem ás vezes por
-expistaxis e ordinariamente por cephalalgias repetidas e cujo numero de
-casos varia de 20 a 40 por 100 conforme os estabelecimentos (Arnould).
-Michel Levy conta 104 vezes cephalalgia nos alumnos da Escola
-Polytechnica, sobre 360 casos de doença.</p>
-
-<p>Estes accidentes são attribuidos ao mau funccionamento pulmonar nas
-posições contrafeitas que os alumnos tomam nas salas de estudo.</p>
-
-<p>Serão muitas vezes attribuiveis á fadiga cerebral, principalmente
-quando se trata de preparar os exames.</p>
-
-<p>O estudo nocturno, alem da demorada applicação da vista de dia, é
-causa não só da myopia tão vulgar na classe escolar, mas de varias
-doenças oculares determinadas pelo excesso de funcção, estando ou
-não predisposto o alumno para taes desvios pathologicos que são
-tambem muitos frequentes nos escolares. Ordinariamente acontece que
-o trabalho de leitura e escripta muito prolongado e feito em más
-condições com a cabeça inclinada para a frente, circulação viciosa e
-luz insuficiente, produz uma tensão vascular das membranas do olho,
-estase sanguinea e muitas vezes inflamações, atrophia da choroidea que
-durante a acomodação forçada comprime as arterias, diminuindo as trocas
-nutritivas pelo obstaculo posto á circulação.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_165">[Pg 165]</span></p>
-
-<p>É incontestavel a perturbação da physiologia da retina pelo cançaço
-do orgão, pela illuminação intensa, que deslumbra em certas salas
-d’estudo e que é em geral defeituosamente conduzida, sendo notavel
-que, precisamente porque o orgão visual por muito melindroso carece de
-numerosos e delicados cuidados, faltam quasi ou absoluto nas escolas.</p>
-
-<p>Iriamos longe se descrevessemos minuciosamente com as suas relações
-de causalidade todas as modificações pathologicas que a bem dizer
-se fabricam na escola, por isso limitamo-nos a uma exposição breve,
-abrangendo nos seus contornos geraes a nosologia escolar.</p>
-
-<p>Pondo de parte conforme nosso plano, as alterações physico-mechanicas
-cujas principaes tracejamos n’outro estudo, podem reduzir-se todas as
-perturbações mencionadas a erros de circulação e nutrição.</p>
-
-<p>Viciadas simultaneamente estas actividades organicas, a constituição do
-sangue altera se consequentemente e amplia o movimento de dessimilação,
-a depauperação do organismo determinada pela adaptação a condições
-anormaes de existencia.</p>
-
-<p>D’ahi resulta para o systema dominante de toda a organisação
-superior—para o systema nervoso—a incorrecção que nos individuos
-affectos da escolaridade, toma uma fórma particular, caracterisada, em
-geral por uma demasiada susceptibilidade dos orgãos, dores nevralgicas
-visceraes, nauseas lypothimias, palpitações e, finalmente, por
-modificações da personalidade, e da mentalidade que serão objecto de
-outro estudo.»</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_166">[Pg 166]</span></p>
-
-
-<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_69" href="#FNanchor_69" class="label">[69]</a> Para que a educação tenha toda a sua influencia, é
-preciso que nenhum vicio de conformação, nenhum estado pathologico,
-nenhuma condição hereditaria transmittida por uma longa série de
-gerações tenham tornado certos centros (nervosos) absolutamente
-inexcitaveis. Relatorio de M. Sciamanna nos actos do 1.ᵒ congresso
-d’anthropologia criminal p. 201—Roma, 1887.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_70" href="#FNanchor_70" class="label">[70]</a> A este respeito diz Spencer (<i xml:lang="fr" lang="fr">Morale des Prisons</i>)
-«É um signal de vistas limitadas obrigar o condemnado ao trabalho;
-assim que elle se vir livre, voltará a ser o que era d’antes. A
-impulsão deve ser interior, para que possa continuar a sentil-a fóra
-da prisão.» E lord Stanley em um discurso parlamentar, exclama: <em>A
-regeneração do homem nunca póde ser um processo mecanico</em>.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_71" href="#FNanchor_71" class="label">[71]</a> Video meliora proboque, deteriora sequor—<i>Ovidio</i>.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_72" href="#FNanchor_72" class="label">[72]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Les irresponsables devant la justice</i>, pag. 212, A.
-Riant.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_73" href="#FNanchor_73" class="label">[73]</a> Dr. Saffray, <i xml:lang="fr" lang="fr">Histoire de l’homme</i>, pag. 134.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_74" href="#FNanchor_74" class="label">[74]</a> E. Ferri, citado por E. Tarde no seu artigo sobre o typo
-criminal. <i>Rev. philos.</i>, junho, 1885.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_75" href="#FNanchor_75" class="label">[75]</a> <i>A arte a poesia na creança</i>, por Bernardo Perez.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_76" href="#FNanchor_76" class="label">[76]</a> Trecho já publicado d’uma lição, feita no Curso Superior
-de Lettras, quando tivemos a honra de reger a cadeira de Litteraturas
-classicas (1887).</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_77" href="#FNanchor_77" class="label">[77]</a> <i>Revista de Educação e Ensino</i>, n.ᵒ6 e 8, IV anno,
-por J. B. Ferreira.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_78" href="#FNanchor_78" class="label">[78]</a> <i>Revista de Educação e Ensino</i>, 4.ᵒ anno, n.ᵒ 6.</p>
-
-</div>
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_167">[Pg 167]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="VII">VII</h2>
-</div>
-
-<div class="section">
-
-<p>Os ensinamentos e o crime. A idéa da responsabilidade criminal na
-historia. O alcool perante a hygiene physica e moral. O suicidio.
-Observações psychologicas em condemnados á morte. A estatistica
-criminal portugueza. A educação como elemento psychogenico e
-correccional.</p>
-</div>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p>Patenteei com veneração o facto civilisador das escolas nas cadeias
-e ainda mais do que o facto, saudei sobretudo o grande principio que
-representa o germen da moralisação dos condemnados.</p>
-
-<p class="right">
-D. ANTONIO DA COSTA.<br />
-</p>
-</div>
-
-
-<p>Das medidas prophylaticas contra o crime, com o fito na innocuidade
-dos delinquentes, aquella de que ha mais a esperar, é sem duvida da
-educação. Se as inclinações para o crime são devidas á idiosyncrasia
-ou a lesões somaticas, podem em parte combater-se pela educação
-physica. Diz o proverbio que a boa mão de rocim faz cavallo, e a ruim
-de cavallo faz rocim. Não póde negar-se que a educação é o primeiro
-factor na acquisição dos habitos e que são estas influencias d’origem,
-que formam quasi por completo o nosso caracter. É nos exemplos dos
-paes, nas acções beneficas do lar que bebemos o que ha de mais eficaz
-em o governo da nossa alma. Ao contrario, o que damnifica mais o
-coração é<span class="pagenum" id="Page_168">[Pg 168]</span> a influencia da familia, quando é deleteria e má. Diz
-um adagio portuguez que passarinho que n’agua se cria sempre por
-ella pia. É esta agua psychogenica que sobretudo faz do individuo
-um innocuo, um cidadão prestabilissimo ou um perverso. A perversão
-póde ser muitas vezes hereditaria, mas é mister desviar quanto
-possivel essa hypothese, acceita-la discricionariamente e sempre,
-equivale a submetter-nos passivos ao seu imperio bruto e fatal. E
-hoje está-se abusando desmesuradamente, na propria sciencia, da
-explicação hereditaria, muitos escriptores sempre que não podem
-explicar na psychologia corrente certos factos abrigam-se sob a egide
-da hypothese—hereditariedade. Mas tal expediente é uma deserção do
-criterio scientifico. É obvio que ha inclinações herdadas, mas a sua
-origem está na educação e nas influencias mesologicas. Enriquecer
-pois pela educação o espirito é ampliar o campo dos motivos elevados
-sobre que vem a actuar a vontade. Menandro disse «que dar educação
-á mulher é augmentar o veneno d’uma vibora» paraphraseando podem
-dizer os penologos determinantes «dar instrucção ao delinquente é
-augmentar o veneno d’uma vibora.» E de feito, admittida a existencia
-do perverso congenito e incorregivel, a instrucção era um instrumento
-que vinha augmentar a peçonha da sua deprimente acção social. Porém o
-que não póde acceitar-se é que todos os criminosos sejam congenitos e
-incorrigiveis.</p>
-
-<p>A estatistica criminal com referencia á instrucção primaria tem
-illudido muita gente, porque tem visto no numero dos criminosos
-augmentar a lista dos que sabem ler e escrever, ora esse augmento é
-natural consequencia de ter crescido o numero de escolas. Se todos os
-cidadãos do paiz soubessem ler e escrever como era muito de desejar,
-nenhum criminoso era analphabeto. O que prova tudo isto, é que a
-instrucção primaria tem sido felizmente cada vez mais diffundida.</p>
-
-<p>A etiologia do crime tem de procurar-se nas condições biologicas e
-nas circumstancias sociaes. A escola anthropologica é incompleta e
-exagerada, incompleta porque descura os factores sociaes e desdenha o
-estudo do direito criminal jurisprudente; exagerada, porque pretende
-explicar, fóra dos justos limites scientificos, tudo pela biologia e
-pela pathologia.</p>
-
-<p>O attentado contra a propriedade é ordinariamente um producto de
-factores sociaes, o attentado contra a honra e<span class="pagenum" id="Page_169">[Pg 169]</span> contra a vida é muitas
-vezes determinado por factores pathologicos, porém o crime é sobretudo
-um phenomeno social. O que a escola anthropologica juridica chama
-factores pathologicos do crime, como o alcoolismo, a degenerescencia
-physica, não são mais do que effeitos das deprimentas condições sociaes
-do delinquente. Se ministraram ao ser humano desde a vida intra-uterina
-todas as condições hygienicas favoraveis á creança, todos os fecundos
-elementos d’uma salutar educação physica, d’uma boa educação
-intellectual e d’uma solida educação moral, ver-se-ha ao fim de poucas
-gerações com a sensivel rehabilitação de homem animal e com a elevação
-do homem moral, a deminuição relativa do crime.</p>
-
-<p>Não ha anthropologicamente o chamado <em>typo criminoso</em>, os
-caracteres anatomicos encontrados são communs a muito homem probo
-e honesto. A <em>tatuagem</em>, por exemplo, encontra-se tanto nos
-marinheiros, soldados, pastores como nos criminosos, é um ornato
-esthetico que nasce do ocio e no occidente europeu é tradicional esse
-costume na raça celtica. Hoje a tatuagem nos criminosos tende até a
-desapparecer, porque é para os tribunaes um signal de reconhecimento
-de identidade e sabem já quanto os prejudica na pratica do seu triste
-mister.</p>
-
-<p>É difficil corrigir o criminoso habitual e reincidente, desde que
-inveterado na perversidade, mas era provavel com boa direcção do
-sentimento moral desvia-lo d’essa senda, antes de a ter encetado. E
-esta emenda era tão possivel no criminoso habitual, como no criminoso
-d’accidente ou de occasião, porque ambos contrahiram livremente
-esse habito, ou aproveitaram a occasião. O enfermo epileptico ou
-dipsomaniaco, apezar d’uma rigorosa educação physica ou acção
-therapeutica é difficil de rehabilitar. Os actos violentos d’elle não
-são verdadeiros crimes, porque rouba ou mata, seja a quem fôr quando o
-seu accesso o ataca, em quanto o criminoso rouba ou mata, quando tem
-occasião opportuna. O primeiro é um doente que urge sequestrar até á
-cura, o segundo é um delinquente que é mister punir.</p>
-
-<p>A má educação exerce sobre o delinquente uma influencia mais corruptora
-do que o proprio meio social. Mas o criminoso não é inteiramente
-victima da fatalidade da educação nem da hereditariedade, elle tem
-o poder de reagir contra os impulsos internos da hereditariedade
-ou externos da educação, e qualquer mestre escola nos dá centenas
-d’exemplos que provam que o homem é por natureza livre.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_170">[Pg 170]</span></p>
-
-<p>Nunca a educação deixará de influir sobre o caracter, porque o seu
-fim é a acquisição dos habitos e segundo Rosmini Serbati, «habito
-considerado em relação á essencia da alma é o que accrescenta alguma
-cousa de bom ou de mau ao seu estado natural e por conseguinte põe a
-alma n’um estado melhor ou peior.»<a id="FNanchor_79" href="#Footnote_79" class="fnanchor">[79]</a></p>
-
-<p>Admittida a <em>cerebração inconsciente</em> ou melhor o automatismo
-psychologico, gerado pelo habito originario ou adquirido o homem
-póde commetter um crime, porque o principio da justiça que podia
-salva-lo póde ter permanecido como sepultado na noite silenciosa da
-vida directa. As theorias biologicas e hypnoticas explicam a seu modo
-este phenomeno, mas o principio scientifico que o governa ainda é
-desconhecido.</p>
-
-<p>O direito criminal, como funcção social importantissima, que é, não
-póde ser modificado em nome de hypotheses tam vagas.</p>
-
-<p>O sentimento da responsabilidade é tão fundo na consciencia humana
-que a ignorancia e a ingenuidade d’outras épocas tem levado o homem a
-estender de modo extravagante o sentimento da justiça e do castigo a
-actos de animaes.</p>
-
-<p>Nos seculos XIV e XV ainda o espirito humano teve uma curiosissima
-jurisprudencia criminal. Foi a que se referiu aos processos instaurados
-aos animaes. Se o animal podia ser preso e levado ao tribunal, o
-processo corria, em geral, no foro civil. Se os animaes não podiam ser
-capturados, então o tribunal ecclesiastico tomava conta da questão. No
-eleitorado de Moguncia houve um d’estes processos instaurado contra
-uma alluvião de moscas, que infestaram aquella localidade, o qual se
-tornou muito notavel por um despacho do juiz, que é do theor seguinte:
-...Vista a pequenez do seu corpo, e attendendo principalmente á sua
-tenra idade, entendemos por bem nomear ás rés curador e defensor para
-os fins convenientes. Este magistrado <i lang="la" xml:lang="la">ex-officio</i> defendeu
-com calor as suas clientes, não negou os estragos, demonstrou a
-criminalidade devida a causa de força maior, e pediu em conclusão um
-local para onde as moscas podessem ir viver tranquilamente sem causar
-prejuizo a ninguem. Instauraram-se processos similhantes a pardaes, por
-habitarem os telhados d’uma egreja e perturbarem os fieis nas<span class="pagenum" id="Page_171">[Pg 171]</span> suas
-orações, ás sanguesugas por corromperem as aguas do lago de Genebra,
-ás lagartas, aos gafanhotos e ás lesmas, por fazerem mal ás plantas.
-Na Suissa até os gallos eram sentenciados no tribunal e queimados em
-publico. Havia então a crença popular de que os gallos punham ovos, e
-que d’estes ovos malditos saiam serpentes e basiliscos. Os cavallos,
-burros, touros e porcos, accusados de homicidio voluntario, eram
-sentenciados á morte ou a soffrer diversas mutilações. Muitas vezes
-vestiam-lhes um facto de homem, para executarem com todo o rigor a
-pena de Talião. Os bodes, cabras e gatos que eram accusados de magia,
-eram condemnados, em geral, a morrer na fogueira com os seus donos,
-e, passaram negra vida n’essas épochas medievaes em que dominava a
-ignorancia e a feitiçaria.</p>
-
-<p>Esta extravagante jurisprudencia nasceu d’uma inducção
-illegitima—estender o que existe em nós a todo o ser vivo. O
-espirito tende a confundir a ordem da genese das suas idéas ácerca
-dos objectos extranhos com a ordem da genese dos proprios objectos.
-Ha uma disposição innata em dar realidade objectiva ao que é
-puramente subjectivo. Principalmente no espirito dos homens incultos,
-a familiaridade é geralmente confundida com a simplicidade, e na
-explicação de qualquer phenomeno seguem o caminho traçado pela evolução
-das suas idéas, imaginando d’este modo haverem explicado o facto que
-os preoccupava. Effectivamente, perante o seu espirito individual,
-o problema está resolvido, mas não o está perante a verdade logica,
-que carece do ser impessoal para se tornar scientifica. Illuminado o
-espirito pelo criterio da evidencia, todos os homens se sobmettem á
-verdade scientifica, porque entre a intelligencia de um sabio e a de um
-ignorante não ha differença de natureza é apenas uma differença de grau.</p>
-
-<p>Ninguem hoje ignora que o alcoolismo é uma das causas dominantes da
-pobreza moral e physiologica das classes populares.</p>
-
-<p>O doutor Delannoy, n’uma conferencia de physiologia e pathologia em
-que tratou do alcool, demonstrou que as bebidas espirituosas não são
-nem tonicas nem alimenticias. Constituem, apenas, excitantes que podem
-ser uteis, em certos casos, e dos quaes se deve usar com moderação.
-A excitação procurada produz-se á custa do estado geral; impede a
-nutrição, diminuindo o acido carbonio exhalado e a quantidade<span class="pagenum" id="Page_172">[Pg 172]</span> de
-urina emittida. Ora, está demonstrado que estes productos marcam a
-intensidade da nutrição organica. A sua diminuição, sob a influencia
-do alcool, enfraquece o organismo e traduz-se, entre os bebedores, por
-um estado de enfraquecimento vital que não tem analogo sob o ponto
-de vista physico, senão no que se encontra nos individuos affectados
-de tysica pulmonar. Por isso os bebedos offerecem pouca resistencia
-aos agentes morbificos e dão um largo contingente para as doenças
-epidemicas. O conferente demonstrou que o uso immoderado das bebidas
-espirituosas produz um grande numero de doenças, a maior parte das
-quaes são mortaes. Entre outras apparecem: a ulcera e o cancro do
-estomago, a gastrite chronica, a cirrhose, a hydropesia, a apoplexia,
-a albuminuria o <i lang="la" xml:lang="la">delirium tremens</i>, a demencia paralytica, etc. O
-doutor Delonnoy affirma que o abuso do alcool constitue uma das causas
-mais frequentes da miseria, da loucura e do crime.</p>
-
-<p>A embriaguez não é uma condição excepcional da especie humana, é
-commum a outros animaes, que igualmente são modificados no seu systema
-nervoso pela ingestão de substancias toxicas. Na dynamica do crime e
-na degenerescencia physica o alcoolismo é uma causa determinante e
-predisponente. É mister não o confundir nunca com a dipsomania.</p>
-
-<p>Ha dez annos que vive na Penitenciaria de Buenos Ayres um recluso
-de nome Ulisses Paganno. Este infeliz conta actualmente 36 annos de
-edade e entrou no carcere pouco antes de completar 26 annos, isto é,
-na plenitude da vida e possuindo medianas condições intellectuaes
-e aptidões artisticas, nos periodos tranquillos intermediarios da
-sua existencia procellosa. Levaram-o ao presidio cinco homicidios,
-praticados successivamente em momentos de embriaguez. Pouco tempo
-depois de se encontrar na Penitenciaria, tendo já dado signaes
-inequivocos de bons sentimentos e de costumes irreprehensiveis, um dia,
-e sem que pessoa alguma suspeitasse dos meios de que poude valer-se,
-visto que não tinha dinheiro, poude adquirir uma garrafa de aguardente.</p>
-
-<p>Quando ao fim da tarde Paganno sahiu da cella para ir trabalhar com os
-outros presos, a primeira coisa que fez foi approximar-se de um d’estes
-e cravar-lhe no coração um punhal que levava escondido. Dava-se porém,
-a circumstancia de que Paganno não conhecia a victima, comprovando-se<span class="pagenum" id="Page_173">[Pg 173]</span>
-tambem que ao commetter o crime se achava completamente embriagado.
-Pouco mezes mais tarde, tendo-se-lhe proporcionado tambem outro licor,
-na visita da manhã, ao ir um empregado inspeccionar a sua cella,
-Paganno, aproveitando um descuido, precipitou-se sobre elle, ferindo-o
-gravemente nas costas. Esta segunda punhalada ia tambem dirigida ao
-coração, mas por fortuna resvalou em uma das falsas costellas. Desde
-então empregam-se todas as precauções e é rara a occasião em que se lhe
-permitte sahir da cella. É necessario insistir em uma circumstancia:
-Paganno, não embriagado é um dos reclusos mais trataveis, inoffensivos
-e affectuosos que existem na Penitenciaria. Em 10 annos que conta
-de prisão ainda não perdeu os seus habitos de trabalhador, e vae
-para quatro annos entretem-se a domesticar e ensinar ratos. Ulisses
-é italiano de nacionalidade, porém falla correctamente o hespanhol.
-O seu estado de saude physica é relativamente satisfactorio e não
-apresenta nenhum symptoma accentuado de doença mental. A physionomia,
-porém, é repulsiva; tem grande mobilidade nos olhos, cerra os dentes
-com frequencia e o seu rosto toma em certas occasiões uma côr sombria
-e fatidica, que não inspira, na verdade, confiança alguma. Todos os
-que o observam ficam na crença de que Paganno é um desventurado louco
-que padece a monomania que podia chamar-se «homicida.» A sua pena
-será indifinida, dada a horrivel historia dos seus crimes e a feroz
-propensão para dar punhaladas no seu semelhante, emquanto experimenta
-os effeitos do alcool. Paganno está comdemnado a não gosar jámais
-liberdade, o que não lhe dá o minimo cuidado, pois, segundo affirmam
-os periodicos da localidade, é dos poucos reclusos que tem logrado
-identificar-se com a triste condição da soledade e retiro perpetuos.</p>
-
-<p>No dia 29 de julho a 1 de agosto realisou-se em Paris o congresso
-internacional para o estudo das questões relativas ao alcoolismo. As
-questões propostas pela commissão respectiva foram as seguintes: 1.ᵒ
-Consumo de bebidas e de alcooes. Estatistica comparada das vendas
-de bebidas nos differentes paizes. Relações entre o augmento do
-consumo do alcool e o desenvolvimento da criminalidade e da alienação
-mental. Meios de restringir o consumo de bebidas e de combater a sua
-influencia funesta. Quaes os resultados que teem produzido os dois
-systemas em vigor nos differentes paizes: o da liberdade concedida
-sob certas condições á venda<span class="pagenum" id="Page_174">[Pg 174]</span> de bebidas e o da auctorização previa?
-2.ᵒ Influencia nefasta do abuso das bebidas alcoolicas. Considerações
-medico-legaes sobre os delictos e crimes commettidos debaixo da
-influencia do alcoolismo. Meios legaes de prevenir as desgraças
-causadas pelo alcoolismo, como assassinios, incendios, suicidios, etc.
-3.ᵒ Bebidas sãs que se devem dar ás classes populares. Estabelecimento,
-pelas sociedades de temperança, de bufetes ou cantinas na proximidade
-das grandes officinas onde se reunam temporariamente muitos operarios.
-Meios de reconhecer rapidamente as falsificações das bebidas alcoolicas.</p>
-
-<p>Os moralistas attribuem principalmente á falta de crenças o suicidio
-e o crime, mas a essa causa é mister accrescentar a falta de recursos
-economicos. Para os que teem fome e miseria são insufficientes as
-consolações espirituaes, é mister que a civilisação ministre remedios
-materiaes. Alem dos factores pathologico-mentaes, a miseria, a ausencia
-do sentimento religioso, e as leituras d’uma litteratura dissolvente
-são principalmente a causa do crime e do suicidio. Estes dois productos
-da pathologia social são em maior numero nas cidades que nos campos,
-nos homens do que nas mulheres. Nos habitantes dos campos e nas
-mulheres, as crenças religiosas tem-se conservado mais vivas, emquanto
-que o operario da cidade deixou extinguir essa luz d’esperança e de
-consolo, sem que ponha outro sentimento equivalente na sua alma.</p>
-
-<p>Não se torna notavel pelos nomes esse longo obituario, mas torna-se
-horroroso pelos numeros. Na estatistica dos suicidios na França,
-durante o anno de 1887, encontra-se um numero horrivel—8:202. D’estes
-emigrados voluntarios da vida 6:434 eram homens e 1:768 mulheres.</p>
-
-<p>Entre os 6:434 homens, suicidados em 1887, conta-se 2:381 celibatarios,
-2:910 casados e 928 viuvos, e entre as 1:768 mulheres contam-se 513
-celibatarias, 796 casadas e 427 viuvas. A classe dos agricultores
-contribuiu n’esse mesmo anno com 2:020 homens e 594 mulheres para o
-suicidio. Sendo essa a classe mais numerosa da França, é esse numero
-proporcionalmente muito menor do que 1:772 homens e 504 mulheres que
-deu a classe operaria. Entre os proprietarios houve 591 suicidios de
-homens e 140 de mulheres, e nas profissões liberaes registaram se 340
-suicidios, sendo 197 de homens e 143 de mulheres. De todas as classes,<span class="pagenum" id="Page_175">[Pg 175]</span>
-a que proporcionalmente concorreu menos para o suicidio foi a dos
-criados de servir, que são realmente os menos accessiveis ás causas que
-deixamos apontadas.</p>
-
-<p>As utopias sociaes e a idealisação exaggerada de sentimentos
-phantasticos dando ao espirito como alimento planos irrealizaveis e ao
-coração aspirações chimericas são motivos frequentes do suicidio.</p>
-
-<p>Em primeiro logar é necessario expor as proporções em que se produzem
-em cada nacionalidade, formando o typo de um milhão, e consignando o
-numero de suicidios que lhe correspondem.</p>
-
-<table class="autotable bbox">
-<tr class="bb">
-<th class="br">Nações
-</th><th>
-Habitantes</th>
-<th class="bl br">Casos de suicidio por milhão
-</th></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Russia</td>
-<td class="tdr bl">93:000:000</td>
-<td class="tdr bl">31</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Austria-Hungria</td>
-<td class="tdr bl">40:500:000</td>
-<td class="tdr bl">174</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">França</td>
-<td class="tdr bl">38:500:000</td>
-<td class="tdr bl">150</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Grã-Bretanha</td>
-<td class="tdr bl">37:200:000</td>
-<td class="tdr bl">70</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Italia</td>
-<td class="tdr bl">30:200:000</td>
-<td class="tdr bl">37</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Hespanha</td>
-<td class="tdr bl">16:900:000</td>
-<td class="tdr bl">18</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Suissa</td>
-<td class="tdr bl">7:900:000</td>
-<td class="tdr bl">220</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Belgica</td>
-<td class="tdr bl">5:850:000</td>
-<td class="tdr bl">79</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Romania</td>
-<td class="tdr bl">5:400:000</td>
-<td class="tdr bl">52</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Turquia</td>
-<td class="tdr bl">5:900:000</td>
-<td class="tdr bl">40</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Suecia</td>
-<td class="tdr bl">4:700:000</td>
-<td class="tdr bl">99</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Hollanda</td>
-<td class="tdr bl">4:400:000</td>
-<td class="tdr bl">45</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Portugal</td>
-<td class="tdr bl">4:410:000</td>
-<td class="tdr bl">22</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Dinamarca</td>
-<td class="tdr bl">2:190:000</td>
-<td class="tdr bl">290</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Servia</td>
-<td class="tdr bl">2:000:000</td>
-<td class="tdr bl">66</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Noruega</td>
-<td class="tdr bl">1:990:000</td>
-<td class="tdr bl">194</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Prussia</td>
-<td class="tdr bl">20:000:000</td>
-<td class="tdr bl">181</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Baviera</td>
-<td class="tdr bl">5:300:000</td>
-<td class="tdr bl">127</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Saxonia</td>
-<td class="tdr bl">3:000:000</td>
-<td class="tdr bl">373</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Wurtemberg</td>
-<td class="tdr bl">2:000:000</td>
-<td class="tdr bl">104</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">Hannover</td>
-<td class="tdr bl">2:500.000</td>
-<td class="tdr bl">300</td></tr>
-</table>
-
-<p>A execução capital, além de ser uma pena irreparavel não influe
-beneficamente na moralidade social.</p>
-
-<p>Um jornal francez publicou a seguinte relação das execuções em França
-desde 1813: 22 de junho de 1813: na praça da Gréve, Perchette e sua
-mulher, crime de assassinio; 27 de julho de 1816, na praça de Gréve,
-Pleignier, Tolleron e Carbonneau; 23 de agosto de 1822: na praça
-da<span class="pagenum" id="Page_176">[Pg 176]</span> Gréve, Raoulx, Pommier, Goublin e Bories, os quatro sargentos
-da Rochella; 24 de janeiro de 1824, na praça da Gréve, Lecouffe e
-sua mãe—crimes de assassinio e roubo; 20 de abril de 1824: na praça
-de Gréve, Renaud, Delaporte e Ochard, os ultimos salteadores da
-floresta de Bondy; 26 de maio de 1826: na praça de Gréve, Ratta e
-Malagutti—crime de homicidio; 27 de julho de 1830: na praça de Greve,
-Bardon, Guérin e Chandellet, crimes do assassinio e roubo; 9 de janeiro
-de 1836: na barreira de R. Jacques, Fleschi, Pépin e Morin, n’esta
-epocha as execuções passaram a ser na praça da Roquette; 24 de março
-1843: na praça de Roquette, Norbert, e Deprá, crimes de assassinio de
-um operario e roubo de 32 francos! Pormenor curioso: a execução foi
-no dia da <i>Serração da velha</i> e a guilhotina esteve durante ella
-cercada de mascaras; 13 de março de 1858: na praça da Roquette, Orsini
-e Pietri, anarchistas; 13 de março de 1874: na praça da Roquette,
-Moreau e Bondas, crime de assassinio; 8 de setembro de 1878: na praça
-da Roquette, Barré e Lebiez, assassinio de uma leiteira; 10 de agosto
-de 1885: na praça da Roquette, Gaspard, o assassino do padre Delannay,
-e Marchandon, o amante de Joanna Blin, e assassino da sr.ᵃ Carnet; 3
-de outubro de 1886: na praça do Roquette, as execuções de Sallier e
-Allorto.</p>
-
-<p>Esta estatistica é incompletisissima, não menciona muitos
-guilhotinados, entre outros, os celebres Pranzini e Prado.</p>
-
-<p>Damos em seguida um extracto do relatorio que o abbade Faure, capellão
-da Grande-Roquete, dirigiu ultimamente ao ministro francez, e onde
-relata as observações que tem feito nos condemnados á morte. Ha seis
-annos que o abbade Faure exerce o referido cargo, e tem assistido
-a treze condemnados á morte, comprehendendo os dois assassinos de
-Auteil, executados ainda ultimamente.—Desde que principiei a exercer
-as minhas funcções como capellão do deposito de condemnados, tenho
-estado em contacto com um grande numero de condemnados á morte, que
-visitei durante um lapso do tempo variando entre quarenta e oitenta
-e sete dias. Todos, menos um, que pertencia á religião protestante,
-reclamaram os soccorros da religião com signaes mais ou menos
-assignalados de convicção ou de indifferença, conforme a educação
-que haviam recebido. Posso, pois, apresentar-vos os resultados das
-minhas observações sobre esta cathegoria de criminosos. O condemnado
-á morte, desde a sua<span class="pagenum" id="Page_177">[Pg 177]</span> entrada na cellula é preso de uma prostração
-profunda e que não desapparece senão depois de um espaço de tempo
-assaz prolongado. Todavia essa energia revela-se pouco a pouco, e a
-esperança de uma commutação de pena dissipa o terrivel effeito de
-sentença condemnatoria. O dever do capellão é alimentar esta esperança,
-fazer acreditar na possibilidade da annulação de uma sentença de
-morte, na clemencia do chefe do Estado. O infeliz aferra-se a todas
-essas esperanças de salvação, atem-se antecipadamente a este beneficio
-e compraz-se de boa vontade em esperar que a sua vida seja salva,
-mesmo depois dos delictos mais monstruosos. É facil então fazer-lhe
-entrever a sorte que o espera depois de uma commutação de pena. A
-grilheta perpetua perde todos os seus horrores para aquelle cuja
-cabeça está ameaçada, e é todo offegante que o miseravel, á medida que
-o termo fatal se approxima, interroga aquelles que o visitam sobre a
-esperança que elle póde ter. Os dias são penosos apesar das distracções
-que os guardas se esforçam em proporcionar aos infelizes. Os jogos,
-as leituras, o recreio, as visitas alteram um pouco a monotonia da
-cellula e algumas vezes parece que o condemnado se illude ácerca da
-sua terrivel situação. Mas a noite!... Quantas vezes eu tenho sido o
-confidente das torturas moraes que soffre o desgraçado! Se o somno
-chega por fim a fazer-lhe sentir a sua benefica influencia, quanto
-esse repouso é agitado, febril, penoso. Alguns confessaram me que
-prolongavam as suas vigilias muito pela noite adiante, esperando d’este
-modo não accordarem senão bastante tarde no dia seguinte. Vã esperança!
-O despertar chegava sempre á hora em que é dado o terrivel signal.
-Em onze condemnados a cujos ultimos momentos assisti, tres sómente
-estavam adormecidos quando se lhes foi dar a terrivel nova. Um unico
-condemnado á morte dos que eu visitei recusou assignar o pedido de
-indulto, e ainda sou levado a crer que elle conhecia esta formalidade
-inutil para dictar o procedimento do chefe do Estado. Para apreciar
-bem o effeito que produz a pena de morte sobre os grandes criminosos,
-basta comparar a attitude do condemnado na vespera e no dia seguinte
-ao da sua commutação. Houve tal, que eu vi durante os quarenta dias da
-sua reclusão na cella da Roquete constantemente doente, arquejando com
-febre, sem appetite, sem somno, transfigurar-se no dia em que lhe foi
-annunciada a commutação. Fallava da sua viagem a Numéa<span class="pagenum" id="Page_178">[Pg 178]</span> como de uma
-viagem de prazer, fazia projectos, referia-se ao seu bom procedimento
-futuro em proveito de uma graça que elle se esforçaria por merecer.
-Tive muitas vezes occasião de verificar o mesmo phenomeno n’aquelles
-que escapavam á pena capital, e creio estar no direito de concluir, que
-é a unica pena que inspira um verdadeiro terror. Quanto áquelles que
-a soffrem, a sua vista sómente basta a um espirito não prevenido para
-lhes fazer conhecer os sentimentos e o terror. Parece-me impossivel
-achar um espectaculo mais commovedor que o do infeliz, até o mais
-resignado, o mais christãmente preparado, durante o tempo tão curto
-e ao mesmo tempo tão espantosamente longo de que se precisa para os
-aprestos do supplicio. Eu não hesito em crêr que qualquer que seja
-a pena que se possa substituir á pena de morte, será impotente para
-inspirar um terror mais legitimo e mais horrivel.</p>
-
-<p>Ha poucos annos ainda, não havia entre nós nenhum trabalho systematico
-e completo sobre este assumpto, tão importante como elemento de
-investigação scientifica e de proveitosa vantagem social. Não começámos
-cedo, mas ainda vamos a tempo de avaliar a vitalidade d’uma nação que
-alguns julgam, senão moribunda, pelo menos profundamente enferma.
-É a estatistica a base para poder formular leis dynamicas d’uma
-sociedade, nas quaes apoiado o homem de Estado e o homem de sciencia
-podem dar solução aos complexos problemas economicos e politicos. Na
-multiplicidade dos phenomenos sociologicos reveladores das differentes
-fórmas da actividade humana póde estudar-se a vida psychologica,
-objectivamente, sob todos os seus aspectos. A demographia póde fornecer
-ao psychologo dados preciosos para estudar a mentalidade humana nas
-cathegorias sociaes da moral, do direito, da religião, da sciencia, da
-arte e da industria. A estatistica é um ramo de actividade scientifica
-relativamente moderno, remonta ao seculo XVIII, foi Achenwall,
-professor de direito publico na universidade de Gottinga quem lhe
-deu este nome. Desde esse momento este ramo de saber tem caminhado
-pasmosamente e o registo dos seus phenomenos sociaes, expressos
-em numeros, tem sido o material que fornece ao sociologo os dados
-das suas inducções scientificas. A estatistica, como expressão dos
-numeros fornecidos pelos cadastros dos systemas tributarios e pelos
-recenseamentos é muito antiga, remonta á historia da antiguidade<span class="pagenum" id="Page_179">[Pg 179]</span>
-oriental, encontra-se sobretudo entre os assyrios, os judeus, os
-persas, mas com o caracter scientifico expresso pela demographia
-moderna no intuito de penetrar na vida de um povo, é de data recente.
-Os seus resultados são devidos especialmente aos fatigantes, pacientes
-e aridos trabalhos de Quetelet na Belgica e do dr. Bertillon em França.
-A estatistica de numeros é um elemento precioso e essencial para sobre
-elle architectar as grandes generalisações sociologicas, mas sem tirar
-das premissas nascidas d’aquelle estudo estas consequencias, aquelle
-trabalho tem relativamente pouca utilidade. Para organisar devidamente
-estes serviços, ha em Portugal apenas duas repartições regularmente
-constituidas—uma no ministerio da justiça e negocios ecclesiasticos,
-direcção geral do registo civil e estatistica, outra é a repartição
-respectiva do ministerio de obras publicas.</p>
-
-<p>Outro funesto resultado do nosso deploravel atraso em publicações de
-estatistica, são os deficientissimos documentos que a respeito da
-estatistica de Portugal, se encontram nas estantes dos demographos
-estrangeiros e nas repartições publicas correlativas, o que impede que
-muitos productos da nossa actividade social, não tenham podido entrar
-no estudo comparado da demographia das principaes nações da Europa e da
-America como mais um elemento de comprovação sociologica.</p>
-
-<p>«Todos sabem como elemento de comprovação sociologica o enorme
-interesse que hoje se liga á questão palpitante da penalidade. Abolição
-da pena de morte, abolição de todas as penas corporaes e irreparaveis,
-novos systemas de detenção, moderação nos castigos, etc., etc., são
-problemas a um tempo sociologicos e humanitarios que trazem agitados
-e commovidos a grande somma dos pensadores que se dedicam com amor ao
-bem estar dos seus concidadãos e a alliviar os soffrimentos dos seus
-semelhantes.»<a id="FNanchor_80" href="#Footnote_80" class="fnanchor">[80]</a></p>
-
-<p>A estatistica, diz o illustre Alphonse de Candolle, não é uma sciencia,
-é um methodo. O que se faz mister é fazer bom uso d’ella e até ao
-presente tem sido algumas vezes victima de má hermneutica.</p>
-
-<p>«Uma observação de natureza a dissipar muitas illusões—escreve
-o distincto publicista sr. Oliveira Martins—é o movimento da
-criminalidade comparado com o grau de<span class="pagenum" id="Page_180">[Pg 180]</span> instrucção e cultura das
-sociedades: os homicidios diminuem com a civilisação, os roubos
-augmentam. Na especie do assassinato a Italia tem o primeiro logar
-(8,12 homicidio por 100 mil habitantes), a Hespanha o segundo,
-depois a Hungria, depois a Austria, depois Portugal, e em seguida,
-successivamente, a Belgica, a França, a Allemanha e por fim a
-Inglaterra (0,69). Mas a Allemanha, que tem o penultimo logar no
-assassino, occupa o primeiro no roubo: e a Inglaterra que é a ultima
-na primeira série vem logo apoz na segunda. A illação por muitas vezes
-tirada d’estas observações é que, se a instrucção amacia os costumes,
-nem por isso corrige a perversidade; ou por outra, que por si só é
-insufficiente para formar esse estado de equilibrio inacessivel ou
-refratario ás tentações do crime. Os crimes dos barbaros, o talião
-e a vendetta ou <i>revendeyta</i> dos nossos foraes, proveem de uma
-energia de paixões conciliavel com a nobreza de instinctos que se
-agitam na atmosphera crepuscular de cerebros infantis. As creanças são
-crueis, mas não são perversas, e como creanças são os barbaros—meigos,
-ingenuos, espontaneos, mas terriveis. A sua alma é como a onda fluida
-e mobil que passa n’um instante da serenidade limpida de um espelho á
-convulsão espumante de uma tempestade.»</p>
-
-<p>Os dados fornecidos pela estatistica não fornecem argumentos contra a
-liberdade individual: «Os numeros exprimem simplesmente factos por meio
-dos quaes se póde apreciar uma probabilidade para o futuro, e o livre
-arbitrio de cada individuo é totalmente independente d’estas cifras.
-A demonstração d’isto é facil. Basta raciocinar, sem commetter erro
-sobre os casos particulares... A vontade do homem é uma causa de acção.
-Os numeros ao contrario e as medias são effeitos. É destruida a ordem
-logica se se suppozer que um effeito possa influir sobre uma causa.
-Direi pois de bom grado com Quetelet que o livre arbitrio desempenha
-nos phenomenos sociaes o papel d’uma causa, mas accrescentarei: os
-seus effeitos são sensiveis, pode-se muitas vezes contar e servir-se
-do seu numero para apreciar ou a volta de effeitos semelhantes ou a
-intensidade variavel da causa.»<a id="FNanchor_81" href="#Footnote_81" class="fnanchor">[81]</a></p>
-
-<p>Só com a theoria da regeneração moral dos delinquentes se tem
-generalisado e diversificado o regimen penitenciario.<span class="pagenum" id="Page_181">[Pg 181]</span> Para a escola
-fatalista do criminoso nato, não póde haver regeneração, porque não
-existe o sentimento da liberdade individual. Desde que não existe a
-probabilidade da emenda moral do criminoso, o systema correccionalista
-é uma burla ou uma chimera e como consequencia não mais educação moral
-nem profissional do condemnado. Felizmente nenhum estado ensaiou
-a execução d’estas theorias que são as consequencias da escola
-anthropologica italiana.</p>
-
-<p>As escolas penaes que não teem por base do direito de punir o
-sentimento da justiça, fazem responsaveis dos crimes, diversos
-factores sociaes ou pathologicos exceptuando sempre o delinquente que
-o commetteu. É verdadeiramente extraordinario. O delinquente, não o
-louco, é a unica causa do crime, o meio social póde fornecer-lhe apenas
-as circumstancias.</p>
-
-<p>Parece que o crime caminha com os progressos da instrucção primaria:
-«mas este facto é uma consequencia necessaria da diffusão geral
-da instrucção em França, se ella fosse diffundida como era de
-desejar, todos os francezes saberiam, pelo menos, ler e escrever
-e, por conseguinte todos os criminosos francezes seriam contados
-como lettrados. Quer o numero total dos criminosos tenha diminuido
-ou augmentado, a estatistica não accusaria todavia um augmento de
-lettrados muito maior. Haveria 100 sobre100, emquanto que agora ha
-somente 69, e havia 39 no fim da Restauração. A mudança nas relações
-conduz a uma conclusão certa: que a instrucção tem feito progressos.
-É as mais das vezes nas baixas camadas da sociedade que se recruta o
-triste contingente da criminalidade. Se a instrucção primaria estivesse
-suficientemente derramada, teria penetrado até n’estas cavernas, e
-todos os criminosos saberiam, como o resto da nação, pelo menos ler
-e escrever. Em consequencia d’isto, a estatistica judiciaria, é uma
-maneira de lançar a sonda n’estas camadas inferiores e de ver quaes são
-os progressos da instrucção primaria n’estas mesmas camadas onde só
-difficilmente chega a sondagem.»<a id="FNanchor_82" href="#Footnote_82" class="fnanchor">[82]</a></p>
-
-<p>O criminoso é imprevidente, é leviano e é preguiçoso. A diffusão do
-ensino e do amor ao trabalho, aconselhado na familia e ministrado
-na escola faz nascer no espirito o desejo d’uma occupação honrosa.
-Os ladrões francezes, como diz<span class="pagenum" id="Page_182">[Pg 182]</span> Lombroso, chamam-se no calão
-<i xml:lang="fr" lang="fr">pègres</i> (preguiçosos). O vadio é hoje aos olhos da lei em todos
-os paizes uma variedade do typo criminoso, detesta o trabalho e é nas
-grandes cidades quem mais contribue para povoar as cadeias. Não teem
-constancia, nem persistencia, nem energia senão para o mal. Os ladrões,
-segundo Vidocque, não são aptos para nada do que reclama energia ou
-assiduidade. Não podem e não sabem fazer outra cousa senão roubar.<a id="FNanchor_83" href="#Footnote_83" class="fnanchor">[83]</a></p>
-
-<p>Entre nós o soldado reservista que volta para os campos depois de
-se ter habituado á ociosidade da caserna, é um grande elemento de
-desmoralisação, em geral vem vicioso e ocioso, e fica o frequentador
-assiduo da taberna da aldeia.</p>
-
-<p>Os elementos estatisticos de que vamos servirnos são extrahidos da
-<i>Estatistica da Administração da Justiça Criminal nos Tribunaes
-de Primeira Instancia do reino de Portugal e Ilhas Adjacentes</i>.
-Egualmente aproveitamos as notaveis considerações, verdadeira novidade
-scientifica entre nós, que sobre o assumpto faz o primoroso escriptor e
-esclarecido demographo o sr. Silveira da Motta, dignissimo conselheiro
-director geral do ministerio da justiça.</p>
-
-<p>Quanto ao grau de instrucção verificou-se que sabiam ler 4:099 réus
-(30,71 por %); que não sabiam ler 9.156 (68,60 por %), e não se
-obtiveram informações sufficientes ácerca de 90 (0,67 por %).</p>
-
-<p>A civilisação gradual e continua das sociedades pela educação popular é
-uma das momentosas questões que convem examinar sob todos os aspectos.
-Se ha, comtudo, algum por que deve com preferencia ser estudada, é
-de certo o concernente á acção benefica nos seus progressos, ha de
-diminuir a pouco e pouco a existencia de alguns crimes; cuido que
-outros se acommodarão a qualquer estado de cultura; isto, porém são
-apenas conjecturas, e não bastam ellas para que o desenvolvimento
-do ensino possa indisputavelmente ser considerado dynamometro da
-progressiva reducção da criminalidade. Tal é o motivo porque eu quizera
-ao menos poder agora confrontar o grau de illustração dos réus com a
-somma dos habitantes do reino e ilhas, que, bem ou mal, sabem ler.
-Infelizmente não está ainda publicado, em todas as suas divisões e
-subdivisões, o ultimo recenseamento da população, onde é de esperar
-appareçam os esclarecimentos essenciaes sobre esse importantissimo
-assumpto.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_183">[Pg 183]</span></p>
-
-<p>N’estas circumstancias restrinjo-me a apresentar no seguinte epitome
-a proporção média que, conforme averiguei, existe n’outras nações com
-referencia ao grau de instrucção dos réus.</p>
-
-<table class="autotable bbox">
-<tr class="bb"><th></th><th colspan="3">Numero dos réus</th></tr>
-<tr class="bb">
-<td></td><td class="tdc bl">Que saibam ler</td><td class="tdc bl">Que não saibam ler</td><td class="tdc bl">De que se ignorou o grau de instrucção</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Allemanha</td><td class="tdc bl">95 por %</td><td class="tdc bl">5 por % </td><td class="tdc bl">—</td></tr>
-<tr><td class="tdl">França</td><td class="tdc bl">68&#160; »</td><td class="tdc bl">32&#160; »</td><td class="tdc bl">—</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Inglaterra</td><td class="tdc bl">66&#160; »</td><td class="tdc bl">33&#160; »</td><td class="tdc bl">1 por %</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Belgica</td><td class="tdc bl">61&#160; »</td><td class="tdc bl">37&#160; »</td><td class="tdc bl">2&#160; »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Italia</td><td class="tdc bl">31&#160; »</td><td class="tdc bl">69&#160; »</td><td class="tdc bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Hespanha</td><td class="tdc bl">27&#160; »</td><td class="tdc bl">70&#160; »</td><td class="tdc bl">3&#160; »</td></tr>
-</table>
-
-<p>Com relação ás profissões podem incluir-se nas seguintes categorias:</p>
-
-<table class="autotable bbox">
-<tr class="bb"><th>Profissão ou occupação</th><th>Numero dos réus</th><th>Proporção com o numero total dos réus</th></tr>
-<tr><td class="tdl">Agricultor (<i>a</i>)</td><td class="tdr bl">5:485</td><td class="tdc bl">41,10 por %</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Industrial (<i>b</i>)</td><td class="tdr bl">4:569</td><td class="tdc bl">34,23 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Negociante (<i>c</i>)</td><td class="tdr bl">543</td><td class="tdc bl">4,06 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Proprietario</td><td class="tdr bl">1:323</td><td class="tdc bl">9,91 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Empregado civil ou militar</td><td class="tdr bl">234</td><td class="tdc bl">1,75 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Creado de servir</td><td class="tdr bl">514</td><td class="tdc bl">3,85 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Qualquer outra profissão ou occupação</td><td class="tdr bl">277</td><td class="tdc bl">2,07 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Nenhuma profissão</td><td class="tdr bl">220</td><td class="tdc bl">1,64 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Ignora-se</td><td class="tdr bl">180</td><td class="tdc bl">1,34 »</td></tr>
-</table>
-<p>
-(<i>a</i>) Abrange esta classe os cultivadores não proprietarios, os hortelãos, jardineiros, pastores, lenhadores, mineiros, valladores, creados de lavoura, jornaleiros, etc.</p>
-<p>(<i>b</i>) Comprehendem-se n’esta classe os directores e empregados de qualquer empreza, que não seja agricola ou restrictamente commercial e todos os operarios em artes fabris ou manufactureiras, quer trabalhem em officinas quer fóra d’ellas.</p>
-<p>
-(<i>c</i>) Incluem-se tambem n’esta classe os caixeiros ou empregados de commercio.
-</p>
-
-<p>Do resumo antecedente poder-se-iam inferir deducções valiosas, se
-tivessemos elementos bastantes para o comparar<span class="pagenum" id="Page_184">[Pg 184]</span> com a população
-dividida em identica escala de profissões e occupações. Na falta de
-taes elementos offerece pouco interesse o exame d’essa condição dos
-réus, e só no futuro poderá de algum modo servir para que se conheça
-a influencia das profissões, se não sobre o numero, ao menos sobre
-a natureza dos crimes. É isto o que já acontece nos paizes que se
-encontram na dianteira da civilisação. Ahi, por exemplo, longas series
-de estatisticas parece demonstrarem que o numero proporcional dos
-crimes contra as pessoas é notavelmente avultado nos individuos que
-se entregam aos trabalhos e habitos da vida rural, ao passo que nos
-negociantes, nos industriaes, nos creados de servir, predominam os
-crimes contra a propriedade.</p>
-
-<p>No seguinte quadro que exara os dados estatisticos correspondentes
-ao anno de 1879 procuramos comparar a criminalidade com o estado da
-instrucção elementar no reino e ilhas adjacentes.</p>
-
-<table class="autotable bbox">
-<tr><th rowspan="2">Districtos</th><th colspan="2" class="tt bl br">Habitantes de facto</th><th rowspan="2" class="tt bl">Numero dos réus que sabem ler</th><th rowspan="2" class="tt br bl">Proporção por 100 habitantes</th><th rowspan="2" class="tt">Numero dos réus que não sabem ler</th><th rowspan="2" class="tt bl br">Proporção por 100 habitantes</th><th rowspan="2" class="tt">Numero dos réus de que se ignorou a instrucção</th><th rowspan="2" class="tt br bl">Proporção por 100 habitantes</th></tr>
-<tr class="bt bb"><td class="tdc bl">Que saibam ler</td><td class="tdc bl">Que não sabem ler</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Angra </td><td class="tdr bl"> 13.217 </td><td class="tdr bl"> 58.412 </td><td class="tdr bl"> 18</td><td class="tdr bl">0,02</td><td class="tdr bl"> 19</td><td class="tdr bl">0,02</td><td class="tdr bl"> 1 </td><td class="tdr bl">0,001</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Aveiro </td><td class="tdr bl"> 38.864 </td><td class="tdr bl"> 218.185 </td><td class="tdr bl"> 210</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl"> 351</td><td class="tdr bl">0,13</td><td class="tdr bl"> 3 </td><td class="tdr bl">0,001</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Beja </td><td class="tdr bl"> 18.265 </td><td class="tdr bl"> 123.854 </td><td class="tdr bl"> 80</td><td class="tdr bl">0,05</td><td class="tdr bl"> 255</td><td class="tdr bl">0,17</td><td class="tdr bl"> 21 </td><td class="tdr bl">0,014</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Braga </td><td class="tdr bl"> 60.438 </td><td class="tdr bl"> 259.026 </td><td class="tdr bl"> 250</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 254</td><td class="tdr bl">0,14</td><td class="tdr bl"> 19 </td><td class="tdr bl">0,005</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Bragança </td><td class="tdr bl"> 24.930 </td><td class="tdr bl"> 143.721 </td><td class="tdr bl"> 183</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> 607</td><td class="tdr bl">0,35</td><td class="tdr bl"> 4 </td><td class="tdr bl">0,002</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Castello Branco</td><td class="tdr bl"> 19.167 </td><td class="tdr bl"> 154.816 </td><td class="tdr bl"> 82</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 268</td><td class="tdr bl">0,15</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Coimbra </td><td class="tdr bl"> 36.403 </td><td class="tdr bl"> 255.634 </td><td class="tdr bl"> 179</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 343</td><td class="tdr bl">0,11</td><td class="tdr bl"> 7 </td><td class="tdr bl">0,002</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Evora </td><td class="tdr bl"> 17.034 </td><td class="tdr bl"> 89.821 </td><td class="tdr bl"> 83</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 276</td><td class="tdr bl">0,25</td><td class="tdr bl"> 2 </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Faro </td><td class="tdr bl"> 28.544 </td><td class="tdr bl"> 170.598 </td><td class="tdr bl"> 77</td><td class="tdr bl">0,03</td><td class="tdr bl"> 175</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Funchal </td><td class="tdr bl"> 12.284 </td><td class="tdr bl"> 117.700 </td><td class="tdr bl"> 49</td><td class="tdr bl">0,03</td><td class="tdr bl"> 167</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Guarda </td><td class="tdr bl"> 31.541 </td><td class="tdr bl"> 196.953 </td><td class="tdr bl"> 206</td><td class="tdr bl">0,09</td><td class="tdr bl"> 546</td><td class="tdr bl">0,23</td><td class="tdr bl"> 4 </td><td class="tdr bl">0,001</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Horta </td><td class="tdr bl"> 11.066 </td><td class="tdr bl"> 50.834 </td><td class="tdr bl"> 11</td><td class="tdr bl">0,01</td><td class="tdr bl"> 39</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Leiria </td><td class="tdr bl"> 21.471 </td><td class="tdr bl"> 171.511 </td><td class="tdr bl"> 60</td><td class="tdr bl">0,03</td><td class="tdr bl"> 200</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> 18 </td><td class="tdr bl">0,009</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Lisboa </td><td class="tdr bl">146.093 </td><td class="tdr bl"> 351.966 </td><td class="tdr bl">1.174</td><td class="tdr bl">0,23</td><td class="tdr bl">2.224</td><td class="tdr bl">0,40</td><td class="tdr bl"> 95 </td><td class="tdr bl">0,019</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Ponta Delgada </td><td class="tdr bl"> 22.176 </td><td class="tdr bl"> 104.095 </td><td class="tdr bl"> 44</td><td class="tdr bl">0,03</td><td class="tdr bl"> 155</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> 1 </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Portalegre </td><td class="tdr bl"> 13.755 </td><td class="tdr bl"> 87.371 </td><td class="tdr bl"> 50</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 193</td><td class="tdr bl">0,19</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Porto </td><td class="tdr bl">110.414 </td><td class="tdr bl"> 351.467 </td><td class="tdr bl"> 290</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 586</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> 3 </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Santarem </td><td class="tdr bl"> 30.371 </td><td class="tdr bl"> 190.510 </td><td class="tdr bl"> 117</td><td class="tdr bl">0,05</td><td class="tdr bl"> 359</td><td class="tdr bl">0,16</td><td class="tdr bl"> 11 </td><td class="tdr bl">0,005</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Vianna </td><td class="tdr bl"> 40.418 </td><td class="tdr bl"> 160.972 </td><td class="tdr bl"> 156</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 219</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> — </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Villa Real </td><td class="tdr bl"> 48.508 </td><td class="tdr bl"> 176.120 </td><td class="tdr bl"> 271</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> 393</td><td class="tdr bl">0,17</td><td class="tdr bl"> 2 </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Vizeu </td><td class="tdr bl"> 53.363 </td><td class="tdr bl"> 318.208 </td><td class="tdr bl"> 245</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 641</td><td class="tdr bl">0,17</td><td class="tdr bl"> 2 </td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-
-<tr class="bt"><td class="tdl">Total </td><td class="tdr bl">798.925 </td><td class="tdr bl">3.751.774</td><td class="tdr bl">3.835</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl">8.469</td><td class="tdr bl">0,18</td><td class="tdr bl"> 193 </td><td class="tdr bl">0,005</td></tr>
-</table>
-
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_185">[Pg 185]</span></p>
-
-<p>Para que se possa com algum proveito comparar o estado da instrucção
-com o da criminalidade, deve abater-se da massa total da população
-a parcella respectiva aos menores até 10 annos, os quaes, na maxima
-parte, nem podem ter alcançado qualquer instrucção litteraria, nem
-ter commettido crimes. Reduzida d’este modo em numeros redondos a
-3:500:000 a somma dos habitantes do reino e ilhas, fica de O,10 a
-percentagem dos réus que sabem ler, e de O,24 a dos réus que não
-sabem ler. Não é porém ainda a esta luz que deve ser considerado o
-assumpto. A proporção só póde estabelecer-se logicamente, cotejando
-nas classes respectivas o numero dos réus que sabem ler com o dos
-habitantes que sabem ler, o numero dos réus que não sabem com o dos
-habitantes que não sabem ler. Posto assim o problema, a quota dos réus
-que sabem ler é de O,48 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos réus
-analphabetos é de O,31 por 100 habitantes analphabetos. Applicando
-o mesmo methodo aos crimes julgados em 1878, a quota dos réus que
-sabem ler é de O,51 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos réus
-analphabetos é de O,33 por 100 habitantes analphabetos. Com relação
-ao anno de 1880 ainda não ha informações completas, mas em vista dos
-documentos já examinados deve fundadamente presumir-se uma proporção
-quasi identica. Se não me illudo sobre a exacção do calculo, que
-conclusões se podem inferir? Contribuirá o derramamento da instrucção
-para o acrescimo da criminalidade? Será nocivo o simples e deficiente
-ensino primario? Constituirão os factos colligidos n’estes poucos
-annos uma situação anormal, em que não possam estribar-se quaesquer
-illações ou conjecturas? São questões do futuro, cuja decisiva solução
-está ainda longe. Á estatistica cumpre por emquanto agrupar e ordenar
-methodicamente os factos: só longas series de trabalho d’esta ordem
-descobrirão o valor d’esses factos e os corollarios que d’elles devam
-deduzir-se.</p>
-
-<p>Ahi fica a estatistica criminal portugueza no anno de 1879 e vamos em
-seguida beber na mesma fonte os dados estatisticos com respeito ao anno
-de 1880.</p>
-
-<p>Quanto ao grau de instrucção verificou-se que sabiam ler 3:882 réus
-(31,59 por c.), que não sabiam ler 8:239 (67,06 por c.), e não se
-obtiveram informações sufficientes ácerca de 164 (1,32 por c.).</p>
-
-<p>Conforme o systema que experimentei no precedente volume<span class="pagenum" id="Page_186">[Pg 186]</span> busco no
-quadro immediato comparar a criminalidade com o estado da instrucção
-elementar no reino e ilhas adjacentes.</p>
-
-<table class="autotable bbox">
-<tr><th rowspan="2">Districtos</th><th colspan="2" class="bl br">Habitantes de facto</th><th rowspan="2" class="tt br">Numero dos réos que sabem ler</th><th rowspan="2" class="tt br">Proporção por 100 habitantes</th><th rowspan="2" class="tt br">Réos que não sabem ler</th><th rowspan="2" class="tt br">Proporção por 100 habitantes</th><th rowspan="2" class="tt">Réos de que se ignorou a instrucção</th></tr>
-<tr class="bb bt"><td class="tdc bl">Que saibam ler</td><td class="tdc br bl">Que não sabem ler</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Angra </td><td class="tdr bl"> 13.217</td><td class="tdr bl"> 58.412</td><td class="tdr bl"> 9</td><td class="tdr bl">0,01</td><td class="tdr bl"> 73</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> 1</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Aveiro </td><td class="tdr bl"> 38.864</td><td class="tdr bl"> 218.185</td><td class="tdr bl"> 189</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 312</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> 15</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Beja </td><td class="tdr bl"> 18.265</td><td class="tdr bl"> 123.854</td><td class="tdr bl"> 100</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 289</td><td class="tdr bl">0,26</td><td class="tdr bl"> 6</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Braga </td><td class="tdr bl"> 60.438</td><td class="tdr bl"> 259.026</td><td class="tdr bl"> 282</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl"> 394</td><td class="tdr bl">0,12</td><td class="tdr bl"> 6</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Bragança </td><td class="tdr bl"> 24.930</td><td class="tdr bl"> 143.721</td><td class="tdr bl"> 150</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl"> 557</td><td class="tdr bl">0,33</td><td class="tdr bl"> 2</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Castello Branco </td><td class="tdr bl"> 19.167</td><td class="tdr bl"> 154.816</td><td class="tdr bl"> 99</td><td class="tdr bl">0,05</td><td class="tdr bl"> 369</td><td class="tdr bl">0,21</td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Coimbra </td><td class="tdr bl"> 36.403</td><td class="tdr bl"> 255.634</td><td class="tdr bl"> 188</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 403</td><td class="tdr bl">0,13</td><td class="tdr bl"> 4</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Evora </td><td class="tdr bl"> 17.034</td><td class="tdr bl"> 89.821</td><td class="tdr bl"> 81</td><td class="tdr bl">0,07</td><td class="tdr bl"> 260</td><td class="tdr bl">0,24</td><td class="tdr bl"> 2</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Faro </td><td class="tdr bl"> 28.544</td><td class="tdr bl"> 170.598</td><td class="tdr bl"> 87</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 216</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Funchal </td><td class="tdr bl"> 12.284</td><td class="tdr bl"> 117.700</td><td class="tdr bl"> 46</td><td class="tdr bl">0,03</td><td class="tdr bl"> 172</td><td class="tdr bl">0,13</td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Guarda </td><td class="tdr bl"> 31.541</td><td class="tdr bl"> 196.953</td><td class="tdr bl"> 247</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> 546</td><td class="tdr bl">0,23</td><td class="tdr bl"> 3</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Horta </td><td class="tdr bl"> 11.066</td><td class="tdr bl"> 50.834</td><td class="tdr bl"> 17</td><td class="tdr bl">0,02</td><td class="tdr bl"> 18</td><td class="tdr bl">0,02</td><td class="tdr bl"> 6</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Leiria </td><td class="tdr bl"> 21.471</td><td class="tdr bl"> 171.511</td><td class="tdr bl"> 91</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 212</td><td class="tdr bl">0,10</td><td class="tdr bl"> 2</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Lisboa </td><td class="tdr bl"> 146.093</td><td class="tdr bl"> 351.966</td><td class="tdr bl">1.119</td><td class="tdr bl">0,22</td><td class="tdr bl">1.799</td><td class="tdr bl">0,36</td><td class="tdr bl"> 94</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Ponta Delgada </td><td class="tdr bl"> 22.176</td><td class="tdr bl"> 104.095</td><td class="tdr bl"> 52</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 141</td><td class="tdr bl">0,11</td><td class="tdr bl"> 1</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Portalegre </td><td class="tdr bl"> 13.755</td><td class="tdr bl"> 87.371</td><td class="tdr bl"> 57</td><td class="tdr bl">0,04</td><td class="tdr bl"> 205</td><td class="tdr bl">0,20</td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Porto </td><td class="tdr bl"> 110.414</td><td class="tdr bl"> 351.467</td><td class="tdr bl"> 212</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 523</td><td class="tdr bl">0,11</td><td class="tdr bl"> 1</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Santarem </td><td class="tdr bl"> 30.371</td><td class="tdr bl"> 190.510</td><td class="tdr bl"> 149</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 378</td><td class="tdr bl">0,17</td><td class="tdr bl"> 3</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Vianna do Castello</td><td class="tdr bl"> 40.418</td><td class="tdr bl"> 160.972</td><td class="tdr bl"> 121</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 170</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl"> 15</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Villa Real </td><td class="tdr bl"> 48.508</td><td class="tdr bl"> 176.120</td><td class="tdr bl"> 336</td><td class="tdr bl">9,14</td><td class="tdr bl"> 539</td><td class="tdr bl">0,23</td><td class="tdr bl"> —</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Vizeu </td><td class="tdr bl"> 53.363</td><td class="tdr bl"> 318.208</td><td class="tdr bl"> 260</td><td class="tdr bl">0,06</td><td class="tdr bl"> 663</td><td class="tdr bl">0,17</td><td class="tdr bl"> 3</td></tr>
-<tr class="bt"><td></td><td class="tdr bl"> 798.925</td><td class="tdr bl">3.751.774</td><td class="tdr bl">3.882</td><td class="tdr bl">0,08</td><td class="tdr bl">8.239</td><td class="tdr bl">0,18</td><td class="tdr bl"> 164</td></tr>
-</table>
-
-<p>Abatida da massa total da população a parcella respectiva aos menores
-até 10 annos, os quaes na maxima parte nem podem ter alcançado qualquer
-instrucção litteraria, nem haver commettido crimes, e reduzida d’este
-modo a 3.500:000 a somma dos habitantes do reino e ilhas, a quota dos
-réus que sabem ler é de O,48 por 100 habitantes que sabem ler, e a dos
-réus analphabetos é de O,30 por 100 habitantes analphabetos. Sobre este
-importante assumpto dou como reproduzidas as considerações expostas no
-volume antecedente. Os factos colligidos com relação ao anno, a que o
-actual trabalho se refere, offerecem caracter identico ao dos annos
-anteriores. Estes factos, porém, têm tal alcance, e podem ser tão
-significativos que me pareceu util, a proposito dos crimes mais graves
-commettidos durante o anno de 1880, e<span class="pagenum" id="Page_187">[Pg 187]</span> durante o triennio de 1878 a
-1880, cotejar no epitome immediato o numero dos réus que sabem ler com
-o dos habitantes que sabem ler, e o numero dos réus analphabetos com o
-dos habitantes analphabetos.</p>
-
-<table class="autotable bbox">
-<tr><th rowspan="2" class="tt">Crimes</th><th rowspan="2" class="tt">Numero dos réos em 1880</th><th rowspan="2" class="tt">Média dos réos no triennio</th><th colspan="2" class="tt bl br">Proporção dos réos que sabem ler com os habitantes que sabem ler </th><th colspan="2" class="tt">Proporção dos réos que não sabem ler com os habitantes que não sabem ler</th></tr>
-<tr class="bt bb"><td class="tdc bl br">Em 1880</td><td class="tdc">No triennio</td><td class="tdc bl br">Em 1880</td><td class="tdc">No triennio</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Infanticidio </td><td class="tdr bl"> 26 </td><td class="tdr bl"> 23 por 100.000</td><td class="tdr bl"> 0,24 por 100.000 </td><td class="tdr bl"> 0,16 por 100.000 </td><td class="tdr bl"> 0,83 por 100.000 </td><td class="tdr bl"> 0,79</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Homicidio voluntario </td><td class="tdr bl"> 155 </td><td class="tdr bl"> 175 </td><td class="tdr bl"> 5,89 » </td><td class="tdr bl"> 8,02 » </td><td class="tdr bl"> 3,84 » </td><td class="tdr bl"> 3,91 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Estupro </td><td class="tdr bl"> 51 </td><td class="tdr bl"> 44 </td><td class="tdr bl"> 2,88 » </td><td class="tdr bl"> 2,50 » </td><td class="tdr bl"> 1,01 » </td><td class="tdr bl"> 0,83 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Ferimentos </td><td class="tdr bl"> 2.416 </td><td class="tdr bl"> 2.401 </td><td class="tdr bl">88,84 » </td><td class="tdr bl">89,34 » </td><td class="tdr bl">61,19 » </td><td class="tdr bl">66,29 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Contrab.ᵒ </td><td class="tdr bl"> 62 </td><td class="tdr bl"> 54 </td><td class="tdr bl"> 1,37 » </td><td class="tdr bl"> 1,21 » </td><td class="tdr bl"> 1,84 » </td><td class="tdr bl"> 1,59 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Roubo </td><td class="tdr bl"> 311 </td><td class="tdr bl"> 308 </td><td class="tdr bl"> 9,89 » </td><td class="tdr bl">10,35 » </td><td class="tdr bl"> 8,15 » </td><td class="tdr bl"> 8,07 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Furto </td><td class="tdr bl"> 1.840 </td><td class="tdr bl"> 1.868 </td><td class="tdr bl">43,23 » </td><td class="tdr bl">44,23 » </td><td class="tdr bl">52,93 » </td><td class="tdr bl">54,23 »</td></tr>
-<tr><td class="tdl">Fogo posto </td><td class="tdr bl"> 57 </td><td class="tdr bl"> 52 </td><td class="tdr bl"> 1,12 » </td><td class="tdr bl"> 1,25 » </td><td class="tdr bl"> 1,17 » </td><td class="tdr bl"> 1,32 »</td></tr>
-</table>
-
-<p>Quanto ás profissões, os réus julgados em 1880 podem classificar-se da
-seguinte fórma: agricultores 5:102, industriaes 4:386, negociantes 463,
-proprietarios 1:244, empregados publicos 175, creados de servir 392,
-com profissão scientifica ou litteraria 100, com outras occupações 22
-e sem profissão alguma 271. Ignorou-se a profissão ou occupação de 130
-réus. A proporção entre os reus julgados e os individuos pertencentes
-a estas differentes classes não se distanceia importantemente da dos
-annos anteriores; e não offerece por ora esclarecimentos que bastem
-para avaliar o predominio do estado ou posição social na somma, na
-qualidade ou na aggravação dos crimes.»<a id="FNanchor_84" href="#Footnote_84" class="fnanchor">[84]</a></p>
-
-<p>A Penitenciaria costuma publicar um relatorio interessante sobre o
-estado moral e intellectual dos reclusos. Em 1888 diz:</p>
-
-<p>Pelo grau de instrucção litteraria vemos:</p>
-
-<p>1.ᵃ classe—Analphabetos 127; 2.ᵃ classe—Sabendo ler e escrever alguma
-cousa, mas não sabendo contar 36; 3.ᵃ classe—Sabendo ler, escrever e
-contar 15—Total 178.</p>
-
-<p>Na tabella seguinte damos a classificação dos crimes em relação aos
-temperamentos, constituição physica e grau de instrucção litteraria dos
-presos entrados na Penitenciaria Central de Lisboa no anno de 1886:<a id="FNanchor_85" href="#Footnote_85" class="fnanchor">[85]</a></p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_188">[Pg 188]</span></p>
-
-<table class="autotable bbox">
-<tr class="bb bt"><th rowspan="2">Crimes em geral</th><th rowspan="2" class="bl br">Crimes em especial</th><th colspan="6">Temperamento</th><th colspan="3" class="br bl">Constit. physica</th><th colspan="3">Grau d’instrucção litteraria</th></tr>
-<tr class="bb"><td class="tdc br">Lymphatico</td><td class="tdc br">Nervoso</td><td class="tdc br">Sanguineo</td><td class="tdc br">Bilioso</td><td class="tdc br">Lymphatico bilioso</td><td class="tdc br">Mixto</td><td class="tdc br">Robusta</td><td class="tdc br">Regular</td><td class="tdc br">Fraca</td><td class="tdc br">1.ᵃ classe</td><td class="tdc br">2.ᵃ classe</td><td class="tdc br">3.ᵃ classe</td></tr>
-<tr><td class="tdl tt">Crimes contra a religião</td><td class="tdl br bl">Desacato e profanação </td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> —</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr class="bt"><td class="tdl tt" rowspan="2">Crimes contra a ordem e tranquilidade publica</td><td class="tdl br bl">Moeda falsa</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Falsificação</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> —</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> —</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td></tr>
-<tr class="bt"><td class="tdl tt" rowspan="11">Crimes contra as pessoas</td><td class="tdl br bl">Usurpação do estado civil </td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> —</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Homicidio voluntario </td><td class="tdc br">19</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 8</td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">34</td><td class="tdc br">16</td><td class="tdc br"> 37</td><td class="tdc br">16</td><td class="tdc br"> 49</td><td class="tdc br">14</td><td class="tdc br"> 6</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Infanticidio </td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Ferimentos resultando a morte </td><td class="tdc br"> 7</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 11</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br"> 12</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Homicidio frustrado </td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 2</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Offensas corporaes </td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Tentativa de offensas corporaes</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Ferimentos </td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Attentado ao pudor </td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br"> 5</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Estupro </td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 5</td><td class="tdc br"> 3</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Violação </td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> —</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr class="bt"><td class="tdl tt" rowspan="5">Crimes contra a propriedade</td><td class="tdl br bl">Furto </td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">12</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 11</td><td class="tdc br"> 7</td><td class="tdc br"> 15</td><td class="tdc br"> 4</td><td class="tdc br"> 1</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Roubo </td><td class="tdc br">10</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 8</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 15</td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br"> 14</td><td class="tdc br"> 6</td><td class="tdc br"> 1</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Subtracção fraudulenta </td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 8</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 9</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 8</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Tentativa de roubo </td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 2</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr><td class="tdl br bl">Collocação de pedras na via ferrea </td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br"> 1</td><td class="tdc br">—</td><td class="tdc br">—</td></tr>
-<tr class="bt"><td></td><td></td><td class="tdc bl">55</td><td class="tdc"> 2</td><td class="tdc">16</td><td class="tdc"> 9</td><td class="tdc"> 3</td><td class="tdc br">93</td><td class="tdc">24</td><td class="tdc">108</td><td class="tdc br">46</td><td class="tdc">127</td><td class="tdc">36</td><td class="tdc">15</td></tr>
-<tr class="bb"><td></td><td></td><td colspan="6" class="tdc bt bl">178</td><td colspan="3" class="tdc bt bl br">178</td><td colspan="3" class="tdc bt">178</td></tr>
-</table>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_189">[Pg 189]</span></p>
-
-<p>A instrucção puramente intellectual é uma aptidão que póde tanto pôr-se
-ao serviço da virtude como do crime. O lado efficaz da instrucção é a
-cultura do sentimento moral e do sentimento religioso. O lado puramente
-intellectual ministrado em pequeno quinhão dá a certos individuos o
-cunho da vaidade e da insubordinação, fallando com desprezo das crenças
-dos outros e explicando tudo ao sabor do seu caracter. Urge combater
-este funesto estado, tanto na escola primaria como nas prisões.</p>
-
-<p>Recolhem ás prisões de Paris annualmente cerca de 110 a 120
-mil delinquentes. Ha a casa de detenção junta á Prefeitura de
-policia; as casas de correcção cellulares de Mazas e da La Santé;
-a casa de correcção de <i>Saint-Pelagie</i> para rapazes; a de
-<i>Saint-Lazare</i> para prostitutas; a grande prisão chamada <i>La
-Conciergerie</i>; o deposito de condemnados <i>Grande Roquette</i>, e a
-casa de detenção correccional, e <i>Petite Roquette</i>.</p>
-
-<p>Além d’estas, ha o estabelecimento de educação correccional da rua
-de Vaugirard destinada ás filhas de familia; o convento das damas
-Saint-Michel na rua de Saint-Jacques, destinado ás donzellas da
-religião catholica e ali detidas por correcção paternal; a instituição
-das damas preladas, estabelecida em Paris na rua de Meuilly, onde estão
-enclausuradas as jovens protestantes submettidas á correcção por ordem
-paternal, e emfim o refugio das jovens israelitas, situado no boulevard
-de la Saussaye, em Neuilly, para raparigas judias.</p>
-
-<p>Para rapazes sujeitos á correcção por familias decentes, ha apenas em
-Paris a escola industrial da rua Clevel. É dirigida por protestantes e
-notavel pela sua austeridade.</p>
-
-<p>Para repressão da mendicidade tambem ha a casa do Saint-Dinis, para
-onde se levam presos os vadios, que se encontram a pedir esmola.</p>
-
-<p>Entre nós não ha educação correccional, se exceptuarmos a modestissima
-casa de correcção de Lisboa. As cadeias do paiz são em geral um foco
-de desmoralisação. Não existe n’ellas nem professor nem capellão. A
-Penitenciaria de Lisboa é a primeira e unica escola correccional.</p>
-
-<p>Precisavamos derramar a mãos largas a instrucção que ensina a discernir
-e a educação ministrada no lar, na escola, que corrige os defeitos e
-fórma o caracter, contrariando desde<span class="pagenum" id="Page_190">[Pg 190]</span> o berço as inclinações ruins.
-Algumas nações tornam justamente responsaveis os paes ou tutores pelo
-mau exito da educação de seus filhos. Procuremos melhorar as condições
-da sociedade pela creação de instituições de previdencia, para prevenir
-accidentes de ordem material e moral.</p>
-
-<p>«Vê-se pois, affirma um interessante documento official, que os crimes
-que mais predominam foram furtos e vadiagem.</p>
-
-<p>A criminalidade, como diz o citado visconde de Hanssonville, tem
-duas causas unicas, a miseria e as paixões; porém na infancia tem
-uma terceira causa especial, que é o abandono e a ausencia de toda a
-educação moral.</p>
-
-<p>Os menores abandonados pelos pais, ou pessoas d’elles encarregados,
-começam pela vadiagem, passam depois aos crimes contra a propriedade,
-d’onde muitas vezes chegam ao de homicidio.</p>
-
-<p>É indispensavel, pois, affastal-os d’aquelles, que pela sua falta do
-conhecimentos ou pela sua desmoralisação o não podem educar.</p>
-
-<p>Grande parte dos menores condemnados pelo crime de furto, já tinham
-sido presos pelo crime de vadiagem, e alguns exemplos podia apresentar
-de menores, que entraram na casa de correcção por mais de uma vez como
-vadios, sendo-lhes imposta a pena de prisão só por poucos dias, e
-quando passavam dos dezoito annos foram processados por crime de roubo
-e condemnados a degredo.</p>
-
-<p>Pelo mappa das reincidencias vê-se que desde a installação d’este
-estabelecimento sessenta menores entraram alli duas vezes, trinta e um
-tres vezes, nove quatro vezes, sete cinco vezes, um seis vezes e um
-sete vezes.»<a id="FNanchor_86" href="#Footnote_86" class="fnanchor">[86]</a></p>
-
-<p>Os crimes contra a propriedade são actualmente em maior numero do
-que os crimes contra as pessoas, devido ao progresso na brandura dos
-costumes, ao desenvolvimento da policia e á progressiva vigilancia
-que fez apparecer nos tribunaes maior numero de certos crimes, como
-attentados contra o pudor, que a maior parte das vezes passavam
-desapercebidos.</p>
-
-<p>Sendo hoje maior a riqueza, aguça mais o sentimento da cubiça e da
-inveja, gera o alcoolismo que prepara o nevrotico e o degenerado para o
-crime contra as pessoas.</p>
-
-<p>O infanticido parece ter augmentado, mas o augmento<span class="pagenum" id="Page_191">[Pg 191]</span> no numero d’esse
-crime é, como dissemos acima, devido á mór vigilancia da policia.</p>
-
-<p>Ha delinquentes effectivamente irregeneraveis, todavia por isso
-devemos desprezar a educação? N’esse caso tambem devemos condemnar a
-therapeutica e a hygiene. Uma das causas por que o crime, registado nas
-estatisticas, parece augmentar com a instrucção é porque a população
-urbana dá maior contingente que os campos e as cidades e estas tentam
-mais o malfeitor pela facilidade da fuga e abundancia do roubo.<a id="FNanchor_87" href="#Footnote_87" class="fnanchor">[87]</a></p>
-
-<p>«Condemnado o prezo, escreve o nosso illustre jurisconsulto Silvestre
-Pinheiro Ferreira, a uma isolação e a um silencio absolutos, e
-forçando-o a concentrar-se em si mesmo; que esperavam podesse elle
-achar no fundo de sua alma corrompida, que houvesse de o trazer a
-sentimentos honestos? Que noções de resignação, de moderação, de
-virtude, de amor aos seus similhantes julgavam elle podesse achar em
-uma alma tal? Quanto ao passado, as suas recordações só lhe apresentam
-devassidão e crimes. O presente só lhe offerece a perspectiva de
-uma immensa e odiosa tortura. O futuro, não lhe promette senão a
-continuação d’essa tortura até á expiação da pena; e, a partir d’esse
-ponto, a fatal alternativa ou de perecer na miseria, ou de se lançar de
-novo nos caminhos do crime.</p>
-
-<p>E que ha ahi que o possa arrancar a estas funebres meditações? Nada,
-absolutamente nada, porque o systema da isolação e de mudismo não lhe
-permitte distracção alguma. E poude com effeito, alguem persuadir-se
-seriamente que um espirito sumido em taes ideias poderia abrir-se á
-linguagem da religião e da moral? Seria não conhecer o coração humano.
-O espirito para poder escutar com attenção as lições da moral ha de
-achar n’ellas attractivos: para que essas lições se gravem no coração
-e se tornem sentimentos, é necessario que a alma procure consolação
-e prazer encantador em as escutar. Mas que prazer e encanto poderão
-provar as almas embrutecidas no vicio ouvindo a linguagem da virtude?</p>
-
-<p>Não ha mais que um meio para o conseguir,—é illuminal-as. Comtudo,
-essa é outra grande difficuldade a vencer. Espiritos preguiçosos,
-a quem o mais leve pensar fatiga e aborrece, precisam de um movel
-poderoso para se determinarem<span class="pagenum" id="Page_192">[Pg 192]</span> a receber a menor instrucção. Este movel
-deve achar-se na esperança de alliviar a immensa tortura moral do
-silencio.</p>
-
-<p>Saiba, pois, o preso que se elle prestar ouvidos doceis ao ensino e
-instrucção, elle se achará admittido ás conferencias que, segundo
-os regulamentos, deverão ter logar entre as pessoas a esse objecto
-commissionadas, e aquelles dos presos que d’ellas se fizerem dignos.
-Estas conferencias não devem versar unicamente sobre a moral, porque
-(e ainda outra vez e muitas o repito) o que for semear n’um campo por
-arrotear, só deve esperar ver perdido o seu trabalho, colhendo sómente
-espinhos. É preciso pois habituar o espirito do preso a dirigir a sua
-attenção a objectos, que, ao mesmo que instructivos, puxem e convidem,
-a objectos que, tendo pouca ou nenhuma ligação com os seus habitos de
-vicio, não o indisponham a dar-lhes attenção.</p>
-
-<p>Assim como nos conservatorios das artes se tem creado cursos
-scientificos ao alcance das classes operarias, alguns d’estes deveriam
-tambem estabelecer-se no centro das casas de correcção. Porque então o
-espirito dos presos, desenvolvendo-se e dilatando-se por meio do estudo
-d’estas diversas sciencias, viria a tornar-se diariamente sempre mais
-disposto a subir da consideração dos phenomenos da natureza até ao Ente
-Supremo, de onde ella tira a sua origem; e então os seus corações,
-abrindo-se insensivelmente aos sentimentos religiosos, principiavam
-acceitando sem custo e acabariam acolhendo com gosto essas mesmas
-lições de moral, que ao principio os seus espiritos ainda enlodados no
-vicio, por ventura repudiaram com tedio e desdem. Alem da inapreciavel
-vantagem de adoçar illuminando estes caracteres selvaticos; além da
-utilidade que elles não menos que a sociedade hão-de deduzir desta
-longa carreira de estudos graduaes e proporcionados á capacidade de
-cada um d’elles eu apontarei ainda outra vantagem, a meus olhos muito
-mais importante; e é a de preservar os contrictos já soltos, de cahirem
-n’aquellas perigosas sociedades que antes frequentavam.<a id="FNanchor_88" href="#Footnote_88" class="fnanchor">[88]</a>»</p>
-
-<p>O nosso illustre tratadista de litteratura pedagogica D. Antonio da
-Costa escreve:</p>
-
-<p>«N’aquelle mesmo anno de 1879 achava-se na cadeia de Braga, condemnado
-tambem a prisão perpetua, Albino de<span class="pagenum" id="Page_193">[Pg 193]</span> Sá Carneiro, que havia annos
-creára e regia dentro dos ferros uma escola primaria para os presos
-e para creanças. Estas aprenderam ali ás centenas. Presos, mais de
-cem. Quatorze annos de carcere imprimiram no preso professor aquella
-tristeza resignada, que é um dos caracteristicos mais dolorosos dos que
-padecem. O dia estava triste como elle; e o carcere, se é possivel,
-ainda mais triste do que nós ambos. Entretanto, como n’um dia tenebroso
-e por entre o ribombar dos trovões despede o sol por sobre a natureza
-um raio fugitivo, e por isso mais brilhante, não sei que raios formosos
-reflectiam sobre a escuridão do carcere os livros dos alumnos,
-dispersos por aquella carunchosa mesa, e os quadros da leitura nas
-paredes silenciosas.</p>
-
-<p>Na larga conversação que tivemos, perguntei-lhe:</p>
-
-<p>—E quaes são os presos mais difficeis de regenerar?</p>
-
-<p>—Os ladrões; inquestionavelmente os ladrões.</p>
-
-<p>Ó ladroeira eterna! como o teu reinado, alem de universal, é sobretudo
-incorrigivel! Bem te conhecia Pedro I, que te cortava pela raiz!</p>
-
-<p>—Quantos presos teem saído instruidos da sua escola?</p>
-
-<p>—Nem todos podem completar a instrucção, porque uns acabam de cumprir
-a sentença; outros, quando já se vão adiantando, são removidos. Mas
-posso calcular que um cento de analphabetos e desmoralisados tem levado
-d’aqui mais ou menos instrucção.</p>
-
-<p>—E só instrucção?</p>
-
-<p>—Não só; mais e melhor, a educação. Sem esta escola, como é que um
-João da Silva, preso e analphabeto durante quarenta annos, seria hoje
-procurador em Barcellos? como é que o pedreiro Soutello saíria apto
-para dirigir os seus negocios? como é que um José Pereira Barbosa,
-vendo-se instruido ao reentrar na sociedade, poderia partir para o
-Brazil: ganhar ali a sua vida, começar logo um commercio, fazel-o
-progredir, mandar dinheiro á familia, e em seguida regressar á patria
-com o fructo do seu trabalho? como é que um Manuel Rodrigues e um
-José Gomes teriam apresentado, depois de soltos, um comportamento
-exemplar, correspondendo-se com o seu professor por meio da escripta
-que elle lhes ensinara, narrando-lhe as suas vidas, e protestando-lhe
-a transformação completa que n’elles se operou?—porque, proseguiu Sá
-Carneiro, fico-me interessando por todos esses que eduquei, como se
-fossem meus filhos.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_194">[Pg 194]</span></p>
-
-<p>Que exemplos, e que formosura!»<a id="FNanchor_89" href="#Footnote_89" class="fnanchor">[89]</a></p>
-
-<p>«Acerca dos meios preventivos contra a criminalidade<a id="FNanchor_90" href="#Footnote_90" class="fnanchor">[90]</a> importante
-e vasto assumpto tem os mais distinctos moralistas escripto grossos
-volumes, em que se discutem as divergencias, opinião sobre a
-criminalidade e sobre os meios praticos que a sociedade tem a empregar
-não só para punir o crime, mas tambem para o evitar, materia a que
-ligeiramente nos referiremos n’este limitadissimo esboço. Um dos
-mais distinctos alienistas, Maudsley, estabelece com quasi todos os
-physiologistas modernos que assim como para haver uma regularidade nas
-funcções dos differentes orgãos, sob o ponto de vista da organisação
-physica, é necessario e indispensavel o exercicio d’esses mesmos
-orgãos, principio formulado por Lamarck, assim tambem para se
-desenvolver a potencia psychica da coordenação mental, é necessario o
-mesmo exercicio funccional do cerebro, o que mesmo se póde chamar <i>um
-exercicio gymnastico</i> pela sua analogia com a gymnastica cujo fim
-salutar consiste em operar o desenvolvimento organico do individuo, em
-qualquer dos casos trata-se de aperfeiçoar orgãos que na inactividade,
-como já vimos, se esterilisam, chegando mesmo a deformar-se, o que
-tanto sob este ponto de vista mental, como sob o propriamente chamado
-organico, tem consequencias gravissimas para a constituição social,
-por isso que este atrophiamento é a origem da loucura e do crime,
-e da degenerescencia physica a que tambem corresponde a decadencia
-mental. A falta de exercicio muscular produz n’uma serie de gerações,
-mais ou menos longa, segundo as circumstancias mesologicas, uma raça
-esteril d’elementos anemicos, cheios de vicios e defeitos e por
-isso incapazes para a vida, condemnados a occuparem o ultimo logar
-na concorrencia vital pela sua inferioridade attestada não só pela
-deficiencia de construcção, como tambem nas luctas do pensamento pela
-deficiencia mental. Por outro lado a hygiene physica sem a gymnastica
-mental, com quanto produza uma raça forte, está longe de produzir uma
-raça perfeita, muito longe mesmo de produzir uma raça medianamente
-aproveitavel e util no estado actual da sociedade; traz comsigo a
-inaptidão para que o individuo aprecie em toda a sua complexidade e
-com a clareza necessaria, as circumstancias que sobre si proprio<span class="pagenum" id="Page_195">[Pg 195]</span>
-actuam por isso que lhe não é possivel subordinar os seus actos ao
-imperio de uma vontade indisciplinada, pela falta d’ideias fixas sobre
-as necessidades individuaes e collectivas. N’este caso a desordem
-funccional é a causa, a origem immediata da loucura ou do crime,
-cujos prodromos a maior parte das vezes começam a manifestarem-se no
-desregramento que arrasta os futuros criminosos aos focos infectantes
-e immundos. Ahi pelo contacto com individuos semelhantes e com
-certas affinidades justificadas pela sua organisação a que não podem
-ser superiores, acabam de se cretinisar tanto pelo abuso do alcool
-como pelos prazeres vulgares, em que muitas vezes chegam tambem a
-inutilisar-se outros bem conformados, ou pelo menos com predisposições
-organicas para obter um logar na concorrencia da vida, e isto em
-consequencia de um vicio de educação, apesar de comprehenderem, ou
-terem pelo estudo, adquirido as noções coordenativas da actividade
-social de cada individuo. Estes casos são todavia pouco vulgares, por
-isso que, existindo uma profunda convicção scientifica tirada do estudo
-methodico dos factores sociaes e da analyse dos factos succedidos,
-essa convicção arrasta o individuo para o campo das investigações
-philosophicas onde sobretudo se adquire uma disciplina superior,
-que constitue um preservativo contra todos esses vicios sociaes.
-Ha comtudo casos que não vem a proposito citar e por isso abrimos
-esta excepção. Como já vimos o crime e a loucura são por assim dizer
-<em>duas doenças</em> analogas tanto no caso da sua origem ser meramente
-accidental, como n’aquelle em que a incapacidade e o desregramente
-se manifesta em consequencia de um vicio organico, a maior parte das
-vezes hereditariamente transmittido, como o attestam innumeros casos
-observados nos hospitaes de alienados, onde tantas vezes vão parar
-muitos membros d’uma mesma geração, ou ainda nas prisões pela repetição
-do mesmo phenomeno, para que é necessario se dirijam as attenções dos
-legisladores a fim de estatuirem leis concernentes ao humanitario fim
-de evitar tanto quanto possivel as causas da degenerescencia physica
-e mental. Ha pois dois casos distinctos que devemos considerar em
-separado apesar da intima correlação que entre elles existe e são o da
-perturbação e deficiencia funccional que é susceptivel de modificar-se
-com um regimen hygienico, e o da constituição propria do cerebro em
-qualquer d’estes os meios a empregar são approximadamente os mesmos e
-consistem em procurar n’uma educação scientificamente<span class="pagenum" id="Page_196">[Pg 196]</span> dirigida, o modo
-de lhes desenvolver a potencia determinativa. Ha porém uma differença
-entre estes casos que consiste em que sendo muitas mais vezes
-impossivel obter d’um individuo defeituoso uma certa tendencia para
-ser util, cumpre á sociedade empregar medidas radicaes sobre o destino
-d’estes que as conveniencias geraes da maioria obrigam a sacrificar
-condemnando-os ao hospital no caso d’idiotia, loucura ou monomania,
-caracterisadas por um forte desarranjo das faculdades intellectuaes,
-ou com o desterro quando esse mesmo desarranjo se manifesta pela
-perversidade de sentimentos, isto é, por uma tendencia irresistivel
-para ser prejudicial á collectividade ainda que o criminoso esteja
-certo das consequencias dos actos que pratica, como muitas vezes
-succede. Estabelecidas estas differenças vejamos em resumo os meios
-que a sciencia aconselha como preventivos e que em um futuro não muito
-remoto, hão-de ter produzido resultados satisfatorios, se os poderes
-publicos dos estados mais civilisados se resolverem a attender a esta
-questão a que está affecto o bem-estar social, como necessariamente hão
-de ser obrigados pelas exigencias progressivamente accentuadas pela
-corrente scientifica que actualmente se dirige em todos os sentidos. E
-isto apesar das graves difficuldades do problema para cuja solução, a
-par d’uma grande liberdade cujas garantias estão estabelecidas por este
-mesmo desenvolvimento scientifico, é necessario mais estabelecerem-se
-certas e determinadas restricções tendentes a impedir a degenerescencia
-organica e mental pelos cruzamentos indevidos. Prende-se tambem com
-este problema a momentosa questão economica que exige ainda muito
-trabalho dos philosophos para que se cheguem a estabelecer e a fazer
-comprehender no publico um certo numero de doutrinas já debatidas e
-aceitas, contra que ainda se levantam graves attrictos apesar de se
-não poder conseguir por emquanto a sua resolução definitiva para o que
-o maior trabalho ainda está por fazer e nem mesmo se sabe quando se
-fará. Leibnitz escreveu «dae-nos educação e nós mudaremos em menos d’um
-seculo a face da Europa.» Na primeira linha dos meios preventivos a que
-nos temos referido depara-se logo com a <i>Educação</i>. É este o mais
-pratico, o mais efficaz e o primeiro a empregar, por isso mesmo que é
-principio assente de que só por meio d’uma instrucção publica ampla
-e obrigatoria, racional e methodica, junta a uma educação dirigida
-segundo as necessidades contemporaes se póde<span class="pagenum" id="Page_197">[Pg 197]</span> obter a revivescencia
-da actividade popular, isto é, a sua preparação para a vida social,
-livremente dos actuaes preconceitos e contingencias, que são como que
-uma negativa da civilisação. Já Leibnitz dizia que quem reformasse a
-educação, reformaria tambem o genero humano, e o sabio Spencer no seu
-livro sobre este assumpto a que dedica o maximo interesse diz que o seu
-fim é preparar o individuo para a vida completa. Em poucas palavras
-traçou este philosopho o fim da educação moral, intellectual e physica
-até hoje crivada de preconceitos estereis que lhe transtornam a acção,
-que chegam mesmo a esterilisar as intelligencias nascentes opprimidas
-pelo jugo terrivel de uma direcção anarchica. Não procura acompanhar
-o desenvolvimento das faculdades intellectuaes, partindo do mais
-concreto para o mais abstracto, seguindo o processo do desenvolvimento
-do espirito humano, de cuja marcha o desenvolvimento individual é como
-que uma momentanea repetição das differentes phases que atravessou
-durante os longos periodos da vida. É como diz também Espinas<a id="FNanchor_91" href="#Footnote_91" class="fnanchor">[91]</a>
-«mudando as idéas que se mudarão as instituições e os costumes, sendo
-portanto a educação o instrumento da reconstituição social». Mas
-para que este meio preventivo de todas as calamidades sociaes dê os
-resultados satisfatorios que os philosophos lhe attribuem é necessario
-mais que proclamar o ensino obrigatorio de que resulta simplesmente o
-ensino da leitura e da escripta. É necessario mais do que instituir
-escolas por toda a parte, regidas por professores pouco instruidos
-que não podem ultrapassar os limites de um ensino esterilisador...
-Devendo a educação ter um caracter scientifico, exclusivamente
-scientifico e obedecer nas suas regras a leis determinadas pelo estudo
-physio-psychologico do individuo, nós vemos que realmente a escola
-primaria, em que reside o futuro das sociedades, não satisfaz ao fim
-que é destinada. Limita-se exclusivamente a ensinar materialmente as
-creanças a ler e escrever, atrophiando-lhes as faculdades intellectuaes
-pelo abuso da fixação absurda de certos conhecimentos superiores que
-desenvolvendo a memoria, condemnam o desenvolvimento do raciocinio.
-E ante este estado da instrucção publica, parece ser este o seu fim
-principal e não preparar cidadãos uteis e prestantes. Ainda as classes
-dirigentes não chegaram a comprehender que a sciencia<span class="pagenum" id="Page_198">[Pg 198]</span> e a verdadeira
-interpretação do dever social, é a mais solida disciplina em que póde
-assentar a solidariedade por isso que, como diz Espinas, a sciencia é
-o patrimonio commum da humanidade por toda a parte onde se encontram
-sufficientes luzes. Ella bastará com a arte porque a imaginação
-encontra mais abundantes recursos nas suas grandiosas concepções, que
-nas invenções mesquinhas da fabula. Bastará não menos á industria
-que em todos os tempos tem sido a sua obra, e mais, ella chegará a
-organisar os differentes elementos de producção prevenindo as soluções
-artificiaes e revolucionarias; chegará a estabelecer a harmonia entre
-o capital e o trabalho. Desenvolver por todos os meios a educação
-imprimindo-lhe um caracter verdadeiramente concorde com as aspirações
-hodiernas dos grandes philosophos, que por meio da investigação e da
-experiencia têem descoberto as leis do desenvolvimento humano tanto sob
-o ponto de vista physiogenetico como anthropogenetico, eis a primeira
-necessidade de todos os organismos sociaes empenhados em estabelecer
-o bem-estar geral. É este um trabalho complexo enormemente grandioso
-quando comparado sob todos os seus aspectos de prosperidade social,
-e que se prende não só com a familia onde a creança recebe não só as
-predisposições organicas e as primeiras sensações, as primeiras idéas
-cujos vestigios quasi sempre se manifestam atravez de todos os periodos
-da nossa existencia. Para terminarmos sobre este ponto essencialissimo
-de prevenção do crime e da loucura, citaremos a opinião de Maudsley
-que diz: «Abstraindo do dever positivo de todo o homem em adquirir
-a mais completa intelligencia, e estabelecer relações com o meio
-ambiente, a fim de tirar d’elle o melhor partido em proveito do seu
-desenvolvimento pessoal, o estudo e a pratica das sciencias naturaes,
-constitue a gymnastica a mais favoravel ás faculdades intellectuaes.
-Nenhum outro estudo póde no mesmo grau ensinar a observar com maior
-exactidão e a raciocinar com melhor criterio»<a id="FNanchor_92" href="#Footnote_92" class="fnanchor">[92]</a>. A melhor garantia
-d’uma clara percepção, d’um sentimento justo, d’um entendimento
-vigoroso e d’uma vontade intelligente, em qualquer circumstancia da
-vida, é o habito contrahido nas circumstancias procedentes d’uma
-percepção sã, d’um sentimento justo, d’um entendimento vigoroso e
-d’uma vontade intelligente; por outros termos, é o<span class="pagenum" id="Page_199">[Pg 199]</span> desenvolvimento
-completo da natureza intellectual e moral. Na maioria dos homens,
-diz ainda Maudsley, a formação de caracter qualquer que seja, é o
-resultado do acaso e nunca o effeito da premeditação; é o producto
-accidental da disciplina e da educação que o individuo recebe. Este
-facto presenceia-se a todos os momentos, entre esses individuos que
-por circumstancias fortuitas são educados n’um meio corrupto, ou mesmo
-ainda entre aquelles que prematuramente são pela sociedade arremessados
-para essas escolas de desmoralisação chamadas as prisões, onde muitas
-vezes se estiolam intelligencias aproveitaveis e espiritos susceptiveis
-de receberem uma orientação util, se se não votasse o maior despreso
-a esta serie de miserias sociaes que são uma affirmativa do estado de
-rudimentos da nossa civilisação. Quanto mais estudamos a criminalidade
-e vemos os meios preventivos, alguns de grande facilidade no seu
-emprego, tanto mais nos convencemos como Quetelet de que exactamente
-essa sociedade que tanto odio vota aos criminosos é a unica responsavel
-por actos detestaveis e ainda mais pela perda d’um grande numero dos
-individuos que os praticam. Onde ella vê criminosos perigosissimos
-para quem o desterro se póde applicar, teria cidadãos uteis se tivesse
-tratado de os formar. A educação, dissemos, é o grande meio preventivo
-contra a criminalidade, mas ainda não é tudo e ha mesmo outras medidas
-concernentes ao mesmo fim que é necessario empregarem-se.»</p>
-
-<p>A educação carece d’uma actividade constante na vida exterior, que
-forneça elementos de elaboração á vida psychologica, directa ou
-automatica. A sensibilidade, a intelligencia, a vontade modificam-se
-inconscientemente pelo trabalho educativo. O pensamento na phase
-psychogenica é essencialmente receptivo, alimenta-se das circumstancias
-que o rodeiam. Existe, é verdade, congenitamente um peculio de força
-psychica, proveniente da mesma natureza humana e da hereditariedade,
-mas a energia da educação póde imprimir a essa força, quasi no estado
-nascente, certa linha directriz. É por isso que o eminente psychologo
-contemporaneo Bernard Perez, faz nos seus interessantes estudos a
-alliança da psychologia infantil com a pedagogia. A educação criminal
-nas prisões para adultos, é já apenas um remedio, quando no lar deve
-ser um alimento vivificante.</p>
-
-<p>O distincto psychologo a que acima nos referimos, escreve:</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_200">[Pg 200]</span></p>
-
-<p>«O mêdo é um dos sentimentos que mais se oppõem ao bem estar physico
-e moral da creança, e, conseguintemente, ao seu desenvolvimento
-intellectual. É um instincto innato que pela perturbação geral do
-organismo, pela rapidez da circulação e respiração reage, mesmo
-inconscientemente, contra um mal presente ou proximo. Corresponde
-a um consideravel affluxo de sangue para os centros nervosos, aos
-quaes desperta e prepara logo para a lucta, para o ataque ou defeza.
-É hereditario nas suas manifestações geraes; apparece geralmente
-durante o somno, reagindo por tal modo contra o perigo imminente.
-Muitos physiologistas e psychologos consideram-n’o como que hereditario
-nas suas differentes especies, taes como o mêdo das impressões
-bruscas, intensas e insolitas, o receio de certos animaes, o pavôr
-da escuridão e da solidão, e até o proprio mêdo da morte. Haja porém
-o que houver ácerca de taes affirmações, que por mais d’uma vez tive
-occasião de discutir, certo é que alguns sustos especiaes, como mêdo
-dos cães, dos ursos, dos elephantes, das serpentes, precizam, para
-reproduzir-se no herdeiro das gerações antigas, que se dê a repetição
-frequente das causas que outr’ora os produziram. Se esses objectos
-não se apresentam na primeira edade, a predisposição hereditaria
-poderá não manifestar-se, ou demorar-se a sua manifestação. Mais
-tarde encontrariam no ser já desenvolvido, formado, aguerrido, mais
-obstaculos para produzir os seus effeitos.</p>
-
-<p>Coragem e mêdo são sentimentos por egual innatos. A mãe parece
-grandemente apta, em virtude dos effeitos duraveis da incubação
-physica e moral, para transmittir o instincto da coragem ou do mêdo.
-É porém, especialmente, pela incubação artificial da creança, que as
-mães medrosas ou corajosas, produzem, como se tem dito, filhos que se
-lhes assimilham. O mêdo é uma susceptibilidade enferma, que attinge
-os filhos de paes pouco sãos de corpo e de espirito, mas em diversos
-graus e todos na proporção da sua fraqueza. Nos primeiros tempos,
-especialmente, a cura d’uma tal nevrose depende quasi totalmente do
-regimen e da hygiene. Uma prova do facto é que os homens mais senhores
-de si tornam-se algumas vezes sensiveis e timoratos como creanças,
-quando a doença os debilita. E de mais, não esqueçamos que se o mêdo
-nasce da fraqueza, esta origina aquelle. «Isso constitue, diz Mosso,
-um circulo fatal nas funcções do organismo... A excitação do systema
-nervoso predispõe o<span class="pagenum" id="Page_201">[Pg 201]</span> individuo para o mêdo, o qual actuando por seu
-turno sobre a excitabilidade augmenta-a indefinidamente<a id="FNanchor_93" href="#Footnote_93" class="fnanchor">[93]</a>.»</p>
-
-<p>Locke e Rousseau escreveram bellissimas e sensatissimas paginas
-sobre a necessidade de ir habituando progressivamente a creança a
-não temer demasiado o perigo verdadeiro, e sobretudo a temer o menos
-possivel o perigo afastado. Locke dá-nos até um conselho precioso a
-respeito da creancinha. «É conveniente afastar da vista da creancinha
-de peito tudo quanto possa assustal-a; porque até que ella possa
-fallar e comprehender o que se lhe diz, seria inutil apresentar-lhe
-razões para a convencer de que não tem nada a temer da parte d’essas
-cousas assustadoras, que nós quereriamos tornar-lhe familiares
-approximando-lh’as cada vez mais n’uma gradação insensivel. Mas,
-se, não obstante, acontece que uma creancinha ainda de peito se
-sensibilisa ao ver cousas que não podem commodamente furtar-se-lhe
-á sua apreciação, e que manifesta repugnancia sempre que ellas lhe
-apparecem á vista, é preciso n’esse caso empregar todos os meios
-para lhe diminuir esse mêdo, desviando-lhe o pensamento d’esses
-objectos, ou juntando-lhes imagens graciosas e agradaveis, até que
-se lhe tornem tão familiares que a não incommodem<a id="FNanchor_94" href="#Footnote_94" class="fnanchor">[94]</a>.» Na edade dos
-dois ou tres annos notam-se na creança umas certas aprehensões, a
-proposito da côr ou da fórma dos objectos que não conhece ou cujas
-analogias lhe não são muito familiares. Creio que é preciso, já o
-disse n’outro logar, uma como especie de transformação imaginativa
-das experiencias pessoaes n’essas vagas aprehensões do mal que podem
-causar lhe esses objectos desconhecidos. Seja qual fôr a origem d’essas
-antipathias ou d’esses sustos, que se não explicam, o que mais nos
-deve aqui importar, é a faculdade de desapparecerem após repetidas
-experiencias que tornaram familiares ás creanças os objectos que a
-principio lhes eram terriveis. Locke e Rousseau deram a proposito da
-cura d’esta especie de receio conselhos quasi similhantes, alguns
-dos quaes podem mui bem seguir-se na educação da creança. «O vosso
-filho, diz Locke, estremece e foge ao ver uma rã: mandae a uma outra
-pessoa que pegue n’ella, e determinae-lhe que a colloque a distancia.
-Acostumae-o primeiro<span class="pagenum" id="Page_202">[Pg 202]</span> a encaral-a, e quando elle puder fital-a sem
-constrangimento, a consentil-a mais perto do si, a vel-a saltar sem se
-impressionar; depois mandae que lhe toque ao de leve, em quanto alguem
-a segura com as mãos; continuando assim gradualmente a tornar-lhe
-familiar o animal, de modo que elle possa tocar-lhe como toca n’uma
-borboleta ou n’um passaro. Assim se procurará disciplinar este
-juvenil soldado...<a id="FNanchor_95" href="#Footnote_95" class="fnanchor">[95]</a>» Rousseau desenvolve mais minuciosamente este
-preceito: «Quero que o habituemos a ver objectos novos, animaes feios,
-repugnantes, extravagantes, mas a pouco e pouco, de longe, até que se
-acostume, e que á força de ver os outros mecherem-lhe, elle mesmo lhes
-mecha. Se, em creança, viu sem temor sapos, cobras, lagostas, verá
-sem horror, quando fôr maior, qualquer outro animal. A impressão dos
-objectos horrorosos desapparece para quem se habitua a vêl-os.» Assim
-a creança habitua-se a não se assustar das mascaras e a rir d’ellas,
-quando outras pessoas as põem na cara á sua vista. Acostuma-se tambem
-aos tiros de espingarda, bombas, tiros de peça, e mais terriveis
-detonações, se se começa por se queimar uma simples escorva e se passa
-a mais fortes cargas. Depressa se acostumam tambem a ver pessoas
-vestidas de preto que lhe fallam com meiguice, ás caras estranhas, ás
-vozes estrondosas ou cavernosas, que a principio tanto a assustavam.
-Estes processos, d’uma facil applicação, preparam as transições, o
-que é essencial em materia d’educação. Convém porém evitar o excesso,
-e, por exemplo, não familiarisar a creança com o perigo ficticio a
-ponto de a entregar sem defesa ao verdadeiro perigo. Muitas vezes a
-valentia da creança é simplesmente ignorancia ou falta d’imaginação.
-Devemos saber e prever por ella. Que se mostrem todos esses horrores
-zoologicos á creança, mas na sua presença mexa-se-lhes com todas as
-cautellas. Deve saber que um sapo é immundo, uma serpente venenosa, uma
-lagosta picante, e como deve usar-se para lhes pegar ou approximar-se
-d’elles. Quando tem dois annos podem explicar-se-lhe estas cousas, mas
-de sorriso nos labios, e nunca manifestando um receio muito serio. É
-preciso disciplinar mas não supprimir este util instincto o do receio.
-Desde os tres annos e mesmo ainda antes, uma creança bem educada póde
-comprehender por ver os seus educadores, que se póde ser valente sem
-temeridade,<span class="pagenum" id="Page_203">[Pg 203]</span> e prudente sem fraqueza. Os nossos leitores poderão ler
-no <i>Emilio</i> as mais interessantes paginas que se teem escripto
-a respeito dos meios de corrigir o mêdo das trevas, Darwin julga-o
-hereditario, e Rousseau, julga-o natural em todos os homens; e em
-certos animaes, dá-se, segundo Buffon, uma explicação scientifica do
-caso. Este tão commum espanto não deve attribuir-se só ás historias das
-amas; os phantasmas da escuridão não nos estão apenas na imaginação,
-mas tambem d’algum modo nos olhos. Levados naturalmente a julgar dos
-objectos segundo a grandeza da imagem que formam em nossos olhos,
-nós povoamos a meia escuridão da noite de figuras gigantescas, ou
-medonhas, em virtude d’aquella illusão que em certos casos nos levará
-a tomar uma mosca que passa junto de nós por um passaro que estivesse
-a grande distancia. Os objectos assim transformados espantam como tudo
-o que se desconhece ou não vê bem. «É tambem muito provavel que a
-ausencia d’impressões visuaes concorra para augmentar outras sensações,
-especialmente a audição e o tacto, como é facil de experimentar
-observando as proprias sensações em condições identicas<a id="FNanchor_96" href="#Footnote_96" class="fnanchor">[96]</a>» Ajunte-se
-a esta causa natural do erro a influencia dos contos phantasticos,
-e a imaginação trabalhará do mais deploravel modo. As impressões
-penosas, os maus tratos, uma sensibilidade doentia, predispõem para
-o susto. Este genero de fraqueza, tão funesto á creança, tem causas
-immediatas, que são mais faceis de prevenir do que as remotas, seriam
-de eliminar. O mêdo de que fallamos é sobretudo devido á educação. Se
-os selvagens, segundo narrativas de certos viajantes, teem algumas
-vezes medo das trevas, é porque a sua imaginação supersticiosa as povôa
-de espiritos invisiveis. O animal não tem mêdo das trevas, por causa
-das proprias trevas. Conheci creanças que por um effeito evidente de
-educação não manifestavam tal fraqueza. O meu sobrinho Carlos, assim
-como o seu irmão Fernando, nunca mostraram mêdo da escuridão. Todavia
-Fernando chora quando o deixam só ás escuras, e Carlos pede muitas
-vezes á ama para lhe alumiar na escada. Será mêdo? Não é. Fernando
-chora porque se julga abandonado, porque já não vê<span class="pagenum" id="Page_204">[Pg 204]</span> a mãe, como chora
-de dia, quando ella sóbe sem esperar por elle, e como fica a gritar
-na escada quando ella parte. Carlos tambem fazia assim n’outro tempo.
-Este faz-se alumiar, porque só assim vê para andar, e para dirigir-se
-melhor. Fernando chora algumas vezes na cama quando o vão deitar e
-deixam só. Carlos hoje já não chora, e adormece logo, não se importando
-para nada com a escuridão. Um e outro sahem sós da casa de jantar para
-atravessarem o corredor ou irem para a cosinha. Quando foram escriptas
-estas linhas, o mais velho tinha sete annos, o outro quasi cinco.</p>
-
-<p>Nada vejo que haja a accrescentar aos excellentes preceitos de
-Rousseau, com respeito ao mêdo da escuridão e do que elle póde ter
-de hereditario, e de mais ou menos espalhado na nossa especie. Elle
-aconselha muitos brinquedos de noite, e especialmente brinquedos
-alegres, de modo que a creança se acostume a estar ás escuras, a
-servir-se das mãos e dos pés tateando os objectos que não vê. Mas não
-é «com surprezas» que devem «acostumar-se as creanças a não terem, de
-noite, susto de cousa alguma. Este methodo é contraproducente, dá um
-resultado inteiramente contrario ao que se deseja, e serve só para as
-tornar mais medrosas. Não podem a razão nem o habito socegar-nos o
-espirito com respeito á idéa d’um perigo presente de que se não conhece
-o grau ou a especie, nem ainda com respeito ao receio de surprezas
-tantas vezes experimentadas<a id="FNanchor_97" href="#Footnote_97" class="fnanchor">[97]</a>.» Em caso nenhum, convém brincar com o
-medo presente d’uma creança. Creio até que, passado o susto, o habito
-dos exercicios proprios a darem-lhe serenidade actuariam melhor no seu
-amor proprio para o corrigir d’essa enfermidade do que a zombaria.
-O inverno é propicio para isso; aproveitemol-o; disponhamos os seus
-prazeres para as horas da noite. Ensinemos-lhe a reconhecer por si
-mesma os objectos que a escuridão nos faz tomar por muito differentes
-do que são. Approximemo-nos de todos que passarem ao nosso alcance, e
-prolonguemos á vontade a conversação, permitindo á creança que fique
-junto de nós ou que se afaste, nada perdendo das suas impressões.
-Façamos que naturalmente se habitue aos mil pequenos rumores que se
-ouvem particularmente de noite, e que saiba rindo e sem o esquecer,
-que as cousas só para os ignorantes são mysteriosas; que os phantasmas
-outra cousa não são<span class="pagenum" id="Page_205">[Pg 205]</span> mais do que a obra do medo que perturba a
-imaginação, ou dos maus farcistas que por mais d’uma vez tem pagado
-caro a sua phantasia<a id="FNanchor_98" href="#Footnote_98" class="fnanchor">[98]</a>. Quanto á creança de berço que está quasi
-inteiramente á mercê das influencias hereditarias, deveria habituar-se
-a dormir com e sem luz, a ouvir fallar, a sentir-se amimada, a ouvir
-ralhar-se-lhe, ora de perto, ora de longe, a escutar na escuridão
-todas as especies de rumores, a ver a luz e os objectos apparecerem e
-desapparecerem repentinamente. São optimas precauções para tomar antes
-da epocha em que as primeiras experiencias das coisas, e o perigo
-quasi inevitavel dos contos absurdos, hão de começar a desenvolver o
-instincto innato do susto. Até á idade de quatro ou cinco annos, a
-creança tem apenas uma idéa muito vaga da morte: não póde portanto
-causar-lhe mêdo ou horror. Ella assimilhar-se-ia por isso á maior parte
-dos animaes superiores, porque não está provado, como o disse Caro,
-que estes tenham uma concepção similhante á do homem adulto. Quando
-muito teem o vago instincto d’um perigo supremo, que excede todos os
-conhecidos<a id="FNanchor_99" href="#Footnote_99" class="fnanchor">[99]</a>.» O argumento tirado dos cães que gemem e se deixam
-morrer de fome sobre o tumulo do dono não é absolutamente decisivo:
-a tristeza de ver-se privado d’um dono affeiçoado póde produzir esta
-prostração das forças physicas e moraes terminando pela impossibilidade
-de viver. O suicidio das creanças provaria muito mais, e sabe-se que
-não é elle rarissimo nas creanças muito infelizes, muito susceptiveis,
-d’uma sensibilidade doentia. De resto, esta mania nunca affecta
-creanças de menos de seis annos. Foi com certeza n’uma epocha posterior
-que se deu o seguinte facto. «Eu conheço o caso d’uma creança que por
-tal modo se tinha impressionado com o mêdo da morte que não dormia de
-noite; não era isto effeito de descripções horrorosas da morte que
-lhe tivessem incutido, mas o resultado das suas proprias reflexões
-sobre o assumpto<a id="FNanchor_100" href="#Footnote_100" class="fnanchor">[100]</a>.» Devia haver alguma cousa de anormal n’aquella
-tenra cabeça e nas condições exteriores do seu desenvolvimento
-moral. Certo é que a creança tem uma qualquer idéa da morte. Como é
-impossivel que ella não oiça fallar d’esse grande pavor dos adultos,
-convém familiarisal-a com o caso e apresentar-lh’o<span class="pagenum" id="Page_206">[Pg 206]</span> só sob a fórma
-d’um repouso eterno ou d’um somno tranquillo. Póde, por exemplo,
-apresentarem-se-lhe animaes mortos, como fizeram ao filho de Taine.
-«Ante-hontem o jardineiro matou uma pêga que dependurou por uma perna
-do esgalho d’uma arvore, em ar de espantalho; disseram-lhe que a pêga
-estava morta, ella quiz vêl-a.—Que é que faz a pêga?—Não faz nada, já
-não meche, está morta.—Ah!—Pela primeira vez a idéa da immobilidade
-final entra em seu espirito.» Poucas creanças, é certo, se assimilham
-a esta menina, a quem uma resposta satisfaz, e que tem apenas um ah!
-para replicar. Aquelle ah! aquella interjeição ali posta como fecho de
-objecção não é d’uma creança, ou a menina do que falla Taine era dotada
-d’uma imaginação muito pacifica. E de mais, assim é que se deve fallar
-da morte a uma creança.</p>
-
-<p>Quando uma creança está de saude não ha inconveniente, a meu ver, em
-lhe mostrar pessoas mortas ou ossadas humanas. A pallidez e a rigidez
-cadaverica, e com mais forte razão os restos osseos não teem nada de
-pavoroso. Uma creança de tres annos fallava da morte como d’um estado
-em que já se não soffre do estomago nem da cabeça; de noite fallava dos
-parentes mortos, como de qualquer outra coisa. É porque seu pae, sabio
-livre de prejuizos, mostrava-lhe diversas vezes animaes ou pessoas
-mortas, dizendo-lhe: «Vê lá, quando se está morto, não se meche, não
-se falla, não se ouve e não se vê nada; é como uma arvore, uma pedra,
-uma cadeira, uma meza; não se move perna ou braço, não se sente bem ou
-mal, não se precisa comer nem beber.» Estas imagens e estas explicações
-haviam dado á creança uma idéa assaz justa, assaz desassombrada da
-morte. Perguntou um dia para que se mettiam os mortos n’uma grande
-caixa e se levavam para muito longe: o pae não lhe respondeu nada
-mais senão que se levavam para o cemiterio, e que iria com elle
-visital-o. Levou-o lá effectivamente, no dia seguinte; approximou-se
-d’uma cova aberta de fresco e disse-lhe:—«Vês aquelle buraco, é ali
-que se depositam a caixa e o morto, para sempre; cobrem-se com terra
-porque os mortos apodrecem como a fructa ou a carne, e cheirariam
-muito mal.» Fel-o depois reparar n’alguns ossos desenterrados pela
-enxada do coveiro; mecheu sem dizer nada n’uma tibia, n’uma vertebra,
-n’um craneo; a creança fez logo o mesmo. Ás perguntas seguiram-se as
-perguntas. O pae respondia-lhe<span class="pagenum" id="Page_207">[Pg 207]</span> simplesmente. «Quando se está morto e
-corrupto, tornamo-nos bocados do ossos.—Succeder-me-ha o mesmo a mim
-quando eu morrer?—Sim, e a mim tambem e a tua mãe. Mas, meu filho, não
-havemos de morrer ámanhã, nem depois de ámanhã, nem por muito tempo
-ainda.—Ha de chorar muito quando eu morrer?—Oh! não morrerás antes
-de mim, assim o espero. Não se sabe quando se ha de morrer.—E porque
-choraria, diga?—Porque te amo, e desejaria viver sempre comtigo. De
-resto, quando se está morto, não se é desgraçado, pelo contrario, não
-mais se soffre. Somos ossos mettidos na terra. Vamo-nos embora.» A
-creança pegou na mão do pae, mas largou-a logo para seguir rindo, uma
-borboleta que acabava de voar d’uns arbustos. O insecto levou mais
-longe o seu vôo, e a creança voltou logo a dizer ao pae: «Havemos de
-voltar aqui, sim, papá?» Se esta creança tivesse ouvido alguma tola
-ama fallar com seriedade de phantasmas, de lobis-homens, a scena que
-reproduzimos deixal-a ia tão tranquilla? É assim que se consegue, sem
-empregar equivocos ou uma falsa sentimentalidade, mostrar á creança
-a verdade que póde comprehender. «Um remedio directo para um temor
-particular, disse a judiciosa madame Necker de Saussure, é substituir
-pela presença do objecto temido a idéa que se formava d’elle. Não
-figuramos aquillo que vemos, e a realidade por mais desagradavel e
-ingrata que seja produz um effeito calmante nos sentidos. Este meio,
-podendo praticar-se, é efficacissimo, mas devemos servir-nos d’elle
-cautellosamente.»<a id="FNanchor_101" href="#Footnote_101" class="fnanchor">[101]</a></p>
-
-<p>O nosso codigo penal abrange nas circumstancias dirimentes da
-responsabilidade criminal, a falta da imputabilidade e a justificação
-do facto, e julga não susceptiveis de imputação os menores de 10
-annos e os loucos que não tiverem intervallos lucidos, ou os loucos
-que, embora tenham intervallos lucidos, praticarem o facto no estado
-de loucura. O nosso codigo penal previu claramente as hypotheses
-acceitaveis da escola anthropologica quando affirma que os loucos que,
-praticando o facto, forem isentos de responsabilidade criminal, serão
-entregues á sua familia para os guardarem ou recolhidos em hospitaes de
-alienados, se a mania fôr criminosa ou se o seu estado o exigir para
-maior segurança. Entende egualmente que os menores, que, praticando
-o facto forem<span class="pagenum" id="Page_208">[Pg 208]</span> isentos de responsabilidade criminal por não terem 10
-annos ou por terem obrado sem discernimento sendo maiores de 10 annos
-e menos de 14, serão entregues a seus paes ou tutores, ou a qualquer
-estabelecimento de correcção ou colonia penitenciaria se a houver no
-continente. É obvio que n’esta legislação criminal está assignalada a
-idéa de hospitaes de alienados para os perigosos á ordem publica e a
-idéa de estabelecimento de casas de correcção. O fundamento do direito
-de punir no codigo penal portuguez é a responsabilidade criminal que
-consiste, segundo, a sua bella definição no dever em reparar o damno
-causado na ordem moral da sociedade, cumprindo a pena estabelecida na
-lei, e applicada pelo tribunal competente.</p>
-
-<p>A responsabilidade criminal é ainda aggravada ou attenuada quando
-concorrem no crime, ou no agente d’elle, circumstancias attenuantes
-ou aggravantes e dada a aggravação da pena. O alcoolismo é, perante
-o nosso codigo penal muitas vezes um crime, outras vezes uma
-circumstancia attenuante e nunca uma circumstancias dirimente. O artigo
-40 diz o seguinte: a privação voluntaria e accidental do exercicio da
-intelligencia e inclusivamente a embriaguez voluntaria e completa no
-momento da perpetração do facto punivel, não dirime a responsabilidade
-criminal, apezar de não ter sido adquirida no proposito do perpetrar,
-mas constitue circumstancia attenuante de natureza especial, quando
-signifique alguns dos seguintes casos: 1.ᵒ ser a privação ou a
-embriaguez completa e imprevista, seja ou não posterior ao projecto
-do crime; 2.ᵒ ser completa e procurada sem proposito criminoso e não
-posterior ao projecto do crime. Em qualquer dos casos a isenção de
-responsabilidade criminal não envolve a responsabilidade civil, quando
-esta se dê. Todo o nosso direito criminal tem por base a intenção,
-visto que são puniveis não só o crime consumado, mas tambem frustrado
-e a tentativa, assim o artigo 6.ᵒ diz que ha crime frustrado quando o
-agente pratica com intenção todos os actos de execução que deveriam
-produzir-se, como resultado do crime consummado, e todavia não se
-produzem por circumstancias independentes da sua vontade. Egualmente,
-ainda que a tentativa não seja punivel os actos que entram na sua
-constituição são puniveis, se forem classificados como crimes pela lei
-ou como contravenções por lei ou regulamento. É evidente que todos
-estes principios se applicam a todos os agentes<span class="pagenum" id="Page_209">[Pg 209]</span> do crime nas suas
-differentes condições, quer sejam auctores, cumplices ou encobridores.</p>
-
-<p>É erro corrente da escola italiana suppor que o caracter do
-delinquente, resulta apenas de uma fatal causalidade organica. Ainda
-porém ultimamente um illustre psychologo francez, Fr. Paulhan, publicou
-um vasto livro<a id="FNanchor_102" href="#Footnote_102" class="fnanchor">[102]</a> no qual fez, segundo o seu ponto de vista, uma
-analyse profunda das fórmas da actividade mental e dos elementos
-psychicos tendo por fim demonstrar que o espirito é a resultante d’uma
-synthese de productos sociaes, formada sobre uma synthese de productos
-organicos. Estudando os elementos psychicos, reconhece que ha uma
-actividade propria, relativamente independente, analoga á dos homens,
-das familias e dos partidos, que constituem uma sociedade, estando
-porém tudo unificado por uma lei principal, que é a lei da finalidade.</p>
-
-<p>Paulhan, fazendo o estudo da personalidade psychologica, indaga como
-as sensações e as percepções são systemas de elementos, como as
-ideias são systemas de elementos tirados de numerosas percepções, as
-tendencias são associações coordenadas de ideias, de percepções reaes
-ou possiveis, de imagens motrizes, de elementos reaes, associando-se
-progressivamente a systemas cada vez mais vastos. Cada traço de
-caracter resulta da coordenação, segundo dada maneira, de um certo
-numero de tendencias. A avareza, por exemplo, é uma systematisação n’um
-sentido muito determinado d’estas tendencias, que fazem trabalhar para
-ganhar dinheiro, fazendo sacrificios de toda a especie. A personalidade
-póde ser modificada por uma d’estas tendencias, que fazem do agente um
-heroe ou um criminoso, e a sua formação póde ter uma origem hereditaria
-ou adquirida.</p>
-
-<p>A mór parte das qualidades do nosso caracter vem do habito. Ha quem
-diga, por exemplo, que o medico alienista vê facilmente em todo o
-delinquente um louco, impellido pelo habito de lidar com loucos.
-Egualmente se affirma que os juizes habituados a lidar com criminosos,
-estão sempre dispostos a ver em cada accusado um criminoso. De facto o
-juiz adquire na pratica do seu officio um caracter insensivel e duro.
-Desde os legistas dos fins da idade média até ao seculo XVIII, todos os
-tribunaes da Europa adoptaram a tortura como processo de julgamento. O
-juiz, levado por uma<span class="pagenum" id="Page_210">[Pg 210]</span> simples denuncia, sujeitava o infeliz accusado,
-muitas vezes era um innocente, aos <em>tratos pela agua</em>, <em>pela
-apoleação</em> ou pelos <em>borzeguins</em>. Jámais, como Alexandre Magno,
-o juiz <em>guardava um ouvido para o accusado</em>. Debalde o reu no
-supplicio podia exorar: <em>appello para Philippe em jejum</em>.</p>
-
-<p>É um aphorismo em psychologia, que a intensidade dos phenomenos
-sensiveis, dolorosos ou agradaveis diminue com o habito, em quanto os
-phenomenos da intelligencia se avigoram e fortalecem.</p>
-
-<p>Escreve o grande jurisconsulto Charles Comte: «... no estado actual dos
-nossos conhecimentos, é impossível determinar as differenças essenciaes
-que existem entre as diversas especies de homens, relativamente ás
-suas faculdades intellectuaes e moraes; um systema que explique todas
-as differenças que se observam entre as nações, por uma differença nas
-faculdades intellectuaes, não é mais conforme á verdade que aquelle
-que explica todos os phenomenos physicos, moraes e intellectuaes pela
-temperatura da atmosphera, se existisse alguma differença em a natureza
-das diversas especies, essas differenças podem ser comparadas por um
-grande numero de circumstancias, de sorte que o povo, que por sua
-natureza fosse menos susceptivel de desenvolvimento, poderia comtudo
-estar mais desenvolvido que aquelle que fosse melhor organisado, mas
-que estivesse collocado em circumstancias mais favoraveis.<a id="FNanchor_103" href="#Footnote_103" class="fnanchor">[103]</a>»</p>
-
-<p>Os crimes que resultam da transgressão de leis positivas das
-sociedades, estão diminuindo constantemente com o progresso
-intellectual, como por exemplo, muitos dos delictos de religião, os
-quaes vão desapparecendo com o incremento do sentimento do tolerancia
-e de respeito pela consciencia individual; igualmente os crimes de
-contrabando, que, com os largos principios economicos da abolição
-das barreiras e sumiço de outros estorvos que impedem a liberdade
-de commercio, tendem a ser considerados n’um futuro mais ou menos
-longinquo actos legitimos. Não succede o mesmo com os crimes que violam
-os principios moraes, como os ataques contra a propriedade, contra as
-pessoas e contra o pudor, os quaes constituem a grande fraqueza moral
-ou estado pathologico da nossa natureza.</p>
-
-<p>O congresso de anthropologia criminal, realisado na epoca<span class="pagenum" id="Page_211">[Pg 211]</span> da exposição
-em Paris, deixou, por parte dos francezes e dos allemães, habilmente
-ferida a escola anthropologica juridica italiana. O egregio professor
-Cesar Lombroso, que pontifica na universidade de Turim, encontrou na
-<em>dieta</em> anthropologico-criminal de Paris, muitos protestantes que
-lhe demonstraram a phantasia dos mais queridos dogmas da escola penal
-positiva. Benedikt, Manouvrier, Tarde, etc., pozeram bem em evidencia,
-a qual não póde negar-se, que devem existir disposições organicas para
-o crime, como devem existir para o genio, mas o que de modo nenhum póde
-scientificamente affirmar-se, como quer a escola de Lombroso, é que
-essas disposições organicas sejam reveladas por caracteres anatomicos.
-Em todo o decurso d’este nosso trabalho, elaborado antes do congresso
-de Paris, combatemos com sincera convicção esta peregrina escola.
-A doutrina que nós ardentemente temos defendido com referencia ao
-crime:—educação moral, religiosa, intellectual, artistica, physica,
-economica, profissional, acha-se até certo ponto comprehendida
-na interessante communicação sobre <em>anthropologia juridica e
-criminal</em>, ultimamente apresentada ao congresso pelo dr. Manouvrier,
-sob o nome de anthropotechnia, isto é, o conjuncto das artes que teem
-por fim dirigir o homem—medicina, hygiene, moral, educação, direito
-e politica. Com este fim é que effectivamente o criminoso deve ser
-estudado, e sob este aspecto é que elle deve ser praticamente combatido.</p>
-
-<p>Cada escola pedagogica ou correccionalista inventa um remedio para
-combater o crime. Para uns é educação moral, para outros religiosa,
-para muitos intellectual e profissional. Quasi todas as theorias são
-exclusivistas. Nós hasteamos humildemente o nosso pendão, affirmando
-que as diversas fórmas educativas não se hostilisam nem se refutam,
-partindo de diversas origens, estabelecem a harmonia e chegam ao mesmo
-fim—a elevação da especie humana.</p>
-
-<p>Pela educação moral adquirimos a noção clara do dever; pela educação
-religiosa elevamo-nos á idéa sublime do perfeito, pela educação
-artistica sentimos penetrar em nossa alma os encantos do bello, pela
-educação intellectual tomamos posse dos dominios da verdade; pela
-educação physica conquistamos o dom precioso da robustez e da saude;
-pela educação economica aprendemos a ser felizes, dispendendo só o
-capital sufficiente e sempre menos do que o que produzimos; pela
-educação profissional preparamos as nossas faculdades<span class="pagenum" id="Page_212">[Pg 212]</span> para crear o que
-é util no meio social em que vivemos.</p>
-
-<p>A cultura harmonica d’estes multiplices aspectos da vida humana, se
-não conseguir fazer de cada individuo uma actividade equilibrada,
-despertará uma vocação que redima o ser pelas suas fecundas
-manifestações.</p>
-
-<p>Os homens de faculdades especulativas viveriam tranquillos pela
-sciencia, e enlevados pela verdade; os homens de imaginação viveriam
-contentes pela arte e pela litteratura; os homens de acção viveriam
-satisfeitos pelas emprezas guerreiras, especulações industriaes, ou
-intrigas politicas.</p>
-
-<p>A desordem na educação nacional desenfreou a ambição e a cubiça e poz a
-descoberto todas as miserias humanas. Na vida externa lida-se pela sede
-da riqueza, na vida intima trabalha-se pelo repouso egoista.</p>
-
-<p>São tristes os dias que atravessamos, pela indifferença e pelo
-scepticismo, que se apossou da consciencia social. Que valor moral tem
-hoje para muitos o sentimento da abnegação, a elevada crença christã ou
-os principios de justiça, que foram o nó vital dos grandiosos dramas da
-historia? Nenhum, isso é uma ingenuidade de que os espiritos enervados
-e os modernos utilitarios se riem.</p>
-
-<p>Esta descrença, este desprezo pelos grandes principios que outr’ora
-exaltavam as almas, tornou hoje a sociedade egoista, e a imprensa
-propaga diariamente estas ideas, que calam em geral, porque a cubiça
-e o interesse tomou logar soberano entre as consciencias faceis. A
-dolorida reflexão e a anciosa indagação, sobre a vida contemporanea,
-exprimem na alma dos que teem ainda fé n’alguma cousa superior, um
-intenso desconsolo, que só póde encontrar lenitivo no mais candidamente
-humano e divinamente grandioso dos sentimentos—a esperança.</p>
-
-
-<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_79" href="#FNanchor_79" class="label">[79]</a> Psychologia T. II pag. 94, Rosmini.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_80" href="#FNanchor_80" class="label">[80]</a> Consiglieri Pedroso, <i>Revista de Educação e Ensino</i>,
-anno II, p. 39.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_81" href="#FNanchor_81" class="label">[81]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Histoire des sciences et das savants</i>, pag. 18 e
-20, A. de Candolle.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_82" href="#FNanchor_82" class="label">[82]</a> Relatorio do ministro sobre a estatistica comparada do
-ensino primario em França, cit. <i xml:lang="fr" lang="fr">Dictionnaire Pedagogique</i>.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_83" href="#FNanchor_83" class="label">[83]</a> L’Homme criminel, pag. 424, Cesar Lombroso.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_84" href="#FNanchor_84" class="label">[84]</a> <i>Estatistica da administração da justiça criminal</i>,
-1878, 1879 e 1880.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_85" href="#FNanchor_85" class="label">[85]</a> Jeronymo da Cunha Pimentel, <i>Relatorio da
-Penitenciaria</i>, 1886.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_86" href="#FNanchor_86" class="label">[86]</a> Relatorio ácerca da casa da correcção de Lisboa—pag. 17,
-1887.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_87" href="#FNanchor_87" class="label">[87]</a> Dictionnaire pedagogique.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_88" href="#FNanchor_88" class="label">[88]</a> Memoria sobre a administração da justiça criminal—por
-Silvestre Pinheiro Ferreira—pag. 25, 26.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_89" href="#FNanchor_89" class="label">[89]</a> D. Antonio da Costa, <i>Auroras da Instrucção</i>, pag.
-358.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_90" href="#FNanchor_90" class="label">[90]</a> <i>Era Nova</i> (revista), n.ᵒ 12, 1881, N. A. Correia.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_91" href="#FNanchor_91" class="label">[91]</a> <i lang="it" xml:lang="it">La philosophie experimentale en Italie.</i></p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_92" href="#FNanchor_92" class="label">[92]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Le crime et la folie.</i></p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_93" href="#FNanchor_93" class="label">[93]</a> A. Mosso, <i xml:lang="fr" lang="fr">La Peur</i>, ouvr. traduit en français par
-M. F. Hément, et publié chez Alcan, 1886.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_94" href="#FNanchor_94" class="label">[94]</a> Section XIV, p. 261.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_95" href="#FNanchor_95" class="label">[95]</a> <i>Loc.</i> cit., p. 264.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_96" href="#FNanchor_96" class="label">[96]</a> Sikorski, <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Évolution psychique de l’enfant</i>, Rev.
-phil., mars 1885, 3.ᵒ article.</p>
-
-<p>
-<span style="margin-left: 1em;">(<span class="smcap">B. Perez</span>—<i xml:lang="fr" lang="fr">L’éducation morale</i>).</span><br />
-</p>
-
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_97" href="#FNanchor_97" class="label">[97]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Emile</i>, pag. 134.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_98" href="#FNanchor_98" class="label">[98]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Éducation populaire</i>, Alexis Robert, pag. 62.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_99" href="#FNanchor_99" class="label">[99]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Revue Bleue</i>, du 23 octobre 1886, 2ᵒ article sur
-<i xml:lang="fr" lang="fr">la Peur</i>, de Mosso, pag. 521.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_100" href="#FNanchor_100" class="label">[100]</a> James Sully, <i>Mind</i>. avril 1887.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_101" href="#FNanchor_101" class="label">[101]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">L’Éducation progressive</i>, t. I, p. 193.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_102" href="#FNanchor_102" class="label">[102]</a> Fr. Paulhan—<i xml:lang="fr" lang="fr">L’Activité mentale et les elements de
-l’esprit</i>.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_103" href="#FNanchor_103" class="label">[103]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Traité de legislation</i>, pag. 448, t. III, Ch.
-Comte.</p>
-
-</div>
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_213">[Pg 213]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="INDICE">INDICE</h2>
-</div>
-
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_214">[Pg 214]</span></p>
-<table class="autotable">
-<tr>
-<td class="tdl">
- <a href="#I">I</a>—Uma these penologica do Congresso Juridico de Lisboa. O
- direito criminal italiano na escola anthropologica. A taxonomia
- em psychologia morbida e em anthropologia criminal.
- A divisão pedagogica da sciencia penal.
-</td>
-<td class="tdr page tt"><a href="#Page_5">5</a>
-</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">
- <a href="#II">II</a>—A liberdade moral e o determinismo. A ethica. Os criminosos
- segundo os trabalhos recentes.
-</td>
-<td class="tdr page tt"><a href="#Page_25">25</a>
-</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">
- <a href="#III">III</a>—A base do direito de punir. O papel da psychopathia na
- responsabilidade legal. O fanatismo, a suggestão hypnotica
- e a pena capital. A influencia legitima da consciencia moral
- em direito penal.
-</td>
-<td class="tdr page tt"><a href="#Page_57">57</a>
-</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">
- <a href="#IV">IV</a>—A existencia congenita do sentimento religioso. A utilidade
- da sua acção disciplinadora. Vantagens d’este elemento
- na educação correccional. A opinião dos criminalistas italianos
- e d’um notavel principe da Egreja.
-</td>
-<td class="tdr page tt"><a href="#Page_99">99</a>
-</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">
- <a href="#V">V</a>—Educação e criminalidade. Relação entre o elemento moral
- e o elemento intellectual. O progresso. Buckle, Spencer e
- F. Bouillier. Perigos da instrucção sem educação moral ou
- religiosa. A cultura intellectual é um instrumento, que não
- fórma directamente o caracter. Necessidade de fortificar o
- espirito pela recta direcção do sentimento moral e dos principios
- do dever. O criminalista G. Tarde e a educação litteraria
- e esthetica.
-</td>
-<td class="tdr page tt"><a href="#Page_117">117</a>
-</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">
- <a href="#VI">VI</a>—Os effeitos da acção educativa. A hereditariedade, o meio;
- Garofalo. O gosto pelo adorno é na mulher como sustenta B.
- Perez uma manifestação esthetica e nunca uma approximação
- do typo criminoso. A arte e a moral. Educação physica,
- a escola e a doença.
-</td>
-<td class="tdr page tt"><a href="#Page_139">139</a>
-</td></tr>
-<tr>
-<td class="tdl">
- <a href="#VII">VII</a>—Os ensinamentos e o crime. A idéa da responsabilidade
- criminal na historia. O alcool perante a hygiene physica e
- moral. O suicidio. Observações psychologicas em condemnados
- á morte. A estatistica criminal portugueza. A educação
- como elemento psychogenico e correccional.
-</td>
-<td class="tdr page tt"><a href="#Page_167">167</a>
-</td></tr>
-</table>
-<p><span class="pagenum" id="Page_215">[Pg 215]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter transnote">
-<h2 class="nobreak" id="ERRATAS">ERRATAS</h2>
-
-
-<p>Na <a href="#Page_58">pag. 58</a>, linha 11, onde se lê—em—deve lêr-se—um.</p>
-
-<p>»&#160; »&#160; <a href="#Page_69">69</a>, linha 34,&#160; »&#160; »&#160; »—envenenados—deve lêr-se—envenenadores.</p>
-
-<p>Na <a href="#Page_103">pag. 103</a>, linha 2, onde se lê—indistinctivel—deve lêr-se—indestructivel.</p>
-
-<p>Mais alguns se encontram, faceis de corrigir e que julgamos desnecessario emendar.</p>
-</div>
-
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter transnote">
-<h2 class="nobreak" id="Notas">Notas</h2>
-
-<p>As erratas do livro original foram corrigidos.</p>
-
-<p>Os problemas com a pontuação e a ortografia foram corrigidos.</p>
-</div>
-
-<div lang='en' xml:lang='en'>
-<div style='display:block; margin-top:4em'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>ESTUDOS SOBRE CRIMINALIDADE E EDUCAÇÃO</span> ***</div>
-<div style='text-align:left'>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Updated editions will replace the previous one&#8212;the old editions will
-be renamed.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright
-law means that no one owns a United States copyright in these works,
-so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United
-States without permission and without paying copyright
-royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part
-of this license, apply to copying and distributing Project
-Gutenberg&#8482; electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG&#8482;
-concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark,
-and may not be used if you charge for an eBook, except by following
-the terms of the trademark license, including paying royalties for use
-of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for
-copies of this eBook, complying with the trademark license is very
-easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation
-of derivative works, reports, performances and research. Project
-Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away&#8212;you may
-do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected
-by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark
-license, especially commercial redistribution.
-</div>
-
-<div style='margin-top:1em; font-size:1.1em; text-align:center'>START: FULL LICENSE</div>
-<div style='text-align:center;font-size:0.9em'>THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE</div>
-<div style='text-align:center;font-size:0.9em'>PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-To protect the Project Gutenberg&#8482; mission of promoting the free
-distribution of electronic works, by using or distributing this work
-(or any other work associated in any way with the phrase &#8220;Project
-Gutenberg&#8221;), you agree to comply with all the terms of the Full
-Project Gutenberg&#8482; License available with this file or online at
-www.gutenberg.org/license.
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg&#8482; electronic works
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg&#8482;
-electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
-and accept all the terms of this license and intellectual property
-(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all
-the terms of this agreement, you must cease using and return or
-destroy all copies of Project Gutenberg&#8482; electronic works in your
-possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a
-Project Gutenberg&#8482; electronic work and you do not agree to be bound
-by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person
-or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.B. &#8220;Project Gutenberg&#8221; is a registered trademark. It may only be
-used on or associated in any way with an electronic work by people who
-agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
-things that you can do with most Project Gutenberg&#8482; electronic works
-even without complying with the full terms of this agreement. See
-paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
-Gutenberg&#8482; electronic works if you follow the terms of this
-agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg&#8482;
-electronic works. See paragraph 1.E below.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (&#8220;the
-Foundation&#8221; or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection
-of Project Gutenberg&#8482; electronic works. Nearly all the individual
-works in the collection are in the public domain in the United
-States. If an individual work is unprotected by copyright law in the
-United States and you are located in the United States, we do not
-claim a right to prevent you from copying, distributing, performing,
-displaying or creating derivative works based on the work as long as
-all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope
-that you will support the Project Gutenberg&#8482; mission of promoting
-free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg&#8482;
-works in compliance with the terms of this agreement for keeping the
-Project Gutenberg&#8482; name associated with the work. You can easily
-comply with the terms of this agreement by keeping this work in the
-same format with its attached full Project Gutenberg&#8482; License when
-you share it without charge with others.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern
-what you can do with this work. Copyright laws in most countries are
-in a constant state of change. If you are outside the United States,
-check the laws of your country in addition to the terms of this
-agreement before downloading, copying, displaying, performing,
-distributing or creating derivative works based on this work or any
-other Project Gutenberg&#8482; work. The Foundation makes no
-representations concerning the copyright status of any work in any
-country other than the United States.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.1. The following sentence, with active links to, or other
-immediate access to, the full Project Gutenberg&#8482; License must appear
-prominently whenever any copy of a Project Gutenberg&#8482; work (any work
-on which the phrase &#8220;Project Gutenberg&#8221; appears, or with which the
-phrase &#8220;Project Gutenberg&#8221; is associated) is accessed, displayed,
-performed, viewed, copied or distributed:
-</div>
-
-<blockquote>
- <div style='display:block; margin:1em 0'>
- This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most
- other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
- whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
- of the Project Gutenberg License included with this eBook or online
- at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. If you
- are not located in the United States, you will have to check the laws
- of the country where you are located before using this eBook.
- </div>
-</blockquote>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.2. If an individual Project Gutenberg&#8482; electronic work is
-derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not
-contain a notice indicating that it is posted with permission of the
-copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in
-the United States without paying any fees or charges. If you are
-redistributing or providing access to a work with the phrase &#8220;Project
-Gutenberg&#8221; associated with or appearing on the work, you must comply
-either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or
-obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg&#8482;
-trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.3. If an individual Project Gutenberg&#8482; electronic work is posted
-with the permission of the copyright holder, your use and distribution
-must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any
-additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms
-will be linked to the Project Gutenberg&#8482; License for all works
-posted with the permission of the copyright holder found at the
-beginning of this work.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg&#8482;
-License terms from this work, or any files containing a part of this
-work or any other work associated with Project Gutenberg&#8482;.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
-electronic work, or any part of this electronic work, without
-prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
-active links or immediate access to the full terms of the Project
-Gutenberg&#8482; License.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
-compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including
-any word processing or hypertext form. However, if you provide access
-to or distribute copies of a Project Gutenberg&#8482; work in a format
-other than &#8220;Plain Vanilla ASCII&#8221; or other format used in the official
-version posted on the official Project Gutenberg&#8482; website
-(www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense
-to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means
-of obtaining a copy upon request, of the work in its original &#8220;Plain
-Vanilla ASCII&#8221; or other form. Any alternate format must include the
-full Project Gutenberg&#8482; License as specified in paragraph 1.E.1.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
-performing, copying or distributing any Project Gutenberg&#8482; works
-unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
-access to or distributing Project Gutenberg&#8482; electronic works
-provided that:
-</div>
-
-<div style='margin-left:0.7em;'>
- <div style='text-indent:-0.7em'>
- &#8226; You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
- the use of Project Gutenberg&#8482; works calculated using the method
- you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed
- to the owner of the Project Gutenberg&#8482; trademark, but he has
- agreed to donate royalties under this paragraph to the Project
- Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid
- within 60 days following each date on which you prepare (or are
- legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty
- payments should be clearly marked as such and sent to the Project
- Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in
- Section 4, &#8220;Information about donations to the Project Gutenberg
- Literary Archive Foundation.&#8221;
- </div>
-
- <div style='text-indent:-0.7em'>
- &#8226; You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
- you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
- does not agree to the terms of the full Project Gutenberg&#8482;
- License. You must require such a user to return or destroy all
- copies of the works possessed in a physical medium and discontinue
- all use of and all access to other copies of Project Gutenberg&#8482;
- works.
- </div>
-
- <div style='text-indent:-0.7em'>
- &#8226; You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of
- any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
- electronic work is discovered and reported to you within 90 days of
- receipt of the work.
- </div>
-
- <div style='text-indent:-0.7em'>
- &#8226; You comply with all other terms of this agreement for free
- distribution of Project Gutenberg&#8482; works.
- </div>
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project
-Gutenberg&#8482; electronic work or group of works on different terms than
-are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing
-from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of
-the Project Gutenberg&#8482; trademark. Contact the Foundation as set
-forth in Section 3 below.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
-effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
-works not protected by U.S. copyright law in creating the Project
-Gutenberg&#8482; collection. Despite these efforts, Project Gutenberg&#8482;
-electronic works, and the medium on which they may be stored, may
-contain &#8220;Defects,&#8221; such as, but not limited to, incomplete, inaccurate
-or corrupt data, transcription errors, a copyright or other
-intellectual property infringement, a defective or damaged disk or
-other medium, a computer virus, or computer codes that damage or
-cannot be read by your equipment.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the &#8220;Right
-of Replacement or Refund&#8221; described in paragraph 1.F.3, the Project
-Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
-Gutenberg&#8482; trademark, and any other party distributing a Project
-Gutenberg&#8482; electronic work under this agreement, disclaim all
-liability to you for damages, costs and expenses, including legal
-fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
-LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
-PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
-TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
-LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
-INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
-DAMAGE.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
-defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
-receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
-written explanation to the person you received the work from. If you
-received the work on a physical medium, you must return the medium
-with your written explanation. The person or entity that provided you
-with the defective work may elect to provide a replacement copy in
-lieu of a refund. If you received the work electronically, the person
-or entity providing it to you may choose to give you a second
-opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If
-the second copy is also defective, you may demand a refund in writing
-without further opportunities to fix the problem.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
-in paragraph 1.F.3, this work is provided to you &#8216;AS-IS&#8217;, WITH NO
-OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT
-LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
-warranties or the exclusion or limitation of certain types of
-damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement
-violates the law of the state applicable to this agreement, the
-agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or
-limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or
-unenforceability of any provision of this agreement shall not void the
-remaining provisions.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
-trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
-providing copies of Project Gutenberg&#8482; electronic works in
-accordance with this agreement, and any volunteers associated with the
-production, promotion and distribution of Project Gutenberg&#8482;
-electronic works, harmless from all liability, costs and expenses,
-including legal fees, that arise directly or indirectly from any of
-the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this
-or any Project Gutenberg&#8482; work, (b) alteration, modification, or
-additions or deletions to any Project Gutenberg&#8482; work, and (c) any
-Defect you cause.
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg&#8482;
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; is synonymous with the free distribution of
-electronic works in formats readable by the widest variety of
-computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
-exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
-from people in all walks of life.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Volunteers and financial support to provide volunteers with the
-assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg&#8482;&#8217;s
-goals and ensuring that the Project Gutenberg&#8482; collection will
-remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
-Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
-and permanent future for Project Gutenberg&#8482; and future
-generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
-Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org.
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit
-501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
-state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
-Revenue Service. The Foundation&#8217;s EIN or federal tax identification
-number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
-U.S. federal laws and your state&#8217;s laws.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Foundation&#8217;s business office is located at 809 North 1500 West,
-Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
-to date contact information can be found at the Foundation&#8217;s website
-and official page at www.gutenberg.org/contact
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; depends upon and cannot survive without widespread
-public support and donations to carry out its mission of
-increasing the number of public domain and licensed works that can be
-freely distributed in machine-readable form accessible by the widest
-array of equipment including outdated equipment. Many small donations
-($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
-status with the IRS.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Foundation is committed to complying with the laws regulating
-charities and charitable donations in all 50 states of the United
-States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
-considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
-with these requirements. We do not solicit donations in locations
-where we have not received written confirmation of compliance. To SEND
-DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state
-visit <a href="https://www.gutenberg.org/donate/">www.gutenberg.org/donate</a>.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-While we cannot and do not solicit contributions from states where we
-have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
-against accepting unsolicited donations from donors in such states who
-approach us with offers to donate.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-International donations are gratefully accepted, but we cannot make
-any statements concerning tax treatment of donations received from
-outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Please check the Project Gutenberg web pages for current donation
-methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
-ways including checks, online payments and credit card donations. To
-donate, please visit: www.gutenberg.org/donate
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 5. General Information About Project Gutenberg&#8482; electronic works
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Professor Michael S. Hart was the originator of the Project
-Gutenberg&#8482; concept of a library of electronic works that could be
-freely shared with anyone. For forty years, he produced and
-distributed Project Gutenberg&#8482; eBooks with only a loose network of
-volunteer support.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; eBooks are often created from several printed
-editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in
-the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not
-necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper
-edition.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Most people start at our website which has the main PG search
-facility: <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-This website includes information about Project Gutenberg&#8482;,
-including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
-subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
-</div>
-
-</div>
-</div>
-</body>
-</html>
-
diff --git a/old/68751-h/images/cover.jpg b/old/68751-h/images/cover.jpg
deleted file mode 100644
index 327a4a8..0000000
--- a/old/68751-h/images/cover.jpg
+++ /dev/null
Binary files differ