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authorRoger Frank <rfrank@pglaf.org>2025-10-14 19:58:15 -0700
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+The Project Gutenberg EBook of Historia de um beijo, by Enrique Pérez Escrich
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Historia de um beijo
+
+Author: Enrique Pérez Escrich
+
+Translator: A. J. Lione Soutelo
+
+Release Date: June 13, 2010 [EBook #32793]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE UM BEIJO ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano
+
+
+
+
+
+ XLVII
+ Colecção
+ Horas de Leitura
+
+ Enrique Perez Escrich
+
+ HISTORIA
+
+ DE UM
+
+ BEIJO
+
+ 2.ª Edição
+
+ 1912
+ GUIMARÃES & C.ª--Editores
+ 68, Rua do Mundo (Ex. Rua de S. Roque), 70
+ LISBOA
+
+
+
+
+
+Historia de um Beijo
+
+
+
+
+COMPOSTO E IMPRESSO NA IMPRENSA DE MANUEL LUCAS TORRES RUA DIARIO DE
+NOTICIAS, 93
+
+
+
+
+Colecção Horas de Leitura
+
+_Obras publicadas, a 200 réis o volume_
+
+1 a 4--*Ivanhoé*, de W. Scott, (2.ª edição) 800
+
+5--*O frade negro*, por Clemencia Robert, (2.ª edição) 200
+
+6 e 7--*As Semi-Virgens*, de Marcello Prévost, (3.ª edição illustrada) 400
+
+8--*Werther*, de Goethe, (3.ª edição illustrada) 400
+
+9--*Madame Flirt*, de Jaques Yvel, (2.ª edição) 200
+
+10 a 12--*A Taberna*, de Zola, (2.ª edição) 600
+
+13--*O Vigario de Wakefield*, de Goldsmith, (2.ª edição) 200
+
+14--*A vida aos vinte annos*, de Dumas, filho, (2.ª edição) 200
+
+15--*A agua profunda*, de Bourget, (2.ª edição) 200
+
+16--*O dominó amarello*, de Marcello Prévost, (2.ª edição) 200
+
+17--*Cortezã*, de A Belot, (2.ª edição) 200
+
+18--*O Rosquedo*, de Delfim Guimarães, (2.ª edição) 200
+
+19--*Os Vagabundos*, de Maximo Gorki, (3.ª edição) 200
+
+20--*A escravidão moderna*, de Tolstoi, (2.ª edição) 200
+
+21--*Os degenerados*, de Maximo Gorki, (3.ª edição) 200
+
+22--*A Dama das camelias*, de Dumas, filho, (3.ª edição illustrada) 200
+
+23--*As Virgens*, de G. d'Annunzio, (2.ª edição) 200
+
+24--*Na prisão*, de Maximo Gorki, (2.ª edição) 200
+
+25 e 26--*A Dama das perolas*, de Dumas, filho, 400
+
+27--*Varenka Olessova*, de Maximo Gorki, 200
+
+28--*O jardim dos suplicios*, de Octavio Mirbeau, (2.ª edição) 200
+
+29--*Saudades*, (Menina e Moça) de Bernardim Ribeiro, (2.ª edição) 200
+
+30--*Na Esteppa*, de Maximo Gorki, 200
+
+31--*Nami-ko*, Tokatomi, 200
+
+32--*Um conchego de Solteirão*, Balzac, (2.ª edição) 200
+
+33--*Sapho*, de Daudet, (a sahir 2.ª edição)
+
+34--*Um começo de vida*, de Balzac, 200
+
+35 e 36--*O Paraiso das Damas*, de Zola, (esgotado)
+
+37--*Amor e liberdade*, de Tolstoi, (esgotado)
+
+38--*Casamento de Amor*, de Theuriet, (esgotado)
+
+39 e 40--*Illusões perdidas*, de Balzac, 400
+
+41 e 42--*Esplendores e miserias das cortezãs*, de Balzac, 400
+
+43--*A ultima incarnação de Vautrin*, de Balzac, 200
+
+44--*Mater dolorosa*, de Ernesto Daudet, 200
+
+45--*O Immortal*, de Affonso Daudet, 200
+
+46--*Ares do Minho*, de Delfim Guimarães, 200
+
+47--*Historia d'um beijo*, de E. Perez Escrich, 200
+
+48--*O intruso*, de Gabriel d'Annunzio, (esgotado)
+
+49--*A mulher de 30 annos*, de Balzac, 200
+
+50 e 51--*Germinal*, de Zola, 400
+
+52--*O crime de Silvestre Bonnard*, de Anatolio France, 200
+
+53--*Miseraveis*, (Cañas y barro) de Blasco Ibañez, 200
+
+54--*O Abade Constantino*, de L. Halévy, 200
+
+55--*O Dr. Rameau*, de Jorge Ohnet, 200
+
+56--*Agua corrente*, de Severo Portella, 200
+
+57--*O luxo dos outros*, de Bourget, 200
+
+58--*O tio Goriot*, de Balzac, 200
+
+59 e 60--*A derrocada*, de Zola, 400
+
+61--*O canto do Cysne*, de Tolstoi, 200
+
+62--*Contos*, de G. de Maupassant, 200
+
+63 e 64--*Náná*, de Zola, 400
+
+65--*A Sonata de Kreutzer*, de Tolstoi, 200
+
+66--*O Padre Maldito*, de Silva Pinto, 200
+
+67--*Paulo e Virginia*, de Sain-Pierre, 200
+
+68 e 69--*O Dinheiro*, de Zola, 400
+
+70--*Confissão d'um Amante*, de Prévost, 200
+
+71--*A sepultura de ferro*, de H. Conscience, 200
+
+72--*A musa do departamento*, de Balzac, 200
+
+73 e 74--*A Obra*, de Zola, 400
+
+75--*Genoveva*, de A. de Lamartine, 200
+
+76--*Um filho do povo*, de Escrich, 200
+
+77 e 78--*O crime do padre Mouret*, de Zola, 400
+
+79--*Casamentos fidalgos*, de Feuillet, 200
+
+80--*Amor tragico*, de A. Hermant, 200
+
+81--*A Religiosa*, de Diderot, 200
+
+82 a 84--*Ana Karenine*, de Tolstoi, 600
+
+
+
+
+
+COLECÇÃO HORAS DE LEITURA
+
+Enrique Perez Escrich
+
+Historia de um Beijo
+
+TRADUCÇÃO DE
+
+A. J. LIONE SOUTELLO
+
+2.ª Edição
+
+
+
+1912
+
+GUIMARÃES & C.ª--Editores
+
+68, Rua do Mundo (Ex. Rua de S. Roque), 70
+
+LISBOA
+
+
+
+
+CAPITULO I
+
+Uma chavena de café
+
+ Um beijo é muitas vezes a esmola que faz uma mulher a uns labios
+ lisonjeiros; outras um pedaço d'alma que se escapa pela bôcca. No
+ primeiro caso o homem é a victima, no segundo é a mulher.
+
+
+Existem na terra creaturas tão bem organisadas, corações tão generosos,
+que não necessitam ser correspondidas para amar com toda a sua alma,
+para terem gravada em seu coração uma imagem querida.
+
+Estes entes soffrem com o rosto sereno e choram com o sorriso nos
+labios, porque se chora de dois modos: umas vezes deixando correr as
+lagrimas, outras recolhendo-se ao coração a queimarem essa bella flôr da
+juventude chamada a esperança.
+
+A vida n'estes casos é um desejo infinito que se afoga em pranto porque
+se vê a felicidade que se deseja rodeada de uma muralha cheia de
+impossiveis. Se pudesse conquistar-se a tiro, conhecer-se-hiam os nomes
+de muitos heroes ignorados.
+
+A incerteza, essa anciedade da alma que tem o poder de reduzir e
+prolongar o tempo segundo o seu capricho, faz-se sempre sujeita á
+poderosa magia de uma syllaba. Um _sim_, resoa docemente no ouvido do
+namorado e tem a encantadora poesia do mez de Maio com os seus perfumes,
+as suas flôres, e o harmonioso canto das aves; um _não_, tem a aridez do
+deserto, a melancholia da desgraça, a solidão da morte.
+
+Vou, pois, contar-lhes uma historia sentida, um gemido do coração.
+
+Vou dar-lhes a conhecer a protogonista do meu livro e supplico-lhes o
+perdão para a fraqueza da sua alma: o coquettismo.
+
+Chama-se Amparo, nome cujas seis letras encerram uma promessa de amor
+nunca realisada.
+
+Procurarei pintar com as côres da verdade o seu rosto, formoso como um
+sonho da adolescencia; a sua fronte radiante como a luz do sol quando
+apparece, ao romper do dia, do fundo do mar; os seus olhos claros e
+expressivos através dos quaes se lêem todas as impressões da sua alma,
+sensivel como as harpas das filhas de Sião que vibram ao menor sopro do
+zephiro.
+
+Se os impressionam as scenas terriveis, as grandes catastrophes, as
+situações inverosimeis, fechem o meu livro, porque em suas paginas só
+acharão a historia de um coração que se partiu em pedaços.
+
+..........................................................................
+
+Ernesto foi para Roma, pensionista do governo hespanhol. Era um rapaz de
+25 annos, cheio de vida, de illusões, um genio; muitas vezes nos seus
+sonhos de pintor julgava egualar-se a Velasquez, Murillo e todos esses
+grandes homens que brilham em primeiro logar na historia da pintura
+hespanhola.
+
+Vivia n'uma pequena casa nas immediações da Cidade Eterna, a Deusa da
+arte; pensando na gloria, trabalhando sempre, porque Ernesto era um
+sonhador infatigavel, o mundo para elle resumia-se nos seus quadros, nos
+seus pinceis, na sua paleta.
+
+Nunca amara senão sua mãe, que já tinha morrido, e a gloria, que
+desejava alcançar.
+
+Coração impressionavel, mas adormecido, as mulheres eram para elle como
+flôres formosas de um jardim.
+
+N'uma palavra, Ernesto ainda não tinha encontrado o seu bello ideal, o
+perfume da sua alma.
+
+A mulher formosa, para elle, só era uma bella obra onde o grande
+artista, que se chama a natureza, derramara os seus mais preciosos
+dotes.
+
+Vejam, pois, como a casualidade lhe proporcionou o meio de pagar de um
+modo terrivel o tributo das almas sensiveis, que é o amor.
+
+Como dissémos, Ernesto habitava uma casinha nas proximidades de Roma.
+
+O _atelier_, situado na parte que dava para o jardim, recebia a luz de
+duas grandes janellas por onde entravam os caprichos e interessantes
+braços de algumas trepadeiras.
+
+Era uma tarde do mez de Maio. Ernesto estava retocando uma figura quando
+veiu o creado dizer-lhe que um cavalheiro e uma senhora desejavam
+falar-lhe.
+
+--São hespanhoes, disse o criado, e parece-me que o conhecem.
+
+--Hespanhoes? exclamou Ernesto, largando a paleta. Que entrem
+immediatamente!
+
+Ernesto dirigiu-se para a porta seguindo o creado, quando ouviu uma voz
+que lhe não era desconhecida, dizendo:
+
+--Onde está este mau hespanhol, que é preciso vir a Roma, á Via Appia
+para lhe dar um abraço?
+
+--Oh! é o sr. D. Ventura! exclamou o pintor, vendo entrar um sujeito
+d'uns 50 annos, dando o braço a uma menina tão formosa como elegante.
+
+--Sim, sou eu, querido pintor, sou eu, o D. Ventura do café Suisso, o
+amigo dos artistas, o enthusiasta pela divina arte de Apollo; eu que,
+apezar do meu enthusiasmo pela pintura, nunca soube collocar n'um rosto
+o nariz no seu verdadeiro lagar. Mas, senta-te, querida Amparo,
+senta-te; os homens do talento são sem-cerimonia como aldeãos, e francos
+como a verdade--e apoz pequena pausa, continuou:
+
+--Começarei por pedir-lhe duas chavenas de café.
+
+Ernesto deu ao creado as ordens necessarias.
+
+A joven, que se sentara n'uma cadeira d'onde distrahidamente contemplava
+os quadros do _atelier_, dispensou um sorriso de cumprimento ao pintor,
+deixando vêr uns dentes pequenos como os de uma creança, e brancos como
+o miolo do coco.
+
+Tudo o que é bello attrae irresistivelmente os homens de talento.
+
+Ernesto fitou a joven.
+
+Amparo teria 20 annos. O seu rosto de uma graça attrahente, provocadora,
+via-se quasi animado por um d'esses sorrisos em que ficamos em duvida se
+são a manifestação do coquettismo ou a ternura da alma.
+
+Os seus labios bastante vermelhos e humidos pelo constante roçar dos
+dentes, ficavam ás vezes entreabertos como se fossem a exhalar um
+suspiro ou a receber um beijo.
+
+Os seus olhos eram grandes e negros como amoras maduras; mas tão
+movimentados, tão inquietos, tão cheios de vida, tão promptos em
+manifestar as impressões da alma, que tão depressa se viam enlanguescer
+com a sombra embriagadora de um amor platonico, como brilhar com todo o
+fogo da paixão que conduziu Ovidio a um calabouço e Sapho á morte.
+
+Ernesto estudava dissimuladamente aquella joven que tão profunda
+sensação causava na sua alma, virgem das terriveis tempestades do amor;
+e, cousa rara, o seu genio de artista, tão depressa encontrava em Amparo
+a belleza sensual e provocadora das mulheres de Rubens, como o pudor
+candido das virgens de Murillo.
+
+Emquanto a D. Ventura só diremos que era um homem de 50 annos, calvo,
+com os poucos cabellos que possuia já grisalhos, um rosto cheio de saude
+e alegria; n'uma palavra, uma d'estas physionomias que sorriem sempre,
+até quando choram; o typo, emfim do honrado commerciante que conseguiu,
+depois de muitos annos de trabalho, reunir um peculio que o livra de
+necessidades na velhice.
+
+Amparo era filha unica; fôra educada n'um dos melhores collegios de
+Madrid, e possuia um dote de quatro milhões de pesetas para quando
+achasse quem a merecesse.
+
+D. Ventura era feliz, revendo-se na filha, nova, formosa, vivaz e
+alegre; tocava piano com bastante correcção, cantava regularmente e
+pintava quasi com tanta perfeição como o divino Raphael.
+
+Amparo era, por assim dizer, rainha absoluta, e seu pae um ministro
+bastante condescendente.
+
+A mulher nova e livre, quando a riqueza lhe permitte emprehender viagens
+de recreio durante a estação calmosa, precisa de alguma cousa mais do
+que mudar de paiz para distrahir-se; a viagem torna-se fastidiosa se a
+alma não toma parte e o coquettismo não esgrime as suas armas, tão
+deliciosas como traidoras, para matar o tempo.
+
+Fazer uma conquista sem graves compromissos, sem funestos resultados,
+n'um commodo _wagon-lit_; trocar olhares expressivos com qualquer
+mancebo pela praia de Biarritz ou no cume das montanhas da Suissa, tem
+tantos attractivos para as jovens viajantes!... É tão agradavel ao
+coração de uma mulher encontrar a duzentas leguas da patria um patricio
+que se torne seu escravo, que esteja disposto a salval-a, a defendel-a e
+juncar-lhe de flôres a terra que pisa, que não póde resistir á tentação
+de pôr em jogo todas as suas seducções.
+
+Demais, a mulher tem a facilidade de comprehender a impressão que causa
+e sabe aproveitar-se d'ella. Quando volta o inverno, quando as primeiras
+nuvens do outomno as obriga a recolher aos seus lares, esses ternos
+bandos de aves emigradoras, com saias de _piquet_, chapéu de palha e
+botas brancas, recordam-se então já ao calor do fogão, de todas as
+loucuras, de todas as innocentes concessões feitas ao ar livre e
+poetisadas pelo vento da montanha ou pela brisa do mar; e como não ha
+mulher que não saiba calcular, como o melhor mathematico, pensa se deve
+acabar ou continuar com os amores do verão.
+
+Amparo, pois, encontrou casualmente Ernesto em Roma. Tinha ouvido dizer
+que possuia talento; agradaram-lhe alguns quadros que viu no _atelier_,
+e não lhe parecendo má a figura do pintor, dirigiu-lhe alguns olhares e
+sorrisos, d'esses que no coração de um homem sincero e apaixonado causam
+uma terrivel tempestade.
+
+Não pensava a joven que aquelle coquettismo era condemnado pelo
+bom-senso. Empregou-o com a mais santa intenção, apezar de começar a
+sentir-se aborrecida em Roma, onde andava só com seu pae por toda a
+parte. Ernesto, então, foi olhado, como um recurso, como uma distracção.
+
+Quando Amparo sahiu de casa do pintor, ia convicta de que o tinha
+captivado.
+
+--Pensará em mim, disse ella, virá vêr-me, falaremos de pintura, de
+musica e d'esta fórma aborrecer-me-hei menos.
+
+Amparo ignorava ainda as terriveis consequencias que os seus olhares e
+sorriso deviam exercer na alma do artista. Se o soubesse,
+indubitavelmente se teria abstido, porque o seu coração era bom,
+generoso e tão impressionavel, que se commovia ante a mais ligeira
+contrariedade, como a folha do trémulo alamo ante o mais ligeiro sopro
+do zephiro.
+
+
+
+
+CAPITULO II
+
+Uma noite no Colyseu
+
+
+Quando Ernesto ficou só, em vez de pegar na paleta e nos pinceis
+approximou-se da janella e ficou pensando na joven hespanhola que
+acabava de sahir.
+
+Depois de uma hora de meditação, retirou-se da janella, dizendo para
+comsigo:
+
+--Se me encommendassem um quadro onde figurasse alguma das tres
+encantadoras filhas de Jupiter e de Eurinome pediria a Amparo para me
+servir de modelo.
+
+E, tomado de uma subita inspiração, pegou na paleta e nos pinceis e
+começou a pintar, n'um pedaço de tela, uma cabeça, mas com tanta rapidez
+que, em vinte minutos, estava completamente esboçada.
+
+Afastou-se um pouco do cavallete para examinar o seu trabalho, e disse:
+
+--Sim, é ella. Tenho boa memoria.
+
+E como não se contentasse com a sua opinião, chamou o creado e
+perguntou-lhe:
+
+--Com quem se parece esta cabeça?
+
+--Bravo! Com quem se ha-de parecer? Com a senhora que esteve cá,
+respondeu o creado sem vacillar. Não é preciso ser muito esperto para a
+reconhecer.
+
+Ernesto tornou a pegar nos pinceis e retocou o seu trabalho.
+
+Duas horas depois tinha terminado um soberbo retrato de Amparo, que o
+pintor mais escrupuloso não recearia pôr em exposição.
+
+Tinha promettido a D. Ventura ir no dia seguinte almoçar com elle ao
+hotel de Londres na praça de Hespanha, onde estavam hospedados.
+
+Ernesto levantou-se cedo, fez a barba, vestiu-se com mais cuidado do que
+de costume, admirando-se de ter gasto tanto tempo ao espelho.
+
+Assim que terminou a sua _toilette_, satisfeito de si mesmo, enrolou a
+tela com o retrato de Amparo, embrulhou-a n'um papel e sahiu de casa
+dizendo ao creado que tinha o dia livre, visto não voltar senão á noite.
+
+D. Ventura e a filha occupavam dois quartos no primeiro andar do hotel
+de Londres.
+
+Quando Ernesto subia a escada ouviu os accordes de um piano. Deteve-se:
+tocavam a magnifica symphonia de _Guilherme Tell_.
+
+--Será Amparo? pensou elle.
+
+E vendo um creado no corredor, disse-lhe:
+
+--Qual é o quarto do sr. D. Ventura d'Aguillar?
+
+--O seis: ahi onde estão tocando.
+
+Ernesto não se tinha enganado: era Amparo quem tão magnificamente
+interpretava uma das mais bellas composições de Rossini.
+
+Receoso de interromper aquella brilhante corrente de notas que tão
+docemente resoavam no coração, esperou junto da porta que terminasse a
+symphonia.
+
+Logo que ella acabou bateu á porta.
+
+--Entre, disse D. Ventura.
+
+Entrou. Amparo estava ainda sentada ao piano. Por cima d'este estava um
+grande espelho e no limpido crystal Ernesto viu retratado o
+encantador rosto de Amparo, que sorria, enviando-lhe um olhar que o
+perturbou por um momento.
+
+--Bravo, é um homem de palavra, disse D. Ventura. Ahi está uma qualidade
+que não é muito vulgar nos artistas.
+
+--Então não me esperavam?
+
+--Eu esperava, mas o meu pae, não, disse Amparo, fazendo girar o banco
+do piano, até ficar voltada para o pintor.
+
+Amparo tinha um vestido tão simples como elegante. O seu cabello negro e
+frizado, estava atado com uma fita azul que fazia realçar a brancura do
+seu rosto e o tom rosado das faces.
+
+O pintor achou-a muito mais formosa do que no dia anterior.
+
+De bôa-vontade ficaria contemplando o encantador modelo que tinha ante
+si; mas isso álêm de inconveniente seria ridiculo.
+
+A donzella, por seu lado, olhava o pintor com o mais seductor dos seus
+olhares e enviava-lhe o mais bello dos seus sorrisos.
+
+Comprehendera o que se passava na alma de Ernesto. Só D. Ventura não via
+nada. É bem certo o dictado que diz que os paes são todos myopes.
+
+--Que traz ahi, sr. Ernesto? É algum quadro? perguntou Amparo vendo o
+rolo que o pintor tinha na mão.
+
+--Como estava distrahido! respondeu Ernesto. Hontem de tarde fiz um
+trabalho. É um atrevimento que espero me desculpem.
+
+O pintor desenrolou a tela e apresentou-a, sorrindo-se.
+
+A joven não poude conter um grito de assombro, e D. Ventura pronunciou
+uma interjeição.
+
+--Sou eu!
+
+--É a minha filha!
+
+--É um retrato d'esta senhora, e venho offerecel-o como uma recordação
+da visita que tiveram a bondade de me fazer.
+
+--São levados da breca estes pintores, exclamou D. Ventura. Como se póde
+reter na memoria de uma fórma tão completa as feições de uma pessoa e
+passal-as para a tela com tanta verdade?! Porque és tu! Sim, tão
+parecida como duas gottas d'agua; muito mais parecida do que uma
+photographia.
+
+Ernesto sorriu-se das admirações de D. Ventura. Amparo parecia
+agradecer-lhe com um olhar cheio de ternura aquella recordação tão
+delicada.
+
+--Pois é a cousa mais facil do mundo, disse o pintor olhando para
+Amparo, comprometia-me a fazer outro d'aqui a tres annos sem me esquecer
+do menor detalhe do vestido e do penteado que tem n'esta occasião.
+
+--Pegue-lhe na palavra, papá, disse Amparo, e d'aqui a tres annos, se
+nos encontrarmos em Madrid havemos de vel-o ficar mal.
+
+--Fica encommendado o retrato. Mas agora parecia-me melhor que nos
+servissem o almoço e que pensassemos em que devemos entreter o dia.
+
+--Já visitaram as _vilas_ ou casas de campo dos arredores? perguntou
+Ernesto.
+
+--Já visitámos uma... Como se chama a que vimos hontem? perguntou D.
+Ventura á filha.
+
+--_Vila Aldobrandini_.
+
+--É magnifica, mas está pouco menos do que abandonada. Deliciosa mansão
+se se arranjassem os jardins em fórma de amphitheatro. O Dominiquino
+deixou-nos n'essa casa sumptuosa uns quadros inegualaveis. Faz pena
+ouvir, no meio de tanto abandono, o cadente murmurio das suas cascatas
+que se assimilham á harmonia dos orgãos aquaticos da antiguidade como ao
+mesmo tempo vêr as soberbas estatuas e outros objectos de esculptura de
+grande merito.
+
+--Com franqueza não a achei grande cousa... como disseste que se
+chamava, Amparo?
+
+--_Aldobrandini_, papá. Valha-o Deus, que cabeça a sua!
+
+E Amparo trocou um sorriso com Ernesto.
+
+--Podemos vêr outras que estão melhor conservadas, ajuntou o pintor. Por
+exemplo, é digna de visitar-se a _Vila Borghése_ pelo seu grandioso
+lago, pelo hypodromo, pelo templo, pelos jardins e, sobretudo, pelo rico
+museu de numismatica, e se desejarem visitaremos a _Vila Albani_ e o seu
+celebre museu. Os antigos romanos tiveram grande predilecção pelas casas
+de campo. Os historiadores d'aquelle tempo contavam cousas fabulosas. Os
+poetas, esses sonhadores de todas as epochas, esses pobres loucos que
+não tendo um real de seu phantasiam palacios e cascatas brilhantes,
+falam com grande entusiasmo das quintas que nos arredores de Roma
+possuia Cesar, Lucullo, Marcello, Nero, Pompeu, Salustio e muitos outros
+homens celebres; mas hoje não existem mais do que ruinas. A casa de
+campo de Mecenas, onde iam Augusto, Virgilio, Horacio, Plocio, Tiscca e
+Polion descançar das fadigas de Roma, converteram-se hoje em forja de um
+pobre ferreiro. Que ode tão sentimental escreveria o pudico auctor da
+_Eneida_ se ressuscitasse ao contemplar as ruinas de Roma.
+
+D. Ventura ouvia Ernesto de bôcca aberta. Tudo isto para elle era grego.
+Amparo não deixava de se sorrir. Entre elles começava a existir uma
+grande intimidade, a intimidade que produz as sympathias.
+
+--Sabe o que desejo vêr, sr. Ernesto? disse Amparo. É o Colyseu. Li, não
+me recordo em que livro, que visto n'uma noite de luar é surprehendente.
+
+--Os viajantes julgam segundo a impressão que os objectos produzem no
+seu temperamento. Por isso emquanto uns ao percorrer a Palestina a
+descrevem cheia de frondosidade e poesia que a adornava no tempo de
+Salomão, outros a classificam de um arido areal, um deserto
+insupportavel, pobre, povoado por tribus selvagens e ascorosas, mas o
+Colyseu começado por Vespasiano e acabado por Tito, visto, quer á luz do
+sol quer á da lua é verdadeiramente admiravel.
+
+--Ainda assim prefiro vel-o de noite, disse Amparo.
+
+--Então aproveitaremos o luar, e hoje mesmo se póde realisar o seu desejo.
+
+--Que dizes a isso, papá?
+
+--Que estou ao teu dispor.
+
+--Fica, pois, combinado para esta noite.
+
+Almoçaram como bons hespanhoes, depressa e sem lhe dar grande
+importancia, pois não é a Hespanha a terra dos Lucullos.
+
+Do meio-dia ás 5 horas da tarde visitaram algumas casas de campo dos
+arredores de Roma.
+
+D. Ventura estava encantado. Ernesto sabia tudo; era, como vulgarmente
+se diz, um livro aberto.
+
+Não encontraram uma pedra, uma columna, um sepulchro do qual o pintor
+não soubesse a historia.
+
+Amparo escutava-o com prazer. Encostando-se-lhe familiarmente ao braço
+fazia-lhe perguntas, principalmente quando encontrava alguma inscripção
+latina.
+
+O dia passou-se agradavelmente para os tres; as horas foram curtas, e os
+laços de amisade estreitaram-se duplamente com aquelle agradavel passeio.
+
+Ás seis horas regressaram ao hotel. O jantar já os esperava. Depois
+metteram-se n'um trem que os conduziu ao Colyseu.
+
+A noite estava serena; a lua no seu auge, e a sua clara luz banhava as
+colossaes ruinas onde em outros tempos oitenta e sete mil espectadores
+iam gozar o barbaro espectaculo das luctas humanas.
+
+Então, o povo romano pedia pão e circo, e os imperadores tinham o
+cuidado de satisfazer os desejos da terrivel fera que dormia,
+lambendo-lhe os pés.
+
+Ernesto levava os dois amigos a um e outro lado, esplicando-lhe com o
+mesmo conhecimento que poderia fazer-lhe um _cicerone_ do tempo do
+imperador Claudio, descrevendo-lhe ao mesmo tempo aquellas terriveis
+luctas, dos adestrados gladiadores, cujo sangue regou com abundancia a
+arena do circo.
+
+--Assistiram mulheres a esse barbaro espectaculo? perguntou Amparo.
+
+--Ao principio era-lhes prohibida a entrada, respondeu Ernesto, mas
+depois foi auctorisada, reservando-lhes Octavio Augusto as bancadas mais
+altas do amphitheatro. Precisamente aqui onde estamos era a tribuna do
+imperador, e alli a das vestaes, cujo docel era egual ao do imperador. A
+este sitio chamava-se _Spoliarium_, para onde conduziam os cadaveres
+dos gladiadores ou os que estavam mortalmente feridos, puxando-os com um
+gancho de ferro. Esta obra colossal foi construida no curto espaço de
+quatro annos. Tinha setenta portas, sem contar com as entradas
+reservadas para o imperador e a sua côrte. As festas da inauguração no
+tempo de Flavio Sabino Tito duraram cem dias consecutivos, e n'ella
+perderam a vida dois mil gladiadores.
+
+--Parece impossivel que tão sanguinolentos espectaculos agradassem a
+mulheres, exclamou Amparo.
+
+--A vida dos feridos, continuou Ernesto, quando caíam banhados de sangue
+na arena, ficavam sempre á disposição dos espectadores. O vencedor
+collocava a ponta da espada no peito do vencido e esperava que o publico
+lhe dissesse; «Mata» ou «Perdôa». Outras vezes o ferido arremessava as
+armas e caía ao pé das grades a implorar clemencia. Se os espectadores
+levantavam o dedo pollegar, concedia-se-lhe a vida; mas se o viravam
+para baixo, então o ferido apresentava o peito ao seu adversario para
+que o acabasse de matar.
+
+--Mas perdoavam sempre? disse D. Ventura.
+
+--Algumas vezes. Durante o reinado do infame Caracalla nem uma só vez se
+concedeu o indulto aos gladiadores vencidos. O povo romano de então, era
+tão feroz como sanguinario, e só gozava com a agonia dos seus
+similhantes, pois, como disse o grande poeta inglez Lord Byron, ácêrca
+dos costumes do povo, assim apparecem singelas e naturaes as cousas mais
+horriveis e sangrentas.
+
+D. Ventura escutava em silencio o narrador, que lhe contava com a
+precisão de um bom livro, todas as horriveis scenas que tiveram logar no
+Colyseu.
+
+Algumas vezes Amparo, para caminhar com mais segurança por aquellas
+sumptuosas ruinas, dava a mão a Ernesto. Aquellas duas mãos apertavam-se
+docemente, transmittindo um suave estremecimento.
+
+D. Ventura era um homem de bem, mas um homem todo prosa; e aquillo tudo,
+apezar do luar e das descripções historicas de Ernesto, parecia-lhe
+um montão de ruinas, uma toca de lagartos.
+
+Comtudo, para não ser _desmancha-prazeres_, dizia de quando em quando:
+
+--Soberbo! Magnifico!
+
+Á meia-noite regressaram ao hotel.
+
+Quando Ernesto se despediu, Amparo disse-lhe, apertando-lhe a mão e
+dirigindo-lhe um olhar cheio de doce esperança:
+
+--Passei uma noite deliciosa. Estou certa de que sempre me lembrarei do
+Colyseu de Roma.
+
+Para Ernesto aquella despedida foi uma promessa irmã da esperança, essa
+bella flôr que perfuma a alma.
+
+
+
+
+CAPITULO III
+
+Sonhos côr-de-rosa
+
+
+Ernesto teve aquella noite um sonho côr-de-rosa, porque a bella Amparo
+foi o anjo do seu sonho.
+
+Os homens de genio e sobretudo os pintores, quando pensam no amor, antes
+de amar, criam um typo perfeito como todas as sublimes creações da
+imaginação; uma d'essas mulheres de extraordinaria belleza cheia de luz,
+sem um _senão_ no moral, sem um defeito no physico, perfeita de corpo e
+d'alma: mas quando chega o momento de, ou cançados do celibato, ou para
+pagar esse tributo de que poucos se salvam, chamado matrimonio, se
+decidem a casar, então já é outra cousa, pois muitas, mesmo muitissimas
+vezes a poesia se incarna na prosa, e depois... Satanaz toma parte
+activa na symphonia do matrimonio.
+
+O amor é cego, e os homens e as mulheres devem resignar-se a não vêr
+bem, precisamente quando deviam ter olhos de lynce.
+
+Ernesto levantou-se alegre e cantando a symphonia de _Guilherme Tell_; e
+pensando em Amparo pegou na paleta e poz-se a pintar no seu quadro.
+
+A filha do D. Ventura tinha-se photographado d'uma maneira tão profunda
+na sua imaginação, que o pintor achou sem saber como que uma das figuras
+do seu quadro tinha grandes parecenças com Amparo. Admirou-se, mas
+agradou-lhe ao mesmo tempo.
+
+Ás dez horas largou a paleta, almoçou, e pegando n'uma folha de papel,
+poz-se a pintar uma aguarella do Colyseu visto á luz do luar.
+
+--Isto será uma recordação dedicada a Amparo, disse elle. Dir-lhe-hei
+que a colloque no seu gabinete para que nunca se esqueça da noite que
+representa.
+
+Ernesto esmerou-se marcando com arte e delicadeza todos os detalhes da
+aguarella. Collocou n'um ponto conveniente um pintor tirando o _croquis_
+do Colyseu, e ao seu lado um cavalheiro e uma joven.
+
+Apezar das figuras terem apenas duas pollegadas, o pintor tinha o maximo
+empenho em que ficassem parecidas com os originaes que representavam. A
+empreza era difficil; mas por fim, apoz algum trabalho, conseguiu o que
+desejava.
+
+Satisfeito com a sua obra e com a alegria do homem que sente na alma os
+primeiros perfumes do amor e julga causar uma surpresa agradavel á
+provocadora dos seus sonhos, ao cair da tarde dirigiu-se para Roma.
+
+D. Ventura e a filha estavam tomando café. Tinham acabado de jantar.
+
+--Chega a proposito, disse D. Ventura.
+
+--Dou-me por feliz, respondeu Ernesto, cumprimentando a joven.
+
+--Sente-se e tome café comnosco.
+
+--Primeiro que tudo, desejo saber em que consiste a opportunidade da
+minha chegada.
+
+--Aborreciamo-nos, disse Amparo, Roma é uma cidade morta; nem sequer tem
+theatros.
+
+--Diz muito bem. Roma é um cadaver que todos os annos ressuscita pelo
+Carnaval, e vive um mez commettendo as mais excentricas loucuras;
+depois torna a cahir na soledade da tumba, até ao anno seguinte.
+
+--Quer dizer que errámos a epocha da nossa viagem, disse D. Ventura.
+
+--Justamente. Mas se a sr.ª D. Amparo quizer ir ao theatro, temos
+actualmente um aberto.
+
+--Qual?
+
+--O do Tiano.
+
+--Dizem que não é bonito.
+
+--Sim, mas em compensação representam admiravelmente.
+
+--Sabe, senhor Ernesto, que esta noite tive uma ideia? disse Amparo,
+cerrando docemente as palpebras para conservar a luz dos seus formosos
+olhos fixos no pintor.
+
+--Estou crente, de que foi uma ideia sublime.
+
+--Vaes ouvir, papá; o senhor Ernesto já disse que a minha ideia era
+sublime; agora só necessito que o papá a ache tambem.
+
+--Olha que os artistas são muito aduladores; não te fies n'elles. Mas
+vamos, dize qual é a tua ideia.
+
+--Resume-se em deixarmos Roma e irmos passar um mez em Florença; mas com
+uma condição: que o senhor Ernesto nos acompanhe como nosso _cicerone_.
+
+--Essa exigencia é uma loucura, filha da pouca experiencia propria da
+tua edade, disse D. Ventura. Ernesto está pintando um quadro que tem de
+mandar para a proxima exposição de Madrid, em setembro.
+
+--Sim, o senhor Ernesto tem o quadro muito adeantado e d'aqui até
+setembro vão ainda quatro mezes, disse rapidamente Amparo, dirigindo ao
+pintor um olhar supplicante para que elle annuisse.
+
+--Acceito sem vacillar, disse Ernesto, e dou as minhas razões. Preciso
+só de um mez para concluir o meu quadro. E antes de voltar a Hespanha
+tinha necessidade de ir a Florença para tirar uns croquis da _Venus de
+Médicis_, do _Grupo de Niobe_ e de alguns quadros da escola flammenga
+que existem no celebre palacio de Pitti. Quero tambem tirar alguns
+_croquis_ da _cathedral de Santa Maria de Fiore_, d'essa memoravel
+architectura da qual Miguel Angelo, disse ser impossivel fazer outra
+mais bella, pois era digna de servir de frontespicio ao Paraiso, e que o
+imperador Carlos V devia pôl-a n'um estojo para melhor a conservar.
+Assim pois, tudo se resume em adeantar dois mezes a minha viagem a
+Florença. Quando partirem para Hespanha, eu regressarei a Roma para
+terminar o meu quadro, e prometto que o verão collocado n'um dos salões
+da Exposição no dia 20 de setembro.
+
+Amparo applaudiu, como uma creança que manifesta sem reserva a sua
+alegria. A viagem projectada por ella era encantadora. Grande foi o seu
+contentamento vendo que era acceite o seu plano, porque nada é tão grato
+ao coração de uma mulher joven, como realisar um dos seus sonhos
+côr-de-rosa que de vez em quando lhe acariciam a alma.
+
+Na noite anterior deitara-se, pensando no seu poetico passeio ao
+Colyseu. Como o somno se mostrasse rebelde, recapitulou na memoria até
+as mais pequeninas cousas acontecidas nas celebres ruinas.
+
+Os olhares de Ernesto, os suaves apertos de mão, a lua que banhava,
+poetisando, as pardas e as derrubadas galerias do Colyseu, as
+descripções historicas que com doce e carinhoso accento narrava Ernesto,
+tudo isto formava um conjuncto agradavel ao coração de Amparo.
+
+Amava Ernesto? Nem ella mesmo sabia que responder a esta pergunta que
+fez pelo silencio da noite.
+
+O pintor era novo, elegante, bem parecido, com uma educação pouco
+vulgar, e pelo menos era-lhe sympathico.
+
+Como ha sempre algum egoismo no coração da mulher, Amparo pensou que
+continuar a sua viagem pela Italia acompanhada de Ernesto tinha muito
+mais encanto, era mais divertido do que viajar sósinha com o pae.
+
+Amparo não pensou senão em si. Com algum conhecimento mais profundo da
+vida material dos artistas, isto é, a prosa do talento, teria pensado
+que talvez Ernesto não se encontrasse em condições de emprehender
+uma viagem em carruagem de primeira classe, e installar-se n'um hotel de
+luxo.
+
+É bem certo que Amparo ignorava o valor do dinheiro: gastava o do pae,
+que era rico, sem se preoccupar com o valor que tem um duro[1]
+para quem não possue vinte reales.
+
+Por outro lado Ernesto, um verdadeiro artista, sonhava que era um
+principe e julgava os seus sonhos uma realidade... Era mais ambicioso de
+gloria do que de ouro.
+
+Quando acceitou a projectada viagem por Amparo, sem pensar se o dinheiro
+que possuia por sua unica fortuna chegaria para occorrer a todas as
+despezas, só pensou na felicidade de viajar com aquella mulher formosa,
+por uma terra encantadora, cujo céu azul e o perfume das brisas são o
+orgulho das filhas de Toscana, a admiração dos estrangeiros.
+
+Combinada a partida para quatro dias depois, Ernesto apresentou a
+aguarella do Colyseu, que arrancou um grito de admiração e muitos
+olhares de agradecimento a Amparo.
+
+O pintor regressou a casa já bastante tarde, tão alegre, tão feliz, que
+não teria trocado a sua existencia por cousa alguma d'este mundo.
+
+A felicidade está ás vezes em tão pequenas cousas!... O pobre artista
+julgava-se amado, e começava a amar com toda a sua alma virgem e
+apaixonada.
+
+Quando chegou a casa, pegou n'uma folha de papel para fazer o orçamento
+das suas despezas.
+
+--Necessito, disse elle, de quatro mil reales para a viagem. Vejamos
+como estou a respeito de fundos.
+
+Ernesto só tinha seiscentos. Era-lhe preciso arranjar dinheiro.
+
+Procurou na memoria os nomes de alguns amigos pintores que como elle
+viviam em Roma, mas um sorriso lhe assomou aos labios.
+
+--Todos elles, disse, são tão pobres ou mais do que eu; não devo
+expôr-me a uma negativa forçada, que é tão desagradavel a quem a dá como
+a quem a recebe. Melhor será sacrificar alguns dos meus quadros. O
+senhor Daniel é um judeu, menos judeu que os dez mil que pelo interesse
+do commercio o papá consente em Roma. Escrever-lhe-hei.
+
+E pegando na penna escreveu:
+
+
+ _Senhor Daniel Raithany_
+
+«Meu bom amigo
+
+ «Vou emprehender uma viagem a Florença e preciso vender alguns
+ quadros. Tenha, pois, a bondade de vir hoje ao meu _atelier_,
+ onde o espero até ás quatro horas da tarde.
+
+ Seu amigo,
+
+ _Ernesto Alvarez_.»
+
+
+O pintor chamou o creado e disse-lhe:
+
+--Amanha, quando te levantares, vaes a Roma entregar esta carta ao sr.
+Daniel, negociante de quadros. Mora no bairro dos judeus; já o conheces.
+
+Depois deitou-se para sonhar com Florença e Amparo.
+
+Ernesto achava-se na ditosa edade dos sonhos côr-de-rosa, e viu durante
+algumas horas passar pelos olhos da sua illusão um panorama encantador
+onde a flôr mais perfumada, mais bella, mais resplandecente, era Amparo
+que, olhando-o com languidez, lhe dizia uma e mil vezes mais: «amo-te!
+amo-te! amo-te!»
+
+E para que desperta um homem d'estes sonhos encantadores?
+
+
+
+
+CAPITULO IV
+
+O pintor e o judeu
+
+
+Daniel Raithany era um dos maiores negociantes do bairro judaico. Tinha
+em toda a Europa fama de intelligente e honrado, apezar de ninguem
+ignorar que vendia caro e comprava barato. Esta qualidade era
+descupavel, tratando-se de um negociante judeu; mas, em compensação,
+tinha uma grande qualidade, que era que quando um admirador de pintura,
+ainda que de Londres, Paris, Vienna, S. Petersburgo, Madrid ou de
+qualquer das grandes capitaes da Europa necessitava para a sua galeria
+um quadro d'este ou d'aquelle auctor celebre, escrevia-lhe uma carta, e
+não olhando a preço tinha o que desejava.
+
+Nunca enganava ninguem, dando uma copia por original. Daniel era
+intelligente, e apezar de não saber pintura, tão conhecedor era das
+escolas que mais de uma vez, em casos duvidosos, o chamavam como períto.
+
+Todos os pintores eram amigos de Daniel e era tão difficil enganal-o
+vendendo-lhe gato por lebre, como vulgarmente se diz, que ninguem
+tentava fazel-o.
+
+Dizia-se que o negociante conseguira juntar muitos milhões. Comtudo a
+sua loja apresentava sempre o mesmo aspecto modesto, e a sua pessoa
+conservava a mesma linha; isto é, usava constantemente uma sobrecasaca
+verde com grandes abas, calças e collete preto, uma gravata de velludo,
+um chapéu usado, um chapéu de chuva velho debaixo do braço e uma cadeia
+d'aço, em cuja extremidade estava preso um modesto relogio de prata.
+
+Daniel era um homem alto, magro e pallido, nariz arqueado, cabello
+grisalho, olhos verdes, pequenos o encovados; um d'esses typos vulgares,
+mas em quem, olhados com attenção, se encontra bondade e doçura no
+semblante.
+
+Ernesto estava pintando. Eram dez horas da manhã quando viu entrar no
+_atelier_ o judeu.
+
+Daniel entrou como sempre, sorrindo-se, com o chapéu de chuva debaixo do
+braço, e a caixa do rapé que nunca abandonava, na mão esquerda.
+
+--Bons dias, millionario, disse Ernesto, extendendo-lhe a mão. Muito
+agradecido pela sua pontualidade.
+
+--Em questão de dinheiro, respondeu Daniel, é preciso sermos pontuaes, e
+aproveitarmos o tempo. Por um minuto se póde perder um bom negocio.
+
+--Pelo que se vê o senhor é negociante até á medulla dos ossos. Mas
+vamos falar do nosso.
+
+O pintor deixou a paleta e os pinceis, indicou-lhe uma cadeira e
+sentou-se n'outra.
+
+--Preciso dinheiro.
+
+--Já o suppunha.
+
+--Por isso lhe pedi que me viesse visitar.
+
+--E eu, conhecendo a impaciencia dos artistas, apressei-me em vir.
+
+--Agradecendo-lhe pela segunda vez, começarei por lhe dizer que dentro
+de tres dias parto para Florença.
+
+--Uma viagem de recreio.
+
+--De recreio e estudo. Tenciono tirar alguns _croquis_ da celebre
+galeria do palacio de Pitti.
+
+--Bello pensamento!
+
+--E como para ir a Florença é preciso dinheiro e como eu não o tenho, ou
+melhor, tenho pouco, quero que me compre alguns quadros. Póde escolher,
+exceptuando o que está no cavallete, pois esse é, como sabe, para a
+Exposição de Madrid, e póde dizer-se que me não pertence.
+
+Daniel guardou silencio, levantou-se, poz os oculos e começou a passar
+revista aos quadros, e estudos que estavam nas paredes.
+
+Ernesto entretanto accendeu um charuto e recostou preguiçosamente a
+cabeça no espaldar da cadeira.
+
+Mais de tres quartos de hora durou a revista passada ás telas por
+Daniel. Quando estava perfeitamente inteirado, tirou os oculos, com todo
+o seu vagar, guardou-os no bolso, e, sentando-se, disse:
+
+--Tem seis quadros de comestiveis, quatro pequenos de costumes
+hespanhoes, e dois de flôres. Fico com os doze, pois tenho probabilidade
+de os vender a um inglez que me encarregou de comprar alguma cousa
+n'este genero, e dou por elles quatrocentos duros.
+
+--É pouco dinheiro.
+
+Daniel encolheu os hombros.
+
+--Não dou mais, respondeu; é impossivel.
+
+--Dou-lh'os por doze mil reales e creia que ainda ganhará uns duzentos
+por cento.
+
+--N'estes tempos não é possivel. Desde que a photographia póde offerecer
+o _fac-simile_ de uma obra-prima por um franco, a pintura perdeu muito.
+
+--Senhor Daniel, concedo-lhe o direito de regatear o preço de um quadro,
+de dizer que é mau sendo bom, mas não lhe consinto que ponha a
+photographia a par da pintura. Poderá ter-se uma copia do Ticiano
+estampada em um boccado de papel por dois reales, mas não se terá
+Ticiano, nem pela photographia se poderá nunca formar uma ideia, ainda
+que vaga, do que vale o citado auctor.
+
+Daniel fez um gesto de indifferença, o ajuntou:
+
+--Sabe que tenho em muita consideração os seus trabalhos, e que se não
+estivesse tão occupado, o encarregaria de algumas copias, e isso deve
+inspirar-lhe confiança para crer que não procuro exploral-o. Quem sabe
+se terei quatro ou mais annos armazenados na loja esses doze quadros que
+pretendo comprar. E se assim succeder, o senhor bem sabe que dinheiro
+vale dinheiro, e isso representa uma grande perda.
+
+Ernesto comprehendeu que o judeu não lhe daria mais, visto conhecer a
+necessidade que elle tinha do dinheiro.
+
+Calculou que com a importancia offerecida e o que possuia podia fazer
+desafogadamente e até com luxo a viagem e resolveu acceitar o negocio.
+
+--Está fechada a transacção, disse o pintor. Mando-lh'os ainda hoje mesmo.
+
+Daniel tirou a carteira, e d'ella a importancia offerecida em notas do
+Banco Romano, e entregou-a ao pintor, dizendo:
+
+--Muito dinheiro podia ganhar!
+
+--Não desejo outra cousa, respondeu Ernesto, pondo o dinheiro sobre a mesa.
+
+--Seriamente?
+
+--O dinheiro é a primeira necessidade do homem n'este valle de lagrimas.
+
+--Então posso offerecer-lhe á volta de Florença algumas notas mais, se
+me trouxer algumas copias da escola flammenga e franceza dos originaes
+que existem no palacio Pitti.
+
+--Isso depende do tempo.
+
+--A actividade augmenta as horas.
+
+--Não me comprometo, mas farei todo o possivel porque receio que me faça
+falta o dinheiro para ir a Hespanha expor o meu quadro.
+
+--Pois já sabe o meio de o obter.
+
+Daniel começou a despendurar os quadros que comprara e ia-os collocando
+todos juntos, para que Ernesto ao mandal-os se não esquecesse de algum.
+
+Depois despediu-se do pintor, tornando-lhe a recommendar que trabalhasse
+muito.
+
+--O trabalho, senhor Ernesto, é a maior fortuna do homem. Não se esqueça
+de que as formigas e as abelhas são muito mais ricas do que as cigarras.
+
+Ha conselhos que só produzem um ligeiro murmurio nos ouvidos de quem os
+ouve.
+
+Daniel sahiu. Ernesto chamou o creado.
+
+--Logo levas esses doze quadros a casa do senhor Daniel Raithany,
+disse-lhe. Vou fazer uma viagem a Florença. Demoro-me um mez. Podes
+dispor de ti como te aprouver, n'esses trinta dias, mas nem uma só noite
+deixarás de dormir em casa.
+
+Entregou o dinheiro que julgou sufficiente para o sustento do creado,
+mandou que lhe servissem o almoço, e depois sahiu.
+
+Uma vez em Roma comprou alguma roupa para a viagem.
+
+Á tarde foi visitar os seus amigos e jantar com elles.
+
+D. Ventura começava a olhar Ernesto como da familia; é verdade que
+quando se encontra um compatriota a algumas centenas de leguas distantes
+da mãe patria, sente-se uma alegria tão grande no coração que o tratamos
+como se fosse um parente.
+
+A D. Ventura parecia o mais natural do mundo que um rapaz tão bem
+educado, tão fino, tão illustrado como Ernesto o acompanhasse na sua
+viagem a Florença.
+
+Emquanto a Amparo, não pensou senão em realisar o seu desejo; viajando
+com Ernesto, tinha mais encanto a excursão, porque o pintor lhe era
+sympathico.
+
+Os olhares, os sorrisos, os apertos de mão, as palavras carinhosas são
+impulsos muitas vezes naturaes do coração feminino, e é sem duvida por
+isso que não lhes dão nenhuma importancia.
+
+Mas Ernesto pensava de outro modo, e ia reunindo na sua alma simples e
+apaixonada, um sem numero de esperanças encantadoras, que eram o seu
+maior thesouro, e que deviam tornar-se a sua maior desgraça, porque o
+amor quasi sempre é um jogo em que um dos jogadores perde.
+
+Os preparativos de uma viagem em que esperamos gozar e divertirmo-nos
+são muito encantadores. Ernesto offereceu a D. Ventura um _Guia do
+forasteiro em Florença_, preciosamente illustrado, e a Amparo um
+elegante album para desenhos.
+
+--Temos que trabalhar muito, dizia o pintor, e não podemos consentir que
+nos importune com perguntas.
+
+--Sim, sim, o senhor Ernesto tem razão; temos que fazer muitos desenhos,
+e para que se não aborreça, emquanto trabalhamos, lerá o seu _Guia_
+deante das obras d'arte que vamos visitar.
+
+D. Ventura para quem não havia maior felicidade do que a alegria de
+Amparo, vendo-a contente e feliz, ria-se com a expansão de um pae que
+ama com loucura a filha.
+
+Só uma vez se poz serio vendo crescer aquella sympathia entre Amparo e o
+pintor, e disse:
+
+--E a rapariga acaba por se enamorar de Ernesto. Fez algumas reflexões
+mentaes e ajuntou:
+
+--Diabo, Ernesto é pobre; minha filha tem quatro milhões de dote no dia
+do casamento e mais oito quando eu morrer.
+
+Aqui tornou a deter-se; mordeu o labio inferior como o negociante que
+pensa n'um negocio importante, mas rapidamente se lhe alegrou o rosto e
+exclamou:
+
+--Se ella o ama e quizer casar com elle, que se case; vale mais ter por
+genro um homem como Ernesto, pobre, do que um parvo rico.
+
+Desde aquelle momento, Ernesto podia contar com a protecção do pae.
+
+Chegou o dia da partida. A viagem podia fazer-se de dois modos: em
+pequenas jornadas, parando-se para vêr as povoações de alguma
+importancia artistica, ou em caminho de ferro.
+
+D. Ventura optou pela ligeireza da locomotiva, e os nossos tres
+viajantes, alegres como estudantes em ferias, installaram-se n'um
+compartimento de primeira classe. A fortuna favorecia-os: iam sós.
+Emquanto foi dia, Amparo e Ernesto passaram a maior parte do tempo á
+janella da carruagem, admirando o panorama que se ia desenrolando a seus
+olhos.
+
+Os jovens só trocaram algumas palavras em voz baixa; mas os olhos têem
+uma linguagem tão expressiva, que dizem tudo, quando se movem
+impulsionados por uma alma apaixonada.
+
+D. Ventura lia o livro offerecido pelo pintor, ou dormitava. Quando
+chegou a noite, Ernesto bastante timido, apoderou-se de uma das mãos de
+Amparo, não menos linda do que a da Laura que inspirou a Petrarcha
+quatro sonetos, e disse-lhe:
+
+--Que feliz eu sou!...
+
+Amparo sorriu-se e retirou a mão.
+
+Depois, reclinando a cabeça em um dos cantos da carruagem, cerrou os
+olhos, fingindo que dormia.
+
+Assim collocara certa distancia entre si e Ernesto. Amparo, apezar de
+nova, tinha mais conhecimento do coração humano do que o seu companheiro
+de viagem, e temeu que prolongando a conversação á tenue luz do vagon e
+quasi tocando-se os joelhos, fizesse alguma d'essas concessões de que
+mais tarde se arrepende a mulher.
+
+Ernesto procurou tambem posição commoda e tentou dormir, mas foi em vão.
+
+Nasceu o dia, e com elle a animação entre os viajantes.
+
+A linha seguia n'aquelle momento o curso do rio Arno. A conversação
+renovava-se a cada paragem do comboio. D. Ventura lia o nome das
+estações e procurava no _Guia_ a parte interessante da terra.
+
+Em Signa atravessaram o Arno e não demorou muito vêr-se ao longe as
+torres elevadas de Florença, os quatro pontos e os quatros bairros.
+
+Ernesto exclamou:
+
+--Alli está Florença, berço do renascimento das artes, patria de Dante,
+de Petrarcha, e de Galiléu!
+
+
+
+
+CAPITULO V
+
+O grupo de Niobe
+
+
+A Florença dos nossos dias é muito differente da que engrandeceram os
+Médicis; mas por toda a parte se encontram as pégadas de Cosme o
+Virtuoso, chamado o pae da patria, talvez pelo excessivo rigor com que
+tratava os filhos.
+
+Indubitavelmente os Médicis foram grandes negociantes. A sua fortuna
+fabulosa e a sua honradez ao mesmo tempo, elevou-os á primeira
+dignidade da republica florentina.
+
+Mas como em todas as familias ha sempre um judas que vende a sua raça,
+succedeu que emquanto Cosme o Virtuoso, chamado pae da patria, mandava
+emissarios por todo o mundo em busca de manuscriptos para enriquecer as
+bibliothecas, pensionando com luxo artistas, e Lourenço Magnifico sahia
+em segredo de Florença e apresentando-se ante Fernando de Napoles, com
+quem estava em guerra, dizia-lhe: «_Aqui me tens só e desarmado. Se é a
+mim a quem odeias satisfaz a tua vingança com a minha morte, pois ditoso
+me julgarei libertando com a minha vida a de tantos valentes, dispostos
+a despedaçarem-se pelas nossas rivalidades_», outros Médicis deshonraram
+o illustre appellido que tinham herdado de seus nobres antepassados.
+
+Sublime foi o rasgo de abnegação levado a cabo por Lourenço de Médicis,
+evitando a corrente de sangue que ameaçava inundar Napoles e Toscana,
+apezar de dizer a historia que o papá Sixto IV preferia a guerra,
+esquecendo-se de que era um representante de Christo, do Deus da
+bondade, do perdão e da tolerancia.
+
+Mas a natureza é variada, e depois dos grandes Médicis da republica
+vieram os pequenos ladrões do despotismo.
+
+Chegou Alexandre, verdugo do povo, morto ás mãos do sobrinho, que com
+incrivel cynismo lhe perguntou ao enterrar-lhe a espada no peito:
+«_Senhor, estaes dormindo?_» Veiu depois Fernando, que morreu d'uma
+indigestão de fructa verde, e por ultimo o estupido Cosme III, cuja
+esposa Margarida de Orléans, não podendo supportar a repugnancia que lhe
+causava o marido, o abandonou, envergonhada de lhe ter pertencido. Para
+que a estupidez de Cosme chegasse ao cumulo, dedicou-se em procurar a
+mulher pelas côrtes da Europa: mas em toda a parte se riram d'elle,
+despedindo-o vergonhosamente como a um ente repugnante.
+
+Deixemos os Médicis á historia, e continuemos a narração interrompida ao
+avistar as altas muralhas de Florença.
+
+Na estação, entre os muitos corretores d'hoteis que disputam os
+estrangeiros, D. Ventura encontrou-se com um hespanhol que tinha casa de
+hospedes, entrou em ajuste com elle, e conduziu-os n'um trem para casa.
+
+D. Ventura alugou todo o rez-do-chão, com o direito de lhe pertencer o
+jardim plantado de laranjeiras, limoeiros e grandes acacias.
+
+O rez-do-chão compunha-se de um quarto com janellas para o jardim, uma
+sala grande, um quarto de vestir, uma casa de jantar e uma sala. Amparo
+installou-se em dois quartos. D. Ventura e Ernesto ficaram com a sala e
+outro quarto contiguo á casa de jantar; a sala declarou-se terreno
+neutral e todos podiam dispôr d'ella para o que necessitassem. Era o
+ponto de reunião dos nossos viajantes.
+
+O senhor Rosales, dono da casa, era um sujeito muito amavel e serviçal.
+Disse-lhes que tinha sempre muitos bons hospedes; que o primeiro andar
+estava todo alugado ao sr. Conde de Loreto e ao seu velho mordomo; que
+no segundo estavam varios portuguezes e que era tão apaixonado das
+cousas de Hespanha, que mandava vir grão e chouriço hespanhoes, para que
+quando algum hospede quizesse de vez em quando comer rico cosido
+madrileno, podel-o servir.
+
+D. Ventura esteve quasi a abraçar o seu hospedeiro, porque como bom
+madrileno começava a sentir a falta d'aquelle manjar predilecto.
+
+Emquanto a Amparo acercou-se da janella do gabinete, viu o formoso céu
+de Florença, aspirou o perfume das laranjas e dos limões, exclamou:
+
+--Oh! que delicioso cheiro! que bem que ficamos aqui!
+
+A alegria de Amparo reflectia-se no coração de Ernesto.
+
+No primeiro dia entretiveram-se os nossos viajantes em arranjar
+itinerario. Ernesto propoz visitar na manhã seguinte o palacio de Médicis.
+
+Em Florença o céu tem sempre luz, doçura, poesia. Os nossos viajantes
+levantaram-se, dispostos a emprehender o seu passeio. A manhã não podia
+estar melhor, o céu mais azul.
+
+Como não necessitavam de _cicerone_, porque Ernesto conhecia Florença
+tão bem como Roma, sahiram em direcção ao celebre palacio de Médicis.
+
+Amparo e Ernesto levaram os seus _carnets_, e D. Ventura o seu _Guia_.
+
+Logo que chegaram ao palacio e entraram nos jardins, Ernesto, depois de
+fazer observar aos seus amigos as duas distinctas architecturas do
+edificio, a construida na Edade Media e a edificada por Vasari no seculo
+XIV, exclamou:
+
+--Quando o viajante passeia por estes vastos jardins, parece que
+encontra de menos Lourenço de Médicis, cognominado o Magnifico. Oh!
+ditosa epocha aquella em que Lourenço, agarrando o braço de Miguel
+Angelo, reprehendia com doçura paternal a indolencia do grande artista,
+incitando-o ao trabalho! Ditoso tempo aquelle! Lourenço ria e applaudia
+os comicos epigrammas do alegre Pulci, fazendo-o escrever o _Morgante
+Maggiore_, o poema heroe-comico mais celebre de Italia, e em que Angelo
+Poliano lhe lia os discursos de historia e philosophia.
+
+E mudando de entoação continuou com accento alegre:
+
+--É preciso confessar, meu caro senhor D. Ventura, que hoje os reis, os
+potentados da terra se occupam pouco ou nada dos pobres sonhadores, dos
+filhos do genio. Então, ante o talento dobravam a fronte os soberanos.
+Cosme de Médicis encontrou um manuscripto de Tito Livio, enviou-o a
+Fernando de Napoles, com quem estava em guerra, e foi tão grande a
+alegria d'este rei, que receando ser ingrato, assignou o tratado de paz
+que Cosme solicitava; devendo as mães de Italia a sua tranquillidade e a
+vida dos filhos a umas folhas de pergaminho manuscriptas. Hoje, nem
+todos os preciosos manuscriptos das bibliothecas romanas decidiriam dos
+reis, quando disputam um palmo de terra, a deporem as armas. Mas
+entremos na sala que immortalisou o cinzel do filho de Paros.
+
+D. Ventura, que ouvia com satisfação as palavras de Ernesto, exclamou:
+
+--Para que diacho me comprou este livro se aqui não diz nada do que tem
+estado a contar?
+
+--Senhor D. Ventura, respondeu o pintor, sorrindo-se, breve chegará a
+hora em que lhe seja util. A collecção de camafeus, medalhas e debuxos
+compõe-se de vinte e oito mil estudos e _croquis_, feitos pelos mais
+celebres pintores italianos, e em chegando ahi, fecho a bôcca e pego no
+lapis. É então que o livro falará pelo _cicerone_.
+
+Ernesto conduziu os seus amigos á sala de Niobe e ao chegar deante
+d'aquelle grupo que representa a mais sublime epopeia da dôr maternal,
+ao deter-se em frente d'aquella mãe, cem vezes mais dolorosa do que a
+dos Machabeos, tirou o chapéu com veneração e ficou como que fascinado
+ante aquella esculptura, creada pelo magico cinzel de Scopas 478 annos
+antes de Christo, para que fosse o pasmo e a admiração das edades futuras.
+
+D. Ventura descobriu-se tambem, apezar de não comprehender o valor de
+tão interessante grupo que tinha ante si. Para elle, aquillo era uma mãe
+chorando seu filho morto e uma joven ferida que agonisava; para Ernesto
+e Amparo, que tinham uma alma mais artistica, mais enthusiastica,
+aquelle drama maternal, aquella cabeça sublime modelada, enlouquecida
+pela dôr, era uma obra sem rival. Scopas, o _artista da verdade_,
+apparecia ante os seus olhos como o gigante da esculptura.
+
+--Que bello grupo!
+
+--Sim, senhora D. Amparo, respondeu Ernesto. Para os que têem a arte em
+alguma conta só para vêr esse grupo vale a pena vir a Florença, ainda
+que das regiões mais afastadas do universo. Essa scena é tão
+sublime, tão dramatica, que os exigentes criticos de Athenas inclinaram
+a cabeça com admiração, assombrados de tão grande obra. Na figura da mãe
+está toda a alma de Scopas.
+
+D. Ventura, que não compartilhava do enthusiasmo do pintor nem de
+Amparo, um pouco enfadado com tantas exclamações, nas quaes não podia
+tomar parte por se julgar profano no assumpto, disse, instigado pela
+curiosidade:
+
+--Mas o que representa esse grupo que tanto admiram?
+
+--Scopas foi um artista pagão. No seu tempo estava em moda a Mythologia,
+e os homens adoravam as deusas e os deuses do Olympo, apezar dos seus
+defeitos e fraquezas, disse Ernesto. Pois bem, Niobe era filha de
+Tantalo e esposa de Anfior, rei de Tebas, tão presumida da sua
+fecundidade, que se queixou amargamente aos deuses vendo que no Olympo
+se dava sensivel preferencia sobre ella á deusa Latona, filha de Saturno
+e de Febe, mãe de Apollo e Diana, e esposa, segundo se assegura, de
+Jupiter. Os deuses irritaram-se da soberba d'aquella pobre mortal que se
+atrevia a refutal-o e combinaram um terrivel castigo. Appollo e Diana
+feriram com as suas flechas os filhos de Niobe; Jupiter converteu em
+pedras os subditos da orgulhosa rainha de Thebas, que queria ser mais do
+que uma deusa. Durante nove dias, os filhos de Niobe permaneceram no
+solo cobertos de sangue; a agonia foi grande, terrivel, tragica, até ao
+grau mais sublime; Niobe, louca de dôr e de amargura, derramando um mar
+de lagrimas, arrancando os cabellos de desespero, pedia soccorro com
+gritos d'alma, mas os seus vassallos permaneceram immoveis e
+indiferentes. Por fim ao decimo dia Jupiter compadeceu-se d'aquella mãe
+e julgando-a já sufficientemente castigada, tornou á vida os thebanos,
+permittiu que tomassem algum alimento, mandou enterrar os filhos, e
+convertendo Niobe em uma rocha, collocou-a no cume d'um solitario monte,
+onde chora eternamente a perda dos queridos fructos das suas entranhas,
+sendo um monumento de vergonha dos vingativos deuses do Olympo.
+
+Quando Ernesto acabou o conto mythologico D. Ventura, movendo a cabeça
+em signal de duvida, disse:
+
+--Mas tudo isso é uma fabula.
+
+--Que deu bastante assumpto, respondeu o pintor, para que Scopas,
+deixasse essa sublime e inimitavel esculptura, que é uma verdade
+admirada por todas as nações; grupo sublime do qual nos permittirá que
+tiremos um rapido _croquis_.
+
+E Ernesto começou a copiar a obra prima do celebre filho de Paros.
+
+D. Ventura encolheu os hombros, e emquanto Amparo e Ernesto desenhavam a
+Niobe, entreteve-se a vêr os bustos antigos, as estatuas egypcias, os
+sarcophagos e o retrato de Bruto feito por Miguel-Angelo.
+
+O rico commerciante passava com ligeireza por todas aquellas obras de
+merito. Para elle não tinham a importancia que lhe attribuiam; e do
+fundo do coração dizia que os artistas eram uns pobres loucos que viviam
+de illusões, exaggerando tudo.
+
+Ernesto e Amparo entretanto tiravam um desenho do grupo: e tão embebidos
+estavam no seu trabalho que não repararam que um rapaz elegantemente
+vestido, de correctas feições e maneiras distinctas, se deteve a poucos
+passos d'elles, e tomando das mãos de um creado que o seguiu o _carnet_
+de desenhos, começou a tirar uma copia da celebre esculptura de Scopas.
+
+Chamava-se Fernando de Villar, Conde de Loreto.
+
+Quando Amparo desviou os olhos do papel onde desenhava viu o conde, e
+este cumprimentou-a com um ligeiro movimento de cabeça. Ernesto
+cumprimentou-o mas com uma certa frieza que demonstrava o desgosto que
+lhe causava a presença d'aquelle homem.
+
+Ao sair da sala de Niobe, D. Ventura disse:
+
+--Viram o conde de Loreto?
+
+--Era o joven que desenhava proximo de nós? perguntou Amparo.
+
+--Sim. Occupa o andar por cima de nós.
+
+E deixando a conversação continuaram visitando o palacio.
+
+O rico museu dos Médicis, contem dezenove galerias.
+
+Não é, pois, nosso intento percorrer minuciosamente estes immensos
+arsenaes da arte, detendo-nos ante cada obra-prima que se apresenta aos
+avidos olhos do viajante enthusiasta.
+
+Os nossos amigos dedicaram os dias a vêr os museus, as bibliothecas e as
+egrejas. Para as noites ou assistiriam aos espectaculos, ou passeariam
+nos jardins, aspirando os perfumes.
+
+A segunda noite da sua estada em Florença, Amparo passeava no jardim com
+Ernesto, quando lhe chegaram aos ouvidos as melodiosas notas de um orgão
+expressivo, tocado com tanto gôsto como mestria. Detiveram-se e ouviram
+com a religiosidade dos amantes de musica.
+
+No dia seguinte Amparo perguntou ao senhor Rosales quem tocava o orgão.
+
+--O senhor conde de Loreto. É um grande musico.
+
+Desde então Amparo abriu algumas noites a janella para ouvir o orgão
+
+Um dia D. Ventura deteve-se deante da celebre mula negra do palacio Pitti.
+
+--Isto será um capricho de algum celebre esculptor? perguntou.
+
+--Isto é a vergonha de um nobre tão ingrato como parvo, respondeu Ernesto.
+
+--Temos outra historia como a da Niobe?
+
+--Não, esta é historica e vergonhosa para o auctor. Luc Pitti foi um
+homem cuja riqueza e liberdades lhe tinham grangeado a estima dos seus
+concidadãos e a aura da popularidade. Pitti quiz luctar em magnificencia
+com Cosme de Médicis, e começou a construir um palacio, que é este em
+que nos achamos; mas bem depressa se viu arruinado, e a obra teve que
+suspender-se. O povo sempre generoso e agradecido com os que d'elle
+se recordavam e os Médicis, protectores da arte, vieram em ajuda do
+soberbo Pitti, publicou-se um decreto concedendo o perdão a todos os
+criminosos e malfeitores que viessem trabalhar no palacio de Luc. O povo
+correu em tropel a trabalhar nas obras: todos os condemnados de Italia
+vieram tambem. O palacio acabou-se com o suor dos pobres; mas Pitti tão
+nescio como ingrato, fez construir essa mula gravando-lhe no pedestal um
+distico latino para sua eterna vergonha, pois prova-nos a sua
+inqualificavel ingratidão, porque a mula representa o povo e o distico
+diz: «_Esta azemola trabalhou e conduziu tudo; pedras, marmores,
+madeiras e columnas._»
+
+Outra tarde Ernesto conduziu os seus amigos á egreja de São Giovanni,
+fazendo-lhes admirar os quadros de Andrea del Sarto, tão miseravelmente
+retribuido pelos frades, e ante a inimitavel _Virgem do Sacco_, por cuja
+obra, que admira o orbe, pagaram-lhe com um sacco de trigo os irmãos
+servitas da Annunciada, abusando da pobreza do artista, que se vingou,
+pondo o mundo por testemunha da sua humilhação dando á sua obra o nome
+de _Virgem do Sacco_.
+
+Visitaram tambem os sepulchros dos poetas e dos grandes artistas. Junto
+ao de Dante Alighieri, onde chora a poesia e medita a estatua de
+Florença, Amparo e Ernesto recordaram Beatriz e os seus interessantes
+amores.
+
+Assim se passavam os dias, crescendo nas almas dos dois jovens esse
+preludio do amor que se chama sympathia.
+
+Mas deixemos a luz d'esse esplendoroso sol de Floreça, para gosar dos
+poeticos raios da lua. A noite tem tambem os seus attractivos.
+
+
+
+
+CAPITULO VI
+
+Um beijo
+
+
+Os nossos viajantes foram varias vezes aos theatros mais importantes de
+Florença; ao de _Pergola_ que comporta duas mil e quinhentas pessoas,
+que tem cinco ordens e cento e dez camarotes, ao de _Los Intrepidos_ e
+ao de _Alfieri_.
+
+O tempo passava-se sem se sentir.
+
+D. Ventura disse uma manhã:
+
+--É preciso pensar na nossa volta para Hespanha, e contando que sempre
+nos demoraremos quinze dias em Paris, não temos muito tempo para
+permanecer em Florença.
+
+Isto foi um grito de alarme para Ernesto. Era tão feliz ao lado de Amparo!
+
+Os vinte cinco dias passados em Florença tiveram para elle a duração de
+um minuto. Milhares de vezes durante esse periodo esteve a ponto de lhe
+assomar aos labios o segredo que se lhe occultava no coração.
+
+O receio detinha-o. Amava Amparo com tão firme, tão pura paixão, que o
+medo de um desengano lhe emmudecia a bôcca.
+
+Uma tarde D. Ventura sahiu para receber uma lettra. Amparo, sentada
+proximo da janella, entretinha-se em colleccionar e guardar um grande
+numero de desenhos, feitos pelo seu companheiro, das bellezas artisticas
+que juntos tinham admirado.
+
+Ernesto entrou no gabinete. Amparo extendeu-lhe a mão sorrindo-se:
+
+--Bem vê, senhor Ernesto, que como a nossa partida se approxima,
+occupo-me em colleccionar convenientemente estes preciosos desenhos, que
+conservarei toda a minha vida, pois encerram a historia d'esta
+viagem encantadora, viagem que, como todas as cousas terrestres, tem que
+acabar em breve.
+
+Ernesto julgou ouvir sair um debil suspiro dos labios de Amparo. O seu
+coração bateu com violencia, fez-se pallido e como receasse que as
+forças o abandonassem, sentou-se n'uma cadeira ao lado da joven.
+
+--Para que a vi em Roma?!
+
+Esta exclamação que se lhe escapou do coração fez estremecer Amparo; mas
+serenando immediatamente disse:
+
+--Tem pena que a casualidade nos tivesse feito amigos?
+
+Ernesto deixou cair a cabeça sobre o peito. A sympathica physionomia do
+pintor tinha n'aquelle momento a expressão da mais profunda tristeza.
+
+Amparo compadeceu-se d'aquelle amante respeitoso que se não atrevia a
+declarar-lhe o seu amor.
+
+A compaixão, essa bella e delicada qualidade da alma da mulher,
+apoderou-se do coração da joven, e com uma doçura infinita, perguntou:
+
+--Mas, meu Deus. O que tem, Ernesto? Nunca mais nos tornaremos a vêr?
+
+Ernesto, que sentia penetrar no fundo do seu coração a doce voz de
+Amparo, levantou a cabeça, fixou n'ella um amoroso olhar, e disse:
+
+--Irei a Madrid antes do fim de setembro; mas durante esses tres mezes
+que faltam, a minha alma viverá em eterna solidão, rodeada de triste
+melancholia porque vae partir, e eu amo-a como um louco.
+
+Amparo córou. As suas formosas faces cobriram-se d'esse encantador
+carmim que tão bem assenta ás jovens e que tanto arrebatam e enlouquecem
+os homens.
+
+--Sim, para que occultar-lh'o por mais tempo? continuou Ernesto. Deve
+tel-o comprehendido. Se os meus labios ainda lh'o não disseram, os meus
+olhos têem-lh'o confessado infinitas vezes. Quando se ama pela primeira
+vez, com a vehemencia filha de um amor tão firme como verdadeiro, é
+trabalho em vão dissimulal-o. Os olhos revelam o sentimento da alma e
+atraiçoam-nos. Não é verdade, Amparo, que já tinha adivinhado que eu
+desde Roma a amava com toda a minha alma? Oh! isto certamente não era
+segredo para si.
+
+Amparo suspirou. Os seus olhos bellos, cheios de melancholica expressão,
+fixaram-se com certo receio no joven, e com voz tremula e doce, respondeu:
+
+--Sim, Ernesto, adivinhei-o e, não obstante, fui a causadora d'esta
+viagem. Se em Roma nos tivessemos separado, talvez que a estas horas já
+não pensasse em mim.
+
+--Não pensar em si! Isso para mim é tão impossivel como seria a Tasso
+não pensar em Leonor, a Raphael esquecer a Fornarina, cujo retrato
+contemplámos os dois de mãos dadas em Roma, e cuja copia admirámos
+tambem em Florença. Para certos homens é um passa-tempo, uma nuvem de
+verão carregada de mais ou menos electricidade, mas que passa e que
+rapidamente desapparece; para outros, o amor é a vida, é a luz, é o ar
+que dá vida, força á imaginação, alegria á alma, porque o amor é para
+elle a unica luz que lhe embelleza tudo; tirando-lhe esse amor, ficam
+rodeados das mais profundas trevas e morrem de tristeza.
+
+Ernesto ia continuar quando se ouviu a voz de D. Ventura, que falava na
+sala anterior com o senhor Rosales.
+
+--Por Deus, Ernesto, disse Amparo com voz supplicante, que meu pae não
+suspeite nada!
+
+--Esteja descançada, Amparo. Não receie que a importune; para amar não é
+preciso ser correspondido. Esta noite estarei á meia-noite no
+caramanchão do jardim. Espero-a até que amanheça: se vier, a bella flôr
+da esperança renascerá na minha alma, perfumando a minha existencia, se
+não vier, ámanhã, com qualquer pretexto, partirei para Roma e não nos
+tornaremos a vêr.
+
+Amparo guardou silencio. Ernesto poz-se a arranjar os desenhos,
+procurando dissimular a sua commoção.
+
+Quando entraram Rosales e D. Ventura, os dois jovens occupados com os
+desenhos, não inspiraram a menor suspeita ao honrado commerciante.
+
+--Fazem muito bem em dispor tudo, disse D. Ventura. Entre quatro ou
+cinco dias tomaremos o caminho de França.
+
+--Com que então decididamente partimos, papá? perguntou Amparo.
+
+--Filha, ha cêrca de tres mezes que sahimos da nossa casa, é preciso
+voltarmos a ella.
+
+--Em verdade, senhor D. Ventura, que esta viagem tem um tanto de
+traiçoeira, respondeu Ernesto esforçando por rir-se. Emfim, brevemente
+nos veremos em Madrid.
+
+--Diga que é a melhor terra do mundo.
+
+--Assim a reputo.
+
+--Creio que hoje não temos nada que fazer, proseguiu D. Ventura.
+
+--Esta noite, se quizerem, iremos ao theatro. Estreia-se uma opera em
+Pergala.
+
+--Não, estou muito cançado, e esta noite quero-me deitar cedo; mas se
+quizer não se prenda por nossa causa.
+
+--Convem-me ficar em casa. Temos que aperfeiçoar alguns desenhos,
+tirados tanto á pressa, que apenas são quatro traços. Tambem fico em casa.
+
+--Ah! esquecia-me dizer-te que estive falando com o visinho do primeiro
+andar.
+
+--Com o conde de Loreto?
+
+--Sim.
+
+--Dizem que é um sujeito que deu muitos desgostos á mãe... disse Amparo.
+
+--Em Madrid está sempre em ordem do dia a mexeriquice: O conde de Loreto
+é um rapaz como muitos outros, que se divertem quanto podem, porque teve
+a sorte de herdar dos paes uma grande fortuna. Imagina que esse rapaz
+tem agora 28 annos, possue uma fortuna de quinze milhões. Demais, dizem
+que é muito instruido. O nosso hospedeiro não se cança de o gabar.
+
+--É um bom hospede, disse Amparo, sorrindo-se.
+
+Ernesto não tomava parte na conversa: desagradava-lhe ouvir elogios do
+conde.
+
+Mas deixemos correr as horas, e com a rapidez do pensamento
+transportemo-nos ao jardim da casa que occupavam os nossos conhecidos.
+
+Os relogios de Florença acabam de dar as onze e tres quartos, quando
+Ernesto saltou da janella para o jardim dirigindo-se para o caramanchão,
+coberto de madresilva, lupulo e hera.
+
+Dentro do caramanchão haviam quatro bancos e uma mesa. Ernesto sentou-se
+n'um disposto a esperar toda a noite como tinha dito a Amparo.
+
+A lua estava em quarto minguante, o céu limpido e de um azul escuro
+carregado onde as estrellas brilham de uma maneira extraordinaria.
+
+A brisa nocturna roubava a essencia perfumada das flôres, e, sempre
+prodiga, espargia pelo ambiente como se tivesse envergonhado d'aquella
+usurpação.
+
+N'um relogio de torre soou a meia-noite.
+
+Ernesto levantou a cabeça, poz-se de pé e foi pôr-se em uma das entradas
+do caramanchão. O coração dizia-lhe que Amparo vinha.
+
+A noite é em todos os paizes a protectora carinhosa dos namorados,
+porque o amor, vulgarmente timido á luz do sol, cobra valor e energia
+antes esses tibios reflexos que a lua envia do céu.
+
+Ernesto, de pé junto da entrada do caramanchão, com uma das mãos sobre o
+coração e a outra languidamente caída, dirigia olhares cheios de
+inquietação para o silencioso edificio d'onde devia vir a sua
+felicidade, a sua dita, o anjo dos seus sonhos.
+
+Passou-se um quarto de hora. Amparo não vinha, e os segundos passavam
+com um vagar, com uma monotonia aborrecedora para Ernesto.
+
+Por fim os labios entreabriram-se-lhe, sem duvida para dar um grito de
+prazer, mas conteve-se. Vira desenhar-se entre as sombras das arvores a
+encantadora silhueta de um corpo para elle conhecido, e em seguida
+uns passos se ouviram na areia das ruas que conduziam ao caramanchão, e
+o ligeiro _frou-frou_ de um vestido que se approximava.
+
+Ernesto sahiu ao encontro de Amparo, porque era ella; pegou-lhe n'uma
+mão e conduziu-a até ao caramanchão.
+
+A joven tremia; estava nervosa e pallida.
+
+Ernesto sentou-a n'um dos bancos procurando tranquilisal-a.
+
+--Obrigado, Amparo, obrigado por tanta bondade. Tranquilise-se, os
+homens honrados que amam como eu, sabem respeitar o objecto do seu amor.
+
+--Ernesto, respondeu a joven, commetti uma imprudencia. Nunca devia ter
+vindo.
+
+--Tão pouca confiança lhe inspiro?
+
+--Sim, muita, meu amigo, muita; de contrario não teria vindo. Mas sou
+franca, não pude resistir, porque as ultimas palavras que me disse esta
+tarde pareciam recriminar-me. Bem vê: aqui estou, apezar de tudo. Tive
+um susto terrivel. Para vir ao jardim era preciso passar pelo quarto de
+meu pae; receei despertal-o. E sabe o que fiz? Pois bem, vou-lhe dizer:
+saltei pela janella. Nem eu mesmo posso explicar como tive coragem para
+tanto: tratava-se de me despedir de um amigo bom e leal, e não tive
+animo para faltar.
+
+Ernesto tinha entre as suas as mãos de Amparo, que apertava docemente,
+escutando ao mesmo tempo aquella voz encantadora que tão suavemente lhe
+vibrava no coração.
+
+Nunca experimentára um prazer tão completo, uma felicidade tão ineffavel.
+
+O perfume das flôres, o aroma da madresilva que se espalhava n'aquelle
+recinto; a luz tibia da lua, que penetrava no caramanchão pelos
+intervallos das folhas; aquella mulher, bella como o mais perfeito e
+encantador sonho da sua alma de artista, tudo contribuia para que
+Ernesto se julgasse arrebatado da terra pelos anjos e transportado a
+esse paraizo de amor que tanto embriaga as pobres creaturas.
+
+--Ha momentos de felicidade, exclamou Ernesto, que nunca deviam acabar.
+Se ao homem fosse dado escolher o momento da sua morte sem passar por
+suicida, eu escolheria este.
+
+--Está louco, Ernesto?
+
+--Quem sabe! Talvez. O amor não é outra cousa senão uma loucura sublime
+que conduziu Raphael aos pés de uma moleira, Tasso a uma prisão e Ovidio
+a uma masmorra. A historia conta-nos tantas loucuras de amor, que seriam
+necessarios muitos volumes para a descrever. Mas, feliz o que ama e é
+correspondido! Ditoso o que ao dar metade da sua alma, recebe em troca
+outra metade que lhe envia um peito agradecido em mutua correspondencia.
+
+Amparo suspirou em silencio. Ernesto, julgando que esse suspiro era uma
+confissão, levou aos labios a mão da donzella, imprimindo n'ella um beijo.
+
+Amparo estremeceu sem retirar a mão.
+
+Esta condescendencia animou o pintor.
+
+--Vamo-nos separar, Amparo; não nos veremos durante tres mezes;
+necessito ouvir antes uma palavra que inunde de felicidade o meu peito,
+que deposite o perfume da esperança em meu coração. Tambem me ama?
+
+--Ernesto, Ernesto, tudo isto me parece uma loucura, respondeu
+debilmente Amparo.
+
+--Não, não é essa a resposta que desejo, é outra, meu anjo. Ama-me, sim
+ou não?
+
+--Pois bem, sim. Ha muito que o devia saber; desde a noite do Colyseu de
+Roma.
+
+Ernesto não poude conter um grito de immensa felicidade, e enlaçando com
+o braço a cintura da donzella exclamou:
+
+--Juro pelas cinzas de minha mãe amar-te emquanto viva, e conquistar um
+nome tão glorioso que te sintas orgulhosa chamando-te minha.
+
+Este juramento, esta exclamação, brotaram de uma alma de artista, cheia
+de fé, de enthusiasmo, de amor.
+
+Amparo assim o comprehendeu, e, agradecida por tão grande paixão,
+achava-se n'um d'esses momentos de fraqueza em que a mulher não tem
+forças para resistir, momentos perigosos, dos quaes só se aproveita o
+homem para satisfazer um desejo, causando a infelicidade d'aquella a
+quem jura um amor eterno e por quem n'esse instante faz os maiores
+sacrificios.
+
+Mas Amparo rapidamente serenou; conheceu que era uma imprudencia
+permanecer á beira de tão grande precipicio, e ainda que Ernesto lhe
+inspirasse absoluta confiança, como elle mesmo acabava de dizer, amor
+não é outra cousa senão uma loucura sublime; por isso poz-se de pé e disse:
+
+--Separemo-nos, Ernesto, estou desassocegada e por enquanto convêm que o
+nosso amor seja um segredo.
+
+--Já? disse o pintor, tornando a cingil-a pela cintura. Pensa, querida,
+que em poucos dias nos vamos separar.
+
+--Ámanhã nos tornaremos a vêr aqui, se eu puder vir; mas hoje... hoje
+não devo ficar mais tempo.
+
+--Pois bem, sim, separemo-nos, não quero que estejas inquieta; sou
+demasiado feliz para te desgostar; mas se te inspiro confiança, se
+queres que seja esta a noite mais bella da minha vida, permitte-me que
+selle com um beijo a mutua promessa que acabamos de fazer.
+
+--Meu Deus, Ernesto, por compaixão! Ah! Para que vim?
+
+O pintor estreitou docemente o desfallecido corpo de Amparo de encontro
+ao seu. Aquellas duas cabeças jovens, apaixonadas, uniram-se; aquellas
+duas boccas tocaram-se e o doce som de dois beijos confundidos n'um
+fugiu nas azas da brisa nocturna.
+
+Pobre Ernesto! Elle tinha dado toda a sua alma n'aquelle beijo, emquanto
+que Amparo só lhe tinha feito uma esmola como paga de agradecimento que
+a sua deferencia para com ella inspirava.
+
+Amparo desprendeu-se dos braços de Ernesto, sahindo rapidamente do
+caramanchão.
+
+Ernesto deixou-se cahir n'um dos bancos, murmurando em voz baixa:
+
+--Meu Deus! Esta felicidade que sinto é demasiadamente grande para que
+seja duradoura!
+
+
+
+
+CAPITULO VII
+
+Separação
+
+
+No dia seguinte quando Ernesto appareceu no quarto de D. Ventura, este
+disse-lhe:
+
+--Que pallido que está? Que é isso? Não se sente bem? São más as aguas
+de Florença?
+
+--Pallido? respondeu Ernesto. Estou como sempre, estou bom.
+
+--Não, não, está com muito má côr. Não achas, Amparo?
+
+--Acho-o na mesma, papá, respondeu Amparo de um modo natural.
+
+--Seja como fôr, disse Ernesto sorrindo-se, não pensemos n'isso e
+tratemos de aproveitar o tempo que nos resta.
+
+D. Ventura, que não tinha vontade propria, pegou no Guia, Ernesto e
+Amparo nos seus _carnets_ de desenho e sahiram de casa com a incançavel
+curiosidade dos viajantes.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+N'aquella noite foram ao theatro de _Alfiere_, onde se representava _O
+pae de familia_, do celebre poeta cómico Carlos Goldoni, a quem chamavam
+o _Molière italiano_.
+
+Ao começar o primeiro acto abriu-se o camarote fronteiro ao dos
+nossos amigos e entrou um joven vestido de rigoroso luto.
+
+--Olhem, disse D. Ventura. É o nosso visinho do primeiro andar, o conde
+de Loreto.
+
+Amparo dirigiu o olhar machinalmente até ao camarote.
+
+Ernesto, como sempre, ao ouvir pronunciar aquelle nome sentiu uma vaga
+inquietação.
+
+O conde de Loreto teria vinte e oito annos. Era alto; não podiam vêr-se
+com facilidade as suas feições, mas de longe parecia muito pallido,
+elegante e sympathico. Era um d'esses typos distinctos que fazem com que
+se fixe n'elles a attenção. Como o panno acabára de levantar, o conde
+sentou-se. Durante o acto esteve ouvindo com grande attenção. Ao acabar
+sahiu do camarote para não tornar.
+
+A mais de metade do terceiro acto, D. Ventura que parecia gosar falando
+do seu visinho, disse:
+
+--Que homem tão extraordinario!
+
+--Quem? perguntou a filha.
+
+--O conde de Loreto. Durante o primeiro acto, nem pestanejou, ouvindo
+com attenção os versos de Goldoni, e durante o segundo e terceiro não
+tornou a entrar, mostrando a indifferença irritante dos nossos elegantes
+de Madrid em noite de estreia.
+
+Amparo nada respondeu. Ernesto guardou silencio.
+
+Depois da comedia representava-se uma d'essas farças em um acto que
+tanto agrada aos italianos em que toma parte a figura de Polichinello;
+farças vulgarmente improvisadas pelos actores que as representam.
+
+Como D. Ventura era um bom hespanhol, não sabia passar sem o cigarro, e
+sahiu do camarote para satisfazer o innocente vicio.
+
+Ernesto e Amparo ficaram sós.
+
+Durante alguns segundos ficaram silenciosos; ella parecia preoccupada,
+elle triste.
+
+Por fim Ernesto rompeu o silencio.
+
+--Que tem, Amparo? Noto nos seus formosos olhos uma melancholia que me
+entristece.
+
+--Penso que em breve nos vamos separar.
+
+--Ah! sim! É verdade! Mas esta noite...
+
+--Não, Ernesto, não; esta noite não vou ao jardim, receio que meu pae
+saiba.
+
+--Pois bem, não quero ser exigente; não sáias, mas ao menos abre-me a
+janella para que possa vêr o luar sem testemunhas importunas; que possa
+dizer-te no silencio da noite o que sente o meu coração.
+
+--Ámanhã, Ernesto, ámanhã, prometto-te abrir a janella para me despedir
+de ti; hoje sinto-me mal; necessito descançar.
+
+--Mas é uma crueldade roubar-me uma noite quando tão poucas nos restam.
+
+Amparo fixou os seus olhos no pintor, e compadecida da triste e
+apaixonada expressão de Ernesto, disse:
+
+--Bem, abrirei.
+
+Ernesto fez um movimento como para se apoderar de uma mão da Amparo, mas
+esta conteve-o com o olhar, exclamando:
+
+--Que vae fazer? Que imprudencia!
+
+Ernesto conteve-se, e só então se recordou que se achava no theatro.
+
+Durante a farça, D. Ventura riu-se muito. Ao acabar dirigiram-se para casa.
+
+Á uma da madrugada, Ernesto estava junto á janella do quarto de Amparo.
+Chamou suavemente. A janella abriu-se. Amparo apagara a luz; assomou á
+janella e começaram um d'esses dialogos, doces, apaixonados, cheios de
+encantadoras trivialidades, que só têem valor aos ouvidos dos namorados.
+
+Quando eram tres horas. Amparo disse:
+
+--Separemo-nos já, Ernesto.
+
+--Bem, separemo-nos, mas dá-me outro beijo de despedida.
+
+Amparo inclinou a cabeça e como na noite anterior, duas boccas se
+juntaram, e um beijo cheio de amorosa ternura interrompeu o silencio da
+noite.
+
+Ernesto e Amparo, durante aquellas duas horas de amoroso colloquio,
+fizeram mil promessas de amor e fidelidade.
+
+--Não me esqueças nunca, disse o pintor; pensa sempre em mim.
+
+Amparo tirou uma fita de seda com que prendia os cabellos e deu-a a
+Ernesto.
+
+--Esta fita será a que une os nossos corações. Pega, conserva-a.
+
+Ernesto cobriu de beijos aquella fita, que jurou conservar toda a sua
+vida como uma recordação de tão feliz noite.
+
+Quando o pintor entrou no seu quarto, pegou na penna e escreveu na fita:
+«_Florença, 2 de Julho de 186..._».
+
+Depois deitou-se, e não demorou muito em gosar um d'esses sonhos de que
+não quizera despertar.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+Dois dias depois, Amparo, seu pae e Ernesto entravam na sala de espera
+da estação. O comboio estava preparado para partir; faltavam alguns
+minutos para se pôr em andamento.
+
+O pintor esforçava-se por se mostrar satisfeito, mas uma enorme tristeza
+lhe opprimia o coração.
+
+Nunca Amparo lhe parecera tão bella como n'aquella occasião, mas era
+preciso resignar-se á separação.
+
+Os olhares furtivos que ella lhe dirigia pareciam dizer-lhe:
+
+--Confia e espera. Em breve nos tornaremos a juntar.
+
+Rapidamente D. Ventura pôz a sua mala de mão sobre um banco da estação e
+disse:
+
+--Oh! Aquelle não é o conde de Loreto?
+
+Ernesto e Amparo voltaram-se.
+
+Effectivamente, o conde estava sentado a um canto com um livro na mão, e
+falando em voz baixa com um velho de cabellos brancos, gravata branca e
+sobrecasaca preta que o ouvia em respeitosa attitude.
+
+O velho era um d'esses typos proprios para mordomo de casa rica; de
+parecer carregado, severo e completamente barbeado.
+
+O conde de Loreto parecia dar-lhe algumas ordens; o velho cumprimentou e
+sahiu do salão e foi para o local destinado aos despachos na estação.
+
+Ernesto poude vêr então perfeitamente aquelle rapaz, que parecia
+seguil-o como uma sombra.
+
+Era, em verdade, bello e distincto, notando-se-lhe na pallida e
+sympathica physionomia uma profunda melancholia que interessava.
+
+A julgar pelo traje, o conde ia emprehender alguma viagem.
+
+--Irá para Paris, tambem? pensou Ernesto, sentindo-se inquieto, mau
+grado seu, ante o conde de Loreto.
+
+A sineta deu o signal. Os passageiros dirigiram-se para a gare afim de
+escolherem logares.
+
+D. Ventura, que caminhava á frente, deteve-se junto de um compartimento
+de primeira classe, e disse:
+
+--Aqui.
+
+E subiu adeante para dar a mão a Amparo.
+
+N'um canto do compartimento e sobre um banco estava uma mala de viagem;
+no da frente o velho que pouco antes estivera falando com o conde de
+Loreto.
+
+Era por acaso ou propositadamente a escolha de D. Ventura? Quem sabe?
+Talvez que o honrado commerciante, vendo n'um compartimento de primeira
+classe o mordomo do conde de Loreto, escolhesse aquella carruagem com o
+firme proposito de viajar com um compatriota de sangue azul, ou talvez
+não reparasse senão depois no silencioso e sympathico ancião.
+
+Mas a escolha causou um profundo desgosto a Ernesto, que pela primeira
+vez sentiu no peito a terrivel punhalada do ciume.
+
+O pintor apertou a mão do commerciante e depois a de Amparo,
+enviando-lhe toda a sua alma n'um olhar.
+
+--Até setembro, lhe disse.
+
+N'aquelle momento ouviu-se uma voz varonil, mas doce e respeitosa, que
+disse em castelhano:
+
+--Dá-me licença, cavalheiro?
+
+Ernesto deixou-o passar. O conde de Loreto cumprimentou e subiu para a
+carruagem, indo sentar-se em frente do seu mordomo.
+
+Apitou a locomotiva, e começou o comboio a mover-se e a sahir
+pausadamente da estação.
+
+Amparo e D. Ventura assomaram á janella e acenaram com um lenço ao seu
+bom amigo.
+
+Um momento depois, o comboio tinha desapparecido; mas Ernesto como se
+estivesse pregado ao chão permanecia immovel e preoccupado.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+N'aquella noite, Ernesto partiu para Roma, levando a duvida na alma e o
+ciume no coração.
+
+Pobre sonhador! Infeliz artista, que tinha trocado por um beijo, a
+felicidade, a paz do seu espirito e todos os seus sonhos de gloria!
+
+
+
+
+CAPITULO VIII
+
+Caminho de Hespanha
+
+
+Ernesto encerrou-se no _atelier_. Era preciso ganhar o tempo perdido;
+era preciso acabar o seu quadro quanto antes e regressar a Hespanha e
+sobretudo era indispensavel fazer uma obra-prima que cobrisse o auctor
+de gloria, que fosse falada em todo o mundo, e que Amparo se sentisse
+orgulhosa. Mas ai! o pobre artista tinha a imaginação demasiadamente
+occupada, a alma pouco socegada para conseguir o seu fim.
+
+Comtudo, fez esforços heroicos, trabalhava emquanto tinha luz, e
+durante as noites, fechado no quarto, passava longas horas, escrevendo
+as impressões da sua alma no meio da soledade em que vivia.
+
+--Ámanhã, quando nos tornarmos a reunir, pensava elle, entregar-lhe-hei
+estas folhas de papel em que diariamente escrevo os meus pensamentos, e
+ella verá que a não esqueci nem um só instante, que a continuo amando
+como nunca.
+
+Ernesto pintára um pequeno quadro, representando a scena do caramanchão,
+no momento de dar e receber o beijo de Amparo. Os dois jovens, docemente
+abraçados, estavam illuminados pela debil luz da lua.
+
+O grupo era encantador; respirava amor, ternura, poesia.
+
+Era aquelle quadro uma grata recordação que a sua alma sensivel
+transportára á téla.
+
+Em volta do quadro collocou a fita que lhe dera Amparo.
+
+Durante a noite, Ernesto passava ás vezes um quarto de hora contemplando
+o pequeno quadro, pendurado n'uma parede do seu quarto.
+
+Depois pegava na penna e escrevia. Isto consolava-o.
+
+O pintor acabou por fim o seu quadro e convidou para almoçar alguns
+amigos para que vissem a sua obra e dessem a sua opinião.
+
+A opinião geral foi de que ganharia o primeiro premio.
+
+Ernesto meneou a cabeça em signal de duvida.
+
+--Parece-me que podia fazer mais do que o que fiz, e duvido muito que o
+meu quadro tenha o merito que suppõem.
+
+Os seus companheiros trataram de convencêl-o de que o seu desalento, a
+sua falta de confiança eram infundados.
+
+No dia seguinte, Ernesto escreveu uma carta ao judeu Daniel.
+
+O negociante de quadros, como sempre que se tratava de fazer algum
+negocio, apresentou-se com pontualidade.
+
+--Vou para Hespanha, disse Ernesto.
+
+--O que quer dizer que precisa de dinheiro.
+
+--Sim, vou expôr o meu quadro; por conseguinte escolha o que gostar.
+
+Daniel passou revista aos quadros com a sua tranquillidade costumada, e
+escolheu a maior parte das pequenas telas que o pintor possuia.
+
+Depois de ajustar e ao entregar o dinheiro, disse Daniel:
+
+--São os artistas tão pouco agarrados ao dinheiro!... E comtudo, o
+dinheiro é a alma da vida. Com que então vae para Madrid?
+
+--Sim, senhor. Ámanhã saio de Roma.
+
+--No museu de Madrid ha quadros de muito merito, como tambem em varias
+egrejas; e se o senhor fosse um homem de palavra...
+
+Ernesto sorriu-se.
+
+--Se eu não soubesse o quanto me aprecia, respondeu, quasi teria direito
+a offender-me com as suas palavras.
+
+O senhor Daniel que nunca abandonava a caixa de rapé, tomou uma pitada
+com gravidade, e disse:
+
+--Em Madrid existem preciosos originaes dos melhores auctores. Temos ahi
+sobretudo os da escola hespanhola, e se quizesse tirar-me algumas copias
+feitas com consciencia, não teria inconveniente em ficar com ellas.
+
+--Isso depende do trabalho que tiver na minha patria.
+
+--Será pouco. Em Hespanha não ha costume de proteger as artes. A
+politica, os touros e a bolsa absorvem a attenção dos hespanhoes. As
+artes e a agricultura encontram-se em completo abandono. Para ser
+artista em Hespanha, precisa ter a força de vontade de Aristoteles, a
+paciencia de Job, e o estomago privilegiado dos arabes; e para ser
+agricultor a resignação de Santo Isidro, com a desvantagem de que no
+tempo d'aquelle santo, os anjos desciam á terra e lavravam para que o
+santo dormisse, e hoje os anjos não lavram. Mas, emfim, o senhor
+pensará o que lhe convém e n'esse sentido me escreverá indicando-me
+os tamanhos e o preço por que m'os vende.
+
+Ernesto comprehendendo que o judeu tinha razão, não o contradisse,
+porque sabido é que sendo Hespanha um paiz agricola, não tem outra
+protecção senão a da Providencia. Quando chove muito succede como no
+Egypto, têem boa colheita. Quando chove pouco, os pobres lavradores
+pagam o mesmo ao _protector_ governo que não se occupa d'elles e morrem
+de fome; mas isso pouco importa, comtanto que se receba a contribuição,
+porque n'essa desgraçada nação chegou a ser impossivel encontrar-se um
+governo _bom_ e _barato_.
+
+Resumindo: Ernesto partiu de Roma, no dia seguinte, levando no quadro
+uma esperança de gloria; no beijo que abrazara a sua alma uma esperança
+de amor.
+
+Tres mezes tinham decorrido desde o dia em que se separou de Amparo.
+Durante este tempo, nem uma só carta recebêra.
+
+Ernesto levava, sem saber porquê, a tristeza na alma. Ha presentimentos
+que perseguem o homem com a tenacidade da sombra. O conde de Loreto fôra
+para Ernesto, desde o primeiro dia, uma ave de mau agouro.
+
+Deixemol-o viajar até Hespanha, e encontremo-nos novamente com a formosa
+Amparo.
+
+O coração da mulher é insondavel; não se póde definir, porque é vario e
+caprichoso como a mesma natureza. Por isso Amparo, que indubitavelmente
+sahiu de Florença enamorada do pintor, chegou a Paris pensando muito no
+seu companheiro de viagem, o joven conde de Loreto.
+
+Vejamos o que succedeu.
+
+
+
+
+CAPITULO IX
+
+De Florença a Paris
+
+
+Fernando del Villar, conde de Loreto, depois de cumprimentar
+respeitosamente com um movimento de cabeça os seus companheiros de
+viagem, accomodou-se do melhor modo possivel no canto, e pôz-se a lêr.
+Em frente d'elle, grave e immovel como _El banquero de Cera_, de Paulo
+Féval, estava o velho mordomo. D. Ventura pensou que com uns
+companheiros tão graves se iria aborrecer extraordinariamente, mas
+restando-lhe a consolação de lêr até que se apresentasse melhor
+occasião, tirou o _Guia_ que lhe offerecêra Ernesto.
+
+Amparo, alguma cousa preoccupada com a recente despedida do homem a quem
+julgava amar, fechou languidamente os olhos e entregou-se a essa doce
+vida das recordações em que o passado é o presente da imaginação.
+
+Durante a primeira hora tudo se passou da fórma por que acabamos de
+descrever. Depois, como se prolongasse o silencio, Amparo, olhava
+dissimuladamente o joven aristocrata que tão embebido estava na leitura.
+
+O conde de Loreto era um d'esses homens a quem as mulheres não podem
+olhar impunemente, porque o seu rosto pallido e formoso, a triste
+expressão do seu semblante, convida o bello sexo a fazer esses terriveis
+commentarios que lhe são tão peculiares.
+
+Porque seria que sendo o conde de Loreto immensamente rico, estava tão
+triste? Isto pensou Amparo. E vendo atravéz aquella melancholia
+impropria da juventude, uma historia interessante, teve empenho em
+conhecel-a.
+
+Desde aquelle momento a felicidade de Ernesto estava ameaçada da morte.
+
+D. Ventura, que tinha passado a maior parte da sua juventude atraz de um
+balcão, com os olhos alegres, o sorriso nos labios, a lingua disposta a
+entabolar conversação com os freguezes, aborrecia-se extraordinariamente
+no meio d'aquelle silencio enfadonho e do ruido da trepidação que a
+machina transmitte aos vagons.
+
+Não podendo supportar aquella situação por mais tempo, deixou o livro e
+dispôz-se a falar com a filha, pensando que talvez assim conseguisse
+interessar o conde na conversa.
+
+--Olha, Amparo, que delicioso panorama apresenta essa povoação collocada
+assim na falda d'esse monte, exclamou Ventura. Oh! decididamente a
+Italia é um paiz encantador.
+
+--Que povo é este? perguntou Amparo.
+
+--Diabo! É difficil de t'o dizer porque me esqueci de comprar o Guia dos
+Caminhos de Ferro.
+
+O conde levantou a cabeça e assomando-a á portinhola, disse com voz
+harmoniosa e clara.
+
+--Este povoado, chama-se, se me não engano, _Santa Maria della Spina_.
+
+Amparo cumprimentou com a cabeça, como dando os agradecimentos ao conde
+pela sua deferencia.
+
+--Obrigado, senhor conde, disse D. Ventura, no tom mais amavel que lhe
+foi possivel.
+
+O conde tirou um livro da sua mala de mão, e dando-o a D. Ventura,
+continuou:
+
+--Possuo por casualidade dois Guias Geraes dos Caminhos de Ferro de
+Italia e França. Se o senhor quer acceitar um...
+
+--Bem vês, Amparo; isto é o que se chama viajar com sorte. Em Roma
+encontrámos o bom Ernesto, que foi para nós o melhor dos _cicerones_;
+aqui o senhor conde de Loreto offerece-nos um _Guia_ que tirará pelo
+caminho todas as duvidas.
+
+Fernando sorriu-se, e respondeu:
+
+--O favor é tão insignificante, que não merece a pena falar n'elle;
+sobretudo, entre compatriotas e visinhos, pois creio que somos visinhos
+ha um mez.
+
+--Sim, senhor, em casa de Rosales.
+
+--Tive o prazer de ouvir esta senhora tocar piano algumas noites; toca
+admiravelmente.
+
+--E o senhor conde, segundo me disse minha filha, toca muito bem orgão.
+
+Amparo se pudesse teria tapado a bôcca a seu pae. Mas já dissémos que D.
+Ventura tinha muita vontade de falar, e sobretudo fazer-se amigo do conde.
+
+--Ah! incommodei com o meu orgão algumas noites esta senhora?
+
+--Pelo contrario, pelo contrario, senhor conde; ouvimol-o com muito
+prazer. Abriamos as janellas para o ouvir melhor, ajuntou D. Ventura.
+
+--O orgão, disse Amparo, tomando parte na conversa, receando sem duvida
+que seu pae commettesse alguma imprudencia, é um dos instrumentos que,
+quando bem tocado, expressa melhor o sentimento da musica.
+
+--Sim, minha senhora, quando seja bem tocado, accrescentou o conde,
+deixando assomar aos labios um sorriso imperceptivel: mas,
+desgraçadamente, não succede isso commigo; toco por curiosidade, e nada
+mais. Apaixonado pela musica até ao exaggero dedico-lhe alguns momentos
+d'ocio. Admiro os grandes mestres, mas em mim a musica, como em tantos
+outros, não é mais do que um adorno, uma parte da educação. Toco, é
+verdade, mas toco muito mal, o que é o peior.
+
+D. Ventura estava encantado com a singeleza e naturalidade com que se
+expressava o conde.
+
+--Quizera, comtudo, disse o pae de Amparo, saber tanto como o senhor.
+
+--Saberia muito pouco, meu amigo; sobretudo, na Italia que estamos
+atravessando, onde todos são musicos.
+
+--O senhor conde chamar-me-hia indiscreto se lhe fizesse uma pergunta?
+disse D. Ventura.
+
+--Entre compatriotas que viajam juntos na mesma carruagem deve reinar a
+maior franqueza. Póde perguntar o que quizer.
+
+--Vae directamente para Paris, ou pensa detêr-se em alguma cidade de
+Italia?
+
+--Vou para Paris; já percorri tres vezes toda a Italia.
+
+--Então faremos a viagem juntos.
+
+--Pelo que me considero extremamente feliz.
+
+--Paris é o povo mais alegre da Europa.
+
+--E tem a vantagem de que os estrangeiros em Paris encontram-se quasi
+tão bem como na sua patria.
+
+--O caracter parisiense é a reunião da alegria e da amabilidade; gostam
+de ser amaveis, e esforçam-se para o conseguir.
+
+--Sempre que d'isso lhes resulte alguma vantagem, continuou o conde, mas
+seja como fôr, passa-se admiravelmente uma temporada n'aquelles modernos
+_boulevards_, onde o luxo reuniu todas as encantadoras loucuras. Oh! Só
+para cear uma noite no café _Tortoni_, almoçar na _Maison Dorée_ e
+passear uma tarde no _boulevard dos Italianos_ vale a pena fazer-se uma
+viagem a Paris.
+
+--E vae estar muito tempo na capital de França? perguntou D. Ventura.
+
+--Tenho muito que fazer, disse Fernando, sorrindo-se; primeiro ouvir a
+Patti na _Somnambula_, depois correr uma egua arabe nas proximas
+corridas de cavallos. Quero ganhar o premio que offerece a Imperatriz,
+que é uma rosa de brilhantes.
+
+Amparo, que ouvia com prazer a conversa, ainda que não tomasse parte
+n'ella, ás ultimas palavras do conde, pensou que não seria pelo valor da
+rosa de brilhantes que elle desejava ganhar o premio, mas para fazer com
+elle uma offerta a alguma pessoa querida.
+
+Desde aquelle momento Fernando del Villar, conde de Loreto, era para
+ella um homem que começava a espicaçar-lhe a curiosidade.
+
+--Ah! disse D. Ventura. Tem em Paris a egua que vae correr?
+
+--Tenho em Madrid os meus cavallos, mas mandei vir para Paris a minha
+invencivel _Rabeca_. Creio que assistirão ás corridas.
+
+--Teremos muito gôsto desde que se effectuem dentro d'um mez, e ao mesmo
+tempo uma grande alegria em que seja vencedor.
+
+Quando se começa uma viagem, durante os primeiros momentos, mais ou
+menos prolongados, segundo o caracter dos viajantes, só reina o maior
+silencio; cada um pensa quem será o companheiro da frente ou lado, mas
+uma vez entabolada a conversa estabelece-se uma certa intimidade
+agradavel que dura toda a viagem e ás vezes toda a vida.
+
+Durante a viagem dos nossos conhecidos, reinou a maior harmonia. Amparo
+e o conde falavam de musica; o mordomo e D. Ventura, de numeros. O
+honrado millionario estava satisfeito por ter encontrado tão bons
+companheiros.
+
+Uma vez em Paris, como D. Ventura era um homem rico que viajava por
+prazer e não tinha casa na moderna Babylonia, deixou ao conde de Loreto
+a escolha do hotel onde deviam hospedar-se.
+
+Fernando optou pelo Hotel do Louvre, e installaram-se em dois quartos
+contiguos no segundo andar com toda a commodidade que offerece aos
+passageiros o citado estabelecimento.
+
+O conde quiz que se collocasse um orgão no quarto de Amparo,
+offerecendo-se para lhe dar algumas lições.
+
+--Sou muito pouco habilidosa, disse Amparo, agradecendo-lhe com um olhar
+aquella deferencia.
+
+--Ora, respondeu o conde. Para uma mestra de piano como Vossa
+Excellencia nada mais facil que aprender orgão. Creia que em quinze dias
+póde tocar perfeitamente.
+
+--O que me vae custar uns oito ou dez mil _reales_, disse D. Ventura,
+porque terei de comprar um.
+
+--E nunca em melhor occasião do que agora que estamos em Paris, onde os
+constructores mais afamados têem os seus armazens. Ámanhã
+visitaremos alguns, com tres mil francos na carteira.
+
+--Vejo, que tanto o senhor conde como Amparo, conspiram contra a minha
+bolsa.
+
+No dia seguinte compraram um orgão, precioso instrumento de doze
+registos, incrustado em madreperola; uma verdadeira obra de arte que
+custou a D. Ventura seis mil francos, e que foi escolhido pelo conde, e
+o ex-commerciante não quiz deixar mal o joven aristocrata.
+
+Pagou D. Ventura, encarregando o fabricante de lh'o remetter para
+Hespanha, e não se tornou mais a falar no assumpto.
+
+Todas as tardes Fernando dava lição de orgão a Amparo. Ao principio
+estas lições foram curtas, depois prolongaram-se a duas horas.
+
+Quando cantava a Patti iam juntos ao theatro; sómente o conde ia para as
+cadeiras e D. Ventura para um camarote, mas durante os intervallos o
+conde visitava o millionario.
+
+Assim se passaram vinte dias. Amparo começava a pensar muito no conde e
+pouco em Ernesto.
+
+Quando a mulher faz comparações, a derrota de um dos comparados é
+infallivel. Vejamos como o conde de Loreto cahiu a fundo sobre o pintor.
+
+Tudo estava preparado para as corridas.
+
+A Imperatriz Eugenia, com toda a sua côrte, devia assistir.
+
+D. Ventura tinha conseguido a peso d'ouro, alugar uma luxuosa caleche.
+Amparo mandára fazer uma elegantissima _toilette_. A festa promettia ser
+das mais brilhantes. Toda a aristocracia de sangue e de dinheiro se
+reunia n'aquellas corridas. Amparo desejava vivamente que Fernando
+ganhasse o premio. D. Ventura, pela sua parte, dizia:
+
+--É uma questão de honra nacional.
+
+Ao meio dia appareceu Fernando: estava pallido, nervoso; no rosto tinha
+marcados signaes de desgosto.
+
+--Succedeu uma grande desgraça, exclamou.
+
+--Morreu _Rabeca_? perguntou D. Ventura.
+
+--Não, respondeu, esforçando-se por se rir.
+
+--Mas o que é? disse Amparo.
+
+--O meu jockey que está doente e que não póde correr.
+
+--É verdade que é um contratempo. Mas não se encontrará outro?
+
+--Outro? exclamou o conde assombrado. E quem me responde pela sua
+habilidade, pelos seus dotes, pela boa fé de um jockey alugado? Todos os
+leões de Paris, todos os afficionados de equitação, que não são poucos,
+que frequentam á noite a _Maison Dorée_ e á tarde o _boulevard dos
+Italianos_ conhecem _Rabeca_ e têem grande interesse em que fique
+vencida; e seriam capazes de comprar o jockey que n'ella corrresse, para
+que a sopeasse e perdesse. Demais isso é sériamente grave para mim. Se
+não corre a minha _Rabeca_ perco cinco ou seis mil francos que apostei a
+noite passada com um _lord_ que traz tambem um dos seus cavallos para a
+corrida de hoje. A aposta está feita com as seguintes condições: «Se por
+qualquer casualidade um dos cavallos não puder correr dá-se por perdida
+a aposta.» É preciso portanto que _Rabeca_ corra, e por isso venho
+dizer-lhes que não os posso acompanhar, pois que sou eu quem a vae correr.
+
+--O senhor? disseram ao mesmo tempo pae e filha.
+
+--Sim, eu. Sei que é uma desvantagem para mim. O jockey do meu
+adversario pesa escassamente tres arrobas: é um liliputiano, um homem em
+miniatura, é o rei dos jockeys, emquanto eu péso muito mais. Mas não
+quer dizer nada: a minha egua fará um esforço e vencerá.
+
+--Permitta-me que lhe diga, disse D. Ventura, que se expõe...
+
+--Isso é o menos. Quando chegar á terceira volta, saltarei já
+affoitamente. Tenho confiança na egua.
+
+E o conde, depois de algumas respostas dadas aos argumentos que lhe
+apresentavam os seus amigos, sahiu, despedindo-se d'elles.
+
+Como se póde calcular o interesse de Amparo cresceu uns setenta e cinco
+por cento.
+
+
+
+
+CAPITULO X
+
+A rosa de brilhantes
+
+
+Uma hora depois, a caleche de D. Ventura estava parada quasi ao fim da
+pista.
+
+D'aquelle ponto tinha a vantagem de vêr perfeitamente o cavallo que
+chegasse em primeiro logar á meta e estar proximo do camarote imperial
+onde o vencedor devia ir receber o premio.
+
+Amparo, de pé sobre as almofadas da carruagem, com a mão esquerda
+appoiada no hombro do pae, percorria com o binoculo o pittoresco
+panorama que a rodeava.
+
+Parecia-lhe impossivel que se pudesse reunir tanto luxo, tanta riqueza
+n'uma cidade.
+
+Dizem os francezes que Paris é a capital do mundo civilizado, e em
+verdade assim é.
+
+Quando a imperatriz Eugenia entrou no camarote, fez um signal com o
+lenço para que começassem as corridas, e ouviu-se então o sonoro som dos
+clarins.
+
+Amparo sentia palpitar o coração com violencia; deixou de olhar para o
+camarote e viu na pista, no ponto por onde deviam entrar os
+concorrentes, o conde de Loreto.
+
+N'aquelle momento daria tudo quanto lhe exigissem para conceder a
+victoria ao seu companheiro de viagem.
+
+Pouco depois, ouviu-se o tropel que vinha do lado para onde se fixaram
+todos os olhares, e o precipitado e forte galope de muitos cavallos
+chegou aos ouvidos de Amparo como surdo rumor da tempestade que avança
+com rapidez.
+
+Começaram por admirar os cavallos; de todos os lados se ouviam bravos e
+gritos de enthusiasmo, misturados com exclamações de raiva.
+
+Quando um cavallo passava adeante de outro, ouvia-se um rugido de raiva
+que exhalava o peito do vencido.
+
+Entretanto aquella quantidade de cavallos, deitando espuma pela bôcca,
+fogo pelas narinas, avançava com uma velocidade vertiginosa até ao sitio
+onde estava Amparo.
+
+Aquillo era um furacão de carne, empenhado pelo amor-proprio; parecia
+que arrebatava tudo.
+
+Amparo tremia; estremecia, mau grado seu, procurando avidamente o conde
+de Loreto entre aquelles bonets de variadas côres.
+
+Subitamente soltou um grito e fez com que D. Ventura, que contemplava
+boquiaberto aquelle soberbo espectaculo, voltasse a cabeça.
+
+--Que é? perguntou elle.
+
+--Alli, alli! exclamou Amparo. Vem á frente e traz n'uma mão o bonet e
+na outra o _stick_.
+
+--Oh! meu Deus! Que loucura! Póde cahir.
+
+N'aquelle momento o conde de Loreto passou pela frente da caleche de
+Amparo com velocidade de um raio. Mas apesar d'isso, cumprimentou-a com
+o bonet.
+
+Amparo levou a mão ao peito como para conter as palpitações do coração.
+
+Fernando levava pelo menos quarenta metros de avanço a todos os outros
+concorrentes.
+
+Quando chegou á ultima valla, _Rabeca_ saltou com tanta facilidade como
+se aquelle fosse o primeiro obstaculo. Um applauso geral resoou dedicado
+ao cavalleiro e cavallo.
+
+O conde de Loreto ganhára a rosa de brilhantes e os cincoenta mil
+francos, e não tardou que não estivesse rodeado de admiradores e curiosos.
+
+Fernando del Villar apertava a mão de alguns desconhecidos e
+cumprimentava os espectadores.
+
+O _lord_ approximou-se montando um soberbo cavallo de pura raça arabe.
+
+--Ganhou, senhor conde, disse apertando-lhe a mão. Esta noite espero-o
+para cear na _Maison Dorée_, não só para lhe pagar o que lhe devo, como
+tambem para lhe propôr um negocio, ácêrca da sua preciosa egua.
+
+N'essa occasião approximou-se um dignitario da côrte a dizer-lhe que a
+imperatriz Eugenia esperava o vencedor.
+
+O conde não esperou segundo convite: dirigiu a egua para o camarote
+real. Grande quantidade de cavalleiros o acompanharam.
+
+Ao chegar, Fernando desmontou-se e foi introduzido no camarote pelo
+fidalgo.
+
+--Disseram-me que era hespanhol, disse Eugenia em castelhano.
+
+--Nasci na Andaluzia, senhora, respondeu o conde inclinando-se
+respeitosamente.
+
+--Ainda bem, somos compatriotas. Aqui tem o premio que ganhou.
+
+A imperatriz entregou-lhe um estojo de velludo. O conde ajoelhou-se para
+o receber, beijou a mão e sahiu do camarote.
+
+Amparo não perdera o conde de vista nem um só momento. Quando viu que se
+dirigia para a sua carruagem, sentiu uma commoção desconhecida, como
+nunca tinha experimentado.
+
+Fernando foi até ella, sorrindo-se.
+
+--Bravo! bravo! exclamou D. Ventura, enthusiasmadissimo. Fazia o senhor
+muito bem, caro conde, em ter toda a confiança na valente _Rabeca_.
+
+--É invencivel, disse elle. Tinha inteira segurança, de que, a não me
+succeder uma desgraça, o triumpho era meu.
+
+E extendendo o braço, apresentou o estojo a Amparo, dizendo-lhe:
+
+--Senhora D. Amparo, como sei que pedia a Deus para que me concedesse a
+victoria, como sei o interesse que tomou, ouso pedir-lhe que acceite
+como uma recordação d'este dia o premio que me acaba de offerecer a
+imperatriz dos francezes.
+
+Amparo pegou com mão trémula no estojo, e antes de ter tempo para
+responder uma só palavra de agradecimento por aquella amabilidade, o
+conde partiu a galope em direcção a Paris.
+
+D. Ventura estava louco de alegria.
+
+Amparo commovida, pallida, seguiu o conde com a vista.
+
+--É um cavalheiro, disse o commerciante.
+
+--Sim, papá; não se póde ser mais delicado.
+
+--Mas, vamos vêr isso que tens na mão. Parece que não estás em ti.
+
+E D. Ventura, notando que a filha corava, sorriu-se maliciosamente.
+
+Amparo abriu o estojo: tinha um broche de brilhantes. Não se podia
+exigir mais gosto n'uma joia d'aquella natureza.
+
+--Em verdade, é um bonito premio, disse D. Ventura, fixando os olhos no
+broche.
+
+Amparo guardou silencio.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+Sigamos o conde de Loreto, que, entregando a egua ao creado, tomou um
+trem de praça que o conduziu ao hotel do Louvre.
+
+--Pódes dar-me os parabens, meu leal Francisco, disse o conde, abraçando
+o velho mordomo.
+
+--Quer dizer que ganhou o primeiro premio!
+
+--Não só o primeiro premio como tambem a aposta que tinha feito com lord
+Rutheney.
+
+--Que grande alegria me dá, senhor conde, disse Francisco sem perder um
+só momento a sua peculiar gravidade. Temos gasto tanto dinheiro durante
+a viagem!
+
+--Ahi vens tu com os teus malditos numeros.
+
+--Senhor, o interesse que tomo pela casa faz com que muitas vezes tenha
+certas liberdades...
+
+--Vamos, Francisco, não comeces a attribuir a ti faltas que não
+commetteste. Quando o meu pae morreu disse-me: «Nunca deixes Francisco;
+viu-te nascer, estima-te com idolatria e é honrado e leal.» Desde
+então ainda não tive de que pense que não é tão grande como devia ser,
+em relação ao que gasto; mas que queres... quando estiver arruinado,
+quando me vir como vulgarmente se diz com a corda na garganta, então
+seguirei o teu conselho e casarei. E a proposito: Que tal te parece a
+filha do nosso companheiro de viagem?
+
+--É extremamente formosa!
+
+--E nada mais? perguntou o conde, sorrindo-se.
+
+--E que tem doze milhões de dote.
+
+--O que te traz preoccupado. Emfim, até lá veremos. Quem sabe se terás
+razão, aconselhando-me a que case! Mas, dá-me algum dinheiro; vou cear
+com alguns amigos á _Maison Dorée_ e talvez se jogue.
+
+--Hontem dei ao senhor conde tres mil francos.
+
+--Sim, e hoje não tenho nem um centimo,
+
+Francisco exhalou um suspiro, abriu a gaveta e deu tres notas de mil
+francos ao amo, dizendo:
+
+--O tal inglez não pagará esta noite?
+
+--É natural; mas não devo acceitar um convite com sentido no que me devem.
+
+Fernando calçou as luvas, pôz o chapéu, pegou n'uma delicada bengala de
+canna da India, e sahiu.
+
+A _Maison Dorée_ é um dos taes estabelecimentos que só se encontram em
+Paris. Ponto de reunião da elegante e louca mocidade, centro d'esses
+seres felizes, sempre occupados em não fazer nada; come-se, joga-se e
+murmura-se, gastando dinheiro ás mãos cheias.
+
+Ahi tudo se sabe, tudo se commenta; e mais de uma vez têem ficado a
+honra das mulheres da moda, de mistura com o _Champagne_ e o _Rheno_
+sobre aquellas elegantes mesas.
+
+O conde de Loreto estava convidado para jantar com o lord que fizera a
+aposta, que o esperava com pontualidade britannica.
+
+Depois de cumprimentar, lord Rutheney tirou a carteira e entregou
+friamente os cincoenta mil francos que perdera.
+
+--Senhor conde, antes que comecemos a jantar, e segundo o costume
+inglez, de não fazer nada depois de nos levantarmos da mesa, vou
+propôr-lhe um negocio. Quer vender-me _Rabeca_? Dou-lhe por ella egual
+quantia á que me fez perder.
+
+--Mylord, desejo conservál-a.
+
+--Então não falemos mais no assumpto.
+
+E pediu que lhes servissem o jantar.
+
+Durante este, lord Rutheney fez elogios á egua do conde.
+
+--É um precioso animal, dizia. Se me pertencesse, nas proximas corridas
+annunciadas em Londres, jogaria duas ou tres mil libras esterlinas com
+certeza de ganhar. Pena será se soffrer algum desastre.
+
+Depois de jantar lord Rutheney e o conde de Loreto entraram no café.
+
+Depois passaram á sala do jogo e o conde sentou-se proximo ao banqueiro.
+
+Fernando jogava forte, mas com pouca sorte.
+
+Meia hora foi sufficiente para perder quanto trazia comsigo.
+
+Então voltou-se para o inglez que estava a seu lado ganhando mais de mil
+francos e disse-lhe sorrindo-se:
+
+--Mylord, fica fechado o negocio: _Rabeca_ é sua.
+
+Lord Rutheney inclinou a cabeça em signal de approvação, e entregou ao
+conde cincoenta notas de mil francos.
+
+Depois, tirou tranquillamente a charuteira e d'ella um havano e
+dirigiu-se pachorrentamente para a sala de fumo.
+
+Sentou-se n'um commodo divan, e começou a saborear o delicioso charuto.
+
+Proximo do sitio em que se achava o conde, fumavam quatro rapazes,
+conversando em voz alta.
+
+Nenhum d'elles reparára, em Fernando.
+
+--Desengana-te, Heitor, dizia um d'elles, o teu cavallo está muito longe
+de ser o que é a egua do hespanhol, e o arabe de lord Rutheney.
+
+--Pois apezar da tua opinião, respondeu com voz alterada Heitor,
+garanto-te que se o meu jockey não tivesse sido um parvo, ganhava o
+primeiro premio.
+
+--A ti succede o mesmo que a Marco Antonio quando os seus gallos iam
+combater com os de Octavio Augusto, que perdia e para consolação á sua
+pouca sorte arranjava sempre uma desculpa. O cavallo de lord Rutheney
+levava ao teu mais de vinte metros de avanço. Emquanto ao do hespanhol
+não se fala, esse não era um animal, era um raio: nem mesmo o vento
+corria mais do que elle.
+
+--Os hespanhoes, respondeu Heitor, em tom desdenhoso, têem nas veias um
+sangue mixto de godo e arabe, e não é para estranhar que saibam dar
+vantagens aos cavallos nas corridas. O conde de Loreto parecia um cigano
+correndo d'aquella maneira.
+
+Fernando ao ouvir estas palavras, pôz-se de pé e pallido, com o olhar
+turvo e ameaçador, dirigiu-se para o grupo que falava de si e encarando
+o que acabava de falar, disse-lhe:
+
+--O conde de Loreto sabe correr como um cigano e bater-se como um
+cavalheiro.
+
+E dizendo isto, atirou uma luva ao rosto de Heitor, que se lançou sobre
+o seu antagonista.
+
+Fernando extendeu o braço e deteve-o com incrivel facilidade.
+
+Todos o rodearam.
+
+Da parte do conde foi um creado chamar lord Rutheney.
+
+--Que foi? perguntou elle.
+
+--Quer ser meu padrinho?
+
+--Como? Tem alguma pendencia?
+
+--Sim, senhor. Este cavalheiro acaba de me insultar e tenho de me bater.
+
+--Tem a escolha das armas.
+
+--Cedo-a ao meu adversario: espero-o no café.
+
+Pouco depois lord Rutheney reunia-se ao conde de Loreto.
+
+--Já está tudo combinado, disse o inglez. Batem-se ao florete, ámanhã,
+ás oito horas da manhã, no bosque de Bolonha.
+
+--Perfeitamente. Espero-o ás seis no hotel do Louvre.
+
+--É sufficientemente forte ao florete para se pôr na frente de um
+adversario que o escolhe para se bater?
+
+--Manejo-o regularmente, e tenho pouco amor á vida; com estes dois
+requisitos não me devo arrecear d'um lance. Mas se me permitte,
+retiro-me. São dez horas: esta noite canta a Patti, e desejo ouvil-a,
+porque ámanhã mata-me o meu adversario.
+
+Lord Rutheney conduziu-o na sua carruagem á Opera.
+
+Quem visse Fernando na sua cadeira applaudindo com enthusiasmo a celebre
+Patti, não supporia que elle se ia bater no dia seguinte.
+
+Á meia noite entrou no seu quarto do hotel do Louvre, sentou-se,
+accendeu um charuto, e dirigindo um olhar tranquillo a Francisco,
+disse-lhe:
+
+--Ámanhã bato-me ás oito horas da manhã.
+
+O mordomo recuou dois passos, e exclamou assombrado:
+
+--Outra vez?!
+
+--Sim, é a quinta. Quem sabe se será a ultima? Não é vontade minha;
+quando menos se pensa, um insolente ou um enfatuado atravessa-se-nos no
+caminho, insulta-nos, e a honra exige que nos batamos. Cinco vezes me
+tem succedido isso. Prepara, pois, os meus floretes, e deita-te. Ah!
+Esquecia-me. Ámanhã cedo, mandarás por um creado _Rabeca_ a lord
+Rutheney; vendi-lh'a; e, verdade verdade, que isso me desgosta mais do
+que o duello.
+
+Francisco fez um gesto como se fosse para falar.
+
+--Não te inquietes, não te inquietes com reflexões inuteis; o duello é
+inevitavel. Quero dormir para estar fresco. Bôa noite. Acorda-me ás
+cinco e tres quartos.
+
+E o conde principiou a deitar-se.
+
+Francisco sahiu triste e preoccupado.
+
+Alguns minutos depois o conde de Loreto dormia profundamente.
+
+O honrado mordomo não se deitou: ser-lhe-ia impossivel dormir, e
+preferiu estar levantado.
+
+Ás cinco horas e meia entrou no quarto do amo.
+
+O velho esteve-o contemplando por alguns momentos. Notava-se-lhe na
+triste expressão do rosto o estado do seu espirito. Receava pela vida do
+amo.
+
+Por fim disse em voz alta:
+
+--Senhor, são horas.
+
+O conde abriu os olhos, bocejou, e, fixando um olhar somnolento no
+mordomo, disse:
+
+--Nunca perdoarei ao meu adversario este delicioso sonho que me rouba.
+Que mau costume baterem-se de manhã!
+
+Fernando vestiu-se com esmero, como se fosse fazer uma visita de
+cerimonia, com a differença de que em vez do frack ridiculo e
+incommodativo, vestiu uma sobrecasaca preta.
+
+--Querido Francisco, disse o conde, dando o ultimo toque na gravata em
+frente ao espelho, se o meu adversario me matar, o que é provavel, mas
+não impossivel, tu te arranjarás como puderes, com os meus crédores; e
+visto o remanescente da minha fortuna ser para a avarenta da minha tia,
+a marqueza del Ramo, aconselho-te que fiques com tudo quando te seja
+possivel, porque não é justo que ao cabo de tantos annos de bons
+serviços, tenhas que procurar um novo amo, que indubitavelmente te não
+trataria como mereces. Agora faze o favor de dizer ao creado que me
+sirva o chá. Mylord não se póde demorar; são já seis horas, e é pontual
+até ao exaggero.
+
+Effectivamente lord Rutheney, acompanhado de outro amigo, entrou no quarto.
+
+--Creio, senhores, que temos tempo de tomar uma chavena de chá, disse o
+conde.
+
+Rutheney olhou para o relogio.
+
+--Os meus cavallos conduzir-nos-hão em menos de uma hora: temos tempo,
+isto é, podemos dispor de sessenta minutos.
+
+--Creio que este cavalheiro, ajuntou o conde, indicando o companheiro do
+lord, será o meu segundo padrinho.
+
+--É _mister_ Carlos Bobbe, meu medico e meu amigo; servirá, pois, de
+medico e de testemunha.
+
+--Tanto melhor. Mas vamos ao chá.
+
+O creado entrou trazendo uma bandeja com chavenas e pratos, que deixou
+sobre uma meza.
+
+_Mister_ Bobbe bebeu cinco chavenas de chá; lord Rutheney tres e o conde
+uma.
+
+--Quando quizerem, meus senhores, disse Fernando, vendo que os padrinhos
+collocavam as chavenas na bandeja, como prova de que não queriam beber
+mais.
+
+Fernando abraçou o mordomo, cujo rosto circumspecto e os olhos
+arroxeados o fizeram sorrir.
+
+--Não receies, lhe disse; sahir-me-hei bem como das outras vezes. E
+partiu.
+
+
+
+
+CAPITULO XI
+
+Mais um
+
+
+Quando Francisco ficou só, não poude conter as lagrimas; deixou-se cahir
+n'uma cadeira e chorou.
+
+A dôr do mordomo era tão profunda, tão verdadeira que ao entrar o creado
+para o serviço, nem sequer deu pela sua presença.
+
+O creado que servia seis quartos do corredor do segundo andar era um
+rapaz tão diligente como desembaraçado, e ao vêr o profundo pesar do
+velho creado do conde e que este sahira tão cedo, acompanhado de dois
+amigos, suspeitou tudo, mas em vez de dirigir a palavra a Francisco,
+julgou que era mais conveniente confiar as suas supposições ao hespanhol
+que occupava o quarto n.º 14, intimo do conde de Loreto. Assim,
+dirigiu-se para o quarto de D. Ventura e chamou-o.
+
+D. Ventura ainda não perdera o costume de madrugar; estava levantado
+e disposto a barbear-se. Abriu a porta, julgando que fosse o conde a
+propor-lhe algum passeio para aquelle dia, e encontrou-se com o creado e
+o seu eterno sorriso.
+
+--Que ha? perguntou D. Ventura.
+
+O creado falava, ainda que mal, o hespanhol, mas o sufficiente para se
+fazer comprehender pelos hospedes.
+
+--Cavalheiro, disse elle, sei que sou um tanto indiscreto e importuno
+batendo tão cedo á porta de um hospede...
+
+--Bem, bem. Que é? perguntou D. Ventura.
+
+--Mas sei tambem, continuou o creado, que o senhor é o amigo intimo do
+senhor conde de Loreto.
+
+--Sim, homem, sim, acaba.
+
+--Pois bem, o senhor conde deve correr algum perigo, porque o vi sahir
+acompanhado de dois inglezes; e o mordomo do conde assim que elle sahiu,
+pôz-se a chorar amargamente. Não quero equivocar-me, mas julgo que o
+senhor conde vae bater-se.
+
+--Diabo! Bater-se? Isso é grave!
+
+--É muito, cavalheiro.
+
+--Mas não sabes porquê?
+
+--Só vi metter no trem os floretes.
+
+D. Ventura sahiu precipitadamente do quarto, e entrou no do conde.
+
+Francisco continuava prostrado na cadeira e com o rosto occulto entre as
+mãos.
+
+--Que novidades temos? perguntou em voz alta D. Ventura.
+
+O mordomo levantou a cabeça. Aquelle rosto veneravel estava decomposto
+pelas lagrimas e pela dôr: tinha uma expressão de profunda tristeza.
+
+--É certo o que me acabam de dizer? É certo que Fernando foi bater-se?
+
+--Desgraçadamente é certo, senhor D. Ventura.
+
+--Diabo! Não sei para que se expõe a vida assim com tanta facilidade. Eu
+tive pelo menos, cincoenta mil questões, e nunca tive necessidade de me
+bater com pessoa alguma. Para que temos os tribunaes, se fazemos
+justiça por nossas mãos? E demais, o que deu origem ao duello, valeria a
+pena?
+
+--Não sei detalhes; só me disse que se ia bater; mas ia apostar em como
+o meu amo o não provocou, pois que o conde é incapaz de offender alguem.
+Oh! se o seu adversario o matasse era uma desgraça.
+
+--Era, era! Mas tenho esperança em que não será assim. Ora o diabo do
+rapaz!...
+
+E como o mordomo continuasse gemendo e suspirando, D. Ventura pôz-se a
+passear pelo quarto.
+
+Assim se passou meia hora. Nenhum dos dois falava. D. Ventura pensou,
+por fim, que seria mais conveniente esperar o resultado no seu quarto do
+que junto do mordomo, cuja dôr o affligia duplamente.
+
+--E a que horas saberemos o resultado? perguntou D. Ventura.
+
+--Creio que ás nove, pouco mais ou menos.
+
+--E são só oito! Mas, não se poderia dar parte ás auctoridades para
+evitar o duello?
+
+--Se tal fizessemos, o senhor conde nunca nos perdoaria.
+
+--Diz bem; não ha outro remedio senão esperar e conformarmo-nos com a
+sorte. Ora o diabo do rapaz! Vou vêr se a minha filha já se levantou, e
+peço-lhe que tão depressa saiba alguma cousa me avise.
+
+O quarto de Amparo era separado do de seu pae por uma debil parede
+communicando por uma porta.
+
+Amparo ouvira entre sonhos parte do que o creado dissera a D. Ventura.
+
+Quando este entrou já estava levantada.
+
+--Não me occulte nada, disse, quero saber tudo quanto se passa.
+
+--Pois, filha, o que se passa é pouco agradavel. Fernando a esta hora
+bate-se em duello.
+
+Amparo empallideceu e como se lhe faltassem as forças, sentou-se n'uma
+cadeira.
+
+--Que é isso? Estás doente? Era só o que faltava.
+
+--Não se assuste; não tenho nada.
+
+--Nada! nada! Não me capacitas de que é sem motivos que perdes as
+côres, commoveste-te, e isso é natural, muito natural, sim, senhora;
+porque demais, o conde é um joven que se faz estimar; e se tivessemos a
+desgraça de o perder, se o seu inimigo o matasse...
+
+--Cale-se, papá, cale-se! exclamou Amparo estremecendo. Não diga isso
+nem a brincar.
+
+--Sim, bôa brincadeira, não haja duvida! Ora o diabo do rapaz!
+
+D. Ventura, depois de barbeado, assomava á porta a cada momento.
+
+Nunca o tempo lhe parecera tão comprido.
+
+Quando o relogio do quarto deu as nove horas, disse:
+
+--Já se não póde demorar.
+
+Como se estas palavras fossem como um amuleto magico, ouviram-se os
+passos de varias pessoas no corredor.
+
+D. Ventura chegou á porta e não poude conter um grito.
+
+--É elle? perguntou Amparo.
+
+--É.
+
+--E como vem? perguntou a medo.
+
+--Perfeitamente, andando pelo seu pé. Ah! Louvado seja Deus!
+
+E dizendo isto, sahiu precipitadamente do quarto, entrando no do conde.
+
+--Venha um abraço, venha um abraço, exclamou.
+
+O conde deixou-se abraçar.
+
+--Com que então, foi feliz? perguntou D. Ventura com infantil alegria.
+Muito folgo, muito folgo.
+
+Fernando dirigiu um olhar de censura ao mordomo, e deixando assomar aos
+labios um amargo sorriso, disse:
+
+--Sabe então que me bati. Pois, visto isso, só me resta dizer-lhe que o
+lance foi desgraçado; teve graves consequencias.
+
+--Como? Está ferido? exclamou D. Ventura.
+
+--Não, infelizmente.
+
+--Não o comprehendo.
+
+--Senhor D. Ventura, quando por uma d'essas nescias exigencias de decoro
+se batem dois homens e um d'elles morre no que chamamos campo da honra,
+o que sobrevive, o que torna para casa vencedor, traz uma espinha
+cravada na alma que permanece ahi toda a vida. Indubitavelmente alguma
+maldição está suspensa sobre a minha cabeça. Tenho má mão para desafios.
+
+E o conde deixou-se cair n'uma cadeira, dando mostras do mais profundo
+abatimento.
+
+--Conheço, senhor conde, que se deve ter um remorso muito grande em
+matar um homem, disse D. Ventura, mas, que remedio? Quando se tem em
+frente um inimigo armado que cubiça a nossa vida temos o dever de
+disputál-a.
+
+Lord Rutheney pronunciou algumas palavras para tranquillisar o conde que
+parecia vivamente incommodado.
+
+--Agradeço o interesse que lhes inspirei, disse Fernando; mas ao mesmo
+tempo, desejava que fizessem o favor de me deixarem só, pois estou
+fatigado e preciso descançar.
+
+Era evidente que uma grande fadiga do espirito se apoderára do conde e
+os seus amigos retiraram-se.
+
+D. Ventura entrou no quarto da filha a quem contou tudo quanto se
+passára, que com esse natural egoismo da mulher se alegrou profundamente
+ao saber que o conde se tinha sahido bem do lance de honra, visto ella
+não conhecer o infeliz Heitor morto no desafio, e unirem-na a Fernando
+relações de amizade que iam tomando o caracter de uma paixão verdadeira.
+
+Entretanto, o conde de Loreto fechava-se no quarto, permanecendo o resto
+do dia sentado n'uma cadeira. Nem elle mesmo poderia dizer se o somno se
+assenhoreou d'elle algum momento.
+
+Quando a obscuridade da noite se espalhou por todo o quarto, levantou a
+cabeça e disse:
+
+--É uma desgraça que já não tem remedio; tenho uma mão fatal. Esta é
+a quinta vez que causo a morte ao proximo e uma profunda dôr a um pae.
+
+E passando a mão pela fronte, como se quizesse livrar-se dos tristes
+pensamentos que o preoccupavam, levantou-se e tocou a campainha.
+
+Francisco, o mordomo, tão pallido, tão commovido como o amo, entrou com
+uma luz na mão.
+
+--Bôas noites, senhor conde, disse deixando a vella sobre uma mesa.
+
+--Bôas noites, Francisco. Já sabes; matei um homem.
+
+--E todavia o senhor tinha-me dito que não mais se bateria ainda que o
+insultassem.
+
+--É verdade; jurei não me bater, mas para que ninguem duvidasse de que
+sei defender o meu decoro, não me pude conter, e agora arrependo-me. Ah!
+se fosse em Hespanha não me tinha batido.
+
+--O remedio que ha, disse Francisco, é esquecer o passado.
+
+--Isso é mais difficil do que parece. Na memoria, como n'uma chapa
+d'aço, grava o buril do tempo todos os acontecimentos da vida. Só a
+morte tem o privilegio de os apagar. Mas tu disseste: já não tem
+remedio. Prepara tudo, que ámanhã sahiremos de Paris. Necessito, pelo
+menos, afastar-me d'esta terra.
+
+--E para onde vamos, senhor?
+
+--Para Hespanha.
+
+--Está bem.
+
+Fernando del Villar exhalou um suspiro e sahiu do quarto dirigindo-se ao
+de Amparo.
+
+
+
+
+CAPITULO XII
+
+Como se pede
+
+
+O piano é um grande recurso para aquelles que possuem e sentem na alma
+as doces e gratas impressões da musica, essa linguagem universal a que
+renderam tributo até os proprios deuses.
+
+Amparo estava tocando. Tinha na estante a partitura da _Estrangeira_,
+mas os dedos percorriam machinalmente o teclado, e os olhos fixavam-se
+distrahidamente nas notas.
+
+A musica para ella n'aquelle momento não era mais do que um grato ruido,
+adormecedor, como o sussurro cadencioso de uma fonte que convida á
+meditação.
+
+Não pensava quasi nada no piano, muito pouco na partitura que tinha ante
+si, mas muito no conde de Loreto.
+
+De Florença a Paris, isto é, trinta e seis horas de comboio, foram
+sufficientes para a formosa hespanhola se enamorar.
+
+Antes d'esta viagem a casualidade collocára, ainda que momentaneamente,
+no palacio de Médicis, Fernando e Amparo; depois em Paris as corridas de
+cavallos e o duello reforçaram a ideia fixa que começava a dominál-a.
+
+N'este momento Amparo estava só. D. Ventura sahira, depois de lhe contar
+tudo quanto sabia referente ao desafio do conde.
+
+Tocava, pois, piano, pensando no seu companheiro de viagem, quando ouviu
+passos atraz de si; voltou a cabeça, e encontrou-se com Fernando que lhe
+dirigiu um cumprimento respeitoso e um sorriso cheio de tristeza.
+
+--Bôas noites, senhora D. Amparo. Talvez a venha incommodar, disse o conde.
+
+--Incommodar-me? respondeu ella, parando de tocar. Pelo contrario. Bem
+vê que estou só... Meu pae é um valdevinos; abandona-me e então o piano
+é o meu recurso. Mas que tem? Está mais pallido que de costume, e
+noto-lhe uma expressão de tristeza na physionomia.
+
+--Suppunha que não ignorava a desgraça que me succedeu hoje, e venho
+despedir-me.
+
+--Como? abandona Paris?
+
+--Ámanhã.
+
+--Tão depressa.
+
+--Pensava passar aqui alguns mezes, mas agora é-me impossivel; necessito
+vêr outro sol, respirar outro ar.
+
+--E para onde vae?
+
+--Para Hespanha.
+
+--Então, sr. conde, não tardará muito que nos vejamos lá, porque, apezar
+de tudo, creio que o céu de Hespanha é o melhor de todos.
+
+--Diz muito bem, e sobretudo quando no céu de Paris a imaginação
+preoccupada vê algumas manchas de sangue que perturbam o socego e roubam
+a paz de espirito.
+
+--Verdadeiramente, é uma desgraça que as leis da honra imponham aos
+homens deveres tão desagradaveis. Meu pae contou-me tudo, e posso
+garantir-lhe que tão desgraçado acontecimento me penalizou bastante.
+
+O conde sentou-se n'uma cadeira proximo do banco de Amparo.
+
+--Não parece senão que me persegue algum genio fatal, disse elle, como
+se falasse comsigo. Quando o destino me colloca ante um homem com a arma
+homicida na mão, juro-o pela memoria de meu pae, sempre preferi morrer a
+matar, e expuz generosamente o peito ante o perigo, sem me preoccupar em
+evitál-o. Mas indubitavelmente uma força superior á minha vontade guia a
+minha mão, e sempre vejo cahir sem vida o meu adversario. Só a
+primeira vez que me bati tive desejos de sahir vencedor; era uma
+creança, e a vaidade e o amor proprio cegavam-me. Então tive a desgraça
+de matar um amigo intimo, um antigo condiscipulo. Pobre Arthur! E
+sobretudo, pobre mãe aquella, em cujos olhos não mais se lhe sêccaram as
+lagrimas, até que a dôr a conduziu ao sepulchro!
+
+O conde deteve-se. Bastava vêr-lhe o semblante, ouvir-lhe o timbre da
+voz para comprehender o estado do espirito. Amparo escutava-o
+interessada e sem se atrever a interrompêl-o.
+
+O conde, mudando de tom, continuou.
+
+--Com franqueza, não sou ridiculo? Vim despedir-me de V. Ex.ª, e
+estou-lhe contando historias que só a podem commover; mas ha dias em que
+se apodera de mim uma tristeza tão grande que não sei falar de outra
+coisa senão da minha vida passada, ou o que é o mesmo, dos meus
+remorsos, porque os sinto, senhora D. Amparo, e a minha sorte é
+duplamente desgraçada porque não tenho uma pessoa, que sendo depositaria
+das minhas amarguras, me console com os seus conselhos.
+
+--Senhor Fernando, exclamou a joven verdadeiramente commovida, receando
+que só o desespero fosse o motivo da melancholia do conde; senhor
+Fernando, se julga que posso ser essa amiga, apezar da minha pouca
+experiencia do mundo, não me occulte nada e honre-me com a sua confiança.
+
+--Senhora D. Amparo, ajuntou o conde com vehemencia, póde ser para mim o
+anjo salvador que me arranque do antro escuro em que me revolvo,
+conduzindo-me ao reino da luz e da felicidade; porque eu, qual judeu
+errante vagueando pelo mundo, necessito d'uma alma sensivel que me
+comprehenda, um coração bondoso que palpite com o meu e que se compadeça
+de mim. De que serve a mocidade e a riqueza? Preciso amar e ser amado. O
+bulicio do mundo não é sufficiente para distrahir a tenacidade do meu
+pensamento, a soledade da minha alma. Para esquecer o passado
+necessito que comece para mim uma vida nova; é indispensavel regenerar o
+meu coração, porque não póde calcular a persistencia com que me persegue
+o infortunio. Um anno depois do meu desgraçado lance com Arthur a quem
+matei, estava na Italia, precisamente em Florença, no palacio de
+Médicis, defronte do grupo de Niobe onde a vi pela primeira vez...
+
+O conde deteve-se, fez um brusco movimento com a cabeça, e exclamou:
+
+--Só uma creança ou um louco seria capaz de entabolar similhante
+conversação; e talvez eu seja uma e outra coisa. Desculpe-me, minha
+senhora, e perdôe-me todas as loucuras commettidas esta noite; mas parto
+ámanhã, talvez que nos não tornemos a vêr mais, porque, já lhe disse,
+como o judeu errante percorro o mundo em busca de uma alma que me
+comprehenda, que se una á minha e que me dê parte da sua paz, da sua
+tranquillidade, da sua seiva. Ao vêl-a, disse: «É este o anjo que
+cubiço.» Mas creio-me indigno de merecêl-o; e já que o segredo do meu
+coração assomou aos labios, ainda que lh'o quizesse occultar, a senhora
+teria já comprehendido que a amo, e só me resta supplicar-lhe que não me
+guarde rancor por tanto atrevimento, e que me permitta antes de partir
+apertar-lhe a mão como amigo.
+
+Se Amparo não tivesse verdadeira sympathia pelo conde, se não estivesse
+disposta a amal-o, necessariamente ter-lhe-hia parecido tão rara como
+incoherente a declaração que o conde lhe acabava de fazer.
+
+Mas Amparo amava o conde, e não se enganava ao pensar que era amada por
+elle. Por isso, aturdida, trémula, com voz commovida e pouco firme, o
+olhar fixo no chão, extendeu a mão a Fernando e disse:
+
+--Pois bem; se o senhor julga que depende de mim a sua felicidade,
+confie a meu pae, logo que elle volte, o seu segredo e partamos juntos
+para Hespanha.
+
+O conde soltou um grito, pegou na mão que Amparo lhe offerecia, e
+cobriu-a de beijos.
+
+..........................................................................
+
+N'aquella noite o conde pediu a D. Ventura a mão da filha.
+
+O honrado millionario mal poude dissimular a alegria que similhante
+pedido lhe causava. Era-lhe tão agradavel ouvir chamar á filha
+condessa!... Fraqueza por certo muito natural n'um homem nas condições
+de D. Ventura.
+
+Mas, ainda assim, não se precipitou: ouviu com apparente serenidade o
+pedido, e concedeu o seu consentimento, depois de ouvida a opinião da
+filha.
+
+Quando o conde sahiu, D. Ventura foi ao quarto de Amparo.
+
+--Venho dar-te uma noticia surprehendente, inesperada, talvez agradavel.
+
+--O que é papá?
+
+--Que o conde parte para Hespanha.
+
+--Já sabia.
+
+--Já sabias?! E quem t'o disse?
+
+--Elle proprio.
+
+--Mas sabes que quer partir ámanhã, se isso lhe fôr possivel?
+
+--Sim.
+
+--E sabes tambem que me pediu a tua mão?
+
+--Calculava tambem, meu pae, accrescentou Amparo, sorrindo-se.
+
+--Por conseguinte atraiçoaram-me?
+
+--O que perdoará, porque é muito generoso.
+
+--Será possivel que todos os paes sejam malucos?
+
+--Malucos só no preciso, isto é, d'alma e coração.
+
+--Sim, sim. Mas, dize-me que lhe hei-de responder.
+
+--Responda-lhe que sim, é o mais logico.
+
+--E o casamento.
+
+--Celebrar-se-ha em Madrid.
+
+--Claro. Quem se casa em França residindo em Hespanha?
+
+--Pois então já sabe; quando o conde lhe perguntar pela resposta
+definitiva, diga que sim e é assumpto concluido.
+
+--Mas olha, Amparo, agora que já se póde dizer que és a promettida
+esposa do conde de Loreto, vou contar-te uma cousa. Em Florença, suppuz
+que tu e Ernesto se amavam; mas assim é melhor; enganei-me, com o que
+muito folgo, porque, minha filha, n'estes tempos é mais acceitavel para
+marido um conde rico, do que um artista pobre. Ernesto pinta muito bem,
+mas não tem uma peseta.
+
+Amparo ao recordar-se de Ernesto commoveu-se; mas a commoção foi
+passageira, como a ave que cruza sobre a nossa cabeça para não mais voltar.
+
+Dois dias depois, um compartimento de primeira classe conduzia a
+Hespanha com a velocidade da locomotiva os nossos conhecidos. Era o dia
+28 de junho.
+
+
+
+
+CAPITULO XIII
+
+Os tres amigos
+
+
+Dois mezes depois dos ultimos acontecimentos que acabamos de narrar,
+isto é, no dia 1 de setembro ás seis horas da manhã, dois rapazes
+passeavam na gare da estação do sul, esperando o comboio correio de
+Alicante.
+
+--Garanto-te, dizia um d'elles, que Ernesto traz um grande quadro.
+
+--E eu concedo-lhe o primeiro premio, ainda antes de o vêr.
+
+--Tem muito talento.
+
+--Sim, mas segundo pude perceber nas suas ultimas cartas, está enamorado.
+
+--O amor abre muitas vezes o caminho.
+
+--Quando nos não conduz a precipicios horriveis.
+
+--Isso tudo depende da mulher que o inspira.
+
+--Dizes bem; ella faz do homem ou um heroe ou um parvo, mas quasi sempre
+o segundo caso.
+
+--Não te concedo voto no assumpto.
+
+--Como! Collocas-me fóra das leis do sentimento humano?
+
+--Sim, porque és um exaggerado e odeias o sexo fraco.
+
+--Tenho motivos para isso. Procurei estudar a mulher e estou convencido
+de que para ellas o mais importante é a exterioridade. Uma gravata bem
+posta, brilhante e bem feita bota de polimento; n'uma palavra um _dandy_
+adamado e escravo da moda, e que tenha o cabello sempre bem apartado,
+tem muitas probabilidades de ser amado; emquanto que um homem de
+verdadeiro merito, que cuide mais da sua intelligencia do que do seu
+traje, fica sempre derrotado em questões de amor. A historia
+apresenta-nos milhares de exemplos: todos os homens que honraram a sua
+patria não tiveram a quinta parte das aventuras amorosas de Lovelace,
+cuja arte se reduzia em fazer olhares ternos e trazer magnificas
+fivellas de prata nos sapatos.
+
+--Ovidio foi amado por uma princeza.
+
+--Quase esqueceu d'elle ao vêl-o n'uma masmorra.
+
+--Tasso foi amado por uma fidalga.
+
+--Que lhe não mandou nem um simples coto de vela quando por sua causa
+estava no calabouço escrevendo, _Jerusalem libertada_. Mas tu só me dás
+dois exemplos. Olha, André, Cesar foi o primeiro da sua epocha, a grande
+figura de Roma, e comtudo, a sua mulher, Pompeya, preferiu-lhe um
+imberbe creançola, Publio Clodio, que se vestia de mulher para pôr ao
+conquistador do mundo, uma corôa que não era por certo de louro. Pobre
+Cesar! Como era calvo, a sua cabeça estava sempre ameaçada.
+
+Os que assim matavam o tempo esperando o comboio, era um poeta a quem
+conheceremos pelo nome de Marcial e um pintor que se chamava André,
+ambos amigos intimos de Ernesto e a quem este remettêra de Alicante
+um telegramma avisando-os da sua chegada.
+
+Marcial e André viviam juntos n'uma mansarda da rua do Prado, tinham um
+creado para ambos e comiam no café Suisso.
+
+O unico patrimonio de Marcial era a penna; a fortuna de André, os
+pinceis. Os dois amigos tinham passado a fatal epocha de bohemios e
+tanto Marcial com os seus dramas; como André com os seus quadros,
+ganhavam o sufficiente para viver bem e serem muitas vezes a Providencia
+de alguns companheiros.
+
+Mas continuemos na gare, que não tardará que visitemos a mansarda da rua
+do Prado.
+
+O agudo silvo da locomotiva annunciou aos dois amigos que o comboio
+entrava nas agulhas; deixaram, pois, a discussão e dispuzeram-se a
+abraçar Ernesto.
+
+Effectivamente chegou o comboio, e n'elle Ernesto, que se lançou nos
+braços dos seus amigos.
+
+--Agora que já te abracei, digo que te acho muito abatido, disse Marcial.
+
+--Effectivamente, estavas melhor quando partiste de Madrid, ajuntou
+André. Roma continúa a ser uma cidade doentia.
+
+--Pois estou bom, completamente bom, e com um appetite devorador,
+respondeu Ernesto; mas, quando se vôa de Roma a Civita-Vecchia, de
+Civita-Vecchia a Marselha, de Marselha a Alicante, de Alicante a Madrid
+sem descançar nem uma noite, e quando de mais temos a infelicidade de
+enjoar no mar, creio que se não póde exigir a um corpo como o meu, magro
+e doente, que se apresente ante os seus amigos com as bochechas e a
+barriga de Sancho.
+
+--Mas porque não vieste por Paris?
+
+--Tinha pressa de chegar a Madrid, e receei demorar-me na capital do
+visinho imperio mais do que podia. E bem sabes que breve se fecha o
+praso para a apresentação dos quadros; chego, pois, a tempo.
+Arranjaram-me casa?
+
+--Tens a nossa. Nós temos casa.
+
+--Tenho quarto?
+
+--Viverás como um principe desthronado, não te apoquentes.
+
+--Conduzam-me, então, para onde quizerem.
+
+--E a tua bagagem?
+
+--Reduz-se a uma mala, dois caixotes com quadros, e a tela que venho
+expôr, que vem enrolada em um cylindro de madeira. Aqui está a guia.
+
+--Dá-m'a. Pepe encarrega-se de tudo. É um rapaz muito esperto.
+
+Os tres amigos sahiram da estação, entregaram a guia ao creado que se
+chamava Pepe, e subiram para um trem.
+
+Para chegar á mansarda dos artistas era necessario subir noventa e seis
+degraus.
+
+Uma vez vencida a difficuldade dos noventa e seis degraus, a mansarda
+occupada pelo pintor e pelo poeta era alegre como uma manhã de maio.
+
+Alli respirava-se o ar puro; d'alli o céu parecia mais azul e a vista
+espairecia contemplando as arvores do Retiro e do Prado.
+
+André fizera da sala o seu _atelier_, onde tudo se encontrava n'uma
+desordem encantadora e propria do genio.
+
+Marcial reservara a saleta para escriptorio. Ficava ainda a casa de
+jantar bastante grande, outra sala, dois quartos e a cosinha.
+
+A segunda sala estava adornada com moveis alugados para receber Ernesto.
+
+Devemos advertir que era uma d'essas mansardas decentes, que têem fogão
+em todas as casas, e que rendem ao senhorio oito mil reales por anno.
+
+Quando os tres amigos se installaram na sala que servia de _atelier_ a
+André, este disse:
+
+--Aqui tens o nosso palacio, que de hoje em deante será tambem teu, se é
+que desejas viver comnosco.
+
+--Está claro! Acceito uma parte da casa, porque vejo que têem um
+grande _atelier_ e admiraveis luzes para trabalhar.
+
+--O que quer dizer que vens disposto a continuar com os pinceis.
+
+--Bem sabes que são elles o meu unico patrimonio.
+
+--Ai! Ernesto, por desgraça, em Hespanha a pintura pouco rende.
+
+--Bem sei; mas trabalhando muito, espero não morrer de fome.
+
+--Morrer de fome, estando comnosco!? exclamou Marcial. Isso não é facil;
+aqui os bens são communs e d'esse modo nunca nos falta nada. Demais o
+teu quadro será premiado, tu ficas rico, garanto-t'o eu.
+
+--Não confio em promessas de poetas.
+
+--O tempo te convencerá de que laboras n'um erro. Mas tratemos de outra
+coisa. Que tal te déste em Roma?
+
+--Bem como sempre. Roma é a minha patria.
+
+--Sim, é a patria dos artistas. Mas agora dize-me com franqueza, tu
+tiveste o mau gosto de te enamorares?
+
+--Meu caro Marcial o amor não é outra cousa do que uma contribuição que
+todos pagamos, mais tarde ou mais cedo.
+
+--Em boa hora o fosse. Eu procurarei pagál-o o mais tarde possivel. Mas
+com o direito que me concede a boa amizade, permitte-me que te continue
+a interrogar.
+
+--Pergunta o que quizeres.
+
+--Amas?
+
+--Creio que sim.
+
+--Vamos vêr. Quantos graus attinge o teu amor?
+
+--Muitos, respondeu Ernesto, sorrindo-se.
+
+--E quem é ella?
+
+--Se me permittem, guardarei segredo.
+
+--Não ha inconveniente; mas sem dar nome ao santo, creio que nos pódes
+dar alguns pormenores.
+
+--Isso é diverso.
+
+--É nova?
+
+--Vinte annos.
+
+--Formosa?
+
+--Como o mais bello sonho d'um pintor.
+
+--Bem, bem, a arte deve ser irmã da belleza. É rica?
+
+--Sim, por meu mal.
+
+--Diabo! Isso não se explica.
+
+--Digo por meu mal, porque se fosse pobre como eu, já seria minha mulher.
+
+--Tão enamorado estás?
+
+--Para que negál-o? Não tenho segredos para vocês, que são os meus
+unicos amigos: amo-a com toda a minha alma.
+
+--De fórma que, quando terminar a exposição, regressas a Roma.
+
+--Não, porque ella vive em Madrid.
+
+--Anh! Isso é diverso; do mal o menos. Esperamos que nol-a apresentarás
+quando já não fôr segredo o teu amor.
+
+--Prometto-o, tão depressa alcance o consentimento do pae. Por agora só
+lhes peço uma cama onde me deite algumas horas, porque estou muito
+moido.
+
+--Tens razão, vem. Nós mesmo te vamos acompanhar ao quarto que te
+reservámos, mas não consentimos que durmas até muito tarde, porque
+convidámos uns amigos para almoçar.
+
+--Acordem-me quando quizerem.
+
+Um quarto de hora depois dormia docemente emballado pela gloria e pelo
+amor.
+
+Pobre Ernesto! Como estava longe de imaginar a volubilidade da creatura
+a quem entregára toda a sua alma n'um só beijo!
+
+
+
+
+CAPITULO XIV
+
+Curiosidade não satisfeita
+
+
+Emquanto Ernesto dormia, os seus amigos collocaram convenientemente a
+tela que o pintor trouxera de Roma.
+
+--Magnifico! exclamou Marcial ao vêl-a. Estou crente que na Exposição
+não apparecerá nada melhor.
+
+--É uma grande obra, ajuntou André, contemplando o quadro com olhos de
+entendedor. Ernesto obtem o primeiro premio.
+
+--Mas espera. Já vi esta cabeça de mulher em alguma parte, disse o poeta
+fixando uma das figuras do primeiro plano, que representava a rainha
+Esther.
+
+--Eu tambem, ajuntou o pintor.
+
+--Recordemo-nos onde.
+
+Mas de repente deu uma palmada na testa, e exclamou:
+
+--Espera, já sei! Esta cabeça não é outra senão a de uma menina que
+conheço e que mora em Madrid. É a filha do milionario D. Ventura
+d'Aguillar.
+
+--Ah! Sim! Aquelle sujeito que vem muito ao Suisso e que é tão amigo dos
+artistas.
+
+--Esse mesmo.
+
+--E que faz esse senhor?
+
+--Não o vejo desde o inverno passado. Deve andar viajando.
+
+--Preoccupações dos ricos durante o verão.
+
+--Sabes que examinando este magnifico retrato me assalta uma suspeita?
+
+--Qual é?
+
+--Que seja a linda Amparo o amor de Ernesto.
+
+--Tambem me parece que tens razão em o suspeitares, visto que não ha
+muito ainda nos disse que ella era rica.
+
+--Decididamente está decifrado o enigma.
+
+--Sendo assim, sou de opinião que Ernesto deve dar, o mais breve
+possivel, o nó gordio.
+
+--Nunca! Um artista de merecimento, um homem de talento deve ser
+solteiro toda a vida; o matrimonio é um obstaculo para a sua gloria.
+
+--Seja como fôr, o quadro é admiravel.
+
+--E devemos confessar que Ernesto será uma gloria nacional.
+
+--O quadro produzirá um effeito grandioso; tambem eu não esperava menos.
+
+--Se Ernesto encontrasse um Cosme de Médicis, tinha a fortuna feita.
+
+--Desgraçadamente para os pintores aquelles tempos passaram.
+
+--Sim, dizes bem.
+
+Ás onze horas chegaram tres amigos de Ernesto, pintores tambem, que
+estavam convidados para almoçar com Marcial e André.
+
+Ernesto continuava dormindo, somno que se respeitou durante meia hora
+que passaram entretidos a contemplar o quadro.
+
+Por fim decidiram-se a despertar o hospede, e Ernesto deixou a cama
+entre applausos, felicitações e abraços dos amigos.
+
+Tudo sorria em volta de Ernesto, e elle pensava de si para si:
+
+--Hoje estou com os meus amigos; ámanhã... oh! ámanhã irei vêl-a ao seu
+palacio de Caramanchel.
+
+Ernesto ignorava que Amparo tivesse morrido para elle.
+
+Os seis amigos foram para o restaurant do Arminho, onde estava
+encommendado o almoço.
+
+Os poetas e os pintores são tão pobres de dinheiro como ricos de
+imaginação. Quando a venda de um quadro ou a estreia de uma peça
+lhes rende algum dinheiro, gastam-no alegremente com o mesmo
+desprendimento de principes. Ao acabar-se o ultimo centimo puxa-se pela
+intelligencia e cria-se outra obra. Assim passam a vida esses
+sonhadores, esses filhos do genio que vivem acariciados pelo sopro da
+gloria e pela interminavel melodia das suas illusões.
+
+O restaurant do Arminho hoje já não existe; ha ainda pouco tempo que
+fechou as suas portas, convertendo-se no de Madrid. Mas seja como fôr,
+occupemo-nos do primeiro.
+
+O Arminho no seu pequeno, mas elegante recinto, não era frequentado por
+pobres ou economicos. O serviço era á lista, e os pratos caros, mas bons.
+
+Os frequentadores sabiam que um simples almoço lhes custava um par de
+duros, mas sabiam tambem que era preciso pagar, não só os manjares que
+depositavam no estomago, como as gravatas brancas dos creados e o
+serviço de prata em que eram servidos.
+
+N'uma grande cidade como Madrid ha o costume de se atirar o ouro por um
+lado, emquanto que do outro alguns desgraçados morrem de fome.
+
+Marcial encarregára-se do almoço. N'aquelle dia os estomagos dos amigos
+estavam á sua disposição. Escreveu n'um papel os quatro pratos fortes de
+que devia compôr-se, deixando ao gosto do cosinheiro do restaurant as
+sobremezas e os vinhos.
+
+Os seis jovens, alegres e cheios de illusões, tinham bom apetite;
+comeram como quem não sente remorsos na consciencia, falaram de
+pinturas, de theatros, de mulheres.
+
+Ernesto ouvia com certa satisfação os seus amigos; fallava menos do que
+elles sem duvida, porque tinha a imaginação mais preoccupada.
+
+Quando chegou o _Champagne_, o vinho da alegria, do amor, quando
+começaram os brindes e os epigrammas picantes. Marcial levantou-se com
+um copo na mão, e disse:
+
+--Brindo pelo original que serviu de modelo ao nosso amigo para
+pintar a formosa figura de Esther no quadro que será a admiração de Madrid.
+
+Todos esvasiaram os copos.
+
+--E se essa figura que tanto celebras fosse uma creação minha? disse
+Ernesto, sorrindo-se.
+
+--Então, respondeu Marcial maliciosamente, brindo pellas bellas creações
+do teu genio, e se alguma vez tiver a triste ideia de me casar,
+pedir-te-hei primeiro que pintes uma mulher a teu gosto, e juro-te que
+não consumarei o sagrado laço do matrimonio sem que encontre uma de
+carne que seja egual á do teu retrato. Mas, que queres, parece-me que já
+vi a tua Esther com trajes á moderna.
+
+--Estás enganado, respondeu Ernesto com embaraço.
+
+--Senhores, disse André, levantando-se, eu, em nome da fraternal amizade
+que nos une, peço que respeitem o silencio do nosso amigo.
+
+--Pois eu, pelo contrario, peço que nos conte todos os seus segredos,
+exclamou um dos convidados. Entre amigos como nós, tudo é commum, até os
+segredos.
+
+--Tem razão. Ernesto não deve ser avarento dos seus segredos, já que
+nunca o foi da sua bolsa.
+
+--Fala!
+
+--Conta-nos o que fizeste em Roma desde o dia em que pisaste a cidade
+eterna, até ao momento em que partiste para nos trazeres o melhor quadro
+que verão os contemporaneos.
+
+--Sim, conta-nos a historia dos teus amores.
+
+--Basta, senhores! exclamou Ernesto, estendendo os braços para
+restabelecer a ordem. Quem diabo lhes disse que estou enamorado?
+
+--Foi Marcial.
+
+--É uma calumnia.
+
+--Podemos provar-te o contrario.
+
+--De que maneira?
+
+--Apresentando-te o original da tua Esther.
+
+Ernesto estremeceu.
+
+--N'esse caso, só se poderia attribuir a uma casualidade, disse
+inquieto.
+
+--A amizade não deve ser exigente, disse André desejoso de livrar o seu
+amigo d'aquelles apuros. Visto que Ernesto não conta, respeitemos o seu
+silencio, e tomemos café.
+
+--Sim, sim; tomemos café, ajuntou Marcial, e com pouco assucar, para que
+allivie um pouco a cabeça, dissipando os vapores do vinho!
+
+--Isso é um insulto; chamas-nos _piteireiros_.
+
+--Póde ser que tenhas razão, disse outro. Apesar de tudo, o piteireiro é
+um ser feliz.
+
+--Que seria dos homens se não existisse o vinho?
+
+--Uma sociedade de paes graves.
+
+--Um vasto cemiterio.
+
+--Viva o vinho!
+
+--E os homens despreoccupados, que se não importam de se embriagarem!
+
+--Viva a Inglaterra, onde a embriaguez é respeitada.
+
+--E está na ordem do dia.
+
+--Ah! Nós, os hespanhoes, somos uns hypocritas; criticamos os
+piteireiros, mas bebemos vinho.
+
+Desde aquelle momento a conversa dos seis rapazes foi tão animada, tão
+alegre, que nos seria difficil reproduzil-a.
+
+Contos, anecdotas, escandalos da capital, tudo serviu de assumpto, em
+redor d'aquella mesa, onde fumegava a digestiva _moka_ e o estomacal
+_cognac_.
+
+Ás seis da tarde abandonaram o restaurant, e dirigiram-se para
+Castelhano. Necessitavam respirar o ar fresco do campo.
+
+
+
+
+CAPITULO XV
+
+Carta interrompida
+
+
+Penetremos na encantadora quinta que D. Ventura possuia em _Carabanchel
+de Arriba_; mas não nas elegantes e luxuosas habitações, pois que Amparo
+que é quem procuramos, está n'um caramanchão situado no extremo de uma
+recta e larga rua formada por altos e copados castanheiros da India.
+
+Para que o leitor se inteire de tudo o que succedeu desde que perdeu de
+vista a formosa herdeira de D. Ventura, bastará dar-se ao incommodo de
+lêr a carta que Amparo escreve a uma amiga intima e antiga condiscipula.
+
+Leiamos, pois:
+
+
+ «Minha querida Luiza
+
+ «Desde o dia do meu casamento com o conde de Loreto, isto é, ha um
+ mez, nem tu sabes o que tem sido de mim nem eu sei nada de ti. Agora
+ que meu marido me deixou, pois alguns negocios o prendem todo o dia
+ em Madrid, vou dar-te parte da minha vida.
+
+ «Escrevo-te, ouvindo o canto das aves sobre a minha cabeça, e
+ aspirando o perfume do jasmim e da madresilva. A minha alma
+ necessita da doce quietação que me rodeia, para poder expressar-te
+ toda a immensa felicidade que sinto.
+
+ «Ah! Luiza, já sei que amas um homem, e que és egualmente amada por
+ elle. Porque se não casam? E porque não veem para o campo?
+
+ «Ignorava que no coração d'uma creatura o amor infundisse uma
+ felicidade tão ineffavel como a que experimento. É bem verdade que
+ Fernando, meu marido, é o melhor dos homens.
+
+ «Se visses a maneira amavel e obsequiosa que tem sempre para
+ commigo! Eu sou, por assim dizer, a rainha absoluta d'este pequeno
+ paraizo. Meu pae ri-se do que chama caprichos de menina amimada, e
+ Fernando approva immediatamente, tendo por logico e natural até o
+ mais estranho e excentrico.
+
+ «Muitas vezes pergunto a mim propria se esta felicidade poderá durar
+ muito. Mas porque não ha de durar? Quando o amor é verdadeiro, dura
+ tanto como a vida. Que digo? Mais do que a vida, pois acompanha a
+ alma até á eternidade.
+
+ «Mas vou-te falar de Fernando a quem só conheces superficialmente.
+ Imagina, querida Luiza, um rapaz bonito, com um coração de anjo, a
+ quem os genios da musica e da pintura bafejaram em creança, pois que
+ Fernando é musico e pintor.
+
+ «Toca orgão de uma maneira admiravel, e desenha quasi tão bem como
+ Gustavo Doré, cujos bellos trabalhos conheces.
+
+ «Junta a isto uma bondade sempre disposta a comprazer e poderás
+ imaginar quem é o homem que me coube por sorte para companheiro de
+ toda a minha vida.
+
+ «Demais, Fernando tem uma conversação que fascina.
+
+ «Quando de noite passeamos pelo jardim de braço dado, deleita-me
+ ouvir-lhe os planos que formulou para que a minha felicidade seja
+ mais duradoura.
+
+ «Se soubesses as viagens encantadoras que projecta para a proxima
+ primavera!...»
+
+
+Estava a carta n'este ponto, quando Amparo ouviu pronunciar o seu nome;
+levantou a cabeça e não poude conter um grito.
+
+Tinha na sua frente, seu pae e Ernesto.
+
+D. Ventura, alegre e risonho como sempre; o pintor pallido como um cadaver.
+
+Amparo ao vêl-o, deixou cair a penna da mão, exclamando:
+
+--Ah! é o sr. Ernesto!
+
+--Elle proprio, respondeu D. Ventura, collocando familiarmente uma mão
+no hombro do pintor. Surprehendeste-te, não é verdade? Pois olha que a
+mim tambem me succedeu o mesmo, apezar de o esperar mais dia, menos dia,
+visto a exposição abrir em meados do mez.
+
+Durante este curto dialogo, Ernesto guardou silencio. Os olhos tinha-os
+fixos em Amparo e os labios entre-abertos deixavam assomar um sorriso
+tão amargo como doloroso.
+
+Amparo por sua parte, parecia perturbada. A presença inesperada de
+Ernesto produzira-lhe um effeito desagradavel. Nos olhos d'aquelle homem
+estava o ameaçador olhar do amante offendido.
+
+Aquelle homem era para ella um terrivel presagio, um vivo remorso.
+Desejava estar a cem leguas d'alli.
+
+--Sem duvida, que viemos importunar esta senhora, disse Ernesto
+procurando dominar-se.
+
+--Não, senhor Ernesto; escrevia a uma amiga, e tenho tempo. Só á noite é
+que parte o correio.
+
+--Demais, disse D. Ventura, o senhor não é uma visita importuna para
+nós, mas um bom amigo a quem tratamos com o maior prazer e recebemos
+sempre com satisfação. Se assim não fosse commetteriamos uma ingratidão.
+De fórma nenhuma se esquecem facilmente as nossas excursões por Florença
+e Roma.
+
+Innocentemente D. Ventura feriu no mais recondito o coração da fllha.
+
+--Creio, senhor Ernesto, que concluiu o seu quadro que vimos começado em
+Roma, disse Amparo.
+
+--Sim, minha senhora, concluio-o, e espero depois de ámanhã,
+requerer um logar para a proxima exposição.
+
+--Onde iremos admiral-o e orgulharmo-nos, porque somos amigos do pintor,
+ajuntou D. Ventura.
+
+--Quem o duvida?
+
+--Mas dize-me: onde está o teu marido. Desejava apresentar-lhe Ernesto.
+
+--Fernando foi esta manhã a Madrid e não volta senão á tarde.
+
+--É pena; mas tudo se póde remediar, ficando Ernesto e almoçando comnosco.
+
+Decididamente D. Ventura parecia disposto a atormentar a filha.
+
+Ernesto comprehendeu que Amparo desejava vêr-se livre da sua presença,
+mas a noticia inesperada do seu casamento, causára-lhe tão terrivel
+effeito, que acceitou o almoço que lhe offerecia D. Ventura, só pelo
+prazer de atormentar aquella _coquette_ que brincára com o seu coração
+para depois o despedaçar.
+
+O almoço ia ser egualmente terrivel para os dois, mas Ernesto devorado
+pelo ciume, pela raiva, pelo desespero, estava resolvido a soffrer tudo.
+
+Acceite o convite, D. Ventura, que não sabia estar quieto em parte
+alguma, teve ainda outro ensejo mais lamentavel para atormentar a filha
+do que os anteriores.
+
+--Ernesto é como da familia e como fica para almoçar, vou dar as ordens
+necessarias e escrever duas cartas; passeiem pelo jardim, que eu venho
+buscal-os depois.
+
+E dizendo isto dirigiu-se precipitadamente, para casa.
+
+N'aquella occasião Ernesto daria a D. Ventura, a vida, e até a gloria;
+tinha necessidade de falar com Amparo sem testemunhas, de ouvir uma
+explicação da sua conducta; e demais, continuar o fingimento, a
+dissimulação, seria impossivel.
+
+Quando n'um peito cheio de juventude e apaixonado se levanta essa
+terrivel tempestade do ciume, é difficil dominál-a, chega o momento
+em que, esquecendo-se dos deveres sociaes, estala e produz um conflicto.
+
+Ernesto, ao vêr-se só, suspirou com força.
+
+Amparo comprehendeu a sua situação e conhecendo o generoso coração de
+Ernesto, juntou as mãos, deixou assomar aos olhos duas claras e
+transparentes lagrimas e com voz commovida, disse:
+
+--Pela memoria de sua mãe, pela recordação d'aquellas noites imprudentes
+de Florença, rogo-lhe, Ernesto, que se esqueça de tudo e me perdôe.
+
+O pintor fixou um olhar intenso, sinistro, n'aquella mulher que nunca lhe
+parecêra tão bella, e dominando-se, mas estremecendo ao mesmo tempo,
+como se o fosse a acommetter um ataque nervoso, disse:
+
+--Perdoar, é facil; basta ter um coração grande e generoso; esquecer é
+impossivel, senhora, quando se tem uma alma como a minha, quando se
+sente na bôcca o fogo de um beijo que ha de causar a minha desgraça e a
+minha morte.
+
+E levando a mão á cabeça, em tom desesperado, exclamou:
+
+--Tudo isto é um sonho! É impossivel que isto seja realidade! Que mal
+fiz a esta mulher, para que depois de mostrar-me o céu, me lance no
+abysmo do desespero?
+
+--Ernesto, senhor Ernesto, por piedade. Conheço que fui uma imprudente,
+que sou culpada, mas que quer...
+
+--Senhora, exclamou Ernesto com dignidade, ha procedimentos, que nem
+Cicero com toda a sua eloquencia, poderia explicar satisfatoriamente, e
+o seu, é um d'elles; e, se eu, vendo-me enganado, me quizesse vingar, se
+eu n'este momento em que a vida me é indifferente, commettesse um
+d'esses crimes que lança o desespero nos homens, seria mais desculpavel
+ainda ante os homens do que a senhora ante a sua consciencia.
+
+--É verdade, é verdade! murmurou Amparo, escondendo o rosto nas
+mãos. Póde-me matar se lhe apraz.
+
+--Não tenha medo; tenho bastante coragem para receber a morte sem me
+defender. Até ainda ha pouco a esperança, essa bella flôr da vida que
+tudo embelleza, esse grato perfume da alma, acariciou o meu coração,
+porque a luz d'uns olhos que outr'ora se fixaram nos meus cheios de
+ternura, illuminava todo o meu sêr; mas, agora, encontro-me subitamente
+mergulhado na mais profunda escuridão. Foi tudo um sonho, tudo uma
+mentira; a senhora nunca me amou; as noites de Florença foram momentos
+passageiros de delirio, entretenimento de mulher _coquette_, esmola
+concedida por uns labios lisongeiros, falso ouropel que tive a veleidade
+de receber por ouro puro; e emquanto recebia um beijo falso, dava a
+minha alma inteira. Ah! Que louco fui! Se ao menos tivesse tido
+compaixão de mim, se se tivesse dignado escrever-me uma carta,
+dizendo-me: «Ernesto, esqueça tudo quanto se passou entre nós; vou
+casar-me com o conde de Loreto, meu pae exige-o, é um compromisso que
+não posso evitar...» uma desculpa qualquer, uma mentira ao menos, porque
+ha mentiras desculpaveis porque nos fazem bem... Mas não; a senhora,
+pelo contrario, guardou silencio, e eu continuava alimentando as minhas
+illusões. Hoje chego a esta casa com a alma repleta de amor e de
+esperança e o seu pae diz-me com a mesma frieza e indifferença como se
+me falasse de um dos seus negocios: «Amparo casou com o conde de
+Loreto.» Comprehende, senhora, o effeito que em mim produziu esta
+noticia? As palavras não matam porque eu ainda vivo.
+
+Amparo chorava. Só então comprehendeu a gravidade da sua imprudencia. O
+conde de Loreto fascinara-a: desde o dia das corridas em Paris amava-o
+de toda a sua alma, mas se antes de casar ouvisse as justas
+recriminações que lhe dirigia Ernesto, não teria pronunciado o _sim_ de
+esposa junto ao altar.
+
+Mas o coquettismo, essa arma terrivel da mulher, quando esgrimida contra
+um coração enamorado e sensivel, dera os seus terriveis fructos e jé
+era tarde para retroceder.
+
+Por isso Amparo não encontrava palavras com que se defendesse, com que
+se justificasse.
+
+N'estes casos, a mulher tem dois caminhos; ou rir-se do amante enganado,
+ou confiar na sua generosidade e pedir-lhe perdão.
+
+Amparo nem por sonhos pensou no primeiro caso; conhecia bem o amor de
+Ernesto e a bondade do seu coração; por isso appellou para o segundo
+recurso, e, levantando a cabeça, apresentou ante os olhos do pintor o
+seu rosto interessante, formoso e pallido, e, derramando lagrimas, disse:
+
+--Pois bem, sim, Ernesto; fui uma _coquette_, uma imprudente, uma
+leviana. O meu procedimento não tem desculpa; mas amo o meu marido e
+preferiria cem vezes a morte a faltar ao que a minha honra e os meus
+deveres de esposa me impõem. Se não é bastante generoso para perdoar,
+mate-me, antes que Fernando conceba a menor suspeita, e antes que a mais
+pequena nuvem empanne a sua felicidade, prefiro morrer. Mas o senhor é
+bom e terá dó de mim.
+
+Ernesto começava a sentir-se enternecido. Amava tanto aquella mulher que
+não se sentia com coragem para lhe negar fosse o que fosse. Amparo
+aproveitava-se das vantagens que ia conquistando.
+
+--Sejamos, pois, amigos, como nos primeiros dias em que nos conhecemos;
+irmão, se quizer, mas perdôe-me e esqueça-me... não será tão cruel que
+m'o negue.
+
+--Amparo, a senhora não póde imaginar o sacrificio que me pede; mas faz
+bem em confiar em mim. Como poderei ser a causa da desgraça da mulher
+que amo de toda a minha alma? Perdôo-lhe todo o mal que me fez, mas
+esquecer... é impossivel. Para amar não é preciso ser correspondido. Mas
+para que prolongar por mais tempo uma scena que me despedaça o coração?
+Adeus, minha senhora, seja feliz, viva socegada, porque entre os dois
+abriu-se, desde hoje, um abysmo, no fundo do qual estão sepultadas
+todas as minhas illusões, toda a minha felicidade.
+
+E Ernesto sahiu do caramanchão como o demente que arrebatado pela
+vertigem do seu doente cerebro não sabe para onde caminha.
+
+O primeiro movimento de Amparo foi detêl-o; porém conteve-se, calculando
+que ia commetter uma segunda imprudencia, e de mais graves consequencias
+do que a primeira.
+
+Uma vez só procurou serenar-se.
+
+--Pobre Ernesto! disse ella, enxugando as lagrimas. Nunca imaginei que
+fosse tão grande o seu amor. Ah! Tem muita razão para me odiar. Foi uma
+imprudencia.
+
+E, recordando-se de que uma só palavra de Ernesto poderia perturbar a
+sua felicidade, exclamou:
+
+--Meu Deus! Permitti que esse homem não seja assaltado pela terrivel
+paixão da vingança.
+
+Amparo fixou o olhar na carta que escrevia tão alegre, poucos momentos
+antes, á sua amiga, e não tendo paciencia nem socego n'aquelle momento
+para concluil-a, guardou-a na carteira do seu estojo de viagem.
+
+Quando o pae voltou, Amparo estava quasi socegada, ou pelo menos fingia,
+para que se não suspeitasse nada da scena que acabára de dar-se
+n'aquelle logar.
+
+--Aonde está Ernesto? perguntou D. Ventura.
+
+Rapidamente imaginou uma desculpa que motivasse a precipitada fuga do
+pintor.
+
+--Ernesto, disse, acaba de sahir.
+
+--Mas, volta para almoçar?
+
+--Não; disse-me para lhe pedir desculpa de se retirar, mas havia-se
+esquecido de que tinha uma entrevista importante em Madrid ás duas horas
+da tarde.
+
+--Todos os artistas têem a cabeça á razão de juros. Mas emfim que
+remedio! Almoçaremos sósinhos.
+
+E offerecendo o braço á filha, dirigiram-se para casa.
+
+
+
+
+CAPITULO XVI
+
+Propostas
+
+
+Ernesto chegou a casa e deixou-se cahir desesperadamente na cama;
+sentia-se fatigado, um desejo irresistivel de chorar, um calor immenso
+nas fontes e um frio glacial no coração.
+
+Deitou a cabeça nas almofadas e chorou.
+
+Ás cinco horas da tarde, Marcial e André foram buscal-o para irem
+jantar, e ao verem-n'o pallido, com o parecer decomposto e os olhos
+avermelhados, perguntaram sobresaltados:
+
+--Estás doente? Que tens?
+
+--Nada, meus amigos, nada; quero estar só. Deixem-me; esta tarde não
+tenho appetite.
+
+--Mais uma prova de que estas doente, e por isso não te abandonaremos.
+
+--Por Deus, não me obriguem a levantar. Um boccado de socego far-me-ha
+bem. Repito-lhes que não tenho nada. Vão tranquillos que lhes peço eu.
+
+Depois de meia hora de inuteis perguntas, Marcial e André sahiram
+afflictos do quarto de Ernesto.
+
+--Indubitavelmente ha alguma cousa, disse o poeta.
+
+--Que diabo succederia? ajuntou André.
+
+--Parece-me que anda n'este mysterio o original da formosa Esther do
+quadro.
+
+--Tambem o creio.
+
+--Não te disse elle esta manhã, que ia a Carabanchel?
+
+--Sim.
+
+--Em Carabanchel tem D. Ventura uma casa de campo.
+
+--Que lhe succederia?
+
+--Quem sabe! Talvez algum desengano.
+
+--Seja o que fôr, procuremos indagar. É uma desgraça ter um coração
+impressionavel como o de Ernesto; vae dar-lhe muitos desgostos.
+
+Marcial e André recolheram n'aquella noite mais cedo que de costume.
+
+Ernesto continuava deitado; no quarto não tinha luz. Marcial
+approximou-se da cama com um phosphoro acceso para vêr se o seu amigo
+ainda dormia.
+
+O pintor tinha os olhos abertos.
+
+O poeta accendeu a vela que estava na mesa de cabeceira, puxou uma
+cadeira e sentou-se proximo da cama do amigo.
+
+--Olha, Ernesto, a dissimulação só tem logar entre pessoas que se não
+estimam. É em vão que procuras occultar-me o que te succedeu. Soffres,
+tens uma d'essas dôres immensas que opprimem o coração. Basta olhar-te
+para a cara para te adivinhar. Comprehendes que, estimando-te como a um
+irmão, não me posso retirar tranquillo, só porque me dizes: «Não tenho
+nada». Confia, pois, na minha amizade, deposita em mim as tuas maguas.
+Quem sabe se poderei servir-te de consolação?
+
+Ernesto apertou carinhosamente a mão do amigo e disse:
+
+--Sei quanto me estimas; sei de quanto é capaz o teu generoso coração.
+Somos amigos ha muito tempo, e nunca tive o mais leve motivo para
+duvidar da tua amizade. Em nome, pois, d'essa amizade, peço-te que
+respeites o meu silencio e que me deixes só.
+
+--Está bem, obedeço; mas não esqueças nem um só momento de que me
+encontro disposto a fazer o sacrificio da minha vida, se com ella posso
+evitar-te algum desgosto.
+
+Marcial sahiu do quarto de Ernesto na occasião em que ia a entrar André.
+
+--Onde vaes? lhe disse.
+
+--Vêr Ernesto.
+
+--Deixa-o, está dormindo; o que precisa é de socego.
+
+No dia seguinte Ernesto levantou-se de melhor parecer, e os tres amigos
+tomaram juntos uma chavena de chá e alguns biscoitos inglezes.
+
+Nem André, nem Marcial tornaram a perguntar a causa da sua tristeza, mas
+elles tambem estavam tristes e desgostosos.
+
+N'aquelle mesmo dia ficou o quadro de Ernesto na exposição. Á noite
+reuniu-se com os amigos no café. Todos respeitaram a taciturnidade do
+pintor, porque todos o estimavam e se compadeciam da sua
+incomprehensivel tristeza.
+
+Assim se passaram quinze dias. A exposição de pintura abriu as portas ao
+publico, e o quadro de Ernesto arrancou um grito de admiração aos
+espectadores.
+
+A figura de Esther era uma obra tão perfeita como a Virgem de Murillo. O
+quadro tinha sempre um grupo de admiradores, que o contemplavam com
+verdadeiro extasi.
+
+Uma manhã Ernesto acabava de se levantar quando José, o creado, entrou
+participando-lhe que um cavalheiro lhe desejava falar.
+
+Esse cavalheiro não era outro senão Fernando del Villar, Conde de Loreto.
+
+Ernesto procurando simular uma serenidade que não sentia, offereceu-lhe
+uma cadeira, e perguntou tranquillamente o que desejava.
+
+--Vi e admirei o precioso quadro que tem na exposição de pintura, disse
+o conde. É na verdade uma obra-prima. Tenho a absoluta certeza de que
+alcança o primeiro premio, e venho vêr se o senhor m'o quer vender.
+
+--Senhor, disse Ernesto, creia que concede ao meu trabalho mais
+merecimentos do que os que realmente tem. Mas de modo nenhum desejo
+desfazer-me d'elle emquanto o jury não resolver.
+
+--Entretanto póde confiar, disse o conde, que o jury lhe concede o
+primeiro premio, e eu compro-lhe o quadro como uma obra-prima. Póde
+pedir-me quanto quizer sem receio de que me pareça exaggerado o preço.
+Felizmente sou rico, e sei avaliar o valor das obras como a tela de Esther.
+
+--Tenho tambem que advertir-lhe, senhor conde, de que um correspondente
+da casa de Rotschild já me fez proposta sobre o quadro.
+
+--Rotschild é mais rico do que eu, disse o conde, sorrindo-se, mas tenho
+mais direitos do que elle ao quadro a que nos referimos.
+
+--O senhor tem mais direito?! exclamou Ernesto, comprehendendo o ponto
+para onde o conde desejava levar a conversa.
+
+--Sim, porque o senhor não ignora que a cabeça de Esther tem uma grande
+parecença, parecença de retrato perfeito, com uma mulher que tenho em
+muita conta, e cujo bom nome me importa mais do que e vida.
+
+--Não serei eu que o contradiga na sua opinião, senhor conde, mas se é
+retrato, é por pura casualidade, pois foi pintado de imaginação.
+
+--Creio, senhor, ajuntou o conde manifestando a sua importancia, que
+n'estas coisas o melhor é falar com a maxima franqueza.
+
+--Nada ha de que eu mais goste.
+
+--Assim, pois, começarei por lhe dizer o que o senhor não ignora, e é
+que a cabeça de Esther não é outra cousa senão o retrato de minha
+mulher, a quem o senhor conheceu em Roma e em Florença.
+
+--Pois bem, senhor conde, ainda que assim seja, ainda que visse e
+tratasse em Roma e Florença com a senhora que hoje é sua esposa, ainda
+que a minha memoria tivesse sido tão feliz que retivesse as suas feições
+e as transportasse á tela, tudo isso não é mais do que uma liberdade que
+tomei, e se o offende essa liberdade, a questão, entre pessoas de bem,
+tem uma solução que o senhor não ignora.
+
+Ernesto pronunciára estas palavras com a altivez de quem provoca. O
+conde ouviu-o tranquillamente e sem demonstrar a mais leve agitação.
+
+Quando o pintor concluiu, o conde fez um movimento de olhos e de rosto,
+manifestando o desgosto que lhe causava similhante provocação.
+
+--Senhor, disse pausadamente, primeiro que tudo, previno-o de que não
+vim aqui ao som de guerra e julgo por tanto fóra de proposito a solução
+que acaba de me propôr. Que conseguiriamos batendo-nos? Justamente o
+contrario do que desejo e do que o senhor desejará ámanhã. Poderia
+provar-lhe, sem que lhe ficasse duvida alguma, que não sou um cobarde, e
+que me tenho batido mais de uma vez.
+
+Ernesto sorriu-se.
+
+--Perdôo-lhe essa nova provocação, ajuntou o conde, e torno a pedir-lhe
+não só que me venda o quadro, como tambem que espalhe a noticia de que
+eu lh'o encommendei em Roma, pedindo-lhe que este fosse o retrato de
+Amparo.
+
+--Nunca!
+
+O conde estremeceu, augmentou de uma maneira terrivel a sua pallidez, os
+seus olhos brilharam momentaneamente de uma fórma sinistra, e fazendo um
+esforço violento para dominar-se, continuou sem levantar a voz, com
+humilde entoação.
+
+--Creia, meu amigo, que está em completo erro se julga que vim aqui com
+exigencias; longe do meu espirito toda a ideia de ameaça; só supplico.
+Se o senhor se nega a vender-me o quadro, mas se deseja evitar a minha
+mulher graves desgostos, creio que por fim cederá a publicar um artigo
+nos jornaes em que explique satisfatoria e convincentemente para todos,
+a similhança que tem a figura de Esther com Amparo.
+
+E o conde, levantando-se ajuntou:
+
+--Pense, e pense tambem nas graves consequencias que a todos podem
+trazer a sua negativa. Espero até ámanhã a sua resposta em minha casa.
+Este cartão indica-lhe a minha residencia em Madrid.
+
+E deixando sobre uma mesa um bilhete de visita, cumprimentou-o e sahiu.
+
+Ernesto permanecia sentado com o olhar provocador, sem se dignar
+corresponder ao cumprimento que o conde lhe dirigira ao sahir.
+
+
+
+
+CAPITULO XVII
+
+Confiança
+
+
+Quando o conde entrou na carruagem que o esperava á porta, deu ordem que
+o conduzissem para casa, e deixou-se cahir no assento rugindo de raiva.
+
+--Ah! exclamou falando comsigo. Aquelle insensato julgou talvez que tive
+medo. E não conheceu o horrivel tormento que me causava o conter-me.
+Terei que matar outro homem? Não, não, mil vezes não. Consentirei antes
+que elle me esbofeteie, preferirei fazer saltar os miolos.
+
+Quando o conde chegou a casa, situada na rua do Barquillo, entrou no
+quarto de vestir de Amparo, que o esperava inquieta e commovida.
+
+--O tal senhor Ernesto, disse o conde, sentando-se n'um sofá, é menos
+generoso do que suppunhas. Nem quer vender-me o quadro, nem publicar uma
+communicação em que explique decentemente a natural curiosidade de todos
+que te conhecem.
+
+--Mas elle não tinha nenhum direito para fazer o que fez, para me pintar
+n'um quadro com risco de me comprometter, exclamou Amparo tartamudeando.
+
+O conde sorriu-se, e fazendo um movimento de hombros, disse:
+
+--Não pódes calcular o quanto me fez soffrer esse homem. Durante a nossa
+entrevista, falei-lhe com doçura, com humildade, pedi-lhe que me
+vendesse o quadro, suppliquei-lhe, e julgando, sem duvida, que as minhas
+palavras eram dictadas pelo medo, que eu era um cobarde, teve o
+atrevimento de me dizer que se não ficava satisfeito com a sua
+negativa, o assumpto liquidava-se d'outra maneira entre homens.
+Desgraçado! Necessitei de todo o valor, de toda a força do homem que se
+não póde bater, depois de ter morto cinco homens, para não o esbofetear
+na sua propria casa. Mas quem sabe se esse insensato me fará faltar ao
+meu juramento e terei de matal-o.
+
+--Não, não, Fernando! Não quero que te batas! Não quero que te exponhas!
+A tua vida pertence-me!
+
+--Mas se esse homem, depois de ter dado pasto a maledicencia com o seu
+importuno quadro, me insultar na rua, no theatro, n'um passeio, o que
+hei de fazer senão bater-me?
+
+--Pensa que um duello não serviria senão para augmentar essa
+maledicencia que nos assusta, esse murmurio que receamos.
+
+--Sim, concordo; mas não vejo outro caminho.
+
+--Dize-me, Fernando, tens confiança em mim?
+
+--Se a não tivesse, estaria como estou, aqui?
+
+--Obrigada, meu amigo.
+
+--Mas a que proposito veiu essa pergunta?
+
+--Porque conheço o bello e nobre caracter de Ernesto.
+
+--Vaes fazer-me algum elogio das suas qualidades moraes?
+
+--Não; vou tranquilizar-te. Ouve. Uma casualidade fez com que eu
+conhecesse Ernesto em Roma. Depois acompanhou-nos a Florença. Bondoso e
+illustrado, levou-nos a toda a parte, e não demorou muito que não
+percebesse que eu lhe não era indifferente. Bem sabes, Fernando, que não
+tenho segredos para ti, porque o meu coração e a minha vida
+pertencem-te, porque te amo de toda a minha alma.
+
+--Sim, sim, não tenho duvidas a esse respeito e comprehendo
+perfeitamente tudo quanto se póde passar entre uma menina e demais
+formosa como tu e um homem como Ernesto, que viajam juntos. Amou-te,
+fez-te uma declaração que não regeitaste, já por coquettismo, já
+por compaixão. Isso é natural nas mulheres, não as censuro; mas ás vezes
+traz más consequencias. Agora, por exemplo: Ernesto ao voltar a
+Hespanha, encontra-te casada e julga-se com o direito de fazer a tua e a
+minha desgraça, e apezar d'isso não tenho a mais pequena duvida de que
+esse rapaz tem uma boa alma, um generoso coração.
+
+--Dizes bem, é uma desgraça. Tomei aquelles passeios em Florença, por um
+passatempo, por uma distracção. Aborrecia-me. Ernesto, pelo contrario,
+julgou que eu o amava como Heloisa amou Abelardo... Lastimo tão funesto
+engano. E agora auctoriza-me para que meu pae compre o quadro, eu
+procurarei a maneira, sem faltar aos meus deveres de esposa, de liquidar
+este assumpto satisfatoriamente, porque nada me interessa tanto como a
+tua felicidade, meu Fernando.
+
+--Repara, Amparo, que o que me propões é uma imprudencia. Ernesto para
+ceder aos teus pedidos, póde ser exigente.
+
+--N'esse caso, dir-te-hei: «Fernando, sou tua; o teu amor é a minha
+vida. Mata esse homem, que me julgou capaz de faltar aos meus deveres.»
+
+O conde soltou um grito, abraçou com enthusiasmo a mulher.
+
+--Ah! disse Amparo, este abraço prova-me que te inspiro confiança, e que
+annues ao meu pedido.
+
+--Faze o que quizeres; mas fica sabendo que se antes de vinte e quatro
+horas esse homem não explicar nos jornaes, de um modo satisfatorio para
+mim, a parecença da condessa de Loreto com a Esther do seu quadro, não
+me fica outro remedio senão matal-o.
+
+E o conde cumprimentando a esposa, sahiu do quarto.
+
+Amparo ficou por um momento como que oppressa sob o peso da ameaça que o
+marido acabava de proferir.
+
+Pela primeira vez comprehendeu até onde podia conduzil-a a
+imprudencia do seu coquettismo em Florença.
+
+Rapidamente lhe passaram pela imaginação as recordações d'aquellas
+noites passadas com Ernesto no jardim do hotel do senhor Rosales.
+
+--É preciso evitar a todo o transe que se batam. Um desafio entre meu
+marido e Ernesto produziria um escandalo, e a maledicencia, duvidando da
+minha honradez, poderia menoscabar na honra do conde. Se isto
+succedesse, toda a felicidade que agora disfructo desappareceria. Não,
+não, falarei com Ernesto e supplicar-lhe-hei se tanto fôr preciso.
+
+Amparo deteve-se, como se tivesse commettido alguma imprudencia.
+
+--Mas se lhe peço uma entrevista, continuou, ainda que esta seja com a
+nobre intenção de evitar uma desgraça, se se sabe que a mulher do conde
+de Loreto e o auctor do quadro de Esther se viram sem testemunhas, então...
+
+Amparo escondeu o rosto entre as mãos, rompendo em amargo choro, porque
+comprehendia que por todos os lados sómente encontraria difficuldades.
+
+N'aquelle momento entrou D. Ventura.
+
+--Que é isso? Que tens? Porque choras? Acabo de encontrar o teu marido
+que me cumprimentou com uma frialdade um tanto importuna. Vou-me
+convencendo de que os aristocratas quando se casam com a filha d'um
+plebeu, embora este seja o mais honrado e o mais rico do mundo, sempre
+julgam que lhe fazem favor. E olha, como isto me desgosta, e caso
+continue assim, separo-me de vocês, ainda que o não te vêr me amargure a
+velhice e abbrevie os dias que me restam de vida.
+
+D. Ventura falava rapidamente, dissimulando mal o desgosto que sentia e
+as lagrimas que lhe começavam a assomar aos olhos.
+
+--Meu querido pae. Creio que nos ameaça uma grande desgraça.
+
+Este grito sahido do peito de Amparo fez empallidecer o pae.
+
+--Uma desgraça! exclamou. E que desgraça é essa?
+
+--Ernesto foi um imprudente ao tomar-me para modelo do seu quadro.
+
+--E é só isso? perguntou D. Ventura que não via motivo para se
+sobresaltar d'aquelle modo. Se o motivo é o quadro, se não querem que
+elle continue exposto, comprem-lh'o, e é assumpto concluido.
+
+--Mas elle não o quer vender.
+
+--Ora! Porque não lh'o pagam bem.
+
+--Não, meu pae, não. Ernesto não o vende ainda que lhe offereçam um milhão.
+
+--Pateta! Nem tu nem Ernesto sabem o que é um milhão. Não ha quadro do
+mundo que valha essa quantia.
+
+--O pae não conhece Ernesto.
+
+--Mas entendamo-nos. Que é que tu queres? Que elle retire o quadro?
+
+--Não é sómente que o tire da exposição, como tambem que publique nos
+jornaes um artigo, assignado por elle, dizendo que o quadro é do conde,
+o qual teve o capricho de que Esther fosse o retrato da esposa.
+
+--Pois bem, falarei com Ernesto, e tudo se arranjará.
+
+--Mas Ernesto recusa-se!
+
+--Como! E porque recusa?
+
+Amparo comprehendeu que era preciso revelar tudo ao pae, porque só elle
+podia valer-lhe n'aquelle apuro, e pegando-lhe carinhosamente nas mãos e
+olhando-o com doce expressão, disse-lhe:
+
+--Porque Ernesto ama-me; porque tem ciumes, porque ao chegar a Hespanha
+e encontrando-me casada lhe fugiram todas as esperanças do seu generoso
+coração, e receio que commetta alguma loucura.
+
+--Diabo! Diabo! Isso é muito differente! E teu marido sabe que Ernesto
+te ama?
+
+--Suspeita-o, e jurou bater-se com elle, se antes de vinte e quatro
+horas não ficar completamente resolvida a questão do quadro.
+
+D. Ventura deu um profundo suspiro.
+
+Começava a vêr a questão sob o seu verdadeiro ponto de vista, e receava
+que tivesse um desenlace fatal.
+
+--Bem vê, meu pae que o meu sobresalto e o meu receio é fundado. Se
+Fernando e Ernesto se baterem, se algum d'elles morrer...
+
+--Tudo, menos isso. É preciso liquidar esse negocio. Vou falar com Ernesto.
+
+--Negar-se-ha; estou crente. Será mais conveniente que eu lhe fale, mas
+não na sua casa. É preciso que o papá o chame.
+
+--Não vejo inconveniente. Mas onde? Amparo reflectiu um momento.
+
+--Occupo o meu rez-do-chão d'esta casa; pois bem, escreva-lhe uma carta
+pedindo-lhe para vir aqui; não a casa do conde de Loreto, mas--á sua.
+
+D. Ventura sentou-se a uma mesa, pegou na penna e disse:
+
+--Dicta a carta.
+
+Amparo pensou alguns instantes. Depois disse:
+
+
+ _Senhor Ernesto Alvarez_
+
+«Meu bom amigo
+
+ «Peço-lhe para que tão depressa receba esta carta tenha a bondade de
+ me vir procurar em minha casa pois desejo falar-lhe de um assumpto
+ da maior importancia.
+
+ «Julgo inutil participar-lhe que moro no rez-do-chão, onde o espero,
+ confiado em que se apressará em satisfazer o pedido de um amigo que
+ tanto o estima.
+
+ Sempre seu amigo,
+
+ _D. Ventura de Aguillar._»
+
+
+Fechada a carta, enviou-a immediatamente por um creado.
+
+Depois, D. Ventura e a filha desceram para o rez-do-chão.
+
+--Agora, meu pae, disse Amparo, só lhe peço que quando vier Ernesto
+me deixe a sós, com elle, mas é preciso que, detraz d'aquelle
+reposteiro, seja testemunha da nossa entrevista.
+
+--Farei o que quizeres, porque estas questões apoquentam-me atrozmente.
+
+--Preciso, para que se ámanhã tentarem debicar em mim, ao menos o meu
+pae saiba que não sou uma d'essas mulheres que faltam aos seus deveres
+com facilidade.
+
+Uma hora depois Ernesto era introduzido no gabinete em que estava Amparo.
+
+D. Ventura occultou-se precipitadamente no quarto contiguo.
+
+
+
+
+CAPITULO XVIII
+
+A golfada de sangue
+
+
+Ernesto, de pé, com o chapéu na mão, pallido, e surprehendido por se
+encontrar com Amparo, não se atrevia a dar um passo.
+
+Amparo que fazia grandes esforços para dominar a commoção que
+experimentava sorriu-se e extendeu-lhe a mão.
+
+--Que é isso, meu amigo! Tão zangado está comigo que não quer apertar-me
+a mão?
+
+--Senhora condessa, em verdade que a não esperava encontrar aqui,
+tartamudeou Ernesto.
+
+--Porque a suspeital-o não teria vindo, não é verdade? Agora vejo que
+fiz bem em pedir a meu pae que escrevesse a carta. Mas, peço-lhe que se
+sente aqui, ao meu lado; tenho que lhe falar de um assumpto de que
+depende a tranquillidade da minha alma, o senhor que sempre foi tão bom
+para commigo creio que não deixará de sel-o neste momento.
+
+Ernesto sentou-se ao lado de Amparo, mas sentia-se muito commovido,
+agitado e quasi sem forças para fixar os seus olhos no formoso rosto da
+condessa.
+
+--Conheço, senhor Ernesto, que me não assiste nenhum direito para lhe
+pedir algum favor por mais insignificante que seja, porque comprehendo
+que deve estar resentido commigo. Seria inutil desculpar-me; confesso-me
+culpada, e fui, se assim quizer, uma _coquette_ que pagou esse tributo
+de vaidade de que poucas mulheres escapam, e por isso vou-lhe falar, não
+ao homem em cujo braço me appoiei para visitar o Colyseu de Roma e cujas
+palavras carinhosas resoaram nos meus ouvidos como uma embriagadora
+musica durante as noites de Florença, mas a um cavalheiro, a um homem
+generoso e desinteressado, em cujo nobre coração só se albergam
+sentimentos nobres, emfim, a si, senhor Ernesto, a quem não quero
+occultar a situação em que me encontro, a si de quem depende a paz do
+meu lar, a tranquillidade do meu espirito.
+
+Amparo deteve-se, levou uma das lindas mãos aos olhos e enxugou as
+lagrimas que durante a conversa lhe assomaram.
+
+--Não creia, senhora condessa, que os meus labios pronunciem uma só
+palavra que seja de recriminação, disse Ernesto. Desde que cheguei a
+Madrid, e assim que soube que a senhora pertencia a outro, que era a
+esposa do conde de Loreto, senti tão profunda dôr no coração, tão grande
+magua na alma, que só então pude avaliar a enorme paixão que me tinha
+inspirado. Não sou d'aquelles homens que se resignam a perder n'um
+momento as esperanças que durante muito tempo acariciaram. Será isto uma
+desgraça, concordo, porque não devemos encarar a sério esta vida.
+
+Ernesto passou a mão pelo rosto, fez um esforço para se dominar e
+continuou:
+
+--Sou um nescio! Estou falando de mim, a senhora condessa, em logar de
+lhe perguntar o que deseja e apressar-me a satisfazel-a. Peço-lhe
+desculpa das minhas anteriores divagações, e ordene tudo quanto lhe
+aprouver.
+
+--Não, senhor Ernesto, não; conheço todo o mal que o meu coquettismo lhe
+causou, e por conseguinte não podem ser-me indifferentes os seus
+soffrimentos. O que quero, o que lhe imploro é que me perdôe e me não
+odeie, o que lhe peço é que annua ao que esta manhã lhe foi pedir meu
+marido, porque só assim poderá a minha alma viver tranquilla e
+restabecer-se a paz n'esta casa.
+
+--E... pensou bem no que me pede, minha senhora?
+
+--Sim, sei que para si é um grande sacrificio. Se o senhor fosse outro
+homem nunca me resolveria a pedir-lhe tão grande favor, senhor Ernesto,
+mas do senhor espero tudo, porque se tanto fôr preciso, lançar-me-hei a
+seus pés até que o consiga, porque o senhor não quererá que nos meus
+olhos nunca mais sequem as lagrimas, nem vêr-me desprezada pela
+maledicencia e odeiada de meu marido a quem tanto amo; porque se o
+senhor não cede acontecerá indubitavelmente uma desgraça.
+
+Ernesto fixou em Amparo um olhar intenso, profundo, como se pretendesse
+lêr-lhe no fundo d'alma, e depois disse:
+
+--O senhor conde de Loreto é um homem valente, um dextro atirador que
+tem provado a sua habilidade e o seu valor em mais de uma occasião. Sei
+que se eu recusar terminantemente ao que me pede nos bateremos, e não
+sendo eu um espadachim, será d'elle o melhor partido. Tambem não terei
+grande trabalho para lhe provar, minha senhora, que a ideia de um duello
+de morte pouco me preoccupa. A vida só é preciosa para os que são
+felizes e a senhora destruiu toda a minha felicidade. De mais ha já
+algum tempo que goso de pouca saude, e por conseguinte é desnecessario
+pensar em mim. Só temo que em Madrid me tomem por um cobarde; é epitheto
+que não mereço e por isso me recusei a satisfazer os pedidos do senhor
+conde.
+
+--E quem ousará chamar-lhe cobarde? disse Amparo. Para que os seus
+amigos fizessem similhante apreciação, seria preciso que houvesse alguma
+cousa que não fosse natural. Acaba de chegar de Roma com o quadro de
+Esther; em Roma estive este verão e lá esteve tambem meu marido. Nada
+tão facil e tão interessante para a sublime obra que expôz n'um dos
+salões da Exposição de pintura, como inventar uma d'essas anecdotas que
+fazem na posteridade parte da historia de um quadro. Por exemplo: o
+senhor precisava de um modelo para Esther; encontrou-me com o conde,
+então meu noivo e seu amigo, e encontrando nas minhas feições tudo
+quanto sonhava para a figura de Esther, pediu a Fernando para que eu
+servisse de modelo. O conde annuiu com uma condição: a de comprar-lhe o
+quadro pelo preço em que o senhor o avaliasse; e effectivamente
+fechou-se o negocio por vinte e cinco mil duros. Tudo isto é o mais
+natural do mundo. Ninguem depois de lêr nos jornaes a historia da
+parecença de Esther com a condessa de Loreto, assignado por si, será
+capaz de dizer que semelhante declaração foi escripta pela mão de um
+medroso.
+
+--Effectivamente, minha senhora, respondeu Ernesto, d'esse modo, na
+minha historia, haveria um episodio fabuloso, o de vender um quadro no
+seculo da photographia pela fabulosa quantia de meio milhão, e estou
+certo de que tão vantajosa venda produziria inveja a muitos. Mas
+ignorando todos que conheci em Roma e que acompanhei a Florença D.
+Amparo d'Aguillar, ninguem supporá qual a verdadeira historia da
+parecença de Esther com a condessa de Loreto; e para mim, basta-me que a
+senhora o saiba e que o não ignore o senhor conde. Tambem julgo que a
+senhora não quererá fazer-me o aggravo de me julgar interesseiro. O meu
+quadro não vale vinte e cinco mil duros e por isso não posso ceder aos
+seus desejos.
+
+--Meu Deus! disse a joven juntando as mãos, e derramando abundantes
+lagrimas. Julgava que este homem me amava, mas enganei-me.
+
+Ernesto fez-se pallido até ficar livido, os olhos brilharam-lhe de um
+modo terrivel, pegou bruscamente em uma mão de Amparo, e disse:
+
+--Senhora, o meu amor é tão grande, que não encontraria palavras com que
+podesse narrar-lh'o.
+
+E pondo uma mão sobre o peito, continuou:
+
+--Aqui, desde o momento em que perdi a esperança de realisar os meus
+sonhos, sinto como que uma tempestade infernal que rebentará em breve,
+despedaçando-me o peito. Oh! Como é insensato todo o homem que não sabe
+ser superior ás paixões que o dominam. Eu nunca amara senão minha mãe e
+a gloria. A que me deu o ser deixou de existir. Fiquei orphão, e a
+gloria desde esse dia foi minha mãe, minha amada, minha vida; mas um dia
+o destino ou a fatalidade collocou-a ante mim, e amei-a com toda a minha
+alma. Este amor então foi correspondido, sellado com um beijo que ainda
+me queima nos labios, que ainda abraza a alma, e depois...
+
+Ernesto soltou uma gargalhada hysterica e ajuntou:
+
+--Mas para que recordar-lhe o que a senhora esqueceu? Que deseja a
+senhora? Fiz-lhe o sacrificio da minha felicidade, talvez o da minha
+vida, farei tambem o da minha honra, estou disposto a tudo. O quadro é
+seu, minha senhora; escreverei a noticia, e entregarei ao senhor conde
+de Loreto o documento com que poderá retiral-o quando a Exposição
+terminar. Depois, se quizerem, podem queimal-o, pois era esse o fim a
+que o destinava.
+
+Ernesto poz-se de pé, fazendo um esforço supremo, e como se as suas
+ultimas palavras tivesse esgotado as forças, dirigiu-se para a porta.
+
+Amparo olhava-o absorta, commovida, sem coragem para detel-o. Viu-o
+partir, e notou que aquelle homem tremia como um ebrio.
+
+Apenas sahira do gabinete, ouviu-se na antecamara um ruido como o que
+produz um corpo ao cahir desamparado. A condessa soltou um grito e D.
+Ventura sahiu da alcova.
+
+--É um rapaz que vale quanto pesa, disse o commerciante.
+
+--Meu pae, corra, succedeu qualquer cousa a Ernesto.
+
+D. Ventura foi por onde o pintor tinha sahido, e effectivamente
+encontrou-o estendido no chão.
+
+Soltou um grito e pediu soccorro. Ernesto estava desmaiado com a cara e
+o peito manchados de sangue.
+
+Quando Amparo chegou, julgou que Ernesto se suicidara; os creados
+levantaram-n'o e transportaram-n'o para a cama de D. Ventura, e quando
+chegou o medico, soube-se a verdade: Ernesto tivera um grande vomito de
+sangue que o obrigara a perder os sentidos.
+
+Uma hora depois, quando voltou a si e abriu os olhos, o conde de Loreto,
+Amparo, Ventura e o medico estavam em volta da cama.
+
+O pintor estava extremamente pallido, mas com essa palidez mate,
+melancholica, dos doentes de peito, e dirigindo um olhar vago e fatigado
+em volta de si, disse com voz debil:
+
+--Quanto me penalisa, senhores, este contratempo. Senti-me mal
+repentinamente, como se se tivesse rompido qualquer cousa dentro do
+peito; quiz evitar á senhora condessa um desgosto, e retirei-me á
+pressa, mas ao chegar á antecamara, perdi os sentidos. Espero que me
+desculparão o susto que lhes causei.
+
+--O mais importante, meu amigo, disse o conde, é a sua saude, e desejo
+que me faça o favor de permanecer em minha casa até que se encontre
+completamente restabelecido.
+
+Havia tanta doçura, tanto interesse n'aquella voz, que Ernesto, fixando
+o conde com um olhar replecto de agradecimento, respondeu:
+
+--Um doente nas minhas condições, senhor conde, é demasiadamente
+importuno. Agradeço-lhe reconhecidissimo o seu offerecimento, mas não
+devo acceital-o e peço-lhes que tão depressa o medico diga que me
+encontro em estado de ir para minha casa, me concedam licença.
+
+--Não será hoje nem ámanhã, respondeu o medico, e por conseguinte creio
+que não nos devemos occupar d'outra cousa que não seja fortalecer o
+nosso doente.
+
+--Não se fala mais n'isso, disse D. Ventura, Ernesto é mais bem tratado
+aqui do que em sua casa. Eu, em nome da nossa amizade, prohibo-lhe que
+se levante da cama. Quando estiver restabelecido, quando estiver forte,
+fará então o que lhe aprouver. Hoje mando eu.
+
+Ernesto fez um movimento d'olhos indicando que se resignava. Sentia-se
+tão fraco, que lhe seria impossivel ter-se de pé.
+
+Ficou, pois, resolvido que ficaria no quarto de D. Ventura.
+
+Quando o medico sahiu, Amparo deteve-o para lhe perguntar pelo doente.
+
+--É grave, disse o facultativo. Mais tarde ou mais cedo morre. Deve ter
+soffrido muito.
+
+Amparo retirou-se para os seus aposentos, e, fechando a porta, chorou.
+
+O remorso começava a preoccupar-lhe o espirito.
+
+
+
+
+CAPITULO XIX
+
+Pagar a hospitalidade
+
+
+D. Ventura mandou pôr uma cama no quarto de Ernesto.
+
+--Serei o seu enfermeiro, disse, Amparo, e o conde ajuda-me n'esta
+tarefa. Animo, pois, amigo Ernesto, e não pense n'outra cousa que não
+seja em restabelecer-se.
+
+Desde aquella occasião o pintor encontrou uma familia carinhosa,
+solicita, que lhe prodigalizou todo o bem estar. Nem elle mesmo podia
+explicar o que se passava em redor de si.
+
+Muitas vezes era Amparo quem lhe dava os remedios, limpando-lhe o
+copioso suor que com frequencia lhe inundava a fronte, e isto fazia-o
+mesmo deante do marido e com a amorosa solicitude de uma irmã.
+
+D. Ventura logo ao segundo dia começou a tratar o enfermo por tu com a
+ternura e o interesse de um pae.
+
+Assim se passaram cinco dias. Ernesto falava pouco, não só porque o
+medico lh'o prohibira, como tambem porque pensava muito em todos estes
+acontecimentos.
+
+O seu amor por Amparo era immenso. O conde indubitavelmente conhecia
+esse amor, e comtudo, dedicado e obsequioso, consentia que sua mulher
+passasse horas inteiras sentada a cabeceira da sua cama.
+
+Em vão Ernesto perguntava a si mesmo porque era que aquella familia se
+mostrava tão attenciosa, tão obsequiadora para com elle, e o seu coração
+generoso repellia algum pensamento pouco favoravel para ella. O conde
+parecia-lhe um homem digno e honrado, Amparo uma irmã, D. Ventura um
+pae, e até o medico era para elle um amigo.
+
+Desde que recuperára os sentidos, durante os dias em que se achava
+n'aquella casa, ninguem lhe tornára a falar do quadro. Ernesto
+sentindo-se mais alliviado, aproveitou um momento em que estava só, pois
+desejava demonstrar áquella familia o seu reconhecimento.
+
+Levantou-se da cama, chegou com algum custo a uma mesa onde estavam os
+apetrechos de escripta, e poz-se a redigir um artigo.
+
+Passada uma hora tinha acabado.
+
+Então, voltou para a cama, tocou a campainha e disse ao creado que se
+apresentou:
+
+--Faça favor de dizer ao senhor D. Ventura que desejo falar-lhe.
+
+O creado obedeceu e poucos momentos depois entrava o commerciante,
+sorrindo como sempre.
+
+--Bravo, bravo, disse elle. Já te vejo esse parecer mais animado e gosto
+d'isso. Mas, saibamos o que quer o meu doente.
+
+--Que leia isto, que mande tirar copias e que as remetta aos jornaes que
+quizer.
+
+E Ernesto entregou uns linguados de papel em que pouco antes escrevera.
+D. Ventura leu para si. Quando acabou a leitura lançou-se nos braços de
+Ernesto, exclamando com voz commovida:
+
+--Obrigado, Ernesto, obrigado. Estas linhas trarão a paz a um lar e o
+socego a um pae; és o homem mais generoso do mundo.
+
+D. Ventura tinha os olhos cheios de lagrimas.
+
+Ernesto estava impressionado ante a profunda satisfação do velho.
+
+--Demais, disse o pintor, fingindo grande naturalidade, essa declaração
+que destruirá por completo a maledicencia, vale bem pouco, e não vejo
+motivo para que o senhor m'o agradeca. Em poucos dias estarei
+completamente restabelecido, e sahirei de Madrid, e nem o senhor conde,
+nem a senhora condessa me tornarão a vêr. Tenho um plano de vida que me
+será proveitoso. Emquanto ás nossas excursões artisticas por Florença, e
+Roma só me resta julgál-as um encantador sonho, filho d'uma imaginação
+viva e impressionavel, e como os sonhos se esquecem procurarei
+esquecêl-as tambem.
+
+--Oh! Tu não dizes o que sentes, Ernesto, soffres e tentas occultal-o.
+
+--E quem não soffre n'este valle de lagrimas? Existe porventura homem
+feliz n'este mundo? Creio que não. A vida não é outra cousa senão um
+castigo que Deus impõe á humanidade pelo peccado original;
+resignemo-nos, pois e paguemos esse tributo ao Creador.
+
+--Mas isso não me tranquillizou por completo. Dizes no teu artigo
+que o quadro é propriedade do conde de Loreto, que o comprou em Roma,
+com a condição de que Esther fosse o retrato de sua futura mulher, e
+isso não é verdade.
+
+--Meu amigo, ás vezes a mentira, que tem alguma cousa de santa, é
+indispensavel.
+
+--Comtudo o conde não te comprou o quadro.
+
+--Mas se eu lh'o offereço.
+
+--Isso não póde ser. Tu és pobre e nos não consentimos...
+
+--Mau! O quadro, dado o caso de ser premiado pelo governo, poderá
+render-me quando muito cinco ou seis mil duros. Com essa quantia é rico
+um homem como eu.
+
+--Mas nós podemos dar-te pelo quadro vinte mil duros.
+
+--Isso seria roubar o dinheiro, e não creio que o senhor me faça a
+offensa de me julgar interesseiro.
+
+--Demais sei eu que todos os homens de talento desprezam o dinheiro.
+
+--Pois então consinta que a minha pobre Esther salvando os filhos de
+Israel fique em paga da carinhosa hospitalidade que me concederam, e não
+se fala mais no assumpto. Mas não percamos tempo; é preciso que ámanhã
+saia em alguns jornaes o meu communicado.
+
+D. Ventura não poude convencer Ernesto a que acceitasse qualquer quantia
+pelo quadro.
+
+--Para todos, disse o pintor, o quadro foi comprado pelo conde de Loreto
+pela importancia que lhe aprouver dizer, e eu não o desmentirei; para
+nós, o quadro será uma offerta que eu faço ao esposo de D. Amparo de
+Aguillar.
+
+No dia seguinte, ao levantar-se, Amparo, viu varios jornaes sobre uma
+pequena mesa de pau rosa.
+
+--Que é isto? perguntou. Cuidam que me vou dedicar á politica?
+
+--Não sei, minha senhora, mas o papá disse-me que os puzesse ahi e que
+dissesse da sua parte á senhora condessa, quando se levantasse, que
+lesse um communicado que trazem os jornaes.
+
+Amparo suspeitou do que tratava o communicado, pegou no jornal e leu em
+voz baixa o que se segue:
+
+
+ «Senhor director do...
+
+ «Espero da sua amabilidade que publicará esta carta no seu
+ acreditado jornal que tão dignamente dirige, pois importa ao senhor
+ conde de Loreto e ao que subscreve a presente carta, desvanecer
+ certas equivocas apreciações que uma parte do publico que visita a
+ Exposição de pintura tem feito sobre o meu quadro de Esther.
+
+ «Ha alguns mezes estava em Roma pintando o quadro de Esther quando
+ tive a honra de ser visitado por Fernando del Villar, conde de
+ Loreto, com a então sua futura esposa, hoje condessa de Loreto.
+
+ «Verdadeiro enthusiasta pela pintura, o conde de Loreto, protector
+ dos artistas, propôz-me comprar o quadro por uma quantia bastante
+ elevada; attendendo ao pouco ou nenhum merecimento da minha tela,
+ acceitei o negocio e ficou desde então o quadro de Esther sendo
+ propriedade do conde de Loreto.
+
+ «A partir d'ahi o conde passou a visitar-me todas as manhãs,
+ passando algumas horas no meu atelier vendo-me pintar.
+
+ «Um dia, ao ter quasi terminada a minha obra, occupava-me em retocar
+ a figura de Esther, quando o conde me disse:
+
+ --«Meu amigo, tenho um capricho de homem rico que desejava
+ satisfazer. Se o senhor não se escandalizasse e quizesse, a cabeça
+ da rainha Esther poderia ser o retrato da senhora que em breve será
+ minha mulher. Ha algum inconveniente n'isso?
+
+ --«Nenhum, senhor conde, lhe respondi. Nem conheci a celebre judia
+ da tribu de Benjamin, a bondosa sobrinha de Mardoques, nem vi mesmo
+ algum retrato d'ella, mas desde já aposto qualquer cousa em como a
+ mulher do rei Assuero não foi mais bella do que a joven que d'entre
+ em pouco será a condessa de Loreto.
+
+ «Poucos dias depois, a cabeça de Esther era um retrato bastante
+ parecido da senhora D. Amparo de Aguillar, condessa de Loreto.
+
+ «Assim fica explicada a similhança que com a esposa do senhor conde
+ de Loreto tem a figura principal do meu quadro.
+
+ «Peço-lhe me desculpe o incommodo que lhe causo, mas a rectidão do
+ meu caracter e o agradecimento a isso me obrigam, e antecipadamente
+ agradece, o que é
+
+ De V. S.ª
+
+ Att.º V.or Cr.º e Obrg.º
+
+ _Ernesto Alvarez._»
+
+
+Quando Amparo acabou a leitura ouviu a voz do marido que lhe pedia
+auctorização para entrar. Entrou com o jornal na mão.
+
+--Entra, Fernando. Não precisas auctorização para entrar no meu quarto,
+lhe respondeu.
+
+O conde approximou-se da mulher e depois de lhe ter dado um carinhoso
+beijo na face e dirigir-lhe um sorriso amoroso, disse:
+
+--Bom dia, querida Amparo, bom dia. Vejo que ambos lemos o communicado
+de Ernesto.
+
+--Sim; meu pae mandou-me estes jornaes.
+
+--Tambem m'os mandou a mim, e vinha perguntar-te se sabes o que se
+passou entre teu pae e Ernesto.
+
+--Não sei.
+
+--Fosse o que fosse, a conducta d'esse rapaz não póde ser mais nobre.
+Bem vês que nos offerece o quadro, porque tu bem sabes que lh'o não
+comprei.
+
+--Sim, é um rasgo de generosidade pouco vulgar n'um homem que não tem
+outro patrimonio senão os pinceis.
+
+--Mas nós não podemos consentir em similhante offerta.
+
+--Ou pelo menos compensal-o com outra.
+
+--Dizes bem. N'este assumpto convém proceder com toda a delicadeza.
+Vinha lêr-te isto mas como já lêste, retiro-me e vou vêr Ernesto.
+Almoçamos juntos?
+
+--Sim, meu Fernando, espero-te aqui para me contares tudo o que resolveres.
+
+Fernando tornou a abraçar a mulher e sahiu.
+
+Amparo ao vêr-se só, deixou-se cair n'uma cadeira e leu pela segunda vez
+o jornal.
+
+--Ah! exclamou, exhalando um suspiro que brotava do mais fundo da sua
+alma. Ernesto vale cem vezes mais do que eu. Causei toda a sua desgraça.
+O coração tambem me diz que serei a causa da sua morte. Que Deus me
+perdôe o mal que fiz a esse homem.
+
+E, cobrindo o rosto com as mãos, deu livre curso ás lagrimas.
+
+
+
+
+CAPITULO XX
+
+Abnegação
+
+
+Quando o conde entrou no quarto de Ernesto, acabava este de se vestir.
+
+Pallido, com o parecer cadaverico, o semblante do pintor tinha
+impressos os profundos vestigios da enfermidade que lhe minava o peito.
+
+O conde admirou-se de o vêr levantado. Ernesto, sorrindo, veiu-lhe ao
+encontro.
+
+--O medico já lhe deu auctorização para se levantar? perguntou Fernando.
+
+--Os medicos são uns ignorantes. Se seguisse os seus conselhos, ficaria
+ainda um mez na cama, mas tenho esperanças de me restabelecer d'outra
+maneira sem auxilio da medicina.
+
+--Senhor Ernesto, disse o conde com voz carinhosa, ignoro o que tenciona
+fazer para se curar, mas reprovo que abandonasse a cama.
+
+--O meu plano de vida é muito simples, senhor conde, reduz-se a ir viver
+no monte, a respirar o ar puro e livre do campo, longe da balburdia da
+cidade, do bulicio dos homens; é o remedio mais efficaz para os doentes
+do peito. Em outros tempos fui um enthusiastico amador da caça. Quando o
+governo me fez seu pensionista, quando parti para Roma, offereci os meus
+cães e as minhas espingardas e abandonei a minha distracção favorita. Em
+poucos dias adquirirei todos os apetrechos e partirei para os montes de
+Toledo onde conheço um caçador de profissão, viverei com elle, caçando
+umas vezes, pintando outras, e quem sabe se a vida semi-selvagem que vou
+emprehender me restabelecerá a saude.
+
+O pintor procurava dissimular o cansaço que a conversação lhe causava.
+
+O conde, que o conhecia, disse com commoção:
+
+--Ernesto, offender-se-ha commigo se lhe falar com a franqueza de irmão?
+
+--Pelo contrario, senhor conde, julgar-me-hei muito honrado.
+
+--Pois bem, o senhor crê que essa viagem, essa vida semi-selvagem, como
+acaba de dizer, lhe será tão proveitosa, como diz?
+
+--Sem perceber de medicina, comprehendo que a vida do campo é muito
+proveitosa aos doentes do peito.
+
+--Comtudo a vida de caçador é agitada e precisa de corpos robustos e
+fortes.
+
+--Quem sabe se o meu se fortalecerá?
+
+--Duvido!
+
+--É preciso dar-se tempo ao tempo.
+
+--Mas ainda que assim seja o senhor não é rico e precisa trabalhar para
+viver.
+
+--Tão pouco precisa um caçador de profissão! disse Ernesto sorrindo-se.
+Álêm d'isso pintarei quadros pequenos, que, vendendo-os baratos, sempre
+terei quem m'os compre; por exemplo, assumptos de caça, paisagens
+tiradas do natural. Oh! tenho esperanças que nada me faltará.
+
+--Está então resolvido a emprehender essa nova vida e eu não me opponho,
+mas quero propor-lhe um negocio.
+
+--Qual?
+
+--O senhor precisa de quem lhe compre os quadros que pintar.
+
+--Certamente.
+
+--Pois bem, compro-lh'os eu. Como vê não tenho muitos quadros bons nas
+minhas paredes, e por isso espero que me permitta pagar-lhe o que está
+na Exposição das Bellas-Artes.
+
+--Emquanto a esse creio que o senhor já leu a carta que enviei aos
+jornaes, e como digo que recebi em Roma antes de concluir...
+
+--Mas isso não é verdade.
+
+--Que importa? O quadro é seu, senhor conde, e não falemos mais de
+similhante assumpto. Emquanto á venda dos que pinte de futuro, isso é
+diverso e não vejo inconveniente em que o senhor m'os compre.
+
+--Fixemos então desde já o preço, ficando assente que recebo todos
+quantos o senhor pintar.
+
+--Isso é offerecer muito.
+
+--Compro todos. Marque preço.
+
+--Marcarei quando lh'os mandar, a não ser que o senhor me indique desde
+já os assumptos e os tamanhos.
+
+--Isso fica á sua escolha.
+
+--Pois então fica desde hoje sendo o meu unico comprador.
+
+--E o senhor o meu pintor. Mas repito que é uma loucura abandonar os
+recursos da capital quando a saude não esta sufficientemente restabelecida.
+
+--Pelo contrario, senhor conde, é muito conveniente abreviar a minha
+partida.
+
+Fernando encolheu os hombros conhecendo que Ernesto estava firmemente
+resolvido a sahir de Madrid.
+
+--Não insisto mais, apezar de lamentar que nos deixe tão depressa,
+porque de amigos tão generosos, tão nobres como o senhor, é sempre
+custosa a separação.
+
+--Senhor conde, antes de nos separarmos tomarei a liberdade de lhe falar
+com a rude franqueza de um homem que sempre foi dominado pelos impulsos
+do seu coração. Odiei-o de morte durante algum tempo. Então não conhecia
+o conde de Loreto mais do que de nome; hoje é diverso: tive occasião de
+tratar comsigo, de apreciar o que vale, e a minha alma, sempre generosa,
+arrepende-se de haver abrigado, ainda que por pouco tempo, sentimentos
+perversos. A carta que mandei aos jornaes não é outra cousa que o
+descargo da minha consciencia. Preciso, pois, partir e esquecer. O
+senhor sabe que amei Amparo, e tambem não ignora que ainda a amo.
+Tratou-me como a um bom amigo, e nada mais. Sei que são felizes, e que
+se amam muito. Uma imprudencia minha esteve a ponto de destruir toda
+essa felicidade, que não tem preço entre dois esposos. Reparei essa
+imprudencia e tranquillizou-se um tanto a minha consciencia. O passado
+será um sonho para mim, o presente, a soledade dos montes, até ao dia em
+que Deus queira apagar o meu nome do grande livro dos vivos.
+
+Ernesto calou-se. O conde fixou n'elle um profundo olhar que demonstrava
+a admiração que sentia ouvindo expressar-se com tão nobre franqueza,
+julgando inverosimil que na corrupta sociedade ainda se pudesse
+encontrar n'um homem um rival tão generoso.
+
+--Vá, disse o conde, depois de uma pausa, parta, mas nunca esqueça que
+tem em todas as occasiões que precisar um irmão, em Fernando del Villar.
+
+--Obrigado, senhor conde, não esquecerei o seu offerecimento. Peço-lhe
+me desculpe para com a senhora condessa, pois não me posso despedir
+d'ella, e que mande que uma das suas carruagens me leve a minha casa.
+
+--Como! Partir sem apertar a mão a minha mulher, sem lhe dizer adeus?
+Não, senhor Ernesto. Julga porventura que sou um d'esses maridos zelosos
+e ridiculos que desconfiam da mulher a quem deram o nome? Julga-me capaz
+de lhe fazer a offensa de duvidar de si, o homem mais generoso que
+conheço, o melhor dos meus amigos? Não. Amparo virá despedir-se de si;
+peço-lhe que não deixe esta casa sem que assim succeda.
+
+--Não insisto mais. Já que assim deseja despedir-me-hei da senhora
+condessa.
+
+--Vou eu mesmo chamal-a.
+
+O conde sahiu, murmurando em voz baixa:
+
+--Este homem venceu-me á força de generosidade.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+A condessa acabava de se pentear: estava vestida com uma simples bata
+branca.
+
+Ao vêr entrar o marido exclamou:
+
+--Tu, outra vez aqui!
+
+--Sim, Amparo, venho annunciar-te a partida de Ernesto.
+
+--Não é possivel, ainda está muito doente, segundo diz o medico.
+
+--Isso mesmo lhe disse eu, mas insiste em se querer restabelecer no
+campo, e está resolvido a abandonar hoje mesmo a nossa casa. Pedi-lhe
+que se não fosse, sem primeiro se despedir de ti e de teu pae. É
+preciso que meu sogro, que tem mais confiança com elle, o convença a que
+receba o valor do quadro que tão generosamente nos offerece.
+
+--Será inutil; não receberá nada.
+
+--Comtudo espero que teu pae insista pela ultima vez. Não pódes calcular
+o quanto me interessa esse pobre rapaz, pobre como Diogenes e generoso
+como Lucullo. Fala-lhe, fala-lhe sem perda de tempo; eu, entretanto vou
+á loja de Manuel Arenas fazer umas compras.
+
+Fernando tocou uma campainha e disse ao creado:
+
+--Avise o senhor Ernesto de que a senhora condessa deseja vêl-o.
+
+E depois, abraçando Amparo, continuou:
+
+--Adeus, minha amiga. Procura convencer esse tresloucado. Não me demoro.
+Vou comprar umas cousas para Ernesto. É preciso presenteal-o como a um
+principe que pensa em passar uma grande temporada no monte, dedicando-se
+a caça.
+
+
+
+
+CAPITULO XXI
+
+Abandonando Madrid
+
+
+Amparo, depois do conde sahir, ficou immovel, preoccupada. Ia
+despedir-se de Ernesto, talvez para não mais o vêr; ia ter uma
+entrevista sem testemunhas com o homem a quem tão desgraçado fizera, e
+esta entrevista era proporcionada, pedida pelo marido.
+
+Por um momento Amparo receou que aquillo fosse um laço, mas rapidamente
+affastou similhante pensamento, conhecendo a nobreza com que procederam
+Ernesto e o conde de Loreto.
+
+--Não, não; Fernando não póde ter ciumes; tem confianca absoluta,
+sabe que o amo com toda a minha alma, disse Amparo, falando comsigo.
+Comtudo quer que me despeça de Ernesto a quem tão desgraçado fez uma
+leviandade, filha do coquettismo. Devo obedecer-lhe, ainda que me seja
+dolorosa esta entrevista.
+
+E como n'aquelle momento entrasse o creado para annunciar que o senhor
+Ernesto esperava a condessa, Amparo encaminhou-se para o quarto do pintor.
+
+Ernesto, ao vêr entrar Amparo, pôz-se de pé, mas foi-lhe preciso
+encostar-se ao espaldar d'uma cadeira.
+
+A condessa não se commoveu menos, vendo a extrema pallidez do seu antigo
+apaixonado.
+
+--É verdade, senhor Ernesto, o que o meu marido acaba de me dizer? Pensa
+em deixar-nos?
+
+--Senhora condessa, respondeu o pintor com uma tranquillidade que
+assombrou Amparo, sinto-me muito melhor, e resolvi restabelecer-me no
+campo. Dentro em pouco as brisas do outomno annunciarão o inverno, e
+creio que me é conveniente fortalecer-me primeiro.
+
+--Se a sua resolução é inabalavel, não nos devemos oppôr, nem meu marido
+nem eu, mas creia, senhor Ernesto, que ambos sentimos do coração que o
+senhor deixe tão depressa esta casa, que podia considerar como sua.
+
+Ernesto sorriu-se amargamente, fez um movimento de indifferença com os
+hombros, e ajuntou:
+
+--Ha creaturas, minha senhora, para quem o mundo é um deserto, um campo
+de tristes saudades. Sósinhos na terra, vivem, sem uma affeição que os
+console, sem um peito carinhoso onde possam reclinar a fronte nas horas
+d'amargura. Para estes seres, a sociedade dos homens é demais, porque
+desconhecendo o embuste e a falsidade, são sempre enganados; eu talvez
+pertença a essa desgraçada familia de orphãos das grandes cidades. Por
+isso estou resolvido a nunca mais pisar as suas ruas, por isso me vou
+encerrar como um selvagem nos montes de Toledo esperando no meio
+d'aquelles agrestes barrancos o ultimo momento da minha vida, que
+felizmente não se fará esperar muito.
+
+Amparo inclinou tristemente a cabeça sobre o peito. As palavras eram uma
+terrivel accusação, um castigo ao seu coquettismo.
+
+--Porque me não odeia, senhor Ernesto? tartamudeou Amparo. Porque me não
+despreza?
+
+--Senhora, a minha alma não póde nem odiar, nem desprezar, nem esquecer.
+As noites de Florença e de Roma imprimiram n'ella uma impressão
+demasiadamente profunda.
+
+A condessa comprehendeu que a conversa ia seguindo um rumo perigoso.
+
+--Pois bem, senhor Ernesto, disse, peço-lhe em nome da amizade que
+apague da memoria essas noites.
+
+--Impossivel; é uma recordação que faz parte da minha vida; e por assim
+dizer a minha segunda natureza. Quando der o ultimo suspiro, quando
+deixar de existir, então, sim, então é que se extinguirá do meu peito.
+
+--Mas sente-se assim tão doente? perguntou Amparo, que, aturdida ante as
+sentidas recriminações do pintor, não sabia que dizer.
+
+--Quem sabe se serei um d'esses ridiculos apprehensivos que á força de
+pensarem na morte sempre d'ella vão escapando!
+
+E sorrindo com um ar triste, continuou:
+
+--O ar saudavel das montanhas talvez me restabeleca.
+
+E puxando o cordão da campainha, disse a um creado:
+
+--Diga ao senhor D. Ventura que me vou embora immediatamente e que o
+espero para me despedir.
+
+Amparo, ante aquella resolução inesperada, que punha fim á entrevista de
+uma maneira brusca, levou as mãos á cara para occultar as lagrimas que
+lhe fôra impossivel suster.
+
+--Póde-me odear, se assim lh'o apraz, disse a condessa; mereço-o, porque
+não ha palavra com que possa desculpar o meu procedimento.
+
+E sahiu precipitadamente do quarto.
+
+--Ah! exclamou Ernesto, vendo-a sahir. Não posso esquecer esta mulher!...
+
+Deixou-se cair n'uma cadeira, como se o abandonassem as forças para
+suster-se de pé.
+
+Em vão D. Ventura procurou persuadir Ernesto de que a vida de caçador
+montez, quando se carece de saude, é uma temeridade. O pintor estava
+resolvido, e sahiu de casa do conde.
+
+Quando chegou a sua casa da rua do Prado, quando os seus amigos André e
+Marcial o viram entrar pallido como um cadaver e fraco como um
+convalescente, depois de oito dias de ausencia, não puderam conter um
+grito de assombro.
+
+Ernesto explicou-lhes a ausencia e participou-lhes o plano que concebêra
+para se curar.
+
+N'aquella mesma noite escreveu uma carta a Mauricio, caçador de
+profissão, que vivia nos montes de Toledo.
+
+Tres dias depois, Mauricio respondeu a Ernesto, offerecendo-lhe a sua
+casa, participando-lhe que se casára, e que, por conseguinte, podia
+estar com alguma commodidade.
+
+Ernesto fôra caçador n'outros tempos, antes de partir como pensionista
+para Roma. Era d'aquella epocha que conhecia Mauricio, com quem entrára
+em algumas caçadas.
+
+Resolvido a emprehender a viagem, principiou a dispôr tudo, isto é, pôz
+n'um caixote alguns quadros, o cavallete, a caixa das tintas e os
+pinceis; n'outra metteu alguns livros de estudo e de recreio.
+
+Só lhe faltavam os apetrechos de caça, quando uma manhã em que se
+dispunha a sahir para comprar todos esses artigos, viu entrar o mordomo
+do conde de Loreto, seguido de dois creados que traziam duas caixas e
+dois bellos cães inglezes, um Setter e outro Pointer.
+
+O mordomo avançou com o seu costumado ar grave, e, entregando uma carta
+a Ernesto, disse-lhe:
+
+--Meu amo, o senhor conde de Loreto, manda-me entregar esta carta,
+estas caixas e estes cães, ao senhor, encarregando-me de lhe pedir o
+desculpe de não vir pessoalmente, mas é-lhe inteiramente impossivel.
+
+A um signal do mordomo, os creados arriaram no chão as duas caixas e
+amarraram os cães ao pé de uma mesa.
+
+--Creio que o senhor não deseja mais nada, ajuntou o mordomo, vendo que
+Ernesto guardava silencio.
+
+--Diga ao senhor conde que lhe agradeço reconhecidissimo a offerta que
+se digna fazer-me, e que lhe falarei ou escreverei antes de partir.
+
+O mordomo cumprimentou e sahiu seguido dos creados.
+
+Então Ernesto fez uma caricia aos cães, que se acercaram, meneando a
+cauda, e exclamou:
+
+--Aqui estão os meus novos amigos. Oh! Estes sim, que não me venderão!
+
+E sentando-se n'uma cadeira, abriu a carta do conde e leu:
+
+
+«Meu bom amigo
+
+ «Deixou-me com o quadro de Esther uma recordação que conservarei
+ emquanto viver; permitta-me que lhe remetta tambem como uma
+ lembrança, os meus melhores cães e algumas armas e objectos que
+ podem ser de muita utilidade no campo.
+
+ «Carlos I de Inglaterra offereceu a Rubens, em pleno parlamento, a
+ espada que levava cingida á cinta, um diamante que trazia no dedo e
+ uma banda de diamantes que lhe cruzava o peito. Tudo isto foi a paga
+ do magnifico retrato d'aquelle monarcha que mais tarde tão maus
+ boccados fez passar a Luiz XVI. Permitta, pois, que eu, sem ser rei,
+ tome a liberdade de offerecer alguns apetrechos de caça, de
+ pouco valor, e não esqueça que espero com anciedade noticias da sua
+ saude e algum quadro dos que me prometteu.
+
+ «Minha mulher e meu sogro cumprimentam-n'o e desejam vêl-o
+ brevemente em Madrid restabelecido da sua doença
+
+ Seu amigo
+
+ _Fernando del Villar._»
+
+
+Ernesto leu duas vezes a carta, e, soltando um suspiro, murmurou em voz
+baixa:
+
+--Eis-me amigo do conde de Loreto, de um homem com quem estive a ponto
+de me bater.
+
+Ernesto abriu as caixas, encontrando n'ellas tudo quanto póde necessitar
+no campo um caçador de dinheiro.
+
+Só a mão de uma pessoa intelligente teria sido capaz de reunir todos
+aquelles objectos.
+
+Ernesto encontrou duas espingardas, uma de Scotte de dois canos, do
+systema Lefaucheux, outra de Greener para tiro de bala, uma excellente
+botica de viagem, uma barraca de campo, uma mala de couro da Russia com
+quinhentos cartuchos carregados com chumbo, e outra com duzentos
+carregados com bala; um fato completo de camurça, botas de cautchouc,
+facas de matto, um rewolver Flaubert de doze tiros, com ornamentações de
+ouro, um estojo com todas as peças em prata, duas mantas inglezas e
+varios artigos todos diversos e uteis.
+
+Indubitavelmente o conde de Loreto gastára mais de cinco mil duros com o
+presente.
+
+Ernesto contemplou tudo com profunda melancholia.
+
+--É preciso acceitar, disse. Ia para Toledo com um equipamento mais
+modesto. Emfim, tanto melhor para o pobre Mauricio, que se se portar
+bem, será o meu herdeiro no dia em que eu morrer.
+
+Como se vê, Ernesto, não deixava nem um só momento a ideia da morte.
+
+N'aquella noite Ernesto escreveu a seguinte carta:
+
+
+«Senhor conde
+
+ «A opportunidade produz sempre bom resultado no animo impressionavel
+ das creaturas. Dispunha-me a sahir de casa com tenção de comprar
+ alguns apetrechos de caça, quando vi entrar o seu creado com o que
+ me enviou.
+
+ «Sem ter nada de Pedro Paulo Rubens, não agradecerei menos os
+ presentes que me fez, do que agradeceu o pintor flammengo os
+ donativos de Carlos I.
+
+ «Obrigado, pois, senhor conde, pela sua delicada offerta. Ámanhã
+ parto e talvez nos não tornemos a vêr, apezar dos bons desejos que
+ têem pelo meu restabelecimento. Ha doenças que cada hora qua passa
+ nos leva uma parte da existencia, são as incuraveis; e a minha é
+ d'essas que se chamam de morte.
+
+ «Não é o medo nem a apprehensão que me fazem dizer isto; sei bem
+ qual é o mal que me consome, e só terei illusões, quando tiver sido
+ tocado pelos dedos gelados da morte. Deus quer que os doentes do
+ peito sonhem com a vida nos ultimos momentos.
+
+ «Adeus, senhor conde. Em breve lhe enviarei por pessoa da minha
+ confiança o primeiro quadro que pintar, e assim o irei fazendo
+ successivamente, mas não receio, que a collecção seja muito grande.
+
+ «Cumprimentos á senhora condessa e ao senhor D. Ventura, e não
+ esqueça este desterrado voluntariamente, que prefere a solidão do
+ campo ao ruido e bulicio dos homens.
+
+ «Sempre seu amigo
+
+ _Ernesto Alvarez._»
+
+
+No dia seguinte, Ernesto, depois de fazer varias compras, entre as quaes
+se contava um vestido para a mulher de Mauricio, despediu-se dos amigos
+e entrou n'uma carruagem de primeira para Toledo.
+
+Ernesto possuia por uma unica fortuna, ao partir de Madrid, dez mil
+reales que lhe produziram os objectos e quadros que vendeu.
+
+Álêm dos quinhentos duros e dos presentes do conde de Loreto, levou uma
+grande caixa com garrafas de champagne, rhum, cognac, aguardente e bom
+café.
+
+--Esta caixa será a minha alegria, disse Ernesto, sorrindo-se para os
+amigos. O rhum concilia o somno e o champagne alegra os pensamentos.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+Mauricio esperava-o em Toledo.
+
+Carregou-se toda a bagagem em varios animaes e partiram para os montes,
+onde o caçador morava.
+
+
+
+
+CAPITULO XXII
+
+Vida de recordações
+
+
+A mulher de Mauricio não conhecia Ernesto; mas vendo-o chegar com o
+marido e toda aquella bagagem, disse:
+
+--É um principe que entra para nossa casa.
+
+E effectivamente, o pintor foi para aquelle honrado casal tanto como um
+principe, a julgar pela generosidade com que pagava os serviços que
+recebia.
+
+Petra ficou louca de contentamento, vendo sobre uma cadeira o presente
+que Ernesto lhe trouxera, e que constava de um vestido de lã, um lenço
+de seda e uns brincos de ouro e coral.
+
+Mauricio examinava tambem com satisfação uma espingarda de dois canos,
+de fabrico belga, e uma forte e boa faca de matto.
+
+--Mauricio, disse Ernesto, depois de entregar os presentes; estou muito
+doente e venho passar algum tempo comtigo. Sei que vives da caça.
+Nomeio-te meu caçador, e dou-te um duro por dia. Aqui tens
+adeantadamente dois mezes.
+
+Ernesto pôz na mesa sessenta duros.
+
+Mauricio e Petra olharam para o dinheiro, sem comprehenderem uma palavra
+de tudo aquillo.
+
+--A caça que matarmos, exceptuando algumas peças que Petra cosinhará, é
+tua e pódes vendêl-a e guardar o dinheiro. Eu comerei com vocês. Nada de
+cerimonias, o modesto cosido e uma vez por outra uma perdiz com molho de
+villão ou um coelho á caçadora, de que muito gósto, e por isso para
+prato darei doze reales diarios. O café e o vinho ficam por minha conta.
+Por agora aqui têem esse caixote, onde estão varias garrafas. Preciso
+que me cedam a sala, porque tenciono pintar alguns boccados. Tambem
+virei a precisar que de vez em quando vás a Madrid levar os quadros que
+pintar e comprar varias cousas que me tornem mais ameno este deserto.
+Emfim, meu caro Mauricio, sei que vou dar-te muitos incommodos, que vaes
+ter muitos carinhos para commigo, mas eu procurarei recompensar-te o
+melhor que puder.
+
+--Offerece-me muito, disse o caçador, visto poder vender uma parte da
+caça que matarmos, e então com o senhor que atira tão bem ou melhor do
+que eu!...
+
+--Mas estou doente, e já não tenho as infatigaveis pernas d'outros
+tempos; e muitos dias deixaremos de matar por causa d'ellas.
+
+Durante aquelle dia, Ernesto, Mauricio e Petra occuparam-se em
+arrumações, transformando a sala em atelier para o pintor.
+
+--Agora, meus amigos, só me falta advertil-os d'uma cousa, disse
+Ernesto. Estou doente, e como todos os doentes tenho as minhas
+rabugices. Quando estiver no meu quarto, depois de me chamarem duas
+vezes para comer e eu não vier, comam sem esperarem por mim.
+
+Mauricio e Petra notaram que Ernesto estava muito pallido e com mau
+parecer, que tinha uma tosse tão sêcca e importuna que não prophetisavam
+nada de agradavel para o seu hospede.
+
+Quando Mauricio e sua mulher recolheram ao quarto, ella disse:
+
+--Uhn! Parece-me que o senhor Ernesto não viverá por muito tempo.
+
+--O mesmo penso eu.
+
+--Sabes, Mauricio, que me parece que deve haver algum mysterio em tudo
+isto?
+
+--Anh! As mulheres não pensam n'outra cousa. Aqui não ha outro mysterio
+senão que o senhor Ernesto está doente e que se vem restabelecer.
+
+--Seja como fôr, que seja bem vindo, porque com elle veiu a fortuna.
+
+Mauricio não respondeu. Como a mulher, suspeitára que algum desgosto
+atormentava o seu hospede, mas mais prudente que Petra, disse de si para
+comsigo:
+
+--Dêmos tempo ao tempo que saberemos a verdade. Emfim, seja como fôr,
+Ernesto é bom rapaz e sinto-me satisfeito por vêl-o em minha casa.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+Ernesto estava fechado no quarto. Seriam onze horas da noite. O luar
+entrava pela janella que se conservava aberta. A brisa nocturna levava
+até elle, de envolta com as suas invisiveis pregas, o perfume das
+silvestres plantas do monte.
+
+Aos pés da cama, sobre duas pelles de carneiro, dormiam os dois cães que
+Ernesto baptisára com os nomes de Roma e Florença.
+
+O pintor, sentado junto de uma mesa, tinha na sua frente uma garrafa de
+cognac e um copo.
+
+Não illuminava o quarto outra luz senão a do astro da noite.
+
+De vez em quando Ernesto bebia um gole de cognac e levava a mão ao
+peito, respirando com difficuldade.
+
+--Ah! Sim, sim, dizia, falando comsigo. A solidão dos montes, é o que me
+convêm, porque longe da importuna charlatanice dos homens poderei
+dedicar a ella todos os momentos da minha vida. Quizera apagar da minha
+alma a recordação d'aquellas noites de Florença e arrancar dos meus
+labios o beijo de fogo que me queima o coração. Mas é impossivel! Cada
+vez a amo mais. Que seja feliz já que eu o não posso ser!
+
+Ernesto bebeu de um só trago o conteúdo que ainda tinha no copo e
+encheu-o novamente.
+
+--A embriaguez sempre me repugnou, continuou, mas é o meu unico recurso
+para esquecer. Que feliz é o homem que esquece!
+
+E Ernesto esvasiou o segundo copo, fazendo um gesto de repugnancia; mas
+dominando-se a si mesmo encheu-o pela terceira vez, despejando-o
+rapidamente.
+
+--Abraza-se-me a garganta, murmurou, mas é preciso que durma e que esqueça.
+
+E, levantando-se tirou uma garrafa de champagne do armario onde as
+arrumára, fez-lhe saltar a rolha, e bebeu com avidez, dizendo:
+
+--Este é que é o grande vinho! Vinde, sonhos côr de rosa! Vinde, ainda
+que seja uma mentira, uma illusão, fumo que desappareça ao sopro
+terrivel da realidade!
+
+E depois de exgotar a garrafa, deixou-se cahir na cama, onde não tardou
+muito que adormecesse, porque estava completamente embriagado.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+Mauricio e Petra levantaram-se com o sol, e viram, com grande assombro,
+ao passarem pelo quarto de Ernesto, que as janellas estavam abertas.
+
+--Sahiria tão cedo? disse Mauricio.
+
+E entrou no quarto.
+
+Ernesto dormia. Mauricio fechou a janella e sahiu nos bicos dos pés
+para o não despertar, mas toda a precaução foi inutil, porque Ernesto
+abriu os olhos e viu-o.
+
+--Ah! És tu? disse elle. Bons dias, Mauricio. Que bem que dormi.
+
+Mauricio reparou então que o seu hospede não se despira, e que sobre a
+mesa estavam duas garrafas despejadas.
+
+--Sabes, Mauricio, que estou com vontade de experimentar os meus cães?
+
+--Podemos dar uma volta, se quizer.
+
+--Mas é preciso ter alguma contemplação.
+
+--Andaremos só o que quizer.
+
+--Então vamos.
+
+E Ernesto poz a cartucheira, pegou na espingarda e chamou os cães.
+
+A uns quinhentos passos de casa, Roma e Florença levantaram os focinhos
+e moveram a cauda com mais viveza do que a usual.
+
+--Parece que os cães se sentem satisfeitos, disse Ernesto.
+
+--Têem bom faro. Já sabem que este terreno é muito abundante de caça; e
+estou crente que algum dia vou encontrar as perdizes dentro de minha casa.
+
+Os cães deram signal: Roma todo curvado com o focinho junto ao matto,
+Florença extendido. Roma encontrára uma peça de surpreza e Florença o
+rasto verdadeiro.
+
+Um bando de perdizes levantou-se então com estrepito do meio do matto á
+investida dos cães.
+
+Mauricio disparou, matando com o segundo tiro um perdigoto. Ernesto ia
+tão distrahido que não teve tempo de fazer fogo.
+
+Desde o rei ao batedor, desde o caçador ao armador, todos quantos
+abandonam as commodidades da sua casa e se dedicam aos prazeres da caça,
+são inimigos irreconciliaveis da perdiz; por isso a natureza a dotou com
+uma vista melhor que a do lynce, de um ouvido superior ao da lebre, e de
+um instincto de conservação tão grande que não ha animal que lhe ganhe.
+
+Se a perdiz fosse tão dorminhôca como o arganaz e tão indolente como a
+codorniz, teria desapparecido do reino animal antes de se inventar a
+polvora.
+
+O arganaz tem, comtudo, tanto engenho como somno; diga o ardil
+maravilhosamente inventado por elle para apanhar o incauto passarinho
+que vae pôr sobre elle, satisfeito por ter encontrado um ninho onde
+guardar os ovos.
+
+Mas deixemos esta digressão. Se algum dia as minhas occupações
+permittirem, escreverei um livro para os caçadores que contenha a parte
+agradavel e ridicula da caça, consignada na pratica de muitos annos de
+experiencia passados na agreste e grata solidão dos montes.
+
+Voaram as perdizes, surprehendidas no seu doce bem-estar, á sombra de um
+sobreiro, e como o violento e rapido vôo da perdiz excita e põe nervoso
+o caçador aficcionado, Mauricio exclamou:
+
+--Vamos a ellas, senhor Ernesto.
+
+--Sim, sim, vamos, já que não disparei.
+
+Mauricio esqueceu n'aquelle momento que levava por companheiro um doente
+fraco, e foi depressa, ou melhor dizendo, a correr pela encosta de um
+barranco.
+
+Ernesto fez esforços para o seguir mas a meio caminho largou a
+espingarda, extendeu os braços e cahiu desamparado. Tinha desmaiado.
+
+Mauricio deteve-se assustado, pegou no seu hospede ao collo e deitou a
+correr até casa, que não era longe. Petra ao vêl-o entrar, trazendo
+Ernesto nos braços, não poude conter um grito.
+
+Mauricio continuou o seu caminho e deitou Ernesto na sua cama, o qual,
+pouco depois, abriu os olhos, enviando um sorriso de agradecimento ao
+caçador.
+
+--Diabo! Que susto que me pregou, senhor Ernesto! Julguei que se
+despenhava pelo barranco.
+
+--Bem vês, Mauricio, que não presto para nada, nem mesmo para caçar. Já
+estou melhor. Mas em quanto não estiver em estado de te acompanhar,
+dedicar-me-hei a caça de espera. Agora tranquilliza-te, hoje em vez
+de caçar, pintarei. É preciso matar o tempo.
+
+Uma hora depois, Ernesto mais alliviado, tomava algum alimento e punha
+uma tela n'um cavallete.
+
+Pensou alguns minutos qual o assumpto de que trataria primeiro, e acabou
+por decidir-se, esboçando a scena que pouco antes succedêra no barranco.
+
+
+
+
+CAPITULO XXIII
+
+Uma caçada
+
+
+Durante oito dias Ernesto não tornou a pegar na espingarda. De manhã,
+pintava, á tarde, seguido pelos cães dirigia-se a um monte proximo de
+casa, sentava-se na parte mais alta e como gozava disfructando o
+panorama que aquelle sitio apresentava, passava largas horas immovel
+como uma estatua.
+
+Algumas vezes, já noite, Mauricio ia buscal-o e ambos regressavam a casa.
+
+Ao nono dia, Ernesto chamou Mauricio.
+
+--Desejo que vás a Madrid, disse-lhe, entregar este quadro á pessoa que
+te indicarei, mas preciso primeiro que matemos um javali, para offerecer
+á mesma pessoa.
+
+--Para isso é preciso fazermos uma espera toda a noite, e como o senhor
+está muito fraco...
+
+--Não te inquietes com a minha fraqueza; esperaremos. Preciso de um javali.
+
+--Posso matal-o sósinho, se quizer.
+
+--Não, não; quero acompanhar-te. Quando póde ser?
+
+--Esta noite; sei onde se vae banhar uma manada d'elles, e é infallivel
+matar-se algum.
+
+--Um só chega.
+
+--Pois matar-se-ha.
+
+--Então prepara tudo para esta noite.
+
+--Devo advertil-o de que o sitio onde vamos fazer a espera, fica a tres
+quartos d'hora de caminho d'aqui.
+
+--Não faz mal, iremos com antecedencia. Sahiremos cedo.
+
+--Bem, bem.
+
+Mauricio sahiu do quarto de Ernesto, meneando a cabeça em signal de
+desgosto, chegou á cosinha, onde estava sua mulher, e disse-lhe:
+
+--Petra, esta noite o senhor Ernesto quer que vamos á espera dos
+javalis: tem desejos de matar um. Por isso cearemos uma hora antes de
+pôr o sol. Talvez não voltemos em toda a noite.
+
+--Mas isso é uma loucura. O sr. Ernesto não está em estado de passar
+tantas horas ao relento da noite.
+
+--Então que queres, embirrou que me ha de acompanhar!
+
+--Mas não acho bôa a vida que leva para quem precisa restabelecer-se.
+
+Mauricio encolheu os hombros, e, sentando-se num banco, enrolou um cigarro.
+
+--Estamos em quarto minguante. Para matar uma ou duas peças é preciso ir
+aos charcos do barranco da Culebra, pois vão ali de noite beber agua e
+fossar no barro. O caminho não é dos melhores. Queira Deus que possa lá
+chegar.
+
+--Já lhe disseste isso? Porque não vae a cavallo?
+
+--Já, mulher, já; mas diz que quer ir a pé e quando elle teima não ha
+outro remedio senão obedecer.
+
+Petra approximou-se do marido, e, baixando a voz, disse:
+
+--Dize-me, Mauricio. Tu conhécel-o ha muito tempo?
+
+--Sim, cacei com elle muitas vezes e sempre foi o melhor e o mais
+generoso homem do mundo.
+
+--E tinha o vicio que tem agora?
+
+--Não, Petra, antigamente não bebia bebidas brancas, bebia sómente
+vinho, e isso mesmo pouco. Hoje, como sabes, quasi todas as noites...
+
+Mauricio deteve-se, dirigiu um olhar para a porta, e depois continuou:
+
+--Hontem reprehendi-o amigavelmente, dizendo-lhe que não lhe podia
+fazer bem beber tanto rhum, e elle, pondo-me uma mão no hombro, e
+sorrindo-se com expressão bondosa, respondeu-me:
+
+--Caro Mauricio, ha dôres tão terriveis, desgostos tão profundos, que
+para os esquecer algumas horas é preciso embriagarmo-nos. A minha doença
+não tem cura; deixa-me, pois, beber, esquecer, dormir.
+
+--Quando eu disse que havia aqui algum mysterio!... disse Petra.
+
+--Tambem me parece que tens razão; aqui deve haver mysterio.
+
+--Sabes o que calculo? Que tudo isto deve ser obra de mulher.
+
+--E porque calculas que seja obra de saias?
+
+--Vaes vêr. Outro dia entrei no quarto para o tratar, como de costume, e
+encontrei debaixo da almofada uma fita de seda, e um boccado de tela,
+onde estava pintada uma cabeça de mulher extremamente formosa. Não tive
+tempo para mais do que olhar rapidamente para estes objectos e tornal-os
+a pôr no mesmo sitio em que os encontrei quando o vi entrar,
+precipitadamente, dirigir-se para a cama, pegar n'elles e sahir do
+quarto do mesmo modo, olhando-me de um modo estranho, como se quizesse
+adivinhar se eu tinha visto. Fiz-me desentendida, e continuei arrumando
+o quarto.
+
+--Que curiosas são as mulheres.
+
+--Juro-te que só por casualidade...
+
+--Emfim, seja como fôr, visto que elle nada nos disse, nos não lh'o
+devemos perguntar.
+
+Como se vê a conducta de Ernesto causava viva curiosidade ao honrado
+casal.
+
+Ao cair da tarde Ernesto e Mauricio levantaram-se da mesa.
+
+--Levamos Roma e Florença? perguntou o pintor.
+
+--Parece-me melhor deixal-os em casa, respondeu Mauricio; não estão
+costumados ás esperas, e poderão espantar-nos a caça. Levarei antes o
+meu podengo para que procure a presa no caso de ficar ferida. _Currito_
+(assim se chamava o cão de Mauricio) deita-se a meus pés e não se move
+d'ahi.
+
+--Vamos quando quizeres.
+
+Mauricio carregou com escrupuloso cuidado a espingarda e guardou um
+frasco de rhum no bolso. Ernesto pegou na sua e sahiram.
+
+O sol começava a declinar.
+
+--Temos tempo, disse Mauricio. D'aqui até aos charcos levaremos quando
+muito tres quartos de hora. Reconheci esta manhã o terreno e calcúlo
+pelas pégadas que são uma femea com sete a oito filhos, e dois machos
+que não devem ter menos de dez annos. Os machos veem sós, antes ou
+depois da femea. Parece-me que nos divertiremos, mas é preciso ter muita
+paciencia, porque apezar de todas as rezes abandonarem as tocas quasi á
+mesma hora, umas estão mais longe do que outras do barranco e chegam por
+conseguinte mais tarde. Tenha cuidado em fazer fogo sobre a peça antes
+d'ella entrar n'agua. Se cair morta fique quieto, porque quando o charco
+estiver silencioso, em poucos minutos apresentar-se-nos-ha outra, e
+assim successivamente se podem disparar alguns tiros durante a noite. O
+sitio onde vamos é bom, e estaremos perfeitamente collocados.
+
+Ernesto ouvia satisfeito as lições que lhe dava aquelle homem
+experimentado.
+
+Mauricio que como todo o caçador de profissão tinha uma vista
+privilegiada, deteve-se, inclinou-se para reconhecer o caminho, e disse:
+
+--Ola! Por aqui passou um veado de _dez pontas novas_; aqui ha pégadas
+recentes; os córtes na herva são frescos. A femea caminhava mais á
+direita: passou por aqui.
+
+--Mas como diabo conheces se é femea ou macho? perguntou Ernesto,
+admirado da certeza com que Mauricio falava.
+
+--Isso salta bem a vista. Um montanhez practico nunca se engana. O veado
+tem o passo maior do que a corça, e deixa a pégada mais profunda,
+caminha com mais regularidade, e colloca a pata trazeira sobre a pégada
+da pata deanteira. A corça tem o pé mal feito, os seus passos são mais
+curtos, e por conseguinte, não chega com as patas trazeiras ás pégadas
+das patas deanteiras. Emquanto ao conhecimento pelas pégadas, é
+unicamente devido á grande practica. Quando se segue um rasto pelas
+pégadas, o caçador deve conhecer se o veado que persegue é _estaquero_,
+isto é, se lhe começam a sahir os paus, tem um anno; _enodis_, tem tres
+a quatro annos, _diez condiles nuevos_, se entrou nos seis annos, ou
+_ciervo viejo_, se tem mais de dez annos. A estes conhece-se facilmente;
+têem os pés deanteiros mais desenvolvidos do que os trazeiros.
+
+Depois d'estas explicações que deixaram Ernesto satisfeito, receou não
+as poder pôr em practica sem commetter grandes erros.
+
+De vez em quando o caçador dirigia um olhar furtivo ao seu companheiro,
+cuja pallidez e difficil respiração o inquietavam.
+
+A meio da ladeira, que tinham que transpôr para chegarem aos charcos,
+situados em um dos barrancos, Mauricio deteve-se e disse com manifesto
+interesse:
+
+--Senhor Ernesto, vejo que está muito cançado. Quer encostar-se ao meu
+braço?
+
+--Não preciso, mas vamos mais devagar, se te parece.
+
+Como quizer.
+
+Quando chegaram ao cume, Ernesto teve necessidade de se sentar e,
+encostando os cotovellos sobre os joelhos, deixou cahir a fronte entre
+as mãos.
+
+O caçador não disse nada; de pé, immovel, ficou contemplando Ernesto com
+tristeza.
+
+Mauricio não tinha palavras, mas sobrava-lhe coração para compadecer-se
+do seu hospede, a quem julgava gravemente enfermo.
+
+--Podemos continuar, disse Ernesto, levantando-se.
+
+--Agora o caminho é mais facil, respondeu Mauricio. Os charcos estão
+n'esse barranco; antes de um quarto de hora estaremos commodamente
+sentados nos nossos postos.
+
+Mauricio seguiu por uma vereda aberta entre a matta. Ernesto caminhava
+atraz.
+
+De vez em quando o caçador voltava a cabeça para vêr se o seu
+companheiro o seguia.
+
+Quando chegaram aos charcos ainda restavam alguns instantes de dia. As
+magestosas sombras da noite avançavam com rapidez, mas a lua ia
+rapidamente tornal-as menos escuras, pois o seu disco despontava já no
+horisonte.
+
+--Parece-me conveniente que fiquemos juntos, porque assim quando estiver
+cançado voltaremos para casa, disse Mauricio.
+
+--Mas mataremos menos caça.
+
+--Quem sabe! Podem entrar juntas e então cada qual escolhe a sua.
+
+Mauricio conhecia varios esconderijos em torno do charco e escolheu,
+pelas recentes pégadas dos javalis, o que lhe pareceu melhor; dobrou o
+capote, e estendeu-o no chão para que Ernesto estivesse mais
+commodamente e esperaram calados.
+
+A noite é mais magestosa, mais imponente, mais bella no meio do Oceano
+ou n'uma montanha, do que nas ruas de Madrid. Nas grandes cidades vê-se
+por toda a parte a mão do homem, mas no mar ou na montanha vê-se a de Deus.
+
+Ernesto e Mauricio esperavam no mais profundo silencio. O pintor
+entretinha-se contemplando o magnifico astro da noite que subia
+magestosamente pelo céu enchendo o espaço de poetica e melancholica
+luz, que cahindo como chuva de perolas sobre as armadas das arvores
+e sobre as silenciosas aguas do charco, dava um tom encantador á paisagem.
+
+Ernesto, como pintor, pensava em fazer um estudo d'aquelle logar e
+pintar depois um quadro; mas ao mesmo tempo pensava na mulher do homem
+que se compromettera a comprar-lhe tudo quanto pintasse durante a sua
+estada nos montes de Toledo.
+
+A presença da lua, o imperceptivel movimento das ramadas dos azinheiros,
+o silencio da noite que o rodeava, fizeram-lhe recordar Florença. Fechou
+os olhos para sonhar acordado, e os seus labios entreabriram-se em doce
+extasis, como se fôsse a dar e receber um apaixonado beijo de amor.
+
+N'aquelle momento para elle não existia mais do que o presente. A sua
+vida era uma recordação; a sua alma apaixonada apresentava-lhe com todas
+as côres da verdade as scenas apaixonadas e perdidas para sempre, causa
+da sua desgraça, origem da sua morte.
+
+Se tivesse entrado no charco um bando de cincoenta rezes, Ernesto não
+ouviria; mas, felizmente tinha ao seu lado Mauricio, caçador de
+profissão, que sem ter a imaginação preoccupada com outra cousa que não
+fosse o fim para que fôra até alli, estava com o olhar fixo, o ouvido
+attento e a espingarda prompta a despedir a morte e como o verdadeiro
+caçador que quando faz uma espera tem o ouvido e a vista tão perspicaz
+como a da perdiz, e por isso sem duvida Ernesto sentiu que o seu
+companheiro lhe tocava no braço.
+
+Ernesto abriu os olhos.
+
+--Acorde, que já as ouço.
+
+--Não estou a dormir, respondeu o pintor, mas não ouço nada.
+
+--Pois já se approximam, tenha a certeza, ainda estão longe, e são
+femeas; conhecem-se pelo barulho que fazem. Os machos veem sempre mais
+silenciosos.
+
+Ernesto applicou o ouvido, e, depois de um segundo de immobilidade,
+meneou a cabeça dizendo:
+
+--Pois eu não ouço nada.
+
+--Sim? Pois tenha paciencia que não tardará muito que tenha de tapar os
+ouvidos, porque a musica d'ellas, quando andam em manadas, não é por
+certo das mais agradaveis. Veem a entrar por aquella clareira que está
+na nossa frente. Antes de se metterem n'agua, de que tanto gostam, param
+para conhecerem o terreno. Então deve fazer fogo, apontar á maior que
+ficar a sua esquerda; eu entreter-me-hei com a direita a vêr se,
+disparando ao mesmo tempo, matamos duas.
+
+E Mauricio, collocando o bico do pé esquerdo sobre o de Ernesto, disse:
+
+--Quando carregar com o meu pé, faça o _gosto ao dedo_ e faça fogo. E
+agora silencio que já estão perto.
+
+Dois minutos depois, Ernesto ouvia a algazarra que Mauricio lhe annunciára.
+
+Esperaram, pois, pelo momento opportuno que se não devia fazer esperar
+muito.
+
+No sitio que Mauricio indicára appareceu de repente uma femea muito
+grande seguida de seis javalis pequeninos cujas desegualdades de tamanho
+indicavam ser de duas ninhadas differentes.
+
+Ernesto pudéra ter feito fogo á femea; estava uns cinco passos afastada
+dos filhos, levantando a cabeça em direcção aos charcos.
+
+O pintor olhou para o seu companheiro como que a interrogál-o, mas o
+caçador indicou com um movimento de olhos que esperasse. E
+effectivamente a uns vinte metros de distancia do logar em que estava a
+femea, abriu-se uma clareira e appareceu um javali quasi do dobro do
+tamanho da femea.
+
+A lua estava tão clara que os caçadores viram perfeitamente os animaes.
+
+Ernesto sentiu o pé de Mauricio comprimir o seu, e como tinha a
+espingarda apontada, disparou.
+
+As duas detonações produziram no espaço um só echo.
+
+A bala de Mauricio foi tão bem apontada que o javali deu um salto,
+caindo sem vida depois de soltar um grunhido de raiva. A femea, a que
+Ernesto apontára foi ferida na cabeça; deu duas voltas, quiz fugir, mas
+foi cair junto ao charco; depois fez um esforço supremo, levantou-se
+novamente, entrou na agua para tornar a cair revolvendo-se nas ancias da
+morte, soltando grunhidos desesperados que pouco a pouco foram
+enfraquecendo.
+
+Os demais tinham desapparecido como por encanto.
+
+Mauricio ouvia as palpitações do coração de Ernesto cujo ruido e
+precipitação o assustaram.
+
+--Está peor? lhe perguntou.
+
+--Não, não; é o prazer que experimento n'este momento. Se tornasse a
+renascer em mim a paixão da caça, talvez esquecesse uma historia que me
+assassina, que será a causa da minha morte.
+
+O pintor revelára a Mauricio n'um arranco de enthusiasmo, a causa da sua
+melancholia, a origem da sua doença.
+
+--E que fazemos agora? perguntou Ernesto.
+
+--Primeiro que tudo castrar o macho para que sangre e a carne perca o
+gosto a bravo.
+
+Mauricio levantou-se, tirou a faca de matto da bainha, e sahiu do
+esconderijo, dirigindo-se para o sitio onde estava o javali.
+
+Ernesto segui-o, examinando com o mais particular interesse todas as
+operações que Mauricio fazia ás duas peças mortas.
+
+O caçador depois de lhe abrir todo o ventre e de lhe tirar os
+intestinos, pendurou-os pelos pés para que sangrassem e ficassem limpos.
+Depois lavou as mãos na agua do charco, e disse:
+
+--Agora diga-me se quer dar por terminada a caçada ou quer fazer nova
+espera, apezar de me parecer melhor, o primeiro caso, pois é preciso
+esperar pelo menos duas horas até que volte outro javali.
+
+--Vamos para casa. E as rezes?
+
+--Ficam ahi. Venho logo buscal-as com o meu cavallo.
+
+--Então dá-me um gole de rhum, e a caminho. Passei um bom boccado.
+
+Ernesto bebeu e deu o frasco a Mauricio. Depois dirigiram-se para casa
+onde o pintor chegou bastante fatigado.
+
+
+
+
+CAPITULO XXIV
+
+Uma carta e um annel
+
+
+Ernesto deixou-se cahir na cama, e como sempre, o seu pensamento
+occupou-se de Amparo.
+
+--Ámanhã, disse, falando comsigo, ouvirá pronunciar o meu nome, e no
+fundo da sua alma renascerá a recordação das noites de Florença. Os seus
+labios, vermelhos como bagos de romã, recordar-se-hão tambem d'esse
+beijo fatal que me fez o mais desgraçado dos homens, e pela mente do
+conde de Loreto cruzará debil, mas ameaçador, o phantasma de uma duvida,
+a sombra de uma suspeita.
+
+Ernesto tinha sempre na mesa de cabeceira uma garrafa de rhum; extendeu
+o braço, pegou na garrafa e bebeu um gole.
+
+--Ha quasi um mez sem a vêr, continuou, e comtudo a ausencia não apagou
+o fogo devorador d'esta paixão que me abraza. O conde de Loreto tinha
+mais direito do que eu para ser amado, mas indubitavelmente não a ama
+tanto. E que importa isso ás mulheres? O conde é rico, nobre, e a
+vaidade é o dominio tentador do bello sexo. Se o amor é o fogo d'alma
+que transmitte calôr ás ideias dos homens de genio, devo fazer grandes
+quadros.
+
+E Ernesto soltou uma gargalhada, pegou novamente na garrafa, e
+quasi a despejou de um trago.
+
+Na sua physionomia, no seu olhar, assomaram os symptomas da embriaguez
+produzida pelo alcool.
+
+Com a lingua, presa e balbuciante, começou a falar em voz alta.
+
+--A luz dos seus bellos olhos é o unico reflexo que illumina as
+profundas trevas da minha alma, a que acompanha a fria soledade do meu
+coração; as seis lettras do seu nome, as notas mais harmoniosas que
+resôam no fundo do meu peito. Insensato! A tua vida não é mais do que um
+sonho, que se desvanece ante o sopro da realidade. Tu recebeste tres
+beijos, durante tres noites de luar; aquelles beijos encerravam o veneno
+do teu sangue. A tua vida não é vida; o teu amor é só uma recordação.
+Onde está a morte? Porque tarda tanto? Porque não chega, quando a espero
+de braços abertos?
+
+Ernesto fechou os olhos. Os seus labios entreabriram-se para deixar
+passar um suspiro, e ficou dormindo pensando em Amparo.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+Mauricio entrou no quarto do seu hospede ás cinco da manhã.
+
+Ernesto levantou-se.
+
+--Está tudo prompto para partires? perguntou.
+
+--Sim senhor; tenho o javali grande preso convenientemente ao cavallo. Á
+femea, segundo as suas ordens, tirei-lhe a cabeça e o lombo; o resto
+fica em casa.
+
+--Espera, disse Ernesto.
+
+E pegando n'uma carta que estava sobre a mesa e n'uma tira de papel,
+continuou:
+
+--Entregas esta carta, o javali grande e estes dois quadros ao senhor
+conde de Loreto, rua do Barquillo, n.º..., e comprarás tudo o que vae
+mencionado n'esta lista.
+
+Ernesto abriu uma gaveta da commoda, tirou dez moedas de cinco duros e
+entregou-as a Mauricio.
+
+Depois escreveu rapidamente n'uma folha de papel:
+
+
+«Meus bons amigos
+
+ Marcial e André
+
+ «Remetto-lhes uma cabeça de javali que cosinharão no restaurante do
+ _Armiño_ para almoçarem com alguns amigos, bebendo por este caçador
+ _selvagem_ que se não esquece de vocês.
+
+ «Sempre amigo
+
+ «_Ernesto._»
+
+--A cabeça e o lombo da femea entrega-os onde diz este envellope, rua do
+Prado. Vae com Deus e vem ámanhã, se te fôr possivel.
+
+Mauricio sahiu, despedindo-se da mulher, e encaminhou-se para Toledo,
+onde devia tomar o comboio de Madrid.
+
+Ernesto pegou na espingarda, chamou os seus cães Roma e Florença, e
+sahiu tambem em busca de perdizes, prevenindo Petra de que não viria
+almoçar antes do meio dia.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+O conde de Loreto, Amparo e D. Ventura estavam almoçando quando entrou
+um creado dizendo-lhes que estava á porta um homem que parecia um
+montanhez, que trazia uma carta, um javali e uns quadros.
+
+--Ah! exclamou o conde, Ernesto cumpriu a sua palavra. Dize a esse homem
+que suba e tragam vocês o javali para o vêrmos.
+
+Dois creados trouxeram o javali para cima de uma mesa.
+
+--Soberbo animal! exclamou Fernando. Pelas cerdas e pelos dentes bem se
+vê que deve ser velho.
+
+--Oito annos, respondeu Mauricio. Vale bem a onça de chumbo que lhe deu
+a morte.
+
+--Pelo que vejo, Ernesto diverte-se pelos montes?
+
+--Diverte-se, exclamou o caçador, tudo menos isso; está muito
+doente, dorme pouco e não tem appetite. A bem dizer que se alimenta só
+com café e rhum. Tenho cá um palpite em que não morrerá de velho.
+
+Todos escutavam com interesse as palavras de Mauricio.
+
+--Disseram-me que traz uma carta e uns quadros, disse Fernando.
+
+--A carta está aqui: os quadros deixei-os n'aquella casa.
+
+O conde leu em voz alta o seguinte:
+
+
+«Senhor conde de Loreto
+
+ «Ignoro ainda se é proveitosa ao meu corpo esta soledade em que vivo
+ ha vinte dias, mas conheço que é ao espirito.
+
+ «No cume d'estas montanhas não se vêem homens, não se encontra a
+ animação nem o bulicio das grandes cidades, mas o ar é mais puro, o
+ horisonte mais limpido, o ambiente mais perfumado e respira-se com
+ mais facilidade.
+
+ «Seja como fôr, espero sem sobresalto que se resolva o problema da
+ minha enfermidade, sem me occupar muito se será ou não vantajoso o
+ desenlace.
+
+ «Com o portador d'esta, caçador infatigavel e amigo leal, em casa de
+ quem vivo no meio d'estes barrancos solitarios, remetto-lhe o
+ primeiro javali que matámos e dois quadros sobre assumptos de caça,
+ genero a que tenciono dedicar-me emquanto tiver forças para
+ sustentar o pincel.
+
+ «Não marco preço aos quadros que lhe envio, porque d'isso falaremos
+ depois de lhe mandar doze. Demais, ainda que pobre, hoje não preciso
+ de dinheiro, mas avisál-o-hei quando precisar. Seja, portanto, o meu
+ banqueiro.
+
+ «Para lhes provar que não os esqueço, desejava que me concedessem
+ auctorização para fazer trez retratos de memoria, ainda que se
+ admire ao vêl-os, o meu leal amigo D. Ventura.
+
+ «Deponha aos pés da senhora condessa os meus respeitos, dê um abraço
+ em seu sogro e não esqueça que n'este deserto fica esperando
+ occasião de lhe ser util
+
+ «o seu amigo e obrg.º
+
+ «_Ernesto Alvarez._»
+
+
+Amparo ouvira lêr a carta sem descerrar os labios, mas agradecia do
+fundo da alma a fórma delicada como estava escripta.
+
+Só lhe prendeu a attenção a auctorização que pedia para pintar os tres
+retratos, entre os quaes devia figurar o seu.
+
+--Quando tenciona voltar para Toledo? perguntou o conde ao caçador.
+
+--Desejava ir esta noite no comboio das sete e quarenta. Os meus
+affazeres em Madrid, depois de sahir d'esta casa, resumem-se apenas a
+algumas compras de que o senhor Ernesto me encarregou, e entregar uma
+cabeça de javali e um lombo a uns senhores que moram na rua do Prado.
+
+--Tem algum inconveniente em me dizer que objectos o senhor Ernesto o
+encarregou de comprar.
+
+--Não, senhor; aqui está a relação.
+
+E Mauricio entregou-a ao conde que depois de lêr, disse:
+
+--Meu amigo, tenho em casa tudo quanto Ernesto deseja; não precisa,
+pois, ir comprar cousa alguma. Agora vá almoçar emquanto escrevo uma
+carta, depois irá levar a cabeça a esses senhores, e meia hora antes do
+comboio partir encontrará na estação, despachado para Toledo, tudo
+quanto Ernesto pede.
+
+Mauricio com sinceridade natural, ia entregar ao conde o dinheiro que
+Ernesto lhe dera.
+
+--Não, esse dinheiro entregue-o a quem lh'o deu, e demais, far-me-ha o
+favor de acceitar esta _onza_,[2] para comprar um presente a
+sua mulher.
+
+Mauricio tentou recusar a _onza_, mas o conde obrigou-o a acceitál-a.
+
+Depois, conduziram-n'o a outra casa onde lhe serviram o almoço.
+
+O conde escreveu entretanto a seguinte carta.
+
+
+«Amigo Ernesto
+
+ «Os quadros são bellos e o javali soberbo. Quando os homens têem
+ talento trabalham em todos os generos. Obrigado pela sua boa
+ memoria, obrigado, porque se não esqueceu de nós, apezar do mal que
+ lhe temos feito.
+
+ «Pede-me auctorização para fazer tres retratos; concedo-lh'a
+ satisfeito não só por lhe ser agradavel a si como tambem ás pessoas
+ que vão ser retratadas nas telas.
+
+ «Desejava passar uma temporada na sua companhia para caçarmos
+ juntos, e para vêr se o convencia a abandonar essa vida solitaria,
+ principalmente durante os quatro mezes de rigoroso inverno.
+
+ «Até então veremos o que posso conseguir. Hei de fazer a diligencia.
+
+ «Fico esperando os doze quadros que me annuncia na sua carta, o que
+ me prova que se sente animado para o trabalho.
+
+ «Adeus, meu amigo, e não esqueça que lhe desejamos todas as
+ propriedades.
+
+ «Sempre seu amigo,
+
+ «_Fernando del Villar._»
+
+
+O conde leu a carta á mulher e disse:
+
+--Agora, minha querida, escreve quatro linhas ao nosso amigo; talvez
+isso lhe faça bem.
+
+Amparo olhou o marido, receando que aquelle desejo envolvesse uma
+intenção pouco agradavel.
+
+O conde sorriu-se porque comprehendêra a duvida da mulher. Mas
+rodeando-lhe a cintura, e, dando-lhe um beijo apaixonado, disse-lhe:
+
+--Leio nos teus olhos, minha querida, a desconfiança, e sinto-o; isso
+indica-me que me amas muito, mas que me conheces pouco. Escreve a
+Ernesto, sou eu que t'o peço. Quatro palavras tuas far-lhe-hão bem, o
+desgraçado ama-te de toda a sua alma. Muito desgraçado o fizemos. Não
+sejamos egoistas até ao ponto de sermos malvados gozando com a sua
+agonia, com a sua dôr, que só terá fim com a morte. Escreve-lhe, pois, o
+que quizeres, Amparo.
+
+O conde sorrindo-se com bondade, e dando segundo beijo na esposa,
+continuou:
+
+--Não lerei o que escreves. Adeus. Quando acabares fecha a carta e
+entrega-a tu mesma a esse homem.
+
+E o conde sahiu.
+
+Amparo ficou com a carta na mão e como que pregada ao chão.
+
+Aquella confiança que o marido acabava de mostrar era verdadeira ou um
+laço?
+
+Amparo não podia crêr na hypothese de um laço n'um homem tão generoso
+como Fernando.
+
+O conde de Loreto não era um homem vulgar. Amava a mulher, perdoára-lhe
+o seu coquettismo com Ernesto antes de o conhecer a elle, calculava as
+dôres e os soffrimentos do pintor a quem estimava devéras e por isso
+disséra á mulher que escrevesse.
+
+Amparo sentou-se, pegou na penna e durante dez minutos não soube como
+começar.
+
+De subito teve uma ideia. Os olhos brilharam-lhe, o semblante
+reanimou-se-lhe: dir-se-hia que receava transmittil-a ao papel, mas
+fazendo um esforço, e com mão mal segura, escreveu:
+
+
+«Senhor Ernesto
+
+ «Ja que meu marido o auctoriza a fazer os tres retratos, e julgando
+ que d'elles um será o meu, peço-lhe, (queira perdoar este capricho
+ de mulher), que se não esqueça do vestido que tinha em Roma quando
+ veiu offerecer-me o que fizera, e que ainda conservo sobre o fogão
+ do meu gabinete.
+
+ «Trate-se, porque desejamos em breve vêl-o completamente restabelecido.
+
+ _Amparo._»
+
+
+A condessa fechou a carta e foi entregál-a a Mauricio, que já tinha
+acabado de almoçar.
+
+--Entregue esta carta ao senhor Ernesto, mas só a elle, disse-lhe.
+
+--Sim, senhora condessa.
+
+Amparo ia a sahir, mas deteve-se.
+
+--É casado? perguntou.
+
+--Sim, minha senhora.
+
+--Então faça favor de dar da minha parte este annel a sua mulher, e
+recommendar-lhe que trate do senhor Ernesto com todo o carinho.
+
+E Amparo como que envergonhada por aquelle arranco, tirou um annel do
+dedo, entregou-o a Mauricio e sahiu, dizendo para comsigo:
+
+--Assim comprehenderá que me não é indifferente o seu soffrimento e que
+a sua morte me ha de custar algumas lagrimas.
+
+Mauricio ficou um momento immovel. Pensava se aquella mulher tão formosa
+teria alguma coisa que vêr com os padecimentos do seu hospede.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+Á hora indicada pelo conde, Mauricio estava na estação, onde um
+creado lhe entregou uma guia do caminho de ferro.
+
+--Que é isto? perguntou elle.
+
+--Da parte de meu amo, o senhor conde de Loreto. Com esta guia lhe
+entregarão em Toledo, pois que foram expedidas em grande velocidade,
+duas caixas e um caixote grande. N'ellas vae tudo quanto o senhor
+Ernesto encommendou.
+
+Mauricio guardou a guia na carteira e entrou para a _gare_, tomando
+então logar n'um compartimento de terceira classe.
+
+Durante a viagem, o caçador olhou muitas vezes para o annel, e pensava
+em quem lh'o dera, dizendo de si para comsigo:
+
+--Parece-me que vou descobrindo alguma cousa do segredo!
+
+
+
+
+CAPITULO XXV
+
+O regresso de Mauricio
+
+
+Quando Ernesto sahia só, afastava-se pouco da habitação de Mauricio.
+
+Muitas vezes pendurava a espingarda no ramo de um azinheiro, e, subindo
+com difficuldade ao mais alto monte, sentava-se ahi, ficando largas
+horas a contemplar a paisagem; outras, sem temer o perigo, descia ao
+mais fundo dos barrancos, agarrando-se ás plantas, gozando tambem
+n'aquella silenciosa soledade, onde o menor suspiro faz na concavidade
+das rochas um echo como se repetisse a voz humana.
+
+Então esquecia os cães, a espingarda e a caça, e a recordação
+inolvidavel de Florença preenchia-lhe por completo a sua imaginação.
+
+O seu amor por Amparo era tão constante, tão verdadeiro, tão grande,
+que, enchendo todo o seu ser, formára n'elle uma segunda natureza tão
+poderosa que era impossivel separar-se d'elle sem perder a vida.
+
+Conhecia, comtudo, toda a loucura da sua paixão, e acceitára-a como se
+acceita uma d'essas doenças que se não procura e que nos causa a morte.
+
+Se Ernesto tivesse encontrado uma Heloisa, a terra para os dois amantes
+teria sido um paraiso, mas encontrára uma _coquette_ que lh'a
+converteu em pantanoso charco, que lhe envenenou o sangue ao aspirar os
+maleficos miasmas que exhalava.
+
+O seu mal era irremediavel. O amor tem muitas vezes a sua dose de veneno
+que causa a morte.
+
+Mas, apezar d'isso, o coração de Ernesto era tão grande, tão nobre, tão
+generoso, que não odiava aquella que era seu tormento, antes pelo
+contrario, amava-a cada vez mais.
+
+Talvez que ainda lhe restasse um pouco de esperança, e d'essa esperança
+emanava a doce compaixão que sentia por Amparo.
+
+Por outro lado, o conde de Loreto era um homem digno de ser amado. Quão
+doloroso teria sido para Ernesto vêr-se preferido por um homem indigno,
+por um ser desprezivel, como acontece tantas vezes na vida!
+
+Quantos exemplos se podem citar de levianas mulheres que espesinham a
+honra de homens illustres nos braços de amantes despreziveis!
+
+Ernesto reconhecia no conde grandes qualidades, e isto fazia-lhe menos
+culposa a conducta de Amparo. Conhecia tambem que, se o conde não fosse
+um homem superior e menos conhecedor do mundo, sabendo os antecedentes
+de Roma e Florença e a parecença de Esther com a mulher, tomaria isso
+por uma grave offensa e o assumpto não teria ficado assim. Talvez um
+duello, e, por conseguinte, o escandalo que segue casos d'esta natureza,
+teria augmentado as difficuldades a Ernesto para chegar até Amparo,
+para ser talvez amado por ella com a vertiginosa paixão do adulterio.
+
+Com a conducta prudente, digna e sabia do conde, evitou todos os perigos
+que ameaçavam o marido, a mulher e o amante, cortando com um só golpe a
+cabeça á repugnante maledicencia, que já comecava a levantar-se,
+sorrindo-se de uma maneira satanica.
+
+Por isso, Amparo e Ernesto admiravam o procedimento do conde de Loreto,
+e este por seu lado, podia dormir tranquillo, com a segurança de que sua
+mulher não o trahiria. E emquanto a Ernesto, sabia que de rival
+intransigente se convertêra em amigo leal.
+
+Amparo, comtudo, passou mal algumas noites. Amava com delirio o marido,
+mas convencida de que ella era a causadora da doença de Ernesto, temia o
+momento em que uma carta participasse a sua morte, isto é, que em seu
+peito entrasse o remorso, que tira o somno, que entristece a alma, que
+põe uma nuvem no coração.
+
+..........................................................................
+
+Mauricio chegou ao monte ao amanhecer do dia seguinte; Petra acabava de
+se levantar, e ouvindo assobiar correu a abrir a porta.
+
+O caçador não vinha só. Acompanhava-o um homem com tres burros
+carregados com os objectos que o conde enviára a Ernesto.
+
+--Tudo isto é para nos? perguntou Petra, depois de abraçar o marido.
+
+--É para o senhor Ernesto, que lh'o manda um amigo de Madrid. Mas tambem
+trago um presente para ti.
+
+--Isso já eu esperava porque os bons maridos não se esquecem das
+mulheres quando vão ás grandes cidades.
+
+O homem começou a descarregar as caixas e o caixote, deixando tudo junto
+da porta.
+
+Mauricio entretanto metteu dois dedos da mão direita no bolso do collete
+e tirou a _onza_ que o conde lhe dera, dizendo em voz baixa:
+
+Pega: isto offereceu-me aquelle senhor a quem levei o javali e os
+quadros como gorgeta. É para comprares o que quizeres.
+
+--Uma _onza_! Fizeste bem em a não trocares, porque a mulher cuidadosa
+pensa sempre no dia de ámanhã, e, quando apanha á mão uma moeda d'estas,
+guarda-a como um remedio contra as necessidades da vida.
+
+--E o senhor Ernesto? perguntou Mauricio.
+
+--Ainda dorme.
+
+--Hontem sahiu?
+
+--Sim, um boccadito de manhã. Voltou muito cançado e comeu pouco.
+Coitado! está cada vez mais triste. Esta noite entrei no quarto para vêr
+se queria tomar alguma coisa, e encontrei-o com os olhos inchados,
+enegrecidos, como se tivesse chorado. Muito grande deve ser o seu desgosto.
+
+Mauricio guardou silencio; e como o homem já tinha descarregado todos os
+objectos pagou-lhe, dizendo:
+
+--Petra, dá a este homem alguma coisa de comer e de beber.
+
+Mauricio entrou em casa, dirigindo-se ao quarto de Ernesto, e, como
+reinava o mais profundo silencio, pensou que se não respondesse,
+chamando baixinho, seria melhor deixal-o dormir.
+
+Chamou, pois, á porta suavemente, mas a voz do hospede respondeu:
+
+--Quem é?
+
+--Sou, eu, senhor Ernesto.
+
+--Ah! Mauricio! Espera que vou abrir.
+
+Ernesto saltou da cama, abriu a porta e tornou a deitar-se.
+
+--Bem vindo sejas, Mauricio. Não te esperava tão cedo. Abre a janella e
+dá-me conta da tua missão.
+
+--O conde de Loreto é um sujeito muito generoso, disse Mauricio. Depois
+de me receber muito bem e de me dar de almoçar como a um principe,
+deu-me uma _onza_ em ouro.
+
+Mauricio continuou contando tudo quanto se passára em casa do conde e
+terminou:
+
+--Emquanto a senhora condessa entregou-me esta carta para si e
+perguntando-me se era casado, disse-me: Pois dê este annel da minha
+parte a sua mulher para que tratem com muito cuidado o senhor Ernesto.
+
+O pintor sentiu-se commovido até ao fundo d'alma. Mauricio comprehendeu
+o effeito das suas palavras, e, tirando a carta e o annel, entregou tudo
+ao hospede.
+
+--Mas este annel é para tua mulher, disse Ernesto, fixando-o com um
+olhar penetrante.
+
+Mauricio sorriu-se e disse:
+
+--Isso é uma joia bôa de mais para quem está todo o dia a trabalhar.
+Póde guardal-a. E de mais, Petra não sabe de nada, e olhos que não vêem
+coração que não sente.
+
+Ernesto não poude conter a sua alegria e lançou-se nos braços de
+Mauricio, cujo procedimento delicado lhe causou profunda admiração.
+
+--Ah! já me esquecia, disse Mauricio. Tambem os seus amigos da rua do
+Prado me deram esta carta para si.
+
+E, entregando a carta, sahiu do quarto afim de deixar só o seu hospede,
+de quem começava a descobrir o segredo.
+
+Ernesto, ao vêr-se só, beijou repetidas vezes o annel, apertando-o
+depois com delirio de encontro ao peito.
+
+Leu a carta do conde e o post-scriptum da condessa, guardou-a juntamente
+com o annel n'uma gaveta da commoda, e, procurando serenar, disse:
+
+--Ella não me esqueceu; isto sempre serve de consolação para o meu
+peito. Vejamos o que me dizem Marcial e André, os meus bons amigos.
+
+Ernesto então leu:
+
+
+«Illustre Robinson dos montes de Toledo
+
+ «Recebemos a _tua cabeça_ e o _teu lombo_. e ámanhã brindaremos á
+ tua saude no restaurant do _Armiño_.
+
+ «Não deves admirar-te de que te tenhamos na conta de um animal
+ feroz, pois que outro nome não merece o homem que deixa as delicias
+ de Madrid pelos selvagens barrancos dos montes de Toledo.
+
+ «Agora outro assumpto. Tens todas as probabilidades que te concedam
+ o primeiro premio ao teu celebre quadro de Esther. Se assim fôr,
+ iremos entregar-te a medalha de ouro, e beber comtigo uma duzia de
+ garrafas de Champagne.
+
+ «Procura, comtudo, restabelecer-te rapidamente e voltares, porque
+ nós preferimos comer sentados em volta de uma mesa, pisando
+ alcatifas, recebendo o calor de fogões e a luz do gaz, do que comer
+ no campo sobre o duro chão, acariciado pelas formigas e outros
+ animaes importunos.
+
+ «Estimando-te sempre e admirando como nunca.
+
+ «Somos teus amigos
+
+ «_Marcial e André._»
+
+
+Ernesto sorriu-se tristemente quando acabou a leitura da carta.
+
+--Ah! exclamou. Que feliz que é o mortal que encontra uma mulher que o
+ama e dois amigos leaes e carinhosos! Mas a felicidade nunca é completa
+para o homem. Só encontrei os amigos. Onde acharei a mulher?
+
+E deixando cahir a cabeça sobre o peito melancholicamente, ficou immovel
+como uma estatua.
+
+
+
+
+CAPITULO XXVI
+
+Uma caçada ás raposas
+
+
+Se nos entretivessemos detalhando dia a dia a vida de Ernesto desde que
+chegou a casa de Mauricio até ao dia em que deixou de existir, fariamos
+um livro interminavel. Procuraremos, pois, tocar sómente nos pontos que
+julgamos mais importantes.
+
+Ernesto, como dissémos, cançava-se muito a subir as encostas, e o ponto
+que escolhera para caçar não era dos mais commodos.
+
+Um doente de peito pode caçar sem perigo, mas em terrenos planos que não
+cancem os pulmões; porêm os montes de Toledo, os de Almenara e outros
+não têem nada de hygienicos para um caçador de pouca saude.
+
+Poder-se-ha matar muita caça, respirar-se ar puro mas são fatigantes em
+demasia! Ernesto, pois, escolhêra mau sitio para se restabelecer, mas,
+como a vida lhe importava pouco, era o mais apropriado para lhe dar cabo
+dos seus arruinados pulmões.
+
+Ernesto tratava-se pouco. Quando sentia a mente cheia de ideias tristes,
+pegava na espingarda, chamava os cães e sahia. Se tropeçava com um bando
+de perdizes, segui-as até que, cançado, se deixava cahir no chão,
+permanecendo ás vezes mais de uma hora soffrendo angustias de morte.
+
+Muitas vezes a noite surprehendeu-o nos barrancos, e Mauricio,
+sobresaltado, sahia em sua procura; e então o honrado caçador trazia-o
+ás costas até casa. Petra e Mauricio lamentavam em voz baixa a teimosia
+de Ernesto em não querer que se chamasse o medico do povoado proximo.
+
+--Está claro, dizia Mauricio. A dôr que o afflige é tal que deseja
+acabar depressa com a vida, e quando menos pensarmos encontramol-o morto
+no monte.
+
+Demais Ernesto, cuja fraqueza era em extremo, ia perdendo as forças e o
+appetite, e tinha caprichos extraordinarios que faziam estremecer Mauricio.
+
+Certa manhã do mez de março (nevára muito durante a noite anterior e o
+sol que começava a elevar-se no horisonte convertia o gelo em brando
+rócio que tornava difficil o transito pelas ladeiras dos barrancos).
+Mauricio e Ernesto estavam no cume de um monte, quando se aperceberam de
+que andava uma raposa n'um monte proximo. Ernesto disparou, e o arisco
+animal soltou um grunhido.
+
+O tiro ferira a raposa nas patas trazeiras; mas com o instincto da
+conservação arrastou-se até a borda de um barranco, deixando-se cair
+para a frente.
+
+Ernesto correu até chegar á mesma borda do precipicio.
+
+Mauricio gritou-lhe:
+
+--Cuidado, cuidado, senhor Ernesto. Por ahi não ha passagem.
+
+Ernesto dirigiu um olhar para o abysmo, viu a raposa que fazia esforços
+desesperados para chegar a uma toca, onde por fim se metteu.
+
+--Indubitavelmente tem alli a femea e os filhos. Se pudessemos descer...
+disse Mauricio.
+
+--E porque não? respondeu Ernesto, avançando intrepidamente até a
+abertura do abysmo.
+
+--O terreno está escorregadio; é uma temeridade descer por este
+despenhadeiro. Um pé em falso, uma tontura, precipital-o-hia a
+quinhentas varas de profundidade, sobre um leito de pedras.
+
+Ernesto inclinou-se, e, agarrando-se a uma matta que vegetava na borda
+do abysmo, começara descendo, procurando appoio para os pés nas
+saliencias da rocha e nos arbustos que cresciam entre as fendas.
+
+Mauricio advertiu segunda vez do perigo imminente que o seu hospede
+corria, mas Ernesto, detendo-se na sua descida e levantando a
+cabeça, disse sorrindo-se:
+
+--Não receies, meu bom Mauricio, ninguem morre sem que Deus queira; e se
+succeder faltar-me o appoio que procuro tranquillamente, e precipitar-me
+no abysmo, previno-te de que na minha carteira acharás um testamento que
+te livra de toda a responsabilidade.
+
+E continuou descendo.
+
+Mauricio sustinha com trabalho os cães, olhando com admiração para Ernesto.
+
+Não faltava valor ao caçador para descer por aquelle difficil e perigoso
+caminho; mas isto teria sido uma imprudencia, pois, descendo atraz,
+augmentava muito o perigo do pintor.
+
+Mauricio era um bom christão, acreditava nos destinos da Providencia, e,
+calculando que d'aquelle perigo só Deus podia salvar Ernesto,
+encommendou-o com fervor ao Altissimo.
+
+A descida de Ernesto até chegar ao penedo onde se havia refugiado a
+raposa ferida, durou quatro minutos.
+
+O pintor dirigiu um olhar sereno para o abysmo, murmurando em voz baixa:
+
+--Mais profunda é a soledade da minha alma.
+
+Mauricio fechou os olhos muitas vezes, julgando que o seu amigo ia
+despenhar-se, quando ao pôr o pé ou a mão em algum appoio este cedia.
+
+Por fim Ernesto chegou a uma especie de plataforma. Alli estava seguro,
+mas era extremamente difficil subir, visto necessitar para isso de muita
+força nos pulsos.
+
+De repente Mauricio, que se dispunha a descer, viu que as pernas de
+Ernesto se dobravam e que caia desamparado sobre as rochas que o
+sustentavam, dando com a cabeça n'um sovereiro, que providencialmente o
+salvou de uma queda fatal.
+
+Mauricio soltou um grito. Ao principio julgou que o seu hospede rolasse
+para o abysmo, e então era indubitavel que o seu corpo, feito em mil
+pedaços, não pararia senão quando chegasse ao fundo. Com grande
+surpresa sua, viu que o mesmo sovereiro que crescia na fenda da rocha
+deteve o corpo da queda mortal, mas observou tambem que o corpo estava
+immovel e como morto e que da bôcca sahia algum sangue.
+
+Mauricio, deixando-se levar pelo seu generoso coração, confiado nas suas
+herculeas forças desceu rapidamente até onde estava Ernesto,
+completamente desmaiado.
+
+Durante dez minutos fez todos os esforços imaginaveis para o tornar a
+si; ora lhe chegava a garrafa do rhum ao nariz, ora lhe banhava as
+fontes com agua fria. Nada: Ernesto parecia um cadaver.
+
+Então, desprezando o perigo que o cercava, tirou a cinta, atou Ernesto a
+ella, prendendo-o pela cintura, e, com o desespero do naufrago, começou
+a trepar pela ladeira levando suspenso á cintura o inanimado corpo do
+seu hospede, que oscillava sobre o abysmo como a pendula de um relogio.
+
+Se a bôa Petra tivesse chegado n'aquella occasião e visto o perigo que o
+marido corria, certamente morreria de susto. Deus, evidentemente, que vê
+e premeia as bôas-acções, deu n'aquelle momento forças a Mauricio para
+chegar ao cume, salvando o hospede e salvando-se elle proprio.
+
+Quando se viu fóra do abysmo, soltou um d'esses suspiros que dilatam o
+peito e, ajoelhando-se junto ao corpo inanimado do seu companheiro, deu
+graças á Providencia, que os salvara de tão imminente perigo.
+
+O pintor continuava sem voltar a si.
+
+Mauricio pôz depois as duas espingardas ao hombro, levantou com os seus
+robustos braços Ernesto e encaminhou-se precipitadamente para casa, que
+não ficava muito longe.
+
+Petra ao vêl-o entrar pallido, coberto de suor, a respiração offegante e
+com Ernesto desmaiado nos braços, cujo rosto estava manchado de sangue,
+soltou um grito de espanto e disse:
+
+--Que foi, Mauricio? Que succedeu? Morreu o senhor Ernesto?
+
+--Não, não morreu, respondeu Mauricio, está apenas desmaiado. Não te
+assustes e ajuda-me a mettêl-o na cama.
+
+Um quarto de hora depois Ernesto abriu os olhos, dirigiu um olhar vago
+em redor, e vendo Mauricio e Petra juntos de si, extendeu-lhes as mãos e
+disse com difficuldade:
+
+--Obrigado, meus amigos, devo-lhes a vida e agradeço-lhes de toda a
+minha alma, porque não quero morrer emquanto não concluir os tres
+retratos que prometti ao conde de Loreto.
+
+--Mau! mau! disse o caçador. É verdade que o perigo foi grande, mas já
+lá vae. Que maldita raposa.
+
+Ernesto não respondeu, mas, pegando na mão de Mauricio, apertou-a de
+encontro ao peito com fraternal carinho.
+
+
+
+
+CAPITULO XXVII
+
+O anjo da morte
+
+
+Durante quinze dias, Ernesto não sahiu de casa; pintava de manhã e de
+tarde. Só alguns curtos momentos deixava a sua tarefa, para dar um
+passeio em frente de casa.
+
+Vendo pintar aquelle joven febril com os olhos encovados e a respiração
+fatigante, dir-se-hia que tinha esse afan do homem de genio que presente
+a morte e que quer concluir a obra que o deve immortalizar.
+
+Estavam concluidos os retratos do conde, e de D. Ventura e tinha entre
+mãos o de Amparo.
+
+Ás vezes chamava Mauricio e perguntava-lhe:
+
+--Conhécel-os? Parecem-se?
+
+--Oh! Muito! São elles por uma penna.
+
+Depois dava um charuto a Mauricio, accendia outro, apezar da tosse que o
+fumo lhe causava, e continuava pintando.
+
+No quarto do pintor, graças ás offertas do conde de Loreto,
+encontravam-se todas as commodidades apetecidas. Quatro pelles de leão
+almofadavam o sobrado; duas commodas cadeiras de braços forradas de
+marroquim recebiam o pintor quando se sentia fatigado.
+
+Muitas vezes dizia o pintor, sentado junto do fogão e tomando uma
+chavena de café:
+
+--Isto não é viver n'um monte: é ter um oasis no meio d'um deserto.
+
+Certa manhã recebeu uma carta dos seus amigos Marcial e André,
+dizendo-lhe que lhe haviam conferido o primeiro premio e que lhe iam
+levar a medalha: que mandasse um homem á estação de Toledo para os
+acompanhar ao monte.
+
+Ernesto chamou Mauricio e disse-lhe:
+
+--Ámanhã devem chegar a Toledo uns amigos de Madrid que veem passar
+alguns dias commigo. É preciso que os vás esperar á estação, que
+arranjes cavallos para o que fôr preciso e que os tragas para aqui.
+Tambem seria bom que trouxesses da cidade o que tua mulher precisar.
+
+Ernesto guardou os retratos para que os seus amigos não vissem. Era
+avaro do seu thesouro, não queria que o profanasse a publicidade.
+
+Marcial e André não eram caçadores; mas a caça é agradavel a todos os
+homens, sem duvida porque os coelhos não usam revólver para se
+defenderem, nem as perdizes disparam dardos contra os seus perseguidores.
+
+Dizem que a caça é a imagem da guerra, sem duvida porque se queima
+polvora e se derrama sangue; mas a mim parece-me que da guerra á caça
+vae muita differença e bem crente estou de que o governo não passaria
+todos os annos trinta e seis mil licenças de caça se o caçador corresse
+tanto perigo como o soldado deante do inimigo.
+
+Mas se todos gostam de disparar contra os inoffensivos coelhos, as
+ladinas perdizes e as ligeiras lebres, não é para admirar que qualquer
+habitante da cidade, ao encontrar-se n'um monte, povoado de caça e tendo
+á sua disposição uma espingarda, não tente derramar sangue, ainda que
+não seja senão para se baptisar com a cruz de Santo Eustachio.
+
+Chegaram os amigos de Ernesto e depois dos abraços e das exclamações
+ante o selvagem panorama, falou-se do quadro de Esther; almoçaram,
+tomaram café, beberam tres garrafas de Champagne e pensaram em caçar
+visto haver espingardas e caça.
+
+Mauricio propoz uma batida e se bem que os caçadores não fossem muito
+felizes, em compensação viram correr e voar muita caça.
+
+Á noite, Petra serviu uma ceia, senão muito variada, pelo menos muito
+abundante.
+
+A mocidade tem bom estomago. Comeram bem e beberam muito melhor.
+Falou-se de Ernesto chegar a Madrid e este disse:
+
+--Não penso por emquanto em abandonar estes montes, porque estou aqui
+perfeitamente. Convenci-me de que a solidão do campo e o ar saudavel
+d'estas serras me são muito mais proveitosas do que a vida agitada da
+cidade.
+
+Todas as reflexões de Marcial, todos os conselhos de André não
+conseguiram demover Ernesto. Os amigos convenceram-se de que seria
+inutil falar em similhante assumpto.
+
+Os amigos do pintor ficaram com elle mais tres dias. Chegou a hora da
+partida. Marcial tinha em ensaios uma comedia e não podia retardar o seu
+regresso a Madrid. Despediram-se promettendo fazer outra visita no mez
+de maio, se Ernesto até então não tivesse abandonado os montes.
+
+Ernesto, n'um ponto elevado, viu-os afastarem-se montados nos cavallos e
+cantando o côro das bruxas de Macbeth.
+
+--Aquelles são felizes, disse com tristeza, porque em seus corações vive
+a alegria da juventude, a esperança da gloria. Ide em paz, meus
+amigos, a quem nunca mais verei, a não ser que exista alguma cousa da
+vida occulta ao olhar do homem para lá d'esse céu azul que se extende
+sobre a minha cabeça.
+
+Ernesto sentou-se. Uma volta do caminho tinha occultado os amigos, a
+quem, como acabava de dizer, não tornaria a vêr.
+
+Durante uma hora ficou immovel como o penedo que lhe servia de appoio.
+
+Depois levantou-se, vagarosa e tristemente, dirigiu-se para casa, tirou
+o retrato de Amparo, collocou-o no cavallete e pôz-se a pintar.
+
+..........................................................................
+..........................................................................
+
+Quando algum conhecido de Mauricio ia caçar aos montes, Ernesto
+fechava-se no seu quarto e poucas vezes sahia. Pintava, lia, e bebia rhum.
+
+Estava muito doente, mas continuava regeitando os conselhos dos amigos e
+os auxilios da sciencia.
+
+Durante os mezes da primavera, pareceu fortalecer-se alguma cousa.
+Passou o verão um tanto alliviado, trabalhava pouco, e ainda por duas
+vezes mandára Mauricio a Madrid levar quadros de caça ao conde, ficando
+em seu poder os retratos completamente concluidos, dizendo:
+
+--Isto será a minha despedida, o meu testamento. Chegou o mez de
+outubro, e Ernesto com os primeiros frios, apanhou uma recahida e perdeu
+por completo o appettite; apenas se levantava para se sentar na cadeira
+e d'esta para se metter na cama. Mauricio e Petra insistiram varias
+vezes com elle para o convencer a que chamasse o medico.
+
+--É inutil, meus amigos, dizia-lhes, talvez que em breve me faça mais
+falta um sacerdote.
+
+Uma noite, Ernesto peorou a tal ponto, que Mauricio, sem o consultar,
+montou a cavallo, foi ao povoado de Orgaz e trouxe um medico.
+
+Ernesto, ao vêl-o entrar, ao perceber a que vinha, encolheu os hombros,
+dirigiu um olhar de gratidão a Mauricio, e disse:
+
+--Tudo isso é inutil. O que preciso ámanhã é de um sacerdote.
+
+O medico viu effectivamente que a doença de Ernesto era incuravel,
+receitou por simples formalidade e disse que o chamassem se houvesse
+mais alguma novidade.
+
+Ao sahir, disse a Petra:
+
+--Chamem o padre com urgencia, porque este homem apenas tem tres dias de
+vida.
+
+Petra chorou, e contou ao marido o que o medico lhe dissera.
+
+Estavam verdadeiramente impressionados.
+
+Quando Mauricio á noite entrou com a luz no quarto de Ernesto este
+estava sentado n'uma cadeira proximo da mesa.
+
+Ardia um bom fogo no fogão e, apezar do frio não ser muito, Ernesto
+queixava-se de que se sentia gelado; era a morte, que avançava a passos
+gigantescos para se apoderar do coração, para extinguir a vida n'aquelle
+corpo, para separar a alma da materia.
+
+--Mauricio, poe ahi a luz, approxima uma cadeira, senta-te aqui a meu
+lado, disse o pintor, porque temos muito que conversar e não temos tempo
+a perder.
+
+Mauricio obedeceu sem dizer uma palavra. Só de quando em quando olhava
+para o cadaverico semblante do seu hospede, pensando que já tinha visto
+defuntos com muito melhor parecer.
+
+--Tudo n'este mundo tem o seu fim, meu amigo, ajuntou Ernesto com voz
+fraca e pausadamente. O dia nasce e morre como a planta e o homem. A
+vida, como o canto do passaro, como as folhas das arvores, está sujeita
+á vontade do Creador. Rebellarmo-nos contra tal, é uma loucura, uma
+temeridade ou uma cobardia. Ninguem se salva da morte, ainda que diga
+com toda a força do seu desespero: «Não quero morrer.» Assim, pois, é
+preciso resignarmo-nos. Toda a sabedoria, toda a sciencia, toda a
+grandeza do homem não é sufficiente para prolongar um segundo sequer a
+sua vida. Alexandre como Cesar, Aristoteles como Cicero, morreram
+quando soaram as suas horas, apezar de serem quem foram. A minha
+approxima-se e é preciso preparar tudo para a minha ultima viagem.
+
+Ernesto deteve-se, respirou, levou a mão ao peito e fixou os olhos em
+Mauricio, cujo semblante compungido, manifestava a profunda magua da sua
+alma, porque as palavras sentenciosas e tristes do seu hospede, a quem
+estimava como a um pae, o affligiam.
+
+--Quero, pois, meu bom Mauricio, inteirar-te do que tens a fazer no dia
+seguinte ao da minha morte, que não está longe. Por isso, te pedi para
+te sentares e que me prestasses attenção. Dei grandes incommodos tanto a
+ti como a tua mulher; têem sido bons amigos para mim, devo-lhes muitos
+favores, e é por conseguinte meu dever não os esquecer na hora da minha
+morte. Quizera ser rico como um nababo para lhes deixar toda a minha
+fortuna, pois bem sabes que não tenho herdeiros forçados; mas, apezar de
+ser muito pobre, farei tudo quanto possa para os recompensar em parte de
+todos os beneficios que recebi.
+
+--Mas, senhor Ernesto, nós é que devemos estar agradecidos ao senhor,
+disse Mauricio, porque desde que tivemos a fortuna de o vêr entrar para
+nossa casa, têem sido muito maiores as recompensas que temos recebido do
+que os insignificantes serviços que lhe temos prestado. Por isso não
+temos que falar sobre esse assumpto.
+
+--O interesse e o carinho que têem dispensado a este pobre doente, nunca
+o pagarei sufficientemente. Mas deixemos esse assumpto, e ouve.
+
+Ernesto fez uma pausa, pegou n'um rolo de papeis e n'uma carta, e disse:
+
+--Quando eu morrer, e depois do meu enterro, vaes a Madrid onde tens
+duas commissões a desempenhar da maior importancia. Esta carta para os
+meus amigos da rua do Prado, e os tres retratos e esta outra carta para
+o senhor conde de Loreto. Indubitavelmente todos, ao saberem que
+deixei de existir, querem saber pormenores da minha morte. Dize-lhes o
+que vires, a verdade. E agora só me falta dizer-te que encontrarás
+escripto e assignado n'esta folha de papel, que te deixo como herança,
+como livre senhor que sou de tudo, que me pertence; isto é, tudo isto
+que nos rodeia, inclusivamente o pouco dinheiro que eu tiver na gaveta
+da commoda, é teu e de tua mulher.
+
+Mauricio que havia já um boccado luctava para suster as lagrimas, levou
+as mãos aos olhos.
+
+--Vamos, não te afflijas; da-me um abraço e vae-te deitar. Só tenho
+ainda a pedir-te para que ámanhã cedo me tragas um padre, porque é bom
+pensar em Deus alguns minutos antes de morrer, quem esteve tantos annos
+occupando-se sómente dos pygmeus da terra.
+
+Mauricio precisava sahir d'aquelle quarto para chorar desafogadamente;
+entrou na cosinha, contou a Petra tudo quanto se passára e acabaram por
+desatar em amargo pranto.
+
+N'aquella noite nem Petra nem Mauricio puderam dormir.
+
+De quando em quando vinham em bicos de pés até a porta do quarto de
+Ernesto, e espreitavam pelo buraco da fechadura.
+
+Ernesto continuava sentado na cadeira, ora escrevendo, ora com os
+cotovellos encostados na borda da meza, e a cabeça appoiada nas mãos.
+
+Pouco antes de amanhecer, Mauricio montou a cavallo e foi chamar o padre.
+
+Ás sete da manhã, Ernesto viu entrar um velho de rosto bondoso e
+cabellos brancos. A batina preta, a sobrepeliz, e sobretudo a doce
+expressão d'aquelle rosto, fel-o comprehender que tinha na sua presença
+o pastor das almas d'algum povoado proximo.
+
+O sacerdote e o pintor estiveram fechados tres horas. O que disseram
+pertence ao segredo inviolavel da confissão.
+
+Quando o padre sahiu, entrou Mauricio.
+
+Ernesto disse-lhe:
+
+--Faze favor de pôr uma tela no cavallete e de o levares bem como esta
+cadeira para proximo da janella. Vou fazer o meu ultimo trabalho.
+
+Ernesto pegou na paleta, nos pinceis e sentou-se porque não podia
+trabalhar de pé, principiando a esboçar uma Nossa Senhora das Dôres.
+
+Apezar do seu estado, pintava com incrivel ligeireza.
+
+A febre da morte guiava-lhe a mão.
+
+Em dia e meio pintou uma formosa mãe do Nazareno, de corpo inteiro; mas
+aquella virgem, apezar da doce melancholia do seu semblante, era um
+perfeito retrato da condessa de Loreto.
+
+Evidentemente aquella obra feita de momento, aquelle trabalho feito ás
+portas da morte, era uma das melhoras obras de Ernesto.
+
+Mauricio e Petra ficaram assombrados ao verem-no concluido.
+
+--Ah! Que pena um homem assim morrer tão novo! exclamou o rude caçador
+n'um arranco de sublime enthusiasmo.
+
+--Mauricio, disse Ernesto, quando eu morrer entregarás este quadro ao
+sacerdote que me ouviu em confissão, e diras que, já que os francezes
+roubaram de uma capella da sua modesta egreja uma formosa Senhora das
+Dôres, eu offereço-lhe esta para que a ponha no seu logar, apezar de não
+valer, estou certo, nem a quinta parte do que valia a outra.
+
+No dia seguinte, Ernesto conheceu que lhe restava poucos minutos de vida.
+
+O sol entrava pela janella.
+
+O enfermo permaneceu cêrca de meia hora com o olhar fito no céu e as
+mãos postas em religioso recolhimento.
+
+Petra e Mauricio, que estavam a seu lado, não se atreviam a
+interrompel-o d'aquelle doce extasis.
+
+--Meus amigos, disse Ernesto, extendendo os braços e, pegando nas mãos
+de Petra e de Mauricio, vêem aquella nuvemsinha branca que está suspensa
+no espaço?
+
+Os dois olharam para o céu, mas não viram nuvem nenhuma, contudo Petra
+respondeu com voz fraca:
+
+--Sim.
+
+--Pois bem, no meio d'essa nuvem vem o anjo da morte buscar-me. Oh! É
+mais bello do que eu o suppunha. Os seus trajes são brancos como o disco
+da lua, brilhante como a prata polida. Os seus olhos são negros e de um
+brilho raro. O seu rosto, pallido e cheio de bondade, sorri-se com um
+sorriso frio que penetra até a medulla dos ossos. Sobre a fronte lê-se a
+palavra _Perdão_, e os seus braços extendem-se até mim como para me
+receber. Ah! Se eu pudesse retratal-o!... Mas experimentemos. Dá-me a
+paleta e os pinceis! Põe uma tela no cavallete!
+
+Ernesto apertava as mãos de Petra e Mauricio; mas subitamente soltou-os
+e dando um debil gemido, levou-as aos olhos e disse:
+
+--Não posso!... Não posso!... Perdi a luz dos olhos!... Estou cego!...
+Amparo!... Amparo!... Amo-te como sempre!... Meu Deus!... Recebei-me!...
+
+Os braços do pintor cairam sem forças, estremeceu todo o corpo,
+abriram-se-lhe e fecharam-se-lhe tres vezes as palpebras, e um debil
+suspiro se lhe escapou do peito.
+
+Depois ficou immovel na cadeira e reinou o silencio frio da morte.
+
+A alma do pintor abandonára a materia.
+
+Ernesto já não existia.
+
+Pobre filho do genio! Pobre sonhador que trocou a sua gloria, o seu
+futuro, por um beijo.
+
+Mauricio e Petra ajoelharam junto da cadeira onde jazia o seu hospede, e
+com os olhos cheios de lagrimas, resaram pelo eterno descanço d'aquelle
+desventurado moço que tinha deixado de existir, e em cujos pallidos e
+entreabertos labios julgavam ver um sorriso triste, lamentoso, como a
+morte que lh'o produzira.
+
+
+
+
+CAPITULO XXVIII
+
+Conclusão
+
+
+O sacerdote, que ouvira o pintor em confissão, em signal de
+agradecimento pela bellissima Senhora das Dôres que elle offerecera á
+sua egreja, resou uma missa cantada pelo descanço da alma do artista.
+
+Mauricio deu sepultura ao corpo de Ernesto no cemiterio da villa de Orgaz.
+
+Depois de cumpridos estes tristes deveres, Mauricio dispôz-se a cumprir
+as ultimas vontades do seu hospede.
+
+Preparou tudo para a viagem e disse á mulher:
+
+--Ámanhã vou a Madrid desempenhar-me das commissões de que me encarregou
+o senhor Ernesto. Durante a minha ausencia se não queres ficar só
+levar-te-hei até Toledo. Calculo não me demorar mais de tres dias.
+
+--Vae socegado e sem pressa; eu não deixo a casa onde estão os nossos
+haveres. Demais, os pastores têem as choças aqui perto, e se tivesse
+necessidade, bem sabes que me prestariam qualquer auxilio.
+
+Mauricio partiu.
+
+A carta que Ernesto escrevêra aos seus amigos da rua do Prado,
+resumia-se a uma terna despedida.
+
+Sigamos, pois, Mauricio, a casa do conde de Loreto.
+
+Fernando del Villar, por quem uma carruagem esperava á porta, descia a
+escada do seu palacio quando viu entrar Mauricio com os tres quadros
+perfeitamente empacotados.
+
+O conde parou ao reconhecer o caçador dos montes de Toledo.
+
+--Ah! É o senhor? lhe disse. Como está Ernesto?
+
+--Morreu! respondeu Mauricio.
+
+--Como? Morreu?
+
+--Ha quatro dias, senhor conde.
+
+--Pobre rapaz! Mas suba, suba.
+
+O conde começou a subir precipitadamente, seguido de Mauricio,
+atravessou varias casas e por fim entrou n'um elegante e luxuoso
+escriptorio.
+
+--Morreu!... repetiu o conde deixando-se cair n'uma cadeira. Pobre
+Ernesto! Não esperava similhante noticia. Sente-se, sente-se, meu amigo,
+e diga-me qual o fim da sua vinda, porque creio que ha mais alguma cousa
+do que annunciar-me tão irreparavel desgraça.
+
+--O senhor Ernesto encarregou-me na vespera da sua morte de trazer ao
+senhor conde estes tres retratos e esta carta.
+
+O conde levantou-se, desatou o cordão que prendia os quadros, e,
+collocando cada um em sua cadeira, levantou o estore da janella para que
+entrasse mais luz.
+
+Quando os olhos se fixaram nos retratos, e em especial no da condessa,
+não poude conter uma exclamação, um grito de assombro.
+
+--Isto é admiravel! Isto é admiravel! Que pena que homens assim vivam
+tão pouco!
+
+E ficou immovel como que extasiado deante do retrato da mulher.
+
+O conde era um conhecedor de pintura. Viajára muito e vira muitissimo;
+conhecia toda essa collecção de retratos celebres, que honram os seus
+auctores, pendurados em exposição nas paredes dos museus; mas nenhum
+ainda lhe produzira tanta admiração como a tela que tinha ante si.
+
+O retrato de Amparo era uma obra-prima, pelo desenho, pelo colorido e
+sobretudo pela parecença.
+
+Demais a bôcca d'aquella mulher, perfeitamente modelada, tinha uma
+expressão tal que parecia ter vida. Dir-se-hia que aquelles labios
+humidos, de uma côr bella, um pouco entreabertos, palpitantes de amor e
+de ternura, iam dar um d'esses beijos que inflammam para sempre a
+alma do homem que o recebe.
+
+Os olhos, de belleza irresistivel, meio velados pelas compridas pestanas
+exprimiam tambem amor e melancholia.
+
+Ao conde de Loreto nunca parecêra tão formosa a mulher como n'aquelle
+momento em que comparava o original com o retrato; mas aquelle retrato,
+onde a mão do pintor, sem se servir da adulação, possuia alguma cousa
+mais do que a frialdade immovel da pintura, tinha por assim dizer a alma
+do artista occulta atraz dos olhos e atravez aquella bôcca encantadora.
+
+Ninguem, ao vêr o retrato, duvidaria de que estava um beijo suspenso dos
+divinos labios d'aquella mulher, e, comtudo, o pintor não violára nem
+uma só linha, nem na mais delicada sombra, a posição natural d'aquella
+incomparavel bôcca.
+
+O conde, que assim o comprehendeu, teve o retrato por uma obra-prima, e,
+amante da arte que immortalizou Raphael, não podia desviar os olhos do
+quadro.
+
+Durante um quarto de hora Fernando permaneceu como um extasiado.
+Mauricio estava triste e silencioso a seu lado.
+
+Quando se cançou de contemplal-o, viu que tinha uma carta na mão. Era a
+que pouco antes lhe entregára o honrado Mauricio.
+
+Rasgou o envellope e leu:
+
+
+«Senhor conde de Loreto.
+
+ «Prestes a entregar a alma a Deus e o corpo á terra, pego na penna
+ com mão fraca para lhe enviar as minhas despedidas.
+
+ «Quando receber a minha carta já terei deixado de existir. Um sêr a
+ menos na terra, uma particula de pó a mais em algum ignorado
+ cemiterio d'estas regiões; mas em compensação, outros seres nascem,
+ emquanto o vento levanta o pó dos que morrem. O mundo segue o
+ seu caminho: esta é a cadeia da humanidade.
+
+ «Remetto-lhe os tres retratos offerecidos. São as minhas ultimas
+ obras; depois d'ellas os meus pobres pinceis não offenderão mais a
+ arte inutilisando telas, estragando tintas. O unico merito que se
+ lhe poderá attribuir será a parecença, e isso, sem duvida por que
+ eu, durante o meu voluntario e penoso desterro, me não esqueci nem
+ um só instante dos meus amigos.
+
+ «Vou concluir pedindo-lhe, senhor conde, um favor. Mauricio e Petra,
+ isto é, o portador d'esta e sua mulher, foram durante a minha doença
+ dois irmãos carinhosos. Se eu fosse tão rico como Salomão,
+ deixar-lhes-hia toda a minha fortuna e creio que assim mesmo não
+ lhes pagaria quanto lhes devo; mas sou pobre, e só posso pagar-lhes
+ com amor e agradecimento os beneficios recebidos.
+
+ «Assim, pois, senhor conde, peço-lhe que entregue a Mauricio o valor
+ que der aos tres retratos para que tenham com essa importancia uma
+ recompensa do muito que lhes devo.
+
+ «Mauricio é um honrado caçador de profissão que me serviu com
+ desinteresse e sem esperança de recompensa: não sabe portanto que me
+ occupo d'elle n'esta carta.
+
+ «Desculpe-me, senhor conde, a liberdade que tomo, e não se esqueça
+ de que ao soltar o meu ultimo suspiro bemdirei os meus amigos.
+
+ «Apresente os meus respeitos á senhora condessa e dê um abraço de
+ eterna despedida ao meu bom amigo D. Ventura.
+
+ _Ernesto._»
+
+
+O conde acabou a leitura da carta commovido, dobrou-a e guardou-a na
+algibeira.
+
+Nos olhos havia uma certa humidade, devida ás lagrimas.
+
+Mauricio, vendo que o conde guardava silencio, e desejando acabar com
+aquella visita, disse:
+
+--Se o senhor conde m'o permitte, retiro-me, pois preciso ainda esta
+noite regressar a Toledo.
+
+O conde dirigiu-se para o cofre, abriu-o, e, depois de pensar um
+momento, começou a contar notas de banco.
+
+--Mauricio, disse Fernando, ignora sem duvida qual a missão de que o meu
+amigo Ernesto me encarrega n'esta carta.
+
+--Só me disse para a entregar ao senhor conde juntamente com os retratos.
+
+--Pois bem; Ernesto encarrega-me de lhe entregar seis mil duros que lhe
+devo.
+
+--A mim? disse admirado o caçador.
+
+--Sim, a si.
+
+--Mas que devo fazer a esse dinheiro? Porque elle nada me disse ao morrer.
+
+--Guardál-os para si.
+
+--É impossivel! Seis mil duros é uma fortuna para um pobre como eu.
+
+O conde, admirado da honradez d'aquelle homem, teve um nobre pensamento,
+e ajuntou:
+
+--Desculpe-me; enganei-me.
+
+--Eu logo vi que não podia ser, disse Mauricio quasi contente.
+
+--Enganei-me na importancia, continuou o conde: em logar de seis mil
+duros são dez mil.
+
+Mauricio empallideceu. Era uma fortuna.
+
+O conde entretanto contou dez mil duros em notas do banco de quatro mil
+_reales_, e, collocando-os depois n'uma bandeja, approximou-se de
+Mauricio, dizendo:
+
+--Isto é o que Ernesto Alvarez deixa como herança a Mauricio e Petra
+pelo seu generoso comportamento, pelos seus bellos sentimentos. Agora
+eu, o conde de Loreto, offereço a Mauricio, quando se fartar de ser
+caçador, o logar de administrador em um monte nas Asturias, com
+vinte e cinco reales por dia, casa, lenha e mais vantagens que me não
+recordam agora.
+
+E o conde, apertando a mão ao honrado montanhez, ajuntou:
+
+--Vá a Toledo, diga a sua mulher o que o senhor Ernesto dispôz na sua
+ultima carta, pense socegadamente o que mais lhe convêm, que aqui me
+encontrará sempre disposto a cumprir a minha palavra.
+
+Mauricio pegou com a mão trémula nos dez mil reales, apertou depois de
+encontro ao peito a mão do conde e, com olhos marejados de lagrimas e o
+parecer bastante commovido, disse:
+
+--Mas que fiz eu para merecer tantos favores?
+
+--Foi um homem de bem, um homem justo, respondeu o conde.
+
+--Ah! a minha pobre Petra vae enlouquecer de alegria. Ella que dentro em
+pouco vae ser mãe! Ella, que nunca viu cem mil reales! Ella que é tão
+boa! Todos os nossos filhos aprenderão a bem dizerem os nomes do senhor
+Ernesto e do senhor conde de Loreto.
+
+Fernando acompanhou Mauricio até á porta, depois voltou para o
+escriptorio e, sentando-se em frente do retrato da mulher, disse:
+
+--Ernesto não existe, mas nos labios d'este retrato, n'aquella bôcca
+doce, apaixonada, amorosa como um beijo, deixou escripta a historia da
+sua morte.
+
+
+
+
+
+FIM
+
+
+
+
+
+ [1] Um duro corresponde a 900 réis e um real a 50 réis,
+ approximadamente.
+
+ [2] Moeda de ouro, que vale approximadamente 14$500 réis.
+
+ _N. do T._
+
+
+
+ Indice
+
+ CAPITULO I--Uma chavena de café
+ CAPITULO II--Uma noite no Colyseu
+ CAPITULO III--Sonhos côr-de-rosa
+ CAPITULO IV--O pintor e o judeu
+ CAPITULO V--O grupo de Niobe
+ CAPITULO VI--Um beijo
+ CAPITULO VII--Separação
+ CAPITULO VIII--Caminho de Hespanha
+ CAPITULO IX--De Florença a Paris
+ CAPITULO X--A rosa de brilhantes
+ CAPITULO XI--Mais um
+ CAPITULO XII--Como se pede
+ CAPITULO XIII--Os tres amigos
+ CAPITULO XIV--Curiosidade não satisfeita
+ CAPITULO XV--Carta interrompida
+ CAPITULO XVI--Propostas
+ CAPITULO XVII--Confiança
+ CAPITULO XVIII--A golfada de sangue
+ CAPITULO XIX--Pagar a hospitalidade
+ CAPITULO XX--Abnegação
+ CAPITULO XXI--Abandonando Madrid
+ CAPITULO XXII--Vida de recordações
+ CAPITULO XXIII--Uma caçada
+ CAPITULO XXIV--Uma carta e um annel
+ CAPITULO XXV--O regresso de Mauricio
+ CAPITULO XXVI--Uma caçada ás raposas
+ CAPITULO XXVII--O anjo da morte
+ CAPITULO XXVIII--Conclusão
+
+
+
+
+
+Livraria Editora Guimarães & C.ª
+
+68--RUA DO MUNDO--70
+
+LISBOA
+
+CONDESSA DE GENCÉ
+
+*Guia mundano das meninas casadoiras*, 1 vol. br. 500, enc. 700
+
+D. JOÃO DA CAMARA
+
+*Meia noite*, drama. 500
+
+*Contos*, 1 vol. 600
+
+*A cidade*, versos, 1 vol. 300
+
+DELFIM GUIMARÃES
+
+*Outonaes*, 1 vol. 500
+
+*Aldeia na Corte*, 1 vol. 500
+
+*O Rosquedo*, 1 vol. 200
+
+*Juramento Sagrado*, 1 vol. 200
+
+*Ares do Minho*, 1 vol. 200
+
+*Flores do mal*, interpretação em versos portugueses, de poesias de
+Baudelaire, 1 vol. 700
+
+*Bernardim Ribeiro*, (o poeta Crisfal), 1 vol. 800
+
+*Theofilo Braga e a lenda do Crisfal*, 1 vol. 500
+
+DR. A. DA SILVA GAYO
+
+*Mario*, romance historico, 1 vol. ill. br. 1$700, enc. 2$200
+
+CARLOS BENTO DA MAIA
+
+*Tratado completo de cosinha e de copa*. 1 vol., br. 2$000, enc. 2$500
+
+*Tratado de risco e côrte de roupa*, 1 vol. 600
+
+JOSÉ VALDEZ
+
+*O cão*, raças, hygiene, ensino, e tratamento, 1 vol. 500
+
+ANDRÉ ANGIULI
+
+*A pedagogia, o estado e a familia*, 1 vol. 300
+
+JULIO PAYOT
+
+*A moral na escola*, 1 vol. 400
+
+*A educação da vontade*, 1 vol. 500
+
+DR. MAURICIO DE FLEURI
+
+*Para prolongar a vida*, 1 vol. 400
+
+MIGUEL CERVANTES
+
+*D. Quixote de la Mancha*, ed. ill. com 200 grav. 2 vol. br. 2$400, enc.
+3$200
+
+FRANCISCO D'ALMEIDA
+
+*Thesouro domestico*, receitas e processos uteis, 1 vol. 800
+
+JOÃO CHAGAS
+
+*O Crime da Sociedade*, 2 vol. in-4.º, ill. 1 vol. 3$600
+
+LEÃO TOLSTOI
+
+*A escravidão moderna*, 1 vol. 200
+
+*A Sonata de Kreutzer*, 1 vol. 200
+
+*O canto do cysne*, 1 vol. 200
+
+*Ana Karenine*, 3 vol. 600
+
+CAROLUS E LADOUCETE
+
+*Os amores de Napoleão*, romance historico. 1 vol. de 1000 pag.
+profusamente ill. br. 2$000, enc. 2$600
+
+OCTAVIO MIRBEAU
+
+*Memorias de uma criada de quarto*, 1 vol. 600
+
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Historia de um beijo, by Enrique Pérez Escrich
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE UM BEIJO ***
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+
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+entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.
+
+1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be
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+things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
+even without complying with the full terms of this agreement. See
+paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
+collection are in the public domain in the United States. If an
+individual work is in the public domain in the United States and you are
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+copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
+works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
+are removed. Of course, we hope that you will support the Project
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+through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
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+must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
+terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked
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+
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+License as specified in paragraph 1.E.1.
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+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
+ owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
+ has agreed to donate royalties under this paragraph to the
+ Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments
+ must be paid within 60 days following each date on which you
+ prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
+ returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
+ sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
+ address specified in Section 4, "Information about donations to
+ the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
+
+- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
+ you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
+ does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
+ License. You must require such a user to return or
+ destroy all copies of the works possessed in a physical medium
+ and discontinue all use of and all access to other copies of
+ Project Gutenberg-tm works.
+
+- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
+ electronic work is discovered and reported to you within 90 days
+ of receipt of the work.
+
+- You comply with all other terms of this agreement for free
+ distribution of Project Gutenberg-tm works.
+
+1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
+electronic work or group of works on different terms than are set
+forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
+both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
+Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
+Foundation as set forth in Section 3 below.
+
+1.F.
+
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+effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
+public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
+collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
+works, and the medium on which they may be stored, may contain
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+the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
+refund. If you received the work electronically, the person or entity
+providing it to you may choose to give you a second opportunity to
+receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy
+is also defective, you may demand a refund in writing without further
+opportunities to fix the problem.
+
+1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
+WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
+WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
+
+1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
+warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
+If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
+law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
+interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
+the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
+provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
+
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+trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
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+with this agreement, and any volunteers associated with the production,
+promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
+that arise directly or indirectly from any of the following which you do
+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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+ <title>História de um beijo, por Enrique Pérez Escrich</title>
+ <meta name="Author" content="Enrique Pérez Escrich, 1829-1897">
+ <meta name="Edition" content="2.ª Edição. Lisboa: Guimarães e C.ª, 1912.">
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+</head>
+
+<body>
+
+
+<pre>
+
+The Project Gutenberg EBook of Historia de um beijo, by Enrique Pérez Escrich
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Historia de um beijo
+
+Author: Enrique Pérez Escrich
+
+Translator: A. J. Lione Soutelo
+
+Release Date: June 13, 2010 [EBook #32793]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE UM BEIJO ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<div style="margin: 10%;">
+<p><small>XLVII<br>
+Colecção<br>
+Horas de Leitura</small></p>
+
+<p style="text-align: right; text-decoration: underline;"><big>Enrique Perez
+Escrich</big></p>
+
+<p
+style="text-align: center;"><big><big><big><big>HISTORIA</big></big></big></big></p>
+
+
+<p style="text-align: center;">DE UM</p>
+
+<p
+style="text-align: center;"><big><big><big><big>BEIJO</big></big></big></big></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align: center;">2.ª Edição<br>
+</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<p style="text-align: center;">1912<br>
+GUIMARÃES &amp; C.ª&mdash;Editores<br>
+<small>68, Rua do Mundo (Ex. Rua de S. Roque), 70</small><br>
+LISBOA</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p
+style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto; font-weight: bold;"><big><big>Historia
+de um Beijo</big></big></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="margin-left: 160px; text-align: center;"><small>COMPOSTO E IMPRESSO
+NA IMPRENSA<br>
+DE MANUEL LUCAS TORRES<br>
+RUA DIARIO DE NOTICIAS, 93</small></p>
+
+<p> <br>
+<br>
+</p>
+
+<p style="text-align: center;">Colecção Horas de Leitura</p>
+
+<div style="font-size: 0.7em; margin-left: 20%;">
+<p><i>Obras publicadas, a 200 réis o volume</i></p>
+
+<p>1 a 4&mdash;<b>Ivanhoé</b>, de W. Scott, (2.ª edição) 800</p>
+
+<p>5&mdash;<b>O frade negro</b>, por Clemencia Robert, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>6 e 7&mdash;<b>As Semi-Virgens</b>, de Marcello Prévost, (3.ª edição
+illustrada) 400</p>
+
+<p>8&mdash;<b>Werther</b>, de Goethe, (3.ª edição illustrada) 400</p>
+
+<p>9&mdash;<b>Madame Flirt</b>, de Jaques Yvel, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>10 a 12&mdash;<b>A Taberna</b>, de Zola, (2.ª edição) 600</p>
+
+<p>13&mdash;<b>O Vigario de Wakefield</b>, de Goldsmith, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>14&mdash;<b>A vida aos vinte annos</b>, de Dumas, filho, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>15&mdash;<b>A agua profunda</b>, de Bourget, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>16&mdash;<b>O dominó amarello</b>, de Marcello Prévost, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>17&mdash;<b>Cortezã</b>, de A Belot, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>18&mdash;<b>O Rosquedo</b>, de Delfim Guimarães, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>19&mdash;<b>Os Vagabundos</b>, de Maximo Gorki, (3.ª edição) 200</p>
+
+<p>20&mdash;<b>A escravidão moderna</b>, de Tolstoi, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>21&mdash;<b>Os degenerados</b>, de Maximo Gorki, (3.ª edição) 200</p>
+
+<p>22&mdash;<b>A Dama das camelias</b>, de Dumas, filho, (3.ª edição
+illustrada) 200</p>
+
+<p>23&mdash;<b>As Virgens</b>, de G. d'Annunzio, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>24&mdash;<b>Na prisão</b>, de Maximo Gorki, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>25 e 26&mdash;<b>A Dama das perolas</b>, de Dumas, filho, 400</p>
+
+<p>27&mdash;<b>Varenka Olessova</b>, de Maximo Gorki, 200</p>
+
+<p>28&mdash;<b>O jardim dos suplicios</b>, de Octavio Mirbeau, (2.ª edição)
+200</p>
+
+<p>29&mdash;<b>Saudades</b>, (Menina e Moça) de Bernardim Ribeiro, (2.ª edição)
+200</p>
+
+<p>30&mdash;<b>Na Esteppa</b>, de Maximo Gorki, 200</p>
+
+<p>31&mdash;<b>Nami-ko</b>, Tokatomi, 200</p>
+
+<p>32&mdash;<b>Um conchego de Solteirão</b>, Balzac, (2.ª edição) 200</p>
+
+<p>33&mdash;<b>Sapho</b>, de Daudet, (a sahir 2.ª edição)</p>
+
+<p>34&mdash;<b>Um começo de vida</b>, de Balzac, 200</p>
+
+<p>35 e 36&mdash;<b>O Paraiso das Damas</b>, de Zola, (esgotado)</p>
+
+<p>37&mdash;<b>Amor e liberdade</b>, de Tolstoi, (esgotado)</p>
+
+<p>38&mdash;<b>Casamento de Amor</b>, de Theuriet, (esgotado)</p>
+
+<p>39 e 40&mdash;<b>Illusões perdidas</b>, de Balzac, 400</p>
+
+<p>41 e 42&mdash;<b>Esplendores e miserias das cortezãs</b>, de Balzac, 400</p>
+
+<p>43&mdash;<b>A ultima incarnação de Vautrin</b>, de Balzac, 200</p>
+
+<p>44&mdash;<b>Mater dolorosa</b>, de Ernesto Daudet, 200</p>
+
+<p>45&mdash;<b>O Immortal</b>, de Affonso Daudet, 200</p>
+
+<p>46&mdash;<b>Ares do Minho</b>, de Delfim Guimarães, 200</p>
+
+<p>47&mdash;<b>Historia d'um beijo</b>, de E. Perez Escrich, 200</p>
+
+<p>48&mdash;<b>O intruso</b>, de Gabriel d'Annunzio, (esgotado)</p>
+
+<p>49&mdash;<b>A mulher de 30 annos</b>, de Balzac, 200</p>
+
+<p>50 e 51&mdash;<b>Germinal</b>, de Zola, 400</p>
+
+<p>52&mdash;<b>O crime de Silvestre Bonnard</b>, de Anatolio France, 200</p>
+
+<p>53&mdash;<b>Miseraveis</b>, (Cañas y barro) de Blasco Ibañez, 200</p>
+
+<p>54&mdash;<b>O Abade Constantino</b>, de L. Halévy, 200</p>
+
+<p>55&mdash;<b>O Dr. Rameau</b>, de Jorge Ohnet, 200</p>
+
+<p>56&mdash;<b>Agua corrente</b>, de Severo Portella, 200</p>
+
+<p>57&mdash;<b>O luxo dos outros</b>, de Bourget, 200</p>
+
+<p>58&mdash;<b>O tio Goriot</b>, de Balzac, 200</p>
+
+<p>59 e 60&mdash;<b>A derrocada</b>, de Zola, 400</p>
+
+<p>61&mdash;<b>O canto do Cysne</b>, de Tolstoi, 200</p>
+
+<p>62&mdash;<b>Contos</b>, de G. de Maupassant, 200</p>
+
+<p>63 e 64&mdash;<b>Náná</b>, de Zola, 400</p>
+
+<p>65&mdash;<b>A Sonata de Kreutzer</b>, de Tolstoi, 200</p>
+
+<p>66&mdash;<b>O Padre Maldito</b>, de Silva Pinto, 200</p>
+
+<p>67&mdash;<b>Paulo e Virginia</b>, de Sain-Pierre, 200</p>
+
+<p>68 e 69&mdash;<b>O Dinheiro</b>, de Zola, 400</p>
+
+<p>70&mdash;<b>Confissão d'um Amante</b>, de Prévost, 200</p>
+
+<p>71&mdash;<b>A sepultura de ferro</b>, de H. Conscience, 200</p>
+
+<p>72&mdash;<b>A musa do departamento</b>, de Balzac, 200</p>
+
+<p>73 e 74&mdash;<b>A Obra</b>, de Zola, 400</p>
+
+<p>75&mdash;<b>Genoveva</b>, de A. de Lamartine, 200</p>
+
+<p>76&mdash;<b>Um filho do povo</b>, de Escrich, 200</p>
+
+<p>77 e 78&mdash;<b>O crime do padre Mouret</b>, de Zola, 400</p>
+
+<p>79&mdash;<b>Casamentos fidalgos</b>, de Feuillet, 200</p>
+
+<p>80&mdash;<b>Amor tragico</b>, de A. Hermant, 200</p>
+
+<p>81&mdash;<b>A Religiosa</b>, de Diderot, 200</p>
+
+<p>82 a 84&mdash;<b>Ana Karenine</b>, de Tolstoi, 600</p>
+</div>
+
+<p> <br>
+</p>
+
+<p><br>
+</p>
+
+<div style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">
+<p style="text-decoration: underline;">C<small>OLECÇÃO </small>H<small>ORAS DE
+</small>L<small>EITURA</small></p>
+
+<p style="margin-left: 80px;"><big>Enrique Perez Escrich</big></p>
+
+<p style="font-weight: bold;"><big><big><big><span style="margin-right: 4em;">Historia</span><br> <span style="margin-left: 4em;">de um
+Beijo</span></big></big></big></p>
+
+<p><small>TRADUCÇÃO DE</small></p>
+
+<p><big>A. J. LIONE SOUTELLO</big><br>
+<br>
+</p>
+
+<p>2.ª Edição</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p><small>1912</small><br>
+GUIMARÃES &amp; C.ª&mdash;Editores<br>
+<small>68, Rua do Mundo (Ex. Rua de S. Roque), 70</small><br>
+LISBOA</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p><span class="pn">{5}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="corpo">
+<h4><a name="SECTION0001000">CAPITULO I</a></h4>
+
+<h2>Uma chavena de café</h2>
+
+<blockquote style="margin-left: 40px;">
+ <p style="margin-left: 120px;">Um beijo é muitas vezes a esmola que faz uma
+ mulher a uns labios lisonjeiros; outras um pedaço d'alma que se escapa pela
+ bôcca. No primeiro caso o homem é a victima, no segundo é a mulher.</p>
+</blockquote>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Existem na terra creaturas tão bem organisadas, corações tão generosos, que
+não necessitam ser correspondidas para amar com toda a sua alma, para terem
+gravada em seu coração uma imagem querida.</p>
+
+<p>Estes entes soffrem com o rosto sereno e choram com o sorriso nos labios,
+porque se chora de dois modos: umas vezes deixando correr as lagrimas, outras
+recolhendo-se ao coração a queimarem essa bella flôr da juventude chamada a
+esperança.</p>
+
+<p>A vida n'estes casos é um desejo infinito que se afoga em pranto porque se
+vê a felicidade que se deseja rodeada de uma muralha cheia de impossiveis. Se
+pudesse conquistar-se a tiro, conhecer-se-hiam os nomes de muitos heroes
+ignorados.</p>
+
+<p>A incerteza, essa anciedade da alma que tem o poder de reduzir e prolongar o
+tempo segundo o seu capricho, faz-se sempre sujeita á poderosa magia de uma
+syllaba. Um <i>sim</i>, resoa docemente no ouvido do namorado e tem a
+encantadora poesia do mez de Maio com os seus perfumes, as suas flôres, e o
+harmonioso canto das aves; um <i>não</i>, tem a aridez do deserto, a
+melancholia da desgraça, a solidão da morte.</p>
+
+<p>Vou, pois, contar-lhes uma historia sentida, um gemido do coração.</p>
+
+<p>Vou dar-lhes a conhecer a protogonista do meu livro<span
+class="pn">{6}</span> e supplico-lhes o perdão para a fraqueza da sua alma: o
+coquettismo.</p>
+
+<p>Chama-se Amparo, nome cujas seis letras encerram uma promessa de amor nunca
+realisada.</p>
+
+<p>Procurarei pintar com as côres da verdade o seu rosto, formoso como um sonho
+da adolescencia; a sua fronte radiante como a luz do sol quando apparece, ao
+romper do dia, do fundo do mar; os seus olhos claros e expressivos através dos
+quaes se lêem todas as impressões da sua alma, sensivel como as harpas das
+filhas de Sião que vibram ao menor sopro do zephiro.</p>
+
+<p>Se os impressionam as scenas terriveis, as grandes catastrophes, as
+situações inverosimeis, fechem o meu livro, porque em suas paginas só acharão a
+historia de um coração que se partiu em pedaços.</p>
+<hr class="dotted">
+
+<p>Ernesto foi para Roma, pensionista do governo hespanhol. Era um rapaz de 25
+annos, cheio de vida, de illusões, um genio; muitas vezes nos seus sonhos de
+pintor julgava egualar-se a Velasquez, Murillo e todos esses grandes homens que
+brilham em primeiro logar na historia da pintura hespanhola.</p>
+
+<p>Vivia n'uma pequena casa nas immediações da Cidade Eterna, a Deusa da arte;
+pensando na gloria, trabalhando sempre, porque Ernesto era um sonhador
+infatigavel, o mundo para elle resumia-se nos seus quadros, nos seus pinceis,
+na sua paleta.</p>
+
+<p>Nunca amara senão sua mãe, que já tinha morrido, e a gloria, que desejava
+alcançar.</p>
+
+<p>Coração impressionavel, mas adormecido, as mulheres eram para elle como
+flôres formosas de um jardim.</p>
+
+<p>N'uma palavra, Ernesto ainda não tinha encontrado o seu bello ideal, o
+perfume da sua alma.</p>
+
+<p>A mulher formosa, para elle, só era uma bella obra onde o grande artista,
+que se chama a natureza, derramara os seus mais preciosos dotes.</p>
+
+<p>Vejam, pois, como a casualidade lhe proporcionou o meio de pagar de um modo
+terrivel o tributo das almas sensiveis, que é o amor.<span
+class="pn">{7}</span></p>
+
+<p>Como dissémos, Ernesto habitava uma casinha nas proximidades de Roma.</p>
+
+<p>O <i>atelier</i>, situado na parte que dava para o jardim, recebia a luz de
+duas grandes janellas por onde entravam os caprichos e interessantes braços de
+algumas trepadeiras.</p>
+
+<p>Era uma tarde do mez de Maio. Ernesto estava retocando uma figura quando
+veiu o creado dizer-lhe que um cavalheiro e uma senhora desejavam falar-lhe.</p>
+
+<p>&mdash;São hespanhoes, disse o criado, e parece-me que o conhecem.</p>
+
+<p>&mdash;Hespanhoes? exclamou Ernesto, largando a paleta. Que entrem
+immediatamente!</p>
+
+<p>Ernesto dirigiu-se para a porta seguindo o creado, quando ouviu uma voz que
+lhe não era desconhecida, dizendo:</p>
+
+<p>&mdash;Onde está este mau hespanhol, que é preciso vir a Roma, á Via Appia
+para lhe dar um abraço?</p>
+
+<p>&mdash;Oh! é o sr. D. Ventura! exclamou o pintor, vendo entrar um sujeito
+d'uns 50 annos, dando o braço a uma menina tão formosa como elegante.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, sou eu, querido pintor, sou eu, o D. Ventura do café Suisso, o
+amigo dos artistas, o enthusiasta pela divina arte de Apollo; eu que, apezar do
+meu enthusiasmo pela pintura, nunca soube collocar n'um rosto o nariz no seu
+verdadeiro lagar. Mas, senta-te, querida Amparo, senta-te; os homens do talento
+são sem-cerimonia como aldeãos, e francos como a verdade&mdash;e apoz pequena
+pausa, continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Começarei por pedir-lhe duas chavenas de café.</p>
+
+<p>Ernesto deu ao creado as ordens necessarias.</p>
+
+<p>A joven, que se sentara n'uma cadeira d'onde distrahidamente contemplava os
+quadros do <i>atelier</i>, dispensou um sorriso de cumprimento ao pintor,
+deixando vêr uns dentes pequenos como os de uma creança, e brancos como o miolo
+do coco.</p>
+
+<p>Tudo o que é bello attrae irresistivelmente os homens de talento.</p>
+
+<p>Ernesto fitou a joven.<span class="pn">{8}</span></p>
+
+<p>Amparo teria 20 annos. O seu rosto de uma graça attrahente, provocadora,
+via-se quasi animado por um d'esses sorrisos em que ficamos em duvida se são a
+manifestação do coquettismo ou a ternura da alma.</p>
+
+<p>Os seus labios bastante vermelhos e humidos pelo constante roçar dos dentes,
+ficavam ás vezes entreabertos como se fossem a exhalar um suspiro ou a receber
+um beijo.</p>
+
+<p>Os seus olhos eram grandes e negros como amoras maduras; mas tão
+movimentados, tão inquietos, tão cheios de vida, tão promptos em manifestar as
+impressões da alma, que tão depressa se viam enlanguescer com a sombra
+embriagadora de um amor platonico, como brilhar com todo o fogo da paixão que
+conduziu Ovidio a um calabouço e Sapho á morte.</p>
+
+<p>Ernesto estudava dissimuladamente aquella joven que tão profunda sensação
+causava na sua alma, virgem das terriveis tempestades do amor; e, cousa rara, o
+seu genio de artista, tão depressa encontrava em Amparo a belleza sensual e
+provocadora das mulheres de Rubens, como o pudor candido das virgens de
+Murillo.</p>
+
+<p>Emquanto a D. Ventura só diremos que era um homem de 50 annos, calvo, com os
+poucos cabellos que possuia já grisalhos, um rosto cheio de saude e alegria;
+n'uma palavra, uma d'estas physionomias que sorriem sempre, até quando choram;
+o typo, emfim do honrado commerciante que conseguiu, depois de muitos annos de
+trabalho, reunir um peculio que o livra de necessidades na velhice.</p>
+
+<p>Amparo era filha unica; fôra educada n'um dos melhores collegios de Madrid,
+e possuia um dote de quatro milhões de pesetas para quando achasse quem a
+merecesse.</p>
+
+<p>D. Ventura era feliz, revendo-se na filha, nova, formosa, vivaz e alegre;
+tocava piano com bastante correcção, cantava regularmente e pintava quasi com
+tanta perfeição como o divino Raphael.</p>
+
+<p>Amparo era, por assim dizer, rainha absoluta, e seu pae um ministro bastante
+condescendente.<span class="pn">{9}</span></p>
+
+<p>A mulher nova e livre, quando a riqueza lhe permitte emprehender viagens de
+recreio durante a estação calmosa, precisa de alguma cousa mais do que mudar de
+paiz para distrahir-se; a viagem torna-se fastidiosa se a alma não toma parte e
+o coquettismo não esgrime as suas armas, tão deliciosas como traidoras, para
+matar o tempo.</p>
+
+<p>Fazer uma conquista sem graves compromissos, sem funestos resultados, n'um
+commodo <i>wagon-lit</i>; trocar olhares expressivos com qualquer mancebo pela
+praia de Biarritz ou no cume das montanhas da Suissa, tem tantos attractivos
+para as jovens viajantes!... É tão agradavel ao coração de uma mulher encontrar
+a duzentas leguas da patria um patricio que se torne seu escravo, que esteja
+disposto a salval-a, a defendel-a e juncar-lhe de flôres a terra que pisa, que
+não póde resistir á tentação de pôr em jogo todas as suas seducções.</p>
+
+<p>Demais, a mulher tem a facilidade de comprehender a impressão que causa e
+sabe aproveitar-se d'ella. Quando volta o inverno, quando as primeiras nuvens
+do outomno as obriga a recolher aos seus lares, esses ternos bandos de aves
+emigradoras, com saias de <i>piquet</i>, chapéu de palha e botas brancas,
+recordam-se então já ao calor do fogão, de todas as loucuras, de todas as
+innocentes concessões feitas ao ar livre e poetisadas pelo vento da montanha ou
+pela brisa do mar; e como não ha mulher que não saiba calcular, como o melhor
+mathematico, pensa se deve acabar ou continuar com os amores do verão.</p>
+
+<p>Amparo, pois, encontrou casualmente Ernesto em Roma. Tinha ouvido dizer que
+possuia talento; agradaram-lhe alguns quadros que viu no <i>atelier</i>, e não
+lhe parecendo má a figura do pintor, dirigiu-lhe alguns olhares e sorrisos,
+d'esses que no coração de um homem sincero e apaixonado causam uma terrivel
+tempestade.</p>
+
+<p>Não pensava a joven que aquelle coquettismo era condemnado pelo bom-senso.
+Empregou-o com a mais santa intenção, apezar de começar a sentir-se
+aborrecida<span class="pn">{10}</span> em Roma, onde andava só com seu pae por
+toda a parte. Ernesto, então, foi olhado, como um recurso, como uma
+distracção.</p>
+
+<p>Quando Amparo sahiu de casa do pintor, ia convicta de que o tinha
+captivado.</p>
+
+<p>&mdash;Pensará em mim, disse ella, virá vêr-me, falaremos de pintura, de
+musica e d'esta fórma aborrecer-me-hei menos.</p>
+
+<p>Amparo ignorava ainda as terriveis consequencias que os seus olhares e
+sorriso deviam exercer na alma do artista. Se o soubesse, indubitavelmente se
+teria abstido, porque o seu coração era bom, generoso e tão impressionavel, que
+se commovia ante a mais ligeira contrariedade, como a folha do trémulo alamo
+ante o mais ligeiro sopro do zephiro.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION0002000">CAPITULO II</a></h4>
+
+<h2>Uma noite no Colyseu</h2>
+
+<p>Quando Ernesto ficou só, em vez de pegar na paleta e nos pinceis
+approximou-se da janella e ficou pensando na joven hespanhola que acabava de
+sahir.</p>
+
+<p>Depois de uma hora de meditação, retirou-se da janella, dizendo para
+comsigo:</p>
+
+<p>&mdash;Se me encommendassem um quadro onde figurasse alguma das tres
+encantadoras filhas de Jupiter e de Eurinome pediria a Amparo para me servir de
+modelo.</p>
+
+<p>E, tomado de uma subita inspiração, pegou na paleta e nos pinceis e começou
+a pintar, n'um pedaço de tela, uma cabeça, mas com tanta rapidez que, em vinte
+minutos, estava completamente esboçada.</p>
+
+<p>Afastou-se um pouco do cavallete para examinar o seu trabalho, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Sim, é ella. Tenho boa memoria.<span class="pn">{11}</span></p>
+
+<p>E como não se contentasse com a sua opinião, chamou o creado e
+perguntou-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Com quem se parece esta cabeça?</p>
+
+<p>&mdash;Bravo! Com quem se ha-de parecer? Com a senhora que esteve cá,
+respondeu o creado sem vacillar. Não é preciso ser muito esperto para a
+reconhecer.</p>
+
+<p>Ernesto tornou a pegar nos pinceis e retocou o seu trabalho.</p>
+
+<p>Duas horas depois tinha terminado um soberbo retrato de Amparo, que o pintor
+mais escrupuloso não recearia pôr em exposição.</p>
+
+<p>Tinha promettido a D. Ventura ir no dia seguinte almoçar com elle ao hotel
+de Londres na praça de Hespanha, onde estavam hospedados.</p>
+
+<p>Ernesto levantou-se cedo, fez a barba, vestiu-se com mais cuidado do que de
+costume, admirando-se de ter gasto tanto tempo ao espelho.</p>
+
+<p>Assim que terminou a sua <i>toilette</i>, satisfeito de si mesmo, enrolou a
+tela com o retrato de Amparo, embrulhou-a n'um papel e sahiu de casa dizendo ao
+creado que tinha o dia livre, visto não voltar senão á noite.</p>
+
+<p>D. Ventura e a filha occupavam dois quartos no primeiro andar do hotel de
+Londres.</p>
+
+<p>Quando Ernesto subia a escada ouviu os accordes de um piano. Deteve-se:
+tocavam a magnifica symphonia de <i>Guilherme Tell</i>.</p>
+
+<p>&mdash;Será Amparo? pensou elle.</p>
+
+<p>E vendo um creado no corredor, disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Qual é o quarto do sr. D. Ventura d'Aguillar?</p>
+
+<p>&mdash;O seis: ahi onde estão tocando.</p>
+
+<p>Ernesto não se tinha enganado: era Amparo quem tão magnificamente
+interpretava uma das mais bellas composições de Rossini.</p>
+
+<p>Receoso de interromper aquella brilhante corrente de notas que tão docemente
+resoavam no coração, esperou junto da porta que terminasse a symphonia.</p>
+
+<p>Logo que ella acabou bateu á porta.</p>
+
+<p>&mdash;Entre, disse D. Ventura.</p>
+
+<p>Entrou. Amparo estava ainda sentada ao piano. Por cima d'este estava um
+grande espelho e no limpido<span class="pn">{12}</span> crystal Ernesto viu
+retratado o encantador rosto de Amparo, que sorria, enviando-lhe um olhar que o
+perturbou por um momento.</p>
+
+<p>&mdash;Bravo, é um homem de palavra, disse D. Ventura. Ahi está uma
+qualidade que não é muito vulgar nos artistas.</p>
+
+<p>&mdash;Então não me esperavam?</p>
+
+<p>&mdash;Eu esperava, mas o meu pae, não, disse Amparo, fazendo girar o banco
+do piano, até ficar voltada para o pintor.</p>
+
+<p>Amparo tinha um vestido tão simples como elegante. O seu cabello negro e
+frizado, estava atado com uma fita azul que fazia realçar a brancura do seu
+rosto e o tom rosado das faces.</p>
+
+<p>O pintor achou-a muito mais formosa do que no dia anterior.</p>
+
+<p>De bôa-vontade ficaria contemplando o encantador modelo que tinha ante si;
+mas isso álêm de inconveniente seria ridiculo.</p>
+
+<p>A donzella, por seu lado, olhava o pintor com o mais seductor dos seus
+olhares e enviava-lhe o mais bello dos seus sorrisos.</p>
+
+<p>Comprehendera o que se passava na alma de Ernesto. Só D. Ventura não via
+nada. É bem certo o dictado que diz que os paes são todos myopes.</p>
+
+<p>&mdash;Que traz ahi, sr. Ernesto? É algum quadro? perguntou Amparo vendo o
+rolo que o pintor tinha na mão.</p>
+
+<p>&mdash;Como estava distrahido! respondeu Ernesto. Hontem de tarde fiz um
+trabalho. É um atrevimento que espero me desculpem.</p>
+
+<p>O pintor desenrolou a tela e apresentou-a, sorrindo-se.</p>
+
+<p>A joven não poude conter um grito de assombro, e D. Ventura pronunciou uma
+interjeição.</p>
+
+<p>&mdash;Sou eu!</p>
+
+<p>&mdash;É a minha filha!</p>
+
+<p>&mdash;É um retrato d'esta senhora, e venho offerecel-o como uma recordação
+da visita que tiveram a bondade de me fazer.<span class="pn">{13}</span></p>
+
+<p>&mdash;São levados da breca estes pintores, exclamou D. Ventura. Como se
+póde reter na memoria de uma fórma tão completa as feições de uma pessoa e
+passal-as para a tela com tanta verdade?! Porque és tu! Sim, tão parecida como
+duas gottas d'agua; muito mais parecida do que uma photographia.</p>
+
+<p>Ernesto sorriu-se das admirações de D. Ventura. Amparo parecia agradecer-lhe
+com um olhar cheio de ternura aquella recordação tão delicada.</p>
+
+<p>&mdash;Pois é a cousa mais facil do mundo, disse o pintor olhando para
+Amparo, comprometia-me a fazer outro d'aqui a tres annos sem me esquecer do
+menor detalhe do vestido e do penteado que tem n'esta occasião.</p>
+
+<p>&mdash;Pegue-lhe na palavra, papá, disse Amparo, e d'aqui a tres annos, se
+nos encontrarmos em Madrid havemos de vel-o ficar mal.</p>
+
+<p>&mdash;Fica encommendado o retrato. Mas agora parecia-me melhor que nos
+servissem o almoço e que pensassemos em que devemos entreter o dia.</p>
+
+<p>&mdash;Já visitaram as <i>vilas</i> ou casas de campo dos arredores?
+perguntou Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Já visitámos uma... Como se chama a que vimos hontem? perguntou D.
+Ventura á filha.</p>
+
+<p>&mdash;<i>Vila Aldobrandini</i>.</p>
+
+<p>&mdash;É magnifica, mas está pouco menos do que abandonada. Deliciosa mansão
+se se arranjassem os jardins em fórma de amphitheatro. O Dominiquino deixou-nos
+n'essa casa sumptuosa uns quadros inegualaveis. Faz pena ouvir, no meio de
+tanto abandono, o cadente murmurio das suas cascatas que se assimilham á
+harmonia dos orgãos aquaticos da antiguidade como ao mesmo tempo vêr as
+soberbas estatuas e outros objectos de esculptura de grande merito.</p>
+
+<p>&mdash;Com franqueza não a achei grande cousa... como disseste que se
+chamava, Amparo?</p>
+
+<p>&mdash;<i>Aldobrandini</i>, papá. Valha-o Deus, que cabeça a sua!</p>
+
+<p>E Amparo trocou um sorriso com Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Podemos vêr outras que estão melhor conservadas, ajuntou o pintor.
+Por exemplo, é digna de visitar-se<span class="pn">{14}</span> a <i>Vila
+Borghése</i> pelo seu grandioso lago, pelo hypodromo, pelo templo, pelos
+jardins e, sobretudo, pelo rico museu de numismatica, e se desejarem
+visitaremos a <i>Vila Albani</i> e o seu celebre museu. Os antigos romanos
+tiveram grande predilecção pelas casas de campo. Os historiadores d'aquelle
+tempo contavam cousas fabulosas. Os poetas, esses sonhadores de todas as
+epochas, esses pobres loucos que não tendo um real de seu phantasiam palacios e
+cascatas brilhantes, falam com grande entusiasmo das quintas que nos arredores
+de Roma possuia Cesar, Lucullo, Marcello, Nero, Pompeu, Salustio e muitos
+outros homens celebres; mas hoje não existem mais do que ruinas. A casa de
+campo de Mecenas, onde iam Augusto, Virgilio, Horacio, Plocio, Tiscca e Polion
+descançar das fadigas de Roma, converteram-se hoje em forja de um pobre
+ferreiro. Que ode tão sentimental escreveria o pudico auctor da <i>Eneida</i>
+se ressuscitasse ao contemplar as ruinas de Roma.</p>
+
+<p>D. Ventura ouvia Ernesto de bôcca aberta. Tudo isto para elle era grego.
+Amparo não deixava de se sorrir. Entre elles começava a existir uma grande
+intimidade, a intimidade que produz as sympathias.</p>
+
+<p>&mdash;Sabe o que desejo vêr, sr. Ernesto? disse Amparo. É o Colyseu. Li,
+não me recordo em que livro, que visto n'uma noite de luar é surprehendente.</p>
+
+<p>&mdash;Os viajantes julgam segundo a impressão que os objectos produzem no
+seu temperamento. Por isso emquanto uns ao percorrer a Palestina a descrevem
+cheia de frondosidade e poesia que a adornava no tempo de Salomão, outros a
+classificam de um arido areal, um deserto insupportavel, pobre, povoado por
+tribus selvagens e ascorosas, mas o Colyseu começado por Vespasiano e acabado
+por Tito, visto, quer á luz do sol quer á da lua é verdadeiramente
+admiravel.</p>
+
+<p>&mdash;Ainda assim prefiro vel-o de noite, disse Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Então aproveitaremos o luar, e hoje mesmo se póde realisar o seu
+desejo.</p>
+
+<p>&mdash;Que dizes a isso, papá?</p>
+
+<p>&mdash;Que estou ao teu dispor.</p>
+
+<p>&mdash;Fica, pois, combinado para esta noite.<span class="pn">{15}</span></p>
+
+<p>Almoçaram como bons hespanhoes, depressa e sem lhe dar grande importancia,
+pois não é a Hespanha a terra dos Lucullos.</p>
+
+<p>Do meio-dia ás 5 horas da tarde visitaram algumas casas de campo dos
+arredores de Roma.</p>
+
+<p>D. Ventura estava encantado. Ernesto sabia tudo; era, como vulgarmente se
+diz, um livro aberto.</p>
+
+<p>Não encontraram uma pedra, uma columna, um sepulchro do qual o pintor não
+soubesse a historia.</p>
+
+<p>Amparo escutava-o com prazer. Encostando-se-lhe familiarmente ao braço
+fazia-lhe perguntas, principalmente quando encontrava alguma inscripção
+latina.</p>
+
+<p>O dia passou-se agradavelmente para os tres; as horas foram curtas, e os
+laços de amisade estreitaram-se duplamente com aquelle agradavel passeio.</p>
+
+<p>Ás seis horas regressaram ao hotel. O jantar já os esperava. Depois
+metteram-se n'um trem que os conduziu ao Colyseu.</p>
+
+<p>A noite estava serena; a lua no seu auge, e a sua clara luz banhava as
+colossaes ruinas onde em outros tempos oitenta e sete mil espectadores iam
+gozar o barbaro espectaculo das luctas humanas.</p>
+
+<p>Então, o povo romano pedia pão e circo, e os imperadores tinham o cuidado de
+satisfazer os desejos da terrivel fera que dormia, lambendo-lhe os pés.</p>
+
+<p>Ernesto levava os dois amigos a um e outro lado, esplicando-lhe com o mesmo
+conhecimento que poderia fazer-lhe um <i>cicerone</i> do tempo do imperador
+Claudio, descrevendo-lhe ao mesmo tempo aquellas terriveis luctas, dos
+adestrados gladiadores, cujo sangue regou com abundancia a arena do circo.</p>
+
+<p>&mdash;Assistiram mulheres a esse barbaro espectaculo? perguntou Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Ao principio era-lhes prohibida a entrada, respondeu Ernesto, mas
+depois foi auctorisada, reservando-lhes Octavio Augusto as bancadas mais altas
+do amphitheatro. Precisamente aqui onde estamos era a tribuna do imperador, e
+alli a das vestaes, cujo docel era egual ao do imperador. A este sitio
+chamava-se<span class="pn">{16}</span> <i>Spoliarium</i>, para onde conduziam
+os cadaveres dos gladiadores ou os que estavam mortalmente feridos, puxando-os
+com um gancho de ferro. Esta obra colossal foi construida no curto espaço de
+quatro annos. Tinha setenta portas, sem contar com as entradas reservadas para
+o imperador e a sua côrte. As festas da inauguração no tempo de Flavio Sabino
+Tito duraram cem dias consecutivos, e n'ella perderam a vida dois mil
+gladiadores.</p>
+
+<p>&mdash;Parece impossivel que tão sanguinolentos espectaculos agradassem a
+mulheres, exclamou Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;A vida dos feridos, continuou Ernesto, quando caíam banhados de
+sangue na arena, ficavam sempre á disposição dos espectadores. O vencedor
+collocava a ponta da espada no peito do vencido e esperava que o publico lhe
+dissesse; «Mata» ou «Perdôa». Outras vezes o ferido arremessava as armas e caía
+ao pé das grades a implorar clemencia. Se os espectadores levantavam o dedo
+pollegar, concedia-se-lhe a vida; mas se o viravam para baixo, então o ferido
+apresentava o peito ao seu adversario para que o acabasse de matar.</p>
+
+<p>&mdash;Mas perdoavam sempre? disse D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Algumas vezes. Durante o reinado do infame Caracalla nem uma só vez
+se concedeu o indulto aos gladiadores vencidos. O povo romano de então, era tão
+feroz como sanguinario, e só gozava com a agonia dos seus similhantes, pois,
+como disse o grande poeta inglez Lord Byron, ácêrca dos costumes do povo, assim
+apparecem singelas e naturaes as cousas mais horriveis e sangrentas.</p>
+
+<p>D. Ventura escutava em silencio o narrador, que lhe contava com a precisão
+de um bom livro, todas as horriveis scenas que tiveram logar no Colyseu.</p>
+
+<p>Algumas vezes Amparo, para caminhar com mais segurança por aquellas
+sumptuosas ruinas, dava a mão a Ernesto. Aquellas duas mãos apertavam-se
+docemente, transmittindo um suave estremecimento.</p>
+
+<p>D. Ventura era um homem de bem, mas um homem todo prosa; e aquillo tudo,
+apezar do luar e das<span class="pn">{17}</span> descripções historicas de
+Ernesto, parecia-lhe um montão de ruinas, uma toca de lagartos.</p>
+
+<p>Comtudo, para não ser <i>desmancha-prazeres</i>, dizia de quando em
+quando:</p>
+
+<p>&mdash;Soberbo! Magnifico!</p>
+
+<p>Á meia-noite regressaram ao hotel.</p>
+
+<p>Quando Ernesto se despediu, Amparo disse-lhe, apertando-lhe a mão e
+dirigindo-lhe um olhar cheio de doce esperança:</p>
+
+<p>&mdash;Passei uma noite deliciosa. Estou certa de que sempre me lembrarei do
+Colyseu de Roma.</p>
+
+<p>Para Ernesto aquella despedida foi uma promessa irmã da esperança, essa
+bella flôr que perfuma a alma.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION0003000">CAPITULO III</a></h4>
+
+<h2>Sonhos côr-de-rosa</h2>
+
+<p>Ernesto teve aquella noite um sonho côr-de-rosa, porque a bella Amparo foi o
+anjo do seu sonho.</p>
+
+<p>Os homens de genio e sobretudo os pintores, quando pensam no amor, antes de
+amar, criam um typo perfeito como todas as sublimes creações da imaginação; uma
+d'essas mulheres de extraordinaria belleza cheia de luz, sem um <i>senão</i> no
+moral, sem um defeito no physico, perfeita de corpo e d'alma: mas quando chega
+o momento de, ou cançados do celibato, ou para pagar esse tributo de que poucos
+se salvam, chamado matrimonio, se decidem a casar, então já é outra cousa, pois
+muitas, mesmo muitissimas vezes a poesia se incarna na prosa, e depois...
+Satanaz toma parte activa na symphonia do matrimonio.</p>
+
+<p>O amor é cego, e os homens e as mulheres devem resignar-se a não vêr bem,
+precisamente quando deviam ter olhos de lynce.<span class="pn">{18}</span></p>
+
+<p>Ernesto levantou-se alegre e cantando a symphonia de <i>Guilherme Tell</i>;
+e pensando em Amparo pegou na paleta e poz-se a pintar no seu quadro.</p>
+
+<p>A filha do D. Ventura tinha-se photographado d'uma maneira tão profunda na
+sua imaginação, que o pintor achou sem saber como que uma das figuras do seu
+quadro tinha grandes parecenças com Amparo. Admirou-se, mas agradou-lhe ao
+mesmo tempo.</p>
+
+<p>Ás dez horas largou a paleta, almoçou, e pegando n'uma folha de papel,
+poz-se a pintar uma aguarella do Colyseu visto á luz do luar.</p>
+
+<p>&mdash;Isto será uma recordação dedicada a Amparo, disse elle. Dir-lhe-hei
+que a colloque no seu gabinete para que nunca se esqueça da noite que
+representa.</p>
+
+<p>Ernesto esmerou-se marcando com arte e delicadeza todos os detalhes da
+aguarella. Collocou n'um ponto conveniente um pintor tirando o <i>croquis</i>
+do Colyseu, e ao seu lado um cavalheiro e uma joven.</p>
+
+<p>Apezar das figuras terem apenas duas pollegadas, o pintor tinha o maximo
+empenho em que ficassem parecidas com os originaes que representavam. A empreza
+era difficil; mas por fim, apoz algum trabalho, conseguiu o que desejava.</p>
+
+<p>Satisfeito com a sua obra e com a alegria do homem que sente na alma os
+primeiros perfumes do amor e julga causar uma surpresa agradavel á provocadora
+dos seus sonhos, ao cair da tarde dirigiu-se para Roma.</p>
+
+<p>D. Ventura e a filha estavam tomando café. Tinham acabado de jantar.</p>
+
+<p>&mdash;Chega a proposito, disse D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Dou-me por feliz, respondeu Ernesto, cumprimentando a joven.</p>
+
+<p>&mdash;Sente-se e tome café comnosco.</p>
+
+<p>&mdash;Primeiro que tudo, desejo saber em que consiste a opportunidade da
+minha chegada.</p>
+
+<p>&mdash;Aborreciamo-nos, disse Amparo, Roma é uma cidade morta; nem sequer
+tem theatros.</p>
+
+<p>&mdash;Diz muito bem. Roma é um cadaver que todos os annos ressuscita pelo
+Carnaval, e vive um mez<span class="pn">{19}</span> commettendo as mais
+excentricas loucuras; depois torna a cahir na soledade da tumba, até ao anno
+seguinte.</p>
+
+<p>&mdash;Quer dizer que errámos a epocha da nossa viagem, disse D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Justamente. Mas se a sr.ª D. Amparo quizer ir ao theatro, temos
+actualmente um aberto.</p>
+
+<p>&mdash;Qual?</p>
+
+<p>&mdash;O do Tiano.</p>
+
+<p>&mdash;Dizem que não é bonito.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, mas em compensação representam admiravelmente.</p>
+
+<p>&mdash;Sabe, senhor Ernesto, que esta noite tive uma ideia? disse Amparo,
+cerrando docemente as palpebras para conservar a luz dos seus formosos olhos
+fixos no pintor.</p>
+
+<p>&mdash;Estou crente, de que foi uma ideia sublime.</p>
+
+<p>&mdash;Vaes ouvir, papá; o senhor Ernesto já disse que a minha ideia era
+sublime; agora só necessito que o papá a ache tambem.</p>
+
+<p>&mdash;Olha que os artistas são muito aduladores; não te fies n'elles. Mas
+vamos, dize qual é a tua ideia.</p>
+
+<p>&mdash;Resume-se em deixarmos Roma e irmos passar um mez em Florença; mas
+com uma condição: que o senhor Ernesto nos acompanhe como nosso
+<i>cicerone</i>.</p>
+
+<p>&mdash;Essa exigencia é uma loucura, filha da pouca experiencia propria da
+tua edade, disse D. Ventura. Ernesto está pintando um quadro que tem de mandar
+para a proxima exposição de Madrid, em setembro.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, o senhor Ernesto tem o quadro muito adeantado e d'aqui até
+setembro vão ainda quatro mezes, disse rapidamente Amparo, dirigindo ao pintor
+um olhar supplicante para que elle annuisse.</p>
+
+<p>&mdash;Acceito sem vacillar, disse Ernesto, e dou as minhas razões. Preciso
+só de um mez para concluir o meu quadro. E antes de voltar a Hespanha tinha
+necessidade de ir a Florença para tirar uns croquis da <i>Venus de Médicis</i>,
+do <i>Grupo de Niobe</i> e de alguns quadros da escola flammenga que existem no
+celebre palacio de Pitti. Quero tambem tirar alguns <i>croquis</i> da
+<i>cathedral de Santa Maria de Fiore</i>, d'essa memoravel architectura<span
+class="pn">{20}</span> da qual Miguel Angelo, disse ser impossivel fazer outra
+mais bella, pois era digna de servir de frontespicio ao Paraiso, e que o
+imperador Carlos <small>V</small> devia pôl-a n'um estojo para melhor a
+conservar. Assim pois, tudo se resume em adeantar dois mezes a minha viagem a
+Florença. Quando partirem para Hespanha, eu regressarei a Roma para terminar o
+meu quadro, e prometto que o verão collocado n'um dos salões da Exposição no
+dia 20 de setembro.</p>
+
+<p>Amparo applaudiu, como uma creança que manifesta sem reserva a sua alegria.
+A viagem projectada por ella era encantadora. Grande foi o seu contentamento
+vendo que era acceite o seu plano, porque nada é tão grato ao coração de uma
+mulher joven, como realisar um dos seus sonhos côr-de-rosa que de vez em quando
+lhe acariciam a alma.</p>
+
+<p>Na noite anterior deitara-se, pensando no seu poetico passeio ao Colyseu.
+Como o somno se mostrasse rebelde, recapitulou na memoria até as mais
+pequeninas cousas acontecidas nas celebres ruinas.</p>
+
+<p>Os olhares de Ernesto, os suaves apertos de mão, a lua que banhava,
+poetisando, as pardas e as derrubadas galerias do Colyseu, as descripções
+historicas que com doce e carinhoso accento narrava Ernesto, tudo isto formava
+um conjuncto agradavel ao coração de Amparo.</p>
+
+<p>Amava Ernesto? Nem ella mesmo sabia que responder a esta pergunta que fez
+pelo silencio da noite.</p>
+
+<p>O pintor era novo, elegante, bem parecido, com uma educação pouco vulgar, e
+pelo menos era-lhe sympathico.</p>
+
+<p>Como ha sempre algum egoismo no coração da mulher, Amparo pensou que
+continuar a sua viagem pela Italia acompanhada de Ernesto tinha muito mais
+encanto, era mais divertido do que viajar sósinha com o pae.</p>
+
+<p>Amparo não pensou senão em si. Com algum conhecimento mais profundo da vida
+material dos artistas, isto é, a prosa do talento, teria pensado que talvez
+Ernesto não se encontrasse em condições de emprehender<span
+class="pn">{21}</span> uma viagem em carruagem de primeira classe, e
+installar-se n'um hotel de luxo.</p>
+
+<p>É bem certo que Amparo ignorava o valor do dinheiro: gastava o do pae, que
+era rico, sem se preoccupar com o valor que tem um duro<a name="tex2html1"
+href="#foot162"><sup>[1]</sup></a> para quem não possue vinte reales.</p>
+
+<p>Por outro lado Ernesto, um verdadeiro artista, sonhava que era um principe e
+julgava os seus sonhos uma realidade... Era mais ambicioso de gloria do que de
+ouro.</p>
+
+<p>Quando acceitou a projectada viagem por Amparo, sem pensar se o dinheiro que
+possuia por sua unica fortuna chegaria para occorrer a todas as despezas, só
+pensou na felicidade de viajar com aquella mulher formosa, por uma terra
+encantadora, cujo céu azul e o perfume das brisas são o orgulho das filhas de
+Toscana, a admiração dos estrangeiros.</p>
+
+<p>Combinada a partida para quatro dias depois, Ernesto apresentou a aguarella
+do Colyseu, que arrancou um grito de admiração e muitos olhares de
+agradecimento a Amparo.</p>
+
+<p>O pintor regressou a casa já bastante tarde, tão alegre, tão feliz, que não
+teria trocado a sua existencia por cousa alguma d'este mundo.</p>
+
+<p>A felicidade está ás vezes em tão pequenas cousas!... O pobre artista
+julgava-se amado, e começava a amar com toda a sua alma virgem e apaixonada.</p>
+
+<p>Quando chegou a casa, pegou n'uma folha de papel para fazer o orçamento das
+suas despezas.</p>
+
+<p>&mdash;Necessito, disse elle, de quatro mil reales para a viagem. Vejamos
+como estou a respeito de fundos.</p>
+
+<p>Ernesto só tinha seiscentos. Era-lhe preciso arranjar dinheiro.</p>
+
+<p>Procurou na memoria os nomes de alguns amigos pintores que como elle viviam
+em Roma, mas um sorriso lhe assomou aos labios.<span class="pn">{22}</span></p>
+
+<p>&mdash;Todos elles, disse, são tão pobres ou mais do que eu; não devo
+expôr-me a uma negativa forçada, que é tão desagradavel a quem a dá como a quem
+a recebe. Melhor será sacrificar alguns dos meus quadros. O senhor Daniel é um
+judeu, menos judeu que os dez mil que pelo interesse do commercio o papá
+consente em Roma. Escrever-lhe-hei.</p>
+
+<p>E pegando na penna escreveu:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Senhor Daniel
+Raithany</i></p>
+
+<p>«Meu bom amigo</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="margin-left:2em;">«Vou emprehender uma viagem a Florença e preciso
+vender alguns quadros. Tenha, pois, a bondade de vir hoje ao meu
+<i>atelier</i>, onde o espero até ás quatro horas da tarde.</p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"> <small
+class="SMALL">Seu amigo</small>,</p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"> <i>Ernesto
+Alvarez</i>.»</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>O pintor chamou o creado e disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Amanha, quando te levantares, vaes a Roma entregar esta carta ao sr.
+Daniel, negociante de quadros. Mora no bairro dos judeus; já o conheces.</p>
+
+<p>Depois deitou-se para sonhar com Florença e Amparo.</p>
+
+<p>Ernesto achava-se na ditosa edade dos sonhos côr-de-rosa, e viu durante
+algumas horas passar pelos olhos da sua illusão um panorama encantador onde a
+flôr mais perfumada, mais bella, mais resplandecente, era Amparo que, olhando-o
+com languidez, lhe dizia uma e mil vezes mais: «amo-te! amo-te! amo-te!»</p>
+
+<p>E para que desperta um homem d'estes sonhos encantadores?<span
+class="pn">{23}</span></p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION0004000">CAPITULO IV</a></h4>
+
+<h2>O pintor e o judeu</h2>
+
+<p>Daniel Raithany era um dos maiores negociantes do bairro judaico. Tinha em
+toda a Europa fama de intelligente e honrado, apezar de ninguem ignorar que
+vendia caro e comprava barato. Esta qualidade era descupavel, tratando-se de um
+negociante judeu; mas, em compensação, tinha uma grande qualidade, que era que
+quando um admirador de pintura, ainda que de Londres, Paris, Vienna, S.
+Petersburgo, Madrid ou de qualquer das grandes capitaes da Europa necessitava
+para a sua galeria um quadro d'este ou d'aquelle auctor celebre, escrevia-lhe
+uma carta, e não olhando a preço tinha o que desejava.</p>
+
+<p>Nunca enganava ninguem, dando uma copia por original. Daniel era
+intelligente, e apezar de não saber pintura, tão conhecedor era das escolas que
+mais de uma vez, em casos duvidosos, o chamavam como períto.</p>
+
+<p>Todos os pintores eram amigos de Daniel e era tão difficil enganal-o
+vendendo-lhe gato por lebre, como vulgarmente se diz, que ninguem tentava
+fazel-o.</p>
+
+<p>Dizia-se que o negociante conseguira juntar muitos milhões. Comtudo a sua
+loja apresentava sempre o mesmo aspecto modesto, e a sua pessoa conservava a
+mesma linha; isto é, usava constantemente uma sobrecasaca verde com grandes
+abas, calças e collete preto, uma gravata de velludo, um chapéu usado, um
+chapéu de chuva velho debaixo do braço e uma cadeia d'aço, em cuja extremidade
+estava preso um modesto relogio de prata.</p>
+
+<p>Daniel era um homem alto, magro e pallido, nariz arqueado, cabello grisalho,
+olhos verdes, pequenos o encovados; um d'esses typos vulgares, mas em<span
+class="pn">{24}</span> quem, olhados com attenção, se encontra bondade e doçura
+no semblante.</p>
+
+<p>Ernesto estava pintando. Eram dez horas da manhã quando viu entrar no
+<i>atelier</i> o judeu.</p>
+
+<p>Daniel entrou como sempre, sorrindo-se, com o chapéu de chuva debaixo do
+braço, e a caixa do rapé que nunca abandonava, na mão esquerda.</p>
+
+<p>&mdash;Bons dias, millionario, disse Ernesto, extendendo-lhe a mão. Muito
+agradecido pela sua pontualidade.</p>
+
+<p>&mdash;Em questão de dinheiro, respondeu Daniel, é preciso sermos pontuaes,
+e aproveitarmos o tempo. Por um minuto se póde perder um bom negocio.</p>
+
+<p>&mdash;Pelo que se vê o senhor é negociante até á medulla dos ossos. Mas
+vamos falar do nosso.</p>
+
+<p>O pintor deixou a paleta e os pinceis, indicou-lhe uma cadeira e sentou-se
+n'outra.</p>
+
+<p>&mdash;Preciso dinheiro.</p>
+
+<p>&mdash;Já o suppunha.</p>
+
+<p>&mdash;Por isso lhe pedi que me viesse visitar.</p>
+
+<p>&mdash;E eu, conhecendo a impaciencia dos artistas, apressei-me em vir.</p>
+
+<p>&mdash;Agradecendo-lhe pela segunda vez, começarei por lhe dizer que dentro
+de tres dias parto para Florença.</p>
+
+<p>&mdash;Uma viagem de recreio.</p>
+
+<p>&mdash;De recreio e estudo. Tenciono tirar alguns <i>croquis</i> da celebre
+galeria do palacio de Pitti.</p>
+
+<p>&mdash;Bello pensamento!</p>
+
+<p>&mdash;E como para ir a Florença é preciso dinheiro e como eu não o tenho,
+ou melhor, tenho pouco, quero que me compre alguns quadros. Póde escolher,
+exceptuando o que está no cavallete, pois esse é, como sabe, para a Exposição
+de Madrid, e póde dizer-se que me não pertence.</p>
+
+<p>Daniel guardou silencio, levantou-se, poz os oculos e começou a passar
+revista aos quadros, e estudos que estavam nas paredes.</p>
+
+<p>Ernesto entretanto accendeu um charuto e recostou preguiçosamente a cabeça
+no espaldar da cadeira.<span class="pn">{25}</span></p>
+
+<p>Mais de tres quartos de hora durou a revista passada ás telas por Daniel.
+Quando estava perfeitamente inteirado, tirou os oculos, com todo o seu vagar,
+guardou-os no bolso, e, sentando-se, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Tem seis quadros de comestiveis, quatro pequenos de costumes
+hespanhoes, e dois de flôres. Fico com os doze, pois tenho probabilidade de os
+vender a um inglez que me encarregou de comprar alguma cousa n'este genero, e
+dou por elles quatrocentos duros.</p>
+
+<p>&mdash;É pouco dinheiro.</p>
+
+<p>Daniel encolheu os hombros.</p>
+
+<p>&mdash;Não dou mais, respondeu; é impossivel.</p>
+
+<p>&mdash;Dou-lh'os por doze mil reales e creia que ainda ganhará uns duzentos
+por cento.</p>
+
+<p>&mdash;N'estes tempos não é possivel. Desde que a photographia póde
+offerecer o <i>fac-simile</i> de uma obra-prima por um franco, a pintura perdeu
+muito.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor Daniel, concedo-lhe o direito de regatear o preço de um
+quadro, de dizer que é mau sendo bom, mas não lhe consinto que ponha a
+photographia a par da pintura. Poderá ter-se uma copia do Ticiano estampada em
+um boccado de papel por dois reales, mas não se terá Ticiano, nem pela
+photographia se poderá nunca formar uma ideia, ainda que vaga, do que vale o
+citado auctor.</p>
+
+<p>Daniel fez um gesto de indifferença, o ajuntou:</p>
+
+<p>&mdash;Sabe que tenho em muita consideração os seus trabalhos, e que se não
+estivesse tão occupado, o encarregaria de algumas copias, e isso deve
+inspirar-lhe confiança para crer que não procuro exploral-o. Quem sabe se terei
+quatro ou mais annos armazenados na loja esses doze quadros que pretendo
+comprar. E se assim succeder, o senhor bem sabe que dinheiro vale dinheiro, e
+isso representa uma grande perda.</p>
+
+<p>Ernesto comprehendeu que o judeu não lhe daria mais, visto conhecer a
+necessidade que elle tinha do dinheiro.</p>
+
+<p>Calculou que com a importancia offerecida e o que possuia podia fazer
+desafogadamente e até com luxo a viagem e resolveu acceitar o negocio.<span
+class="pn">{26}</span></p>
+
+<p>&mdash;Está fechada a transacção, disse o pintor. Mando-lh'os ainda hoje
+mesmo.</p>
+
+<p>Daniel tirou a carteira, e d'ella a importancia offerecida em notas do Banco
+Romano, e entregou-a ao pintor, dizendo:</p>
+
+<p>&mdash;Muito dinheiro podia ganhar!</p>
+
+<p>&mdash;Não desejo outra cousa, respondeu Ernesto, pondo o dinheiro sobre a
+mesa.</p>
+
+<p>&mdash;Seriamente?</p>
+
+<p>&mdash;O dinheiro é a primeira necessidade do homem n'este valle de
+lagrimas.</p>
+
+<p>&mdash;Então posso offerecer-lhe á volta de Florença algumas notas mais, se
+me trouxer algumas copias da escola flammenga e franceza dos originaes que
+existem no palacio Pitti.</p>
+
+<p>&mdash;Isso depende do tempo.</p>
+
+<p>&mdash;A actividade augmenta as horas.</p>
+
+<p>&mdash;Não me comprometo, mas farei todo o possivel porque receio que me
+faça falta o dinheiro para ir a Hespanha expor o meu quadro.</p>
+
+<p>&mdash;Pois já sabe o meio de o obter.</p>
+
+<p>Daniel começou a despendurar os quadros que comprara e ia-os collocando
+todos juntos, para que Ernesto ao mandal-os se não esquecesse de algum.</p>
+
+<p>Depois despediu-se do pintor, tornando-lhe a recommendar que trabalhasse
+muito.</p>
+
+<p>&mdash;O trabalho, senhor Ernesto, é a maior fortuna do homem. Não se
+esqueça de que as formigas e as abelhas são muito mais ricas do que as
+cigarras.</p>
+
+<p>Ha conselhos que só produzem um ligeiro murmurio nos ouvidos de quem os
+ouve.</p>
+
+<p>Daniel sahiu. Ernesto chamou o creado.</p>
+
+<p>&mdash;Logo levas esses doze quadros a casa do senhor Daniel Raithany,
+disse-lhe. Vou fazer uma viagem a Florença. Demoro-me um mez. Podes dispor de
+ti como te aprouver, n'esses trinta dias, mas nem uma só noite deixarás de
+dormir em casa.</p>
+
+<p>Entregou o dinheiro que julgou sufficiente para o sustento do creado, mandou
+que lhe servissem o almoço, e depois sahiu.<span class="pn">{27}</span></p>
+
+<p>Uma vez em Roma comprou alguma roupa para a viagem.</p>
+
+<p>Á tarde foi visitar os seus amigos e jantar com elles.</p>
+
+<p>D. Ventura começava a olhar Ernesto como da familia; é verdade que quando se
+encontra um compatriota a algumas centenas de leguas distantes da mãe patria,
+sente-se uma alegria tão grande no coração que o tratamos como se fosse um
+parente.</p>
+
+<p>A D. Ventura parecia o mais natural do mundo que um rapaz tão bem educado,
+tão fino, tão illustrado como Ernesto o acompanhasse na sua viagem a
+Florença.</p>
+
+<p>Emquanto a Amparo, não pensou senão em realisar o seu desejo; viajando com
+Ernesto, tinha mais encanto a excursão, porque o pintor lhe era sympathico.</p>
+
+<p>Os olhares, os sorrisos, os apertos de mão, as palavras carinhosas são
+impulsos muitas vezes naturaes do coração feminino, e é sem duvida por isso que
+não lhes dão nenhuma importancia.</p>
+
+<p>Mas Ernesto pensava de outro modo, e ia reunindo na sua alma simples e
+apaixonada, um sem numero de esperanças encantadoras, que eram o seu maior
+thesouro, e que deviam tornar-se a sua maior desgraça, porque o amor quasi
+sempre é um jogo em que um dos jogadores perde.</p>
+
+<p>Os preparativos de uma viagem em que esperamos gozar e divertirmo-nos são
+muito encantadores. Ernesto offereceu a D. Ventura um <i>Guia do forasteiro em
+Florença</i>, preciosamente illustrado, e a Amparo um elegante album para
+desenhos.</p>
+
+<p>&mdash;Temos que trabalhar muito, dizia o pintor, e não podemos consentir
+que nos importune com perguntas.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, sim, o senhor Ernesto tem razão; temos que fazer muitos
+desenhos, e para que se não aborreça, emquanto trabalhamos, lerá o seu
+<i>Guia</i> deante das obras d'arte que vamos visitar.</p>
+
+<p>D. Ventura para quem não havia maior felicidade<span class="pn">{28}</span>
+do que a alegria de Amparo, vendo-a contente e feliz, ria-se com a expansão de
+um pae que ama com loucura a filha.</p>
+
+<p>Só uma vez se poz serio vendo crescer aquella sympathia entre Amparo e o
+pintor, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;E a rapariga acaba por se enamorar de Ernesto. Fez algumas reflexões
+mentaes e ajuntou:</p>
+
+<p>&mdash;Diabo, Ernesto é pobre; minha filha tem quatro milhões de dote no dia
+do casamento e mais oito quando eu morrer.</p>
+
+<p>Aqui tornou a deter-se; mordeu o labio inferior como o negociante que pensa
+n'um negocio importante, mas rapidamente se lhe alegrou o rosto e exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Se ella o ama e quizer casar com elle, que se case; vale mais ter por
+genro um homem como Ernesto, pobre, do que um parvo rico.</p>
+
+<p>Desde aquelle momento, Ernesto podia contar com a protecção do pae.</p>
+
+<p>Chegou o dia da partida. A viagem podia fazer-se de dois modos: em pequenas
+jornadas, parando-se para vêr as povoações de alguma importancia artistica, ou
+em caminho de ferro.</p>
+
+<p>D. Ventura optou pela ligeireza da locomotiva, e os nossos tres viajantes,
+alegres como estudantes em ferias, installaram-se n'um compartimento de
+primeira classe. A fortuna favorecia-os: iam sós. Emquanto foi dia, Amparo e
+Ernesto passaram a maior parte do tempo á janella da carruagem, admirando o
+panorama que se ia desenrolando a seus olhos.</p>
+
+<p>Os jovens só trocaram algumas palavras em voz baixa; mas os olhos têem uma
+linguagem tão expressiva, que dizem tudo, quando se movem impulsionados por uma
+alma apaixonada.</p>
+
+<p>D. Ventura lia o livro offerecido pelo pintor, ou dormitava. Quando chegou a
+noite, Ernesto bastante timido, apoderou-se de uma das mãos de Amparo, não
+menos linda do que a da Laura que inspirou a Petrarcha quatro sonetos, e
+disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Que feliz eu sou!...<span class="pn">{29}</span></p>
+
+<p>Amparo sorriu-se e retirou a mão.</p>
+
+<p>Depois, reclinando a cabeça em um dos cantos da carruagem, cerrou os olhos,
+fingindo que dormia.</p>
+
+<p>Assim collocara certa distancia entre si e Ernesto. Amparo, apezar de nova,
+tinha mais conhecimento do coração humano do que o seu companheiro de viagem, e
+temeu que prolongando a conversação á tenue luz do vagon e quasi tocando-se os
+joelhos, fizesse alguma d'essas concessões de que mais tarde se arrepende a
+mulher.</p>
+
+<p>Ernesto procurou tambem posição commoda e tentou dormir, mas foi em vão.</p>
+
+<p>Nasceu o dia, e com elle a animação entre os viajantes.</p>
+
+<p>A linha seguia n'aquelle momento o curso do rio Arno. A conversação
+renovava-se a cada paragem do comboio. D. Ventura lia o nome das estações e
+procurava no <i>Guia</i> a parte interessante da terra.</p>
+
+<p>Em Signa atravessaram o Arno e não demorou muito vêr-se ao longe as torres
+elevadas de Florença, os quatro pontos e os quatros bairros.</p>
+
+<p>Ernesto exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Alli está Florença, berço do renascimento das artes, patria de Dante,
+de Petrarcha, e de Galiléu!</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION0005000">CAPITULO V</a></h4>
+
+<h2>O grupo de Niobe</h2>
+
+<p>A Florença dos nossos dias é muito differente da que engrandeceram os
+Médicis; mas por toda a parte se encontram as pégadas de Cosme o Virtuoso,
+chamado o pae da patria, talvez pelo excessivo rigor com que tratava os
+filhos.</p>
+
+<p>Indubitavelmente os Médicis foram grandes negociantes. A sua fortuna
+fabulosa e a sua honradez ao<span class="pn">{30}</span> mesmo tempo, elevou-os
+á primeira dignidade da republica florentina.</p>
+
+<p>Mas como em todas as familias ha sempre um judas que vende a sua raça,
+succedeu que emquanto Cosme o Virtuoso, chamado pae da patria, mandava
+emissarios por todo o mundo em busca de manuscriptos para enriquecer as
+bibliothecas, pensionando com luxo artistas, e Lourenço Magnifico sahia em
+segredo de Florença e apresentando-se ante Fernando de Napoles, com quem estava
+em guerra, dizia-lhe: «<i>Aqui me tens só e desarmado. Se é a mim a quem odeias
+satisfaz a tua vingança com a minha morte, pois ditoso me julgarei libertando
+com a minha vida a de tantos valentes, dispostos a despedaçarem-se pelas nossas
+rivalidades</i>», outros Médicis deshonraram o illustre appellido que tinham
+herdado de seus nobres antepassados.</p>
+
+<p>Sublime foi o rasgo de abnegação levado a cabo por Lourenço de Médicis,
+evitando a corrente de sangue que ameaçava inundar Napoles e Toscana, apezar de
+dizer a historia que o papá Sixto <small>IV</small> preferia a guerra,
+esquecendo-se de que era um representante de Christo, do Deus da bondade, do
+perdão e da tolerancia.</p>
+
+<p>Mas a natureza é variada, e depois dos grandes Médicis da republica vieram
+os pequenos ladrões do despotismo.</p>
+
+<p>Chegou Alexandre, verdugo do povo, morto ás mãos do sobrinho, que com
+incrivel cynismo lhe perguntou ao enterrar-lhe a espada no peito: «<i>Senhor,
+estaes dormindo?</i>» Veiu depois Fernando, que morreu d'uma indigestão de
+fructa verde, e por ultimo o estupido Cosme <small>III</small>, cuja esposa
+Margarida de Orléans, não podendo supportar a repugnancia que lhe causava o
+marido, o abandonou, envergonhada de lhe ter pertencido. Para que a estupidez
+de Cosme chegasse ao cumulo, dedicou-se em procurar a mulher pelas côrtes da
+Europa: mas em toda a parte se riram d'elle, despedindo-o vergonhosamente como
+a um ente repugnante.<span class="pn">{31}</span></p>
+
+<p>Deixemos os Médicis á historia, e continuemos a narração interrompida ao
+avistar as altas muralhas de Florença.</p>
+
+<p>Na estação, entre os muitos corretores d'hoteis que disputam os
+estrangeiros, D. Ventura encontrou-se com um hespanhol que tinha casa de
+hospedes, entrou em ajuste com elle, e conduziu-os n'um trem para casa.</p>
+
+<p>D. Ventura alugou todo o rez-do-chão, com o direito de lhe pertencer o
+jardim plantado de laranjeiras, limoeiros e grandes acacias.</p>
+
+<p>O rez-do-chão compunha-se de um quarto com janellas para o jardim, uma sala
+grande, um quarto de vestir, uma casa de jantar e uma sala. Amparo installou-se
+em dois quartos. D. Ventura e Ernesto ficaram com a sala e outro quarto
+contiguo á casa de jantar; a sala declarou-se terreno neutral e todos podiam
+dispôr d'ella para o que necessitassem. Era o ponto de reunião dos nossos
+viajantes.</p>
+
+<p>O senhor Rosales, dono da casa, era um sujeito muito amavel e serviçal.
+Disse-lhes que tinha sempre muitos bons hospedes; que o primeiro andar estava
+todo alugado ao sr. Conde de Loreto e ao seu velho mordomo; que no segundo
+estavam varios portuguezes e que era tão apaixonado das cousas de Hespanha, que
+mandava vir grão e chouriço hespanhoes, para que quando algum hospede quizesse
+de vez em quando comer rico cosido madrileno, podel-o servir.</p>
+
+<p>D. Ventura esteve quasi a abraçar o seu hospedeiro, porque como bom
+madrileno começava a sentir a falta d'aquelle manjar predilecto.</p>
+
+<p>Emquanto a Amparo acercou-se da janella do gabinete, viu o formoso céu de
+Florença, aspirou o perfume das laranjas e dos limões, exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Oh! que delicioso cheiro! que bem que ficamos aqui!</p>
+
+<p>A alegria de Amparo reflectia-se no coração de Ernesto.</p>
+
+<p>No primeiro dia entretiveram-se os nossos viajantes<span
+class="pn">{32}</span> em arranjar itinerario. Ernesto propoz visitar na manhã
+seguinte o palacio de Médicis.</p>
+
+<p>Em Florença o céu tem sempre luz, doçura, poesia. Os nossos viajantes
+levantaram-se, dispostos a emprehender o seu passeio. A manhã não podia estar
+melhor, o céu mais azul.</p>
+
+<p>Como não necessitavam de <i>cicerone</i>, porque Ernesto conhecia Florença
+tão bem como Roma, sahiram em direcção ao celebre palacio de Médicis.</p>
+
+<p>Amparo e Ernesto levaram os seus <i>carnets</i>, e D. Ventura o seu
+<i>Guia</i>.</p>
+
+<p>Logo que chegaram ao palacio e entraram nos jardins, Ernesto, depois de
+fazer observar aos seus amigos as duas distinctas architecturas do edificio, a
+construida na Edade Media e a edificada por Vasari no seculo
+<small>XIV</small>, exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Quando o viajante passeia por estes vastos jardins, parece que
+encontra de menos Lourenço de Médicis, cognominado o Magnifico. Oh! ditosa
+epocha aquella em que Lourenço, agarrando o braço de Miguel Angelo, reprehendia
+com doçura paternal a indolencia do grande artista, incitando-o ao trabalho!
+Ditoso tempo aquelle! Lourenço ria e applaudia os comicos epigrammas do alegre
+Pulci, fazendo-o escrever o <i>Morgante Maggiore</i>, o poema heroe-comico mais
+celebre de Italia, e em que Angelo Poliano lhe lia os discursos de historia e
+philosophia.</p>
+
+<p>E mudando de entoação continuou com accento alegre:</p>
+
+<p>&mdash;É preciso confessar, meu caro senhor D. Ventura, que hoje os reis, os
+potentados da terra se occupam pouco ou nada dos pobres sonhadores, dos filhos
+do genio. Então, ante o talento dobravam a fronte os soberanos. Cosme de
+Médicis encontrou um manuscripto de Tito Livio, enviou-o a Fernando de Napoles,
+com quem estava em guerra, e foi tão grande a alegria d'este rei, que receando
+ser ingrato, assignou o tratado de paz que Cosme solicitava; devendo as mães de
+Italia a sua tranquillidade e a vida dos filhos a umas folhas de pergaminho
+manuscriptas.<span class="pn">{33}</span> Hoje, nem todos os preciosos
+manuscriptos das bibliothecas romanas decidiriam dos reis, quando disputam um
+palmo de terra, a deporem as armas. Mas entremos na sala que immortalisou o
+cinzel do filho de Paros.</p>
+
+<p>D. Ventura, que ouvia com satisfação as palavras de Ernesto, exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Para que diacho me comprou este livro se aqui não diz nada do que tem
+estado a contar?</p>
+
+<p>&mdash;Senhor D. Ventura, respondeu o pintor, sorrindo-se, breve chegará a
+hora em que lhe seja util. A collecção de camafeus, medalhas e debuxos
+compõe-se de vinte e oito mil estudos e <i>croquis</i>, feitos pelos mais
+celebres pintores italianos, e em chegando ahi, fecho a bôcca e pego no lapis.
+É então que o livro falará pelo <i>cicerone</i>.</p>
+
+<p>Ernesto conduziu os seus amigos á sala de Niobe e ao chegar deante d'aquelle
+grupo que representa a mais sublime epopeia da dôr maternal, ao deter-se em
+frente d'aquella mãe, cem vezes mais dolorosa do que a dos Machabeos, tirou o
+chapéu com veneração e ficou como que fascinado ante aquella esculptura, creada
+pelo magico cinzel de Scopas 478 annos antes de Christo, para que fosse o pasmo
+e a admiração das edades futuras.</p>
+
+<p>D. Ventura descobriu-se tambem, apezar de não comprehender o valor de tão
+interessante grupo que tinha ante si. Para elle, aquillo era uma mãe chorando
+seu filho morto e uma joven ferida que agonisava; para Ernesto e Amparo, que
+tinham uma alma mais artistica, mais enthusiastica, aquelle drama maternal,
+aquella cabeça sublime modelada, enlouquecida pela dôr, era uma obra sem rival.
+Scopas, o <i>artista da verdade</i>, apparecia ante os seus olhos como o
+gigante da esculptura.</p>
+
+<p>&mdash;Que bello grupo!</p>
+
+<p>&mdash;Sim, senhora D. Amparo, respondeu Ernesto. Para os que têem a arte em
+alguma conta só para vêr esse grupo vale a pena vir a Florença, ainda que das
+regiões mais afastadas do universo. Essa<span class="pn">{34}</span> scena é
+tão sublime, tão dramatica, que os exigentes criticos de Athenas inclinaram a
+cabeça com admiração, assombrados de tão grande obra. Na figura da mãe está
+toda a alma de Scopas.</p>
+
+<p>D. Ventura, que não compartilhava do enthusiasmo do pintor nem de Amparo, um
+pouco enfadado com tantas exclamações, nas quaes não podia tomar parte por se
+julgar profano no assumpto, disse, instigado pela curiosidade:</p>
+
+<p>&mdash;Mas o que representa esse grupo que tanto admiram?</p>
+
+<p>&mdash;Scopas foi um artista pagão. No seu tempo estava em moda a
+Mythologia, e os homens adoravam as deusas e os deuses do Olympo, apezar dos
+seus defeitos e fraquezas, disse Ernesto. Pois bem, Niobe era filha de Tantalo
+e esposa de Anfior, rei de Tebas, tão presumida da sua fecundidade, que se
+queixou amargamente aos deuses vendo que no Olympo se dava sensivel preferencia
+sobre ella á deusa Latona, filha de Saturno e de Febe, mãe de Apollo e Diana, e
+esposa, segundo se assegura, de Jupiter. Os deuses irritaram-se da soberba
+d'aquella pobre mortal que se atrevia a refutal-o e combinaram um terrivel
+castigo. Appollo e Diana feriram com as suas flechas os filhos de Niobe;
+Jupiter converteu em pedras os subditos da orgulhosa rainha de Thebas, que
+queria ser mais do que uma deusa. Durante nove dias, os filhos de Niobe
+permaneceram no solo cobertos de sangue; a agonia foi grande, terrivel,
+tragica, até ao grau mais sublime; Niobe, louca de dôr e de amargura,
+derramando um mar de lagrimas, arrancando os cabellos de desespero, pedia
+soccorro com gritos d'alma, mas os seus vassallos permaneceram immoveis e
+indiferentes. Por fim ao decimo dia Jupiter compadeceu-se d'aquella mãe e
+julgando-a já sufficientemente castigada, tornou á vida os thebanos, permittiu
+que tomassem algum alimento, mandou enterrar os filhos, e convertendo Niobe em
+uma rocha, collocou-a no cume d'um solitario monte, onde chora eternamente a
+perda dos queridos fructos das suas entranhas, sendo um<span
+class="pn">{35}</span> monumento de vergonha dos vingativos deuses do
+Olympo.</p>
+
+<p>Quando Ernesto acabou o conto mythologico D. Ventura, movendo a cabeça em
+signal de duvida, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Mas tudo isso é uma fabula.</p>
+
+<p>&mdash;Que deu bastante assumpto, respondeu o pintor, para que Scopas,
+deixasse essa sublime e inimitavel esculptura, que é uma verdade admirada por
+todas as nações; grupo sublime do qual nos permittirá que tiremos um rapido
+<i>croquis</i>.</p>
+
+<p>E Ernesto começou a copiar a obra prima do celebre filho de Paros.</p>
+
+<p>D. Ventura encolheu os hombros, e emquanto Amparo e Ernesto desenhavam a
+Niobe, entreteve-se a vêr os bustos antigos, as estatuas egypcias, os
+sarcophagos e o retrato de Bruto feito por Miguel-Angelo.</p>
+
+<p>O rico commerciante passava com ligeireza por todas aquellas obras de
+merito. Para elle não tinham a importancia que lhe attribuiam; e do fundo do
+coração dizia que os artistas eram uns pobres loucos que viviam de illusões,
+exaggerando tudo.</p>
+
+<p>Ernesto e Amparo entretanto tiravam um desenho do grupo: e tão embebidos
+estavam no seu trabalho que não repararam que um rapaz elegantemente vestido,
+de correctas feições e maneiras distinctas, se deteve a poucos passos d'elles,
+e tomando das mãos de um creado que o seguiu o <i>carnet</i> de desenhos,
+começou a tirar uma copia da celebre esculptura de Scopas.</p>
+
+<p>Chamava-se Fernando de Villar, Conde de Loreto.</p>
+
+<p>Quando Amparo desviou os olhos do papel onde desenhava viu o conde, e este
+cumprimentou-a com um ligeiro movimento de cabeça. Ernesto cumprimentou-o mas
+com uma certa frieza que demonstrava o desgosto que lhe causava a presença
+d'aquelle homem.</p>
+
+<p>Ao sair da sala de Niobe, D. Ventura disse:</p>
+
+<p>&mdash;Viram o conde de Loreto?</p>
+
+<p>&mdash;Era o joven que desenhava proximo de nós? perguntou Amparo.<span
+class="pn">{36}</span></p>
+
+<p>&mdash;Sim. Occupa o andar por cima de nós.</p>
+
+<p>E deixando a conversação continuaram visitando o palacio.</p>
+
+<p>O rico museu dos Médicis, contem dezenove galerias.</p>
+
+<p>Não é, pois, nosso intento percorrer minuciosamente estes immensos arsenaes
+da arte, detendo-nos ante cada obra-prima que se apresenta aos avidos olhos do
+viajante enthusiasta.</p>
+
+<p>Os nossos amigos dedicaram os dias a vêr os museus, as bibliothecas e as
+egrejas. Para as noites ou assistiriam aos espectaculos, ou passeariam nos
+jardins, aspirando os perfumes.</p>
+
+<p>A segunda noite da sua estada em Florença, Amparo passeava no jardim com
+Ernesto, quando lhe chegaram aos ouvidos as melodiosas notas de um orgão
+expressivo, tocado com tanto gôsto como mestria. Detiveram-se e ouviram com a
+religiosidade dos amantes de musica.</p>
+
+<p>No dia seguinte Amparo perguntou ao senhor Rosales quem tocava o orgão.</p>
+
+<p>&mdash;O senhor conde de Loreto. É um grande musico.</p>
+
+<p>Desde então Amparo abriu algumas noites a janella para ouvir o orgão</p>
+
+<p>Um dia D. Ventura deteve-se deante da celebre mula negra do palacio
+Pitti.</p>
+
+<p>&mdash;Isto será um capricho de algum celebre esculptor? perguntou.</p>
+
+<p>&mdash;Isto é a vergonha de um nobre tão ingrato como parvo, respondeu
+Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Temos outra historia como a da Niobe?</p>
+
+<p>&mdash;Não, esta é historica e vergonhosa para o auctor. Luc Pitti foi um
+homem cuja riqueza e liberdades lhe tinham grangeado a estima dos seus
+concidadãos e a aura da popularidade. Pitti quiz luctar em magnificencia com
+Cosme de Médicis, e começou a construir um palacio, que é este em que nos
+achamos; mas bem depressa se viu arruinado, e a obra teve que suspender-se. O
+povo sempre generoso e<span class="pn">{37}</span> agradecido com os que d'elle
+se recordavam e os Médicis, protectores da arte, vieram em ajuda do soberbo
+Pitti, publicou-se um decreto concedendo o perdão a todos os criminosos e
+malfeitores que viessem trabalhar no palacio de Luc. O povo correu em tropel a
+trabalhar nas obras: todos os condemnados de Italia vieram tambem. O palacio
+acabou-se com o suor dos pobres; mas Pitti tão nescio como ingrato, fez
+construir essa mula gravando-lhe no pedestal um distico latino para sua eterna
+vergonha, pois prova-nos a sua inqualificavel ingratidão, porque a mula
+representa o povo e o distico diz: «<i>Esta azemola trabalhou e conduziu tudo;
+pedras, marmores, madeiras e columnas.</i>»</p>
+
+<p>Outra tarde Ernesto conduziu os seus amigos á egreja de São Giovanni,
+fazendo-lhes admirar os quadros de Andrea del Sarto, tão miseravelmente
+retribuido pelos frades, e ante a inimitavel <i>Virgem do Sacco</i>, por cuja
+obra, que admira o orbe, pagaram-lhe com um sacco de trigo os irmãos servitas
+da Annunciada, abusando da pobreza do artista, que se vingou, pondo o mundo por
+testemunha da sua humilhação dando á sua obra o nome de <i>Virgem do
+Sacco</i>.</p>
+
+<p>Visitaram tambem os sepulchros dos poetas e dos grandes artistas. Junto ao
+de Dante Alighieri, onde chora a poesia e medita a estatua de Florença, Amparo
+e Ernesto recordaram Beatriz e os seus interessantes amores.</p>
+
+<p>Assim se passavam os dias, crescendo nas almas dos dois jovens esse preludio
+do amor que se chama sympathia.</p>
+
+<p>Mas deixemos a luz d'esse esplendoroso sol de Floreça, para gosar dos
+poeticos raios da lua. A noite tem tambem os seus attractivos.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION0006000">CAPITULO VI</a></h4>
+
+<h2>Um beijo</h2>
+
+<p>Os nossos viajantes foram varias vezes aos theatros mais importantes de
+Florença; ao de <i>Pergola</i> que comporta duas mil e quinhentas pessoas, que
+tem cinco ordens e cento e dez camarotes, ao de <i>Los Intrepidos</i> e ao de
+<i>Alfieri</i>.</p>
+
+<p>O tempo passava-se sem se sentir.</p>
+
+<p>D. Ventura disse uma manhã:</p>
+
+<p>&mdash;É preciso pensar na nossa volta para Hespanha, e contando que sempre
+nos demoraremos quinze dias em Paris, não temos muito tempo para permanecer em
+Florença.</p>
+
+<p>Isto foi um grito de alarme para Ernesto. Era tão feliz ao lado de
+Amparo!</p>
+
+<p>Os vinte cinco dias passados em Florença tiveram para elle a duração de um
+minuto. Milhares de vezes durante esse periodo esteve a ponto de lhe assomar
+aos labios o segredo que se lhe occultava no coração.</p>
+
+<p>O receio detinha-o. Amava Amparo com tão firme, tão pura paixão, que o medo
+de um desengano lhe emmudecia a bôcca.</p>
+
+<p>Uma tarde D. Ventura sahiu para receber uma lettra. Amparo, sentada proximo
+da janella, entretinha-se em colleccionar e guardar um grande numero de
+desenhos, feitos pelo seu companheiro, das bellezas artisticas que juntos
+tinham admirado.</p>
+
+<p>Ernesto entrou no gabinete. Amparo extendeu-lhe a mão sorrindo-se:</p>
+
+<p>&mdash;Bem vê, senhor Ernesto, que como a nossa partida se approxima,
+occupo-me em colleccionar convenientemente estes preciosos desenhos, que
+conservarei<span class="pn">{39}</span> toda a minha vida, pois encerram a
+historia d'esta viagem encantadora, viagem que, como todas as cousas
+terrestres, tem que acabar em breve.</p>
+
+<p>Ernesto julgou ouvir sair um debil suspiro dos labios de Amparo. O seu
+coração bateu com violencia, fez-se pallido e como receasse que as forças o
+abandonassem, sentou-se n'uma cadeira ao lado da joven.</p>
+
+<p>&mdash;Para que a vi em Roma?!</p>
+
+<p>Esta exclamação que se lhe escapou do coração fez estremecer Amparo; mas
+serenando immediatamente disse:</p>
+
+<p>&mdash;Tem pena que a casualidade nos tivesse feito amigos?</p>
+
+<p>Ernesto deixou cair a cabeça sobre o peito. A sympathica physionomia do
+pintor tinha n'aquelle momento a expressão da mais profunda tristeza.</p>
+
+<p>Amparo compadeceu-se d'aquelle amante respeitoso que se não atrevia a
+declarar-lhe o seu amor.</p>
+
+<p>A compaixão, essa bella e delicada qualidade da alma da mulher, apoderou-se
+do coração da joven, e com uma doçura infinita, perguntou:</p>
+
+<p>&mdash;Mas, meu Deus. O que tem, Ernesto? Nunca mais nos tornaremos a
+vêr?</p>
+
+<p>Ernesto, que sentia penetrar no fundo do seu coração a doce voz de Amparo,
+levantou a cabeça, fixou n'ella um amoroso olhar, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Irei a Madrid antes do fim de setembro; mas durante esses tres mezes
+que faltam, a minha alma viverá em eterna solidão, rodeada de triste
+melancholia porque vae partir, e eu amo-a como um louco.</p>
+
+<p>Amparo córou. As suas formosas faces cobriram-se d'esse encantador carmim
+que tão bem assenta ás jovens e que tanto arrebatam e enlouquecem os homens.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, para que occultar-lh'o por mais tempo? continuou Ernesto. Deve
+tel-o comprehendido. Se os meus labios ainda lh'o não disseram, os meus olhos
+têem-lh'o confessado infinitas vezes. Quando se ama pela primeira vez, com a
+vehemencia filha de um<span class="pn">{40}</span> amor tão firme como
+verdadeiro, é trabalho em vão dissimulal-o. Os olhos revelam o sentimento da
+alma e atraiçoam-nos. Não é verdade, Amparo, que já tinha adivinhado que eu
+desde Roma a amava com toda a minha alma? Oh! isto certamente não era segredo
+para si.</p>
+
+<p>Amparo suspirou. Os seus olhos bellos, cheios de melancholica expressão,
+fixaram-se com certo receio no joven, e com voz tremula e doce, respondeu:</p>
+
+<p>&mdash;Sim, Ernesto, adivinhei-o e, não obstante, fui a causadora d'esta
+viagem. Se em Roma nos tivessemos separado, talvez que a estas horas já não
+pensasse em mim.</p>
+
+<p>&mdash;Não pensar em si! Isso para mim é tão impossivel como seria a Tasso
+não pensar em Leonor, a Raphael esquecer a Fornarina, cujo retrato contemplámos
+os dois de mãos dadas em Roma, e cuja copia admirámos tambem em Florença. Para
+certos homens é um passa-tempo, uma nuvem de verão carregada de mais ou menos
+electricidade, mas que passa e que rapidamente desapparece; para outros, o amor
+é a vida, é a luz, é o ar que dá vida, força á imaginação, alegria á alma,
+porque o amor é para elle a unica luz que lhe embelleza tudo; tirando-lhe esse
+amor, ficam rodeados das mais profundas trevas e morrem de tristeza.</p>
+
+<p>Ernesto ia continuar quando se ouviu a voz de D. Ventura, que falava na sala
+anterior com o senhor Rosales.</p>
+
+<p>&mdash;Por Deus, Ernesto, disse Amparo com voz supplicante, que meu pae não
+suspeite nada!</p>
+
+<p>&mdash;Esteja descançada, Amparo. Não receie que a importune; para amar não
+é preciso ser correspondido. Esta noite estarei á meia-noite no caramanchão do
+jardim. Espero-a até que amanheça: se vier, a bella flôr da esperança renascerá
+na minha alma, perfumando a minha existencia, se não vier, ámanhã, com qualquer
+pretexto, partirei para Roma e não nos tornaremos a vêr.</p>
+
+<p>Amparo guardou silencio. Ernesto poz-se a arranjar<span
+class="pn">{41}</span> os desenhos, procurando dissimular a sua commoção.</p>
+
+<p>Quando entraram Rosales e D. Ventura, os dois jovens occupados com os
+desenhos, não inspiraram a menor suspeita ao honrado commerciante.</p>
+
+<p>&mdash;Fazem muito bem em dispor tudo, disse D. Ventura. Entre quatro ou
+cinco dias tomaremos o caminho de França.</p>
+
+<p>&mdash;Com que então decididamente partimos, papá? perguntou Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Filha, ha cêrca de tres mezes que sahimos da nossa casa, é preciso
+voltarmos a ella.</p>
+
+<p>&mdash;Em verdade, senhor D. Ventura, que esta viagem tem um tanto de
+traiçoeira, respondeu Ernesto esforçando por rir-se. Emfim, brevemente nos
+veremos em Madrid.</p>
+
+<p>&mdash;Diga que é a melhor terra do mundo.</p>
+
+<p>&mdash;Assim a reputo.</p>
+
+<p>&mdash;Creio que hoje não temos nada que fazer, proseguiu D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Esta noite, se quizerem, iremos ao theatro. Estreia-se uma opera em
+Pergala.</p>
+
+<p>&mdash;Não, estou muito cançado, e esta noite quero-me deitar cedo; mas se
+quizer não se prenda por nossa causa.</p>
+
+<p>&mdash;Convem-me ficar em casa. Temos que aperfeiçoar alguns desenhos,
+tirados tanto á pressa, que apenas são quatro traços. Tambem fico em casa.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! esquecia-me dizer-te que estive falando com o visinho do primeiro
+andar.</p>
+
+<p>&mdash;Com o conde de Loreto?</p>
+
+<p>&mdash;Sim.</p>
+
+<p>&mdash;Dizem que é um sujeito que deu muitos desgostos á mãe... disse
+Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Em Madrid está sempre em ordem do dia a mexeriquice: O conde de
+Loreto é um rapaz como muitos outros, que se divertem quanto podem, porque teve
+a sorte de herdar dos paes uma grande fortuna. Imagina que esse rapaz tem agora
+28 annos, possue uma fortuna de quinze milhões. Demais, dizem que<span
+class="pn">{48}</span> é muito instruido. O nosso hospedeiro não se cança de o
+gabar.</p>
+
+<p>&mdash;É um bom hospede, disse Amparo, sorrindo-se.</p>
+
+<p>Ernesto não tomava parte na conversa: desagradava-lhe ouvir elogios do
+conde.</p>
+
+<p>Mas deixemos correr as horas, e com a rapidez do pensamento transportemo-nos
+ao jardim da casa que occupavam os nossos conhecidos.</p>
+
+<p>Os relogios de Florença acabam de dar as onze e tres quartos, quando Ernesto
+saltou da janella para o jardim dirigindo-se para o caramanchão, coberto de
+madresilva, lupulo e hera.</p>
+
+<p>Dentro do caramanchão haviam quatro bancos e uma mesa. Ernesto sentou-se
+n'um disposto a esperar toda a noite como tinha dito a Amparo.</p>
+
+<p>A lua estava em quarto minguante, o céu limpido e de um azul escuro
+carregado onde as estrellas brilham de uma maneira extraordinaria.</p>
+
+<p>A brisa nocturna roubava a essencia perfumada das flôres, e, sempre prodiga,
+espargia pelo ambiente como se tivesse envergonhado d'aquella usurpação.</p>
+
+<p>N'um relogio de torre soou a meia-noite.</p>
+
+<p>Ernesto levantou a cabeça, poz-se de pé e foi pôr-se em uma das entradas do
+caramanchão. O coração dizia-lhe que Amparo vinha.</p>
+
+<p>A noite é em todos os paizes a protectora carinhosa dos namorados, porque o
+amor, vulgarmente timido á luz do sol, cobra valor e energia antes esses tibios
+reflexos que a lua envia do céu.</p>
+
+<p>Ernesto, de pé junto da entrada do caramanchão, com uma das mãos sobre o
+coração e a outra languidamente caída, dirigia olhares cheios de inquietação
+para o silencioso edificio d'onde devia vir a sua felicidade, a sua dita, o
+anjo dos seus sonhos.</p>
+
+<p>Passou-se um quarto de hora. Amparo não vinha, e os segundos passavam com um
+vagar, com uma monotonia aborrecedora para Ernesto.</p>
+
+<p>Por fim os labios entreabriram-se-lhe, sem duvida para dar um grito de
+prazer, mas conteve-se. Vira desenhar-se entre as sombras das arvores a
+encantadora<span class="pn">{43}</span> silhueta de um corpo para elle
+conhecido, e em seguida uns passos se ouviram na areia das ruas que conduziam
+ao caramanchão, e o ligeiro <i>frou-frou</i> de um vestido que se
+approximava.</p>
+
+<p>Ernesto sahiu ao encontro de Amparo, porque era ella; pegou-lhe n'uma mão e
+conduziu-a até ao caramanchão.</p>
+
+<p>A joven tremia; estava nervosa e pallida.</p>
+
+<p>Ernesto sentou-a n'um dos bancos procurando tranquilisal-a.</p>
+
+<p>&mdash;Obrigado, Amparo, obrigado por tanta bondade. Tranquilise-se, os
+homens honrados que amam como eu, sabem respeitar o objecto do seu amor.</p>
+
+<p>&mdash;Ernesto, respondeu a joven, commetti uma imprudencia. Nunca devia ter
+vindo.</p>
+
+<p>&mdash;Tão pouca confiança lhe inspiro?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, muita, meu amigo, muita; de contrario não teria vindo. Mas sou
+franca, não pude resistir, porque as ultimas palavras que me disse esta tarde
+pareciam recriminar-me. Bem vê: aqui estou, apezar de tudo. Tive um susto
+terrivel. Para vir ao jardim era preciso passar pelo quarto de meu pae; receei
+despertal-o. E sabe o que fiz? Pois bem, vou-lhe dizer: saltei pela janella.
+Nem eu mesmo posso explicar como tive coragem para tanto: tratava-se de me
+despedir de um amigo bom e leal, e não tive animo para faltar.</p>
+
+<p>Ernesto tinha entre as suas as mãos de Amparo, que apertava docemente,
+escutando ao mesmo tempo aquella voz encantadora que tão suavemente lhe vibrava
+no coração.</p>
+
+<p>Nunca experimentára um prazer tão completo, uma felicidade tão ineffavel.</p>
+
+<p>O perfume das flôres, o aroma da madresilva que se espalhava n'aquelle
+recinto; a luz tibia da lua, que penetrava no caramanchão pelos intervallos das
+folhas; aquella mulher, bella como o mais perfeito e encantador sonho da sua
+alma de artista, tudo contribuia para que Ernesto se julgasse arrebatado da
+terra pelos anjos e transportado a esse paraizo<span class="pn">{44}</span> de
+amor que tanto embriaga as pobres creaturas.</p>
+
+<p>&mdash;Ha momentos de felicidade, exclamou Ernesto, que nunca deviam acabar.
+Se ao homem fosse dado escolher o momento da sua morte sem passar por suicida,
+eu escolheria este.</p>
+
+<p>&mdash;Está louco, Ernesto?</p>
+
+<p>&mdash;Quem sabe! Talvez. O amor não é outra cousa senão uma loucura sublime
+que conduziu Raphael aos pés de uma moleira, Tasso a uma prisão e Ovidio a uma
+masmorra. A historia conta-nos tantas loucuras de amor, que seriam necessarios
+muitos volumes para a descrever. Mas, feliz o que ama e é correspondido! Ditoso
+o que ao dar metade da sua alma, recebe em troca outra metade que lhe envia um
+peito agradecido em mutua correspondencia.</p>
+
+<p>Amparo suspirou em silencio. Ernesto, julgando que esse suspiro era uma
+confissão, levou aos labios a mão da donzella, imprimindo n'ella um beijo.</p>
+
+<p>Amparo estremeceu sem retirar a mão.</p>
+
+<p>Esta condescendencia animou o pintor.</p>
+
+<p>&mdash;Vamo-nos separar, Amparo; não nos veremos durante tres mezes;
+necessito ouvir antes uma palavra que inunde de felicidade o meu peito, que
+deposite o perfume da esperança em meu coração. Tambem me ama?</p>
+
+<p>&mdash;Ernesto, Ernesto, tudo isto me parece uma loucura, respondeu
+debilmente Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Não, não é essa a resposta que desejo, é outra, meu anjo. Ama-me, sim
+ou não?</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, sim. Ha muito que o devia saber; desde a noite do Colyseu
+de Roma.</p>
+
+<p>Ernesto não poude conter um grito de immensa felicidade, e enlaçando com o
+braço a cintura da donzella exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Juro pelas cinzas de minha mãe amar-te emquanto viva, e conquistar um
+nome tão glorioso que te sintas orgulhosa chamando-te minha.</p>
+
+<p>Este juramento, esta exclamação, brotaram de uma alma de artista, cheia de
+fé, de enthusiasmo, de amor.<span class="pn">{45}</span></p>
+
+<p>Amparo assim o comprehendeu, e, agradecida por tão grande paixão, achava-se
+n'um d'esses momentos de fraqueza em que a mulher não tem forças para resistir,
+momentos perigosos, dos quaes só se aproveita o homem para satisfazer um
+desejo, causando a infelicidade d'aquella a quem jura um amor eterno e por quem
+n'esse instante faz os maiores sacrificios.</p>
+
+<p>Mas Amparo rapidamente serenou; conheceu que era uma imprudencia permanecer
+á beira de tão grande precipicio, e ainda que Ernesto lhe inspirasse absoluta
+confiança, como elle mesmo acabava de dizer, amor não é outra cousa senão uma
+loucura sublime; por isso poz-se de pé e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Separemo-nos, Ernesto, estou desassocegada e por enquanto convêm que
+o nosso amor seja um segredo.</p>
+
+<p>&mdash;Já? disse o pintor, tornando a cingil-a pela cintura. Pensa, querida,
+que em poucos dias nos vamos separar.</p>
+
+<p>&mdash;Ámanhã nos tornaremos a vêr aqui, se eu puder vir; mas hoje... hoje
+não devo ficar mais tempo.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, sim, separemo-nos, não quero que estejas inquieta; sou
+demasiado feliz para te desgostar; mas se te inspiro confiança, se queres que
+seja esta a noite mais bella da minha vida, permitte-me que selle com um beijo
+a mutua promessa que acabamos de fazer.</p>
+
+<p>&mdash;Meu Deus, Ernesto, por compaixão! Ah! Para que vim?</p>
+
+<p>O pintor estreitou docemente o desfallecido corpo de Amparo de encontro ao
+seu. Aquellas duas cabeças jovens, apaixonadas, uniram-se; aquellas duas boccas
+tocaram-se e o doce som de dois beijos confundidos n'um fugiu nas azas da brisa
+nocturna.</p>
+
+<p>Pobre Ernesto! Elle tinha dado toda a sua alma n'aquelle beijo, emquanto que
+Amparo só lhe tinha feito uma esmola como paga de agradecimento que a sua
+deferencia para com ella inspirava.<span class="pn">{46}</span></p>
+
+<p>Amparo desprendeu-se dos braços de Ernesto, sahindo rapidamente do
+caramanchão.</p>
+
+<p>Ernesto deixou-se cahir n'um dos bancos, murmurando em voz baixa:</p>
+
+<p>&mdash;Meu Deus! Esta felicidade que sinto é demasiadamente grande para que
+seja duradoura!</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION0007000">CAPITULO VII</a></h4>
+
+<h2>Separação</h2>
+
+<p>No dia seguinte quando Ernesto appareceu no quarto de D. Ventura, este
+disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Que pallido que está? Que é isso? Não se sente bem? São más as aguas
+de Florença?</p>
+
+<p>&mdash;Pallido? respondeu Ernesto. Estou como sempre, estou bom.</p>
+
+<p>&mdash;Não, não, está com muito má côr. Não achas, Amparo?</p>
+
+<p>&mdash;Acho-o na mesma, papá, respondeu Amparo de um modo natural.</p>
+
+<p>&mdash;Seja como fôr, disse Ernesto sorrindo-se, não pensemos n'isso e
+tratemos de aproveitar o tempo que nos resta.</p>
+
+<p>D. Ventura, que não tinha vontade propria, pegou no Guia, Ernesto e Amparo
+nos seus <i>carnets</i> de desenho e sahiram de casa com a incançavel
+curiosidade dos viajantes.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>N'aquella noite foram ao theatro de <i>Alfiere</i>, onde se representava
+<i>O pae de familia</i>, do celebre poeta cómico Carlos Goldoni, a quem
+chamavam o <i>Molière italiano</i>.</p>
+
+<p>Ao começar o primeiro acto abriu-se o camarote<span class="pn">{47}</span>
+fronteiro ao dos nossos amigos e entrou um joven vestido de rigoroso luto.</p>
+
+<p>&mdash;Olhem, disse D. Ventura. É o nosso visinho do primeiro andar, o conde
+de Loreto.</p>
+
+<p>Amparo dirigiu o olhar machinalmente até ao camarote.</p>
+
+<p>Ernesto, como sempre, ao ouvir pronunciar aquelle nome sentiu uma vaga
+inquietação.</p>
+
+<p>O conde de Loreto teria vinte e oito annos. Era alto; não podiam vêr-se com
+facilidade as suas feições, mas de longe parecia muito pallido, elegante e
+sympathico. Era um d'esses typos distinctos que fazem com que se fixe n'elles a
+attenção. Como o panno acabára de levantar, o conde sentou-se. Durante o acto
+esteve ouvindo com grande attenção. Ao acabar sahiu do camarote para não
+tornar.</p>
+
+<p>A mais de metade do terceiro acto, D. Ventura que parecia gosar falando do
+seu visinho, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Que homem tão extraordinario!</p>
+
+<p>&mdash;Quem? perguntou a filha.</p>
+
+<p>&mdash;O conde de Loreto. Durante o primeiro acto, nem pestanejou, ouvindo
+com attenção os versos de Goldoni, e durante o segundo e terceiro não tornou a
+entrar, mostrando a indifferença irritante dos nossos elegantes de Madrid em
+noite de estreia.</p>
+
+<p>Amparo nada respondeu. Ernesto guardou silencio.</p>
+
+<p>Depois da comedia representava-se uma d'essas farças em um acto que tanto
+agrada aos italianos em que toma parte a figura de Polichinello; farças
+vulgarmente improvisadas pelos actores que as representam.</p>
+
+<p>Como D. Ventura era um bom hespanhol, não sabia passar sem o cigarro, e
+sahiu do camarote para satisfazer o innocente vicio.</p>
+
+<p>Ernesto e Amparo ficaram sós.</p>
+
+<p>Durante alguns segundos ficaram silenciosos; ella parecia preoccupada, elle
+triste.</p>
+
+<p>Por fim Ernesto rompeu o silencio.</p>
+
+<p>&mdash;Que tem, Amparo? Noto nos seus formosos olhos uma melancholia que me
+entristece.<span class="pn">{48}</span></p>
+
+<p>&mdash;Penso que em breve nos vamos separar.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! sim! É verdade! Mas esta noite...</p>
+
+<p>&mdash;Não, Ernesto, não; esta noite não vou ao jardim, receio que meu pae
+saiba.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, não quero ser exigente; não sáias, mas ao menos abre-me a
+janella para que possa vêr o luar sem testemunhas importunas; que possa
+dizer-te no silencio da noite o que sente o meu coração.</p>
+
+<p>&mdash;Ámanhã, Ernesto, ámanhã, prometto-te abrir a janella para me despedir
+de ti; hoje sinto-me mal; necessito descançar.</p>
+
+<p>&mdash;Mas é uma crueldade roubar-me uma noite quando tão poucas nos
+restam.</p>
+
+<p>Amparo fixou os seus olhos no pintor, e compadecida da triste e apaixonada
+expressão de Ernesto, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Bem, abrirei.</p>
+
+<p>Ernesto fez um movimento como para se apoderar de uma mão da Amparo, mas
+esta conteve-o com o olhar, exclamando:</p>
+
+<p>&mdash;Que vae fazer? Que imprudencia!</p>
+
+<p>Ernesto conteve-se, e só então se recordou que se achava no theatro.</p>
+
+<p>Durante a farça, D. Ventura riu-se muito. Ao acabar dirigiram-se para
+casa.</p>
+
+<p>Á uma da madrugada, Ernesto estava junto á janella do quarto de Amparo.
+Chamou suavemente. A janella abriu-se. Amparo apagara a luz; assomou á janella
+e começaram um d'esses dialogos, doces, apaixonados, cheios de encantadoras
+trivialidades, que só têem valor aos ouvidos dos namorados.</p>
+
+<p>Quando eram tres horas. Amparo disse:</p>
+
+<p>&mdash;Separemo-nos já, Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Bem, separemo-nos, mas dá-me outro beijo de despedida.</p>
+
+<p>Amparo inclinou a cabeça e como na noite anterior, duas boccas se juntaram,
+e um beijo cheio de amorosa ternura interrompeu o silencio da noite.</p>
+
+<p>Ernesto e Amparo, durante aquellas duas horas de<span class="pn">{49}</span>
+amoroso colloquio, fizeram mil promessas de amor e fidelidade.</p>
+
+<p>&mdash;Não me esqueças nunca, disse o pintor; pensa sempre em mim.</p>
+
+<p>Amparo tirou uma fita de seda com que prendia os cabellos e deu-a a
+Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Esta fita será a que une os nossos corações. Pega, conserva-a.</p>
+
+<p>Ernesto cobriu de beijos aquella fita, que jurou conservar toda a sua vida
+como uma recordação de tão feliz noite.</p>
+
+<p>Quando o pintor entrou no seu quarto, pegou na penna e escreveu na fita:
+«<i>Florença, 2 de Julho de 186...</i>».</p>
+
+<p>Depois deitou-se, e não demorou muito em gosar um d'esses sonhos de que não
+quizera despertar.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>Dois dias depois, Amparo, seu pae e Ernesto entravam na sala de espera da
+estação. O comboio estava preparado para partir; faltavam alguns minutos para
+se pôr em andamento.</p>
+
+<p>O pintor esforçava-se por se mostrar satisfeito, mas uma enorme tristeza lhe
+opprimia o coração.</p>
+
+<p>Nunca Amparo lhe parecera tão bella como n'aquella occasião, mas era preciso
+resignar-se á separação.</p>
+
+<p>Os olhares furtivos que ella lhe dirigia pareciam dizer-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Confia e espera. Em breve nos tornaremos a juntar.</p>
+
+<p>Rapidamente D. Ventura pôz a sua mala de mão sobre um banco da estação e
+disse:</p>
+
+<p>&mdash;Oh! Aquelle não é o conde de Loreto?</p>
+
+<p>Ernesto e Amparo voltaram-se.</p>
+
+<p>Effectivamente, o conde estava sentado a um canto com um livro na mão, e
+falando em voz baixa com um velho de cabellos brancos, gravata branca e
+sobrecasaca preta que o ouvia em respeitosa attitude.</p>
+
+<p>O velho era um d'esses typos proprios para mordomo<span
+class="pn">{50}</span> de casa rica; de parecer carregado, severo e
+completamente barbeado.</p>
+
+<p>O conde de Loreto parecia dar-lhe algumas ordens; o velho cumprimentou e
+sahiu do salão e foi para o local destinado aos despachos na estação.</p>
+
+<p>Ernesto poude vêr então perfeitamente aquelle rapaz, que parecia seguil-o
+como uma sombra.</p>
+
+<p>Era, em verdade, bello e distincto, notando-se-lhe na pallida e sympathica
+physionomia uma profunda melancholia que interessava.</p>
+
+<p>A julgar pelo traje, o conde ia emprehender alguma viagem.</p>
+
+<p>&mdash;Irá para Paris, tambem? pensou Ernesto, sentindo-se inquieto, mau
+grado seu, ante o conde de Loreto.</p>
+
+<p>A sineta deu o signal. Os passageiros dirigiram-se para a gare afim de
+escolherem logares.</p>
+
+<p>D. Ventura, que caminhava á frente, deteve-se junto de um compartimento de
+primeira classe, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Aqui.</p>
+
+<p>E subiu adeante para dar a mão a Amparo.</p>
+
+<p>N'um canto do compartimento e sobre um banco estava uma mala de viagem; no
+da frente o velho que pouco antes estivera falando com o conde de Loreto.</p>
+
+<p>Era por acaso ou propositadamente a escolha de D. Ventura? Quem sabe? Talvez
+que o honrado commerciante, vendo n'um compartimento de primeira classe o
+mordomo do conde de Loreto, escolhesse aquella carruagem com o firme proposito
+de viajar com um compatriota de sangue azul, ou talvez não reparasse senão
+depois no silencioso e sympathico ancião.</p>
+
+<p>Mas a escolha causou um profundo desgosto a Ernesto, que pela primeira vez
+sentiu no peito a terrivel punhalada do ciume.</p>
+
+<p>O pintor apertou a mão do commerciante e depois a de Amparo, enviando-lhe
+toda a sua alma n'um olhar.</p>
+
+<p>&mdash;Até setembro, lhe disse.<span class="pn">{51}</span></p>
+
+<p>N'aquelle momento ouviu-se uma voz varonil, mas doce e respeitosa, que disse
+em castelhano:</p>
+
+<p>&mdash;Dá-me licença, cavalheiro?</p>
+
+<p>Ernesto deixou-o passar. O conde de Loreto cumprimentou e subiu para a
+carruagem, indo sentar-se em frente do seu mordomo.</p>
+
+<p>Apitou a locomotiva, e começou o comboio a mover-se e a sahir pausadamente
+da estação.</p>
+
+<p>Amparo e D. Ventura assomaram á janella e acenaram com um lenço ao seu bom
+amigo.</p>
+
+<p>Um momento depois, o comboio tinha desapparecido; mas Ernesto como se
+estivesse pregado ao chão permanecia immovel e preoccupado.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>N'aquella noite, Ernesto partiu para Roma, levando a duvida na alma e o
+ciume no coração.</p>
+
+<p>Pobre sonhador! Infeliz artista, que tinha trocado por um beijo, a
+felicidade, a paz do seu espirito e todos os seus sonhos de gloria!</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION0008000">CAPITULO VIII</a></h4>
+
+<h2>Caminho de Hespanha</h2>
+
+<p>Ernesto encerrou-se no <i>atelier</i>. Era preciso ganhar o tempo perdido;
+era preciso acabar o seu quadro quanto antes e regressar a Hespanha e sobretudo
+era indispensavel fazer uma obra-prima que cobrisse o auctor de gloria, que
+fosse falada em todo o mundo, e que Amparo se sentisse orgulhosa. Mas ai! o
+pobre artista tinha a imaginação demasiadamente occupada, a alma pouco socegada
+para conseguir o seu fim.</p>
+
+<p>Comtudo, fez esforços heroicos, trabalhava emquanto<span
+class="pn">{52}</span> tinha luz, e durante as noites, fechado no quarto,
+passava longas horas, escrevendo as impressões da sua alma no meio da soledade
+em que vivia.</p>
+
+<p>&mdash;Ámanhã, quando nos tornarmos a reunir, pensava elle, entregar-lhe-hei
+estas folhas de papel em que diariamente escrevo os meus pensamentos, e ella
+verá que a não esqueci nem um só instante, que a continuo amando como nunca.</p>
+
+<p>Ernesto pintára um pequeno quadro, representando a scena do caramanchão, no
+momento de dar e receber o beijo de Amparo. Os dois jovens, docemente
+abraçados, estavam illuminados pela debil luz da lua.</p>
+
+<p>O grupo era encantador; respirava amor, ternura, poesia.</p>
+
+<p>Era aquelle quadro uma grata recordação que a sua alma sensivel transportára
+á téla.</p>
+
+<p>Em volta do quadro collocou a fita que lhe dera Amparo.</p>
+
+<p>Durante a noite, Ernesto passava ás vezes um quarto de hora contemplando o
+pequeno quadro, pendurado n'uma parede do seu quarto.</p>
+
+<p>Depois pegava na penna e escrevia. Isto consolava-o.</p>
+
+<p>O pintor acabou por fim o seu quadro e convidou para almoçar alguns amigos
+para que vissem a sua obra e dessem a sua opinião.</p>
+
+<p>A opinião geral foi de que ganharia o primeiro premio.</p>
+
+<p>Ernesto meneou a cabeça em signal de duvida.</p>
+
+<p>&mdash;Parece-me que podia fazer mais do que o que fiz, e duvido muito que o
+meu quadro tenha o merito que suppõem.</p>
+
+<p>Os seus companheiros trataram de convencêl-o de que o seu desalento, a sua
+falta de confiança eram infundados.</p>
+
+<p>No dia seguinte, Ernesto escreveu uma carta ao judeu Daniel.</p>
+
+<p>O negociante de quadros, como sempre que se tratava de fazer algum negocio,
+apresentou-se com pontualidade.<span class="pn">{53}</span></p>
+
+<p>&mdash;Vou para Hespanha, disse Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;O que quer dizer que precisa de dinheiro.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, vou expôr o meu quadro; por conseguinte escolha o que gostar.</p>
+
+<p>Daniel passou revista aos quadros com a sua tranquillidade costumada, e
+escolheu a maior parte das pequenas telas que o pintor possuia.</p>
+
+<p>Depois de ajustar e ao entregar o dinheiro, disse Daniel:</p>
+
+<p>&mdash;São os artistas tão pouco agarrados ao dinheiro!... E comtudo, o
+dinheiro é a alma da vida. Com que então vae para Madrid?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, senhor. Ámanhã saio de Roma.</p>
+
+<p>&mdash;No museu de Madrid ha quadros de muito merito, como tambem em varias
+egrejas; e se o senhor fosse um homem de palavra...</p>
+
+<p>Ernesto sorriu-se.</p>
+
+<p>&mdash;Se eu não soubesse o quanto me aprecia, respondeu, quasi teria
+direito a offender-me com as suas palavras.</p>
+
+<p>O senhor Daniel que nunca abandonava a caixa de rapé, tomou uma pitada com
+gravidade, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Em Madrid existem preciosos originaes dos melhores auctores. Temos
+ahi sobretudo os da escola hespanhola, e se quizesse tirar-me algumas copias
+feitas com consciencia, não teria inconveniente em ficar com ellas.</p>
+
+<p>&mdash;Isso depende do trabalho que tiver na minha patria.</p>
+
+<p>&mdash;Será pouco. Em Hespanha não ha costume de proteger as artes. A
+politica, os touros e a bolsa absorvem a attenção dos hespanhoes. As artes e a
+agricultura encontram-se em completo abandono. Para ser artista em Hespanha,
+precisa ter a força de vontade de Aristoteles, a paciencia de Job, e o estomago
+privilegiado dos arabes; e para ser agricultor a resignação de Santo Isidro,
+com a desvantagem de que no tempo d'aquelle santo, os anjos desciam á terra e
+lavravam para que o santo dormisse, e hoje os anjos não lavram. Mas, emfim, o
+senhor pensará<span class="pn">{54}</span> o que lhe convém e n'esse sentido me
+escreverá indicando-me os tamanhos e o preço por que m'os vende.</p>
+
+<p>Ernesto comprehendendo que o judeu tinha razão, não o contradisse, porque
+sabido é que sendo Hespanha um paiz agricola, não tem outra protecção senão a
+da Providencia. Quando chove muito succede como no Egypto, têem boa colheita.
+Quando chove pouco, os pobres lavradores pagam o mesmo ao <i>protector</i>
+governo que não se occupa d'elles e morrem de fome; mas isso pouco importa,
+comtanto que se receba a contribuição, porque n'essa desgraçada nação chegou a
+ser impossivel encontrar-se um governo <i>bom</i> e <i>barato</i>.</p>
+
+<p>Resumindo: Ernesto partiu de Roma, no dia seguinte, levando no quadro uma
+esperança de gloria; no beijo que abrazara a sua alma uma esperança de amor.</p>
+
+<p>Tres mezes tinham decorrido desde o dia em que se separou de Amparo. Durante
+este tempo, nem uma só carta recebêra.</p>
+
+<p>Ernesto levava, sem saber porquê, a tristeza na alma. Ha presentimentos que
+perseguem o homem com a tenacidade da sombra. O conde de Loreto fôra para
+Ernesto, desde o primeiro dia, uma ave de mau agouro.</p>
+
+<p>Deixemol-o viajar até Hespanha, e encontremo-nos novamente com a formosa
+Amparo.</p>
+
+<p>O coração da mulher é insondavel; não se póde definir, porque é vario e
+caprichoso como a mesma natureza. Por isso Amparo, que indubitavelmente sahiu
+de Florença enamorada do pintor, chegou a Paris pensando muito no seu
+companheiro de viagem, o joven conde de Loreto.</p>
+
+<p>Vejamos o que succedeu.<span class="pn">{55}</span></p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION0009000">CAPITULO IX</a></h4>
+
+<h2>De Florença a Paris</h2>
+
+<p>Fernando del Villar, conde de Loreto, depois de cumprimentar respeitosamente
+com um movimento de cabeça os seus companheiros de viagem, accomodou-se do
+melhor modo possivel no canto, e pôz-se a lêr. Em frente d'elle, grave e
+immovel como <i>El banquero de Cera</i>, de Paulo Féval, estava o velho
+mordomo. D. Ventura pensou que com uns companheiros tão graves se iria
+aborrecer extraordinariamente, mas restando-lhe a consolação de lêr até que se
+apresentasse melhor occasião, tirou o <i>Guia</i> que lhe offerecêra
+Ernesto.</p>
+
+<p>Amparo, alguma cousa preoccupada com a recente despedida do homem a quem
+julgava amar, fechou languidamente os olhos e entregou-se a essa doce vida das
+recordações em que o passado é o presente da imaginação.</p>
+
+<p>Durante a primeira hora tudo se passou da fórma por que acabamos de
+descrever. Depois, como se prolongasse o silencio, Amparo, olhava
+dissimuladamente o joven aristocrata que tão embebido estava na leitura.</p>
+
+<p>O conde de Loreto era um d'esses homens a quem as mulheres não podem olhar
+impunemente, porque o seu rosto pallido e formoso, a triste expressão do seu
+semblante, convida o bello sexo a fazer esses terriveis commentarios que lhe
+são tão peculiares.</p>
+
+<p>Porque seria que sendo o conde de Loreto immensamente rico, estava tão
+triste? Isto pensou Amparo. E vendo atravéz aquella melancholia impropria da
+juventude, uma historia interessante, teve empenho em conhecel-a.<span
+class="pn">{56}</span></p>
+
+<p>Desde aquelle momento a felicidade de Ernesto estava ameaçada da morte.</p>
+
+<p>D. Ventura, que tinha passado a maior parte da sua juventude atraz de um
+balcão, com os olhos alegres, o sorriso nos labios, a lingua disposta a
+entabolar conversação com os freguezes, aborrecia-se extraordinariamente no
+meio d'aquelle silencio enfadonho e do ruido da trepidação que a machina
+transmitte aos vagons.</p>
+
+<p>Não podendo supportar aquella situação por mais tempo, deixou o livro e
+dispôz-se a falar com a filha, pensando que talvez assim conseguisse interessar
+o conde na conversa.</p>
+
+<p>&mdash;Olha, Amparo, que delicioso panorama apresenta essa povoação
+collocada assim na falda d'esse monte, exclamou Ventura. Oh! decididamente a
+Italia é um paiz encantador.</p>
+
+<p>&mdash;Que povo é este? perguntou Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Diabo! É difficil de t'o dizer porque me esqueci de comprar o Guia
+dos Caminhos de Ferro.</p>
+
+<p>O conde levantou a cabeça e assomando-a á portinhola, disse com voz
+harmoniosa e clara.</p>
+
+<p>&mdash;Este povoado, chama-se, se me não engano, <i>Santa Maria della
+Spina</i>.</p>
+
+<p>Amparo cumprimentou com a cabeça, como dando os agradecimentos ao conde pela
+sua deferencia.</p>
+
+<p>&mdash;Obrigado, senhor conde, disse D. Ventura, no tom mais amavel que lhe
+foi possivel.</p>
+
+<p>O conde tirou um livro da sua mala de mão, e dando-o a D. Ventura,
+continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Possuo por casualidade dois Guias Geraes dos Caminhos de Ferro de
+Italia e França. Se o senhor quer acceitar um...</p>
+
+<p>&mdash;Bem vês, Amparo; isto é o que se chama viajar com sorte. Em Roma
+encontrámos o bom Ernesto, que foi para nós o melhor dos <i>cicerones</i>; aqui
+o senhor conde de Loreto offerece-nos um <i>Guia</i> que tirará pelo caminho
+todas as duvidas.</p>
+
+<p>Fernando sorriu-se, e respondeu:</p>
+
+<p>&mdash;O favor é tão insignificante, que não merece a<span
+class="pn">{57}</span> pena falar n'elle; sobretudo, entre compatriotas e
+visinhos, pois creio que somos visinhos ha um mez.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, senhor, em casa de Rosales.</p>
+
+<p>&mdash;Tive o prazer de ouvir esta senhora tocar piano algumas noites; toca
+admiravelmente.</p>
+
+<p>&mdash;E o senhor conde, segundo me disse minha filha, toca muito bem
+orgão.</p>
+
+<p>Amparo se pudesse teria tapado a bôcca a seu pae. Mas já dissémos que D.
+Ventura tinha muita vontade de falar, e sobretudo fazer-se amigo do conde.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! incommodei com o meu orgão algumas noites esta senhora?</p>
+
+<p>&mdash;Pelo contrario, pelo contrario, senhor conde; ouvimol-o com muito
+prazer. Abriamos as janellas para o ouvir melhor, ajuntou D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;O orgão, disse Amparo, tomando parte na conversa, receando sem duvida
+que seu pae commettesse alguma imprudencia, é um dos instrumentos que, quando
+bem tocado, expressa melhor o sentimento da musica.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, minha senhora, quando seja bem tocado, accrescentou o conde,
+deixando assomar aos labios um sorriso imperceptivel: mas, desgraçadamente, não
+succede isso commigo; toco por curiosidade, e nada mais. Apaixonado pela musica
+até ao exaggero dedico-lhe alguns momentos d'ocio. Admiro os grandes mestres,
+mas em mim a musica, como em tantos outros, não é mais do que um adorno, uma
+parte da educação. Toco, é verdade, mas toco muito mal, o que é o peior.</p>
+
+<p>D. Ventura estava encantado com a singeleza e naturalidade com que se
+expressava o conde.</p>
+
+<p>&mdash;Quizera, comtudo, disse o pae de Amparo, saber tanto como o
+senhor.</p>
+
+<p>&mdash;Saberia muito pouco, meu amigo; sobretudo, na Italia que estamos
+atravessando, onde todos são musicos.</p>
+
+<p>&mdash;O senhor conde chamar-me-hia indiscreto se lhe fizesse uma pergunta?
+disse D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Entre compatriotas que viajam juntos na mesma<span
+class="pn">{58}</span> carruagem deve reinar a maior franqueza. Póde perguntar
+o que quizer.</p>
+
+<p>&mdash;Vae directamente para Paris, ou pensa detêr-se em alguma cidade de
+Italia?</p>
+
+<p>&mdash;Vou para Paris; já percorri tres vezes toda a Italia.</p>
+
+<p>&mdash;Então faremos a viagem juntos.</p>
+
+<p>&mdash;Pelo que me considero extremamente feliz.</p>
+
+<p>&mdash;Paris é o povo mais alegre da Europa.</p>
+
+<p>&mdash;E tem a vantagem de que os estrangeiros em Paris encontram-se quasi
+tão bem como na sua patria.</p>
+
+<p>&mdash;O caracter parisiense é a reunião da alegria e da amabilidade; gostam
+de ser amaveis, e esforçam-se para o conseguir.</p>
+
+<p>&mdash;Sempre que d'isso lhes resulte alguma vantagem, continuou o conde,
+mas seja como fôr, passa-se admiravelmente uma temporada n'aquelles modernos
+<i>boulevards</i>, onde o luxo reuniu todas as encantadoras loucuras. Oh! Só
+para cear uma noite no café <i>Tortoni</i>, almoçar na <i>Maison Dorée</i> e
+passear uma tarde no <i>boulevard dos Italianos</i> vale a pena fazer-se uma
+viagem a Paris.</p>
+
+<p>&mdash;E vae estar muito tempo na capital de França? perguntou D.
+Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Tenho muito que fazer, disse Fernando, sorrindo-se; primeiro ouvir a
+Patti na <i>Somnambula</i>, depois correr uma egua arabe nas proximas corridas
+de cavallos. Quero ganhar o premio que offerece a Imperatriz, que é uma rosa de
+brilhantes.</p>
+
+<p>Amparo, que ouvia com prazer a conversa, ainda que não tomasse parte n'ella,
+ás ultimas palavras do conde, pensou que não seria pelo valor da rosa de
+brilhantes que elle desejava ganhar o premio, mas para fazer com elle uma
+offerta a alguma pessoa querida.</p>
+
+<p>Desde aquelle momento Fernando del Villar, conde de Loreto, era para ella um
+homem que começava a espicaçar-lhe a curiosidade.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! disse D. Ventura. Tem em Paris a egua que vae correr?<span
+class="pn">{59}</span></p>
+
+<p>&mdash;Tenho em Madrid os meus cavallos, mas mandei vir para Paris a minha
+invencivel <i>Rabeca</i>. Creio que assistirão ás corridas.</p>
+
+<p>&mdash;Teremos muito gôsto desde que se effectuem dentro d'um mez, e ao
+mesmo tempo uma grande alegria em que seja vencedor.</p>
+
+<p>Quando se começa uma viagem, durante os primeiros momentos, mais ou menos
+prolongados, segundo o caracter dos viajantes, só reina o maior silencio; cada
+um pensa quem será o companheiro da frente ou lado, mas uma vez entabolada a
+conversa estabelece-se uma certa intimidade agradavel que dura toda a viagem e
+ás vezes toda a vida.</p>
+
+<p>Durante a viagem dos nossos conhecidos, reinou a maior harmonia. Amparo e o
+conde falavam de musica; o mordomo e D. Ventura, de numeros. O honrado
+millionario estava satisfeito por ter encontrado tão bons companheiros.</p>
+
+<p>Uma vez em Paris, como D. Ventura era um homem rico que viajava por prazer e
+não tinha casa na moderna Babylonia, deixou ao conde de Loreto a escolha do
+hotel onde deviam hospedar-se.</p>
+
+<p>Fernando optou pelo Hotel do Louvre, e installaram-se em dois quartos
+contiguos no segundo andar com toda a commodidade que offerece aos passageiros
+o citado estabelecimento.</p>
+
+<p>O conde quiz que se collocasse um orgão no quarto de Amparo, offerecendo-se
+para lhe dar algumas lições.</p>
+
+<p>&mdash;Sou muito pouco habilidosa, disse Amparo, agradecendo-lhe com um
+olhar aquella deferencia.</p>
+
+<p>&mdash;Ora, respondeu o conde. Para uma mestra de piano como Vossa
+Excellencia nada mais facil que aprender orgão. Creia que em quinze dias póde
+tocar perfeitamente.</p>
+
+<p>&mdash;O que me vae custar uns oito ou dez mil <i>reales</i>, disse D.
+Ventura, porque terei de comprar um.</p>
+
+<p>&mdash;E nunca em melhor occasião do que agora que estamos em Paris, onde os
+constructores mais afamados têem os seus armazens. Ámanhã visitaremos<span
+class="pn">{60}</span> alguns, com tres mil francos na carteira.</p>
+
+<p>&mdash;Vejo, que tanto o senhor conde como Amparo, conspiram contra a minha
+bolsa.</p>
+
+<p>No dia seguinte compraram um orgão, precioso instrumento de doze registos,
+incrustado em madreperola; uma verdadeira obra de arte que custou a D. Ventura
+seis mil francos, e que foi escolhido pelo conde, e o ex-commerciante não quiz
+deixar mal o joven aristocrata.</p>
+
+<p>Pagou D. Ventura, encarregando o fabricante de lh'o remetter para Hespanha,
+e não se tornou mais a falar no assumpto.</p>
+
+<p>Todas as tardes Fernando dava lição de orgão a Amparo. Ao principio estas
+lições foram curtas, depois prolongaram-se a duas horas.</p>
+
+<p>Quando cantava a Patti iam juntos ao theatro; sómente o conde ia para as
+cadeiras e D. Ventura para um camarote, mas durante os intervallos o conde
+visitava o millionario.</p>
+
+<p>Assim se passaram vinte dias. Amparo começava a pensar muito no conde e
+pouco em Ernesto.</p>
+
+<p>Quando a mulher faz comparações, a derrota de um dos comparados é
+infallivel. Vejamos como o conde de Loreto cahiu a fundo sobre o pintor.</p>
+
+<p>Tudo estava preparado para as corridas.</p>
+
+<p>A Imperatriz Eugenia, com toda a sua côrte, devia assistir.</p>
+
+<p>D. Ventura tinha conseguido a peso d'ouro, alugar uma luxuosa caleche.
+Amparo mandára fazer uma elegantissima <i>toilette</i>. A festa promettia ser
+das mais brilhantes. Toda a aristocracia de sangue e de dinheiro se reunia
+n'aquellas corridas. Amparo desejava vivamente que Fernando ganhasse o premio.
+D. Ventura, pela sua parte, dizia:</p>
+
+<p>&mdash;É uma questão de honra nacional.</p>
+
+<p>Ao meio dia appareceu Fernando: estava pallido, nervoso; no rosto tinha
+marcados signaes de desgosto.</p>
+
+<p>&mdash;Succedeu uma grande desgraça, exclamou.</p>
+
+<p>&mdash;Morreu <i>Rabeca</i>? perguntou D. Ventura.<span
+class="pn">{61}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não, respondeu, esforçando-se por se rir.</p>
+
+<p>&mdash;Mas o que é? disse Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;O meu jockey que está doente e que não póde correr.</p>
+
+<p>&mdash;É verdade que é um contratempo. Mas não se encontrará outro?</p>
+
+<p>&mdash;Outro? exclamou o conde assombrado. E quem me responde pela sua
+habilidade, pelos seus dotes, pela boa fé de um jockey alugado? Todos os leões
+de Paris, todos os afficionados de equitação, que não são poucos, que
+frequentam á noite a <i>Maison Dorée</i> e á tarde o <i>boulevard dos
+Italianos</i> conhecem <i>Rabeca</i> e têem grande interesse em que fique
+vencida; e seriam capazes de comprar o jockey que n'ella corrresse, para que a
+sopeasse e perdesse. Demais isso é sériamente grave para mim. Se não corre a
+minha <i>Rabeca</i> perco cinco ou seis mil francos que apostei a noite passada
+com um <i>lord</i> que traz tambem um dos seus cavallos para a corrida de hoje.
+A aposta está feita com as seguintes condições: «Se por qualquer casualidade um
+dos cavallos não puder correr dá-se por perdida a aposta.» É preciso portanto
+que <i>Rabeca</i> corra, e por isso venho dizer-lhes que não os posso
+acompanhar, pois que sou eu quem a vae correr.</p>
+
+<p>&mdash;O senhor? disseram ao mesmo tempo pae e filha.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, eu. Sei que é uma desvantagem para mim. O jockey do meu
+adversario pesa escassamente tres arrobas: é um liliputiano, um homem em
+miniatura, é o rei dos jockeys, emquanto eu péso muito mais. Mas não quer dizer
+nada: a minha egua fará um esforço e vencerá.</p>
+
+<p>&mdash;Permitta-me que lhe diga, disse D. Ventura, que se expõe...</p>
+
+<p>&mdash;Isso é o menos. Quando chegar á terceira volta, saltarei já
+affoitamente. Tenho confiança na egua.</p>
+
+<p>E o conde, depois de algumas respostas dadas aos argumentos que lhe
+apresentavam os seus amigos, sahiu, despedindo-se d'elles.</p>
+
+<p>Como se póde calcular o interesse de Amparo cresceu uns setenta e cinco por
+cento.<span class="pn">{62}</span></p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00010000">CAPITULO X</a></h4>
+
+<h2>A rosa de brilhantes</h2>
+
+<p>Uma hora depois, a caleche de D. Ventura estava parada quasi ao fim da
+pista.</p>
+
+<p>D'aquelle ponto tinha a vantagem de vêr perfeitamente o cavallo que chegasse
+em primeiro logar á meta e estar proximo do camarote imperial onde o vencedor
+devia ir receber o premio.</p>
+
+<p>Amparo, de pé sobre as almofadas da carruagem, com a mão esquerda appoiada
+no hombro do pae, percorria com o binoculo o pittoresco panorama que a
+rodeava.</p>
+
+<p>Parecia-lhe impossivel que se pudesse reunir tanto luxo, tanta riqueza n'uma
+cidade.</p>
+
+<p>Dizem os francezes que Paris é a capital do mundo civilizado, e em verdade
+assim é.</p>
+
+<p>Quando a imperatriz Eugenia entrou no camarote, fez um signal com o lenço
+para que começassem as corridas, e ouviu-se então o sonoro som dos clarins.</p>
+
+<p>Amparo sentia palpitar o coração com violencia; deixou de olhar para o
+camarote e viu na pista, no ponto por onde deviam entrar os concorrentes, o
+conde de Loreto.</p>
+
+<p>N'aquelle momento daria tudo quanto lhe exigissem para conceder a victoria
+ao seu companheiro de viagem.</p>
+
+<p>Pouco depois, ouviu-se o tropel que vinha do lado para onde se fixaram todos
+os olhares, e o precipitado e forte galope de muitos cavallos chegou aos
+ouvidos de Amparo como surdo rumor da tempestade que avança com rapidez.<span
+class="pn">{63}</span></p>
+
+<p>Começaram por admirar os cavallos; de todos os lados se ouviam bravos e
+gritos de enthusiasmo, misturados com exclamações de raiva.</p>
+
+<p>Quando um cavallo passava adeante de outro, ouvia-se um rugido de raiva que
+exhalava o peito do vencido.</p>
+
+<p>Entretanto aquella quantidade de cavallos, deitando espuma pela bôcca, fogo
+pelas narinas, avançava com uma velocidade vertiginosa até ao sitio onde estava
+Amparo.</p>
+
+<p>Aquillo era um furacão de carne, empenhado pelo amor-proprio; parecia que
+arrebatava tudo.</p>
+
+<p>Amparo tremia; estremecia, mau grado seu, procurando avidamente o conde de
+Loreto entre aquelles bonets de variadas côres.</p>
+
+<p>Subitamente soltou um grito e fez com que D. Ventura, que contemplava
+boquiaberto aquelle soberbo espectaculo, voltasse a cabeça.</p>
+
+<p>&mdash;Que é? perguntou elle.</p>
+
+<p>&mdash;Alli, alli! exclamou Amparo. Vem á frente e traz n'uma mão o bonet e
+na outra o <i>stick</i>.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! meu Deus! Que loucura! Póde cahir.</p>
+
+<p>N'aquelle momento o conde de Loreto passou pela frente da caleche de Amparo
+com velocidade de um raio. Mas apesar d'isso, cumprimentou-a com o bonet.</p>
+
+<p>Amparo levou a mão ao peito como para conter as palpitações do coração.</p>
+
+<p>Fernando levava pelo menos quarenta metros de avanço a todos os outros
+concorrentes.</p>
+
+<p>Quando chegou á ultima valla, <i>Rabeca</i> saltou com tanta facilidade como
+se aquelle fosse o primeiro obstaculo. Um applauso geral resoou dedicado ao
+cavalleiro e cavallo.</p>
+
+<p>O conde de Loreto ganhára a rosa de brilhantes e os cincoenta mil francos, e
+não tardou que não estivesse rodeado de admiradores e curiosos.</p>
+
+<p>Fernando del Villar apertava a mão de alguns desconhecidos e cumprimentava
+os espectadores.</p>
+
+<p>O <i>lord</i> approximou-se montando um soberbo cavallo de pura raça
+arabe.<span class="pn">{64}</span></p>
+
+<p>&mdash;Ganhou, senhor conde, disse apertando-lhe a mão. Esta noite espero-o
+para cear na <i>Maison Dorée</i>, não só para lhe pagar o que lhe devo, como
+tambem para lhe propôr um negocio, ácêrca da sua preciosa egua.</p>
+
+<p>N'essa occasião approximou-se um dignitario da côrte a dizer-lhe que a
+imperatriz Eugenia esperava o vencedor.</p>
+
+<p>O conde não esperou segundo convite: dirigiu a egua para o camarote real.
+Grande quantidade de cavalleiros o acompanharam.</p>
+
+<p>Ao chegar, Fernando desmontou-se e foi introduzido no camarote pelo
+fidalgo.</p>
+
+<p>&mdash;Disseram-me que era hespanhol, disse Eugenia em castelhano.</p>
+
+<p>&mdash;Nasci na Andaluzia, senhora, respondeu o conde inclinando-se
+respeitosamente.</p>
+
+<p>&mdash;Ainda bem, somos compatriotas. Aqui tem o premio que ganhou.</p>
+
+<p>A imperatriz entregou-lhe um estojo de velludo. O conde ajoelhou-se para o
+receber, beijou a mão e sahiu do camarote.</p>
+
+<p>Amparo não perdera o conde de vista nem um só momento. Quando viu que se
+dirigia para a sua carruagem, sentiu uma commoção desconhecida, como nunca
+tinha experimentado.</p>
+
+<p>Fernando foi até ella, sorrindo-se.</p>
+
+<p>&mdash;Bravo! bravo! exclamou D. Ventura, enthusiasmadissimo. Fazia o senhor
+muito bem, caro conde, em ter toda a confiança na valente <i>Rabeca</i>.</p>
+
+<p>&mdash;É invencivel, disse elle. Tinha inteira segurança, de que, a não me
+succeder uma desgraça, o triumpho era meu.</p>
+
+<p>E extendendo o braço, apresentou o estojo a Amparo, dizendo-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Senhora D. Amparo, como sei que pedia a Deus para que me concedesse a
+victoria, como sei o interesse que tomou, ouso pedir-lhe que acceite como uma
+recordação d'este dia o premio que me acaba de offerecer a imperatriz dos
+francezes.<span class="pn">{65}</span></p>
+
+<p>Amparo pegou com mão trémula no estojo, e antes de ter tempo para responder
+uma só palavra de agradecimento por aquella amabilidade, o conde partiu a
+galope em direcção a Paris.</p>
+
+<p>D. Ventura estava louco de alegria.</p>
+
+<p>Amparo commovida, pallida, seguiu o conde com a vista.</p>
+
+<p>&mdash;É um cavalheiro, disse o commerciante.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, papá; não se póde ser mais delicado.</p>
+
+<p>&mdash;Mas, vamos vêr isso que tens na mão. Parece que não estás em ti.</p>
+
+<p>E D. Ventura, notando que a filha corava, sorriu-se maliciosamente.</p>
+
+<p>Amparo abriu o estojo: tinha um broche de brilhantes. Não se podia exigir
+mais gosto n'uma joia d'aquella natureza.</p>
+
+<p>&mdash;Em verdade, é um bonito premio, disse D. Ventura, fixando os olhos no
+broche.</p>
+
+<p>Amparo guardou silencio.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>Sigamos o conde de Loreto, que, entregando a egua ao creado, tomou um trem
+de praça que o conduziu ao hotel do Louvre.</p>
+
+<p>&mdash;Pódes dar-me os parabens, meu leal Francisco, disse o conde,
+abraçando o velho mordomo.</p>
+
+<p>&mdash;Quer dizer que ganhou o primeiro premio!</p>
+
+<p>&mdash;Não só o primeiro premio como tambem a aposta que tinha feito com
+lord Rutheney.</p>
+
+<p>&mdash;Que grande alegria me dá, senhor conde, disse Francisco sem perder um
+só momento a sua peculiar gravidade. Temos gasto tanto dinheiro durante a
+viagem!</p>
+
+<p>&mdash;Ahi vens tu com os teus malditos numeros.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, o interesse que tomo pela casa faz com que muitas vezes tenha
+certas liberdades...</p>
+
+<p>&mdash;Vamos, Francisco, não comeces a attribuir a ti faltas que não
+commetteste. Quando o meu pae morreu disse-me: «Nunca deixes Francisco; viu-te
+nascer, estima-te com idolatria e é honrado e leal.»<span
+class="pn">{66}</span> Desde então ainda não tive de que pense que não é tão
+grande como devia ser, em relação ao que gasto; mas que queres... quando
+estiver arruinado, quando me vir como vulgarmente se diz com a corda na
+garganta, então seguirei o teu conselho e casarei. E a proposito: Que tal te
+parece a filha do nosso companheiro de viagem?</p>
+
+<p>&mdash;É extremamente formosa!</p>
+
+<p>&mdash;E nada mais? perguntou o conde, sorrindo-se.</p>
+
+<p>&mdash;E que tem doze milhões de dote.</p>
+
+<p>&mdash;O que te traz preoccupado. Emfim, até lá veremos. Quem sabe se terás
+razão, aconselhando-me a que case! Mas, dá-me algum dinheiro; vou cear com
+alguns amigos á <i>Maison Dorée</i> e talvez se jogue.</p>
+
+<p>&mdash;Hontem dei ao senhor conde tres mil francos.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, e hoje não tenho nem um centimo,</p>
+
+<p>Francisco exhalou um suspiro, abriu a gaveta e deu tres notas de mil francos
+ao amo, dizendo:</p>
+
+<p>&mdash;O tal inglez não pagará esta noite?</p>
+
+<p>&mdash;É natural; mas não devo acceitar um convite com sentido no que me
+devem.</p>
+
+<p>Fernando calçou as luvas, pôz o chapéu, pegou n'uma delicada bengala de
+canna da India, e sahiu.</p>
+
+<p>A <i>Maison Dorée</i> é um dos taes estabelecimentos que só se encontram em
+Paris. Ponto de reunião da elegante e louca mocidade, centro d'esses seres
+felizes, sempre occupados em não fazer nada; come-se, joga-se e murmura-se,
+gastando dinheiro ás mãos cheias.</p>
+
+<p>Ahi tudo se sabe, tudo se commenta; e mais de uma vez têem ficado a honra
+das mulheres da moda, de mistura com o <i>Champagne</i> e o <i>Rheno</i> sobre
+aquellas elegantes mesas.</p>
+
+<p>O conde de Loreto estava convidado para jantar com o lord que fizera a
+aposta, que o esperava com pontualidade britannica.</p>
+
+<p>Depois de cumprimentar, lord Rutheney tirou a carteira e entregou friamente
+os cincoenta mil francos que perdera.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor conde, antes que comecemos a jantar, e<span
+class="pn">{67}</span> segundo o costume inglez, de não fazer nada depois de
+nos levantarmos da mesa, vou propôr-lhe um negocio. Quer vender-me
+<i>Rabeca</i>? Dou-lhe por ella egual quantia á que me fez perder.</p>
+
+<p>&mdash;Mylord, desejo conservál-a.</p>
+
+<p>&mdash;Então não falemos mais no assumpto.</p>
+
+<p>E pediu que lhes servissem o jantar.</p>
+
+<p>Durante este, lord Rutheney fez elogios á egua do conde.</p>
+
+<p>&mdash;É um precioso animal, dizia. Se me pertencesse, nas proximas corridas
+annunciadas em Londres, jogaria duas ou tres mil libras esterlinas com certeza
+de ganhar. Pena será se soffrer algum desastre.</p>
+
+<p>Depois de jantar lord Rutheney e o conde de Loreto entraram no café.</p>
+
+<p>Depois passaram á sala do jogo e o conde sentou-se proximo ao banqueiro.</p>
+
+<p>Fernando jogava forte, mas com pouca sorte.</p>
+
+<p>Meia hora foi sufficiente para perder quanto trazia comsigo.</p>
+
+<p>Então voltou-se para o inglez que estava a seu lado ganhando mais de mil
+francos e disse-lhe sorrindo-se:</p>
+
+<p>&mdash;Mylord, fica fechado o negocio: <i>Rabeca</i> é sua.</p>
+
+<p>Lord Rutheney inclinou a cabeça em signal de approvação, e entregou ao conde
+cincoenta notas de mil francos.</p>
+
+<p>Depois, tirou tranquillamente a charuteira e d'ella um havano e dirigiu-se
+pachorrentamente para a sala de fumo.</p>
+
+<p>Sentou-se n'um commodo divan, e começou a saborear o delicioso charuto.</p>
+
+<p>Proximo do sitio em que se achava o conde, fumavam quatro rapazes,
+conversando em voz alta.</p>
+
+<p>Nenhum d'elles reparára, em Fernando.</p>
+
+<p>&mdash;Desengana-te, Heitor, dizia um d'elles, o teu cavallo está muito
+longe de ser o que é a egua do hespanhol, e o arabe de lord Rutheney.</p>
+
+<p>&mdash;Pois apezar da tua opinião, respondeu com voz alterada Heitor,
+garanto-te que se o meu jockey não tivesse sido um parvo, ganhava o primeiro
+premio.<span class="pn">{68}</span></p>
+
+<p>&mdash;A ti succede o mesmo que a Marco Antonio quando os seus gallos iam
+combater com os de Octavio Augusto, que perdia e para consolação á sua pouca
+sorte arranjava sempre uma desculpa. O cavallo de lord Rutheney levava ao teu
+mais de vinte metros de avanço. Emquanto ao do hespanhol não se fala, esse não
+era um animal, era um raio: nem mesmo o vento corria mais do que elle.</p>
+
+<p>&mdash;Os hespanhoes, respondeu Heitor, em tom desdenhoso, têem nas veias um
+sangue mixto de godo e arabe, e não é para estranhar que saibam dar vantagens
+aos cavallos nas corridas. O conde de Loreto parecia um cigano correndo
+d'aquella maneira.</p>
+
+<p>Fernando ao ouvir estas palavras, pôz-se de pé e pallido, com o olhar turvo
+e ameaçador, dirigiu-se para o grupo que falava de si e encarando o que acabava
+de falar, disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;O conde de Loreto sabe correr como um cigano e bater-se como um
+cavalheiro.</p>
+
+<p>E dizendo isto, atirou uma luva ao rosto de Heitor, que se lançou sobre o
+seu antagonista.</p>
+
+<p>Fernando extendeu o braço e deteve-o com incrivel facilidade.</p>
+
+<p>Todos o rodearam.</p>
+
+<p>Da parte do conde foi um creado chamar lord Rutheney.</p>
+
+<p>&mdash;Que foi? perguntou elle.</p>
+
+<p>&mdash;Quer ser meu padrinho?</p>
+
+<p>&mdash;Como? Tem alguma pendencia?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, senhor. Este cavalheiro acaba de me insultar e tenho de me
+bater.</p>
+
+<p>&mdash;Tem a escolha das armas.</p>
+
+<p>&mdash;Cedo-a ao meu adversario: espero-o no café.</p>
+
+<p>Pouco depois lord Rutheney reunia-se ao conde de Loreto.</p>
+
+<p>&mdash;Já está tudo combinado, disse o inglez. Batem-se ao florete, ámanhã,
+ás oito horas da manhã, no bosque de Bolonha.</p>
+
+<p>&mdash;Perfeitamente. Espero-o ás seis no hotel do Louvre.<span
+class="pn">{69}</span></p>
+
+<p>&mdash;É sufficientemente forte ao florete para se pôr na frente de um
+adversario que o escolhe para se bater?</p>
+
+<p>&mdash;Manejo-o regularmente, e tenho pouco amor á vida; com estes dois
+requisitos não me devo arrecear d'um lance. Mas se me permitte, retiro-me. São
+dez horas: esta noite canta a Patti, e desejo ouvil-a, porque ámanhã mata-me o
+meu adversario.</p>
+
+<p>Lord Rutheney conduziu-o na sua carruagem á Opera.</p>
+
+<p>Quem visse Fernando na sua cadeira applaudindo com enthusiasmo a celebre
+Patti, não supporia que elle se ia bater no dia seguinte.</p>
+
+<p>Á meia noite entrou no seu quarto do hotel do Louvre, sentou-se, accendeu um
+charuto, e dirigindo um olhar tranquillo a Francisco, disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Ámanhã bato-me ás oito horas da manhã.</p>
+
+<p>O mordomo recuou dois passos, e exclamou assombrado:</p>
+
+<p>&mdash;Outra vez?!</p>
+
+<p>&mdash;Sim, é a quinta. Quem sabe se será a ultima? Não é vontade minha;
+quando menos se pensa, um insolente ou um enfatuado atravessa-se-nos no
+caminho, insulta-nos, e a honra exige que nos batamos. Cinco vezes me tem
+succedido isso. Prepara, pois, os meus floretes, e deita-te. Ah! Esquecia-me.
+Ámanhã cedo, mandarás por um creado <i>Rabeca</i> a lord Rutheney; vendi-lh'a;
+e, verdade verdade, que isso me desgosta mais do que o duello.</p>
+
+<p>Francisco fez um gesto como se fosse para falar.</p>
+
+<p>&mdash;Não te inquietes, não te inquietes com reflexões inuteis; o duello é
+inevitavel. Quero dormir para estar fresco. Bôa noite. Acorda-me ás cinco e
+tres quartos.</p>
+
+<p>E o conde principiou a deitar-se.</p>
+
+<p>Francisco sahiu triste e preoccupado.</p>
+
+<p>Alguns minutos depois o conde de Loreto dormia profundamente.</p>
+
+<p>O honrado mordomo não se deitou: ser-lhe-ia impossivel dormir, e preferiu
+estar levantado.<span class="pn">{70}</span></p>
+
+<p>Ás cinco horas e meia entrou no quarto do amo.</p>
+
+<p>O velho esteve-o contemplando por alguns momentos. Notava-se-lhe na triste
+expressão do rosto o estado do seu espirito. Receava pela vida do amo.</p>
+
+<p>Por fim disse em voz alta:</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, são horas.</p>
+
+<p>O conde abriu os olhos, bocejou, e, fixando um olhar somnolento no mordomo,
+disse:</p>
+
+<p>&mdash;Nunca perdoarei ao meu adversario este delicioso sonho que me rouba.
+Que mau costume baterem-se de manhã!</p>
+
+<p>Fernando vestiu-se com esmero, como se fosse fazer uma visita de cerimonia,
+com a differença de que em vez do frack ridiculo e incommodativo, vestiu uma
+sobrecasaca preta.</p>
+
+<p>&mdash;Querido Francisco, disse o conde, dando o ultimo toque na gravata em
+frente ao espelho, se o meu adversario me matar, o que é provavel, mas não
+impossivel, tu te arranjarás como puderes, com os meus crédores; e visto o
+remanescente da minha fortuna ser para a avarenta da minha tia, a marqueza del
+Ramo, aconselho-te que fiques com tudo quando te seja possivel, porque não é
+justo que ao cabo de tantos annos de bons serviços, tenhas que procurar um novo
+amo, que indubitavelmente te não trataria como mereces. Agora faze o favor de
+dizer ao creado que me sirva o chá. Mylord não se póde demorar; são já seis
+horas, e é pontual até ao exaggero.</p>
+
+<p>Effectivamente lord Rutheney, acompanhado de outro amigo, entrou no
+quarto.</p>
+
+<p>&mdash;Creio, senhores, que temos tempo de tomar uma chavena de chá, disse o
+conde.</p>
+
+<p>Rutheney olhou para o relogio.</p>
+
+<p>&mdash;Os meus cavallos conduzir-nos-hão em menos de uma hora: temos tempo,
+isto é, podemos dispor de sessenta minutos.</p>
+
+<p>&mdash;Creio que este cavalheiro, ajuntou o conde, indicando o companheiro
+do lord, será o meu segundo padrinho.</p>
+
+<p>&mdash;É <i>mister</i> Carlos Bobbe, meu medico e meu<span
+class="pn">{71}</span> amigo; servirá, pois, de medico e de testemunha.</p>
+
+<p>&mdash;Tanto melhor. Mas vamos ao chá.</p>
+
+<p>O creado entrou trazendo uma bandeja com chavenas e pratos, que deixou sobre
+uma meza.</p>
+
+<p><i>Mister</i> Bobbe bebeu cinco chavenas de chá; lord Rutheney tres e o
+conde uma.</p>
+
+<p>&mdash;Quando quizerem, meus senhores, disse Fernando, vendo que os
+padrinhos collocavam as chavenas na bandeja, como prova de que não queriam
+beber mais.</p>
+
+<p>Fernando abraçou o mordomo, cujo rosto circumspecto e os olhos arroxeados o
+fizeram sorrir.</p>
+
+<p>&mdash;Não receies, lhe disse; sahir-me-hei bem como das outras vezes. E
+partiu.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00011000">CAPITULO XI</a></h4>
+
+<h2>Mais um</h2>
+
+<p>Quando Francisco ficou só, não poude conter as lagrimas; deixou-se cahir
+n'uma cadeira e chorou.</p>
+
+<p>A dôr do mordomo era tão profunda, tão verdadeira que ao entrar o creado
+para o serviço, nem sequer deu pela sua presença.</p>
+
+<p>O creado que servia seis quartos do corredor do segundo andar era um rapaz
+tão diligente como desembaraçado, e ao vêr o profundo pesar do velho creado do
+conde e que este sahira tão cedo, acompanhado de dois amigos, suspeitou tudo,
+mas em vez de dirigir a palavra a Francisco, julgou que era mais conveniente
+confiar as suas supposições ao hespanhol que occupava o quarto n.º 14, intimo
+do conde de Loreto. Assim, dirigiu-se para o quarto de D. Ventura e
+chamou-o.</p>
+
+<p>D. Ventura ainda não perdera o costume de madrugar;<span
+class="pn">{72}</span> estava levantado e disposto a barbear-se. Abriu a porta,
+julgando que fosse o conde a propor-lhe algum passeio para aquelle dia, e
+encontrou-se com o creado e o seu eterno sorriso.</p>
+
+<p>&mdash;Que ha? perguntou D. Ventura.</p>
+
+<p>O creado falava, ainda que mal, o hespanhol, mas o sufficiente para se fazer
+comprehender pelos hospedes.</p>
+
+<p>&mdash;Cavalheiro, disse elle, sei que sou um tanto indiscreto e importuno
+batendo tão cedo á porta de um hospede...</p>
+
+<p>&mdash;Bem, bem. Que é? perguntou D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Mas sei tambem, continuou o creado, que o senhor é o amigo intimo do
+senhor conde de Loreto.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, homem, sim, acaba.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, o senhor conde deve correr algum perigo, porque o vi sahir
+acompanhado de dois inglezes; e o mordomo do conde assim que elle sahiu, pôz-se
+a chorar amargamente. Não quero equivocar-me, mas julgo que o senhor conde vae
+bater-se.</p>
+
+<p>&mdash;Diabo! Bater-se? Isso é grave!</p>
+
+<p>&mdash;É muito, cavalheiro.</p>
+
+<p>&mdash;Mas não sabes porquê?</p>
+
+<p>&mdash;Só vi metter no trem os floretes.</p>
+
+<p>D. Ventura sahiu precipitadamente do quarto, e entrou no do conde.</p>
+
+<p>Francisco continuava prostrado na cadeira e com o rosto occulto entre as
+mãos.</p>
+
+<p>&mdash;Que novidades temos? perguntou em voz alta D. Ventura.</p>
+
+<p>O mordomo levantou a cabeça. Aquelle rosto veneravel estava decomposto pelas
+lagrimas e pela dôr: tinha uma expressão de profunda tristeza.</p>
+
+<p>&mdash;É certo o que me acabam de dizer? É certo que Fernando foi
+bater-se?</p>
+
+<p>&mdash;Desgraçadamente é certo, senhor D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Diabo! Não sei para que se expõe a vida assim com tanta facilidade.
+Eu tive pelo menos, cincoenta mil questões, e nunca tive necessidade de me
+bater com pessoa alguma. Para que temos os tribunaes, se<span
+class="pn">{73}</span> fazemos justiça por nossas mãos? E demais, o que deu
+origem ao duello, valeria a pena?</p>
+
+<p>&mdash;Não sei detalhes; só me disse que se ia bater; mas ia apostar em como
+o meu amo o não provocou, pois que o conde é incapaz de offender alguem. Oh! se
+o seu adversario o matasse era uma desgraça.</p>
+
+<p>&mdash;Era, era! Mas tenho esperança em que não será assim. Ora o diabo do
+rapaz!...</p>
+
+<p>E como o mordomo continuasse gemendo e suspirando, D. Ventura pôz-se a
+passear pelo quarto.</p>
+
+<p>Assim se passou meia hora. Nenhum dos dois falava. D. Ventura pensou, por
+fim, que seria mais conveniente esperar o resultado no seu quarto do que junto
+do mordomo, cuja dôr o affligia duplamente.</p>
+
+<p>&mdash;E a que horas saberemos o resultado? perguntou D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Creio que ás nove, pouco mais ou menos.</p>
+
+<p>&mdash;E são só oito! Mas, não se poderia dar parte ás auctoridades para
+evitar o duello?</p>
+
+<p>&mdash;Se tal fizessemos, o senhor conde nunca nos perdoaria.</p>
+
+<p>&mdash;Diz bem; não ha outro remedio senão esperar e conformarmo-nos com a
+sorte. Ora o diabo do rapaz! Vou vêr se a minha filha já se levantou, e
+peço-lhe que tão depressa saiba alguma cousa me avise.</p>
+
+<p>O quarto de Amparo era separado do de seu pae por uma debil parede
+communicando por uma porta.</p>
+
+<p>Amparo ouvira entre sonhos parte do que o creado dissera a D. Ventura.</p>
+
+<p>Quando este entrou já estava levantada.</p>
+
+<p>&mdash;Não me occulte nada, disse, quero saber tudo quanto se passa.</p>
+
+<p>&mdash;Pois, filha, o que se passa é pouco agradavel. Fernando a esta hora
+bate-se em duello.</p>
+
+<p>Amparo empallideceu e como se lhe faltassem as forças, sentou-se n'uma
+cadeira.</p>
+
+<p>&mdash;Que é isso? Estás doente? Era só o que faltava.</p>
+
+<p>&mdash;Não se assuste; não tenho nada.</p>
+
+<p>&mdash;Nada! nada! Não me capacitas de que é sem<span class="pn">{74}</span>
+motivos que perdes as côres, commoveste-te, e isso é natural, muito natural,
+sim, senhora; porque demais, o conde é um joven que se faz estimar; e se
+tivessemos a desgraça de o perder, se o seu inimigo o matasse...</p>
+
+<p>&mdash;Cale-se, papá, cale-se! exclamou Amparo estremecendo. Não diga isso
+nem a brincar.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, bôa brincadeira, não haja duvida! Ora o diabo do rapaz!</p>
+
+<p>D. Ventura, depois de barbeado, assomava á porta a cada momento.</p>
+
+<p>Nunca o tempo lhe parecera tão comprido.</p>
+
+<p>Quando o relogio do quarto deu as nove horas, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Já se não póde demorar.</p>
+
+<p>Como se estas palavras fossem como um amuleto magico, ouviram-se os passos
+de varias pessoas no corredor.</p>
+
+<p>D. Ventura chegou á porta e não poude conter um grito.</p>
+
+<p>&mdash;É elle? perguntou Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;É.</p>
+
+<p>&mdash;E como vem? perguntou a medo.</p>
+
+<p>&mdash;Perfeitamente, andando pelo seu pé. Ah! Louvado seja Deus!</p>
+
+<p>E dizendo isto, sahiu precipitadamente do quarto, entrando no do conde.</p>
+
+<p>&mdash;Venha um abraço, venha um abraço, exclamou.</p>
+
+<p>O conde deixou-se abraçar.</p>
+
+<p>&mdash;Com que então, foi feliz? perguntou D. Ventura com infantil alegria.
+Muito folgo, muito folgo.</p>
+
+<p>Fernando dirigiu um olhar de censura ao mordomo, e deixando assomar aos
+labios um amargo sorriso, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Sabe então que me bati. Pois, visto isso, só me resta dizer-lhe que o
+lance foi desgraçado; teve graves consequencias.</p>
+
+<p>&mdash;Como? Está ferido? exclamou D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Não, infelizmente.<span class="pn">{75}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não o comprehendo.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor D. Ventura, quando por uma d'essas nescias exigencias de
+decoro se batem dois homens e um d'elles morre no que chamamos campo da honra,
+o que sobrevive, o que torna para casa vencedor, traz uma espinha cravada na
+alma que permanece ahi toda a vida. Indubitavelmente alguma maldição está
+suspensa sobre a minha cabeça. Tenho má mão para desafios.</p>
+
+<p>E o conde deixou-se cair n'uma cadeira, dando mostras do mais profundo
+abatimento.</p>
+
+<p>&mdash;Conheço, senhor conde, que se deve ter um remorso muito grande em
+matar um homem, disse D. Ventura, mas, que remedio? Quando se tem em frente um
+inimigo armado que cubiça a nossa vida temos o dever de disputál-a.</p>
+
+<p>Lord Rutheney pronunciou algumas palavras para tranquillisar o conde que
+parecia vivamente incommodado.</p>
+
+<p>&mdash;Agradeço o interesse que lhes inspirei, disse Fernando; mas ao mesmo
+tempo, desejava que fizessem o favor de me deixarem só, pois estou fatigado e
+preciso descançar.</p>
+
+<p>Era evidente que uma grande fadiga do espirito se apoderára do conde e os
+seus amigos retiraram-se.</p>
+
+<p>D. Ventura entrou no quarto da filha a quem contou tudo quanto se passára,
+que com esse natural egoismo da mulher se alegrou profundamente ao saber que o
+conde se tinha sahido bem do lance de honra, visto ella não conhecer o infeliz
+Heitor morto no desafio, e unirem-na a Fernando relações de amizade que iam
+tomando o caracter de uma paixão verdadeira.</p>
+
+<p>Entretanto, o conde de Loreto fechava-se no quarto, permanecendo o resto do
+dia sentado n'uma cadeira. Nem elle mesmo poderia dizer se o somno se
+assenhoreou d'elle algum momento.</p>
+
+<p>Quando a obscuridade da noite se espalhou por todo o quarto, levantou a
+cabeça e disse:</p>
+
+<p>&mdash;É uma desgraça que já não tem remedio; tenho<span
+class="pn">{76}</span> uma mão fatal. Esta é a quinta vez que causo a morte ao
+proximo e uma profunda dôr a um pae.</p>
+
+<p>E passando a mão pela fronte, como se quizesse livrar-se dos tristes
+pensamentos que o preoccupavam, levantou-se e tocou a campainha.</p>
+
+<p>Francisco, o mordomo, tão pallido, tão commovido como o amo, entrou com uma
+luz na mão.</p>
+
+<p>&mdash;Bôas noites, senhor conde, disse deixando a vella sobre uma mesa.</p>
+
+<p>&mdash;Bôas noites, Francisco. Já sabes; matei um homem.</p>
+
+<p>&mdash;E todavia o senhor tinha-me dito que não mais se bateria ainda que o
+insultassem.</p>
+
+<p>&mdash;É verdade; jurei não me bater, mas para que ninguem duvidasse de que
+sei defender o meu decoro, não me pude conter, e agora arrependo-me. Ah! se
+fosse em Hespanha não me tinha batido.</p>
+
+<p>&mdash;O remedio que ha, disse Francisco, é esquecer o passado.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é mais difficil do que parece. Na memoria, como n'uma chapa
+d'aço, grava o buril do tempo todos os acontecimentos da vida. Só a morte tem o
+privilegio de os apagar. Mas tu disseste: já não tem remedio. Prepara tudo, que
+ámanhã sahiremos de Paris. Necessito, pelo menos, afastar-me d'esta terra.</p>
+
+<p>&mdash;E para onde vamos, senhor?</p>
+
+<p>&mdash;Para Hespanha.</p>
+
+<p>&mdash;Está bem.</p>
+
+<p>Fernando del Villar exhalou um suspiro e sahiu do quarto dirigindo-se ao de
+Amparo.<span class="pn">{77}</span></p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00012000">CAPITULO XII</a></h4>
+
+<h2>Como se pede</h2>
+
+<p>O piano é um grande recurso para aquelles que possuem e sentem na alma as
+doces e gratas impressões da musica, essa linguagem universal a que renderam
+tributo até os proprios deuses.</p>
+
+<p>Amparo estava tocando. Tinha na estante a partitura da <i>Estrangeira</i>,
+mas os dedos percorriam machinalmente o teclado, e os olhos fixavam-se
+distrahidamente nas notas.</p>
+
+<p>A musica para ella n'aquelle momento não era mais do que um grato ruido,
+adormecedor, como o sussurro cadencioso de uma fonte que convida á
+meditação.</p>
+
+<p>Não pensava quasi nada no piano, muito pouco na partitura que tinha ante si,
+mas muito no conde de Loreto.</p>
+
+<p>De Florença a Paris, isto é, trinta e seis horas de comboio, foram
+sufficientes para a formosa hespanhola se enamorar.</p>
+
+<p>Antes d'esta viagem a casualidade collocára, ainda que momentaneamente, no
+palacio de Médicis, Fernando e Amparo; depois em Paris as corridas de cavallos
+e o duello reforçaram a ideia fixa que começava a dominál-a.</p>
+
+<p>N'este momento Amparo estava só. D. Ventura sahira, depois de lhe contar
+tudo quanto sabia referente ao desafio do conde.</p>
+
+<p>Tocava, pois, piano, pensando no seu companheiro de viagem, quando ouviu
+passos atraz de si; voltou a cabeça, e encontrou-se com Fernando que lhe
+dirigiu um cumprimento respeitoso e um sorriso cheio de tristeza.<span
+class="pn">{78}</span></p>
+
+<p>&mdash;Bôas noites, senhora D. Amparo. Talvez a venha incommodar, disse o
+conde.</p>
+
+<p>&mdash;Incommodar-me? respondeu ella, parando de tocar. Pelo contrario. Bem
+vê que estou só... Meu pae é um valdevinos; abandona-me e então o piano é o meu
+recurso. Mas que tem? Está mais pallido que de costume, e noto-lhe uma
+expressão de tristeza na physionomia.</p>
+
+<p>&mdash;Suppunha que não ignorava a desgraça que me succedeu hoje, e venho
+despedir-me.</p>
+
+<p>&mdash;Como? abandona Paris?</p>
+
+<p>&mdash;Ámanhã.</p>
+
+<p>&mdash;Tão depressa.</p>
+
+<p>&mdash;Pensava passar aqui alguns mezes, mas agora é-me impossivel;
+necessito vêr outro sol, respirar outro ar.</p>
+
+<p>&mdash;E para onde vae?</p>
+
+<p>&mdash;Para Hespanha.</p>
+
+<p>&mdash;Então, sr. conde, não tardará muito que nos vejamos lá, porque,
+apezar de tudo, creio que o céu de Hespanha é o melhor de todos.</p>
+
+<p>&mdash;Diz muito bem, e sobretudo quando no céu de Paris a imaginação
+preoccupada vê algumas manchas de sangue que perturbam o socego e roubam a paz
+de espirito.</p>
+
+<p>&mdash;Verdadeiramente, é uma desgraça que as leis da honra imponham aos
+homens deveres tão desagradaveis. Meu pae contou-me tudo, e posso garantir-lhe
+que tão desgraçado acontecimento me penalizou bastante.</p>
+
+<p>O conde sentou-se n'uma cadeira proximo do banco de Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Não parece senão que me persegue algum genio fatal, disse elle, como
+se falasse comsigo. Quando o destino me colloca ante um homem com a arma
+homicida na mão, juro-o pela memoria de meu pae, sempre preferi morrer a matar,
+e expuz generosamente o peito ante o perigo, sem me preoccupar em evitál-o. Mas
+indubitavelmente uma força superior á minha vontade guia a minha mão, e sempre
+vejo<span class="pn">{79}</span> cahir sem vida o meu adversario. Só a primeira
+vez que me bati tive desejos de sahir vencedor; era uma creança, e a vaidade e
+o amor proprio cegavam-me. Então tive a desgraça de matar um amigo intimo, um
+antigo condiscipulo. Pobre Arthur! E sobretudo, pobre mãe aquella, em cujos
+olhos não mais se lhe sêccaram as lagrimas, até que a dôr a conduziu ao
+sepulchro!</p>
+
+<p>O conde deteve-se. Bastava vêr-lhe o semblante, ouvir-lhe o timbre da voz
+para comprehender o estado do espirito. Amparo escutava-o interessada e sem se
+atrever a interrompêl-o.</p>
+
+<p>O conde, mudando de tom, continuou.</p>
+
+<p>&mdash;Com franqueza, não sou ridiculo? Vim despedir-me de V. Ex.ª, e
+estou-lhe contando historias que só a podem commover; mas ha dias em que se
+apodera de mim uma tristeza tão grande que não sei falar de outra coisa senão
+da minha vida passada, ou o que é o mesmo, dos meus remorsos, porque os sinto,
+senhora D. Amparo, e a minha sorte é duplamente desgraçada porque não tenho uma
+pessoa, que sendo depositaria das minhas amarguras, me console com os seus
+conselhos.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor Fernando, exclamou a joven verdadeiramente commovida, receando
+que só o desespero fosse o motivo da melancholia do conde; senhor Fernando, se
+julga que posso ser essa amiga, apezar da minha pouca experiencia do mundo, não
+me occulte nada e honre-me com a sua confiança.</p>
+
+<p>&mdash;Senhora D. Amparo, ajuntou o conde com vehemencia, póde ser para mim
+o anjo salvador que me arranque do antro escuro em que me revolvo,
+conduzindo-me ao reino da luz e da felicidade; porque eu, qual judeu errante
+vagueando pelo mundo, necessito d'uma alma sensivel que me comprehenda, um
+coração bondoso que palpite com o meu e que se compadeça de mim. De que serve a
+mocidade e a riqueza? Preciso amar e ser amado. O bulicio do mundo não é
+sufficiente para distrahir a tenacidade do meu pensamento, a soledade da minha
+alma. Para<span class="pn">{80}</span> esquecer o passado necessito que comece
+para mim uma vida nova; é indispensavel regenerar o meu coração, porque não
+póde calcular a persistencia com que me persegue o infortunio. Um anno depois
+do meu desgraçado lance com Arthur a quem matei, estava na Italia, precisamente
+em Florença, no palacio de Médicis, defronte do grupo de Niobe onde a vi pela
+primeira vez...</p>
+
+<p>O conde deteve-se, fez um brusco movimento com a cabeça, e exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Só uma creança ou um louco seria capaz de entabolar similhante
+conversação; e talvez eu seja uma e outra coisa. Desculpe-me, minha senhora, e
+perdôe-me todas as loucuras commettidas esta noite; mas parto ámanhã, talvez
+que nos não tornemos a vêr mais, porque, já lhe disse, como o judeu errante
+percorro o mundo em busca de uma alma que me comprehenda, que se una á minha e
+que me dê parte da sua paz, da sua tranquillidade, da sua seiva. Ao vêl-a,
+disse: «É este o anjo que cubiço.» Mas creio-me indigno de merecêl-o; e já que
+o segredo do meu coração assomou aos labios, ainda que lh'o quizesse occultar,
+a senhora teria já comprehendido que a amo, e só me resta supplicar-lhe que não
+me guarde rancor por tanto atrevimento, e que me permitta antes de partir
+apertar-lhe a mão como amigo.</p>
+
+<p>Se Amparo não tivesse verdadeira sympathia pelo conde, se não estivesse
+disposta a amal-o, necessariamente ter-lhe-hia parecido tão rara como
+incoherente a declaração que o conde lhe acabava de fazer.</p>
+
+<p>Mas Amparo amava o conde, e não se enganava ao pensar que era amada por
+elle. Por isso, aturdida, trémula, com voz commovida e pouco firme, o olhar
+fixo no chão, extendeu a mão a Fernando e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem; se o senhor julga que depende de mim a sua felicidade,
+confie a meu pae, logo que elle volte, o seu segredo e partamos juntos para
+Hespanha.<span class="pn">{81}</span></p>
+
+<p>O conde soltou um grito, pegou na mão que Amparo lhe offerecia, e cobriu-a
+de beijos.</p>
+<hr class="dotted">
+
+<p>N'aquella noite o conde pediu a D. Ventura a mão da filha.</p>
+
+<p>O honrado millionario mal poude dissimular a alegria que similhante pedido
+lhe causava. Era-lhe tão agradavel ouvir chamar á filha condessa!... Fraqueza
+por certo muito natural n'um homem nas condições de D. Ventura.</p>
+
+<p>Mas, ainda assim, não se precipitou: ouviu com apparente serenidade o
+pedido, e concedeu o seu consentimento, depois de ouvida a opinião da filha.</p>
+
+<p>Quando o conde sahiu, D. Ventura foi ao quarto de Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Venho dar-te uma noticia surprehendente, inesperada, talvez
+agradavel.</p>
+
+<p>&mdash;O que é papá?</p>
+
+<p>&mdash;Que o conde parte para Hespanha.</p>
+
+<p>&mdash;Já sabia.</p>
+
+<p>&mdash;Já sabias?! E quem t'o disse?</p>
+
+<p>&mdash;Elle proprio.</p>
+
+<p>&mdash;Mas sabes que quer partir ámanhã, se isso lhe fôr possivel?</p>
+
+<p>&mdash;Sim.</p>
+
+<p>&mdash;E sabes tambem que me pediu a tua mão?</p>
+
+<p>&mdash;Calculava tambem, meu pae, accrescentou Amparo, sorrindo-se.</p>
+
+<p>&mdash;Por conseguinte atraiçoaram-me?</p>
+
+<p>&mdash;O que perdoará, porque é muito generoso.</p>
+
+<p>&mdash;Será possivel que todos os paes sejam malucos?</p>
+
+<p>&mdash;Malucos só no preciso, isto é, d'alma e coração.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, sim. Mas, dize-me que lhe hei-de responder.</p>
+
+<p>&mdash;Responda-lhe que sim, é o mais logico.</p>
+
+<p>&mdash;E o casamento.</p>
+
+<p>&mdash;Celebrar-se-ha em Madrid.</p>
+
+<p>&mdash;Claro. Quem se casa em França residindo em Hespanha?</p>
+
+<p>&mdash;Pois então já sabe; quando o conde lhe perguntar<span
+class="pn">{82}</span> pela resposta definitiva, diga que sim e é assumpto
+concluido.</p>
+
+<p>&mdash;Mas olha, Amparo, agora que já se póde dizer que és a promettida
+esposa do conde de Loreto, vou contar-te uma cousa. Em Florença, suppuz que tu
+e Ernesto se amavam; mas assim é melhor; enganei-me, com o que muito folgo,
+porque, minha filha, n'estes tempos é mais acceitavel para marido um conde
+rico, do que um artista pobre. Ernesto pinta muito bem, mas não tem uma
+peseta.</p>
+
+<p>Amparo ao recordar-se de Ernesto commoveu-se; mas a commoção foi passageira,
+como a ave que cruza sobre a nossa cabeça para não mais voltar.</p>
+
+<p>Dois dias depois, um compartimento de primeira classe conduzia a Hespanha
+com a velocidade da locomotiva os nossos conhecidos. Era o dia 28 de junho.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00013000">CAPITULO XIII</a></h4>
+
+<h2>Os tres amigos</h2>
+
+<p>Dois mezes depois dos ultimos acontecimentos que acabamos de narrar, isto é,
+no dia 1 de setembro ás seis horas da manhã, dois rapazes passeavam na gare da
+estação do sul, esperando o comboio correio de Alicante.</p>
+
+<p>&mdash;Garanto-te, dizia um d'elles, que Ernesto traz um grande quadro.</p>
+
+<p>&mdash;E eu concedo-lhe o primeiro premio, ainda antes de o vêr.</p>
+
+<p>&mdash;Tem muito talento.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, mas segundo pude perceber nas suas ultimas cartas, está
+enamorado.</p>
+
+<p>&mdash;O amor abre muitas vezes o caminho.<span class="pn">{83}</span></p>
+
+<p>&mdash;Quando nos não conduz a precipicios horriveis.</p>
+
+<p>&mdash;Isso tudo depende da mulher que o inspira.</p>
+
+<p>&mdash;Dizes bem; ella faz do homem ou um heroe ou um parvo, mas quasi
+sempre o segundo caso.</p>
+
+<p>&mdash;Não te concedo voto no assumpto.</p>
+
+<p>&mdash;Como! Collocas-me fóra das leis do sentimento humano?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, porque és um exaggerado e odeias o sexo fraco.</p>
+
+<p>&mdash;Tenho motivos para isso. Procurei estudar a mulher e estou convencido
+de que para ellas o mais importante é a exterioridade. Uma gravata bem posta,
+brilhante e bem feita bota de polimento; n'uma palavra um <i>dandy</i> adamado
+e escravo da moda, e que tenha o cabello sempre bem apartado, tem muitas
+probabilidades de ser amado; emquanto que um homem de verdadeiro merito, que
+cuide mais da sua intelligencia do que do seu traje, fica sempre derrotado em
+questões de amor. A historia apresenta-nos milhares de exemplos: todos os
+homens que honraram a sua patria não tiveram a quinta parte das aventuras
+amorosas de Lovelace, cuja arte se reduzia em fazer olhares ternos e trazer
+magnificas fivellas de prata nos sapatos.</p>
+
+<p>&mdash;Ovidio foi amado por uma princeza.</p>
+
+<p>&mdash;Quase esqueceu d'elle ao vêl-o n'uma masmorra.</p>
+
+<p>&mdash;Tasso foi amado por uma fidalga.</p>
+
+<p>&mdash;Que lhe não mandou nem um simples coto de vela quando por sua causa
+estava no calabouço escrevendo, <i>Jerusalem libertada</i>. Mas tu só me dás
+dois exemplos. Olha, André, Cesar foi o primeiro da sua epocha, a grande figura
+de Roma, e comtudo, a sua mulher, Pompeya, preferiu-lhe um imberbe creançola,
+Publio Clodio, que se vestia de mulher para pôr ao conquistador do mundo, uma
+corôa que não era por certo de louro. Pobre Cesar! Como era calvo, a sua cabeça
+estava sempre ameaçada.</p>
+
+<p>Os que assim matavam o tempo esperando o comboio, era um poeta a quem
+conheceremos pelo nome de Marcial e um pintor que se chamava André, ambos<span
+class="pn">{81}</span> amigos intimos de Ernesto e a quem este remettêra de
+Alicante um telegramma avisando-os da sua chegada.</p>
+
+<p>Marcial e André viviam juntos n'uma mansarda da rua do Prado, tinham um
+creado para ambos e comiam no café Suisso.</p>
+
+<p>O unico patrimonio de Marcial era a penna; a fortuna de André, os pinceis.
+Os dois amigos tinham passado a fatal epocha de bohemios e tanto Marcial com os
+seus dramas; como André com os seus quadros, ganhavam o sufficiente para viver
+bem e serem muitas vezes a Providencia de alguns companheiros.</p>
+
+<p>Mas continuemos na gare, que não tardará que visitemos a mansarda da rua do
+Prado.</p>
+
+<p>O agudo silvo da locomotiva annunciou aos dois amigos que o comboio entrava
+nas agulhas; deixaram, pois, a discussão e dispuzeram-se a abraçar Ernesto.</p>
+
+<p>Effectivamente chegou o comboio, e n'elle Ernesto, que se lançou nos braços
+dos seus amigos.</p>
+
+<p>&mdash;Agora que já te abracei, digo que te acho muito abatido, disse
+Marcial.</p>
+
+<p>&mdash;Effectivamente, estavas melhor quando partiste de Madrid, ajuntou
+André. Roma continúa a ser uma cidade doentia.</p>
+
+<p>&mdash;Pois estou bom, completamente bom, e com um appetite devorador,
+respondeu Ernesto; mas, quando se vôa de Roma a Civita-Vecchia, de
+Civita-Vecchia a Marselha, de Marselha a Alicante, de Alicante a Madrid sem
+descançar nem uma noite, e quando de mais temos a infelicidade de enjoar no
+mar, creio que se não póde exigir a um corpo como o meu, magro e doente, que se
+apresente ante os seus amigos com as bochechas e a barriga de Sancho.</p>
+
+<p>&mdash;Mas porque não vieste por Paris?</p>
+
+<p>&mdash;Tinha pressa de chegar a Madrid, e receei demorar-me na capital do
+visinho imperio mais do que podia. E bem sabes que breve se fecha o praso para
+a apresentação dos quadros; chego, pois, a tempo. Arranjaram-me casa?<span
+class="pn">{85}</span></p>
+
+<p>&mdash;Tens a nossa. Nós temos casa.</p>
+
+<p>&mdash;Tenho quarto?</p>
+
+<p>&mdash;Viverás como um principe desthronado, não te apoquentes.</p>
+
+<p>&mdash;Conduzam-me, então, para onde quizerem.</p>
+
+<p>&mdash;E a tua bagagem?</p>
+
+<p>&mdash;Reduz-se a uma mala, dois caixotes com quadros, e a tela que venho
+expôr, que vem enrolada em um cylindro de madeira. Aqui está a guia.</p>
+
+<p>&mdash;Dá-m'a. Pepe encarrega-se de tudo. É um rapaz muito esperto.</p>
+
+<p>Os tres amigos sahiram da estação, entregaram a guia ao creado que se
+chamava Pepe, e subiram para um trem.</p>
+
+<p>Para chegar á mansarda dos artistas era necessario subir noventa e seis
+degraus.</p>
+
+<p>Uma vez vencida a difficuldade dos noventa e seis degraus, a mansarda
+occupada pelo pintor e pelo poeta era alegre como uma manhã de maio.</p>
+
+<p>Alli respirava-se o ar puro; d'alli o céu parecia mais azul e a vista
+espairecia contemplando as arvores do Retiro e do Prado.</p>
+
+<p>André fizera da sala o seu <i>atelier</i>, onde tudo se encontrava n'uma
+desordem encantadora e propria do genio.</p>
+
+<p>Marcial reservara a saleta para escriptorio. Ficava ainda a casa de jantar
+bastante grande, outra sala, dois quartos e a cosinha.</p>
+
+<p>A segunda sala estava adornada com moveis alugados para receber Ernesto.</p>
+
+<p>Devemos advertir que era uma d'essas mansardas decentes, que têem fogão em
+todas as casas, e que rendem ao senhorio oito mil reales por anno.</p>
+
+<p>Quando os tres amigos se installaram na sala que servia de <i>atelier</i> a
+André, este disse:</p>
+
+<p>&mdash;Aqui tens o nosso palacio, que de hoje em deante será tambem teu, se
+é que desejas viver comnosco.</p>
+
+<p>&mdash;Está claro! Acceito uma parte da casa, porque<span
+class="pn">{86}</span> vejo que têem um grande <i>atelier</i> e admiraveis
+luzes para trabalhar.</p>
+
+<p>&mdash;O que quer dizer que vens disposto a continuar com os pinceis.</p>
+
+<p>&mdash;Bem sabes que são elles o meu unico patrimonio.</p>
+
+<p>&mdash;Ai! Ernesto, por desgraça, em Hespanha a pintura pouco rende.</p>
+
+<p>&mdash;Bem sei; mas trabalhando muito, espero não morrer de fome.</p>
+
+<p>&mdash;Morrer de fome, estando comnosco!? exclamou Marcial. Isso não é
+facil; aqui os bens são communs e d'esse modo nunca nos falta nada. Demais o
+teu quadro será premiado, tu ficas rico, garanto-t'o eu.</p>
+
+<p>&mdash;Não confio em promessas de poetas.</p>
+
+<p>&mdash;O tempo te convencerá de que laboras n'um erro. Mas tratemos de outra
+coisa. Que tal te déste em Roma?</p>
+
+<p>&mdash;Bem como sempre. Roma é a minha patria.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, é a patria dos artistas. Mas agora dize-me com franqueza, tu
+tiveste o mau gosto de te enamorares?</p>
+
+<p>&mdash;Meu caro Marcial o amor não é outra cousa do que uma contribuição que
+todos pagamos, mais tarde ou mais cedo.</p>
+
+<p>&mdash;Em boa hora o fosse. Eu procurarei pagál-o o mais tarde possivel. Mas
+com o direito que me concede a boa amizade, permitte-me que te continue a
+interrogar.</p>
+
+<p>&mdash;Pergunta o que quizeres.</p>
+
+<p>&mdash;Amas?</p>
+
+<p>&mdash;Creio que sim.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos vêr. Quantos graus attinge o teu amor?</p>
+
+<p>&mdash;Muitos, respondeu Ernesto, sorrindo-se.</p>
+
+<p>&mdash;E quem é ella?</p>
+
+<p>&mdash;Se me permittem, guardarei segredo.</p>
+
+<p>&mdash;Não ha inconveniente; mas sem dar nome ao santo, creio que nos pódes
+dar alguns pormenores.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é diverso.</p>
+
+<p>&mdash;É nova?<span class="pn">{87}</span></p>
+
+<p>&mdash;Vinte annos.</p>
+
+<p>&mdash;Formosa?</p>
+
+<p>&mdash;Como o mais bello sonho d'um pintor.</p>
+
+<p>&mdash;Bem, bem, a arte deve ser irmã da belleza. É rica?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, por meu mal.</p>
+
+<p>&mdash;Diabo! Isso não se explica.</p>
+
+<p>&mdash;Digo por meu mal, porque se fosse pobre como eu, já seria minha
+mulher.</p>
+
+<p>&mdash;Tão enamorado estás?</p>
+
+<p>&mdash;Para que negál-o? Não tenho segredos para vocês, que são os meus
+unicos amigos: amo-a com toda a minha alma.</p>
+
+<p>&mdash;De fórma que, quando terminar a exposição, regressas a Roma.</p>
+
+<p>&mdash;Não, porque ella vive em Madrid.</p>
+
+<p>&mdash;Anh! Isso é diverso; do mal o menos. Esperamos que nol-a apresentarás
+quando já não fôr segredo o teu amor.</p>
+
+<p>&mdash;Prometto-o, tão depressa alcance o consentimento do pae. Por agora só
+lhes peço uma cama onde me deite algumas horas, porque estou muito moido.</p>
+
+<p>&mdash;Tens razão, vem. Nós mesmo te vamos acompanhar ao quarto que te
+reservámos, mas não consentimos que durmas até muito tarde, porque convidámos
+uns amigos para almoçar.</p>
+
+<p>&mdash;Acordem-me quando quizerem.</p>
+
+<p>Um quarto de hora depois dormia docemente emballado pela gloria e pelo
+amor.</p>
+
+<p>Pobre Ernesto! Como estava longe de imaginar a volubilidade da creatura a
+quem entregára toda a sua alma n'um só beijo!<span class="pn">{88}</span></p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00014000">CAPITULO XIV</a></h4>
+
+<h2>Curiosidade não satisfeita</h2>
+
+<p>Emquanto Ernesto dormia, os seus amigos collocaram convenientemente a tela
+que o pintor trouxera de Roma.</p>
+
+<p>&mdash;Magnifico! exclamou Marcial ao vêl-a. Estou crente que na Exposição
+não apparecerá nada melhor.</p>
+
+<p>&mdash;É uma grande obra, ajuntou André, contemplando o quadro com olhos de
+entendedor. Ernesto obtem o primeiro premio.</p>
+
+<p>&mdash;Mas espera. Já vi esta cabeça de mulher em alguma parte, disse o
+poeta fixando uma das figuras do primeiro plano, que representava a rainha
+Esther.</p>
+
+<p>&mdash;Eu tambem, ajuntou o pintor.</p>
+
+<p>&mdash;Recordemo-nos onde.</p>
+
+<p>Mas de repente deu uma palmada na testa, e exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Espera, já sei! Esta cabeça não é outra senão a de uma menina que
+conheço e que mora em Madrid. É a filha do milionario D. Ventura d'Aguillar.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Sim! Aquelle sujeito que vem muito ao Suisso e que é tão amigo
+dos artistas.</p>
+
+<p>&mdash;Esse mesmo.</p>
+
+<p>&mdash;E que faz esse senhor?</p>
+
+<p>&mdash;Não o vejo desde o inverno passado. Deve andar viajando.</p>
+
+<p>&mdash;Preoccupações dos ricos durante o verão.</p>
+
+<p>&mdash;Sabes que examinando este magnifico retrato me assalta uma
+suspeita?</p>
+
+<p>&mdash;Qual é?<span class="pn">{89}</span></p>
+
+<p>&mdash;Que seja a linda Amparo o amor de Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Tambem me parece que tens razão em o suspeitares, visto que não ha
+muito ainda nos disse que ella era rica.</p>
+
+<p>&mdash;Decididamente está decifrado o enigma.</p>
+
+<p>&mdash;Sendo assim, sou de opinião que Ernesto deve dar, o mais breve
+possivel, o nó gordio.</p>
+
+<p>&mdash;Nunca! Um artista de merecimento, um homem de talento deve ser
+solteiro toda a vida; o matrimonio é um obstaculo para a sua gloria.</p>
+
+<p>&mdash;Seja como fôr, o quadro é admiravel.</p>
+
+<p>&mdash;E devemos confessar que Ernesto será uma gloria nacional.</p>
+
+<p>&mdash;O quadro produzirá um effeito grandioso; tambem eu não esperava
+menos.</p>
+
+<p>&mdash;Se Ernesto encontrasse um Cosme de Médicis, tinha a fortuna feita.</p>
+
+<p>&mdash;Desgraçadamente para os pintores aquelles tempos passaram.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, dizes bem.</p>
+
+<p>Ás onze horas chegaram tres amigos de Ernesto, pintores tambem, que estavam
+convidados para almoçar com Marcial e André.</p>
+
+<p>Ernesto continuava dormindo, somno que se respeitou durante meia hora que
+passaram entretidos a contemplar o quadro.</p>
+
+<p>Por fim decidiram-se a despertar o hospede, e Ernesto deixou a cama entre
+applausos, felicitações e abraços dos amigos.</p>
+
+<p>Tudo sorria em volta de Ernesto, e elle pensava de si para si:</p>
+
+<p>&mdash;Hoje estou com os meus amigos; ámanhã... oh! ámanhã irei vêl-a ao seu
+palacio de Caramanchel.</p>
+
+<p>Ernesto ignorava que Amparo tivesse morrido para elle.</p>
+
+<p>Os seis amigos foram para o restaurant do Arminho, onde estava encommendado
+o almoço.</p>
+
+<p>Os poetas e os pintores são tão pobres de dinheiro como ricos de imaginação.
+Quando a venda de um<span class="pn">{90}</span> quadro ou a estreia de uma
+peça lhes rende algum dinheiro, gastam-no alegremente com o mesmo
+desprendimento de principes. Ao acabar-se o ultimo centimo puxa-se pela
+intelligencia e cria-se outra obra. Assim passam a vida esses sonhadores, esses
+filhos do genio que vivem acariciados pelo sopro da gloria e pela interminavel
+melodia das suas illusões.</p>
+
+<p>O restaurant do Arminho hoje já não existe; ha ainda pouco tempo que fechou
+as suas portas, convertendo-se no de Madrid. Mas seja como fôr, occupemo-nos do
+primeiro.</p>
+
+<p>O Arminho no seu pequeno, mas elegante recinto, não era frequentado por
+pobres ou economicos. O serviço era á lista, e os pratos caros, mas bons.</p>
+
+<p>Os frequentadores sabiam que um simples almoço lhes custava um par de duros,
+mas sabiam tambem que era preciso pagar, não só os manjares que depositavam no
+estomago, como as gravatas brancas dos creados e o serviço de prata em que
+eram servidos.</p>
+
+<p>N'uma grande cidade como Madrid ha o costume de se atirar o ouro por um
+lado, emquanto que do outro alguns desgraçados morrem de fome.</p>
+
+<p>Marcial encarregára-se do almoço. N'aquelle dia os estomagos dos amigos
+estavam á sua disposição. Escreveu n'um papel os quatro pratos fortes de que
+devia compôr-se, deixando ao gosto do cosinheiro do restaurant as sobremezas e
+os vinhos.</p>
+
+<p>Os seis jovens, alegres e cheios de illusões, tinham bom apetite; comeram
+como quem não sente remorsos na consciencia, falaram de pinturas, de theatros,
+de mulheres.</p>
+
+<p>Ernesto ouvia com certa satisfação os seus amigos; fallava menos do que
+elles sem duvida, porque tinha a imaginação mais preoccupada.</p>
+
+<p>Quando chegou o <i>Champagne</i>, o vinho da alegria, do amor, quando
+começaram os brindes e os epigrammas picantes. Marcial levantou-se com um copo
+na mão, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Brindo pelo original que serviu de modelo ao<span
+class="pn">{91}</span> nosso amigo para pintar a formosa figura de Esther no
+quadro que será a admiração de Madrid.</p>
+
+<p>Todos esvasiaram os copos.</p>
+
+<p>&mdash;E se essa figura que tanto celebras fosse uma creação minha? disse
+Ernesto, sorrindo-se.</p>
+
+<p>&mdash;Então, respondeu Marcial maliciosamente, brindo pellas bellas
+creações do teu genio, e se alguma vez tiver a triste ideia de me casar,
+pedir-te-hei primeiro que pintes uma mulher a teu gosto, e juro-te que não
+consumarei o sagrado laço do matrimonio sem que encontre uma de carne que seja
+egual á do teu retrato. Mas, que queres, parece-me que já vi a tua Esther com
+trajes á moderna.</p>
+
+<p>&mdash;Estás enganado, respondeu Ernesto com embaraço.</p>
+
+<p>&mdash;Senhores, disse André, levantando-se, eu, em nome da fraternal
+amizade que nos une, peço que respeitem o silencio do nosso amigo.</p>
+
+<p>&mdash;Pois eu, pelo contrario, peço que nos conte todos os seus segredos,
+exclamou um dos convidados. Entre amigos como nós, tudo é commum, até os
+segredos.</p>
+
+<p>&mdash;Tem razão. Ernesto não deve ser avarento dos seus segredos, já que
+nunca o foi da sua bolsa.</p>
+
+<p>&mdash;Fala!</p>
+
+<p>&mdash;Conta-nos o que fizeste em Roma desde o dia em que pisaste a cidade
+eterna, até ao momento em que partiste para nos trazeres o melhor quadro que
+verão os contemporaneos.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, conta-nos a historia dos teus amores.</p>
+
+<p>&mdash;Basta, senhores! exclamou Ernesto, estendendo os braços para
+restabelecer a ordem. Quem diabo lhes disse que estou enamorado?</p>
+
+<p>&mdash;Foi Marcial.</p>
+
+<p>&mdash;É uma calumnia.</p>
+
+<p>&mdash;Podemos provar-te o contrario.</p>
+
+<p>&mdash;De que maneira?</p>
+
+<p>&mdash;Apresentando-te o original da tua Esther.</p>
+
+<p>Ernesto estremeceu.</p>
+
+<p>&mdash;N'esse caso, só se poderia attribuir a uma casualidade, disse
+inquieto.<span class="pn">{92}</span></p>
+
+<p>&mdash;A amizade não deve ser exigente, disse André desejoso de livrar o seu
+amigo d'aquelles apuros. Visto que Ernesto não conta, respeitemos o seu
+silencio, e tomemos café.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, sim; tomemos café, ajuntou Marcial, e com pouco assucar, para
+que allivie um pouco a cabeça, dissipando os vapores do vinho!</p>
+
+<p>&mdash;Isso é um insulto; chamas-nos <i>piteireiros</i>.</p>
+
+<p>&mdash;Póde ser que tenhas razão, disse outro. Apesar de tudo, o piteireiro
+é um ser feliz.</p>
+
+<p>&mdash;Que seria dos homens se não existisse o vinho?</p>
+
+<p>&mdash;Uma sociedade de paes graves.</p>
+
+<p>&mdash;Um vasto cemiterio.</p>
+
+<p>&mdash;Viva o vinho!</p>
+
+<p>&mdash;E os homens despreoccupados, que se não importam de se
+embriagarem!</p>
+
+<p>&mdash;Viva a Inglaterra, onde a embriaguez é respeitada.</p>
+
+<p>&mdash;E está na ordem do dia.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Nós, os hespanhoes, somos uns hypocritas; criticamos os
+piteireiros, mas bebemos vinho.</p>
+
+<p>Desde aquelle momento a conversa dos seis rapazes foi tão animada, tão
+alegre, que nos seria difficil reproduzil-a.</p>
+
+<p>Contos, anecdotas, escandalos da capital, tudo serviu de assumpto, em redor
+d'aquella mesa, onde fumegava a digestiva <i>moka</i> e o estomacal
+<i>cognac</i>.</p>
+
+<p>Ás seis da tarde abandonaram o restaurant, e dirigiram-se para Castelhano.
+Necessitavam respirar o ar fresco do campo.<span class="pn">{93}</span></p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00015000">CAPITULO XV</a></h4>
+
+<h2>Carta interrompida</h2>
+
+<p>Penetremos na encantadora quinta que D. Ventura possuia em <i>Carabanchel de
+Arriba</i>; mas não nas elegantes e luxuosas habitações, pois que Amparo que é
+quem procuramos, está n'um caramanchão situado no extremo de uma recta e larga
+rua formada por altos e copados castanheiros da India.</p>
+
+<p>Para que o leitor se inteire de tudo o que succedeu desde que perdeu de
+vista a formosa herdeira de D. Ventura, bastará dar-se ao incommodo de lêr a
+carta que Amparo escreve a uma amiga intima e antiga condiscipula.</p>
+
+<p>Leiamos, pois:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p style="text-align:right;">«Minha querida Luiza</p>
+
+<p>«Desde o dia do meu casamento com o conde de Loreto, isto é, ha um mez, nem
+tu sabes o que tem sido de mim nem eu sei nada de ti. Agora que meu marido me
+deixou, pois alguns negocios o prendem todo o dia em Madrid, vou dar-te parte
+da minha vida.</p>
+
+<p>«Escrevo-te, ouvindo o canto das aves sobre a minha cabeça, e aspirando o
+perfume do jasmim e da madresilva. A minha alma necessita da doce quietação que
+me rodeia, para poder expressar-te toda a immensa felicidade que sinto.</p>
+
+<p>«Ah! Luiza, já sei que amas um homem, e que és egualmente amada por elle.
+Porque<span class="pn">{94}</span> se não casam? E porque não veem para o
+campo?</p>
+
+<p>«Ignorava que no coração d'uma creatura o amor infundisse uma felicidade tão
+ineffavel como a que experimento. É bem verdade que Fernando, meu marido, é o
+melhor dos homens.</p>
+
+<p>«Se visses a maneira amavel e obsequiosa que tem sempre para commigo! Eu
+sou, por assim dizer, a rainha absoluta d'este pequeno paraizo. Meu pae ri-se
+do que chama caprichos de menina amimada, e Fernando approva immediatamente,
+tendo por logico e natural até o mais estranho e excentrico.</p>
+
+<p>«Muitas vezes pergunto a mim propria se esta felicidade poderá durar muito.
+Mas porque não ha de durar? Quando o amor é verdadeiro, dura tanto como a vida.
+Que digo? Mais do que a vida, pois acompanha a alma até á eternidade.</p>
+
+<p>«Mas vou-te falar de Fernando a quem só conheces superficialmente. Imagina,
+querida Luiza, um rapaz bonito, com um coração de anjo, a quem os genios da
+musica e da pintura bafejaram em creança, pois que Fernando é musico e
+pintor.</p>
+
+<p>«Toca orgão de uma maneira admiravel, e desenha quasi tão bem como Gustavo
+Doré, cujos bellos trabalhos conheces.</p>
+
+<p>«Junta a isto uma bondade sempre disposta a comprazer e poderás imaginar
+quem é o homem que me coube por sorte para companheiro de toda a minha vida.</p>
+
+<p>«Demais, Fernando tem uma conversação que fascina. </p>
+
+<p>«Quando de noite passeamos pelo jardim de braço dado, deleita-me ouvir-lhe
+os planos que formulou para que a minha felicidade seja mais duradoura. </p>
+
+<p>«Se soubesses as viagens encantadoras que projecta para a proxima
+primavera!...»<span class="pn">{95}</span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Estava a carta n'este ponto, quando Amparo ouviu pronunciar o seu nome;
+levantou a cabeça e não poude conter um grito.</p>
+
+<p>Tinha na sua frente, seu pae e Ernesto.</p>
+
+<p>D. Ventura, alegre e risonho como sempre; o pintor pallido como um
+cadaver.</p>
+
+<p>Amparo ao vêl-o, deixou cair a penna da mão, exclamando:</p>
+
+<p>&mdash;Ah! é o sr. Ernesto!</p>
+
+<p>&mdash;Elle proprio, respondeu D. Ventura, collocando familiarmente uma mão
+no hombro do pintor. Surprehendeste-te, não é verdade? Pois olha que a mim
+tambem me succedeu o mesmo, apezar de o esperar mais dia, menos dia, visto a
+exposição abrir em meados do mez.</p>
+
+<p>Durante este curto dialogo, Ernesto guardou silencio. Os olhos tinha-os
+fixos em Amparo e os labios entre-abertos deixavam assomar um sorriso tão
+amargo como doloroso.</p>
+
+<p>Amparo por sua parte, parecia perturbada. A presença inesperada de Ernesto
+produzira-lhe um effeito desagradavel. Nos olhos d'aquelle homem estava o
+ameaçador olhar do amante offendido.</p>
+
+<p>Aquelle homem era para ella um terrivel presagio, um vivo remorso. Desejava
+estar a cem leguas d'alli.</p>
+
+<p>&mdash;Sem duvida, que viemos importunar esta senhora, disse Ernesto
+procurando dominar-se.</p>
+
+<p>&mdash;Não, senhor Ernesto; escrevia a uma amiga, e tenho tempo. Só á noite
+é que parte o correio.</p>
+
+<p>&mdash;Demais, disse D. Ventura, o senhor não é uma visita importuna para
+nós, mas um bom amigo a quem tratamos com o maior prazer e recebemos sempre com
+satisfação. Se assim não fosse commetteriamos uma ingratidão. De fórma nenhuma
+se esquecem facilmente as nossas excursões por Florença e Roma.</p>
+
+<p>Innocentemente D. Ventura feriu no mais recondito o coração da fllha.</p>
+
+<p>&mdash;Creio, senhor Ernesto, que concluiu o seu quadro que vimos começado
+em Roma, disse Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, minha senhora, concluio-o, e espero depois<span
+class="pn">{96}</span> de ámanhã, requerer um logar para a proxima
+exposição.</p>
+
+<p>&mdash;Onde iremos admiral-o e orgulharmo-nos, porque somos amigos do
+pintor, ajuntou D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Quem o duvida?</p>
+
+<p>&mdash;Mas dize-me: onde está o teu marido. Desejava apresentar-lhe
+Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Fernando foi esta manhã a Madrid e não volta senão á tarde.</p>
+
+<p>&mdash;É pena; mas tudo se póde remediar, ficando Ernesto e almoçando
+comnosco.</p>
+
+<p>Decididamente D. Ventura parecia disposto a atormentar a filha.</p>
+
+<p>Ernesto comprehendeu que Amparo desejava vêr-se livre da sua presença, mas a
+noticia inesperada do seu casamento, causára-lhe tão terrivel effeito, que
+acceitou o almoço que lhe offerecia D. Ventura, só pelo prazer de atormentar
+aquella <i>coquette</i> que brincára com o seu coração para depois o
+despedaçar.</p>
+
+<p>O almoço ia ser egualmente terrivel para os dois, mas Ernesto devorado pelo
+ciume, pela raiva, pelo desespero, estava resolvido a soffrer tudo.</p>
+
+<p>Acceite o convite, D. Ventura, que não sabia estar quieto em parte alguma,
+teve ainda outro ensejo mais lamentavel para atormentar a filha do que os
+anteriores.</p>
+
+<p>&mdash;Ernesto é como da familia e como fica para almoçar, vou dar as ordens
+necessarias e escrever duas cartas; passeiem pelo jardim, que eu venho
+buscal-os depois.</p>
+
+<p>E dizendo isto dirigiu-se precipitadamente, para casa.</p>
+
+<p>N'aquella occasião Ernesto daria a D. Ventura, a vida, e até a gloria; tinha
+necessidade de falar com Amparo sem testemunhas, de ouvir uma explicação da sua
+conducta; e demais, continuar o fingimento, a dissimulação, seria
+impossivel.</p>
+
+<p>Quando n'um peito cheio de juventude e apaixonado se levanta essa terrivel
+tempestade do ciume, é difficil<span class="pn">{97}</span> dominál-a, chega o
+momento em que, esquecendo-se dos deveres sociaes, estala e produz um
+conflicto.</p>
+
+<p>Ernesto, ao vêr-se só, suspirou com força.</p>
+
+<p>Amparo comprehendeu a sua situação e conhecendo o generoso coração de
+Ernesto, juntou as mãos, deixou assomar aos olhos duas claras e transparentes
+lagrimas e com voz commovida, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Pela memoria de sua mãe, pela recordação d'aquellas noites
+imprudentes de Florença, rogo-lhe, Ernesto, que se esqueça de tudo e me
+perdôe.</p>
+
+<p>O pintor fixou um olhar intenso, sinistro, n'aquella mulher que nunca lhe
+parecêra tão bella, e dominando-se, mas estremecendo ao mesmo tempo, como se o
+fosse a acommetter um ataque nervoso, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Perdoar, é facil; basta ter um coração grande e generoso; esquecer é
+impossivel, senhora, quando se tem uma alma como a minha, quando se sente na
+bôcca o fogo de um beijo que ha de causar a minha desgraça e a minha morte.</p>
+
+<p>E levando a mão á cabeça, em tom desesperado, exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Tudo isto é um sonho! É impossivel que isto seja realidade! Que mal
+fiz a esta mulher, para que depois de mostrar-me o céu, me lance no abysmo do
+desespero?</p>
+
+<p>&mdash;Ernesto, senhor Ernesto, por piedade. Conheço que fui uma imprudente,
+que sou culpada, mas que quer...</p>
+
+<p>&mdash;Senhora, exclamou Ernesto com dignidade, ha procedimentos, que nem
+Cicero com toda a sua eloquencia, poderia explicar satisfatoriamente, e o seu,
+é um d'elles; e, se eu, vendo-me enganado, me quizesse vingar, se eu n'este
+momento em que a vida me é indifferente, commettesse um d'esses crimes que
+lança o desespero nos homens, seria mais desculpavel ainda ante os homens do
+que a senhora ante a sua consciencia.</p>
+
+<p>&mdash;É verdade, é verdade! murmurou Amparo, escondendo<span
+class="pn">{98}</span> o rosto nas mãos. Póde-me matar se lhe apraz.</p>
+
+<p>&mdash;Não tenha medo; tenho bastante coragem para receber a morte sem me
+defender. Até ainda ha pouco a esperança, essa bella flôr da vida que tudo
+embelleza, esse grato perfume da alma, acariciou o meu coração, porque a luz
+d'uns olhos que outr'ora se fixaram nos meus cheios de ternura, illuminava todo
+o meu sêr; mas, agora, encontro-me subitamente mergulhado na mais profunda
+escuridão. Foi tudo um sonho, tudo uma mentira; a senhora nunca me amou; as
+noites de Florença foram momentos passageiros de delirio, entretenimento de
+mulher <i>coquette</i>, esmola concedida por uns labios lisongeiros, falso
+ouropel que tive a veleidade de receber por ouro puro; e emquanto recebia um
+beijo falso, dava a minha alma inteira. Ah! Que louco fui! Se ao menos tivesse
+tido compaixão de mim, se se tivesse dignado escrever-me uma carta, dizendo-me:
+«Ernesto, esqueça tudo quanto se passou entre nós; vou casar-me com o conde de
+Loreto, meu pae exige-o, é um compromisso que não posso evitar...» uma desculpa
+qualquer, uma mentira ao menos, porque ha mentiras desculpaveis porque nos
+fazem bem... Mas não; a senhora, pelo contrario, guardou silencio, e eu
+continuava alimentando as minhas illusões. Hoje chego a esta casa com a alma
+repleta de amor e de esperança e o seu pae diz-me com a mesma frieza e
+indifferença como se me falasse de um dos seus negocios: «Amparo casou com o
+conde de Loreto.» Comprehende, senhora, o effeito que em mim produziu esta
+noticia? As palavras não matam porque eu ainda vivo.</p>
+
+<p>Amparo chorava. Só então comprehendeu a gravidade da sua imprudencia. O
+conde de Loreto fascinara-a: desde o dia das corridas em Paris amava-o de toda
+a sua alma, mas se antes de casar ouvisse as justas recriminações que lhe
+dirigia Ernesto, não teria pronunciado o <i>sim</i> de esposa junto ao
+altar.</p>
+
+<p>Mas o coquettismo, essa arma terrivel da mulher, quando esgrimida contra um
+coração enamorado e<span class="pn">{99}</span> sensivel, dera os seus
+terriveis fructos e jé era tarde para retroceder.</p>
+
+<p>Por isso Amparo não encontrava palavras com que se defendesse, com que se
+justificasse.</p>
+
+<p>N'estes casos, a mulher tem dois caminhos; ou rir-se do amante enganado, ou
+confiar na sua generosidade e pedir-lhe perdão.</p>
+
+<p>Amparo nem por sonhos pensou no primeiro caso; conhecia bem o amor de
+Ernesto e a bondade do seu coração; por isso appellou para o segundo recurso,
+e, levantando a cabeça, apresentou ante os olhos do pintor o seu rosto
+interessante, formoso e pallido, e, derramando lagrimas, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, sim, Ernesto; fui uma <i>coquette</i>, uma imprudente, uma
+leviana. O meu procedimento não tem desculpa; mas amo o meu marido e preferiria
+cem vezes a morte a faltar ao que a minha honra e os meus deveres de esposa me
+impõem. Se não é bastante generoso para perdoar, mate-me, antes que Fernando
+conceba a menor suspeita, e antes que a mais pequena nuvem empanne a sua
+felicidade, prefiro morrer. Mas o senhor é bom e terá dó de mim.</p>
+
+<p>Ernesto começava a sentir-se enternecido. Amava tanto aquella mulher que não
+se sentia com coragem para lhe negar fosse o que fosse. Amparo aproveitava-se
+das vantagens que ia conquistando.</p>
+
+<p>&mdash;Sejamos, pois, amigos, como nos primeiros dias em que nos conhecemos;
+irmão, se quizer, mas perdôe-me e esqueça-me... não será tão cruel que m'o
+negue.</p>
+
+<p>&mdash;Amparo, a senhora não póde imaginar o sacrificio que me pede; mas faz
+bem em confiar em mim. Como poderei ser a causa da desgraça da mulher que amo
+de toda a minha alma? Perdôo-lhe todo o mal que me fez, mas esquecer... é
+impossivel. Para amar não é preciso ser correspondido. Mas para que prolongar
+por mais tempo uma scena que me despedaça o coração? Adeus, minha senhora, seja
+feliz, viva socegada, porque entre os dois abriu-se, desde hoje, um abysmo, no
+fundo do qual estão sepultadas<span class="pn">{100}</span> todas as minhas
+illusões, toda a minha felicidade.</p>
+
+<p>E Ernesto sahiu do caramanchão como o demente que arrebatado pela vertigem
+do seu doente cerebro não sabe para onde caminha.</p>
+
+<p>O primeiro movimento de Amparo foi detêl-o; porém conteve-se, calculando que
+ia commetter uma segunda imprudencia, e de mais graves consequencias do que a
+primeira.</p>
+
+<p>Uma vez só procurou serenar-se.</p>
+
+<p>&mdash;Pobre Ernesto! disse ella, enxugando as lagrimas. Nunca imaginei que
+fosse tão grande o seu amor. Ah! Tem muita razão para me odiar. Foi uma
+imprudencia.</p>
+
+<p>E, recordando-se de que uma só palavra de Ernesto poderia perturbar a sua
+felicidade, exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Meu Deus! Permitti que esse homem não seja assaltado pela terrivel
+paixão da vingança.</p>
+
+<p>Amparo fixou o olhar na carta que escrevia tão alegre, poucos momentos
+antes, á sua amiga, e não tendo paciencia nem socego n'aquelle momento para
+concluil-a, guardou-a na carteira do seu estojo de viagem.</p>
+
+<p>Quando o pae voltou, Amparo estava quasi socegada, ou pelo menos fingia,
+para que se não suspeitasse nada da scena que acabára de dar-se n'aquelle
+logar.</p>
+
+<p>&mdash;Aonde está Ernesto? perguntou D. Ventura.</p>
+
+<p>Rapidamente imaginou uma desculpa que motivasse a precipitada fuga do
+pintor.</p>
+
+<p>&mdash;Ernesto, disse, acaba de sahir.</p>
+
+<p>&mdash;Mas, volta para almoçar?</p>
+
+<p>&mdash;Não; disse-me para lhe pedir desculpa de se retirar, mas havia-se
+esquecido de que tinha uma entrevista importante em Madrid ás duas horas da
+tarde.</p>
+
+<p>&mdash;Todos os artistas têem a cabeça á razão de juros. Mas emfim que
+remedio! Almoçaremos sósinhos.</p>
+
+<p>E offerecendo o braço á filha, dirigiram-se para casa.<span
+class="pn">{101}</span></p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00016000">CAPITULO XVI</a></h4>
+
+<h2>Propostas</h2>
+
+<p>Ernesto chegou a casa e deixou-se cahir desesperadamente na cama; sentia-se
+fatigado, um desejo irresistivel de chorar, um calor immenso nas fontes e um
+frio glacial no coração.</p>
+
+<p>Deitou a cabeça nas almofadas e chorou.</p>
+
+<p>Ás cinco horas da tarde, Marcial e André foram buscal-o para irem jantar, e
+ao verem-n'o pallido, com o parecer decomposto e os olhos avermelhados,
+perguntaram sobresaltados:</p>
+
+<p>&mdash;Estás doente? Que tens?</p>
+
+<p>&mdash;Nada, meus amigos, nada; quero estar só. Deixem-me; esta tarde não
+tenho appetite.</p>
+
+<p>&mdash;Mais uma prova de que estas doente, e por isso não te
+abandonaremos.</p>
+
+<p>&mdash;Por Deus, não me obriguem a levantar. Um boccado de socego far-me-ha
+bem. Repito-lhes que não tenho nada. Vão tranquillos que lhes peço eu.</p>
+
+<p>Depois de meia hora de inuteis perguntas, Marcial e André sahiram afflictos
+do quarto de Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Indubitavelmente ha alguma cousa, disse o poeta.</p>
+
+<p>&mdash;Que diabo succederia? ajuntou André.</p>
+
+<p>&mdash;Parece-me que anda n'este mysterio o original da formosa Esther do
+quadro.</p>
+
+<p>&mdash;Tambem o creio.</p>
+
+<p>&mdash;Não te disse elle esta manhã, que ia a Carabanchel?</p>
+
+<p>&mdash;Sim.</p>
+
+<p>&mdash;Em Carabanchel tem D. Ventura uma casa de campo.<span
+class="pn">{102}</span></p>
+
+<p>&mdash;Que lhe succederia?</p>
+
+<p>&mdash;Quem sabe! Talvez algum desengano.</p>
+
+<p>&mdash;Seja o que fôr, procuremos indagar. É uma desgraça ter um coração
+impressionavel como o de Ernesto; vae dar-lhe muitos desgostos.</p>
+
+<p>Marcial e André recolheram n'aquella noite mais cedo que de costume.</p>
+
+<p>Ernesto continuava deitado; no quarto não tinha luz. Marcial approximou-se
+da cama com um phosphoro acceso para vêr se o seu amigo ainda dormia.</p>
+
+<p>O pintor tinha os olhos abertos.</p>
+
+<p>O poeta accendeu a vela que estava na mesa de cabeceira, puxou uma cadeira e
+sentou-se proximo da cama do amigo.</p>
+
+<p>&mdash;Olha, Ernesto, a dissimulação só tem logar entre pessoas que se não
+estimam. É em vão que procuras occultar-me o que te succedeu. Soffres, tens uma
+d'essas dôres immensas que opprimem o coração. Basta olhar-te para a cara para
+te adivinhar. Comprehendes que, estimando-te como a um irmão, não me posso
+retirar tranquillo, só porque me dizes: «Não tenho nada». Confia, pois, na
+minha amizade, deposita em mim as tuas maguas. Quem sabe se poderei servir-te
+de consolação?</p>
+
+<p>Ernesto apertou carinhosamente a mão do amigo e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Sei quanto me estimas; sei de quanto é capaz o teu generoso coração.
+Somos amigos ha muito tempo, e nunca tive o mais leve motivo para duvidar da
+tua amizade. Em nome, pois, d'essa amizade, peço-te que respeites o meu
+silencio e que me deixes só.</p>
+
+<p>&mdash;Está bem, obedeço; mas não esqueças nem um só momento de que me
+encontro disposto a fazer o sacrificio da minha vida, se com ella posso
+evitar-te algum desgosto.</p>
+
+<p>Marcial sahiu do quarto de Ernesto na occasião em que ia a entrar André.</p>
+
+<p>&mdash;Onde vaes? lhe disse.</p>
+
+<p>&mdash;Vêr Ernesto.<span class="pn">{103}</span></p>
+
+<p>&mdash;Deixa-o, está dormindo; o que precisa é de socego.</p>
+
+<p>No dia seguinte Ernesto levantou-se de melhor parecer, e os tres amigos
+tomaram juntos uma chavena de chá e alguns biscoitos inglezes.</p>
+
+<p>Nem André, nem Marcial tornaram a perguntar a causa da sua tristeza, mas
+elles tambem estavam tristes e desgostosos.</p>
+
+<p>N'aquelle mesmo dia ficou o quadro de Ernesto na exposição. Á noite
+reuniu-se com os amigos no café. Todos respeitaram a taciturnidade do pintor,
+porque todos o estimavam e se compadeciam da sua incomprehensivel tristeza.</p>
+
+<p>Assim se passaram quinze dias. A exposição de pintura abriu as portas ao
+publico, e o quadro de Ernesto arrancou um grito de admiração aos
+espectadores.</p>
+
+<p>A figura de Esther era uma obra tão perfeita como a Virgem de Murillo. O
+quadro tinha sempre um grupo de admiradores, que o contemplavam com verdadeiro
+extasi.</p>
+
+<p>Uma manhã Ernesto acabava de se levantar quando José, o creado, entrou
+participando-lhe que um cavalheiro lhe desejava falar.</p>
+
+<p>Esse cavalheiro não era outro senão Fernando del Villar, Conde de Loreto.</p>
+
+<p>Ernesto procurando simular uma serenidade que não sentia, offereceu-lhe uma
+cadeira, e perguntou tranquillamente o que desejava.</p>
+
+<p>&mdash;Vi e admirei o precioso quadro que tem na exposição de pintura, disse
+o conde. É na verdade uma obra-prima. Tenho a absoluta certeza de que alcança o
+primeiro premio, e venho vêr se o senhor m'o quer vender.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, disse Ernesto, creia que concede ao meu trabalho mais
+merecimentos do que os que realmente tem. Mas de modo nenhum desejo desfazer-me
+d'elle emquanto o jury não resolver.</p>
+
+<p>&mdash;Entretanto póde confiar, disse o conde, que o jury lhe concede o
+primeiro premio, e eu compro-lhe o quadro<span class="pn">{104}</span> como uma
+obra-prima. Póde pedir-me quanto quizer sem receio de que me pareça exaggerado
+o preço. Felizmente sou rico, e sei avaliar o valor das obras como a tela de
+Esther.</p>
+
+<p>&mdash;Tenho tambem que advertir-lhe, senhor conde, de que um correspondente
+da casa de Rotschild já me fez proposta sobre o quadro.</p>
+
+<p>&mdash;Rotschild é mais rico do que eu, disse o conde, sorrindo-se, mas
+tenho mais direitos do que elle ao quadro a que nos referimos.</p>
+
+<p>&mdash;O senhor tem mais direito?! exclamou Ernesto, comprehendendo o ponto
+para onde o conde desejava levar a conversa.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, porque o senhor não ignora que a cabeça de Esther tem uma grande
+parecença, parecença de retrato perfeito, com uma mulher que tenho em muita
+conta, e cujo bom nome me importa mais do que e vida.</p>
+
+<p>&mdash;Não serei eu que o contradiga na sua opinião, senhor conde, mas se é
+retrato, é por pura casualidade, pois foi pintado de imaginação.</p>
+
+<p>&mdash;Creio, senhor, ajuntou o conde manifestando a sua importancia, que
+n'estas coisas o melhor é falar com a maxima franqueza.</p>
+
+<p>&mdash;Nada ha de que eu mais goste.</p>
+
+<p>&mdash;Assim, pois, começarei por lhe dizer o que o senhor não ignora, e é
+que a cabeça de Esther não é outra cousa senão o retrato de minha mulher, a
+quem o senhor conheceu em Roma e em Florença.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, senhor conde, ainda que assim seja, ainda que visse e
+tratasse em Roma e Florença com a senhora que hoje é sua esposa, ainda que a
+minha memoria tivesse sido tão feliz que retivesse as suas feições e as
+transportasse á tela, tudo isso não é mais do que uma liberdade que tomei, e se
+o offende essa liberdade, a questão, entre pessoas de bem, tem uma solução que
+o senhor não ignora.</p>
+
+<p>Ernesto pronunciára estas palavras com a altivez de quem provoca. O conde
+ouviu-o tranquillamente e sem demonstrar a mais leve agitação.<span
+class="pn">{105}</span></p>
+
+<p>Quando o pintor concluiu, o conde fez um movimento de olhos e de rosto,
+manifestando o desgosto que lhe causava similhante provocação.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, disse pausadamente, primeiro que tudo, previno-o de que não
+vim aqui ao som de guerra e julgo por tanto fóra de proposito a solução que
+acaba de me propôr. Que conseguiriamos batendo-nos? Justamente o contrario do
+que desejo e do que o senhor desejará ámanhã. Poderia provar-lhe, sem que lhe
+ficasse duvida alguma, que não sou um cobarde, e que me tenho batido mais de
+uma vez.</p>
+
+<p>Ernesto sorriu-se.</p>
+
+<p>&mdash;Perdôo-lhe essa nova provocação, ajuntou o conde, e torno a pedir-lhe
+não só que me venda o quadro, como tambem que espalhe a noticia de que eu lh'o
+encommendei em Roma, pedindo-lhe que este fosse o retrato de Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Nunca!</p>
+
+<p>O conde estremeceu, augmentou de uma maneira terrivel a sua pallidez, os
+seus olhos brilharam momentaneamente de uma fórma sinistra, e fazendo um
+esforço violento para dominar-se, continuou sem levantar a voz, com humilde
+entoação.</p>
+
+<p>&mdash;Creia, meu amigo, que está em completo erro se julga que vim aqui com
+exigencias; longe do meu espirito toda a ideia de ameaça; só supplico. Se o
+senhor se nega a vender-me o quadro, mas se deseja evitar a minha mulher graves
+desgostos, creio que por fim cederá a publicar um artigo nos jornaes em que
+explique satisfatoria e convincentemente para todos, a similhança que tem a
+figura de Esther com Amparo.</p>
+
+<p>E o conde, levantando-se ajuntou:</p>
+
+<p>&mdash;Pense, e pense tambem nas graves consequencias que a todos podem
+trazer a sua negativa. Espero até ámanhã a sua resposta em minha casa. Este
+cartão indica-lhe a minha residencia em Madrid.</p>
+
+<p>E deixando sobre uma mesa um bilhete de visita, cumprimentou-o e sahiu.</p>
+
+<p>Ernesto permanecia sentado com o olhar provocador,<span
+class="pn">{106}</span> sem se dignar corresponder ao cumprimento que o conde
+lhe dirigira ao sahir.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00017000">CAPITULO XVII</a></h4>
+
+<h2>Confiança</h2>
+
+<p>Quando o conde entrou na carruagem que o esperava á porta, deu ordem que o
+conduzissem para casa, e deixou-se cahir no assento rugindo de raiva.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! exclamou falando comsigo. Aquelle insensato julgou talvez que
+tive medo. E não conheceu o horrivel tormento que me causava o conter-me. Terei
+que matar outro homem? Não, não, mil vezes não. Consentirei antes que elle me
+esbofeteie, preferirei fazer saltar os miolos.</p>
+
+<p>Quando o conde chegou a casa, situada na rua do Barquillo, entrou no quarto
+de vestir de Amparo, que o esperava inquieta e commovida.</p>
+
+<p>&mdash;O tal senhor Ernesto, disse o conde, sentando-se n'um sofá, é menos
+generoso do que suppunhas. Nem quer vender-me o quadro, nem publicar uma
+communicação em que explique decentemente a natural curiosidade de todos que te
+conhecem.</p>
+
+<p>&mdash;Mas elle não tinha nenhum direito para fazer o que fez, para me
+pintar n'um quadro com risco de me comprometter, exclamou Amparo
+tartamudeando.</p>
+
+<p>O conde sorriu-se, e fazendo um movimento de hombros, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Não pódes calcular o quanto me fez soffrer esse homem. Durante a
+nossa entrevista, falei-lhe com doçura, com humildade, pedi-lhe que me vendesse
+o quadro, suppliquei-lhe, e julgando, sem duvida, que as minhas palavras eram
+dictadas pelo medo, que eu era um cobarde, teve o atrevimento de me<span
+class="pn">{107}</span> dizer que se não ficava satisfeito com a sua negativa,
+o assumpto liquidava-se d'outra maneira entre homens. Desgraçado! Necessitei de
+todo o valor, de toda a força do homem que se não póde bater, depois de ter
+morto cinco homens, para não o esbofetear na sua propria casa. Mas quem sabe se
+esse insensato me fará faltar ao meu juramento e terei de matal-o.</p>
+
+<p>&mdash;Não, não, Fernando! Não quero que te batas! Não quero que te
+exponhas! A tua vida pertence-me!</p>
+
+<p>&mdash;Mas se esse homem, depois de ter dado pasto a maledicencia com o seu
+importuno quadro, me insultar na rua, no theatro, n'um passeio, o que hei de
+fazer senão bater-me?</p>
+
+<p>&mdash;Pensa que um duello não serviria senão para augmentar essa
+maledicencia que nos assusta, esse murmurio que receamos.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, concordo; mas não vejo outro caminho.</p>
+
+<p>&mdash;Dize-me, Fernando, tens confiança em mim?</p>
+
+<p>&mdash;Se a não tivesse, estaria como estou, aqui?</p>
+
+<p>&mdash;Obrigada, meu amigo.</p>
+
+<p>&mdash;Mas a que proposito veiu essa pergunta?</p>
+
+<p>&mdash;Porque conheço o bello e nobre caracter de Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Vaes fazer-me algum elogio das suas qualidades moraes?</p>
+
+<p>&mdash;Não; vou tranquilizar-te. Ouve. Uma casualidade fez com que eu
+conhecesse Ernesto em Roma. Depois acompanhou-nos a Florença. Bondoso e
+illustrado, levou-nos a toda a parte, e não demorou muito que não percebesse
+que eu lhe não era indifferente. Bem sabes, Fernando, que não tenho segredos
+para ti, porque o meu coração e a minha vida pertencem-te, porque te amo de
+toda a minha alma.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, sim, não tenho duvidas a esse respeito e comprehendo
+perfeitamente tudo quanto se póde passar entre uma menina e demais formosa como
+tu e um homem como Ernesto, que viajam juntos. Amou-te, fez-te uma declaração
+que não regeitaste, já por<span class="pn">{108}</span> coquettismo, já por
+compaixão. Isso é natural nas mulheres, não as censuro; mas ás vezes traz más
+consequencias. Agora, por exemplo: Ernesto ao voltar a Hespanha, encontra-te
+casada e julga-se com o direito de fazer a tua e a minha desgraça, e apezar
+d'isso não tenho a mais pequena duvida de que esse rapaz tem uma boa alma, um
+generoso coração.</p>
+
+<p>&mdash;Dizes bem, é uma desgraça. Tomei aquelles passeios em Florença, por
+um passatempo, por uma distracção. Aborrecia-me. Ernesto, pelo contrario,
+julgou que eu o amava como Heloisa amou Abelardo... Lastimo tão funesto engano.
+E agora auctoriza-me para que meu pae compre o quadro, eu procurarei a maneira,
+sem faltar aos meus deveres de esposa, de liquidar este assumpto
+satisfatoriamente, porque nada me interessa tanto como a tua felicidade, meu
+Fernando.</p>
+
+<p>&mdash;Repara, Amparo, que o que me propões é uma imprudencia. Ernesto para
+ceder aos teus pedidos, póde ser exigente.</p>
+
+<p>&mdash;N'esse caso, dir-te-hei: «Fernando, sou tua; o teu amor é a minha
+vida. Mata esse homem, que me julgou capaz de faltar aos meus deveres.»</p>
+
+<p>O conde soltou um grito, abraçou com enthusiasmo a mulher.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! disse Amparo, este abraço prova-me que te inspiro confiança, e
+que annues ao meu pedido.</p>
+
+<p>&mdash;Faze o que quizeres; mas fica sabendo que se antes de vinte e quatro
+horas esse homem não explicar nos jornaes, de um modo satisfatorio para mim, a
+parecença da condessa de Loreto com a Esther do seu quadro, não me fica outro
+remedio senão matal-o.</p>
+
+<p>E o conde cumprimentando a esposa, sahiu do quarto.</p>
+
+<p>Amparo ficou por um momento como que oppressa sob o peso da ameaça que o
+marido acabava de proferir.</p>
+
+<p>Pela primeira vez comprehendeu até onde podia<span class="pn">{109}</span>
+conduzil-a a imprudencia do seu coquettismo em Florença.</p>
+
+<p>Rapidamente lhe passaram pela imaginação as recordações d'aquellas noites
+passadas com Ernesto no jardim do hotel do senhor Rosales.</p>
+
+<p>&mdash;É preciso evitar a todo o transe que se batam. Um desafio entre meu
+marido e Ernesto produziria um escandalo, e a maledicencia, duvidando da minha
+honradez, poderia menoscabar na honra do conde. Se isto succedesse, toda a
+felicidade que agora disfructo desappareceria. Não, não, falarei com Ernesto e
+supplicar-lhe-hei se tanto fôr preciso.</p>
+
+<p>Amparo deteve-se, como se tivesse commettido alguma imprudencia.</p>
+
+<p>&mdash;Mas se lhe peço uma entrevista, continuou, ainda que esta seja com a
+nobre intenção de evitar uma desgraça, se se sabe que a mulher do conde de
+Loreto e o auctor do quadro de Esther se viram sem testemunhas, então...</p>
+
+<p>Amparo escondeu o rosto entre as mãos, rompendo em amargo choro, porque
+comprehendia que por todos os lados sómente encontraria difficuldades.</p>
+
+<p>N'aquelle momento entrou D. Ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Que é isso? Que tens? Porque choras? Acabo de encontrar o teu marido
+que me cumprimentou com uma frialdade um tanto importuna. Vou-me convencendo de
+que os aristocratas quando se casam com a filha d'um plebeu, embora este seja o
+mais honrado e o mais rico do mundo, sempre julgam que lhe fazem favor. E olha,
+como isto me desgosta, e caso continue assim, separo-me de vocês, ainda que o
+não te vêr me amargure a velhice e abbrevie os dias que me restam de vida.</p>
+
+<p>D. Ventura falava rapidamente, dissimulando mal o desgosto que sentia e as
+lagrimas que lhe começavam a assomar aos olhos.</p>
+
+<p>&mdash;Meu querido pae. Creio que nos ameaça uma grande desgraça.</p>
+
+<p>Este grito sahido do peito de Amparo fez empallidecer o pae.<span
+class="pn">{110}</span></p>
+
+<p>&mdash;Uma desgraça! exclamou. E que desgraça é essa?</p>
+
+<p>&mdash;Ernesto foi um imprudente ao tomar-me para modelo do seu quadro.</p>
+
+<p>&mdash;E é só isso? perguntou D. Ventura que não via motivo para se
+sobresaltar d'aquelle modo. Se o motivo é o quadro, se não querem que elle
+continue exposto, comprem-lh'o, e é assumpto concluido.</p>
+
+<p>&mdash;Mas elle não o quer vender.</p>
+
+<p>&mdash;Ora! Porque não lh'o pagam bem.</p>
+
+<p>&mdash;Não, meu pae, não. Ernesto não o vende ainda que lhe offereçam um
+milhão.</p>
+
+<p>&mdash;Pateta! Nem tu nem Ernesto sabem o que é um milhão. Não ha quadro do
+mundo que valha essa quantia.</p>
+
+<p>&mdash;O pae não conhece Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Mas entendamo-nos. Que é que tu queres? Que elle retire o quadro?</p>
+
+<p>&mdash;Não é sómente que o tire da exposição, como tambem que publique nos
+jornaes um artigo, assignado por elle, dizendo que o quadro é do conde, o qual
+teve o capricho de que Esther fosse o retrato da esposa.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, falarei com Ernesto, e tudo se arranjará.</p>
+
+<p>&mdash;Mas Ernesto recusa-se!</p>
+
+<p>&mdash;Como! E porque recusa?</p>
+
+<p>Amparo comprehendeu que era preciso revelar tudo ao pae, porque só elle
+podia valer-lhe n'aquelle apuro, e pegando-lhe carinhosamente nas mãos e
+olhando-o com doce expressão, disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Porque Ernesto ama-me; porque tem ciumes, porque ao chegar a Hespanha
+e encontrando-me casada lhe fugiram todas as esperanças do seu generoso
+coração, e receio que commetta alguma loucura.</p>
+
+<p>&mdash;Diabo! Diabo! Isso é muito differente! E teu marido sabe que Ernesto
+te ama?</p>
+
+<p>&mdash;Suspeita-o, e jurou bater-se com elle, se antes de vinte e quatro
+horas não ficar completamente resolvida a questão do quadro.</p>
+
+<p>D. Ventura deu um profundo suspiro.<span class="pn">{111}</span></p>
+
+<p>Começava a vêr a questão sob o seu verdadeiro ponto de vista, e receava que
+tivesse um desenlace fatal.</p>
+
+<p>&mdash;Bem vê, meu pae que o meu sobresalto e o meu receio é fundado. Se
+Fernando e Ernesto se baterem, se algum d'elles morrer...</p>
+
+<p>&mdash;Tudo, menos isso. É preciso liquidar esse negocio. Vou falar com
+Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Negar-se-ha; estou crente. Será mais conveniente que eu lhe fale, mas
+não na sua casa. É preciso que o papá o chame.</p>
+
+<p>&mdash;Não vejo inconveniente. Mas onde? Amparo reflectiu um momento.</p>
+
+<p>&mdash;Occupo o meu rez-do-chão d'esta casa; pois bem, escreva-lhe uma carta
+pedindo-lhe para vir aqui; não a casa do conde de Loreto, mas&mdash;á sua.</p>
+
+<p>D. Ventura sentou-se a uma mesa, pegou na penna e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Dicta a carta.</p>
+
+<p>Amparo pensou alguns instantes. Depois disse:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Senhor Ernesto
+Alvarez</i></p>
+
+<p>«Meu bom amigo</p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p>«Peço-lhe para que tão depressa receba esta carta tenha a bondade de me vir
+procurar em minha casa pois desejo falar-lhe de um assumpto da maior
+importancia. </p>
+
+<p>«Julgo inutil participar-lhe que moro no rez-do-chão, onde o espero,
+confiado em que se apressará em satisfazer o pedido de um amigo que tanto o
+estima. </p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small
+class="SMALL">Sempre seu amigo,</small></p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>D. Ventura de
+Aguillar.</i>»</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Fechada a carta, enviou-a immediatamente por um creado.</p>
+
+<p>Depois, D. Ventura e a filha desceram para o rez-do-chão.</p>
+
+<p>&mdash;Agora, meu pae, disse Amparo, só lhe peço que<span
+class="pn">{112}</span> quando vier Ernesto me deixe a sós, com elle, mas é
+preciso que, detraz d'aquelle reposteiro, seja testemunha da nossa
+entrevista.</p>
+
+<p>&mdash;Farei o que quizeres, porque estas questões apoquentam-me
+atrozmente.</p>
+
+<p>&mdash;Preciso, para que se ámanhã tentarem debicar em mim, ao menos o meu
+pae saiba que não sou uma d'essas mulheres que faltam aos seus deveres com
+facilidade.</p>
+
+<p>Uma hora depois Ernesto era introduzido no gabinete em que estava Amparo.</p>
+
+<p>D. Ventura occultou-se precipitadamente no quarto contiguo.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00018000">CAPITULO XVIII</a></h4>
+
+<h2>A golfada de sangue</h2>
+
+<p>Ernesto, de pé, com o chapéu na mão, pallido, e surprehendido por se
+encontrar com Amparo, não se atrevia a dar um passo.</p>
+
+<p>Amparo que fazia grandes esforços para dominar a commoção que experimentava
+sorriu-se e extendeu-lhe a mão.</p>
+
+<p>&mdash;Que é isso, meu amigo! Tão zangado está comigo que não quer
+apertar-me a mão?</p>
+
+<p>&mdash;Senhora condessa, em verdade que a não esperava encontrar aqui,
+tartamudeou Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Porque a suspeital-o não teria vindo, não é verdade? Agora vejo que
+fiz bem em pedir a meu pae que escrevesse a carta. Mas, peço-lhe que se sente
+aqui, ao meu lado; tenho que lhe falar de um assumpto de que depende a
+tranquillidade da minha alma, o senhor que sempre foi tão bom para commigo
+creio que não deixará de sel-o neste momento.<span class="pn">{113}</span></p>
+
+<p>Ernesto sentou-se ao lado de Amparo, mas sentia-se muito commovido, agitado
+e quasi sem forças para fixar os seus olhos no formoso rosto da condessa.</p>
+
+<p>&mdash;Conheço, senhor Ernesto, que me não assiste nenhum direito para lhe
+pedir algum favor por mais insignificante que seja, porque comprehendo que deve
+estar resentido commigo. Seria inutil desculpar-me; confesso-me culpada, e fui,
+se assim quizer, uma <i>coquette</i> que pagou esse tributo de vaidade de que
+poucas mulheres escapam, e por isso vou-lhe falar, não ao homem em cujo braço
+me appoiei para visitar o Colyseu de Roma e cujas palavras carinhosas resoaram
+nos meus ouvidos como uma embriagadora musica durante as noites de Florença,
+mas a um cavalheiro, a um homem generoso e desinteressado, em cujo nobre
+coração só se albergam sentimentos nobres, emfim, a si, senhor Ernesto, a quem
+não quero occultar a situação em que me encontro, a si de quem depende a paz do
+meu lar, a tranquillidade do meu espirito.</p>
+
+<p>Amparo deteve-se, levou uma das lindas mãos aos olhos e enxugou as lagrimas
+que durante a conversa lhe assomaram.</p>
+
+<p>&mdash;Não creia, senhora condessa, que os meus labios pronunciem uma só
+palavra que seja de recriminação, disse Ernesto. Desde que cheguei a Madrid, e
+assim que soube que a senhora pertencia a outro, que era a esposa do conde de
+Loreto, senti tão profunda dôr no coração, tão grande magua na alma, que só
+então pude avaliar a enorme paixão que me tinha inspirado. Não sou d'aquelles
+homens que se resignam a perder n'um momento as esperanças que durante muito
+tempo acariciaram. Será isto uma desgraça, concordo, porque não devemos encarar
+a sério esta vida.</p>
+
+<p>Ernesto passou a mão pelo rosto, fez um esforço para se dominar e
+continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Sou um nescio! Estou falando de mim, a senhora condessa, em logar de
+lhe perguntar o que deseja e apressar-me a satisfazel-a. Peço-lhe desculpa<span
+class="pn">{114}</span> das minhas anteriores divagações, e ordene tudo quanto
+lhe aprouver.</p>
+
+<p>&mdash;Não, senhor Ernesto, não; conheço todo o mal que o meu coquettismo
+lhe causou, e por conseguinte não podem ser-me indifferentes os seus
+soffrimentos. O que quero, o que lhe imploro é que me perdôe e me não odeie, o
+que lhe peço é que annua ao que esta manhã lhe foi pedir meu marido, porque só
+assim poderá a minha alma viver tranquilla e restabecer-se a paz n'esta
+casa.</p>
+
+<p>&mdash;E... pensou bem no que me pede, minha senhora?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, sei que para si é um grande sacrificio. Se o senhor fosse outro
+homem nunca me resolveria a pedir-lhe tão grande favor, senhor Ernesto, mas do
+senhor espero tudo, porque se tanto fôr preciso, lançar-me-hei a seus pés até
+que o consiga, porque o senhor não quererá que nos meus olhos nunca mais sequem
+as lagrimas, nem vêr-me desprezada pela maledicencia e odeiada de meu marido a
+quem tanto amo; porque se o senhor não cede acontecerá indubitavelmente uma
+desgraça.</p>
+
+<p>Ernesto fixou em Amparo um olhar intenso, profundo, como se pretendesse
+lêr-lhe no fundo d'alma, e depois disse:</p>
+
+<p>&mdash;O senhor conde de Loreto é um homem valente, um dextro atirador que
+tem provado a sua habilidade e o seu valor em mais de uma occasião. Sei que se
+eu recusar terminantemente ao que me pede nos bateremos, e não sendo eu um
+espadachim, será d'elle o melhor partido. Tambem não terei grande trabalho para
+lhe provar, minha senhora, que a ideia de um duello de morte pouco me
+preoccupa. A vida só é preciosa para os que são felizes e a senhora destruiu
+toda a minha felicidade. De mais ha já algum tempo que goso de pouca saude, e
+por conseguinte é desnecessario pensar em mim. Só temo que em Madrid me tomem
+por um cobarde; é epitheto que não mereço e por isso me recusei a satisfazer os
+pedidos do senhor conde.<span class="pn">{115}</span></p>
+
+<p>&mdash;E quem ousará chamar-lhe cobarde? disse Amparo. Para que os seus
+amigos fizessem similhante apreciação, seria preciso que houvesse alguma cousa
+que não fosse natural. Acaba de chegar de Roma com o quadro de Esther; em Roma
+estive este verão e lá esteve tambem meu marido. Nada tão facil e tão
+interessante para a sublime obra que expôz n'um dos salões da Exposição de
+pintura, como inventar uma d'essas anecdotas que fazem na posteridade parte da
+historia de um quadro. Por exemplo: o senhor precisava de um modelo para
+Esther; encontrou-me com o conde, então meu noivo e seu amigo, e encontrando
+nas minhas feições tudo quanto sonhava para a figura de Esther, pediu a
+Fernando para que eu servisse de modelo. O conde annuiu com uma condição: a de
+comprar-lhe o quadro pelo preço em que o senhor o avaliasse; e effectivamente
+fechou-se o negocio por vinte e cinco mil duros. Tudo isto é o mais natural do
+mundo. Ninguem depois de lêr nos jornaes a historia da parecença de Esther com
+a condessa de Loreto, assignado por si, será capaz de dizer que semelhante
+declaração foi escripta pela mão de um medroso.</p>
+
+<p>&mdash;Effectivamente, minha senhora, respondeu Ernesto, d'esse modo, na
+minha historia, haveria um episodio fabuloso, o de vender um quadro no seculo
+da photographia pela fabulosa quantia de meio milhão, e estou certo de que tão
+vantajosa venda produziria inveja a muitos. Mas ignorando todos que conheci em
+Roma e que acompanhei a Florença D. Amparo d'Aguillar, ninguem supporá qual a
+verdadeira historia da parecença de Esther com a condessa de Loreto; e para
+mim, basta-me que a senhora o saiba e que o não ignore o senhor conde. Tambem
+julgo que a senhora não quererá fazer-me o aggravo de me julgar interesseiro. O
+meu quadro não vale vinte e cinco mil duros e por isso não posso ceder aos seus
+desejos.</p>
+
+<p>&mdash;Meu Deus! disse a joven juntando as mãos, e derramando abundantes
+lagrimas. Julgava que este homem me amava, mas enganei-me.<span
+class="pn">{116}</span></p>
+
+<p>Ernesto fez-se pallido até ficar livido, os olhos brilharam-lhe de um modo
+terrivel, pegou bruscamente em uma mão de Amparo, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Senhora, o meu amor é tão grande, que não encontraria palavras com
+que podesse narrar-lh'o.</p>
+
+<p>E pondo uma mão sobre o peito, continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Aqui, desde o momento em que perdi a esperança de realisar os meus
+sonhos, sinto como que uma tempestade infernal que rebentará em breve,
+despedaçando-me o peito. Oh! Como é insensato todo o homem que não sabe ser
+superior ás paixões que o dominam. Eu nunca amara senão minha mãe e a gloria. A
+que me deu o ser deixou de existir. Fiquei orphão, e a gloria desde esse dia
+foi minha mãe, minha amada, minha vida; mas um dia o destino ou a fatalidade
+collocou-a ante mim, e amei-a com toda a minha alma. Este amor então foi
+correspondido, sellado com um beijo que ainda me queima nos labios, que ainda
+abraza a alma, e depois...</p>
+
+<p>Ernesto soltou uma gargalhada hysterica e ajuntou:</p>
+
+<p>&mdash;Mas para que recordar-lhe o que a senhora esqueceu? Que deseja a
+senhora? Fiz-lhe o sacrificio da minha felicidade, talvez o da minha vida,
+farei tambem o da minha honra, estou disposto a tudo. O quadro é seu, minha
+senhora; escreverei a noticia, e entregarei ao senhor conde de Loreto o
+documento com que poderá retiral-o quando a Exposição terminar. Depois, se
+quizerem, podem queimal-o, pois era esse o fim a que o destinava.</p>
+
+<p>Ernesto poz-se de pé, fazendo um esforço supremo, e como se as suas ultimas
+palavras tivesse esgotado as forças, dirigiu-se para a porta.</p>
+
+<p>Amparo olhava-o absorta, commovida, sem coragem para detel-o. Viu-o partir,
+e notou que aquelle homem tremia como um ebrio.</p>
+
+<p>Apenas sahira do gabinete, ouviu-se na antecamara um ruido como o que produz
+um corpo ao cahir desamparado. A condessa soltou um grito e D. Ventura sahiu da
+alcova.<span class="pn">{117}</span></p>
+
+<p>&mdash;É um rapaz que vale quanto pesa, disse o commerciante.</p>
+
+<p>&mdash;Meu pae, corra, succedeu qualquer cousa a Ernesto.</p>
+
+<p>D. Ventura foi por onde o pintor tinha sahido, e effectivamente encontrou-o
+estendido no chão.</p>
+
+<p>Soltou um grito e pediu soccorro. Ernesto estava desmaiado com a cara e o
+peito manchados de sangue.</p>
+
+<p>Quando Amparo chegou, julgou que Ernesto se suicidara; os creados
+levantaram-n'o e transportaram-n'o para a cama de D. Ventura, e quando chegou o
+medico, soube-se a verdade: Ernesto tivera um grande vomito de sangue que o
+obrigara a perder os sentidos.</p>
+
+<p>Uma hora depois, quando voltou a si e abriu os olhos, o conde de Loreto,
+Amparo, Ventura e o medico estavam em volta da cama.</p>
+
+<p>O pintor estava extremamente pallido, mas com essa palidez mate,
+melancholica, dos doentes de peito, e dirigindo um olhar vago e fatigado em
+volta de si, disse com voz debil:</p>
+
+<p>&mdash;Quanto me penalisa, senhores, este contratempo. Senti-me mal
+repentinamente, como se se tivesse rompido qualquer cousa dentro do peito; quiz
+evitar á senhora condessa um desgosto, e retirei-me á pressa, mas ao chegar á
+antecamara, perdi os sentidos. Espero que me desculparão o susto que lhes
+causei.</p>
+
+<p>&mdash;O mais importante, meu amigo, disse o conde, é a sua saude, e desejo
+que me faça o favor de permanecer em minha casa até que se encontre
+completamente restabelecido.</p>
+
+<p>Havia tanta doçura, tanto interesse n'aquella voz, que Ernesto, fixando o
+conde com um olhar replecto de agradecimento, respondeu:</p>
+
+<p>&mdash;Um doente nas minhas condições, senhor conde, é demasiadamente
+importuno. Agradeço-lhe reconhecidissimo o seu offerecimento, mas não devo
+acceital-o e peço-lhes que tão depressa o medico diga<span
+class="pn">{118}</span> que me encontro em estado de ir para minha casa, me
+concedam licença.</p>
+
+<p>&mdash;Não será hoje nem ámanhã, respondeu o medico, e por conseguinte creio
+que não nos devemos occupar d'outra cousa que não seja fortalecer o nosso
+doente.</p>
+
+<p>&mdash;Não se fala mais n'isso, disse D. Ventura, Ernesto é mais bem tratado
+aqui do que em sua casa. Eu, em nome da nossa amizade, prohibo-lhe que se
+levante da cama. Quando estiver restabelecido, quando estiver forte, fará então
+o que lhe aprouver. Hoje mando eu.</p>
+
+<p>Ernesto fez um movimento d'olhos indicando que se resignava. Sentia-se tão
+fraco, que lhe seria impossivel ter-se de pé.</p>
+
+<p>Ficou, pois, resolvido que ficaria no quarto de D. Ventura.</p>
+
+<p>Quando o medico sahiu, Amparo deteve-o para lhe perguntar pelo doente.</p>
+
+<p>&mdash;É grave, disse o facultativo. Mais tarde ou mais cedo morre. Deve ter
+soffrido muito.</p>
+
+<p>Amparo retirou-se para os seus aposentos, e, fechando a porta, chorou.</p>
+
+<p>O remorso começava a preoccupar-lhe o espirito.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00019000">CAPITULO XIX</a></h4>
+
+<h2>Pagar a hospitalidade</h2>
+
+<p>D. Ventura mandou pôr uma cama no quarto de Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Serei o seu enfermeiro, disse, Amparo, e o conde ajuda-me n'esta
+tarefa. Animo, pois, amigo Ernesto, e não pense n'outra cousa que não seja em
+restabelecer-se.<span class="pn">{119}</span></p>
+
+<p>Desde aquella occasião o pintor encontrou uma familia carinhosa, solicita,
+que lhe prodigalizou todo o bem estar. Nem elle mesmo podia explicar o que se
+passava em redor de si.</p>
+
+<p>Muitas vezes era Amparo quem lhe dava os remedios, limpando-lhe o copioso
+suor que com frequencia lhe inundava a fronte, e isto fazia-o mesmo deante do
+marido e com a amorosa solicitude de uma irmã.</p>
+
+<p>D. Ventura logo ao segundo dia começou a tratar o enfermo por tu com a
+ternura e o interesse de um pae.</p>
+
+<p>Assim se passaram cinco dias. Ernesto falava pouco, não só porque o medico
+lh'o prohibira, como tambem porque pensava muito em todos estes
+acontecimentos.</p>
+
+<p>O seu amor por Amparo era immenso. O conde indubitavelmente conhecia esse
+amor, e comtudo, dedicado e obsequioso, consentia que sua mulher passasse horas
+inteiras sentada a cabeceira da sua cama.</p>
+
+<p>Em vão Ernesto perguntava a si mesmo porque era que aquella familia se
+mostrava tão attenciosa, tão obsequiadora para com elle, e o seu coração
+generoso repellia algum pensamento pouco favoravel para ella. O conde
+parecia-lhe um homem digno e honrado, Amparo uma irmã, D. Ventura um pae, e até
+o medico era para elle um amigo.</p>
+
+<p>Desde que recuperára os sentidos, durante os dias em que se achava n'aquella
+casa, ninguem lhe tornára a falar do quadro. Ernesto sentindo-se mais
+alliviado, aproveitou um momento em que estava só, pois desejava demonstrar
+áquella familia o seu reconhecimento.</p>
+
+<p>Levantou-se da cama, chegou com algum custo a uma mesa onde estavam os
+apetrechos de escripta, e poz-se a redigir um artigo.</p>
+
+<p>Passada uma hora tinha acabado.</p>
+
+<p>Então, voltou para a cama, tocou a campainha e disse ao creado que se
+apresentou:<span class="pn">{120}</span></p>
+
+<p>&mdash;Faça favor de dizer ao senhor D. Ventura que desejo falar-lhe.</p>
+
+<p>O creado obedeceu e poucos momentos depois entrava o commerciante, sorrindo
+como sempre.</p>
+
+<p>&mdash;Bravo, bravo, disse elle. Já te vejo esse parecer mais animado e
+gosto d'isso. Mas, saibamos o que quer o meu doente.</p>
+
+<p>&mdash;Que leia isto, que mande tirar copias e que as remetta aos jornaes
+que quizer.</p>
+
+<p>E Ernesto entregou uns linguados de papel em que pouco antes escrevera. D.
+Ventura leu para si. Quando acabou a leitura lançou-se nos braços de Ernesto,
+exclamando com voz commovida:</p>
+
+<p>&mdash;Obrigado, Ernesto, obrigado. Estas linhas trarão a paz a um lar e o
+socego a um pae; és o homem mais generoso do mundo.</p>
+
+<p>D. Ventura tinha os olhos cheios de lagrimas.</p>
+
+<p>Ernesto estava impressionado ante a profunda satisfação do velho.</p>
+
+<p>&mdash;Demais, disse o pintor, fingindo grande naturalidade, essa declaração
+que destruirá por completo a maledicencia, vale bem pouco, e não vejo motivo
+para que o senhor m'o agradeca. Em poucos dias estarei completamente
+restabelecido, e sahirei de Madrid, e nem o senhor conde, nem a senhora
+condessa me tornarão a vêr. Tenho um plano de vida que me será proveitoso.
+Emquanto ás nossas excursões artisticas por Florença, e Roma só me resta
+julgál-as um encantador sonho, filho d'uma imaginação viva e impressionavel, e
+como os sonhos se esquecem procurarei esquecêl-as tambem.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! Tu não dizes o que sentes, Ernesto, soffres e tentas
+occultal-o.</p>
+
+<p>&mdash;E quem não soffre n'este valle de lagrimas? Existe porventura homem
+feliz n'este mundo? Creio que não. A vida não é outra cousa senão um castigo
+que Deus impõe á humanidade pelo peccado original; resignemo-nos, pois e
+paguemos esse tributo ao Creador.</p>
+
+<p>&mdash;Mas isso não me tranquillizou por completo. Dizes<span
+class="pn">{121}</span> no teu artigo que o quadro é propriedade do conde de
+Loreto, que o comprou em Roma, com a condição de que Esther fosse o retrato de
+sua futura mulher, e isso não é verdade.</p>
+
+<p>&mdash;Meu amigo, ás vezes a mentira, que tem alguma cousa de santa, é
+indispensavel.</p>
+
+<p>&mdash;Comtudo o conde não te comprou o quadro.</p>
+
+<p>&mdash;Mas se eu lh'o offereço.</p>
+
+<p>&mdash;Isso não póde ser. Tu és pobre e nos não consentimos...</p>
+
+<p>&mdash;Mau! O quadro, dado o caso de ser premiado pelo governo, poderá
+render-me quando muito cinco ou seis mil duros. Com essa quantia é rico um
+homem como eu.</p>
+
+<p>&mdash;Mas nós podemos dar-te pelo quadro vinte mil duros.</p>
+
+<p>&mdash;Isso seria roubar o dinheiro, e não creio que o senhor me faça a
+offensa de me julgar interesseiro.</p>
+
+<p>&mdash;Demais sei eu que todos os homens de talento desprezam o dinheiro.</p>
+
+<p>&mdash;Pois então consinta que a minha pobre Esther salvando os filhos de
+Israel fique em paga da carinhosa hospitalidade que me concederam, e não se
+fala mais no assumpto. Mas não percamos tempo; é preciso que ámanhã saia em
+alguns jornaes o meu communicado.</p>
+
+<p>D. Ventura não poude convencer Ernesto a que acceitasse qualquer quantia
+pelo quadro.</p>
+
+<p>&mdash;Para todos, disse o pintor, o quadro foi comprado pelo conde de
+Loreto pela importancia que lhe aprouver dizer, e eu não o desmentirei; para
+nós, o quadro será uma offerta que eu faço ao esposo de D. Amparo de
+Aguillar.</p>
+
+<p>No dia seguinte, ao levantar-se, Amparo, viu varios jornaes sobre uma
+pequena mesa de pau rosa.</p>
+
+<p>&mdash;Que é isto? perguntou. Cuidam que me vou dedicar á politica?</p>
+
+<p>&mdash;Não sei, minha senhora, mas o papá disse-me que os puzesse ahi e que
+dissesse da sua parte á senhora<span class="pn">{122}</span> condessa, quando
+se levantasse, que lesse um communicado que trazem os jornaes.</p>
+
+<p>Amparo suspeitou do que tratava o communicado, pegou no jornal e leu em voz
+baixa o que se segue:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p style="text-align: right;">«Senhor director do...</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Espero da sua amabilidade que publicará esta carta no seu acreditado jornal
+que tão dignamente dirige, pois importa ao senhor conde de Loreto e ao que
+subscreve a presente carta, desvanecer certas equivocas apreciações que uma
+parte do publico que visita a Exposição de pintura tem feito sobre o meu quadro
+de Esther. </p>
+
+<p>«Ha alguns mezes estava em Roma pintando o quadro de Esther quando tive a
+honra de ser visitado por Fernando del Villar, conde de Loreto, com a então sua
+futura esposa, hoje condessa de Loreto. </p>
+
+<p>«Verdadeiro enthusiasta pela pintura, o conde de Loreto, protector dos
+artistas, propôz-me comprar o quadro por uma quantia bastante elevada;
+attendendo ao pouco ou nenhum merecimento da minha tela, acceitei o negocio e
+ficou desde então o quadro de Esther sendo propriedade do conde de Loreto. </p>
+
+<p>«A partir d'ahi o conde passou a visitar-me todas as manhãs, passando
+algumas horas no meu atelier vendo-me pintar. </p>
+
+<p>«Um dia, ao ter quasi terminada a minha obra, occupava-me em retocar a
+figura de Esther, quando o conde me disse: </p>
+
+<p>&mdash;«Meu amigo, tenho um capricho de homem rico que desejava satisfazer.
+Se o senhor não se escandalizasse e quizesse, a cabeça da rainha Esther poderia
+ser o retrato da senhora que em breve será minha mulher. Ha algum inconveniente
+n'isso?<span class="pn">{123}</span> </p>
+
+<p>&mdash;«Nenhum, senhor conde, lhe respondi. Nem conheci a celebre judia da
+tribu de Benjamin, a bondosa sobrinha de Mardoques, nem vi mesmo algum retrato
+d'ella, mas desde já aposto qualquer cousa em como a mulher do rei Assuero não
+foi mais bella do que a joven que d'entre em pouco será a condessa de Loreto.
+</p>
+
+<p>«Poucos dias depois, a cabeça de Esther era um retrato bastante parecido da
+senhora D. Amparo de Aguillar, condessa de Loreto. </p>
+
+<p>«Assim fica explicada a similhança que com a esposa do senhor conde de
+Loreto tem a figura principal do meu quadro. </p>
+
+<p>«Peço-lhe me desculpe o incommodo que lhe causo, mas a rectidão do meu
+caracter e o agradecimento a isso me obrigam, e antecipadamente agradece, o que
+é</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align: right;">De V. S.ª</p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small>Att.º
+V.<sup>or</sup> Cr.º e Obrg.º</small></p>
+
+<p style="text-align: right;"><i>Ernesto Alvarez.</i>»</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Quando Amparo acabou a leitura ouviu a voz do marido que lhe pedia
+auctorização para entrar. Entrou com o jornal na mão.</p>
+
+<p>&mdash;Entra, Fernando. Não precisas auctorização para entrar no meu quarto,
+lhe respondeu.</p>
+
+<p>O conde approximou-se da mulher e depois de lhe ter dado um carinhoso beijo
+na face e dirigir-lhe um sorriso amoroso, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Bom dia, querida Amparo, bom dia. Vejo que ambos lemos o communicado
+de Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Sim; meu pae mandou-me estes jornaes.</p>
+
+<p>&mdash;Tambem m'os mandou a mim, e vinha perguntar-te se sabes o que se
+passou entre teu pae e Ernesto.<span class="pn">{124}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não sei.</p>
+
+<p>&mdash;Fosse o que fosse, a conducta d'esse rapaz não póde ser mais nobre.
+Bem vês que nos offerece o quadro, porque tu bem sabes que lh'o não comprei.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, é um rasgo de generosidade pouco vulgar n'um homem que não tem
+outro patrimonio senão os pinceis.</p>
+
+<p>&mdash;Mas nós não podemos consentir em similhante offerta.</p>
+
+<p>&mdash;Ou pelo menos compensal-o com outra.</p>
+
+<p>&mdash;Dizes bem. N'este assumpto convém proceder com toda a delicadeza.
+Vinha lêr-te isto mas como já lêste, retiro-me e vou vêr Ernesto. Almoçamos
+juntos?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, meu Fernando, espero-te aqui para me contares tudo o que
+resolveres.</p>
+
+<p>Fernando tornou a abraçar a mulher e sahiu.</p>
+
+<p>Amparo ao vêr-se só, deixou-se cair n'uma cadeira e leu pela segunda vez o
+jornal.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! exclamou, exhalando um suspiro que brotava do mais fundo da sua
+alma. Ernesto vale cem vezes mais do que eu. Causei toda a sua desgraça. O
+coração tambem me diz que serei a causa da sua morte. Que Deus me perdôe o mal
+que fiz a esse homem.</p>
+
+<p>E, cobrindo o rosto com as mãos, deu livre curso ás lagrimas.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00020000">CAPITULO XX</a></h4>
+
+<h2>Abnegação</h2>
+
+<p>Quando o conde entrou no quarto de Ernesto, acabava este de se vestir.</p>
+
+<p>Pallido, com o parecer cadaverico, o semblante do<span
+class="pn">{125}</span> pintor tinha impressos os profundos vestigios da
+enfermidade que lhe minava o peito.</p>
+
+<p>O conde admirou-se de o vêr levantado. Ernesto, sorrindo, veiu-lhe ao
+encontro.</p>
+
+<p>&mdash;O medico já lhe deu auctorização para se levantar? perguntou
+Fernando.</p>
+
+<p>&mdash;Os medicos são uns ignorantes. Se seguisse os seus conselhos, ficaria
+ainda um mez na cama, mas tenho esperanças de me restabelecer d'outra maneira
+sem auxilio da medicina.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor Ernesto, disse o conde com voz carinhosa, ignoro o que
+tenciona fazer para se curar, mas reprovo que abandonasse a cama.</p>
+
+<p>&mdash;O meu plano de vida é muito simples, senhor conde, reduz-se a ir
+viver no monte, a respirar o ar puro e livre do campo, longe da balburdia da
+cidade, do bulicio dos homens; é o remedio mais efficaz para os doentes do
+peito. Em outros tempos fui um enthusiastico amador da caça. Quando o governo
+me fez seu pensionista, quando parti para Roma, offereci os meus cães e as
+minhas espingardas e abandonei a minha distracção favorita. Em poucos dias
+adquirirei todos os apetrechos e partirei para os montes de Toledo onde conheço
+um caçador de profissão, viverei com elle, caçando umas vezes, pintando outras,
+e quem sabe se a vida semi-selvagem que vou emprehender me restabelecerá a
+saude.</p>
+
+<p>O pintor procurava dissimular o cansaço que a conversação lhe causava.</p>
+
+<p>O conde, que o conhecia, disse com commoção:</p>
+
+<p>&mdash;Ernesto, offender-se-ha commigo se lhe falar com a franqueza de
+irmão?</p>
+
+<p>&mdash;Pelo contrario, senhor conde, julgar-me-hei muito honrado.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, o senhor crê que essa viagem, essa vida semi-selvagem, como
+acaba de dizer, lhe será tão proveitosa, como diz?</p>
+
+<p>&mdash;Sem perceber de medicina, comprehendo que a vida do campo é muito
+proveitosa aos doentes do peito.<span class="pn">{126}</span></p>
+
+<p>&mdash;Comtudo a vida de caçador é agitada e precisa de corpos robustos e
+fortes.</p>
+
+<p>&mdash;Quem sabe se o meu se fortalecerá?</p>
+
+<p>&mdash;Duvido!</p>
+
+<p>&mdash;É preciso dar-se tempo ao tempo.</p>
+
+<p>&mdash;Mas ainda que assim seja o senhor não é rico e precisa trabalhar para
+viver.</p>
+
+<p>&mdash;Tão pouco precisa um caçador de profissão! disse Ernesto sorrindo-se.
+Álêm d'isso pintarei quadros pequenos, que, vendendo-os baratos, sempre terei
+quem m'os compre; por exemplo, assumptos de caça, paisagens tiradas do natural.
+Oh! tenho esperanças que nada me faltará.</p>
+
+<p>&mdash;Está então resolvido a emprehender essa nova vida e eu não me
+opponho, mas quero propor-lhe um negocio.</p>
+
+<p>&mdash;Qual?</p>
+
+<p>&mdash;O senhor precisa de quem lhe compre os quadros que pintar.</p>
+
+<p>&mdash;Certamente.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, compro-lh'os eu. Como vê não tenho muitos quadros bons nas
+minhas paredes, e por isso espero que me permitta pagar-lhe o que está na
+Exposição das Bellas-Artes.</p>
+
+<p>&mdash;Emquanto a esse creio que o senhor já leu a carta que enviei aos
+jornaes, e como digo que recebi em Roma antes de concluir...</p>
+
+<p>&mdash;Mas isso não é verdade.</p>
+
+<p>&mdash;Que importa? O quadro é seu, senhor conde, e não falemos mais de
+similhante assumpto. Emquanto á venda dos que pinte de futuro, isso é diverso e
+não vejo inconveniente em que o senhor m'os compre.</p>
+
+<p>&mdash;Fixemos então desde já o preço, ficando assente que recebo todos
+quantos o senhor pintar.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é offerecer muito.</p>
+
+<p>&mdash;Compro todos. Marque preço.</p>
+
+<p>&mdash;Marcarei quando lh'os mandar, a não ser que o senhor me indique desde
+já os assumptos e os tamanhos.<span class="pn">{127}</span></p>
+
+<p>&mdash;Isso fica á sua escolha.</p>
+
+<p>&mdash;Pois então fica desde hoje sendo o meu unico comprador.</p>
+
+<p>&mdash;E o senhor o meu pintor. Mas repito que é uma loucura abandonar os
+recursos da capital quando a saude não esta sufficientemente restabelecida.</p>
+
+<p>&mdash;Pelo contrario, senhor conde, é muito conveniente abreviar a minha
+partida.</p>
+
+<p>Fernando encolheu os hombros conhecendo que Ernesto estava firmemente
+resolvido a sahir de Madrid.</p>
+
+<p>&mdash;Não insisto mais, apezar de lamentar que nos deixe tão depressa,
+porque de amigos tão generosos, tão nobres como o senhor, é sempre custosa a
+separação.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor conde, antes de nos separarmos tomarei a liberdade de lhe
+falar com a rude franqueza de um homem que sempre foi dominado pelos impulsos
+do seu coração. Odiei-o de morte durante algum tempo. Então não conhecia o
+conde de Loreto mais do que de nome; hoje é diverso: tive occasião de tratar
+comsigo, de apreciar o que vale, e a minha alma, sempre generosa, arrepende-se
+de haver abrigado, ainda que por pouco tempo, sentimentos perversos. A carta
+que mandei aos jornaes não é outra cousa que o descargo da minha consciencia.
+Preciso, pois, partir e esquecer. O senhor sabe que amei Amparo, e tambem não
+ignora que ainda a amo. Tratou-me como a um bom amigo, e nada mais. Sei que são
+felizes, e que se amam muito. Uma imprudencia minha esteve a ponto de destruir
+toda essa felicidade, que não tem preço entre dois esposos. Reparei essa
+imprudencia e tranquillizou-se um tanto a minha consciencia. O passado será um
+sonho para mim, o presente, a soledade dos montes, até ao dia em que Deus
+queira apagar o meu nome do grande livro dos vivos.</p>
+
+<p>Ernesto calou-se. O conde fixou n'elle um profundo olhar que demonstrava a
+admiração que sentia ouvindo expressar-se com tão nobre franqueza,
+julgando<span class="pn">{128}</span> inverosimil que na corrupta sociedade
+ainda se pudesse encontrar n'um homem um rival tão generoso.</p>
+
+<p>&mdash;Vá, disse o conde, depois de uma pausa, parta, mas nunca esqueça que
+tem em todas as occasiões que precisar um irmão, em Fernando del Villar.</p>
+
+<p>&mdash;Obrigado, senhor conde, não esquecerei o seu offerecimento. Peço-lhe
+me desculpe para com a senhora condessa, pois não me posso despedir d'ella, e
+que mande que uma das suas carruagens me leve a minha casa.</p>
+
+<p>&mdash;Como! Partir sem apertar a mão a minha mulher, sem lhe dizer adeus?
+Não, senhor Ernesto. Julga porventura que sou um d'esses maridos zelosos e
+ridiculos que desconfiam da mulher a quem deram o nome? Julga-me capaz de lhe
+fazer a offensa de duvidar de si, o homem mais generoso que conheço, o melhor
+dos meus amigos? Não. Amparo virá despedir-se de si; peço-lhe que não deixe
+esta casa sem que assim succeda.</p>
+
+<p>&mdash;Não insisto mais. Já que assim deseja despedir-me-hei da senhora
+condessa.</p>
+
+<p>&mdash;Vou eu mesmo chamal-a.</p>
+
+<p>O conde sahiu, murmurando em voz baixa:</p>
+
+<p>&mdash;Este homem venceu-me á força de generosidade.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>A condessa acabava de se pentear: estava vestida com uma simples bata
+branca.</p>
+
+<p>Ao vêr entrar o marido exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Tu, outra vez aqui!</p>
+
+<p>&mdash;Sim, Amparo, venho annunciar-te a partida de Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Não é possivel, ainda está muito doente, segundo diz o medico.</p>
+
+<p>&mdash;Isso mesmo lhe disse eu, mas insiste em se querer restabelecer no
+campo, e está resolvido a abandonar hoje mesmo a nossa casa. Pedi-lhe que se
+não fosse, sem primeiro se despedir de ti e de teu pae.<span
+class="pn">{129}</span> É preciso que meu sogro, que tem mais confiança com
+elle, o convença a que receba o valor do quadro que tão generosamente nos
+offerece.</p>
+
+<p>&mdash;Será inutil; não receberá nada.</p>
+
+<p>&mdash;Comtudo espero que teu pae insista pela ultima vez. Não pódes
+calcular o quanto me interessa esse pobre rapaz, pobre como Diogenes e generoso
+como Lucullo. Fala-lhe, fala-lhe sem perda de tempo; eu, entretanto vou á loja
+de Manuel Arenas fazer umas compras.</p>
+
+<p>Fernando tocou uma campainha e disse ao creado:</p>
+
+<p>&mdash;Avise o senhor Ernesto de que a senhora condessa deseja vêl-o.</p>
+
+<p>E depois, abraçando Amparo, continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Adeus, minha amiga. Procura convencer esse tresloucado. Não me
+demoro. Vou comprar umas cousas para Ernesto. É preciso presenteal-o como a um
+principe que pensa em passar uma grande temporada no monte, dedicando-se a
+caça.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00021000">CAPITULO XXI</a></h4>
+
+<h2>Abandonando Madrid</h2>
+
+<p>Amparo, depois do conde sahir, ficou immovel, preoccupada. Ia despedir-se de
+Ernesto, talvez para não mais o vêr; ia ter uma entrevista sem testemunhas com
+o homem a quem tão desgraçado fizera, e esta entrevista era proporcionada,
+pedida pelo marido.</p>
+
+<p>Por um momento Amparo receou que aquillo fosse um laço, mas rapidamente
+affastou similhante pensamento, conhecendo a nobreza com que procederam Ernesto
+e o conde de Loreto.</p>
+
+<p>&mdash;Não, não; Fernando não póde ter ciumes; tem<span
+class="pn">{130}</span> confianca absoluta, sabe que o amo com toda a minha
+alma, disse Amparo, falando comsigo. Comtudo quer que me despeça de Ernesto a
+quem tão desgraçado fez uma leviandade, filha do coquettismo. Devo
+obedecer-lhe, ainda que me seja dolorosa esta entrevista.</p>
+
+<p>E como n'aquelle momento entrasse o creado para annunciar que o senhor
+Ernesto esperava a condessa, Amparo encaminhou-se para o quarto do pintor.</p>
+
+<p>Ernesto, ao vêr entrar Amparo, pôz-se de pé, mas foi-lhe preciso encostar-se
+ao espaldar d'uma cadeira.</p>
+
+<p>A condessa não se commoveu menos, vendo a extrema pallidez do seu antigo
+apaixonado.</p>
+
+<p>&mdash;É verdade, senhor Ernesto, o que o meu marido acaba de me dizer?
+Pensa em deixar-nos?</p>
+
+<p>&mdash;Senhora condessa, respondeu o pintor com uma tranquillidade que
+assombrou Amparo, sinto-me muito melhor, e resolvi restabelecer-me no campo.
+Dentro em pouco as brisas do outomno annunciarão o inverno, e creio que me é
+conveniente fortalecer-me primeiro.</p>
+
+<p>&mdash;Se a sua resolução é inabalavel, não nos devemos oppôr, nem meu
+marido nem eu, mas creia, senhor Ernesto, que ambos sentimos do coração que o
+senhor deixe tão depressa esta casa, que podia considerar como sua.</p>
+
+<p>Ernesto sorriu-se amargamente, fez um movimento de indifferença com os
+hombros, e ajuntou:</p>
+
+<p>&mdash;Ha creaturas, minha senhora, para quem o mundo é um deserto, um campo
+de tristes saudades. Sósinhos na terra, vivem, sem uma affeição que os console,
+sem um peito carinhoso onde possam reclinar a fronte nas horas d'amargura. Para
+estes seres, a sociedade dos homens é demais, porque desconhecendo o embuste e
+a falsidade, são sempre enganados; eu talvez pertença a essa desgraçada familia
+de orphãos das grandes cidades. Por isso estou resolvido a nunca mais pisar as
+suas ruas, por isso me vou encerrar como um selvagem nos montes de Toledo
+esperando no meio d'aquelles agrestes barrancos o<span class="pn">{131}</span>
+ultimo momento da minha vida, que felizmente não se fará esperar muito.</p>
+
+<p>Amparo inclinou tristemente a cabeça sobre o peito. As palavras eram uma
+terrivel accusação, um castigo ao seu coquettismo.</p>
+
+<p>&mdash;Porque me não odeia, senhor Ernesto? tartamudeou Amparo. Porque me
+não despreza?</p>
+
+<p>&mdash;Senhora, a minha alma não póde nem odiar, nem desprezar, nem
+esquecer. As noites de Florença e de Roma imprimiram n'ella uma impressão
+demasiadamente profunda.</p>
+
+<p>A condessa comprehendeu que a conversa ia seguindo um rumo perigoso.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, senhor Ernesto, disse, peço-lhe em nome da amizade que
+apague da memoria essas noites.</p>
+
+<p>&mdash;Impossivel; é uma recordação que faz parte da minha vida; e por assim
+dizer a minha segunda natureza. Quando der o ultimo suspiro, quando deixar de
+existir, então, sim, então é que se extinguirá do meu peito.</p>
+
+<p>&mdash;Mas sente-se assim tão doente? perguntou Amparo, que, aturdida ante
+as sentidas recriminações do pintor, não sabia que dizer.</p>
+
+<p>&mdash;Quem sabe se serei um d'esses ridiculos apprehensivos que á força de
+pensarem na morte sempre d'ella vão escapando!</p>
+
+<p>E sorrindo com um ar triste, continuou:</p>
+
+<p>&mdash;O ar saudavel das montanhas talvez me restabeleca.</p>
+
+<p>E puxando o cordão da campainha, disse a um creado:</p>
+
+<p>&mdash;Diga ao senhor D. Ventura que me vou embora immediatamente e que o
+espero para me despedir.</p>
+
+<p>Amparo, ante aquella resolução inesperada, que punha fim á entrevista de uma
+maneira brusca, levou as mãos á cara para occultar as lagrimas que lhe fôra
+impossivel suster.</p>
+
+<p>&mdash;Póde-me odear, se assim lh'o apraz, disse a condessa; mereço-o,
+porque não ha palavra com que possa desculpar o meu procedimento.<span
+class="pn">{132}</span></p>
+
+<p>E sahiu precipitadamente do quarto.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! exclamou Ernesto, vendo-a sahir. Não posso esquecer esta
+mulher!...</p>
+
+<p>Deixou-se cair n'uma cadeira, como se o abandonassem as forças para
+suster-se de pé.</p>
+
+<p>Em vão D. Ventura procurou persuadir Ernesto de que a vida de caçador
+montez, quando se carece de saude, é uma temeridade. O pintor estava resolvido,
+e sahiu de casa do conde.</p>
+
+<p>Quando chegou a sua casa da rua do Prado, quando os seus amigos André e
+Marcial o viram entrar pallido como um cadaver e fraco como um convalescente,
+depois de oito dias de ausencia, não puderam conter um grito de assombro.</p>
+
+<p>Ernesto explicou-lhes a ausencia e participou-lhes o plano que concebêra
+para se curar.</p>
+
+<p>N'aquella mesma noite escreveu uma carta a Mauricio, caçador de profissão,
+que vivia nos montes de Toledo.</p>
+
+<p>Tres dias depois, Mauricio respondeu a Ernesto, offerecendo-lhe a sua casa,
+participando-lhe que se casára, e que, por conseguinte, podia estar com alguma
+commodidade.</p>
+
+<p>Ernesto fôra caçador n'outros tempos, antes de partir como pensionista para
+Roma. Era d'aquella epocha que conhecia Mauricio, com quem entrára em algumas
+caçadas.</p>
+
+<p>Resolvido a emprehender a viagem, principiou a dispôr tudo, isto é, pôz n'um
+caixote alguns quadros, o cavallete, a caixa das tintas e os pinceis; n'outra
+metteu alguns livros de estudo e de recreio.</p>
+
+<p>Só lhe faltavam os apetrechos de caça, quando uma manhã em que se dispunha a
+sahir para comprar todos esses artigos, viu entrar o mordomo do conde de
+Loreto, seguido de dois creados que traziam duas caixas e dois bellos cães
+inglezes, um Setter e outro Pointer.</p>
+
+<p>O mordomo avançou com o seu costumado ar grave, e, entregando uma carta a
+Ernesto, disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Meu amo, o senhor conde de Loreto, manda-me<span
+class="pn">{133}</span> entregar esta carta, estas caixas e estes cães, ao
+senhor, encarregando-me de lhe pedir o desculpe de não vir pessoalmente, mas
+é-lhe inteiramente impossivel.</p>
+
+<p>A um signal do mordomo, os creados arriaram no chão as duas caixas e
+amarraram os cães ao pé de uma mesa.</p>
+
+<p>&mdash;Creio que o senhor não deseja mais nada, ajuntou o mordomo, vendo que
+Ernesto guardava silencio.</p>
+
+<p>&mdash;Diga ao senhor conde que lhe agradeço reconhecidissimo a offerta que
+se digna fazer-me, e que lhe falarei ou escreverei antes de partir.</p>
+
+<p>O mordomo cumprimentou e sahiu seguido dos creados.</p>
+
+<p>Então Ernesto fez uma caricia aos cães, que se acercaram, meneando a cauda,
+e exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Aqui estão os meus novos amigos. Oh! Estes sim, que não me
+venderão!</p>
+
+<p>E sentando-se n'uma cadeira, abriu a carta do conde e leu:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Meu bom amigo</p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p>«Deixou-me com o quadro de Esther uma recordação que conservarei emquanto
+viver; permitta-me que lhe remetta tambem como uma lembrança, os meus melhores
+cães e algumas armas e objectos que podem ser de muita utilidade no campo. </p>
+
+<p>«Carlos <small>I</small> de Inglaterra offereceu a Rubens, em pleno
+parlamento, a espada que levava cingida á cinta, um diamante que trazia no dedo
+e uma banda de diamantes que lhe cruzava o peito. Tudo isto foi a paga do
+magnifico retrato d'aquelle monarcha que mais tarde tão maus boccados fez
+passar a Luiz <small>XVI</small>. Permitta, pois, que eu, sem ser rei, tome a
+liberdade de offerecer alguns apetrechos de<span class="pn">{134}</span> caça,
+de pouco valor, e não esqueça que espero com anciedade noticias da sua saude e
+algum quadro dos que me prometteu. </p>
+
+<p>«Minha mulher e meu sogro cumprimentam-n'o e desejam vêl-o brevemente em
+Madrid restabelecido da sua doença </p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small
+class="SMALL">Seu amigo</small></p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Fernando del
+Villar.</i>»</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Ernesto leu duas vezes a carta, e, soltando um suspiro, murmurou em voz
+baixa:</p>
+
+<p>&mdash;Eis-me amigo do conde de Loreto, de um homem com quem estive a ponto
+de me bater.</p>
+
+<p>Ernesto abriu as caixas, encontrando n'ellas tudo quanto póde necessitar no
+campo um caçador de dinheiro.</p>
+
+<p>Só a mão de uma pessoa intelligente teria sido capaz de reunir todos
+aquelles objectos.</p>
+
+<p>Ernesto encontrou duas espingardas, uma de Scotte de dois canos, do systema
+Lefaucheux, outra de Greener para tiro de bala, uma excellente botica de
+viagem, uma barraca de campo, uma mala de couro da Russia com quinhentos
+cartuchos carregados com chumbo, e outra com duzentos carregados com bala; um
+fato completo de camurça, botas de cautchouc, facas de matto, um rewolver
+Flaubert de doze tiros, com ornamentações de ouro, um estojo com todas as peças
+em prata, duas mantas inglezas e varios artigos todos diversos e uteis.</p>
+
+<p>Indubitavelmente o conde de Loreto gastára mais de cinco mil duros com o
+presente.</p>
+
+<p>Ernesto contemplou tudo com profunda melancholia.</p>
+
+<p>&mdash;É preciso acceitar, disse. Ia para Toledo com um equipamento mais
+modesto. Emfim, tanto melhor para o pobre Mauricio, que se se portar bem, será
+o meu herdeiro no dia em que eu morrer.<span class="pn">{135}</span></p>
+
+<p>Como se vê, Ernesto, não deixava nem um só momento a ideia da morte.</p>
+
+<p>N'aquella noite Ernesto escreveu a seguinte carta:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Senhor conde</p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p>«A opportunidade produz sempre bom resultado no animo impressionavel das
+creaturas. Dispunha-me a sahir de casa com tenção de comprar alguns apetrechos
+de caça, quando vi entrar o seu creado com o que me enviou.</p>
+
+<p>«Sem ter nada de Pedro Paulo Rubens, não agradecerei menos os presentes que
+me fez, do que agradeceu o pintor flammengo os donativos de Carlos
+<small>I</small>. </p>
+
+<p>«Obrigado, pois, senhor conde, pela sua delicada offerta. Ámanhã parto e
+talvez nos não tornemos a vêr, apezar dos bons desejos que têem pelo meu
+restabelecimento. Ha doenças que cada hora qua passa nos leva uma parte da
+existencia, são as incuraveis; e a minha é d'essas que se chamam de morte. </p>
+
+<p>«Não é o medo nem a apprehensão que me fazem dizer isto; sei bem qual é o
+mal que me consome, e só terei illusões, quando tiver sido tocado pelos dedos
+gelados da morte. Deus quer que os doentes do peito sonhem com a vida nos
+ultimos momentos. </p>
+
+<p>«Adeus, senhor conde. Em breve lhe enviarei por pessoa da minha confiança o
+primeiro quadro que pintar, e assim o irei fazendo successivamente, mas não
+receio, que a collecção seja muito grande. </p>
+
+<p>«Cumprimentos á senhora condessa e ao senhor D. Ventura, e não esqueça este
+desterrado voluntariamente, que prefere a solidão do campo ao ruido e bulicio
+dos homens.</p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small
+class="SMALL">«Sempre seu amigo</small></p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Ernesto
+Alvarez.</i>»<span class="pn">{136}</span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>No dia seguinte, Ernesto, depois de fazer varias compras, entre as quaes se
+contava um vestido para a mulher de Mauricio, despediu-se dos amigos e entrou
+n'uma carruagem de primeira para Toledo.</p>
+
+<p>Ernesto possuia por uma unica fortuna, ao partir de Madrid, dez mil reales
+que lhe produziram os objectos e quadros que vendeu.</p>
+
+<p>Álêm dos quinhentos duros e dos presentes do conde de Loreto, levou uma
+grande caixa com garrafas de champagne, rhum, cognac, aguardente e bom café.</p>
+
+<p>&mdash;Esta caixa será a minha alegria, disse Ernesto, sorrindo-se para os
+amigos. O rhum concilia o somno e o champagne alegra os pensamentos.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>Mauricio esperava-o em Toledo.</p>
+
+<p>Carregou-se toda a bagagem em varios animaes e partiram para os montes, onde
+o caçador morava.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00022000">CAPITULO XXII</a></h4>
+
+<h2>Vida de recordações</h2>
+
+<p>A mulher de Mauricio não conhecia Ernesto; mas vendo-o chegar com o marido e
+toda aquella bagagem, disse:</p>
+
+<p>&mdash;É um principe que entra para nossa casa.</p>
+
+<p>E effectivamente, o pintor foi para aquelle honrado casal tanto como um
+principe, a julgar pela generosidade com que pagava os serviços que recebia.</p>
+
+<p>Petra ficou louca de contentamento, vendo sobre uma cadeira o presente que
+Ernesto lhe trouxera, e que constava de um vestido de lã, um lenço de seda e
+uns brincos de ouro e coral.</p>
+
+<p>Mauricio examinava tambem com satisfação uma<span class="pn">{137}</span>
+espingarda de dois canos, de fabrico belga, e uma forte e boa faca de matto.</p>
+
+<p>&mdash;Mauricio, disse Ernesto, depois de entregar os presentes; estou muito
+doente e venho passar algum tempo comtigo. Sei que vives da caça. Nomeio-te meu
+caçador, e dou-te um duro por dia. Aqui tens adeantadamente dois mezes.</p>
+
+<p>Ernesto pôz na mesa sessenta duros.</p>
+
+<p>Mauricio e Petra olharam para o dinheiro, sem comprehenderem uma palavra de
+tudo aquillo.</p>
+
+<p>&mdash;A caça que matarmos, exceptuando algumas peças que Petra cosinhará, é
+tua e pódes vendêl-a e guardar o dinheiro. Eu comerei com vocês. Nada de
+cerimonias, o modesto cosido e uma vez por outra uma perdiz com molho de villão
+ou um coelho á caçadora, de que muito gósto, e por isso para prato darei doze
+reales diarios. O café e o vinho ficam por minha conta. Por agora aqui têem
+esse caixote, onde estão varias garrafas. Preciso que me cedam a sala, porque
+tenciono pintar alguns boccados. Tambem virei a precisar que de vez em quando
+vás a Madrid levar os quadros que pintar e comprar varias cousas que me tornem
+mais ameno este deserto. Emfim, meu caro Mauricio, sei que vou dar-te muitos
+incommodos, que vaes ter muitos carinhos para commigo, mas eu procurarei
+recompensar-te o melhor que puder.</p>
+
+<p>&mdash;Offerece-me muito, disse o caçador, visto poder vender uma parte da
+caça que matarmos, e então com o senhor que atira tão bem ou melhor do que
+eu!...</p>
+
+<p>&mdash;Mas estou doente, e já não tenho as infatigaveis pernas d'outros
+tempos; e muitos dias deixaremos de matar por causa d'ellas.</p>
+
+<p>Durante aquelle dia, Ernesto, Mauricio e Petra occuparam-se em arrumações,
+transformando a sala em atelier para o pintor.</p>
+
+<p>&mdash;Agora, meus amigos, só me falta advertil-os d'uma cousa, disse
+Ernesto. Estou doente, e como todos os doentes tenho as minhas rabugices.
+Quando<span class="pn">{138}</span> estiver no meu quarto, depois de me
+chamarem duas vezes para comer e eu não vier, comam sem esperarem por mim.</p>
+
+<p>Mauricio e Petra notaram que Ernesto estava muito pallido e com mau parecer,
+que tinha uma tosse tão sêcca e importuna que não prophetisavam nada de
+agradavel para o seu hospede.</p>
+
+<p>Quando Mauricio e sua mulher recolheram ao quarto, ella disse:</p>
+
+<p>&mdash;Uhn! Parece-me que o senhor Ernesto não viverá por muito tempo.</p>
+
+<p>&mdash;O mesmo penso eu.</p>
+
+<p>&mdash;Sabes, Mauricio, que me parece que deve haver algum mysterio em tudo
+isto?</p>
+
+<p>&mdash;Anh! As mulheres não pensam n'outra cousa. Aqui não ha outro mysterio
+senão que o senhor Ernesto está doente e que se vem restabelecer.</p>
+
+<p>&mdash;Seja como fôr, que seja bem vindo, porque com elle veiu a fortuna.</p>
+
+<p>Mauricio não respondeu. Como a mulher, suspeitára que algum desgosto
+atormentava o seu hospede, mas mais prudente que Petra, disse de si para
+comsigo:</p>
+
+<p>&mdash;Dêmos tempo ao tempo que saberemos a verdade. Emfim, seja como fôr,
+Ernesto é bom rapaz e sinto-me satisfeito por vêl-o em minha casa.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>Ernesto estava fechado no quarto. Seriam onze horas da noite. O luar entrava
+pela janella que se conservava aberta. A brisa nocturna levava até elle, de
+envolta com as suas invisiveis pregas, o perfume das silvestres plantas do
+monte.</p>
+
+<p>Aos pés da cama, sobre duas pelles de carneiro, dormiam os dois cães que
+Ernesto baptisára com os nomes de Roma e Florença.</p>
+
+<p>O pintor, sentado junto de uma mesa, tinha na sua frente uma garrafa de
+cognac e um copo.</p>
+
+<p>Não illuminava o quarto outra luz senão a do astro da noite.<span
+class="pn">{139}</span></p>
+
+<p>De vez em quando Ernesto bebia um gole de cognac e levava a mão ao peito,
+respirando com difficuldade.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Sim, sim, dizia, falando comsigo. A solidão dos montes, é o que
+me convêm, porque longe da importuna charlatanice dos homens poderei dedicar a
+ella todos os momentos da minha vida. Quizera apagar da minha alma a recordação
+d'aquellas noites de Florença e arrancar dos meus labios o beijo de fogo que me
+queima o coração. Mas é impossivel! Cada vez a amo mais. Que seja feliz já que
+eu o não posso ser!</p>
+
+<p>Ernesto bebeu de um só trago o conteúdo que ainda tinha no copo e encheu-o
+novamente.</p>
+
+<p>&mdash;A embriaguez sempre me repugnou, continuou, mas é o meu unico recurso
+para esquecer. Que feliz é o homem que esquece!</p>
+
+<p>E Ernesto esvasiou o segundo copo, fazendo um gesto de repugnancia; mas
+dominando-se a si mesmo encheu-o pela terceira vez, despejando-o
+rapidamente.</p>
+
+<p>&mdash;Abraza-se-me a garganta, murmurou, mas é preciso que durma e que
+esqueça.</p>
+
+<p>E, levantando-se tirou uma garrafa de champagne do armario onde as arrumára,
+fez-lhe saltar a rolha, e bebeu com avidez, dizendo:</p>
+
+<p>&mdash;Este é que é o grande vinho! Vinde, sonhos côr de rosa! Vinde, ainda
+que seja uma mentira, uma illusão, fumo que desappareça ao sopro terrivel da
+realidade!</p>
+
+<p>E depois de exgotar a garrafa, deixou-se cahir na cama, onde não tardou
+muito que adormecesse, porque estava completamente embriagado.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>Mauricio e Petra levantaram-se com o sol, e viram, com grande assombro, ao
+passarem pelo quarto de Ernesto, que as janellas estavam abertas.</p>
+
+<p>&mdash;Sahiria tão cedo? disse Mauricio.</p>
+
+<p>E entrou no quarto.</p>
+
+<p>Ernesto dormia. Mauricio fechou a janella e sahiu<span
+class="pn">{140}</span> nos bicos dos pés para o não despertar, mas toda a
+precaução foi inutil, porque Ernesto abriu os olhos e viu-o.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! És tu? disse elle. Bons dias, Mauricio. Que bem que dormi.</p>
+
+<p>Mauricio reparou então que o seu hospede não se despira, e que sobre a mesa
+estavam duas garrafas despejadas.</p>
+
+<p>&mdash;Sabes, Mauricio, que estou com vontade de experimentar os meus
+cães?</p>
+
+<p>&mdash;Podemos dar uma volta, se quizer.</p>
+
+<p>&mdash;Mas é preciso ter alguma contemplação.</p>
+
+<p>&mdash;Andaremos só o que quizer.</p>
+
+<p>&mdash;Então vamos.</p>
+
+<p>E Ernesto poz a cartucheira, pegou na espingarda e chamou os cães.</p>
+
+<p>A uns quinhentos passos de casa, Roma e Florença levantaram os focinhos e
+moveram a cauda com mais viveza do que a usual.</p>
+
+<p>&mdash;Parece que os cães se sentem satisfeitos, disse Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Têem bom faro. Já sabem que este terreno é muito abundante de caça; e
+estou crente que algum dia vou encontrar as perdizes dentro de minha casa.</p>
+
+<p>Os cães deram signal: Roma todo curvado com o focinho junto ao matto,
+Florença extendido. Roma encontrára uma peça de surpreza e Florença o rasto
+verdadeiro.</p>
+
+<p>Um bando de perdizes levantou-se então com estrepito do meio do matto á
+investida dos cães.</p>
+
+<p>Mauricio disparou, matando com o segundo tiro um perdigoto. Ernesto ia tão
+distrahido que não teve tempo de fazer fogo.</p>
+
+<p>Desde o rei ao batedor, desde o caçador ao armador, todos quantos abandonam
+as commodidades da sua casa e se dedicam aos prazeres da caça, são inimigos
+irreconciliaveis da perdiz; por isso a natureza a dotou com uma vista melhor
+que a do lynce, de um ouvido superior ao da lebre, e de um instincto de
+conservação tão grande que não ha animal que lhe ganhe.<span
+class="pn">{141}</span></p>
+
+<p>Se a perdiz fosse tão dorminhôca como o arganaz e tão indolente como a
+codorniz, teria desapparecido do reino animal antes de se inventar a
+polvora.</p>
+
+<p>O arganaz tem, comtudo, tanto engenho como somno; diga o ardil
+maravilhosamente inventado por elle para apanhar o incauto passarinho que vae
+pôr sobre elle, satisfeito por ter encontrado um ninho onde guardar os ovos.</p>
+
+<p>Mas deixemos esta digressão. Se algum dia as minhas occupações permittirem,
+escreverei um livro para os caçadores que contenha a parte agradavel e ridicula
+da caça, consignada na pratica de muitos annos de experiencia passados na
+agreste e grata solidão dos montes.</p>
+
+<p>Voaram as perdizes, surprehendidas no seu doce bem-estar, á sombra de um
+sobreiro, e como o violento e rapido vôo da perdiz excita e põe nervoso o
+caçador aficcionado, Mauricio exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;Vamos a ellas, senhor Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, sim, vamos, já que não disparei.</p>
+
+<p>Mauricio esqueceu n'aquelle momento que levava por companheiro um doente
+fraco, e foi depressa, ou melhor dizendo, a correr pela encosta de um
+barranco.</p>
+
+<p>Ernesto fez esforços para o seguir mas a meio caminho largou a espingarda,
+extendeu os braços e cahiu desamparado. Tinha desmaiado.</p>
+
+<p>Mauricio deteve-se assustado, pegou no seu hospede ao collo e deitou a
+correr até casa, que não era longe. Petra ao vêl-o entrar, trazendo Ernesto nos
+braços, não poude conter um grito.</p>
+
+<p>Mauricio continuou o seu caminho e deitou Ernesto na sua cama, o qual, pouco
+depois, abriu os olhos, enviando um sorriso de agradecimento ao caçador.</p>
+
+<p>&mdash;Diabo! Que susto que me pregou, senhor Ernesto! Julguei que se
+despenhava pelo barranco.</p>
+
+<p>&mdash;Bem vês, Mauricio, que não presto para nada, nem mesmo para caçar. Já
+estou melhor. Mas em quanto não estiver em estado de te acompanhar,
+dedicar-me-hei<span class="pn">{142}</span> a caça de espera. Agora
+tranquilliza-te, hoje em vez de caçar, pintarei. É preciso matar o tempo.</p>
+
+<p>Uma hora depois, Ernesto mais alliviado, tomava algum alimento e punha uma
+tela n'um cavallete.</p>
+
+<p>Pensou alguns minutos qual o assumpto de que trataria primeiro, e acabou por
+decidir-se, esboçando a scena que pouco antes succedêra no barranco.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00023000">CAPITULO XXIII</a></h4>
+
+<h2>Uma caçada</h2>
+
+<p>Durante oito dias Ernesto não tornou a pegar na espingarda. De manhã,
+pintava, á tarde, seguido pelos cães dirigia-se a um monte proximo de casa,
+sentava-se na parte mais alta e como gozava disfructando o panorama que aquelle
+sitio apresentava, passava largas horas immovel como uma estatua.</p>
+
+<p>Algumas vezes, já noite, Mauricio ia buscal-o e ambos regressavam a casa.</p>
+
+<p>Ao nono dia, Ernesto chamou Mauricio.</p>
+
+<p>&mdash;Desejo que vás a Madrid, disse-lhe, entregar este quadro á pessoa que
+te indicarei, mas preciso primeiro que matemos um javali, para offerecer á
+mesma pessoa.</p>
+
+<p>&mdash;Para isso é preciso fazermos uma espera toda a noite, e como o senhor
+está muito fraco...</p>
+
+<p>&mdash;Não te inquietes com a minha fraqueza; esperaremos. Preciso de um
+javali.</p>
+
+<p>&mdash;Posso matal-o sósinho, se quizer.</p>
+
+<p>&mdash;Não, não; quero acompanhar-te. Quando póde ser?</p>
+
+<p>&mdash;Esta noite; sei onde se vae banhar uma manada d'elles, e é infallivel
+matar-se algum.<span class="pn">{143}</span></p>
+
+<p>&mdash;Um só chega.</p>
+
+<p>&mdash;Pois matar-se-ha.</p>
+
+<p>&mdash;Então prepara tudo para esta noite.</p>
+
+<p>&mdash;Devo advertil-o de que o sitio onde vamos fazer a espera, fica a tres
+quartos d'hora de caminho d'aqui.</p>
+
+<p>&mdash;Não faz mal, iremos com antecedencia. Sahiremos cedo.</p>
+
+<p>&mdash;Bem, bem.</p>
+
+<p>Mauricio sahiu do quarto de Ernesto, meneando a cabeça em signal de
+desgosto, chegou á cosinha, onde estava sua mulher, e disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Petra, esta noite o senhor Ernesto quer que vamos á espera dos
+javalis: tem desejos de matar um. Por isso cearemos uma hora antes de pôr o
+sol. Talvez não voltemos em toda a noite.</p>
+
+<p>&mdash;Mas isso é uma loucura. O sr. Ernesto não está em estado de passar
+tantas horas ao relento da noite.</p>
+
+<p>&mdash;Então que queres, embirrou que me ha de acompanhar!</p>
+
+<p>&mdash;Mas não acho bôa a vida que leva para quem precisa
+restabelecer-se.</p>
+
+<p>Mauricio encolheu os hombros, e, sentando-se num banco, enrolou um
+cigarro.</p>
+
+<p>&mdash;Estamos em quarto minguante. Para matar uma ou duas peças é preciso
+ir aos charcos do barranco da Culebra, pois vão ali de noite beber agua e
+fossar no barro. O caminho não é dos melhores. Queira Deus que possa lá
+chegar.</p>
+
+<p>&mdash;Já lhe disseste isso? Porque não vae a cavallo?</p>
+
+<p>&mdash;Já, mulher, já; mas diz que quer ir a pé e quando elle teima não ha
+outro remedio senão obedecer.</p>
+
+<p>Petra approximou-se do marido, e, baixando a voz, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Dize-me, Mauricio. Tu conhécel-o ha muito tempo?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, cacei com elle muitas vezes e sempre foi o melhor e o mais
+generoso homem do mundo.</p>
+
+<p>&mdash;E tinha o vicio que tem agora?<span class="pn">{144}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não, Petra, antigamente não bebia bebidas brancas, bebia sómente
+vinho, e isso mesmo pouco. Hoje, como sabes, quasi todas as noites...</p>
+
+<p>Mauricio deteve-se, dirigiu um olhar para a porta, e depois continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Hontem reprehendi-o amigavelmente, dizendo-lhe que não lhe podia
+fazer bem beber tanto rhum, e elle, pondo-me uma mão no hombro, e sorrindo-se
+com expressão bondosa, respondeu-me:</p>
+
+<p>&mdash;Caro Mauricio, ha dôres tão terriveis, desgostos tão profundos, que
+para os esquecer algumas horas é preciso embriagarmo-nos. A minha doença não
+tem cura; deixa-me, pois, beber, esquecer, dormir.</p>
+
+<p>&mdash;Quando eu disse que havia aqui algum mysterio!... disse Petra.</p>
+
+<p>&mdash;Tambem me parece que tens razão; aqui deve haver mysterio.</p>
+
+<p>&mdash;Sabes o que calculo? Que tudo isto deve ser obra de mulher.</p>
+
+<p>&mdash;E porque calculas que seja obra de saias?</p>
+
+<p>&mdash;Vaes vêr. Outro dia entrei no quarto para o tratar, como de costume,
+e encontrei debaixo da almofada uma fita de seda, e um boccado de tela, onde
+estava pintada uma cabeça de mulher extremamente formosa. Não tive tempo para
+mais do que olhar rapidamente para estes objectos e tornal-os a pôr no mesmo
+sitio em que os encontrei quando o vi entrar, precipitadamente, dirigir-se para
+a cama, pegar n'elles e sahir do quarto do mesmo modo, olhando-me de um modo
+estranho, como se quizesse adivinhar se eu tinha visto. Fiz-me desentendida, e
+continuei arrumando o quarto.</p>
+
+<p>&mdash;Que curiosas são as mulheres.</p>
+
+<p>&mdash;Juro-te que só por casualidade...</p>
+
+<p>&mdash;Emfim, seja como fôr, visto que elle nada nos disse, nos não lh'o
+devemos perguntar.</p>
+
+<p>Como se vê a conducta de Ernesto causava viva curiosidade ao honrado
+casal.<span class="pn">{145}</span></p>
+
+<p>Ao cair da tarde Ernesto e Mauricio levantaram-se da mesa.</p>
+
+<p>&mdash;Levamos Roma e Florença? perguntou o pintor.</p>
+
+<p>&mdash;Parece-me melhor deixal-os em casa, respondeu Mauricio; não estão
+costumados ás esperas, e poderão espantar-nos a caça. Levarei antes o meu
+podengo para que procure a presa no caso de ficar ferida. <i>Currito</i> (assim
+se chamava o cão de Mauricio) deita-se a meus pés e não se move d'ahi.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos quando quizeres.</p>
+
+<p>Mauricio carregou com escrupuloso cuidado a espingarda e guardou um frasco
+de rhum no bolso. Ernesto pegou na sua e sahiram.</p>
+
+<p>O sol começava a declinar.</p>
+
+<p>&mdash;Temos tempo, disse Mauricio. D'aqui até aos charcos levaremos quando
+muito tres quartos de hora. Reconheci esta manhã o terreno e calcúlo pelas
+pégadas que são uma femea com sete a oito filhos, e dois machos que não devem
+ter menos de dez annos. Os machos veem sós, antes ou depois da femea. Parece-me
+que nos divertiremos, mas é preciso ter muita paciencia, porque apezar de todas
+as rezes abandonarem as tocas quasi á mesma hora, umas estão mais longe do que
+outras do barranco e chegam por conseguinte mais tarde. Tenha cuidado em fazer
+fogo sobre a peça antes d'ella entrar n'agua. Se cair morta fique quieto,
+porque quando o charco estiver silencioso, em poucos minutos
+apresentar-se-nos-ha outra, e assim successivamente se podem disparar alguns
+tiros durante a noite. O sitio onde vamos é bom, e estaremos perfeitamente
+collocados.</p>
+
+<p>Ernesto ouvia satisfeito as lições que lhe dava aquelle homem
+experimentado.</p>
+
+<p>Mauricio que como todo o caçador de profissão tinha uma vista privilegiada,
+deteve-se, inclinou-se para reconhecer o caminho, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Ola! Por aqui passou um veado de <i>dez pontas novas</i>; aqui ha
+pégadas recentes; os córtes na herva<span class="pn">{146}</span> são frescos.
+A femea caminhava mais á direita: passou por aqui.</p>
+
+<p>&mdash;Mas como diabo conheces se é femea ou macho? perguntou Ernesto,
+admirado da certeza com que Mauricio falava.</p>
+
+<p>&mdash;Isso salta bem a vista. Um montanhez practico nunca se engana. O
+veado tem o passo maior do que a corça, e deixa a pégada mais profunda, caminha
+com mais regularidade, e colloca a pata trazeira sobre a pégada da pata
+deanteira. A corça tem o pé mal feito, os seus passos são mais curtos, e por
+conseguinte, não chega com as patas trazeiras ás pégadas das patas deanteiras.
+Emquanto ao conhecimento pelas pégadas, é unicamente devido á grande practica.
+Quando se segue um rasto pelas pégadas, o caçador deve conhecer se o veado que
+persegue é <i>estaquero</i>, isto é, se lhe começam a sahir os paus, tem um
+anno; <i>enodis</i>, tem tres a quatro annos, <i>diez condiles nuevos</i>, se
+entrou nos seis annos, ou <i>ciervo viejo</i>, se tem mais de dez annos. A
+estes conhece-se facilmente; têem os pés deanteiros mais desenvolvidos do que
+os trazeiros.</p>
+
+<p>Depois d'estas explicações que deixaram Ernesto satisfeito, receou não as
+poder pôr em practica sem commetter grandes erros.</p>
+
+<p>De vez em quando o caçador dirigia um olhar furtivo ao seu companheiro, cuja
+pallidez e difficil respiração o inquietavam.</p>
+
+<p>A meio da ladeira, que tinham que transpôr para chegarem aos charcos,
+situados em um dos barrancos, Mauricio deteve-se e disse com manifesto
+interesse:</p>
+
+<p>&mdash;Senhor Ernesto, vejo que está muito cançado. Quer encostar-se ao meu
+braço?</p>
+
+<p>&mdash;Não preciso, mas vamos mais devagar, se te parece.</p>
+
+<p>Como quizer.</p>
+
+<p>Quando chegaram ao cume, Ernesto teve necessidade de se sentar e, encostando
+os cotovellos sobre os joelhos, deixou cahir a fronte entre as mãos.<span
+class="pn">{147}</span></p>
+
+<p>O caçador não disse nada; de pé, immovel, ficou contemplando Ernesto com
+tristeza.</p>
+
+<p>Mauricio não tinha palavras, mas sobrava-lhe coração para compadecer-se do
+seu hospede, a quem julgava gravemente enfermo.</p>
+
+<p>&mdash;Podemos continuar, disse Ernesto, levantando-se.</p>
+
+<p>&mdash;Agora o caminho é mais facil, respondeu Mauricio. Os charcos estão
+n'esse barranco; antes de um quarto de hora estaremos commodamente sentados nos
+nossos postos.</p>
+
+<p>Mauricio seguiu por uma vereda aberta entre a matta. Ernesto caminhava
+atraz.</p>
+
+<p>De vez em quando o caçador voltava a cabeça para vêr se o seu companheiro o
+seguia.</p>
+
+<p>Quando chegaram aos charcos ainda restavam alguns instantes de dia. As
+magestosas sombras da noite avançavam com rapidez, mas a lua ia rapidamente
+tornal-as menos escuras, pois o seu disco despontava já no horisonte.</p>
+
+<p>&mdash;Parece-me conveniente que fiquemos juntos, porque assim quando
+estiver cançado voltaremos para casa, disse Mauricio.</p>
+
+<p>&mdash;Mas mataremos menos caça.</p>
+
+<p>&mdash;Quem sabe! Podem entrar juntas e então cada qual escolhe a sua.</p>
+
+<p>Mauricio conhecia varios esconderijos em torno do charco e escolheu, pelas
+recentes pégadas dos javalis, o que lhe pareceu melhor; dobrou o capote, e
+estendeu-o no chão para que Ernesto estivesse mais commodamente e esperaram
+calados.</p>
+
+<p>A noite é mais magestosa, mais imponente, mais bella no meio do Oceano ou
+n'uma montanha, do que nas ruas de Madrid. Nas grandes cidades vê-se por toda a
+parte a mão do homem, mas no mar ou na montanha vê-se a de Deus.</p>
+
+<p>Ernesto e Mauricio esperavam no mais profundo silencio. O pintor
+entretinha-se contemplando o magnifico astro da noite que subia magestosamente
+pelo céu enchendo o espaço de poetica e melancholica luz,<span
+class="pn">{148}</span> que cahindo como chuva de perolas sobre as armadas das
+arvores e sobre as silenciosas aguas do charco, dava um tom encantador á
+paisagem.</p>
+
+<p>Ernesto, como pintor, pensava em fazer um estudo d'aquelle logar e pintar
+depois um quadro; mas ao mesmo tempo pensava na mulher do homem que se
+compromettera a comprar-lhe tudo quanto pintasse durante a sua estada nos
+montes de Toledo.</p>
+
+<p>A presença da lua, o imperceptivel movimento das ramadas dos azinheiros, o
+silencio da noite que o rodeava, fizeram-lhe recordar Florença. Fechou os olhos
+para sonhar acordado, e os seus labios entreabriram-se em doce extasis, como se
+fôsse a dar e receber um apaixonado beijo de amor.</p>
+
+<p>N'aquelle momento para elle não existia mais do que o presente. A sua vida
+era uma recordação; a sua alma apaixonada apresentava-lhe com todas as côres da
+verdade as scenas apaixonadas e perdidas para sempre, causa da sua desgraça,
+origem da sua morte.</p>
+
+<p>Se tivesse entrado no charco um bando de cincoenta rezes, Ernesto não
+ouviria; mas, felizmente tinha ao seu lado Mauricio, caçador de profissão, que
+sem ter a imaginação preoccupada com outra cousa que não fosse o fim para que
+fôra até alli, estava com o olhar fixo, o ouvido attento e a espingarda prompta
+a despedir a morte e como o verdadeiro caçador que quando faz uma espera tem o
+ouvido e a vista tão perspicaz como a da perdiz, e por isso sem duvida Ernesto
+sentiu que o seu companheiro lhe tocava no braço.</p>
+
+<p>Ernesto abriu os olhos.</p>
+
+<p>&mdash;Acorde, que já as ouço.</p>
+
+<p>&mdash;Não estou a dormir, respondeu o pintor, mas não ouço nada.</p>
+
+<p>&mdash;Pois já se approximam, tenha a certeza, ainda estão longe, e são
+femeas; conhecem-se pelo barulho que fazem. Os machos veem sempre mais
+silenciosos.</p>
+
+<p>Ernesto applicou o ouvido, e, depois de um segundo<span
+class="pn">{149}</span> de immobilidade, meneou a cabeça dizendo:</p>
+
+<p>&mdash;Pois eu não ouço nada.</p>
+
+<p>&mdash;Sim? Pois tenha paciencia que não tardará muito que tenha de tapar os
+ouvidos, porque a musica d'ellas, quando andam em manadas, não é por certo das
+mais agradaveis. Veem a entrar por aquella clareira que está na nossa frente.
+Antes de se metterem n'agua, de que tanto gostam, param para conhecerem o
+terreno. Então deve fazer fogo, apontar á maior que ficar a sua esquerda; eu
+entreter-me-hei com a direita a vêr se, disparando ao mesmo tempo, matamos
+duas.</p>
+
+<p>E Mauricio, collocando o bico do pé esquerdo sobre o de Ernesto, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Quando carregar com o meu pé, faça o <i>gosto ao dedo</i> e faça
+fogo. E agora silencio que já estão perto.</p>
+
+<p>Dois minutos depois, Ernesto ouvia a algazarra que Mauricio lhe
+annunciára.</p>
+
+<p>Esperaram, pois, pelo momento opportuno que se não devia fazer esperar
+muito.</p>
+
+<p>No sitio que Mauricio indicára appareceu de repente uma femea muito grande
+seguida de seis javalis pequeninos cujas desegualdades de tamanho indicavam ser
+de duas ninhadas differentes.</p>
+
+<p>Ernesto pudéra ter feito fogo á femea; estava uns cinco passos afastada dos
+filhos, levantando a cabeça em direcção aos charcos.</p>
+
+<p>O pintor olhou para o seu companheiro como que a interrogál-o, mas o caçador
+indicou com um movimento de olhos que esperasse. E effectivamente a uns vinte
+metros de distancia do logar em que estava a femea, abriu-se uma clareira e
+appareceu um javali quasi do dobro do tamanho da femea.</p>
+
+<p>A lua estava tão clara que os caçadores viram perfeitamente os animaes.</p>
+
+<p>Ernesto sentiu o pé de Mauricio comprimir o seu, e como tinha a espingarda
+apontada, disparou.</p>
+
+<p>As duas detonações produziram no espaço um só echo.<span
+class="pn">{150}</span></p>
+
+<p>A bala de Mauricio foi tão bem apontada que o javali deu um salto, caindo
+sem vida depois de soltar um grunhido de raiva. A femea, a que Ernesto apontára
+foi ferida na cabeça; deu duas voltas, quiz fugir, mas foi cair junto ao
+charco; depois fez um esforço supremo, levantou-se novamente, entrou na agua
+para tornar a cair revolvendo-se nas ancias da morte, soltando grunhidos
+desesperados que pouco a pouco foram enfraquecendo.</p>
+
+<p>Os demais tinham desapparecido como por encanto.</p>
+
+<p>Mauricio ouvia as palpitações do coração de Ernesto cujo ruido e
+precipitação o assustaram.</p>
+
+<p>&mdash;Está peor? lhe perguntou.</p>
+
+<p>&mdash;Não, não; é o prazer que experimento n'este momento. Se tornasse a
+renascer em mim a paixão da caça, talvez esquecesse uma historia que me
+assassina, que será a causa da minha morte.</p>
+
+<p>O pintor revelára a Mauricio n'um arranco de enthusiasmo, a causa da sua
+melancholia, a origem da sua doença.</p>
+
+<p>&mdash;E que fazemos agora? perguntou Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Primeiro que tudo castrar o macho para que sangre e a carne perca o
+gosto a bravo.</p>
+
+<p>Mauricio levantou-se, tirou a faca de matto da bainha, e sahiu do
+esconderijo, dirigindo-se para o sitio onde estava o javali.</p>
+
+<p>Ernesto segui-o, examinando com o mais particular interesse todas as
+operações que Mauricio fazia ás duas peças mortas.</p>
+
+<p>O caçador depois de lhe abrir todo o ventre e de lhe tirar os intestinos,
+pendurou-os pelos pés para que sangrassem e ficassem limpos. Depois lavou as
+mãos na agua do charco, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Agora diga-me se quer dar por terminada a caçada ou quer fazer nova
+espera, apezar de me parecer melhor, o primeiro caso, pois é preciso esperar
+pelo menos duas horas até que volte outro javali.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos para casa. E as rezes?<span class="pn">{151}</span></p>
+
+<p>&mdash;Ficam ahi. Venho logo buscal-as com o meu cavallo.</p>
+
+<p>&mdash;Então dá-me um gole de rhum, e a caminho. Passei um bom boccado.</p>
+
+<p>Ernesto bebeu e deu o frasco a Mauricio. Depois dirigiram-se para casa onde
+o pintor chegou bastante fatigado.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00024000">CAPITULO XXIV</a></h4>
+
+<h2>Uma carta e um annel</h2>
+
+<p>Ernesto deixou-se cahir na cama, e como sempre, o seu pensamento occupou-se
+de Amparo.</p>
+
+<p>&mdash;Ámanhã, disse, falando comsigo, ouvirá pronunciar o meu nome, e no
+fundo da sua alma renascerá a recordação das noites de Florença. Os seus
+labios, vermelhos como bagos de romã, recordar-se-hão tambem d'esse beijo fatal
+que me fez o mais desgraçado dos homens, e pela mente do conde de Loreto
+cruzará debil, mas ameaçador, o phantasma de uma duvida, a sombra de uma
+suspeita.</p>
+
+<p>Ernesto tinha sempre na mesa de cabeceira uma garrafa de rhum; extendeu o
+braço, pegou na garrafa e bebeu um gole.</p>
+
+<p>&mdash;Ha quasi um mez sem a vêr, continuou, e comtudo a ausencia não apagou
+o fogo devorador d'esta paixão que me abraza. O conde de Loreto tinha mais
+direito do que eu para ser amado, mas indubitavelmente não a ama tanto. E que
+importa isso ás mulheres? O conde é rico, nobre, e a vaidade é o dominio
+tentador do bello sexo. Se o amor é o fogo d'alma que transmitte calôr ás
+ideias dos homens de genio, devo fazer grandes quadros.</p>
+
+<p>E Ernesto soltou uma gargalhada, pegou novamente<span
+class="pn">{152}</span> na garrafa, e quasi a despejou de um trago.</p>
+
+<p>Na sua physionomia, no seu olhar, assomaram os symptomas da embriaguez
+produzida pelo alcool.</p>
+
+<p>Com a lingua, presa e balbuciante, começou a falar em voz alta.</p>
+
+<p>&mdash;A luz dos seus bellos olhos é o unico reflexo que illumina as
+profundas trevas da minha alma, a que acompanha a fria soledade do meu coração;
+as seis lettras do seu nome, as notas mais harmoniosas que resôam no fundo do
+meu peito. Insensato! A tua vida não é mais do que um sonho, que se desvanece
+ante o sopro da realidade. Tu recebeste tres beijos, durante tres noites de
+luar; aquelles beijos encerravam o veneno do teu sangue. A tua vida não é vida;
+o teu amor é só uma recordação. Onde está a morte? Porque tarda tanto? Porque
+não chega, quando a espero de braços abertos?</p>
+
+<p>Ernesto fechou os olhos. Os seus labios entreabriram-se para deixar passar
+um suspiro, e ficou dormindo pensando em Amparo.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>Mauricio entrou no quarto do seu hospede ás cinco da manhã.</p>
+
+<p>Ernesto levantou-se.</p>
+
+<p>&mdash;Está tudo prompto para partires? perguntou.</p>
+
+<p>&mdash;Sim senhor; tenho o javali grande preso convenientemente ao cavallo.
+Á femea, segundo as suas ordens, tirei-lhe a cabeça e o lombo; o resto fica em
+casa.</p>
+
+<p>&mdash;Espera, disse Ernesto.</p>
+
+<p>E pegando n'uma carta que estava sobre a mesa e n'uma tira de papel,
+continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Entregas esta carta, o javali grande e estes dois quadros ao senhor
+conde de Loreto, rua do Barquillo, n.º..., e comprarás tudo o que vae
+mencionado n'esta lista.</p>
+
+<p>Ernesto abriu uma gaveta da commoda, tirou dez moedas de cinco duros e
+entregou-as a Mauricio.</p>
+
+<p>Depois escreveu rapidamente n'uma folha de papel:<span
+class="pn">{153}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Meus bons amigos</p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">Marcial e André</p>
+
+<p>«Remetto-lhes uma cabeça de javali que cosinharão no restaurante do
+<i>Armiño</i> para almoçarem com alguns amigos, bebendo por este caçador
+<i>selvagem</i> que se não esquece de vocês.</p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">«<small
+class="SMALL">Sempre amigo</small></p>
+
+<p
+style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">«<i>Ernesto.</i>»</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;A cabeça e o lombo da femea entrega-os onde diz este envellope, rua
+do Prado. Vae com Deus e vem ámanhã, se te fôr possivel.</p>
+
+<p>Mauricio sahiu, despedindo-se da mulher, e encaminhou-se para Toledo, onde
+devia tomar o comboio de Madrid.</p>
+
+<p>Ernesto pegou na espingarda, chamou os seus cães Roma e Florença, e sahiu
+tambem em busca de perdizes, prevenindo Petra de que não viria almoçar antes do
+meio dia.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>O conde de Loreto, Amparo e D. Ventura estavam almoçando quando entrou um
+creado dizendo-lhes que estava á porta um homem que parecia um montanhez, que
+trazia uma carta, um javali e uns quadros.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! exclamou o conde, Ernesto cumpriu a sua palavra. Dize a esse
+homem que suba e tragam vocês o javali para o vêrmos.</p>
+
+<p>Dois creados trouxeram o javali para cima de uma mesa.</p>
+
+<p>&mdash;Soberbo animal! exclamou Fernando. Pelas cerdas e pelos dentes bem se
+vê que deve ser velho.</p>
+
+<p>&mdash;Oito annos, respondeu Mauricio. Vale bem a onça de chumbo que lhe deu
+a morte.</p>
+
+<p>&mdash;Pelo que vejo, Ernesto diverte-se pelos montes?</p>
+
+<p>&mdash;Diverte-se, exclamou o caçador, tudo menos isso;<span
+class="pn">{154}</span> está muito doente, dorme pouco e não tem appetite. A
+bem dizer que se alimenta só com café e rhum. Tenho cá um palpite em que não
+morrerá de velho.</p>
+
+<p>Todos escutavam com interesse as palavras de Mauricio.</p>
+
+<p>&mdash;Disseram-me que traz uma carta e uns quadros, disse Fernando.</p>
+
+<p>&mdash;A carta está aqui: os quadros deixei-os n'aquella casa.</p>
+
+<p>O conde leu em voz alta o seguinte:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Senhor conde de Loreto </p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p>«Ignoro ainda se é proveitosa ao meu corpo esta soledade em que vivo ha
+vinte dias, mas conheço que é ao espirito. </p>
+
+<p>«No cume d'estas montanhas não se vêem homens, não se encontra a animação
+nem o bulicio das grandes cidades, mas o ar é mais puro, o horisonte mais
+limpido, o ambiente mais perfumado e respira-se com mais facilidade. </p>
+
+<p>«Seja como fôr, espero sem sobresalto que se resolva o problema da minha
+enfermidade, sem me occupar muito se será ou não vantajoso o desenlace. </p>
+
+<p>«Com o portador d'esta, caçador infatigavel e amigo leal, em casa de quem
+vivo no meio d'estes barrancos solitarios, remetto-lhe o primeiro javali que
+matámos e dois quadros sobre assumptos de caça, genero a que tenciono
+dedicar-me emquanto tiver forças para sustentar o pincel. </p>
+
+<p>«Não marco preço aos quadros que lhe envio, porque d'isso falaremos depois
+de lhe mandar doze. Demais, ainda que pobre, hoje não preciso de dinheiro, mas
+avisál-o-hei quando precisar. Seja, portanto, o meu banqueiro.<span
+class="pn">{155}</span> </p>
+
+<p>«Para lhes provar que não os esqueço, desejava que me concedessem
+auctorização para fazer trez retratos de memoria, ainda que se admire ao
+vêl-os, o meu leal amigo D. Ventura. </p>
+
+<p>«Deponha aos pés da senhora condessa os meus respeitos, dê um abraço em seu
+sogro e não esqueça que n'este deserto fica esperando occasião de lhe ser util
+</p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small
+class="SMALL">«o seu amigo e obrg.º</small> </p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">«<i>Ernesto
+Alvarez.</i>»</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Amparo ouvira lêr a carta sem descerrar os labios, mas agradecia do fundo da
+alma a fórma delicada como estava escripta.</p>
+
+<p>Só lhe prendeu a attenção a auctorização que pedia para pintar os tres
+retratos, entre os quaes devia figurar o seu.</p>
+
+<p>&mdash;Quando tenciona voltar para Toledo? perguntou o conde ao caçador.</p>
+
+<p>&mdash;Desejava ir esta noite no comboio das sete e quarenta. Os meus
+affazeres em Madrid, depois de sahir d'esta casa, resumem-se apenas a algumas
+compras de que o senhor Ernesto me encarregou, e entregar uma cabeça de javali
+e um lombo a uns senhores que moram na rua do Prado.</p>
+
+<p>&mdash;Tem algum inconveniente em me dizer que objectos o senhor Ernesto o
+encarregou de comprar.</p>
+
+<p>&mdash;Não, senhor; aqui está a relação.</p>
+
+<p>E Mauricio entregou-a ao conde que depois de lêr, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Meu amigo, tenho em casa tudo quanto Ernesto deseja; não precisa,
+pois, ir comprar cousa alguma. Agora vá almoçar emquanto escrevo uma carta,
+depois irá levar a cabeça a esses senhores, e meia hora antes do comboio partir
+encontrará na estação, despachado para Toledo, tudo quanto Ernesto pede.<span
+class="pn">{156}</span></p>
+
+<p>Mauricio com sinceridade natural, ia entregar ao conde o dinheiro que
+Ernesto lhe dera.</p>
+
+<p>&mdash;Não, esse dinheiro entregue-o a quem lh'o deu, e demais, far-me-ha o
+favor de acceitar esta <i>onza</i>,<a name="tex2html2"
+href="#foot606"><sup>[2]</sup></a> para comprar um presente a sua mulher.</p>
+
+<p>Mauricio tentou recusar a <i>onza</i>, mas o conde obrigou-o a
+acceitál-a.</p>
+
+<p>Depois, conduziram-n'o a outra casa onde lhe serviram o almoço.</p>
+
+<p>O conde escreveu entretanto a seguinte carta.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Amigo Ernesto</p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p>«Os quadros são bellos e o javali soberbo. Quando os homens têem talento
+trabalham em todos os generos. Obrigado pela sua boa memoria, obrigado, porque
+se não esqueceu de nós, apezar do mal que lhe temos feito.</p>
+
+<p>«Pede-me auctorização para fazer tres retratos; concedo-lh'a satisfeito não
+só por lhe ser agradavel a si como tambem ás pessoas que vão ser retratadas nas
+telas. </p>
+
+<p>«Desejava passar uma temporada na sua companhia para caçarmos juntos, e para
+vêr se o convencia a abandonar essa vida solitaria, principalmente durante os
+quatro mezes de rigoroso inverno. </p>
+
+<p>«Até então veremos o que posso conseguir. Hei de fazer a diligencia. </p>
+
+<p>«Fico esperando os doze quadros que me annuncia na sua carta, o que me prova
+que se sente animado para o trabalho. </p>
+
+<p>«Adeus, meu amigo, e não esqueça que lhe desejamos todas as propriedades.
+</p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small
+class="SMALL">«Sempre seu amigo,</small></p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">«<i>Fernando del
+Villar.</i>»<span class="pn">{157}</span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>O conde leu a carta á mulher e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Agora, minha querida, escreve quatro linhas ao nosso amigo; talvez
+isso lhe faça bem.</p>
+
+<p>Amparo olhou o marido, receando que aquelle desejo envolvesse uma intenção
+pouco agradavel.</p>
+
+<p>O conde sorriu-se porque comprehendêra a duvida da mulher. Mas rodeando-lhe
+a cintura, e, dando-lhe um beijo apaixonado, disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Leio nos teus olhos, minha querida, a desconfiança, e sinto-o; isso
+indica-me que me amas muito, mas que me conheces pouco. Escreve a Ernesto, sou
+eu que t'o peço. Quatro palavras tuas far-lhe-hão bem, o desgraçado ama-te de
+toda a sua alma. Muito desgraçado o fizemos. Não sejamos egoistas até ao ponto
+de sermos malvados gozando com a sua agonia, com a sua dôr, que só terá fim com
+a morte. Escreve-lhe, pois, o que quizeres, Amparo.</p>
+
+<p>O conde sorrindo-se com bondade, e dando segundo beijo na esposa,
+continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Não lerei o que escreves. Adeus. Quando acabares fecha a carta e
+entrega-a tu mesma a esse homem.</p>
+
+<p>E o conde sahiu.</p>
+
+<p>Amparo ficou com a carta na mão e como que pregada ao chão.</p>
+
+<p>Aquella confiança que o marido acabava de mostrar era verdadeira ou um
+laço?</p>
+
+<p>Amparo não podia crêr na hypothese de um laço n'um homem tão generoso como
+Fernando.</p>
+
+<p>O conde de Loreto não era um homem vulgar. Amava a mulher, perdoára-lhe o
+seu coquettismo com Ernesto antes de o conhecer a elle, calculava as dôres e os
+soffrimentos do pintor a quem estimava devéras e por isso disséra á mulher que
+escrevesse.</p>
+
+<p>Amparo sentou-se, pegou na penna e durante dez minutos não soube como
+começar.</p>
+
+<p>De subito teve uma ideia. Os olhos brilharam-lhe, o semblante
+reanimou-se-lhe: dir-se-hia que receava<span class="pn">{158}</span>
+transmittil-a ao papel, mas fazendo um esforço, e com mão mal segura,
+escreveu:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Senhor Ernesto</p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p>«Ja que meu marido o auctoriza a fazer os tres retratos, e julgando que
+d'elles um será o meu, peço-lhe, (queira perdoar este capricho de mulher), que
+se não esqueça do vestido que tinha em Roma quando veiu offerecer-me o que
+fizera, e que ainda conservo sobre o fogão do meu gabinete. </p>
+
+<p>«Trate-se, porque desejamos em breve vêl-o completamente restabelecido. </p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Amparo.</i>»</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>A condessa fechou a carta e foi entregál-a a Mauricio, que já tinha acabado
+de almoçar.</p>
+
+<p>&mdash;Entregue esta carta ao senhor Ernesto, mas só a elle, disse-lhe.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, senhora condessa.</p>
+
+<p>Amparo ia a sahir, mas deteve-se.</p>
+
+<p>&mdash;É casado? perguntou.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, minha senhora.</p>
+
+<p>&mdash;Então faça favor de dar da minha parte este annel a sua mulher, e
+recommendar-lhe que trate do senhor Ernesto com todo o carinho.</p>
+
+<p>E Amparo como que envergonhada por aquelle arranco, tirou um annel do dedo,
+entregou-o a Mauricio e sahiu, dizendo para comsigo:</p>
+
+<p>&mdash;Assim comprehenderá que me não é indifferente o seu soffrimento e que
+a sua morte me ha de custar algumas lagrimas.</p>
+
+<p>Mauricio ficou um momento immovel. Pensava se aquella mulher tão formosa
+teria alguma coisa que vêr com os padecimentos do seu hospede.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>Á hora indicada pelo conde, Mauricio estava na<span class="pn">{159}</span>
+estação, onde um creado lhe entregou uma guia do caminho de ferro.</p>
+
+<p>&mdash;Que é isto? perguntou elle.</p>
+
+<p>&mdash;Da parte de meu amo, o senhor conde de Loreto. Com esta guia lhe
+entregarão em Toledo, pois que foram expedidas em grande velocidade, duas
+caixas e um caixote grande. N'ellas vae tudo quanto o senhor Ernesto
+encommendou.</p>
+
+<p>Mauricio guardou a guia na carteira e entrou para a <i>gare</i>, tomando
+então logar n'um compartimento de terceira classe.</p>
+
+<p>Durante a viagem, o caçador olhou muitas vezes para o annel, e pensava em
+quem lh'o dera, dizendo de si para comsigo:</p>
+
+<p>&mdash;Parece-me que vou descobrindo alguma cousa do segredo!</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00025000">CAPITULO XXV</a></h4>
+
+<h2>O regresso de Mauricio</h2>
+
+<p>Quando Ernesto sahia só, afastava-se pouco da habitação de Mauricio.</p>
+
+<p>Muitas vezes pendurava a espingarda no ramo de um azinheiro, e, subindo com
+difficuldade ao mais alto monte, sentava-se ahi, ficando largas horas a
+contemplar a paisagem; outras, sem temer o perigo, descia ao mais fundo dos
+barrancos, agarrando-se ás plantas, gozando tambem n'aquella silenciosa
+soledade, onde o menor suspiro faz na concavidade das rochas um echo como se
+repetisse a voz humana.</p>
+
+<p>Então esquecia os cães, a espingarda e a caça, e a recordação inolvidavel de
+Florença preenchia-lhe por completo a sua imaginação.<span
+class="pn">{160}</span></p>
+
+<p>O seu amor por Amparo era tão constante, tão verdadeiro, tão grande, que,
+enchendo todo o seu ser, formára n'elle uma segunda natureza tão poderosa que
+era impossivel separar-se d'elle sem perder a vida.</p>
+
+<p>Conhecia, comtudo, toda a loucura da sua paixão, e acceitára-a como se
+acceita uma d'essas doenças que se não procura e que nos causa a morte.</p>
+
+<p>Se Ernesto tivesse encontrado uma Heloisa, a terra para os dois amantes
+teria sido um paraiso, mas encontrára uma <i>coquette</i> que lh'a converteu em
+pantanoso charco, que lhe envenenou o sangue ao aspirar os maleficos miasmas
+que exhalava.</p>
+
+<p>O seu mal era irremediavel. O amor tem muitas vezes a sua dose de veneno que
+causa a morte.</p>
+
+<p>Mas, apezar d'isso, o coração de Ernesto era tão grande, tão nobre, tão
+generoso, que não odiava aquella que era seu tormento, antes pelo contrario,
+amava-a cada vez mais.</p>
+
+<p>Talvez que ainda lhe restasse um pouco de esperança, e d'essa esperança
+emanava a doce compaixão que sentia por Amparo.</p>
+
+<p>Por outro lado, o conde de Loreto era um homem digno de ser amado. Quão
+doloroso teria sido para Ernesto vêr-se preferido por um homem indigno, por um
+ser desprezivel, como acontece tantas vezes na vida!</p>
+
+<p>Quantos exemplos se podem citar de levianas mulheres que espesinham a honra
+de homens illustres nos braços de amantes despreziveis!</p>
+
+<p>Ernesto reconhecia no conde grandes qualidades, e isto fazia-lhe menos
+culposa a conducta de Amparo. Conhecia tambem que, se o conde não fosse um
+homem superior e menos conhecedor do mundo, sabendo os antecedentes de Roma e
+Florença e a parecença de Esther com a mulher, tomaria isso por uma grave
+offensa e o assumpto não teria ficado assim. Talvez um duello, e, por
+conseguinte, o escandalo que segue casos d'esta natureza, teria augmentado as
+difficuldades a Ernesto para chegar até Amparo,<span class="pn">{161}</span>
+para ser talvez amado por ella com a vertiginosa paixão do adulterio.</p>
+
+<p>Com a conducta prudente, digna e sabia do conde, evitou todos os perigos que
+ameaçavam o marido, a mulher e o amante, cortando com um só golpe a cabeça á
+repugnante maledicencia, que já comecava a levantar-se, sorrindo-se de uma
+maneira satanica.</p>
+
+<p>Por isso, Amparo e Ernesto admiravam o procedimento do conde de Loreto, e
+este por seu lado, podia dormir tranquillo, com a segurança de que sua mulher
+não o trahiria. E emquanto a Ernesto, sabia que de rival intransigente se
+convertêra em amigo leal.</p>
+
+<p>Amparo, comtudo, passou mal algumas noites. Amava com delirio o marido, mas
+convencida de que ella era a causadora da doença de Ernesto, temia o momento em
+que uma carta participasse a sua morte, isto é, que em seu peito entrasse o
+remorso, que tira o somno, que entristece a alma, que põe uma nuvem no
+coração.</p>
+<hr class="dotted">
+
+<p>Mauricio chegou ao monte ao amanhecer do dia seguinte; Petra acabava de se
+levantar, e ouvindo assobiar correu a abrir a porta.</p>
+
+<p>O caçador não vinha só. Acompanhava-o um homem com tres burros carregados
+com os objectos que o conde enviára a Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Tudo isto é para nos? perguntou Petra, depois de abraçar o marido.</p>
+
+<p>&mdash;É para o senhor Ernesto, que lh'o manda um amigo de Madrid. Mas
+tambem trago um presente para ti.</p>
+
+<p>&mdash;Isso já eu esperava porque os bons maridos não se esquecem das
+mulheres quando vão ás grandes cidades.</p>
+
+<p>O homem começou a descarregar as caixas e o caixote, deixando tudo junto da
+porta.</p>
+
+<p>Mauricio entretanto metteu dois dedos da mão direita no bolso do collete e
+tirou a <i>onza</i> que o conde lhe dera, dizendo em voz baixa:<span
+class="pn">{162}</span></p>
+
+<p>Pega: isto offereceu-me aquelle senhor a quem levei o javali e os quadros
+como gorgeta. É para comprares o que quizeres.</p>
+
+<p>&mdash;Uma <i>onza</i>! Fizeste bem em a não trocares, porque a mulher
+cuidadosa pensa sempre no dia de ámanhã, e, quando apanha á mão uma moeda
+d'estas, guarda-a como um remedio contra as necessidades da vida.</p>
+
+<p>&mdash;E o senhor Ernesto? perguntou Mauricio.</p>
+
+<p>&mdash;Ainda dorme.</p>
+
+<p>&mdash;Hontem sahiu?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, um boccadito de manhã. Voltou muito cançado e comeu pouco.
+Coitado! está cada vez mais triste. Esta noite entrei no quarto para vêr se
+queria tomar alguma coisa, e encontrei-o com os olhos inchados, enegrecidos,
+como se tivesse chorado. Muito grande deve ser o seu desgosto.</p>
+
+<p>Mauricio guardou silencio; e como o homem já tinha descarregado todos os
+objectos pagou-lhe, dizendo:</p>
+
+<p>&mdash;Petra, dá a este homem alguma coisa de comer e de beber.</p>
+
+<p>Mauricio entrou em casa, dirigindo-se ao quarto de Ernesto, e, como reinava
+o mais profundo silencio, pensou que se não respondesse, chamando baixinho,
+seria melhor deixal-o dormir.</p>
+
+<p>Chamou, pois, á porta suavemente, mas a voz do hospede respondeu:</p>
+
+<p>&mdash;Quem é?</p>
+
+<p>&mdash;Sou, eu, senhor Ernesto.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Mauricio! Espera que vou abrir.</p>
+
+<p>Ernesto saltou da cama, abriu a porta e tornou a deitar-se.</p>
+
+<p>&mdash;Bem vindo sejas, Mauricio. Não te esperava tão cedo. Abre a janella e
+dá-me conta da tua missão.</p>
+
+<p>&mdash;O conde de Loreto é um sujeito muito generoso, disse Mauricio. Depois
+de me receber muito bem e de me dar de almoçar como a um principe, deu-me uma
+<i>onza</i> em ouro.<span class="pn">{163}</span></p>
+
+<p>Mauricio continuou contando tudo quanto se passára em casa do conde e
+terminou:</p>
+
+<p>&mdash;Emquanto a senhora condessa entregou-me esta carta para si e
+perguntando-me se era casado, disse-me: Pois dê este annel da minha parte a sua
+mulher para que tratem com muito cuidado o senhor Ernesto.</p>
+
+<p>O pintor sentiu-se commovido até ao fundo d'alma. Mauricio comprehendeu o
+effeito das suas palavras, e, tirando a carta e o annel, entregou tudo ao
+hospede.</p>
+
+<p>&mdash;Mas este annel é para tua mulher, disse Ernesto, fixando-o com um
+olhar penetrante.</p>
+
+<p>Mauricio sorriu-se e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Isso é uma joia bôa de mais para quem está todo o dia a trabalhar.
+Póde guardal-a. E de mais, Petra não sabe de nada, e olhos que não vêem coração
+que não sente.</p>
+
+<p>Ernesto não poude conter a sua alegria e lançou-se nos braços de Mauricio,
+cujo procedimento delicado lhe causou profunda admiração.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! já me esquecia, disse Mauricio. Tambem os seus amigos da rua do
+Prado me deram esta carta para si.</p>
+
+<p>E, entregando a carta, sahiu do quarto afim de deixar só o seu hospede, de
+quem começava a descobrir o segredo.</p>
+
+<p>Ernesto, ao vêr-se só, beijou repetidas vezes o annel, apertando-o depois
+com delirio de encontro ao peito.</p>
+
+<p>Leu a carta do conde e o post-scriptum da condessa, guardou-a juntamente com
+o annel n'uma gaveta da commoda, e, procurando serenar, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Ella não me esqueceu; isto sempre serve de consolação para o meu
+peito. Vejamos o que me dizem Marcial e André, os meus bons amigos.</p>
+
+<p>Ernesto então leu:<span class="pn">{164}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Illustre Robinson dos montes de Toledo</p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p>«Recebemos a <i>tua cabeça</i> e o <i>teu lombo</i>. e ámanhã brindaremos á
+tua saude no restaurant do <i>Armiño</i>. </p>
+
+<p>«Não deves admirar-te de que te tenhamos na conta de um animal feroz, pois
+que outro nome não merece o homem que deixa as delicias de Madrid pelos
+selvagens barrancos dos montes de Toledo. </p>
+
+<p>«Agora outro assumpto. Tens todas as probabilidades que te concedam o
+primeiro premio ao teu celebre quadro de Esther. Se assim fôr, iremos
+entregar-te a medalha de ouro, e beber comtigo uma duzia de garrafas de
+Champagne. </p>
+
+<p>«Procura, comtudo, restabelecer-te rapidamente e voltares, porque nós
+preferimos comer sentados em volta de uma mesa, pisando alcatifas, recebendo o
+calor de fogões e a luz do gaz, do que comer no campo sobre o duro chão,
+acariciado pelas formigas e outros animaes importunos. </p>
+
+<p>«Estimando-te sempre e admirando como nunca. </p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small
+class="SMALL">«Somos teus amigos</small></p>
+
+<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">«<i>Marcial e
+André.</i>»</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Ernesto sorriu-se tristemente quando acabou a leitura da carta.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! exclamou. Que feliz que é o mortal que encontra uma mulher que o
+ama e dois amigos leaes e carinhosos! Mas a felicidade nunca é completa para o
+homem. Só encontrei os amigos. Onde acharei a mulher?</p>
+
+<p>E deixando cahir a cabeça sobre o peito melancholicamente, ficou immovel
+como uma estatua.<span class="pn">{165}</span></p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00026000">CAPITULO XXVI</a></h4>
+
+<h2>Uma caçada ás raposas</h2>
+
+<p>Se nos entretivessemos detalhando dia a dia a vida de Ernesto desde que
+chegou a casa de Mauricio até ao dia em que deixou de existir, fariamos um
+livro interminavel. Procuraremos, pois, tocar sómente nos pontos que julgamos
+mais importantes.</p>
+
+<p>Ernesto, como dissémos, cançava-se muito a subir as encostas, e o ponto que
+escolhera para caçar não era dos mais commodos.</p>
+
+<p>Um doente de peito pode caçar sem perigo, mas em terrenos planos que não
+cancem os pulmões; porêm os montes de Toledo, os de Almenara e outros não têem
+nada de hygienicos para um caçador de pouca saude.</p>
+
+<p>Poder-se-ha matar muita caça, respirar-se ar puro mas são fatigantes em
+demasia! Ernesto, pois, escolhêra mau sitio para se restabelecer, mas, como a
+vida lhe importava pouco, era o mais apropriado para lhe dar cabo dos seus
+arruinados pulmões.</p>
+
+<p>Ernesto tratava-se pouco. Quando sentia a mente cheia de ideias tristes,
+pegava na espingarda, chamava os cães e sahia. Se tropeçava com um bando de
+perdizes, segui-as até que, cançado, se deixava cahir no chão, permanecendo ás
+vezes mais de uma hora soffrendo angustias de morte.</p>
+
+<p>Muitas vezes a noite surprehendeu-o nos barrancos, e Mauricio, sobresaltado,
+sahia em sua procura; e então o honrado caçador trazia-o ás costas até casa.
+Petra e Mauricio lamentavam em voz baixa a teimosia de Ernesto em não querer
+que se chamasse o medico do povoado proximo.<span class="pn">{166}</span></p>
+
+<p>&mdash;Está claro, dizia Mauricio. A dôr que o afflige é tal que deseja
+acabar depressa com a vida, e quando menos pensarmos encontramol-o morto no
+monte.</p>
+
+<p>Demais Ernesto, cuja fraqueza era em extremo, ia perdendo as forças e o
+appetite, e tinha caprichos extraordinarios que faziam estremecer Mauricio.</p>
+
+<p>Certa manhã do mez de março (nevára muito durante a noite anterior e o sol
+que começava a elevar-se no horisonte convertia o gelo em brando rócio que
+tornava difficil o transito pelas ladeiras dos barrancos). Mauricio e Ernesto
+estavam no cume de um monte, quando se aperceberam de que andava uma raposa
+n'um monte proximo. Ernesto disparou, e o arisco animal soltou um grunhido.</p>
+
+<p>O tiro ferira a raposa nas patas trazeiras; mas com o instincto da
+conservação arrastou-se até a borda de um barranco, deixando-se cair para a
+frente.</p>
+
+<p>Ernesto correu até chegar á mesma borda do precipicio.</p>
+
+<p>Mauricio gritou-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Cuidado, cuidado, senhor Ernesto. Por ahi não ha passagem.</p>
+
+<p>Ernesto dirigiu um olhar para o abysmo, viu a raposa que fazia esforços
+desesperados para chegar a uma toca, onde por fim se metteu.</p>
+
+<p>&mdash;Indubitavelmente tem alli a femea e os filhos. Se pudessemos
+descer... disse Mauricio.</p>
+
+<p>&mdash;E porque não? respondeu Ernesto, avançando intrepidamente até a
+abertura do abysmo.</p>
+
+<p>&mdash;O terreno está escorregadio; é uma temeridade descer por este
+despenhadeiro. Um pé em falso, uma tontura, precipital-o-hia a quinhentas varas
+de profundidade, sobre um leito de pedras.</p>
+
+<p>Ernesto inclinou-se, e, agarrando-se a uma matta que vegetava na borda do
+abysmo, começara descendo, procurando appoio para os pés nas saliencias da
+rocha e nos arbustos que cresciam entre as fendas.</p>
+
+<p>Mauricio advertiu segunda vez do perigo imminente que o seu hospede corria,
+mas Ernesto, detendo-se na<span class="pn">{167}</span> sua descida e
+levantando a cabeça, disse sorrindo-se:</p>
+
+<p>&mdash;Não receies, meu bom Mauricio, ninguem morre sem que Deus queira; e
+se succeder faltar-me o appoio que procuro tranquillamente, e precipitar-me no
+abysmo, previno-te de que na minha carteira acharás um testamento que te livra
+de toda a responsabilidade.</p>
+
+<p>E continuou descendo.</p>
+
+<p>Mauricio sustinha com trabalho os cães, olhando com admiração para
+Ernesto.</p>
+
+<p>Não faltava valor ao caçador para descer por aquelle difficil e perigoso
+caminho; mas isto teria sido uma imprudencia, pois, descendo atraz, augmentava
+muito o perigo do pintor.</p>
+
+<p>Mauricio era um bom christão, acreditava nos destinos da Providencia, e,
+calculando que d'aquelle perigo só Deus podia salvar Ernesto, encommendou-o com
+fervor ao Altissimo.</p>
+
+<p>A descida de Ernesto até chegar ao penedo onde se havia refugiado a raposa
+ferida, durou quatro minutos.</p>
+
+<p>O pintor dirigiu um olhar sereno para o abysmo, murmurando em voz baixa:</p>
+
+<p>&mdash;Mais profunda é a soledade da minha alma.</p>
+
+<p>Mauricio fechou os olhos muitas vezes, julgando que o seu amigo ia
+despenhar-se, quando ao pôr o pé ou a mão em algum appoio este cedia.</p>
+
+<p>Por fim Ernesto chegou a uma especie de plataforma. Alli estava seguro, mas
+era extremamente difficil subir, visto necessitar para isso de muita força nos
+pulsos.</p>
+
+<p>De repente Mauricio, que se dispunha a descer, viu que as pernas de Ernesto
+se dobravam e que caia desamparado sobre as rochas que o sustentavam, dando com
+a cabeça n'um sovereiro, que providencialmente o salvou de uma queda fatal.</p>
+
+<p>Mauricio soltou um grito. Ao principio julgou que o seu hospede rolasse para
+o abysmo, e então era indubitavel que o seu corpo, feito em mil pedaços, não
+pararia senão quando chegasse ao fundo. Com<span class="pn">{168}</span> grande
+surpresa sua, viu que o mesmo sovereiro que crescia na fenda da rocha deteve o
+corpo da queda mortal, mas observou tambem que o corpo estava immovel e como
+morto e que da bôcca sahia algum sangue.</p>
+
+<p>Mauricio, deixando-se levar pelo seu generoso coração, confiado nas suas
+herculeas forças desceu rapidamente até onde estava Ernesto, completamente
+desmaiado.</p>
+
+<p>Durante dez minutos fez todos os esforços imaginaveis para o tornar a si;
+ora lhe chegava a garrafa do rhum ao nariz, ora lhe banhava as fontes com agua
+fria. Nada: Ernesto parecia um cadaver.</p>
+
+<p>Então, desprezando o perigo que o cercava, tirou a cinta, atou Ernesto a
+ella, prendendo-o pela cintura, e, com o desespero do naufrago, começou a
+trepar pela ladeira levando suspenso á cintura o inanimado corpo do seu
+hospede, que oscillava sobre o abysmo como a pendula de um relogio.</p>
+
+<p>Se a bôa Petra tivesse chegado n'aquella occasião e visto o perigo que o
+marido corria, certamente morreria de susto. Deus, evidentemente, que vê e
+premeia as bôas-acções, deu n'aquelle momento forças a Mauricio para chegar ao
+cume, salvando o hospede e salvando-se elle proprio.</p>
+
+<p>Quando se viu fóra do abysmo, soltou um d'esses suspiros que dilatam o peito
+e, ajoelhando-se junto ao corpo inanimado do seu companheiro, deu graças á
+Providencia, que os salvara de tão imminente perigo.</p>
+
+<p>O pintor continuava sem voltar a si.</p>
+
+<p>Mauricio pôz depois as duas espingardas ao hombro, levantou com os seus
+robustos braços Ernesto e encaminhou-se precipitadamente para casa, que não
+ficava muito longe.</p>
+
+<p>Petra ao vêl-o entrar pallido, coberto de suor, a respiração offegante e com
+Ernesto desmaiado nos braços, cujo rosto estava manchado de sangue, soltou um
+grito de espanto e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Que foi, Mauricio? Que succedeu? Morreu o senhor Ernesto?<span
+class="pn">{169}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não, não morreu, respondeu Mauricio, está apenas desmaiado. Não te
+assustes e ajuda-me a mettêl-o na cama.</p>
+
+<p>Um quarto de hora depois Ernesto abriu os olhos, dirigiu um olhar vago em
+redor, e vendo Mauricio e Petra juntos de si, extendeu-lhes as mãos e disse com
+difficuldade:</p>
+
+<p>&mdash;Obrigado, meus amigos, devo-lhes a vida e agradeço-lhes de toda a
+minha alma, porque não quero morrer emquanto não concluir os tres retratos que
+prometti ao conde de Loreto.</p>
+
+<p>&mdash;Mau! mau! disse o caçador. É verdade que o perigo foi grande, mas já
+lá vae. Que maldita raposa.</p>
+
+<p>Ernesto não respondeu, mas, pegando na mão de Mauricio, apertou-a de
+encontro ao peito com fraternal carinho.</p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00027000">CAPITULO XXVII</a></h4>
+
+<h2>O anjo da morte</h2>
+
+<p>Durante quinze dias, Ernesto não sahiu de casa; pintava de manhã e de tarde.
+Só alguns curtos momentos deixava a sua tarefa, para dar um passeio em frente
+de casa.</p>
+
+<p>Vendo pintar aquelle joven febril com os olhos encovados e a respiração
+fatigante, dir-se-hia que tinha esse afan do homem de genio que presente a
+morte e que quer concluir a obra que o deve immortalizar.</p>
+
+<p>Estavam concluidos os retratos do conde, e de D. Ventura e tinha entre mãos
+o de Amparo.</p>
+
+<p>Ás vezes chamava Mauricio e perguntava-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Conhécel-os? Parecem-se?</p>
+
+<p>&mdash;Oh! Muito! São elles por uma penna.<span class="pn">{170}</span></p>
+
+<p>Depois dava um charuto a Mauricio, accendia outro, apezar da tosse que o
+fumo lhe causava, e continuava pintando.</p>
+
+<p>No quarto do pintor, graças ás offertas do conde de Loreto, encontravam-se
+todas as commodidades apetecidas. Quatro pelles de leão almofadavam o sobrado;
+duas commodas cadeiras de braços forradas de marroquim recebiam o pintor quando
+se sentia fatigado.</p>
+
+<p>Muitas vezes dizia o pintor, sentado junto do fogão e tomando uma chavena de
+café:</p>
+
+<p>&mdash;Isto não é viver n'um monte: é ter um oasis no meio d'um deserto.</p>
+
+<p>Certa manhã recebeu uma carta dos seus amigos Marcial e André, dizendo-lhe
+que lhe haviam conferido o primeiro premio e que lhe iam levar a medalha: que
+mandasse um homem á estação de Toledo para os acompanhar ao monte.</p>
+
+<p>Ernesto chamou Mauricio e disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Ámanhã devem chegar a Toledo uns amigos de Madrid que veem passar
+alguns dias commigo. É preciso que os vás esperar á estação, que arranjes
+cavallos para o que fôr preciso e que os tragas para aqui. Tambem seria bom que
+trouxesses da cidade o que tua mulher precisar.</p>
+
+<p>Ernesto guardou os retratos para que os seus amigos não vissem. Era avaro do
+seu thesouro, não queria que o profanasse a publicidade.</p>
+
+<p>Marcial e André não eram caçadores; mas a caça é agradavel a todos os
+homens, sem duvida porque os coelhos não usam revólver para se defenderem, nem
+as perdizes disparam dardos contra os seus perseguidores.</p>
+
+<p>Dizem que a caça é a imagem da guerra, sem duvida porque se queima polvora e
+se derrama sangue; mas a mim parece-me que da guerra á caça vae muita
+differença e bem crente estou de que o governo não passaria todos os annos
+trinta e seis mil licenças de caça se o caçador corresse tanto perigo como o
+soldado deante do inimigo.<span class="pn">{171}</span></p>
+
+<p>Mas se todos gostam de disparar contra os inoffensivos coelhos, as ladinas
+perdizes e as ligeiras lebres, não é para admirar que qualquer habitante da
+cidade, ao encontrar-se n'um monte, povoado de caça e tendo á sua disposição
+uma espingarda, não tente derramar sangue, ainda que não seja senão para se
+baptisar com a cruz de Santo Eustachio.</p>
+
+<p>Chegaram os amigos de Ernesto e depois dos abraços e das exclamações ante o
+selvagem panorama, falou-se do quadro de Esther; almoçaram, tomaram café,
+beberam tres garrafas de Champagne e pensaram em caçar visto haver espingardas
+e caça.</p>
+
+<p>Mauricio propoz uma batida e se bem que os caçadores não fossem muito
+felizes, em compensação viram correr e voar muita caça.</p>
+
+<p>Á noite, Petra serviu uma ceia, senão muito variada, pelo menos muito
+abundante.</p>
+
+<p>A mocidade tem bom estomago. Comeram bem e beberam muito melhor. Falou-se de
+Ernesto chegar a Madrid e este disse:</p>
+
+<p>&mdash;Não penso por emquanto em abandonar estes montes, porque estou aqui
+perfeitamente. Convenci-me de que a solidão do campo e o ar saudavel d'estas
+serras me são muito mais proveitosas do que a vida agitada da cidade.</p>
+
+<p>Todas as reflexões de Marcial, todos os conselhos de André não conseguiram
+demover Ernesto. Os amigos convenceram-se de que seria inutil falar em
+similhante assumpto.</p>
+
+<p>Os amigos do pintor ficaram com elle mais tres dias. Chegou a hora da
+partida. Marcial tinha em ensaios uma comedia e não podia retardar o seu
+regresso a Madrid. Despediram-se promettendo fazer outra visita no mez de maio,
+se Ernesto até então não tivesse abandonado os montes.</p>
+
+<p>Ernesto, n'um ponto elevado, viu-os afastarem-se montados nos cavallos e
+cantando o côro das bruxas de Macbeth.</p>
+
+<p>&mdash;Aquelles são felizes, disse com tristeza, porque em seus corações
+vive a alegria da juventude, a esperança<span class="pn">{172}</span> da
+gloria. Ide em paz, meus amigos, a quem nunca mais verei, a não ser que exista
+alguma cousa da vida occulta ao olhar do homem para lá d'esse céu azul que se
+extende sobre a minha cabeça.</p>
+
+<p>Ernesto sentou-se. Uma volta do caminho tinha occultado os amigos, a quem,
+como acabava de dizer, não tornaria a vêr.</p>
+
+<p>Durante uma hora ficou immovel como o penedo que lhe servia de appoio.</p>
+
+<p>Depois levantou-se, vagarosa e tristemente, dirigiu-se para casa, tirou o
+retrato de Amparo, collocou-o no cavallete e pôz-se a pintar.</p>
+<hr class="dotted">
+<hr class="dotted">
+
+<p>Quando algum conhecido de Mauricio ia caçar aos montes, Ernesto fechava-se
+no seu quarto e poucas vezes sahia. Pintava, lia, e bebia rhum.</p>
+
+<p>Estava muito doente, mas continuava regeitando os conselhos dos amigos e os
+auxilios da sciencia.</p>
+
+<p>Durante os mezes da primavera, pareceu fortalecer-se alguma cousa. Passou o
+verão um tanto alliviado, trabalhava pouco, e ainda por duas vezes mandára
+Mauricio a Madrid levar quadros de caça ao conde, ficando em seu poder os
+retratos completamente concluidos, dizendo:</p>
+
+<p>&mdash;Isto será a minha despedida, o meu testamento. Chegou o mez de
+outubro, e Ernesto com os primeiros frios, apanhou uma recahida e perdeu por
+completo o appettite; apenas se levantava para se sentar na cadeira e d'esta
+para se metter na cama. Mauricio e Petra insistiram varias vezes com elle para
+o convencer a que chamasse o medico.</p>
+
+<p>&mdash;É inutil, meus amigos, dizia-lhes, talvez que em breve me faça mais
+falta um sacerdote.</p>
+
+<p>Uma noite, Ernesto peorou a tal ponto, que Mauricio, sem o consultar, montou
+a cavallo, foi ao povoado de Orgaz e trouxe um medico.</p>
+
+<p>Ernesto, ao vêl-o entrar, ao perceber a que vinha, encolheu os hombros,
+dirigiu um olhar de gratidão a Mauricio, e disse:<span
+class="pn">{173}</span></p>
+
+<p>&mdash;Tudo isso é inutil. O que preciso ámanhã é de um sacerdote.</p>
+
+<p>O medico viu effectivamente que a doença de Ernesto era incuravel, receitou
+por simples formalidade e disse que o chamassem se houvesse mais alguma
+novidade.</p>
+
+<p>Ao sahir, disse a Petra:</p>
+
+<p>&mdash;Chamem o padre com urgencia, porque este homem apenas tem tres dias
+de vida.</p>
+
+<p>Petra chorou, e contou ao marido o que o medico lhe dissera.</p>
+
+<p>Estavam verdadeiramente impressionados.</p>
+
+<p>Quando Mauricio á noite entrou com a luz no quarto de Ernesto este estava
+sentado n'uma cadeira proximo da mesa.</p>
+
+<p>Ardia um bom fogo no fogão e, apezar do frio não ser muito, Ernesto
+queixava-se de que se sentia gelado; era a morte, que avançava a passos
+gigantescos para se apoderar do coração, para extinguir a vida n'aquelle corpo,
+para separar a alma da materia.</p>
+
+<p>&mdash;Mauricio, poe ahi a luz, approxima uma cadeira, senta-te aqui a meu
+lado, disse o pintor, porque temos muito que conversar e não temos tempo a
+perder.</p>
+
+<p>Mauricio obedeceu sem dizer uma palavra. Só de quando em quando olhava para
+o cadaverico semblante do seu hospede, pensando que já tinha visto defuntos com
+muito melhor parecer.</p>
+
+<p>&mdash;Tudo n'este mundo tem o seu fim, meu amigo, ajuntou Ernesto com voz
+fraca e pausadamente. O dia nasce e morre como a planta e o homem. A vida, como
+o canto do passaro, como as folhas das arvores, está sujeita á vontade do
+Creador. Rebellarmo-nos contra tal, é uma loucura, uma temeridade ou uma
+cobardia. Ninguem se salva da morte, ainda que diga com toda a força do seu
+desespero: «Não quero morrer.» Assim, pois, é preciso resignarmo-nos. Toda a
+sabedoria, toda a sciencia, toda a grandeza do homem não é sufficiente para
+prolongar um segundo sequer a sua vida. Alexandre como Cesar,<span
+class="pn">{174}</span> Aristoteles como Cicero, morreram quando soaram as suas
+horas, apezar de serem quem foram. A minha approxima-se e é preciso preparar
+tudo para a minha ultima viagem.</p>
+
+<p>Ernesto deteve-se, respirou, levou a mão ao peito e fixou os olhos em
+Mauricio, cujo semblante compungido, manifestava a profunda magua da sua alma,
+porque as palavras sentenciosas e tristes do seu hospede, a quem estimava como
+a um pae, o affligiam.</p>
+
+<p>&mdash;Quero, pois, meu bom Mauricio, inteirar-te do que tens a fazer no dia
+seguinte ao da minha morte, que não está longe. Por isso, te pedi para te
+sentares e que me prestasses attenção. Dei grandes incommodos tanto a ti como a
+tua mulher; têem sido bons amigos para mim, devo-lhes muitos favores, e é por
+conseguinte meu dever não os esquecer na hora da minha morte. Quizera ser rico
+como um nababo para lhes deixar toda a minha fortuna, pois bem sabes que não
+tenho herdeiros forçados; mas, apezar de ser muito pobre, farei tudo quanto
+possa para os recompensar em parte de todos os beneficios que recebi.</p>
+
+<p>&mdash;Mas, senhor Ernesto, nós é que devemos estar agradecidos ao senhor,
+disse Mauricio, porque desde que tivemos a fortuna de o vêr entrar para nossa
+casa, têem sido muito maiores as recompensas que temos recebido do que os
+insignificantes serviços que lhe temos prestado. Por isso não temos que falar
+sobre esse assumpto.</p>
+
+<p>&mdash;O interesse e o carinho que têem dispensado a este pobre doente,
+nunca o pagarei sufficientemente. Mas deixemos esse assumpto, e ouve.</p>
+
+<p>Ernesto fez uma pausa, pegou n'um rolo de papeis e n'uma carta, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Quando eu morrer, e depois do meu enterro, vaes a Madrid onde tens
+duas commissões a desempenhar da maior importancia. Esta carta para os meus
+amigos da rua do Prado, e os tres retratos e esta outra carta para o senhor
+conde de Loreto. Indubitavelmente<span class="pn">{175}</span> todos, ao
+saberem que deixei de existir, querem saber pormenores da minha morte.
+Dize-lhes o que vires, a verdade. E agora só me falta dizer-te que encontrarás
+escripto e assignado n'esta folha de papel, que te deixo como herança, como
+livre senhor que sou de tudo, que me pertence; isto é, tudo isto que nos
+rodeia, inclusivamente o pouco dinheiro que eu tiver na gaveta da commoda, é
+teu e de tua mulher.</p>
+
+<p>Mauricio que havia já um boccado luctava para suster as lagrimas, levou as
+mãos aos olhos.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos, não te afflijas; da-me um abraço e vae-te deitar. Só tenho
+ainda a pedir-te para que ámanhã cedo me tragas um padre, porque é bom pensar
+em Deus alguns minutos antes de morrer, quem esteve tantos annos occupando-se
+sómente dos pygmeus da terra.</p>
+
+<p>Mauricio precisava sahir d'aquelle quarto para chorar desafogadamente;
+entrou na cosinha, contou a Petra tudo quanto se passára e acabaram por desatar
+em amargo pranto.</p>
+
+<p>N'aquella noite nem Petra nem Mauricio puderam dormir.</p>
+
+<p>De quando em quando vinham em bicos de pés até a porta do quarto de Ernesto,
+e espreitavam pelo buraco da fechadura.</p>
+
+<p>Ernesto continuava sentado na cadeira, ora escrevendo, ora com os cotovellos
+encostados na borda da meza, e a cabeça appoiada nas mãos.</p>
+
+<p>Pouco antes de amanhecer, Mauricio montou a cavallo e foi chamar o padre.</p>
+
+<p>Ás sete da manhã, Ernesto viu entrar um velho de rosto bondoso e cabellos
+brancos. A batina preta, a sobrepeliz, e sobretudo a doce expressão d'aquelle
+rosto, fel-o comprehender que tinha na sua presença o pastor das almas d'algum
+povoado proximo.</p>
+
+<p>O sacerdote e o pintor estiveram fechados tres horas. O que disseram
+pertence ao segredo inviolavel da confissão.</p>
+
+<p>Quando o padre sahiu, entrou Mauricio.<span class="pn">{176}</span></p>
+
+<p>Ernesto disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Faze favor de pôr uma tela no cavallete e de o levares bem como esta
+cadeira para proximo da janella. Vou fazer o meu ultimo trabalho.</p>
+
+<p>Ernesto pegou na paleta, nos pinceis e sentou-se porque não podia trabalhar
+de pé, principiando a esboçar uma Nossa Senhora das Dôres.</p>
+
+<p>Apezar do seu estado, pintava com incrivel ligeireza.</p>
+
+<p>A febre da morte guiava-lhe a mão.</p>
+
+<p>Em dia e meio pintou uma formosa mãe do Nazareno, de corpo inteiro; mas
+aquella virgem, apezar da doce melancholia do seu semblante, era um perfeito
+retrato da condessa de Loreto.</p>
+
+<p>Evidentemente aquella obra feita de momento, aquelle trabalho feito ás
+portas da morte, era uma das melhoras obras de Ernesto.</p>
+
+<p>Mauricio e Petra ficaram assombrados ao verem-no concluido.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Que pena um homem assim morrer tão novo! exclamou o rude caçador
+n'um arranco de sublime enthusiasmo.</p>
+
+<p>&mdash;Mauricio, disse Ernesto, quando eu morrer entregarás este quadro ao
+sacerdote que me ouviu em confissão, e diras que, já que os francezes roubaram
+de uma capella da sua modesta egreja uma formosa Senhora das Dôres, eu
+offereço-lhe esta para que a ponha no seu logar, apezar de não valer, estou
+certo, nem a quinta parte do que valia a outra.</p>
+
+<p>No dia seguinte, Ernesto conheceu que lhe restava poucos minutos de vida.</p>
+
+<p>O sol entrava pela janella.</p>
+
+<p>O enfermo permaneceu cêrca de meia hora com o olhar fito no céu e as mãos
+postas em religioso recolhimento.</p>
+
+<p>Petra e Mauricio, que estavam a seu lado, não se atreviam a interrompel-o
+d'aquelle doce extasis.</p>
+
+<p>&mdash;Meus amigos, disse Ernesto, extendendo os braços e, pegando nas mãos
+de Petra e de Mauricio, vêem aquella nuvemsinha branca que está suspensa no
+espaço?<span class="pn">{177}</span></p>
+
+<p>Os dois olharam para o céu, mas não viram nuvem nenhuma, contudo Petra
+respondeu com voz fraca:</p>
+
+<p>&mdash;Sim.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, no meio d'essa nuvem vem o anjo da morte buscar-me. Oh! É
+mais bello do que eu o suppunha. Os seus trajes são brancos como o disco da
+lua, brilhante como a prata polida. Os seus olhos são negros e de um brilho
+raro. O seu rosto, pallido e cheio de bondade, sorri-se com um sorriso frio que
+penetra até a medulla dos ossos. Sobre a fronte lê-se a palavra <i>Perdão</i>,
+e os seus braços extendem-se até mim como para me receber. Ah! Se eu pudesse
+retratal-o!... Mas experimentemos. Dá-me a paleta e os pinceis! Põe uma tela no
+cavallete!</p>
+
+<p>Ernesto apertava as mãos de Petra e Mauricio; mas subitamente soltou-os e
+dando um debil gemido, levou-as aos olhos e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Não posso!... Não posso!... Perdi a luz dos olhos!... Estou cego!...
+Amparo!... Amparo!... Amo-te como sempre!... Meu Deus!... Recebei-me!...</p>
+
+<p>Os braços do pintor cairam sem forças, estremeceu todo o corpo,
+abriram-se-lhe e fecharam-se-lhe tres vezes as palpebras, e um debil suspiro se
+lhe escapou do peito.</p>
+
+<p>Depois ficou immovel na cadeira e reinou o silencio frio da morte.</p>
+
+<p>A alma do pintor abandonára a materia.</p>
+
+<p>Ernesto já não existia.</p>
+
+<p>Pobre filho do genio! Pobre sonhador que trocou a sua gloria, o seu futuro,
+por um beijo.</p>
+
+<p>Mauricio e Petra ajoelharam junto da cadeira onde jazia o seu hospede, e com
+os olhos cheios de lagrimas, resaram pelo eterno descanço d'aquelle
+desventurado moço que tinha deixado de existir, e em cujos pallidos e
+entreabertos labios julgavam ver um sorriso triste, lamentoso, como a morte que
+lh'o produzira.<span class="pn">{178}</span></p>
+
+
+
+<h4><a name="SECTION00028000">CAPITULO XXVIII</a></h4>
+
+<h2>Conclusão</h2>
+
+<p>O sacerdote, que ouvira o pintor em confissão, em signal de agradecimento
+pela bellissima Senhora das Dôres que elle offerecera á sua egreja, resou uma
+missa cantada pelo descanço da alma do artista.</p>
+
+<p>Mauricio deu sepultura ao corpo de Ernesto no cemiterio da villa de
+Orgaz.</p>
+
+<p>Depois de cumpridos estes tristes deveres, Mauricio dispôz-se a cumprir as
+ultimas vontades do seu hospede.</p>
+
+<p>Preparou tudo para a viagem e disse á mulher:</p>
+
+<p>&mdash;Ámanhã vou a Madrid desempenhar-me das commissões de que me
+encarregou o senhor Ernesto. Durante a minha ausencia se não queres ficar só
+levar-te-hei até Toledo. Calculo não me demorar mais de tres dias.</p>
+
+<p>&mdash;Vae socegado e sem pressa; eu não deixo a casa onde estão os nossos
+haveres. Demais, os pastores têem as choças aqui perto, e se tivesse
+necessidade, bem sabes que me prestariam qualquer auxilio.</p>
+
+<p>Mauricio partiu.</p>
+
+<p>A carta que Ernesto escrevêra aos seus amigos da rua do Prado, resumia-se a
+uma terna despedida.</p>
+
+<p>Sigamos, pois, Mauricio, a casa do conde de Loreto.</p>
+
+<p>Fernando del Villar, por quem uma carruagem esperava á porta, descia a
+escada do seu palacio quando viu entrar Mauricio com os tres quadros
+perfeitamente empacotados.</p>
+
+<p>O conde parou ao reconhecer o caçador dos montes de Toledo.<span
+class="pn">{179}</span></p>
+
+<p>&mdash;Ah! É o senhor? lhe disse. Como está Ernesto?</p>
+
+<p>&mdash;Morreu! respondeu Mauricio.</p>
+
+<p>&mdash;Como? Morreu?</p>
+
+<p>&mdash;Ha quatro dias, senhor conde.</p>
+
+<p>&mdash;Pobre rapaz! Mas suba, suba.</p>
+
+<p>O conde começou a subir precipitadamente, seguido de Mauricio, atravessou
+varias casas e por fim entrou n'um elegante e luxuoso escriptorio.</p>
+
+<p>&mdash;Morreu!... repetiu o conde deixando-se cair n'uma cadeira. Pobre
+Ernesto! Não esperava similhante noticia. Sente-se, sente-se, meu amigo, e
+diga-me qual o fim da sua vinda, porque creio que ha mais alguma cousa do que
+annunciar-me tão irreparavel desgraça.</p>
+
+<p>&mdash;O senhor Ernesto encarregou-me na vespera da sua morte de trazer ao
+senhor conde estes tres retratos e esta carta.</p>
+
+<p>O conde levantou-se, desatou o cordão que prendia os quadros, e, collocando
+cada um em sua cadeira, levantou o estore da janella para que entrasse mais
+luz.</p>
+
+<p>Quando os olhos se fixaram nos retratos, e em especial no da condessa, não
+poude conter uma exclamação, um grito de assombro.</p>
+
+<p>&mdash;Isto é admiravel! Isto é admiravel! Que pena que homens assim vivam
+tão pouco!</p>
+
+<p>E ficou immovel como que extasiado deante do retrato da mulher.</p>
+
+<p>O conde era um conhecedor de pintura. Viajára muito e vira muitissimo;
+conhecia toda essa collecção de retratos celebres, que honram os seus auctores,
+pendurados em exposição nas paredes dos museus; mas nenhum ainda lhe produzira
+tanta admiração como a tela que tinha ante si.</p>
+
+<p>O retrato de Amparo era uma obra-prima, pelo desenho, pelo colorido e
+sobretudo pela parecença.</p>
+
+<p>Demais a bôcca d'aquella mulher, perfeitamente modelada, tinha uma expressão
+tal que parecia ter vida. Dir-se-hia que aquelles labios humidos, de uma côr
+bella, um pouco entreabertos, palpitantes de amor e de ternura, iam dar um
+d'esses beijos que inflammam<span class="pn">{180}</span> para sempre a alma do
+homem que o recebe.</p>
+
+<p>Os olhos, de belleza irresistivel, meio velados pelas compridas pestanas
+exprimiam tambem amor e melancholia.</p>
+
+<p>Ao conde de Loreto nunca parecêra tão formosa a mulher como n'aquelle
+momento em que comparava o original com o retrato; mas aquelle retrato, onde a
+mão do pintor, sem se servir da adulação, possuia alguma cousa mais do que a
+frialdade immovel da pintura, tinha por assim dizer a alma do artista occulta
+atraz dos olhos e atravez aquella bôcca encantadora.</p>
+
+<p>Ninguem, ao vêr o retrato, duvidaria de que estava um beijo suspenso dos
+divinos labios d'aquella mulher, e, comtudo, o pintor não violára nem uma só
+linha, nem na mais delicada sombra, a posição natural d'aquella incomparavel
+bôcca.</p>
+
+<p>O conde, que assim o comprehendeu, teve o retrato por uma obra-prima, e,
+amante da arte que immortalizou Raphael, não podia desviar os olhos do
+quadro.</p>
+
+<p>Durante um quarto de hora Fernando permaneceu como um extasiado. Mauricio
+estava triste e silencioso a seu lado.</p>
+
+<p>Quando se cançou de contemplal-o, viu que tinha uma carta na mão. Era a que
+pouco antes lhe entregára o honrado Mauricio.</p>
+
+<p>Rasgou o envellope e leu:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Senhor conde de Loreto.</p>
+
+<div style="margin-left:3em;">
+<p>«Prestes a entregar a alma a Deus e o corpo á terra, pego na penna com mão
+fraca para lhe enviar as minhas despedidas. </p>
+
+<p>«Quando receber a minha carta já terei deixado de existir. Um sêr a menos na
+terra, uma particula de pó a mais em algum ignorado cemiterio d'estas regiões;
+mas em compensação, outros seres nascem, emquanto o vento levanta o pó dos que
+morrem. O mundo<span class="pn">{181}</span> segue o seu caminho: esta é a
+cadeia da humanidade. </p>
+
+<p>«Remetto-lhe os tres retratos offerecidos. São as minhas ultimas obras;
+depois d'ellas os meus pobres pinceis não offenderão mais a arte inutilisando
+telas, estragando tintas. O unico merito que se lhe poderá attribuir será a
+parecença, e isso, sem duvida por que eu, durante o meu voluntario e penoso
+desterro, me não esqueci nem um só instante dos meus amigos. </p>
+
+<p>«Vou concluir pedindo-lhe, senhor conde, um favor. Mauricio e Petra, isto é,
+o portador d'esta e sua mulher, foram durante a minha doença dois irmãos
+carinhosos. Se eu fosse tão rico como Salomão, deixar-lhes-hia toda a minha
+fortuna e creio que assim mesmo não lhes pagaria quanto lhes devo; mas sou
+pobre, e só posso pagar-lhes com amor e agradecimento os beneficios recebidos.
+</p>
+
+<p>«Assim, pois, senhor conde, peço-lhe que entregue a Mauricio o valor que der
+aos tres retratos para que tenham com essa importancia uma recompensa do muito
+que lhes devo. </p>
+
+<p>«Mauricio é um honrado caçador de profissão que me serviu com desinteresse e
+sem esperança de recompensa: não sabe portanto que me occupo d'elle n'esta
+carta. </p>
+
+<p>«Desculpe-me, senhor conde, a liberdade que tomo, e não se esqueça de que ao
+soltar o meu ultimo suspiro bemdirei os meus amigos. </p>
+
+<p>«Apresente os meus respeitos á senhora condessa e dê um abraço de eterna
+despedida ao meu bom amigo D. Ventura. </p>
+
+<p
+style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Ernesto.</i>»</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>O conde acabou a leitura da carta commovido, dobrou-a e guardou-a na
+algibeira.<span class="pn">{182}</span></p>
+
+<p>Nos olhos havia uma certa humidade, devida ás lagrimas.</p>
+
+<p>Mauricio, vendo que o conde guardava silencio, e desejando acabar com
+aquella visita, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Se o senhor conde m'o permitte, retiro-me, pois preciso ainda esta
+noite regressar a Toledo.</p>
+
+<p>O conde dirigiu-se para o cofre, abriu-o, e, depois de pensar um momento,
+começou a contar notas de banco.</p>
+
+<p>&mdash;Mauricio, disse Fernando, ignora sem duvida qual a missão de que o
+meu amigo Ernesto me encarrega n'esta carta.</p>
+
+<p>&mdash;Só me disse para a entregar ao senhor conde juntamente com os
+retratos.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem; Ernesto encarrega-me de lhe entregar seis mil duros que lhe
+devo.</p>
+
+<p>&mdash;A mim? disse admirado o caçador.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, a si.</p>
+
+<p>&mdash;Mas que devo fazer a esse dinheiro? Porque elle nada me disse ao
+morrer.</p>
+
+<p>&mdash;Guardál-os para si.</p>
+
+<p>&mdash;É impossivel! Seis mil duros é uma fortuna para um pobre como eu.</p>
+
+<p>O conde, admirado da honradez d'aquelle homem, teve um nobre pensamento, e
+ajuntou:</p>
+
+<p>&mdash;Desculpe-me; enganei-me.</p>
+
+<p>&mdash;Eu logo vi que não podia ser, disse Mauricio quasi contente.</p>
+
+<p>&mdash;Enganei-me na importancia, continuou o conde: em logar de seis mil
+duros são dez mil.</p>
+
+<p>Mauricio empallideceu. Era uma fortuna.</p>
+
+<p>O conde entretanto contou dez mil duros em notas do banco de quatro mil
+<i>reales</i>, e, collocando-os depois n'uma bandeja, approximou-se de
+Mauricio, dizendo:</p>
+
+<p>&mdash;Isto é o que Ernesto Alvarez deixa como herança a Mauricio e Petra
+pelo seu generoso comportamento, pelos seus bellos sentimentos. Agora eu, o
+conde de Loreto, offereço a Mauricio, quando se fartar de ser caçador, o logar
+de administrador<span class="pn">{183}</span> em um monte nas Asturias, com
+vinte e cinco reales por dia, casa, lenha e mais vantagens que me não recordam
+agora.</p>
+
+<p>E o conde, apertando a mão ao honrado montanhez, ajuntou:</p>
+
+<p>&mdash;Vá a Toledo, diga a sua mulher o que o senhor Ernesto dispôz na sua
+ultima carta, pense socegadamente o que mais lhe convêm, que aqui me encontrará
+sempre disposto a cumprir a minha palavra.</p>
+
+<p>Mauricio pegou com a mão trémula nos dez mil reales, apertou depois de
+encontro ao peito a mão do conde e, com olhos marejados de lagrimas e o parecer
+bastante commovido, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Mas que fiz eu para merecer tantos favores?</p>
+
+<p>&mdash;Foi um homem de bem, um homem justo, respondeu o conde.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! a minha pobre Petra vae enlouquecer de alegria. Ella que dentro
+em pouco vae ser mãe! Ella, que nunca viu cem mil reales! Ella que é tão boa!
+Todos os nossos filhos aprenderão a bem dizerem os nomes do senhor Ernesto e do
+senhor conde de Loreto.</p>
+
+<p>Fernando acompanhou Mauricio até á porta, depois voltou para o escriptorio
+e, sentando-se em frente do retrato da mulher, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Ernesto não existe, mas nos labios d'este retrato, n'aquella bôcca
+doce, apaixonada, amorosa como um beijo, deixou escripta a historia da sua
+morte.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">FIM</p>
+
+<p><span class="pn">{184}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div class="rodape">
+<p><a name="foot162" href="#tex2html1" id="foot162"><sup>[1]</sup></a> Um duro
+corresponde a 900 réis e um real a 50 réis, approximadamente.</p>
+
+<p><a name="foot606" href="#tex2html2" id="foot606"><sup>[2]</sup></a> Moeda de
+ouro, que vale approximadamente 14$500 réis.</p>
+
+<p style="text-align: right;"><i>N. do T.</i></p>
+</div>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>INDICE</h2>
+<ul class="TofC">
+ <li><a name="tex2html61" href="#SECTION0001000">CAPITULO I&mdash;Uma chavena
+ de café</a> </li>
+ <li><a name="tex2html63" href="#SECTION0002000">CAPITULO II&mdash;Uma noite
+ no Colyseu</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html65" href="#SECTION0003000">CAPITULO III&mdash;Sonhos
+ côr-de-rosa</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html67" href="#SECTION0004000">CAPITULO IV&mdash;O pintor e
+ o judeu</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html69" href="#SECTION0005000">CAPITULO V&mdash;O grupo de
+ Niobe</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html71" href="#SECTION0006000">CAPITULO VI&mdash;Um
+ beijo</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html73" href="#SECTION0007000">CAPITULO
+ VII&mdash;Separação</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html75" href="#SECTION0008000">CAPITULO VIII&mdash;Caminho
+ de Hespanha</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html77" href="#SECTION0009000">CAPITULO IX&mdash;De Florença
+ a Paris</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html79" href="#SECTION00010000">CAPITULO X&mdash;A rosa de
+ brilhantes</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html81" href="#SECTION00011000">CAPITULO XI&mdash;Mais
+ um</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html83" href="#SECTION00012000">CAPITULO XII&mdash;Como se
+ pede</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html85" href="#SECTION00013000">CAPITULO XIII&mdash;Os tres
+ amigos</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html87" href="#SECTION00014000">CAPITULO
+ XIV&mdash;Curiosidade não satisfeita</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html89" href="#SECTION00015000">CAPITULO XV&mdash;Carta
+ interrompida</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html91" href="#SECTION00016000">CAPITULO
+ XVI&mdash;Propostas</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html93" href="#SECTION00017000">CAPITULO
+ XVII&mdash;Confiança</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html95" href="#SECTION00018000">CAPITULO XVIII&mdash;A
+ golfada de sangue</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html97" href="#SECTION00019000">CAPITULO XIX&mdash;Pagar a
+ hospitalidade</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html99" href="#SECTION00020000">CAPITULO
+ XX&mdash;Abnegação</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html101" href="#SECTION00021000">CAPITULO
+ XXI&mdash;Abandonando Madrid</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html103" href="#SECTION00022000">CAPITULO XXII&mdash;Vida de
+ recordações</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html105" href="#SECTION00023000">CAPITULO XXIII&mdash;Uma
+ caçada</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html107" href="#SECTION00024000">CAPITULO XXIV&mdash;Uma
+ carta e um annel</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html109" href="#SECTION00025000">CAPITULO XXV&mdash;O
+ regresso de Mauricio</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html111" href="#SECTION00026000">CAPITULO XXVI&mdash;Uma
+ caçada ás raposas</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html113" href="#SECTION00027000">CAPITULO XXVII&mdash;O anjo
+ da morte</a> <br>
+ </li>
+ <li><a name="tex2html115" href="#SECTION00028000" id="tex2html115">CAPITULO
+ XXVIII&mdash;Conclusão</a><!--&mdash;End of Table of Contents&mdash;-->
+ </li>
+</ul>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p
+style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto; font-weight: bold;"><big>Livraria
+Editora Guimarães &amp; C.ª</big></p>
+
+<p
+style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">68&mdash;RUA
+DO MUNDO&mdash;70</p>
+
+<p
+style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto; font-weight: bold;">LISBOA</p>
+
+<div style="font-size: 0.7em;">
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">CONDESSA
+DE GENCÉ</p>
+
+<p><b>Guia mundano das meninas casadoiras</b>, 1 vol. br. 500, enc. 700</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">D. JOÃO
+DA CAMARA</p>
+
+<p><b>Meia noite</b>, drama. 500</p>
+
+<p><b>Contos</b>, 1 vol. 600</p>
+
+<p><b>A cidade</b>, versos, 1 vol. 300</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">DELFIM
+GUIMARÃES</p>
+
+<p><b>Outonaes</b>, 1 vol. 500</p>
+
+<p><b>Aldeia na Corte</b>, 1 vol. 500</p>
+
+<p><b>O Rosquedo</b>, 1 vol. 200</p>
+
+<p><b>Juramento Sagrado</b>, 1 vol. 200</p>
+
+<p><b>Ares do Minho</b>, 1 vol. 200</p>
+
+<p><b>Flores do mal</b>, interpretação em versos portugueses, de poesias de
+Baudelaire, 1 vol. 700</p>
+
+<p><b>Bernardim Ribeiro</b>, (o poeta Crisfal), 1 vol. 800</p>
+
+<p><b>Theofilo Braga e a lenda do Crisfal</b>, 1 vol. 500</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">DR. A. DA
+SILVA GAYO</p>
+
+<p><b>Mario</b>, romance historico, 1 vol. ill. br. 1$700, enc. 2$200</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">CARLOS
+BENTO DA MAIA</p>
+
+<p><b>Tratado completo de cosinha e de copa</b>. 1 vol., br. 2$000, enc.
+2$500</p>
+
+<p><b>Tratado de risco e côrte de roupa</b>, 1 vol. 600</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">JOSÉ
+VALDEZ</p>
+
+<p><b>O cão</b>, raças, hygiene, ensino, e tratamento, 1 vol. 500</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">ANDRÉ
+ANGIULI</p>
+
+<p><b>A pedagogia, o estado e a familia</b>, 1 vol. 300</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">JULIO
+PAYOT</p>
+
+<p><b>A moral na escola</b>, 1 vol. 400</p>
+
+<p><b>A educação da vontade</b>, 1 vol. 500</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">DR.
+MAURICIO DE FLEURI</p>
+
+<p><b>Para prolongar a vida</b>, 1 vol. 400</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">MIGUEL
+CERVANTES</p>
+
+<p><b>D. Quixote de la Mancha</b>, ed. ill. com 200 grav. 2 vol. br. 2$400,
+enc. 3$200</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">FRANCISCO
+D'ALMEIDA</p>
+
+<p><b>Thesouro domestico</b>, receitas e processos uteis, 1 vol. 800</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">JOÃO
+CHAGAS</p>
+
+<p><b>O Crime da Sociedade</b>, 2 vol. in-4.º, ill. 1 vol. 3$600</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">LEÃO
+TOLSTOI</p>
+
+<p><b>A escravidão moderna</b>, 1 vol. 200</p>
+
+<p><b>A Sonata de Kreutzer</b>, 1 vol. 200</p>
+
+<p><b>O canto do cysne</b>, 1 vol. 200</p>
+
+<p><b>Ana Karenine</b>, 3 vol. 600</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">CAROLUS E
+LADOUCETE</p>
+
+<p><b>Os amores de Napoleão</b>, romance historico. 1 vol. de 1000 pag.
+profusamente ill. br. 2$000, enc. 2$600</p>
+
+<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">OCTAVIO
+MIRBEAU</p>
+
+<p><b>Memorias de uma criada de quarto</b>, 1 vol. 600</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Historia de um beijo, by Enrique Pérez Escrich
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE UM BEIJO ***
+
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+works. See paragraph 1.E below.
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+License as specified in paragraph 1.E.1.
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+ the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
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+ License. You must require such a user to return or
+ destroy all copies of the works possessed in a physical medium
+ and discontinue all use of and all access to other copies of
+ Project Gutenberg-tm works.
+
+- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
+ electronic work is discovered and reported to you within 90 days
+ of receipt of the work.
+
+- You comply with all other terms of this agreement for free
+ distribution of Project Gutenberg-tm works.
+
+1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
+electronic work or group of works on different terms than are set
+forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
+both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
+Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
+Foundation as set forth in Section 3 below.
+
+1.F.
+
+1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
+effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
+public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
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+
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