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Lione Soutelo + +Release Date: June 13, 2010 [EBook #32793] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE UM BEIJO *** + + + + +Produced by Pedro Saborano + + + + + + XLVII + Colecção + Horas de Leitura + + Enrique Perez Escrich + + HISTORIA + + DE UM + + BEIJO + + 2.ª Edição + + 1912 + GUIMARÃES & C.ª--Editores + 68, Rua do Mundo (Ex. Rua de S. Roque), 70 + LISBOA + + + + + +Historia de um Beijo + + + + +COMPOSTO E IMPRESSO NA IMPRENSA DE MANUEL LUCAS TORRES RUA DIARIO DE +NOTICIAS, 93 + + + + +Colecção Horas de Leitura + +_Obras publicadas, a 200 réis o volume_ + +1 a 4--*Ivanhoé*, de W. Scott, (2.ª edição) 800 + +5--*O frade negro*, por Clemencia Robert, (2.ª edição) 200 + +6 e 7--*As Semi-Virgens*, de Marcello Prévost, (3.ª edição illustrada) 400 + +8--*Werther*, de Goethe, (3.ª edição illustrada) 400 + +9--*Madame Flirt*, de Jaques Yvel, (2.ª edição) 200 + +10 a 12--*A Taberna*, de Zola, (2.ª edição) 600 + +13--*O Vigario de Wakefield*, de Goldsmith, (2.ª edição) 200 + +14--*A vida aos vinte annos*, de Dumas, filho, (2.ª edição) 200 + +15--*A agua profunda*, de Bourget, (2.ª edição) 200 + +16--*O dominó amarello*, de Marcello Prévost, (2.ª edição) 200 + +17--*Cortezã*, de A Belot, (2.ª edição) 200 + +18--*O Rosquedo*, de Delfim Guimarães, (2.ª edição) 200 + +19--*Os Vagabundos*, de Maximo Gorki, (3.ª edição) 200 + +20--*A escravidão moderna*, de Tolstoi, (2.ª edição) 200 + +21--*Os degenerados*, de Maximo Gorki, (3.ª edição) 200 + +22--*A Dama das camelias*, de Dumas, filho, (3.ª edição illustrada) 200 + +23--*As Virgens*, de G. d'Annunzio, (2.ª edição) 200 + +24--*Na prisão*, de Maximo Gorki, (2.ª edição) 200 + +25 e 26--*A Dama das perolas*, de Dumas, filho, 400 + +27--*Varenka Olessova*, de Maximo Gorki, 200 + +28--*O jardim dos suplicios*, de Octavio Mirbeau, (2.ª edição) 200 + +29--*Saudades*, (Menina e Moça) de Bernardim Ribeiro, (2.ª edição) 200 + +30--*Na Esteppa*, de Maximo Gorki, 200 + +31--*Nami-ko*, Tokatomi, 200 + +32--*Um conchego de Solteirão*, Balzac, (2.ª edição) 200 + +33--*Sapho*, de Daudet, (a sahir 2.ª edição) + +34--*Um começo de vida*, de Balzac, 200 + +35 e 36--*O Paraiso das Damas*, de Zola, (esgotado) + +37--*Amor e liberdade*, de Tolstoi, (esgotado) + +38--*Casamento de Amor*, de Theuriet, (esgotado) + +39 e 40--*Illusões perdidas*, de Balzac, 400 + +41 e 42--*Esplendores e miserias das cortezãs*, de Balzac, 400 + +43--*A ultima incarnação de Vautrin*, de Balzac, 200 + +44--*Mater dolorosa*, de Ernesto Daudet, 200 + +45--*O Immortal*, de Affonso Daudet, 200 + +46--*Ares do Minho*, de Delfim Guimarães, 200 + +47--*Historia d'um beijo*, de E. Perez Escrich, 200 + +48--*O intruso*, de Gabriel d'Annunzio, (esgotado) + +49--*A mulher de 30 annos*, de Balzac, 200 + +50 e 51--*Germinal*, de Zola, 400 + +52--*O crime de Silvestre Bonnard*, de Anatolio France, 200 + +53--*Miseraveis*, (Cañas y barro) de Blasco Ibañez, 200 + +54--*O Abade Constantino*, de L. Halévy, 200 + +55--*O Dr. Rameau*, de Jorge Ohnet, 200 + +56--*Agua corrente*, de Severo Portella, 200 + +57--*O luxo dos outros*, de Bourget, 200 + +58--*O tio Goriot*, de Balzac, 200 + +59 e 60--*A derrocada*, de Zola, 400 + +61--*O canto do Cysne*, de Tolstoi, 200 + +62--*Contos*, de G. de Maupassant, 200 + +63 e 64--*Náná*, de Zola, 400 + +65--*A Sonata de Kreutzer*, de Tolstoi, 200 + +66--*O Padre Maldito*, de Silva Pinto, 200 + +67--*Paulo e Virginia*, de Sain-Pierre, 200 + +68 e 69--*O Dinheiro*, de Zola, 400 + +70--*Confissão d'um Amante*, de Prévost, 200 + +71--*A sepultura de ferro*, de H. Conscience, 200 + +72--*A musa do departamento*, de Balzac, 200 + +73 e 74--*A Obra*, de Zola, 400 + +75--*Genoveva*, de A. de Lamartine, 200 + +76--*Um filho do povo*, de Escrich, 200 + +77 e 78--*O crime do padre Mouret*, de Zola, 400 + +79--*Casamentos fidalgos*, de Feuillet, 200 + +80--*Amor tragico*, de A. Hermant, 200 + +81--*A Religiosa*, de Diderot, 200 + +82 a 84--*Ana Karenine*, de Tolstoi, 600 + + + + + +COLECÇÃO HORAS DE LEITURA + +Enrique Perez Escrich + +Historia de um Beijo + +TRADUCÇÃO DE + +A. J. LIONE SOUTELLO + +2.ª Edição + + + +1912 + +GUIMARÃES & C.ª--Editores + +68, Rua do Mundo (Ex. Rua de S. Roque), 70 + +LISBOA + + + + +CAPITULO I + +Uma chavena de café + + Um beijo é muitas vezes a esmola que faz uma mulher a uns labios + lisonjeiros; outras um pedaço d'alma que se escapa pela bôcca. No + primeiro caso o homem é a victima, no segundo é a mulher. + + +Existem na terra creaturas tão bem organisadas, corações tão generosos, +que não necessitam ser correspondidas para amar com toda a sua alma, +para terem gravada em seu coração uma imagem querida. + +Estes entes soffrem com o rosto sereno e choram com o sorriso nos +labios, porque se chora de dois modos: umas vezes deixando correr as +lagrimas, outras recolhendo-se ao coração a queimarem essa bella flôr da +juventude chamada a esperança. + +A vida n'estes casos é um desejo infinito que se afoga em pranto porque +se vê a felicidade que se deseja rodeada de uma muralha cheia de +impossiveis. Se pudesse conquistar-se a tiro, conhecer-se-hiam os nomes +de muitos heroes ignorados. + +A incerteza, essa anciedade da alma que tem o poder de reduzir e +prolongar o tempo segundo o seu capricho, faz-se sempre sujeita á +poderosa magia de uma syllaba. Um _sim_, resoa docemente no ouvido do +namorado e tem a encantadora poesia do mez de Maio com os seus perfumes, +as suas flôres, e o harmonioso canto das aves; um _não_, tem a aridez do +deserto, a melancholia da desgraça, a solidão da morte. + +Vou, pois, contar-lhes uma historia sentida, um gemido do coração. + +Vou dar-lhes a conhecer a protogonista do meu livro e supplico-lhes o +perdão para a fraqueza da sua alma: o coquettismo. + +Chama-se Amparo, nome cujas seis letras encerram uma promessa de amor +nunca realisada. + +Procurarei pintar com as côres da verdade o seu rosto, formoso como um +sonho da adolescencia; a sua fronte radiante como a luz do sol quando +apparece, ao romper do dia, do fundo do mar; os seus olhos claros e +expressivos através dos quaes se lêem todas as impressões da sua alma, +sensivel como as harpas das filhas de Sião que vibram ao menor sopro do +zephiro. + +Se os impressionam as scenas terriveis, as grandes catastrophes, as +situações inverosimeis, fechem o meu livro, porque em suas paginas só +acharão a historia de um coração que se partiu em pedaços. + +.......................................................................... + +Ernesto foi para Roma, pensionista do governo hespanhol. Era um rapaz de +25 annos, cheio de vida, de illusões, um genio; muitas vezes nos seus +sonhos de pintor julgava egualar-se a Velasquez, Murillo e todos esses +grandes homens que brilham em primeiro logar na historia da pintura +hespanhola. + +Vivia n'uma pequena casa nas immediações da Cidade Eterna, a Deusa da +arte; pensando na gloria, trabalhando sempre, porque Ernesto era um +sonhador infatigavel, o mundo para elle resumia-se nos seus quadros, nos +seus pinceis, na sua paleta. + +Nunca amara senão sua mãe, que já tinha morrido, e a gloria, que +desejava alcançar. + +Coração impressionavel, mas adormecido, as mulheres eram para elle como +flôres formosas de um jardim. + +N'uma palavra, Ernesto ainda não tinha encontrado o seu bello ideal, o +perfume da sua alma. + +A mulher formosa, para elle, só era uma bella obra onde o grande +artista, que se chama a natureza, derramara os seus mais preciosos +dotes. + +Vejam, pois, como a casualidade lhe proporcionou o meio de pagar de um +modo terrivel o tributo das almas sensiveis, que é o amor. + +Como dissémos, Ernesto habitava uma casinha nas proximidades de Roma. + +O _atelier_, situado na parte que dava para o jardim, recebia a luz de +duas grandes janellas por onde entravam os caprichos e interessantes +braços de algumas trepadeiras. + +Era uma tarde do mez de Maio. Ernesto estava retocando uma figura quando +veiu o creado dizer-lhe que um cavalheiro e uma senhora desejavam +falar-lhe. + +--São hespanhoes, disse o criado, e parece-me que o conhecem. + +--Hespanhoes? exclamou Ernesto, largando a paleta. Que entrem +immediatamente! + +Ernesto dirigiu-se para a porta seguindo o creado, quando ouviu uma voz +que lhe não era desconhecida, dizendo: + +--Onde está este mau hespanhol, que é preciso vir a Roma, á Via Appia +para lhe dar um abraço? + +--Oh! é o sr. D. Ventura! exclamou o pintor, vendo entrar um sujeito +d'uns 50 annos, dando o braço a uma menina tão formosa como elegante. + +--Sim, sou eu, querido pintor, sou eu, o D. Ventura do café Suisso, o +amigo dos artistas, o enthusiasta pela divina arte de Apollo; eu que, +apezar do meu enthusiasmo pela pintura, nunca soube collocar n'um rosto +o nariz no seu verdadeiro lagar. Mas, senta-te, querida Amparo, +senta-te; os homens do talento são sem-cerimonia como aldeãos, e francos +como a verdade--e apoz pequena pausa, continuou: + +--Começarei por pedir-lhe duas chavenas de café. + +Ernesto deu ao creado as ordens necessarias. + +A joven, que se sentara n'uma cadeira d'onde distrahidamente contemplava +os quadros do _atelier_, dispensou um sorriso de cumprimento ao pintor, +deixando vêr uns dentes pequenos como os de uma creança, e brancos como +o miolo do coco. + +Tudo o que é bello attrae irresistivelmente os homens de talento. + +Ernesto fitou a joven. + +Amparo teria 20 annos. O seu rosto de uma graça attrahente, provocadora, +via-se quasi animado por um d'esses sorrisos em que ficamos em duvida se +são a manifestação do coquettismo ou a ternura da alma. + +Os seus labios bastante vermelhos e humidos pelo constante roçar dos +dentes, ficavam ás vezes entreabertos como se fossem a exhalar um +suspiro ou a receber um beijo. + +Os seus olhos eram grandes e negros como amoras maduras; mas tão +movimentados, tão inquietos, tão cheios de vida, tão promptos em +manifestar as impressões da alma, que tão depressa se viam enlanguescer +com a sombra embriagadora de um amor platonico, como brilhar com todo o +fogo da paixão que conduziu Ovidio a um calabouço e Sapho á morte. + +Ernesto estudava dissimuladamente aquella joven que tão profunda +sensação causava na sua alma, virgem das terriveis tempestades do amor; +e, cousa rara, o seu genio de artista, tão depressa encontrava em Amparo +a belleza sensual e provocadora das mulheres de Rubens, como o pudor +candido das virgens de Murillo. + +Emquanto a D. Ventura só diremos que era um homem de 50 annos, calvo, +com os poucos cabellos que possuia já grisalhos, um rosto cheio de saude +e alegria; n'uma palavra, uma d'estas physionomias que sorriem sempre, +até quando choram; o typo, emfim do honrado commerciante que conseguiu, +depois de muitos annos de trabalho, reunir um peculio que o livra de +necessidades na velhice. + +Amparo era filha unica; fôra educada n'um dos melhores collegios de +Madrid, e possuia um dote de quatro milhões de pesetas para quando +achasse quem a merecesse. + +D. Ventura era feliz, revendo-se na filha, nova, formosa, vivaz e +alegre; tocava piano com bastante correcção, cantava regularmente e +pintava quasi com tanta perfeição como o divino Raphael. + +Amparo era, por assim dizer, rainha absoluta, e seu pae um ministro +bastante condescendente. + +A mulher nova e livre, quando a riqueza lhe permitte emprehender viagens +de recreio durante a estação calmosa, precisa de alguma cousa mais do +que mudar de paiz para distrahir-se; a viagem torna-se fastidiosa se a +alma não toma parte e o coquettismo não esgrime as suas armas, tão +deliciosas como traidoras, para matar o tempo. + +Fazer uma conquista sem graves compromissos, sem funestos resultados, +n'um commodo _wagon-lit_; trocar olhares expressivos com qualquer +mancebo pela praia de Biarritz ou no cume das montanhas da Suissa, tem +tantos attractivos para as jovens viajantes!... É tão agradavel ao +coração de uma mulher encontrar a duzentas leguas da patria um patricio +que se torne seu escravo, que esteja disposto a salval-a, a defendel-a e +juncar-lhe de flôres a terra que pisa, que não póde resistir á tentação +de pôr em jogo todas as suas seducções. + +Demais, a mulher tem a facilidade de comprehender a impressão que causa +e sabe aproveitar-se d'ella. Quando volta o inverno, quando as primeiras +nuvens do outomno as obriga a recolher aos seus lares, esses ternos +bandos de aves emigradoras, com saias de _piquet_, chapéu de palha e +botas brancas, recordam-se então já ao calor do fogão, de todas as +loucuras, de todas as innocentes concessões feitas ao ar livre e +poetisadas pelo vento da montanha ou pela brisa do mar; e como não ha +mulher que não saiba calcular, como o melhor mathematico, pensa se deve +acabar ou continuar com os amores do verão. + +Amparo, pois, encontrou casualmente Ernesto em Roma. Tinha ouvido dizer +que possuia talento; agradaram-lhe alguns quadros que viu no _atelier_, +e não lhe parecendo má a figura do pintor, dirigiu-lhe alguns olhares e +sorrisos, d'esses que no coração de um homem sincero e apaixonado causam +uma terrivel tempestade. + +Não pensava a joven que aquelle coquettismo era condemnado pelo +bom-senso. Empregou-o com a mais santa intenção, apezar de começar a +sentir-se aborrecida em Roma, onde andava só com seu pae por toda a +parte. Ernesto, então, foi olhado, como um recurso, como uma distracção. + +Quando Amparo sahiu de casa do pintor, ia convicta de que o tinha +captivado. + +--Pensará em mim, disse ella, virá vêr-me, falaremos de pintura, de +musica e d'esta fórma aborrecer-me-hei menos. + +Amparo ignorava ainda as terriveis consequencias que os seus olhares e +sorriso deviam exercer na alma do artista. Se o soubesse, +indubitavelmente se teria abstido, porque o seu coração era bom, +generoso e tão impressionavel, que se commovia ante a mais ligeira +contrariedade, como a folha do trémulo alamo ante o mais ligeiro sopro +do zephiro. + + + + +CAPITULO II + +Uma noite no Colyseu + + +Quando Ernesto ficou só, em vez de pegar na paleta e nos pinceis +approximou-se da janella e ficou pensando na joven hespanhola que +acabava de sahir. + +Depois de uma hora de meditação, retirou-se da janella, dizendo para +comsigo: + +--Se me encommendassem um quadro onde figurasse alguma das tres +encantadoras filhas de Jupiter e de Eurinome pediria a Amparo para me +servir de modelo. + +E, tomado de uma subita inspiração, pegou na paleta e nos pinceis e +começou a pintar, n'um pedaço de tela, uma cabeça, mas com tanta rapidez +que, em vinte minutos, estava completamente esboçada. + +Afastou-se um pouco do cavallete para examinar o seu trabalho, e disse: + +--Sim, é ella. Tenho boa memoria. + +E como não se contentasse com a sua opinião, chamou o creado e +perguntou-lhe: + +--Com quem se parece esta cabeça? + +--Bravo! Com quem se ha-de parecer? Com a senhora que esteve cá, +respondeu o creado sem vacillar. Não é preciso ser muito esperto para a +reconhecer. + +Ernesto tornou a pegar nos pinceis e retocou o seu trabalho. + +Duas horas depois tinha terminado um soberbo retrato de Amparo, que o +pintor mais escrupuloso não recearia pôr em exposição. + +Tinha promettido a D. Ventura ir no dia seguinte almoçar com elle ao +hotel de Londres na praça de Hespanha, onde estavam hospedados. + +Ernesto levantou-se cedo, fez a barba, vestiu-se com mais cuidado do que +de costume, admirando-se de ter gasto tanto tempo ao espelho. + +Assim que terminou a sua _toilette_, satisfeito de si mesmo, enrolou a +tela com o retrato de Amparo, embrulhou-a n'um papel e sahiu de casa +dizendo ao creado que tinha o dia livre, visto não voltar senão á noite. + +D. Ventura e a filha occupavam dois quartos no primeiro andar do hotel +de Londres. + +Quando Ernesto subia a escada ouviu os accordes de um piano. Deteve-se: +tocavam a magnifica symphonia de _Guilherme Tell_. + +--Será Amparo? pensou elle. + +E vendo um creado no corredor, disse-lhe: + +--Qual é o quarto do sr. D. Ventura d'Aguillar? + +--O seis: ahi onde estão tocando. + +Ernesto não se tinha enganado: era Amparo quem tão magnificamente +interpretava uma das mais bellas composições de Rossini. + +Receoso de interromper aquella brilhante corrente de notas que tão +docemente resoavam no coração, esperou junto da porta que terminasse a +symphonia. + +Logo que ella acabou bateu á porta. + +--Entre, disse D. Ventura. + +Entrou. Amparo estava ainda sentada ao piano. Por cima d'este estava um +grande espelho e no limpido crystal Ernesto viu retratado o +encantador rosto de Amparo, que sorria, enviando-lhe um olhar que o +perturbou por um momento. + +--Bravo, é um homem de palavra, disse D. Ventura. Ahi está uma qualidade +que não é muito vulgar nos artistas. + +--Então não me esperavam? + +--Eu esperava, mas o meu pae, não, disse Amparo, fazendo girar o banco +do piano, até ficar voltada para o pintor. + +Amparo tinha um vestido tão simples como elegante. O seu cabello negro e +frizado, estava atado com uma fita azul que fazia realçar a brancura do +seu rosto e o tom rosado das faces. + +O pintor achou-a muito mais formosa do que no dia anterior. + +De bôa-vontade ficaria contemplando o encantador modelo que tinha ante +si; mas isso álêm de inconveniente seria ridiculo. + +A donzella, por seu lado, olhava o pintor com o mais seductor dos seus +olhares e enviava-lhe o mais bello dos seus sorrisos. + +Comprehendera o que se passava na alma de Ernesto. Só D. Ventura não via +nada. É bem certo o dictado que diz que os paes são todos myopes. + +--Que traz ahi, sr. Ernesto? É algum quadro? perguntou Amparo vendo o +rolo que o pintor tinha na mão. + +--Como estava distrahido! respondeu Ernesto. Hontem de tarde fiz um +trabalho. É um atrevimento que espero me desculpem. + +O pintor desenrolou a tela e apresentou-a, sorrindo-se. + +A joven não poude conter um grito de assombro, e D. Ventura pronunciou +uma interjeição. + +--Sou eu! + +--É a minha filha! + +--É um retrato d'esta senhora, e venho offerecel-o como uma recordação +da visita que tiveram a bondade de me fazer. + +--São levados da breca estes pintores, exclamou D. Ventura. Como se póde +reter na memoria de uma fórma tão completa as feições de uma pessoa e +passal-as para a tela com tanta verdade?! Porque és tu! Sim, tão +parecida como duas gottas d'agua; muito mais parecida do que uma +photographia. + +Ernesto sorriu-se das admirações de D. Ventura. Amparo parecia +agradecer-lhe com um olhar cheio de ternura aquella recordação tão +delicada. + +--Pois é a cousa mais facil do mundo, disse o pintor olhando para +Amparo, comprometia-me a fazer outro d'aqui a tres annos sem me esquecer +do menor detalhe do vestido e do penteado que tem n'esta occasião. + +--Pegue-lhe na palavra, papá, disse Amparo, e d'aqui a tres annos, se +nos encontrarmos em Madrid havemos de vel-o ficar mal. + +--Fica encommendado o retrato. Mas agora parecia-me melhor que nos +servissem o almoço e que pensassemos em que devemos entreter o dia. + +--Já visitaram as _vilas_ ou casas de campo dos arredores? perguntou +Ernesto. + +--Já visitámos uma... Como se chama a que vimos hontem? perguntou D. +Ventura á filha. + +--_Vila Aldobrandini_. + +--É magnifica, mas está pouco menos do que abandonada. Deliciosa mansão +se se arranjassem os jardins em fórma de amphitheatro. O Dominiquino +deixou-nos n'essa casa sumptuosa uns quadros inegualaveis. Faz pena +ouvir, no meio de tanto abandono, o cadente murmurio das suas cascatas +que se assimilham á harmonia dos orgãos aquaticos da antiguidade como ao +mesmo tempo vêr as soberbas estatuas e outros objectos de esculptura de +grande merito. + +--Com franqueza não a achei grande cousa... como disseste que se +chamava, Amparo? + +--_Aldobrandini_, papá. Valha-o Deus, que cabeça a sua! + +E Amparo trocou um sorriso com Ernesto. + +--Podemos vêr outras que estão melhor conservadas, ajuntou o pintor. Por +exemplo, é digna de visitar-se a _Vila Borghése_ pelo seu grandioso +lago, pelo hypodromo, pelo templo, pelos jardins e, sobretudo, pelo rico +museu de numismatica, e se desejarem visitaremos a _Vila Albani_ e o seu +celebre museu. Os antigos romanos tiveram grande predilecção pelas casas +de campo. Os historiadores d'aquelle tempo contavam cousas fabulosas. Os +poetas, esses sonhadores de todas as epochas, esses pobres loucos que +não tendo um real de seu phantasiam palacios e cascatas brilhantes, +falam com grande entusiasmo das quintas que nos arredores de Roma +possuia Cesar, Lucullo, Marcello, Nero, Pompeu, Salustio e muitos outros +homens celebres; mas hoje não existem mais do que ruinas. A casa de +campo de Mecenas, onde iam Augusto, Virgilio, Horacio, Plocio, Tiscca e +Polion descançar das fadigas de Roma, converteram-se hoje em forja de um +pobre ferreiro. Que ode tão sentimental escreveria o pudico auctor da +_Eneida_ se ressuscitasse ao contemplar as ruinas de Roma. + +D. Ventura ouvia Ernesto de bôcca aberta. Tudo isto para elle era grego. +Amparo não deixava de se sorrir. Entre elles começava a existir uma +grande intimidade, a intimidade que produz as sympathias. + +--Sabe o que desejo vêr, sr. Ernesto? disse Amparo. É o Colyseu. Li, não +me recordo em que livro, que visto n'uma noite de luar é surprehendente. + +--Os viajantes julgam segundo a impressão que os objectos produzem no +seu temperamento. Por isso emquanto uns ao percorrer a Palestina a +descrevem cheia de frondosidade e poesia que a adornava no tempo de +Salomão, outros a classificam de um arido areal, um deserto +insupportavel, pobre, povoado por tribus selvagens e ascorosas, mas o +Colyseu começado por Vespasiano e acabado por Tito, visto, quer á luz do +sol quer á da lua é verdadeiramente admiravel. + +--Ainda assim prefiro vel-o de noite, disse Amparo. + +--Então aproveitaremos o luar, e hoje mesmo se póde realisar o seu desejo. + +--Que dizes a isso, papá? + +--Que estou ao teu dispor. + +--Fica, pois, combinado para esta noite. + +Almoçaram como bons hespanhoes, depressa e sem lhe dar grande +importancia, pois não é a Hespanha a terra dos Lucullos. + +Do meio-dia ás 5 horas da tarde visitaram algumas casas de campo dos +arredores de Roma. + +D. Ventura estava encantado. Ernesto sabia tudo; era, como vulgarmente +se diz, um livro aberto. + +Não encontraram uma pedra, uma columna, um sepulchro do qual o pintor +não soubesse a historia. + +Amparo escutava-o com prazer. Encostando-se-lhe familiarmente ao braço +fazia-lhe perguntas, principalmente quando encontrava alguma inscripção +latina. + +O dia passou-se agradavelmente para os tres; as horas foram curtas, e os +laços de amisade estreitaram-se duplamente com aquelle agradavel passeio. + +Ás seis horas regressaram ao hotel. O jantar já os esperava. Depois +metteram-se n'um trem que os conduziu ao Colyseu. + +A noite estava serena; a lua no seu auge, e a sua clara luz banhava as +colossaes ruinas onde em outros tempos oitenta e sete mil espectadores +iam gozar o barbaro espectaculo das luctas humanas. + +Então, o povo romano pedia pão e circo, e os imperadores tinham o +cuidado de satisfazer os desejos da terrivel fera que dormia, +lambendo-lhe os pés. + +Ernesto levava os dois amigos a um e outro lado, esplicando-lhe com o +mesmo conhecimento que poderia fazer-lhe um _cicerone_ do tempo do +imperador Claudio, descrevendo-lhe ao mesmo tempo aquellas terriveis +luctas, dos adestrados gladiadores, cujo sangue regou com abundancia a +arena do circo. + +--Assistiram mulheres a esse barbaro espectaculo? perguntou Amparo. + +--Ao principio era-lhes prohibida a entrada, respondeu Ernesto, mas +depois foi auctorisada, reservando-lhes Octavio Augusto as bancadas mais +altas do amphitheatro. Precisamente aqui onde estamos era a tribuna do +imperador, e alli a das vestaes, cujo docel era egual ao do imperador. A +este sitio chamava-se _Spoliarium_, para onde conduziam os cadaveres +dos gladiadores ou os que estavam mortalmente feridos, puxando-os com um +gancho de ferro. Esta obra colossal foi construida no curto espaço de +quatro annos. Tinha setenta portas, sem contar com as entradas +reservadas para o imperador e a sua côrte. As festas da inauguração no +tempo de Flavio Sabino Tito duraram cem dias consecutivos, e n'ella +perderam a vida dois mil gladiadores. + +--Parece impossivel que tão sanguinolentos espectaculos agradassem a +mulheres, exclamou Amparo. + +--A vida dos feridos, continuou Ernesto, quando caíam banhados de sangue +na arena, ficavam sempre á disposição dos espectadores. O vencedor +collocava a ponta da espada no peito do vencido e esperava que o publico +lhe dissesse; «Mata» ou «Perdôa». Outras vezes o ferido arremessava as +armas e caía ao pé das grades a implorar clemencia. Se os espectadores +levantavam o dedo pollegar, concedia-se-lhe a vida; mas se o viravam +para baixo, então o ferido apresentava o peito ao seu adversario para +que o acabasse de matar. + +--Mas perdoavam sempre? disse D. Ventura. + +--Algumas vezes. Durante o reinado do infame Caracalla nem uma só vez se +concedeu o indulto aos gladiadores vencidos. O povo romano de então, era +tão feroz como sanguinario, e só gozava com a agonia dos seus +similhantes, pois, como disse o grande poeta inglez Lord Byron, ácêrca +dos costumes do povo, assim apparecem singelas e naturaes as cousas mais +horriveis e sangrentas. + +D. Ventura escutava em silencio o narrador, que lhe contava com a +precisão de um bom livro, todas as horriveis scenas que tiveram logar no +Colyseu. + +Algumas vezes Amparo, para caminhar com mais segurança por aquellas +sumptuosas ruinas, dava a mão a Ernesto. Aquellas duas mãos apertavam-se +docemente, transmittindo um suave estremecimento. + +D. Ventura era um homem de bem, mas um homem todo prosa; e aquillo tudo, +apezar do luar e das descripções historicas de Ernesto, parecia-lhe +um montão de ruinas, uma toca de lagartos. + +Comtudo, para não ser _desmancha-prazeres_, dizia de quando em quando: + +--Soberbo! Magnifico! + +Á meia-noite regressaram ao hotel. + +Quando Ernesto se despediu, Amparo disse-lhe, apertando-lhe a mão e +dirigindo-lhe um olhar cheio de doce esperança: + +--Passei uma noite deliciosa. Estou certa de que sempre me lembrarei do +Colyseu de Roma. + +Para Ernesto aquella despedida foi uma promessa irmã da esperança, essa +bella flôr que perfuma a alma. + + + + +CAPITULO III + +Sonhos côr-de-rosa + + +Ernesto teve aquella noite um sonho côr-de-rosa, porque a bella Amparo +foi o anjo do seu sonho. + +Os homens de genio e sobretudo os pintores, quando pensam no amor, antes +de amar, criam um typo perfeito como todas as sublimes creações da +imaginação; uma d'essas mulheres de extraordinaria belleza cheia de luz, +sem um _senão_ no moral, sem um defeito no physico, perfeita de corpo e +d'alma: mas quando chega o momento de, ou cançados do celibato, ou para +pagar esse tributo de que poucos se salvam, chamado matrimonio, se +decidem a casar, então já é outra cousa, pois muitas, mesmo muitissimas +vezes a poesia se incarna na prosa, e depois... Satanaz toma parte +activa na symphonia do matrimonio. + +O amor é cego, e os homens e as mulheres devem resignar-se a não vêr +bem, precisamente quando deviam ter olhos de lynce. + +Ernesto levantou-se alegre e cantando a symphonia de _Guilherme Tell_; e +pensando em Amparo pegou na paleta e poz-se a pintar no seu quadro. + +A filha do D. Ventura tinha-se photographado d'uma maneira tão profunda +na sua imaginação, que o pintor achou sem saber como que uma das figuras +do seu quadro tinha grandes parecenças com Amparo. Admirou-se, mas +agradou-lhe ao mesmo tempo. + +Ás dez horas largou a paleta, almoçou, e pegando n'uma folha de papel, +poz-se a pintar uma aguarella do Colyseu visto á luz do luar. + +--Isto será uma recordação dedicada a Amparo, disse elle. Dir-lhe-hei +que a colloque no seu gabinete para que nunca se esqueça da noite que +representa. + +Ernesto esmerou-se marcando com arte e delicadeza todos os detalhes da +aguarella. Collocou n'um ponto conveniente um pintor tirando o _croquis_ +do Colyseu, e ao seu lado um cavalheiro e uma joven. + +Apezar das figuras terem apenas duas pollegadas, o pintor tinha o maximo +empenho em que ficassem parecidas com os originaes que representavam. A +empreza era difficil; mas por fim, apoz algum trabalho, conseguiu o que +desejava. + +Satisfeito com a sua obra e com a alegria do homem que sente na alma os +primeiros perfumes do amor e julga causar uma surpresa agradavel á +provocadora dos seus sonhos, ao cair da tarde dirigiu-se para Roma. + +D. Ventura e a filha estavam tomando café. Tinham acabado de jantar. + +--Chega a proposito, disse D. Ventura. + +--Dou-me por feliz, respondeu Ernesto, cumprimentando a joven. + +--Sente-se e tome café comnosco. + +--Primeiro que tudo, desejo saber em que consiste a opportunidade da +minha chegada. + +--Aborreciamo-nos, disse Amparo, Roma é uma cidade morta; nem sequer tem +theatros. + +--Diz muito bem. Roma é um cadaver que todos os annos ressuscita pelo +Carnaval, e vive um mez commettendo as mais excentricas loucuras; +depois torna a cahir na soledade da tumba, até ao anno seguinte. + +--Quer dizer que errámos a epocha da nossa viagem, disse D. Ventura. + +--Justamente. Mas se a sr.ª D. Amparo quizer ir ao theatro, temos +actualmente um aberto. + +--Qual? + +--O do Tiano. + +--Dizem que não é bonito. + +--Sim, mas em compensação representam admiravelmente. + +--Sabe, senhor Ernesto, que esta noite tive uma ideia? disse Amparo, +cerrando docemente as palpebras para conservar a luz dos seus formosos +olhos fixos no pintor. + +--Estou crente, de que foi uma ideia sublime. + +--Vaes ouvir, papá; o senhor Ernesto já disse que a minha ideia era +sublime; agora só necessito que o papá a ache tambem. + +--Olha que os artistas são muito aduladores; não te fies n'elles. Mas +vamos, dize qual é a tua ideia. + +--Resume-se em deixarmos Roma e irmos passar um mez em Florença; mas com +uma condição: que o senhor Ernesto nos acompanhe como nosso _cicerone_. + +--Essa exigencia é uma loucura, filha da pouca experiencia propria da +tua edade, disse D. Ventura. Ernesto está pintando um quadro que tem de +mandar para a proxima exposição de Madrid, em setembro. + +--Sim, o senhor Ernesto tem o quadro muito adeantado e d'aqui até +setembro vão ainda quatro mezes, disse rapidamente Amparo, dirigindo ao +pintor um olhar supplicante para que elle annuisse. + +--Acceito sem vacillar, disse Ernesto, e dou as minhas razões. Preciso +só de um mez para concluir o meu quadro. E antes de voltar a Hespanha +tinha necessidade de ir a Florença para tirar uns croquis da _Venus de +Médicis_, do _Grupo de Niobe_ e de alguns quadros da escola flammenga +que existem no celebre palacio de Pitti. Quero tambem tirar alguns +_croquis_ da _cathedral de Santa Maria de Fiore_, d'essa memoravel +architectura da qual Miguel Angelo, disse ser impossivel fazer outra +mais bella, pois era digna de servir de frontespicio ao Paraiso, e que o +imperador Carlos V devia pôl-a n'um estojo para melhor a conservar. +Assim pois, tudo se resume em adeantar dois mezes a minha viagem a +Florença. Quando partirem para Hespanha, eu regressarei a Roma para +terminar o meu quadro, e prometto que o verão collocado n'um dos salões +da Exposição no dia 20 de setembro. + +Amparo applaudiu, como uma creança que manifesta sem reserva a sua +alegria. A viagem projectada por ella era encantadora. Grande foi o seu +contentamento vendo que era acceite o seu plano, porque nada é tão grato +ao coração de uma mulher joven, como realisar um dos seus sonhos +côr-de-rosa que de vez em quando lhe acariciam a alma. + +Na noite anterior deitara-se, pensando no seu poetico passeio ao +Colyseu. Como o somno se mostrasse rebelde, recapitulou na memoria até +as mais pequeninas cousas acontecidas nas celebres ruinas. + +Os olhares de Ernesto, os suaves apertos de mão, a lua que banhava, +poetisando, as pardas e as derrubadas galerias do Colyseu, as +descripções historicas que com doce e carinhoso accento narrava Ernesto, +tudo isto formava um conjuncto agradavel ao coração de Amparo. + +Amava Ernesto? Nem ella mesmo sabia que responder a esta pergunta que +fez pelo silencio da noite. + +O pintor era novo, elegante, bem parecido, com uma educação pouco +vulgar, e pelo menos era-lhe sympathico. + +Como ha sempre algum egoismo no coração da mulher, Amparo pensou que +continuar a sua viagem pela Italia acompanhada de Ernesto tinha muito +mais encanto, era mais divertido do que viajar sósinha com o pae. + +Amparo não pensou senão em si. Com algum conhecimento mais profundo da +vida material dos artistas, isto é, a prosa do talento, teria pensado +que talvez Ernesto não se encontrasse em condições de emprehender +uma viagem em carruagem de primeira classe, e installar-se n'um hotel de +luxo. + +É bem certo que Amparo ignorava o valor do dinheiro: gastava o do pae, +que era rico, sem se preoccupar com o valor que tem um duro[1] +para quem não possue vinte reales. + +Por outro lado Ernesto, um verdadeiro artista, sonhava que era um +principe e julgava os seus sonhos uma realidade... Era mais ambicioso de +gloria do que de ouro. + +Quando acceitou a projectada viagem por Amparo, sem pensar se o dinheiro +que possuia por sua unica fortuna chegaria para occorrer a todas as +despezas, só pensou na felicidade de viajar com aquella mulher formosa, +por uma terra encantadora, cujo céu azul e o perfume das brisas são o +orgulho das filhas de Toscana, a admiração dos estrangeiros. + +Combinada a partida para quatro dias depois, Ernesto apresentou a +aguarella do Colyseu, que arrancou um grito de admiração e muitos +olhares de agradecimento a Amparo. + +O pintor regressou a casa já bastante tarde, tão alegre, tão feliz, que +não teria trocado a sua existencia por cousa alguma d'este mundo. + +A felicidade está ás vezes em tão pequenas cousas!... O pobre artista +julgava-se amado, e começava a amar com toda a sua alma virgem e +apaixonada. + +Quando chegou a casa, pegou n'uma folha de papel para fazer o orçamento +das suas despezas. + +--Necessito, disse elle, de quatro mil reales para a viagem. Vejamos +como estou a respeito de fundos. + +Ernesto só tinha seiscentos. Era-lhe preciso arranjar dinheiro. + +Procurou na memoria os nomes de alguns amigos pintores que como elle +viviam em Roma, mas um sorriso lhe assomou aos labios. + +--Todos elles, disse, são tão pobres ou mais do que eu; não devo +expôr-me a uma negativa forçada, que é tão desagradavel a quem a dá como +a quem a recebe. Melhor será sacrificar alguns dos meus quadros. O +senhor Daniel é um judeu, menos judeu que os dez mil que pelo interesse +do commercio o papá consente em Roma. Escrever-lhe-hei. + +E pegando na penna escreveu: + + + _Senhor Daniel Raithany_ + +«Meu bom amigo + + «Vou emprehender uma viagem a Florença e preciso vender alguns + quadros. Tenha, pois, a bondade de vir hoje ao meu _atelier_, + onde o espero até ás quatro horas da tarde. + + Seu amigo, + + _Ernesto Alvarez_.» + + +O pintor chamou o creado e disse-lhe: + +--Amanha, quando te levantares, vaes a Roma entregar esta carta ao sr. +Daniel, negociante de quadros. Mora no bairro dos judeus; já o conheces. + +Depois deitou-se para sonhar com Florença e Amparo. + +Ernesto achava-se na ditosa edade dos sonhos côr-de-rosa, e viu durante +algumas horas passar pelos olhos da sua illusão um panorama encantador +onde a flôr mais perfumada, mais bella, mais resplandecente, era Amparo +que, olhando-o com languidez, lhe dizia uma e mil vezes mais: «amo-te! +amo-te! amo-te!» + +E para que desperta um homem d'estes sonhos encantadores? + + + + +CAPITULO IV + +O pintor e o judeu + + +Daniel Raithany era um dos maiores negociantes do bairro judaico. Tinha +em toda a Europa fama de intelligente e honrado, apezar de ninguem +ignorar que vendia caro e comprava barato. Esta qualidade era +descupavel, tratando-se de um negociante judeu; mas, em compensação, +tinha uma grande qualidade, que era que quando um admirador de pintura, +ainda que de Londres, Paris, Vienna, S. Petersburgo, Madrid ou de +qualquer das grandes capitaes da Europa necessitava para a sua galeria +um quadro d'este ou d'aquelle auctor celebre, escrevia-lhe uma carta, e +não olhando a preço tinha o que desejava. + +Nunca enganava ninguem, dando uma copia por original. Daniel era +intelligente, e apezar de não saber pintura, tão conhecedor era das +escolas que mais de uma vez, em casos duvidosos, o chamavam como períto. + +Todos os pintores eram amigos de Daniel e era tão difficil enganal-o +vendendo-lhe gato por lebre, como vulgarmente se diz, que ninguem +tentava fazel-o. + +Dizia-se que o negociante conseguira juntar muitos milhões. Comtudo a +sua loja apresentava sempre o mesmo aspecto modesto, e a sua pessoa +conservava a mesma linha; isto é, usava constantemente uma sobrecasaca +verde com grandes abas, calças e collete preto, uma gravata de velludo, +um chapéu usado, um chapéu de chuva velho debaixo do braço e uma cadeia +d'aço, em cuja extremidade estava preso um modesto relogio de prata. + +Daniel era um homem alto, magro e pallido, nariz arqueado, cabello +grisalho, olhos verdes, pequenos o encovados; um d'esses typos vulgares, +mas em quem, olhados com attenção, se encontra bondade e doçura no +semblante. + +Ernesto estava pintando. Eram dez horas da manhã quando viu entrar no +_atelier_ o judeu. + +Daniel entrou como sempre, sorrindo-se, com o chapéu de chuva debaixo do +braço, e a caixa do rapé que nunca abandonava, na mão esquerda. + +--Bons dias, millionario, disse Ernesto, extendendo-lhe a mão. Muito +agradecido pela sua pontualidade. + +--Em questão de dinheiro, respondeu Daniel, é preciso sermos pontuaes, e +aproveitarmos o tempo. Por um minuto se póde perder um bom negocio. + +--Pelo que se vê o senhor é negociante até á medulla dos ossos. Mas +vamos falar do nosso. + +O pintor deixou a paleta e os pinceis, indicou-lhe uma cadeira e +sentou-se n'outra. + +--Preciso dinheiro. + +--Já o suppunha. + +--Por isso lhe pedi que me viesse visitar. + +--E eu, conhecendo a impaciencia dos artistas, apressei-me em vir. + +--Agradecendo-lhe pela segunda vez, começarei por lhe dizer que dentro +de tres dias parto para Florença. + +--Uma viagem de recreio. + +--De recreio e estudo. Tenciono tirar alguns _croquis_ da celebre +galeria do palacio de Pitti. + +--Bello pensamento! + +--E como para ir a Florença é preciso dinheiro e como eu não o tenho, ou +melhor, tenho pouco, quero que me compre alguns quadros. Póde escolher, +exceptuando o que está no cavallete, pois esse é, como sabe, para a +Exposição de Madrid, e póde dizer-se que me não pertence. + +Daniel guardou silencio, levantou-se, poz os oculos e começou a passar +revista aos quadros, e estudos que estavam nas paredes. + +Ernesto entretanto accendeu um charuto e recostou preguiçosamente a +cabeça no espaldar da cadeira. + +Mais de tres quartos de hora durou a revista passada ás telas por +Daniel. Quando estava perfeitamente inteirado, tirou os oculos, com todo +o seu vagar, guardou-os no bolso, e, sentando-se, disse: + +--Tem seis quadros de comestiveis, quatro pequenos de costumes +hespanhoes, e dois de flôres. Fico com os doze, pois tenho probabilidade +de os vender a um inglez que me encarregou de comprar alguma cousa +n'este genero, e dou por elles quatrocentos duros. + +--É pouco dinheiro. + +Daniel encolheu os hombros. + +--Não dou mais, respondeu; é impossivel. + +--Dou-lh'os por doze mil reales e creia que ainda ganhará uns duzentos +por cento. + +--N'estes tempos não é possivel. Desde que a photographia póde offerecer +o _fac-simile_ de uma obra-prima por um franco, a pintura perdeu muito. + +--Senhor Daniel, concedo-lhe o direito de regatear o preço de um quadro, +de dizer que é mau sendo bom, mas não lhe consinto que ponha a +photographia a par da pintura. Poderá ter-se uma copia do Ticiano +estampada em um boccado de papel por dois reales, mas não se terá +Ticiano, nem pela photographia se poderá nunca formar uma ideia, ainda +que vaga, do que vale o citado auctor. + +Daniel fez um gesto de indifferença, o ajuntou: + +--Sabe que tenho em muita consideração os seus trabalhos, e que se não +estivesse tão occupado, o encarregaria de algumas copias, e isso deve +inspirar-lhe confiança para crer que não procuro exploral-o. Quem sabe +se terei quatro ou mais annos armazenados na loja esses doze quadros que +pretendo comprar. E se assim succeder, o senhor bem sabe que dinheiro +vale dinheiro, e isso representa uma grande perda. + +Ernesto comprehendeu que o judeu não lhe daria mais, visto conhecer a +necessidade que elle tinha do dinheiro. + +Calculou que com a importancia offerecida e o que possuia podia fazer +desafogadamente e até com luxo a viagem e resolveu acceitar o negocio. + +--Está fechada a transacção, disse o pintor. Mando-lh'os ainda hoje mesmo. + +Daniel tirou a carteira, e d'ella a importancia offerecida em notas do +Banco Romano, e entregou-a ao pintor, dizendo: + +--Muito dinheiro podia ganhar! + +--Não desejo outra cousa, respondeu Ernesto, pondo o dinheiro sobre a mesa. + +--Seriamente? + +--O dinheiro é a primeira necessidade do homem n'este valle de lagrimas. + +--Então posso offerecer-lhe á volta de Florença algumas notas mais, se +me trouxer algumas copias da escola flammenga e franceza dos originaes +que existem no palacio Pitti. + +--Isso depende do tempo. + +--A actividade augmenta as horas. + +--Não me comprometo, mas farei todo o possivel porque receio que me faça +falta o dinheiro para ir a Hespanha expor o meu quadro. + +--Pois já sabe o meio de o obter. + +Daniel começou a despendurar os quadros que comprara e ia-os collocando +todos juntos, para que Ernesto ao mandal-os se não esquecesse de algum. + +Depois despediu-se do pintor, tornando-lhe a recommendar que trabalhasse +muito. + +--O trabalho, senhor Ernesto, é a maior fortuna do homem. Não se esqueça +de que as formigas e as abelhas são muito mais ricas do que as cigarras. + +Ha conselhos que só produzem um ligeiro murmurio nos ouvidos de quem os +ouve. + +Daniel sahiu. Ernesto chamou o creado. + +--Logo levas esses doze quadros a casa do senhor Daniel Raithany, +disse-lhe. Vou fazer uma viagem a Florença. Demoro-me um mez. Podes +dispor de ti como te aprouver, n'esses trinta dias, mas nem uma só noite +deixarás de dormir em casa. + +Entregou o dinheiro que julgou sufficiente para o sustento do creado, +mandou que lhe servissem o almoço, e depois sahiu. + +Uma vez em Roma comprou alguma roupa para a viagem. + +Á tarde foi visitar os seus amigos e jantar com elles. + +D. Ventura começava a olhar Ernesto como da familia; é verdade que +quando se encontra um compatriota a algumas centenas de leguas distantes +da mãe patria, sente-se uma alegria tão grande no coração que o tratamos +como se fosse um parente. + +A D. Ventura parecia o mais natural do mundo que um rapaz tão bem +educado, tão fino, tão illustrado como Ernesto o acompanhasse na sua +viagem a Florença. + +Emquanto a Amparo, não pensou senão em realisar o seu desejo; viajando +com Ernesto, tinha mais encanto a excursão, porque o pintor lhe era +sympathico. + +Os olhares, os sorrisos, os apertos de mão, as palavras carinhosas são +impulsos muitas vezes naturaes do coração feminino, e é sem duvida por +isso que não lhes dão nenhuma importancia. + +Mas Ernesto pensava de outro modo, e ia reunindo na sua alma simples e +apaixonada, um sem numero de esperanças encantadoras, que eram o seu +maior thesouro, e que deviam tornar-se a sua maior desgraça, porque o +amor quasi sempre é um jogo em que um dos jogadores perde. + +Os preparativos de uma viagem em que esperamos gozar e divertirmo-nos +são muito encantadores. Ernesto offereceu a D. Ventura um _Guia do +forasteiro em Florença_, preciosamente illustrado, e a Amparo um +elegante album para desenhos. + +--Temos que trabalhar muito, dizia o pintor, e não podemos consentir que +nos importune com perguntas. + +--Sim, sim, o senhor Ernesto tem razão; temos que fazer muitos desenhos, +e para que se não aborreça, emquanto trabalhamos, lerá o seu _Guia_ +deante das obras d'arte que vamos visitar. + +D. Ventura para quem não havia maior felicidade do que a alegria de +Amparo, vendo-a contente e feliz, ria-se com a expansão de um pae que +ama com loucura a filha. + +Só uma vez se poz serio vendo crescer aquella sympathia entre Amparo e o +pintor, e disse: + +--E a rapariga acaba por se enamorar de Ernesto. Fez algumas reflexões +mentaes e ajuntou: + +--Diabo, Ernesto é pobre; minha filha tem quatro milhões de dote no dia +do casamento e mais oito quando eu morrer. + +Aqui tornou a deter-se; mordeu o labio inferior como o negociante que +pensa n'um negocio importante, mas rapidamente se lhe alegrou o rosto e +exclamou: + +--Se ella o ama e quizer casar com elle, que se case; vale mais ter por +genro um homem como Ernesto, pobre, do que um parvo rico. + +Desde aquelle momento, Ernesto podia contar com a protecção do pae. + +Chegou o dia da partida. A viagem podia fazer-se de dois modos: em +pequenas jornadas, parando-se para vêr as povoações de alguma +importancia artistica, ou em caminho de ferro. + +D. Ventura optou pela ligeireza da locomotiva, e os nossos tres +viajantes, alegres como estudantes em ferias, installaram-se n'um +compartimento de primeira classe. A fortuna favorecia-os: iam sós. +Emquanto foi dia, Amparo e Ernesto passaram a maior parte do tempo á +janella da carruagem, admirando o panorama que se ia desenrolando a seus +olhos. + +Os jovens só trocaram algumas palavras em voz baixa; mas os olhos têem +uma linguagem tão expressiva, que dizem tudo, quando se movem +impulsionados por uma alma apaixonada. + +D. Ventura lia o livro offerecido pelo pintor, ou dormitava. Quando +chegou a noite, Ernesto bastante timido, apoderou-se de uma das mãos de +Amparo, não menos linda do que a da Laura que inspirou a Petrarcha +quatro sonetos, e disse-lhe: + +--Que feliz eu sou!... + +Amparo sorriu-se e retirou a mão. + +Depois, reclinando a cabeça em um dos cantos da carruagem, cerrou os +olhos, fingindo que dormia. + +Assim collocara certa distancia entre si e Ernesto. Amparo, apezar de +nova, tinha mais conhecimento do coração humano do que o seu companheiro +de viagem, e temeu que prolongando a conversação á tenue luz do vagon e +quasi tocando-se os joelhos, fizesse alguma d'essas concessões de que +mais tarde se arrepende a mulher. + +Ernesto procurou tambem posição commoda e tentou dormir, mas foi em vão. + +Nasceu o dia, e com elle a animação entre os viajantes. + +A linha seguia n'aquelle momento o curso do rio Arno. A conversação +renovava-se a cada paragem do comboio. D. Ventura lia o nome das +estações e procurava no _Guia_ a parte interessante da terra. + +Em Signa atravessaram o Arno e não demorou muito vêr-se ao longe as +torres elevadas de Florença, os quatro pontos e os quatros bairros. + +Ernesto exclamou: + +--Alli está Florença, berço do renascimento das artes, patria de Dante, +de Petrarcha, e de Galiléu! + + + + +CAPITULO V + +O grupo de Niobe + + +A Florença dos nossos dias é muito differente da que engrandeceram os +Médicis; mas por toda a parte se encontram as pégadas de Cosme o +Virtuoso, chamado o pae da patria, talvez pelo excessivo rigor com que +tratava os filhos. + +Indubitavelmente os Médicis foram grandes negociantes. A sua fortuna +fabulosa e a sua honradez ao mesmo tempo, elevou-os á primeira +dignidade da republica florentina. + +Mas como em todas as familias ha sempre um judas que vende a sua raça, +succedeu que emquanto Cosme o Virtuoso, chamado pae da patria, mandava +emissarios por todo o mundo em busca de manuscriptos para enriquecer as +bibliothecas, pensionando com luxo artistas, e Lourenço Magnifico sahia +em segredo de Florença e apresentando-se ante Fernando de Napoles, com +quem estava em guerra, dizia-lhe: «_Aqui me tens só e desarmado. Se é a +mim a quem odeias satisfaz a tua vingança com a minha morte, pois ditoso +me julgarei libertando com a minha vida a de tantos valentes, dispostos +a despedaçarem-se pelas nossas rivalidades_», outros Médicis deshonraram +o illustre appellido que tinham herdado de seus nobres antepassados. + +Sublime foi o rasgo de abnegação levado a cabo por Lourenço de Médicis, +evitando a corrente de sangue que ameaçava inundar Napoles e Toscana, +apezar de dizer a historia que o papá Sixto IV preferia a guerra, +esquecendo-se de que era um representante de Christo, do Deus da +bondade, do perdão e da tolerancia. + +Mas a natureza é variada, e depois dos grandes Médicis da republica +vieram os pequenos ladrões do despotismo. + +Chegou Alexandre, verdugo do povo, morto ás mãos do sobrinho, que com +incrivel cynismo lhe perguntou ao enterrar-lhe a espada no peito: +«_Senhor, estaes dormindo?_» Veiu depois Fernando, que morreu d'uma +indigestão de fructa verde, e por ultimo o estupido Cosme III, cuja +esposa Margarida de Orléans, não podendo supportar a repugnancia que lhe +causava o marido, o abandonou, envergonhada de lhe ter pertencido. Para +que a estupidez de Cosme chegasse ao cumulo, dedicou-se em procurar a +mulher pelas côrtes da Europa: mas em toda a parte se riram d'elle, +despedindo-o vergonhosamente como a um ente repugnante. + +Deixemos os Médicis á historia, e continuemos a narração interrompida ao +avistar as altas muralhas de Florença. + +Na estação, entre os muitos corretores d'hoteis que disputam os +estrangeiros, D. Ventura encontrou-se com um hespanhol que tinha casa de +hospedes, entrou em ajuste com elle, e conduziu-os n'um trem para casa. + +D. Ventura alugou todo o rez-do-chão, com o direito de lhe pertencer o +jardim plantado de laranjeiras, limoeiros e grandes acacias. + +O rez-do-chão compunha-se de um quarto com janellas para o jardim, uma +sala grande, um quarto de vestir, uma casa de jantar e uma sala. Amparo +installou-se em dois quartos. D. Ventura e Ernesto ficaram com a sala e +outro quarto contiguo á casa de jantar; a sala declarou-se terreno +neutral e todos podiam dispôr d'ella para o que necessitassem. Era o +ponto de reunião dos nossos viajantes. + +O senhor Rosales, dono da casa, era um sujeito muito amavel e serviçal. +Disse-lhes que tinha sempre muitos bons hospedes; que o primeiro andar +estava todo alugado ao sr. Conde de Loreto e ao seu velho mordomo; que +no segundo estavam varios portuguezes e que era tão apaixonado das +cousas de Hespanha, que mandava vir grão e chouriço hespanhoes, para que +quando algum hospede quizesse de vez em quando comer rico cosido +madrileno, podel-o servir. + +D. Ventura esteve quasi a abraçar o seu hospedeiro, porque como bom +madrileno começava a sentir a falta d'aquelle manjar predilecto. + +Emquanto a Amparo acercou-se da janella do gabinete, viu o formoso céu +de Florença, aspirou o perfume das laranjas e dos limões, exclamou: + +--Oh! que delicioso cheiro! que bem que ficamos aqui! + +A alegria de Amparo reflectia-se no coração de Ernesto. + +No primeiro dia entretiveram-se os nossos viajantes em arranjar +itinerario. Ernesto propoz visitar na manhã seguinte o palacio de Médicis. + +Em Florença o céu tem sempre luz, doçura, poesia. Os nossos viajantes +levantaram-se, dispostos a emprehender o seu passeio. A manhã não podia +estar melhor, o céu mais azul. + +Como não necessitavam de _cicerone_, porque Ernesto conhecia Florença +tão bem como Roma, sahiram em direcção ao celebre palacio de Médicis. + +Amparo e Ernesto levaram os seus _carnets_, e D. Ventura o seu _Guia_. + +Logo que chegaram ao palacio e entraram nos jardins, Ernesto, depois de +fazer observar aos seus amigos as duas distinctas architecturas do +edificio, a construida na Edade Media e a edificada por Vasari no seculo +XIV, exclamou: + +--Quando o viajante passeia por estes vastos jardins, parece que +encontra de menos Lourenço de Médicis, cognominado o Magnifico. Oh! +ditosa epocha aquella em que Lourenço, agarrando o braço de Miguel +Angelo, reprehendia com doçura paternal a indolencia do grande artista, +incitando-o ao trabalho! Ditoso tempo aquelle! Lourenço ria e applaudia +os comicos epigrammas do alegre Pulci, fazendo-o escrever o _Morgante +Maggiore_, o poema heroe-comico mais celebre de Italia, e em que Angelo +Poliano lhe lia os discursos de historia e philosophia. + +E mudando de entoação continuou com accento alegre: + +--É preciso confessar, meu caro senhor D. Ventura, que hoje os reis, os +potentados da terra se occupam pouco ou nada dos pobres sonhadores, dos +filhos do genio. Então, ante o talento dobravam a fronte os soberanos. +Cosme de Médicis encontrou um manuscripto de Tito Livio, enviou-o a +Fernando de Napoles, com quem estava em guerra, e foi tão grande a +alegria d'este rei, que receando ser ingrato, assignou o tratado de paz +que Cosme solicitava; devendo as mães de Italia a sua tranquillidade e a +vida dos filhos a umas folhas de pergaminho manuscriptas. Hoje, nem +todos os preciosos manuscriptos das bibliothecas romanas decidiriam dos +reis, quando disputam um palmo de terra, a deporem as armas. Mas +entremos na sala que immortalisou o cinzel do filho de Paros. + +D. Ventura, que ouvia com satisfação as palavras de Ernesto, exclamou: + +--Para que diacho me comprou este livro se aqui não diz nada do que tem +estado a contar? + +--Senhor D. Ventura, respondeu o pintor, sorrindo-se, breve chegará a +hora em que lhe seja util. A collecção de camafeus, medalhas e debuxos +compõe-se de vinte e oito mil estudos e _croquis_, feitos pelos mais +celebres pintores italianos, e em chegando ahi, fecho a bôcca e pego no +lapis. É então que o livro falará pelo _cicerone_. + +Ernesto conduziu os seus amigos á sala de Niobe e ao chegar deante +d'aquelle grupo que representa a mais sublime epopeia da dôr maternal, +ao deter-se em frente d'aquella mãe, cem vezes mais dolorosa do que a +dos Machabeos, tirou o chapéu com veneração e ficou como que fascinado +ante aquella esculptura, creada pelo magico cinzel de Scopas 478 annos +antes de Christo, para que fosse o pasmo e a admiração das edades futuras. + +D. Ventura descobriu-se tambem, apezar de não comprehender o valor de +tão interessante grupo que tinha ante si. Para elle, aquillo era uma mãe +chorando seu filho morto e uma joven ferida que agonisava; para Ernesto +e Amparo, que tinham uma alma mais artistica, mais enthusiastica, +aquelle drama maternal, aquella cabeça sublime modelada, enlouquecida +pela dôr, era uma obra sem rival. Scopas, o _artista da verdade_, +apparecia ante os seus olhos como o gigante da esculptura. + +--Que bello grupo! + +--Sim, senhora D. Amparo, respondeu Ernesto. Para os que têem a arte em +alguma conta só para vêr esse grupo vale a pena vir a Florença, ainda +que das regiões mais afastadas do universo. Essa scena é tão +sublime, tão dramatica, que os exigentes criticos de Athenas inclinaram +a cabeça com admiração, assombrados de tão grande obra. Na figura da mãe +está toda a alma de Scopas. + +D. Ventura, que não compartilhava do enthusiasmo do pintor nem de +Amparo, um pouco enfadado com tantas exclamações, nas quaes não podia +tomar parte por se julgar profano no assumpto, disse, instigado pela +curiosidade: + +--Mas o que representa esse grupo que tanto admiram? + +--Scopas foi um artista pagão. No seu tempo estava em moda a Mythologia, +e os homens adoravam as deusas e os deuses do Olympo, apezar dos seus +defeitos e fraquezas, disse Ernesto. Pois bem, Niobe era filha de +Tantalo e esposa de Anfior, rei de Tebas, tão presumida da sua +fecundidade, que se queixou amargamente aos deuses vendo que no Olympo +se dava sensivel preferencia sobre ella á deusa Latona, filha de Saturno +e de Febe, mãe de Apollo e Diana, e esposa, segundo se assegura, de +Jupiter. Os deuses irritaram-se da soberba d'aquella pobre mortal que se +atrevia a refutal-o e combinaram um terrivel castigo. Appollo e Diana +feriram com as suas flechas os filhos de Niobe; Jupiter converteu em +pedras os subditos da orgulhosa rainha de Thebas, que queria ser mais do +que uma deusa. Durante nove dias, os filhos de Niobe permaneceram no +solo cobertos de sangue; a agonia foi grande, terrivel, tragica, até ao +grau mais sublime; Niobe, louca de dôr e de amargura, derramando um mar +de lagrimas, arrancando os cabellos de desespero, pedia soccorro com +gritos d'alma, mas os seus vassallos permaneceram immoveis e +indiferentes. Por fim ao decimo dia Jupiter compadeceu-se d'aquella mãe +e julgando-a já sufficientemente castigada, tornou á vida os thebanos, +permittiu que tomassem algum alimento, mandou enterrar os filhos, e +convertendo Niobe em uma rocha, collocou-a no cume d'um solitario monte, +onde chora eternamente a perda dos queridos fructos das suas entranhas, +sendo um monumento de vergonha dos vingativos deuses do Olympo. + +Quando Ernesto acabou o conto mythologico D. Ventura, movendo a cabeça +em signal de duvida, disse: + +--Mas tudo isso é uma fabula. + +--Que deu bastante assumpto, respondeu o pintor, para que Scopas, +deixasse essa sublime e inimitavel esculptura, que é uma verdade +admirada por todas as nações; grupo sublime do qual nos permittirá que +tiremos um rapido _croquis_. + +E Ernesto começou a copiar a obra prima do celebre filho de Paros. + +D. Ventura encolheu os hombros, e emquanto Amparo e Ernesto desenhavam a +Niobe, entreteve-se a vêr os bustos antigos, as estatuas egypcias, os +sarcophagos e o retrato de Bruto feito por Miguel-Angelo. + +O rico commerciante passava com ligeireza por todas aquellas obras de +merito. Para elle não tinham a importancia que lhe attribuiam; e do +fundo do coração dizia que os artistas eram uns pobres loucos que viviam +de illusões, exaggerando tudo. + +Ernesto e Amparo entretanto tiravam um desenho do grupo: e tão embebidos +estavam no seu trabalho que não repararam que um rapaz elegantemente +vestido, de correctas feições e maneiras distinctas, se deteve a poucos +passos d'elles, e tomando das mãos de um creado que o seguiu o _carnet_ +de desenhos, começou a tirar uma copia da celebre esculptura de Scopas. + +Chamava-se Fernando de Villar, Conde de Loreto. + +Quando Amparo desviou os olhos do papel onde desenhava viu o conde, e +este cumprimentou-a com um ligeiro movimento de cabeça. Ernesto +cumprimentou-o mas com uma certa frieza que demonstrava o desgosto que +lhe causava a presença d'aquelle homem. + +Ao sair da sala de Niobe, D. Ventura disse: + +--Viram o conde de Loreto? + +--Era o joven que desenhava proximo de nós? perguntou Amparo. + +--Sim. Occupa o andar por cima de nós. + +E deixando a conversação continuaram visitando o palacio. + +O rico museu dos Médicis, contem dezenove galerias. + +Não é, pois, nosso intento percorrer minuciosamente estes immensos +arsenaes da arte, detendo-nos ante cada obra-prima que se apresenta aos +avidos olhos do viajante enthusiasta. + +Os nossos amigos dedicaram os dias a vêr os museus, as bibliothecas e as +egrejas. Para as noites ou assistiriam aos espectaculos, ou passeariam +nos jardins, aspirando os perfumes. + +A segunda noite da sua estada em Florença, Amparo passeava no jardim com +Ernesto, quando lhe chegaram aos ouvidos as melodiosas notas de um orgão +expressivo, tocado com tanto gôsto como mestria. Detiveram-se e ouviram +com a religiosidade dos amantes de musica. + +No dia seguinte Amparo perguntou ao senhor Rosales quem tocava o orgão. + +--O senhor conde de Loreto. É um grande musico. + +Desde então Amparo abriu algumas noites a janella para ouvir o orgão + +Um dia D. Ventura deteve-se deante da celebre mula negra do palacio Pitti. + +--Isto será um capricho de algum celebre esculptor? perguntou. + +--Isto é a vergonha de um nobre tão ingrato como parvo, respondeu Ernesto. + +--Temos outra historia como a da Niobe? + +--Não, esta é historica e vergonhosa para o auctor. Luc Pitti foi um +homem cuja riqueza e liberdades lhe tinham grangeado a estima dos seus +concidadãos e a aura da popularidade. Pitti quiz luctar em magnificencia +com Cosme de Médicis, e começou a construir um palacio, que é este em +que nos achamos; mas bem depressa se viu arruinado, e a obra teve que +suspender-se. O povo sempre generoso e agradecido com os que d'elle +se recordavam e os Médicis, protectores da arte, vieram em ajuda do +soberbo Pitti, publicou-se um decreto concedendo o perdão a todos os +criminosos e malfeitores que viessem trabalhar no palacio de Luc. O povo +correu em tropel a trabalhar nas obras: todos os condemnados de Italia +vieram tambem. O palacio acabou-se com o suor dos pobres; mas Pitti tão +nescio como ingrato, fez construir essa mula gravando-lhe no pedestal um +distico latino para sua eterna vergonha, pois prova-nos a sua +inqualificavel ingratidão, porque a mula representa o povo e o distico +diz: «_Esta azemola trabalhou e conduziu tudo; pedras, marmores, +madeiras e columnas._» + +Outra tarde Ernesto conduziu os seus amigos á egreja de São Giovanni, +fazendo-lhes admirar os quadros de Andrea del Sarto, tão miseravelmente +retribuido pelos frades, e ante a inimitavel _Virgem do Sacco_, por cuja +obra, que admira o orbe, pagaram-lhe com um sacco de trigo os irmãos +servitas da Annunciada, abusando da pobreza do artista, que se vingou, +pondo o mundo por testemunha da sua humilhação dando á sua obra o nome +de _Virgem do Sacco_. + +Visitaram tambem os sepulchros dos poetas e dos grandes artistas. Junto +ao de Dante Alighieri, onde chora a poesia e medita a estatua de +Florença, Amparo e Ernesto recordaram Beatriz e os seus interessantes +amores. + +Assim se passavam os dias, crescendo nas almas dos dois jovens esse +preludio do amor que se chama sympathia. + +Mas deixemos a luz d'esse esplendoroso sol de Floreça, para gosar dos +poeticos raios da lua. A noite tem tambem os seus attractivos. + + + + +CAPITULO VI + +Um beijo + + +Os nossos viajantes foram varias vezes aos theatros mais importantes de +Florença; ao de _Pergola_ que comporta duas mil e quinhentas pessoas, +que tem cinco ordens e cento e dez camarotes, ao de _Los Intrepidos_ e +ao de _Alfieri_. + +O tempo passava-se sem se sentir. + +D. Ventura disse uma manhã: + +--É preciso pensar na nossa volta para Hespanha, e contando que sempre +nos demoraremos quinze dias em Paris, não temos muito tempo para +permanecer em Florença. + +Isto foi um grito de alarme para Ernesto. Era tão feliz ao lado de Amparo! + +Os vinte cinco dias passados em Florença tiveram para elle a duração de +um minuto. Milhares de vezes durante esse periodo esteve a ponto de lhe +assomar aos labios o segredo que se lhe occultava no coração. + +O receio detinha-o. Amava Amparo com tão firme, tão pura paixão, que o +medo de um desengano lhe emmudecia a bôcca. + +Uma tarde D. Ventura sahiu para receber uma lettra. Amparo, sentada +proximo da janella, entretinha-se em colleccionar e guardar um grande +numero de desenhos, feitos pelo seu companheiro, das bellezas artisticas +que juntos tinham admirado. + +Ernesto entrou no gabinete. Amparo extendeu-lhe a mão sorrindo-se: + +--Bem vê, senhor Ernesto, que como a nossa partida se approxima, +occupo-me em colleccionar convenientemente estes preciosos desenhos, que +conservarei toda a minha vida, pois encerram a historia d'esta +viagem encantadora, viagem que, como todas as cousas terrestres, tem que +acabar em breve. + +Ernesto julgou ouvir sair um debil suspiro dos labios de Amparo. O seu +coração bateu com violencia, fez-se pallido e como receasse que as +forças o abandonassem, sentou-se n'uma cadeira ao lado da joven. + +--Para que a vi em Roma?! + +Esta exclamação que se lhe escapou do coração fez estremecer Amparo; mas +serenando immediatamente disse: + +--Tem pena que a casualidade nos tivesse feito amigos? + +Ernesto deixou cair a cabeça sobre o peito. A sympathica physionomia do +pintor tinha n'aquelle momento a expressão da mais profunda tristeza. + +Amparo compadeceu-se d'aquelle amante respeitoso que se não atrevia a +declarar-lhe o seu amor. + +A compaixão, essa bella e delicada qualidade da alma da mulher, +apoderou-se do coração da joven, e com uma doçura infinita, perguntou: + +--Mas, meu Deus. O que tem, Ernesto? Nunca mais nos tornaremos a vêr? + +Ernesto, que sentia penetrar no fundo do seu coração a doce voz de +Amparo, levantou a cabeça, fixou n'ella um amoroso olhar, e disse: + +--Irei a Madrid antes do fim de setembro; mas durante esses tres mezes +que faltam, a minha alma viverá em eterna solidão, rodeada de triste +melancholia porque vae partir, e eu amo-a como um louco. + +Amparo córou. As suas formosas faces cobriram-se d'esse encantador +carmim que tão bem assenta ás jovens e que tanto arrebatam e enlouquecem +os homens. + +--Sim, para que occultar-lh'o por mais tempo? continuou Ernesto. Deve +tel-o comprehendido. Se os meus labios ainda lh'o não disseram, os meus +olhos têem-lh'o confessado infinitas vezes. Quando se ama pela primeira +vez, com a vehemencia filha de um amor tão firme como verdadeiro, é +trabalho em vão dissimulal-o. Os olhos revelam o sentimento da alma e +atraiçoam-nos. Não é verdade, Amparo, que já tinha adivinhado que eu +desde Roma a amava com toda a minha alma? Oh! isto certamente não era +segredo para si. + +Amparo suspirou. Os seus olhos bellos, cheios de melancholica expressão, +fixaram-se com certo receio no joven, e com voz tremula e doce, respondeu: + +--Sim, Ernesto, adivinhei-o e, não obstante, fui a causadora d'esta +viagem. Se em Roma nos tivessemos separado, talvez que a estas horas já +não pensasse em mim. + +--Não pensar em si! Isso para mim é tão impossivel como seria a Tasso +não pensar em Leonor, a Raphael esquecer a Fornarina, cujo retrato +contemplámos os dois de mãos dadas em Roma, e cuja copia admirámos +tambem em Florença. Para certos homens é um passa-tempo, uma nuvem de +verão carregada de mais ou menos electricidade, mas que passa e que +rapidamente desapparece; para outros, o amor é a vida, é a luz, é o ar +que dá vida, força á imaginação, alegria á alma, porque o amor é para +elle a unica luz que lhe embelleza tudo; tirando-lhe esse amor, ficam +rodeados das mais profundas trevas e morrem de tristeza. + +Ernesto ia continuar quando se ouviu a voz de D. Ventura, que falava na +sala anterior com o senhor Rosales. + +--Por Deus, Ernesto, disse Amparo com voz supplicante, que meu pae não +suspeite nada! + +--Esteja descançada, Amparo. Não receie que a importune; para amar não é +preciso ser correspondido. Esta noite estarei á meia-noite no +caramanchão do jardim. Espero-a até que amanheça: se vier, a bella flôr +da esperança renascerá na minha alma, perfumando a minha existencia, se +não vier, ámanhã, com qualquer pretexto, partirei para Roma e não nos +tornaremos a vêr. + +Amparo guardou silencio. Ernesto poz-se a arranjar os desenhos, +procurando dissimular a sua commoção. + +Quando entraram Rosales e D. Ventura, os dois jovens occupados com os +desenhos, não inspiraram a menor suspeita ao honrado commerciante. + +--Fazem muito bem em dispor tudo, disse D. Ventura. Entre quatro ou +cinco dias tomaremos o caminho de França. + +--Com que então decididamente partimos, papá? perguntou Amparo. + +--Filha, ha cêrca de tres mezes que sahimos da nossa casa, é preciso +voltarmos a ella. + +--Em verdade, senhor D. Ventura, que esta viagem tem um tanto de +traiçoeira, respondeu Ernesto esforçando por rir-se. Emfim, brevemente +nos veremos em Madrid. + +--Diga que é a melhor terra do mundo. + +--Assim a reputo. + +--Creio que hoje não temos nada que fazer, proseguiu D. Ventura. + +--Esta noite, se quizerem, iremos ao theatro. Estreia-se uma opera em +Pergala. + +--Não, estou muito cançado, e esta noite quero-me deitar cedo; mas se +quizer não se prenda por nossa causa. + +--Convem-me ficar em casa. Temos que aperfeiçoar alguns desenhos, +tirados tanto á pressa, que apenas são quatro traços. Tambem fico em casa. + +--Ah! esquecia-me dizer-te que estive falando com o visinho do primeiro +andar. + +--Com o conde de Loreto? + +--Sim. + +--Dizem que é um sujeito que deu muitos desgostos á mãe... disse Amparo. + +--Em Madrid está sempre em ordem do dia a mexeriquice: O conde de Loreto +é um rapaz como muitos outros, que se divertem quanto podem, porque teve +a sorte de herdar dos paes uma grande fortuna. Imagina que esse rapaz +tem agora 28 annos, possue uma fortuna de quinze milhões. Demais, dizem +que é muito instruido. O nosso hospedeiro não se cança de o gabar. + +--É um bom hospede, disse Amparo, sorrindo-se. + +Ernesto não tomava parte na conversa: desagradava-lhe ouvir elogios do +conde. + +Mas deixemos correr as horas, e com a rapidez do pensamento +transportemo-nos ao jardim da casa que occupavam os nossos conhecidos. + +Os relogios de Florença acabam de dar as onze e tres quartos, quando +Ernesto saltou da janella para o jardim dirigindo-se para o caramanchão, +coberto de madresilva, lupulo e hera. + +Dentro do caramanchão haviam quatro bancos e uma mesa. Ernesto sentou-se +n'um disposto a esperar toda a noite como tinha dito a Amparo. + +A lua estava em quarto minguante, o céu limpido e de um azul escuro +carregado onde as estrellas brilham de uma maneira extraordinaria. + +A brisa nocturna roubava a essencia perfumada das flôres, e, sempre +prodiga, espargia pelo ambiente como se tivesse envergonhado d'aquella +usurpação. + +N'um relogio de torre soou a meia-noite. + +Ernesto levantou a cabeça, poz-se de pé e foi pôr-se em uma das entradas +do caramanchão. O coração dizia-lhe que Amparo vinha. + +A noite é em todos os paizes a protectora carinhosa dos namorados, +porque o amor, vulgarmente timido á luz do sol, cobra valor e energia +antes esses tibios reflexos que a lua envia do céu. + +Ernesto, de pé junto da entrada do caramanchão, com uma das mãos sobre o +coração e a outra languidamente caída, dirigia olhares cheios de +inquietação para o silencioso edificio d'onde devia vir a sua +felicidade, a sua dita, o anjo dos seus sonhos. + +Passou-se um quarto de hora. Amparo não vinha, e os segundos passavam +com um vagar, com uma monotonia aborrecedora para Ernesto. + +Por fim os labios entreabriram-se-lhe, sem duvida para dar um grito de +prazer, mas conteve-se. Vira desenhar-se entre as sombras das arvores a +encantadora silhueta de um corpo para elle conhecido, e em seguida +uns passos se ouviram na areia das ruas que conduziam ao caramanchão, e +o ligeiro _frou-frou_ de um vestido que se approximava. + +Ernesto sahiu ao encontro de Amparo, porque era ella; pegou-lhe n'uma +mão e conduziu-a até ao caramanchão. + +A joven tremia; estava nervosa e pallida. + +Ernesto sentou-a n'um dos bancos procurando tranquilisal-a. + +--Obrigado, Amparo, obrigado por tanta bondade. Tranquilise-se, os +homens honrados que amam como eu, sabem respeitar o objecto do seu amor. + +--Ernesto, respondeu a joven, commetti uma imprudencia. Nunca devia ter +vindo. + +--Tão pouca confiança lhe inspiro? + +--Sim, muita, meu amigo, muita; de contrario não teria vindo. Mas sou +franca, não pude resistir, porque as ultimas palavras que me disse esta +tarde pareciam recriminar-me. Bem vê: aqui estou, apezar de tudo. Tive +um susto terrivel. Para vir ao jardim era preciso passar pelo quarto de +meu pae; receei despertal-o. E sabe o que fiz? Pois bem, vou-lhe dizer: +saltei pela janella. Nem eu mesmo posso explicar como tive coragem para +tanto: tratava-se de me despedir de um amigo bom e leal, e não tive +animo para faltar. + +Ernesto tinha entre as suas as mãos de Amparo, que apertava docemente, +escutando ao mesmo tempo aquella voz encantadora que tão suavemente lhe +vibrava no coração. + +Nunca experimentára um prazer tão completo, uma felicidade tão ineffavel. + +O perfume das flôres, o aroma da madresilva que se espalhava n'aquelle +recinto; a luz tibia da lua, que penetrava no caramanchão pelos +intervallos das folhas; aquella mulher, bella como o mais perfeito e +encantador sonho da sua alma de artista, tudo contribuia para que +Ernesto se julgasse arrebatado da terra pelos anjos e transportado a +esse paraizo de amor que tanto embriaga as pobres creaturas. + +--Ha momentos de felicidade, exclamou Ernesto, que nunca deviam acabar. +Se ao homem fosse dado escolher o momento da sua morte sem passar por +suicida, eu escolheria este. + +--Está louco, Ernesto? + +--Quem sabe! Talvez. O amor não é outra cousa senão uma loucura sublime +que conduziu Raphael aos pés de uma moleira, Tasso a uma prisão e Ovidio +a uma masmorra. A historia conta-nos tantas loucuras de amor, que seriam +necessarios muitos volumes para a descrever. Mas, feliz o que ama e é +correspondido! Ditoso o que ao dar metade da sua alma, recebe em troca +outra metade que lhe envia um peito agradecido em mutua correspondencia. + +Amparo suspirou em silencio. Ernesto, julgando que esse suspiro era uma +confissão, levou aos labios a mão da donzella, imprimindo n'ella um beijo. + +Amparo estremeceu sem retirar a mão. + +Esta condescendencia animou o pintor. + +--Vamo-nos separar, Amparo; não nos veremos durante tres mezes; +necessito ouvir antes uma palavra que inunde de felicidade o meu peito, +que deposite o perfume da esperança em meu coração. Tambem me ama? + +--Ernesto, Ernesto, tudo isto me parece uma loucura, respondeu +debilmente Amparo. + +--Não, não é essa a resposta que desejo, é outra, meu anjo. Ama-me, sim +ou não? + +--Pois bem, sim. Ha muito que o devia saber; desde a noite do Colyseu de +Roma. + +Ernesto não poude conter um grito de immensa felicidade, e enlaçando com +o braço a cintura da donzella exclamou: + +--Juro pelas cinzas de minha mãe amar-te emquanto viva, e conquistar um +nome tão glorioso que te sintas orgulhosa chamando-te minha. + +Este juramento, esta exclamação, brotaram de uma alma de artista, cheia +de fé, de enthusiasmo, de amor. + +Amparo assim o comprehendeu, e, agradecida por tão grande paixão, +achava-se n'um d'esses momentos de fraqueza em que a mulher não tem +forças para resistir, momentos perigosos, dos quaes só se aproveita o +homem para satisfazer um desejo, causando a infelicidade d'aquella a +quem jura um amor eterno e por quem n'esse instante faz os maiores +sacrificios. + +Mas Amparo rapidamente serenou; conheceu que era uma imprudencia +permanecer á beira de tão grande precipicio, e ainda que Ernesto lhe +inspirasse absoluta confiança, como elle mesmo acabava de dizer, amor +não é outra cousa senão uma loucura sublime; por isso poz-se de pé e disse: + +--Separemo-nos, Ernesto, estou desassocegada e por enquanto convêm que o +nosso amor seja um segredo. + +--Já? disse o pintor, tornando a cingil-a pela cintura. Pensa, querida, +que em poucos dias nos vamos separar. + +--Ámanhã nos tornaremos a vêr aqui, se eu puder vir; mas hoje... hoje +não devo ficar mais tempo. + +--Pois bem, sim, separemo-nos, não quero que estejas inquieta; sou +demasiado feliz para te desgostar; mas se te inspiro confiança, se +queres que seja esta a noite mais bella da minha vida, permitte-me que +selle com um beijo a mutua promessa que acabamos de fazer. + +--Meu Deus, Ernesto, por compaixão! Ah! Para que vim? + +O pintor estreitou docemente o desfallecido corpo de Amparo de encontro +ao seu. Aquellas duas cabeças jovens, apaixonadas, uniram-se; aquellas +duas boccas tocaram-se e o doce som de dois beijos confundidos n'um +fugiu nas azas da brisa nocturna. + +Pobre Ernesto! Elle tinha dado toda a sua alma n'aquelle beijo, emquanto +que Amparo só lhe tinha feito uma esmola como paga de agradecimento que +a sua deferencia para com ella inspirava. + +Amparo desprendeu-se dos braços de Ernesto, sahindo rapidamente do +caramanchão. + +Ernesto deixou-se cahir n'um dos bancos, murmurando em voz baixa: + +--Meu Deus! Esta felicidade que sinto é demasiadamente grande para que +seja duradoura! + + + + +CAPITULO VII + +Separação + + +No dia seguinte quando Ernesto appareceu no quarto de D. Ventura, este +disse-lhe: + +--Que pallido que está? Que é isso? Não se sente bem? São más as aguas +de Florença? + +--Pallido? respondeu Ernesto. Estou como sempre, estou bom. + +--Não, não, está com muito má côr. Não achas, Amparo? + +--Acho-o na mesma, papá, respondeu Amparo de um modo natural. + +--Seja como fôr, disse Ernesto sorrindo-se, não pensemos n'isso e +tratemos de aproveitar o tempo que nos resta. + +D. Ventura, que não tinha vontade propria, pegou no Guia, Ernesto e +Amparo nos seus _carnets_ de desenho e sahiram de casa com a incançavel +curiosidade dos viajantes. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +N'aquella noite foram ao theatro de _Alfiere_, onde se representava _O +pae de familia_, do celebre poeta cómico Carlos Goldoni, a quem chamavam +o _Molière italiano_. + +Ao começar o primeiro acto abriu-se o camarote fronteiro ao dos +nossos amigos e entrou um joven vestido de rigoroso luto. + +--Olhem, disse D. Ventura. É o nosso visinho do primeiro andar, o conde +de Loreto. + +Amparo dirigiu o olhar machinalmente até ao camarote. + +Ernesto, como sempre, ao ouvir pronunciar aquelle nome sentiu uma vaga +inquietação. + +O conde de Loreto teria vinte e oito annos. Era alto; não podiam vêr-se +com facilidade as suas feições, mas de longe parecia muito pallido, +elegante e sympathico. Era um d'esses typos distinctos que fazem com que +se fixe n'elles a attenção. Como o panno acabára de levantar, o conde +sentou-se. Durante o acto esteve ouvindo com grande attenção. Ao acabar +sahiu do camarote para não tornar. + +A mais de metade do terceiro acto, D. Ventura que parecia gosar falando +do seu visinho, disse: + +--Que homem tão extraordinario! + +--Quem? perguntou a filha. + +--O conde de Loreto. Durante o primeiro acto, nem pestanejou, ouvindo +com attenção os versos de Goldoni, e durante o segundo e terceiro não +tornou a entrar, mostrando a indifferença irritante dos nossos elegantes +de Madrid em noite de estreia. + +Amparo nada respondeu. Ernesto guardou silencio. + +Depois da comedia representava-se uma d'essas farças em um acto que +tanto agrada aos italianos em que toma parte a figura de Polichinello; +farças vulgarmente improvisadas pelos actores que as representam. + +Como D. Ventura era um bom hespanhol, não sabia passar sem o cigarro, e +sahiu do camarote para satisfazer o innocente vicio. + +Ernesto e Amparo ficaram sós. + +Durante alguns segundos ficaram silenciosos; ella parecia preoccupada, +elle triste. + +Por fim Ernesto rompeu o silencio. + +--Que tem, Amparo? Noto nos seus formosos olhos uma melancholia que me +entristece. + +--Penso que em breve nos vamos separar. + +--Ah! sim! É verdade! Mas esta noite... + +--Não, Ernesto, não; esta noite não vou ao jardim, receio que meu pae +saiba. + +--Pois bem, não quero ser exigente; não sáias, mas ao menos abre-me a +janella para que possa vêr o luar sem testemunhas importunas; que possa +dizer-te no silencio da noite o que sente o meu coração. + +--Ámanhã, Ernesto, ámanhã, prometto-te abrir a janella para me despedir +de ti; hoje sinto-me mal; necessito descançar. + +--Mas é uma crueldade roubar-me uma noite quando tão poucas nos restam. + +Amparo fixou os seus olhos no pintor, e compadecida da triste e +apaixonada expressão de Ernesto, disse: + +--Bem, abrirei. + +Ernesto fez um movimento como para se apoderar de uma mão da Amparo, mas +esta conteve-o com o olhar, exclamando: + +--Que vae fazer? Que imprudencia! + +Ernesto conteve-se, e só então se recordou que se achava no theatro. + +Durante a farça, D. Ventura riu-se muito. Ao acabar dirigiram-se para casa. + +Á uma da madrugada, Ernesto estava junto á janella do quarto de Amparo. +Chamou suavemente. A janella abriu-se. Amparo apagara a luz; assomou á +janella e começaram um d'esses dialogos, doces, apaixonados, cheios de +encantadoras trivialidades, que só têem valor aos ouvidos dos namorados. + +Quando eram tres horas. Amparo disse: + +--Separemo-nos já, Ernesto. + +--Bem, separemo-nos, mas dá-me outro beijo de despedida. + +Amparo inclinou a cabeça e como na noite anterior, duas boccas se +juntaram, e um beijo cheio de amorosa ternura interrompeu o silencio da +noite. + +Ernesto e Amparo, durante aquellas duas horas de amoroso colloquio, +fizeram mil promessas de amor e fidelidade. + +--Não me esqueças nunca, disse o pintor; pensa sempre em mim. + +Amparo tirou uma fita de seda com que prendia os cabellos e deu-a a +Ernesto. + +--Esta fita será a que une os nossos corações. Pega, conserva-a. + +Ernesto cobriu de beijos aquella fita, que jurou conservar toda a sua +vida como uma recordação de tão feliz noite. + +Quando o pintor entrou no seu quarto, pegou na penna e escreveu na fita: +«_Florença, 2 de Julho de 186..._». + +Depois deitou-se, e não demorou muito em gosar um d'esses sonhos de que +não quizera despertar. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +Dois dias depois, Amparo, seu pae e Ernesto entravam na sala de espera +da estação. O comboio estava preparado para partir; faltavam alguns +minutos para se pôr em andamento. + +O pintor esforçava-se por se mostrar satisfeito, mas uma enorme tristeza +lhe opprimia o coração. + +Nunca Amparo lhe parecera tão bella como n'aquella occasião, mas era +preciso resignar-se á separação. + +Os olhares furtivos que ella lhe dirigia pareciam dizer-lhe: + +--Confia e espera. Em breve nos tornaremos a juntar. + +Rapidamente D. Ventura pôz a sua mala de mão sobre um banco da estação e +disse: + +--Oh! Aquelle não é o conde de Loreto? + +Ernesto e Amparo voltaram-se. + +Effectivamente, o conde estava sentado a um canto com um livro na mão, e +falando em voz baixa com um velho de cabellos brancos, gravata branca e +sobrecasaca preta que o ouvia em respeitosa attitude. + +O velho era um d'esses typos proprios para mordomo de casa rica; de +parecer carregado, severo e completamente barbeado. + +O conde de Loreto parecia dar-lhe algumas ordens; o velho cumprimentou e +sahiu do salão e foi para o local destinado aos despachos na estação. + +Ernesto poude vêr então perfeitamente aquelle rapaz, que parecia +seguil-o como uma sombra. + +Era, em verdade, bello e distincto, notando-se-lhe na pallida e +sympathica physionomia uma profunda melancholia que interessava. + +A julgar pelo traje, o conde ia emprehender alguma viagem. + +--Irá para Paris, tambem? pensou Ernesto, sentindo-se inquieto, mau +grado seu, ante o conde de Loreto. + +A sineta deu o signal. Os passageiros dirigiram-se para a gare afim de +escolherem logares. + +D. Ventura, que caminhava á frente, deteve-se junto de um compartimento +de primeira classe, e disse: + +--Aqui. + +E subiu adeante para dar a mão a Amparo. + +N'um canto do compartimento e sobre um banco estava uma mala de viagem; +no da frente o velho que pouco antes estivera falando com o conde de +Loreto. + +Era por acaso ou propositadamente a escolha de D. Ventura? Quem sabe? +Talvez que o honrado commerciante, vendo n'um compartimento de primeira +classe o mordomo do conde de Loreto, escolhesse aquella carruagem com o +firme proposito de viajar com um compatriota de sangue azul, ou talvez +não reparasse senão depois no silencioso e sympathico ancião. + +Mas a escolha causou um profundo desgosto a Ernesto, que pela primeira +vez sentiu no peito a terrivel punhalada do ciume. + +O pintor apertou a mão do commerciante e depois a de Amparo, +enviando-lhe toda a sua alma n'um olhar. + +--Até setembro, lhe disse. + +N'aquelle momento ouviu-se uma voz varonil, mas doce e respeitosa, que +disse em castelhano: + +--Dá-me licença, cavalheiro? + +Ernesto deixou-o passar. O conde de Loreto cumprimentou e subiu para a +carruagem, indo sentar-se em frente do seu mordomo. + +Apitou a locomotiva, e começou o comboio a mover-se e a sahir +pausadamente da estação. + +Amparo e D. Ventura assomaram á janella e acenaram com um lenço ao seu +bom amigo. + +Um momento depois, o comboio tinha desapparecido; mas Ernesto como se +estivesse pregado ao chão permanecia immovel e preoccupado. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +N'aquella noite, Ernesto partiu para Roma, levando a duvida na alma e o +ciume no coração. + +Pobre sonhador! Infeliz artista, que tinha trocado por um beijo, a +felicidade, a paz do seu espirito e todos os seus sonhos de gloria! + + + + +CAPITULO VIII + +Caminho de Hespanha + + +Ernesto encerrou-se no _atelier_. Era preciso ganhar o tempo perdido; +era preciso acabar o seu quadro quanto antes e regressar a Hespanha e +sobretudo era indispensavel fazer uma obra-prima que cobrisse o auctor +de gloria, que fosse falada em todo o mundo, e que Amparo se sentisse +orgulhosa. Mas ai! o pobre artista tinha a imaginação demasiadamente +occupada, a alma pouco socegada para conseguir o seu fim. + +Comtudo, fez esforços heroicos, trabalhava emquanto tinha luz, e +durante as noites, fechado no quarto, passava longas horas, escrevendo +as impressões da sua alma no meio da soledade em que vivia. + +--Ámanhã, quando nos tornarmos a reunir, pensava elle, entregar-lhe-hei +estas folhas de papel em que diariamente escrevo os meus pensamentos, e +ella verá que a não esqueci nem um só instante, que a continuo amando +como nunca. + +Ernesto pintára um pequeno quadro, representando a scena do caramanchão, +no momento de dar e receber o beijo de Amparo. Os dois jovens, docemente +abraçados, estavam illuminados pela debil luz da lua. + +O grupo era encantador; respirava amor, ternura, poesia. + +Era aquelle quadro uma grata recordação que a sua alma sensivel +transportára á téla. + +Em volta do quadro collocou a fita que lhe dera Amparo. + +Durante a noite, Ernesto passava ás vezes um quarto de hora contemplando +o pequeno quadro, pendurado n'uma parede do seu quarto. + +Depois pegava na penna e escrevia. Isto consolava-o. + +O pintor acabou por fim o seu quadro e convidou para almoçar alguns +amigos para que vissem a sua obra e dessem a sua opinião. + +A opinião geral foi de que ganharia o primeiro premio. + +Ernesto meneou a cabeça em signal de duvida. + +--Parece-me que podia fazer mais do que o que fiz, e duvido muito que o +meu quadro tenha o merito que suppõem. + +Os seus companheiros trataram de convencêl-o de que o seu desalento, a +sua falta de confiança eram infundados. + +No dia seguinte, Ernesto escreveu uma carta ao judeu Daniel. + +O negociante de quadros, como sempre que se tratava de fazer algum +negocio, apresentou-se com pontualidade. + +--Vou para Hespanha, disse Ernesto. + +--O que quer dizer que precisa de dinheiro. + +--Sim, vou expôr o meu quadro; por conseguinte escolha o que gostar. + +Daniel passou revista aos quadros com a sua tranquillidade costumada, e +escolheu a maior parte das pequenas telas que o pintor possuia. + +Depois de ajustar e ao entregar o dinheiro, disse Daniel: + +--São os artistas tão pouco agarrados ao dinheiro!... E comtudo, o +dinheiro é a alma da vida. Com que então vae para Madrid? + +--Sim, senhor. Ámanhã saio de Roma. + +--No museu de Madrid ha quadros de muito merito, como tambem em varias +egrejas; e se o senhor fosse um homem de palavra... + +Ernesto sorriu-se. + +--Se eu não soubesse o quanto me aprecia, respondeu, quasi teria direito +a offender-me com as suas palavras. + +O senhor Daniel que nunca abandonava a caixa de rapé, tomou uma pitada +com gravidade, e disse: + +--Em Madrid existem preciosos originaes dos melhores auctores. Temos ahi +sobretudo os da escola hespanhola, e se quizesse tirar-me algumas copias +feitas com consciencia, não teria inconveniente em ficar com ellas. + +--Isso depende do trabalho que tiver na minha patria. + +--Será pouco. Em Hespanha não ha costume de proteger as artes. A +politica, os touros e a bolsa absorvem a attenção dos hespanhoes. As +artes e a agricultura encontram-se em completo abandono. Para ser +artista em Hespanha, precisa ter a força de vontade de Aristoteles, a +paciencia de Job, e o estomago privilegiado dos arabes; e para ser +agricultor a resignação de Santo Isidro, com a desvantagem de que no +tempo d'aquelle santo, os anjos desciam á terra e lavravam para que o +santo dormisse, e hoje os anjos não lavram. Mas, emfim, o senhor +pensará o que lhe convém e n'esse sentido me escreverá indicando-me +os tamanhos e o preço por que m'os vende. + +Ernesto comprehendendo que o judeu tinha razão, não o contradisse, +porque sabido é que sendo Hespanha um paiz agricola, não tem outra +protecção senão a da Providencia. Quando chove muito succede como no +Egypto, têem boa colheita. Quando chove pouco, os pobres lavradores +pagam o mesmo ao _protector_ governo que não se occupa d'elles e morrem +de fome; mas isso pouco importa, comtanto que se receba a contribuição, +porque n'essa desgraçada nação chegou a ser impossivel encontrar-se um +governo _bom_ e _barato_. + +Resumindo: Ernesto partiu de Roma, no dia seguinte, levando no quadro +uma esperança de gloria; no beijo que abrazara a sua alma uma esperança +de amor. + +Tres mezes tinham decorrido desde o dia em que se separou de Amparo. +Durante este tempo, nem uma só carta recebêra. + +Ernesto levava, sem saber porquê, a tristeza na alma. Ha presentimentos +que perseguem o homem com a tenacidade da sombra. O conde de Loreto fôra +para Ernesto, desde o primeiro dia, uma ave de mau agouro. + +Deixemol-o viajar até Hespanha, e encontremo-nos novamente com a formosa +Amparo. + +O coração da mulher é insondavel; não se póde definir, porque é vario e +caprichoso como a mesma natureza. Por isso Amparo, que indubitavelmente +sahiu de Florença enamorada do pintor, chegou a Paris pensando muito no +seu companheiro de viagem, o joven conde de Loreto. + +Vejamos o que succedeu. + + + + +CAPITULO IX + +De Florença a Paris + + +Fernando del Villar, conde de Loreto, depois de cumprimentar +respeitosamente com um movimento de cabeça os seus companheiros de +viagem, accomodou-se do melhor modo possivel no canto, e pôz-se a lêr. +Em frente d'elle, grave e immovel como _El banquero de Cera_, de Paulo +Féval, estava o velho mordomo. D. Ventura pensou que com uns +companheiros tão graves se iria aborrecer extraordinariamente, mas +restando-lhe a consolação de lêr até que se apresentasse melhor +occasião, tirou o _Guia_ que lhe offerecêra Ernesto. + +Amparo, alguma cousa preoccupada com a recente despedida do homem a quem +julgava amar, fechou languidamente os olhos e entregou-se a essa doce +vida das recordações em que o passado é o presente da imaginação. + +Durante a primeira hora tudo se passou da fórma por que acabamos de +descrever. Depois, como se prolongasse o silencio, Amparo, olhava +dissimuladamente o joven aristocrata que tão embebido estava na leitura. + +O conde de Loreto era um d'esses homens a quem as mulheres não podem +olhar impunemente, porque o seu rosto pallido e formoso, a triste +expressão do seu semblante, convida o bello sexo a fazer esses terriveis +commentarios que lhe são tão peculiares. + +Porque seria que sendo o conde de Loreto immensamente rico, estava tão +triste? Isto pensou Amparo. E vendo atravéz aquella melancholia +impropria da juventude, uma historia interessante, teve empenho em +conhecel-a. + +Desde aquelle momento a felicidade de Ernesto estava ameaçada da morte. + +D. Ventura, que tinha passado a maior parte da sua juventude atraz de um +balcão, com os olhos alegres, o sorriso nos labios, a lingua disposta a +entabolar conversação com os freguezes, aborrecia-se extraordinariamente +no meio d'aquelle silencio enfadonho e do ruido da trepidação que a +machina transmitte aos vagons. + +Não podendo supportar aquella situação por mais tempo, deixou o livro e +dispôz-se a falar com a filha, pensando que talvez assim conseguisse +interessar o conde na conversa. + +--Olha, Amparo, que delicioso panorama apresenta essa povoação collocada +assim na falda d'esse monte, exclamou Ventura. Oh! decididamente a +Italia é um paiz encantador. + +--Que povo é este? perguntou Amparo. + +--Diabo! É difficil de t'o dizer porque me esqueci de comprar o Guia dos +Caminhos de Ferro. + +O conde levantou a cabeça e assomando-a á portinhola, disse com voz +harmoniosa e clara. + +--Este povoado, chama-se, se me não engano, _Santa Maria della Spina_. + +Amparo cumprimentou com a cabeça, como dando os agradecimentos ao conde +pela sua deferencia. + +--Obrigado, senhor conde, disse D. Ventura, no tom mais amavel que lhe +foi possivel. + +O conde tirou um livro da sua mala de mão, e dando-o a D. Ventura, +continuou: + +--Possuo por casualidade dois Guias Geraes dos Caminhos de Ferro de +Italia e França. Se o senhor quer acceitar um... + +--Bem vês, Amparo; isto é o que se chama viajar com sorte. Em Roma +encontrámos o bom Ernesto, que foi para nós o melhor dos _cicerones_; +aqui o senhor conde de Loreto offerece-nos um _Guia_ que tirará pelo +caminho todas as duvidas. + +Fernando sorriu-se, e respondeu: + +--O favor é tão insignificante, que não merece a pena falar n'elle; +sobretudo, entre compatriotas e visinhos, pois creio que somos visinhos +ha um mez. + +--Sim, senhor, em casa de Rosales. + +--Tive o prazer de ouvir esta senhora tocar piano algumas noites; toca +admiravelmente. + +--E o senhor conde, segundo me disse minha filha, toca muito bem orgão. + +Amparo se pudesse teria tapado a bôcca a seu pae. Mas já dissémos que D. +Ventura tinha muita vontade de falar, e sobretudo fazer-se amigo do conde. + +--Ah! incommodei com o meu orgão algumas noites esta senhora? + +--Pelo contrario, pelo contrario, senhor conde; ouvimol-o com muito +prazer. Abriamos as janellas para o ouvir melhor, ajuntou D. Ventura. + +--O orgão, disse Amparo, tomando parte na conversa, receando sem duvida +que seu pae commettesse alguma imprudencia, é um dos instrumentos que, +quando bem tocado, expressa melhor o sentimento da musica. + +--Sim, minha senhora, quando seja bem tocado, accrescentou o conde, +deixando assomar aos labios um sorriso imperceptivel: mas, +desgraçadamente, não succede isso commigo; toco por curiosidade, e nada +mais. Apaixonado pela musica até ao exaggero dedico-lhe alguns momentos +d'ocio. Admiro os grandes mestres, mas em mim a musica, como em tantos +outros, não é mais do que um adorno, uma parte da educação. Toco, é +verdade, mas toco muito mal, o que é o peior. + +D. Ventura estava encantado com a singeleza e naturalidade com que se +expressava o conde. + +--Quizera, comtudo, disse o pae de Amparo, saber tanto como o senhor. + +--Saberia muito pouco, meu amigo; sobretudo, na Italia que estamos +atravessando, onde todos são musicos. + +--O senhor conde chamar-me-hia indiscreto se lhe fizesse uma pergunta? +disse D. Ventura. + +--Entre compatriotas que viajam juntos na mesma carruagem deve reinar a +maior franqueza. Póde perguntar o que quizer. + +--Vae directamente para Paris, ou pensa detêr-se em alguma cidade de +Italia? + +--Vou para Paris; já percorri tres vezes toda a Italia. + +--Então faremos a viagem juntos. + +--Pelo que me considero extremamente feliz. + +--Paris é o povo mais alegre da Europa. + +--E tem a vantagem de que os estrangeiros em Paris encontram-se quasi +tão bem como na sua patria. + +--O caracter parisiense é a reunião da alegria e da amabilidade; gostam +de ser amaveis, e esforçam-se para o conseguir. + +--Sempre que d'isso lhes resulte alguma vantagem, continuou o conde, mas +seja como fôr, passa-se admiravelmente uma temporada n'aquelles modernos +_boulevards_, onde o luxo reuniu todas as encantadoras loucuras. Oh! Só +para cear uma noite no café _Tortoni_, almoçar na _Maison Dorée_ e +passear uma tarde no _boulevard dos Italianos_ vale a pena fazer-se uma +viagem a Paris. + +--E vae estar muito tempo na capital de França? perguntou D. Ventura. + +--Tenho muito que fazer, disse Fernando, sorrindo-se; primeiro ouvir a +Patti na _Somnambula_, depois correr uma egua arabe nas proximas +corridas de cavallos. Quero ganhar o premio que offerece a Imperatriz, +que é uma rosa de brilhantes. + +Amparo, que ouvia com prazer a conversa, ainda que não tomasse parte +n'ella, ás ultimas palavras do conde, pensou que não seria pelo valor da +rosa de brilhantes que elle desejava ganhar o premio, mas para fazer com +elle uma offerta a alguma pessoa querida. + +Desde aquelle momento Fernando del Villar, conde de Loreto, era para +ella um homem que começava a espicaçar-lhe a curiosidade. + +--Ah! disse D. Ventura. Tem em Paris a egua que vae correr? + +--Tenho em Madrid os meus cavallos, mas mandei vir para Paris a minha +invencivel _Rabeca_. Creio que assistirão ás corridas. + +--Teremos muito gôsto desde que se effectuem dentro d'um mez, e ao mesmo +tempo uma grande alegria em que seja vencedor. + +Quando se começa uma viagem, durante os primeiros momentos, mais ou +menos prolongados, segundo o caracter dos viajantes, só reina o maior +silencio; cada um pensa quem será o companheiro da frente ou lado, mas +uma vez entabolada a conversa estabelece-se uma certa intimidade +agradavel que dura toda a viagem e ás vezes toda a vida. + +Durante a viagem dos nossos conhecidos, reinou a maior harmonia. Amparo +e o conde falavam de musica; o mordomo e D. Ventura, de numeros. O +honrado millionario estava satisfeito por ter encontrado tão bons +companheiros. + +Uma vez em Paris, como D. Ventura era um homem rico que viajava por +prazer e não tinha casa na moderna Babylonia, deixou ao conde de Loreto +a escolha do hotel onde deviam hospedar-se. + +Fernando optou pelo Hotel do Louvre, e installaram-se em dois quartos +contiguos no segundo andar com toda a commodidade que offerece aos +passageiros o citado estabelecimento. + +O conde quiz que se collocasse um orgão no quarto de Amparo, +offerecendo-se para lhe dar algumas lições. + +--Sou muito pouco habilidosa, disse Amparo, agradecendo-lhe com um olhar +aquella deferencia. + +--Ora, respondeu o conde. Para uma mestra de piano como Vossa +Excellencia nada mais facil que aprender orgão. Creia que em quinze dias +póde tocar perfeitamente. + +--O que me vae custar uns oito ou dez mil _reales_, disse D. Ventura, +porque terei de comprar um. + +--E nunca em melhor occasião do que agora que estamos em Paris, onde os +constructores mais afamados têem os seus armazens. Ámanhã +visitaremos alguns, com tres mil francos na carteira. + +--Vejo, que tanto o senhor conde como Amparo, conspiram contra a minha +bolsa. + +No dia seguinte compraram um orgão, precioso instrumento de doze +registos, incrustado em madreperola; uma verdadeira obra de arte que +custou a D. Ventura seis mil francos, e que foi escolhido pelo conde, e +o ex-commerciante não quiz deixar mal o joven aristocrata. + +Pagou D. Ventura, encarregando o fabricante de lh'o remetter para +Hespanha, e não se tornou mais a falar no assumpto. + +Todas as tardes Fernando dava lição de orgão a Amparo. Ao principio +estas lições foram curtas, depois prolongaram-se a duas horas. + +Quando cantava a Patti iam juntos ao theatro; sómente o conde ia para as +cadeiras e D. Ventura para um camarote, mas durante os intervallos o +conde visitava o millionario. + +Assim se passaram vinte dias. Amparo começava a pensar muito no conde e +pouco em Ernesto. + +Quando a mulher faz comparações, a derrota de um dos comparados é +infallivel. Vejamos como o conde de Loreto cahiu a fundo sobre o pintor. + +Tudo estava preparado para as corridas. + +A Imperatriz Eugenia, com toda a sua côrte, devia assistir. + +D. Ventura tinha conseguido a peso d'ouro, alugar uma luxuosa caleche. +Amparo mandára fazer uma elegantissima _toilette_. A festa promettia ser +das mais brilhantes. Toda a aristocracia de sangue e de dinheiro se +reunia n'aquellas corridas. Amparo desejava vivamente que Fernando +ganhasse o premio. D. Ventura, pela sua parte, dizia: + +--É uma questão de honra nacional. + +Ao meio dia appareceu Fernando: estava pallido, nervoso; no rosto tinha +marcados signaes de desgosto. + +--Succedeu uma grande desgraça, exclamou. + +--Morreu _Rabeca_? perguntou D. Ventura. + +--Não, respondeu, esforçando-se por se rir. + +--Mas o que é? disse Amparo. + +--O meu jockey que está doente e que não póde correr. + +--É verdade que é um contratempo. Mas não se encontrará outro? + +--Outro? exclamou o conde assombrado. E quem me responde pela sua +habilidade, pelos seus dotes, pela boa fé de um jockey alugado? Todos os +leões de Paris, todos os afficionados de equitação, que não são poucos, +que frequentam á noite a _Maison Dorée_ e á tarde o _boulevard dos +Italianos_ conhecem _Rabeca_ e têem grande interesse em que fique +vencida; e seriam capazes de comprar o jockey que n'ella corrresse, para +que a sopeasse e perdesse. Demais isso é sériamente grave para mim. Se +não corre a minha _Rabeca_ perco cinco ou seis mil francos que apostei a +noite passada com um _lord_ que traz tambem um dos seus cavallos para a +corrida de hoje. A aposta está feita com as seguintes condições: «Se por +qualquer casualidade um dos cavallos não puder correr dá-se por perdida +a aposta.» É preciso portanto que _Rabeca_ corra, e por isso venho +dizer-lhes que não os posso acompanhar, pois que sou eu quem a vae correr. + +--O senhor? disseram ao mesmo tempo pae e filha. + +--Sim, eu. Sei que é uma desvantagem para mim. O jockey do meu +adversario pesa escassamente tres arrobas: é um liliputiano, um homem em +miniatura, é o rei dos jockeys, emquanto eu péso muito mais. Mas não +quer dizer nada: a minha egua fará um esforço e vencerá. + +--Permitta-me que lhe diga, disse D. Ventura, que se expõe... + +--Isso é o menos. Quando chegar á terceira volta, saltarei já +affoitamente. Tenho confiança na egua. + +E o conde, depois de algumas respostas dadas aos argumentos que lhe +apresentavam os seus amigos, sahiu, despedindo-se d'elles. + +Como se póde calcular o interesse de Amparo cresceu uns setenta e cinco +por cento. + + + + +CAPITULO X + +A rosa de brilhantes + + +Uma hora depois, a caleche de D. Ventura estava parada quasi ao fim da +pista. + +D'aquelle ponto tinha a vantagem de vêr perfeitamente o cavallo que +chegasse em primeiro logar á meta e estar proximo do camarote imperial +onde o vencedor devia ir receber o premio. + +Amparo, de pé sobre as almofadas da carruagem, com a mão esquerda +appoiada no hombro do pae, percorria com o binoculo o pittoresco +panorama que a rodeava. + +Parecia-lhe impossivel que se pudesse reunir tanto luxo, tanta riqueza +n'uma cidade. + +Dizem os francezes que Paris é a capital do mundo civilizado, e em +verdade assim é. + +Quando a imperatriz Eugenia entrou no camarote, fez um signal com o +lenço para que começassem as corridas, e ouviu-se então o sonoro som dos +clarins. + +Amparo sentia palpitar o coração com violencia; deixou de olhar para o +camarote e viu na pista, no ponto por onde deviam entrar os +concorrentes, o conde de Loreto. + +N'aquelle momento daria tudo quanto lhe exigissem para conceder a +victoria ao seu companheiro de viagem. + +Pouco depois, ouviu-se o tropel que vinha do lado para onde se fixaram +todos os olhares, e o precipitado e forte galope de muitos cavallos +chegou aos ouvidos de Amparo como surdo rumor da tempestade que avança +com rapidez. + +Começaram por admirar os cavallos; de todos os lados se ouviam bravos e +gritos de enthusiasmo, misturados com exclamações de raiva. + +Quando um cavallo passava adeante de outro, ouvia-se um rugido de raiva +que exhalava o peito do vencido. + +Entretanto aquella quantidade de cavallos, deitando espuma pela bôcca, +fogo pelas narinas, avançava com uma velocidade vertiginosa até ao sitio +onde estava Amparo. + +Aquillo era um furacão de carne, empenhado pelo amor-proprio; parecia +que arrebatava tudo. + +Amparo tremia; estremecia, mau grado seu, procurando avidamente o conde +de Loreto entre aquelles bonets de variadas côres. + +Subitamente soltou um grito e fez com que D. Ventura, que contemplava +boquiaberto aquelle soberbo espectaculo, voltasse a cabeça. + +--Que é? perguntou elle. + +--Alli, alli! exclamou Amparo. Vem á frente e traz n'uma mão o bonet e +na outra o _stick_. + +--Oh! meu Deus! Que loucura! Póde cahir. + +N'aquelle momento o conde de Loreto passou pela frente da caleche de +Amparo com velocidade de um raio. Mas apesar d'isso, cumprimentou-a com +o bonet. + +Amparo levou a mão ao peito como para conter as palpitações do coração. + +Fernando levava pelo menos quarenta metros de avanço a todos os outros +concorrentes. + +Quando chegou á ultima valla, _Rabeca_ saltou com tanta facilidade como +se aquelle fosse o primeiro obstaculo. Um applauso geral resoou dedicado +ao cavalleiro e cavallo. + +O conde de Loreto ganhára a rosa de brilhantes e os cincoenta mil +francos, e não tardou que não estivesse rodeado de admiradores e curiosos. + +Fernando del Villar apertava a mão de alguns desconhecidos e +cumprimentava os espectadores. + +O _lord_ approximou-se montando um soberbo cavallo de pura raça arabe. + +--Ganhou, senhor conde, disse apertando-lhe a mão. Esta noite espero-o +para cear na _Maison Dorée_, não só para lhe pagar o que lhe devo, como +tambem para lhe propôr um negocio, ácêrca da sua preciosa egua. + +N'essa occasião approximou-se um dignitario da côrte a dizer-lhe que a +imperatriz Eugenia esperava o vencedor. + +O conde não esperou segundo convite: dirigiu a egua para o camarote +real. Grande quantidade de cavalleiros o acompanharam. + +Ao chegar, Fernando desmontou-se e foi introduzido no camarote pelo +fidalgo. + +--Disseram-me que era hespanhol, disse Eugenia em castelhano. + +--Nasci na Andaluzia, senhora, respondeu o conde inclinando-se +respeitosamente. + +--Ainda bem, somos compatriotas. Aqui tem o premio que ganhou. + +A imperatriz entregou-lhe um estojo de velludo. O conde ajoelhou-se para +o receber, beijou a mão e sahiu do camarote. + +Amparo não perdera o conde de vista nem um só momento. Quando viu que se +dirigia para a sua carruagem, sentiu uma commoção desconhecida, como +nunca tinha experimentado. + +Fernando foi até ella, sorrindo-se. + +--Bravo! bravo! exclamou D. Ventura, enthusiasmadissimo. Fazia o senhor +muito bem, caro conde, em ter toda a confiança na valente _Rabeca_. + +--É invencivel, disse elle. Tinha inteira segurança, de que, a não me +succeder uma desgraça, o triumpho era meu. + +E extendendo o braço, apresentou o estojo a Amparo, dizendo-lhe: + +--Senhora D. Amparo, como sei que pedia a Deus para que me concedesse a +victoria, como sei o interesse que tomou, ouso pedir-lhe que acceite +como uma recordação d'este dia o premio que me acaba de offerecer a +imperatriz dos francezes. + +Amparo pegou com mão trémula no estojo, e antes de ter tempo para +responder uma só palavra de agradecimento por aquella amabilidade, o +conde partiu a galope em direcção a Paris. + +D. Ventura estava louco de alegria. + +Amparo commovida, pallida, seguiu o conde com a vista. + +--É um cavalheiro, disse o commerciante. + +--Sim, papá; não se póde ser mais delicado. + +--Mas, vamos vêr isso que tens na mão. Parece que não estás em ti. + +E D. Ventura, notando que a filha corava, sorriu-se maliciosamente. + +Amparo abriu o estojo: tinha um broche de brilhantes. Não se podia +exigir mais gosto n'uma joia d'aquella natureza. + +--Em verdade, é um bonito premio, disse D. Ventura, fixando os olhos no +broche. + +Amparo guardou silencio. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +Sigamos o conde de Loreto, que, entregando a egua ao creado, tomou um +trem de praça que o conduziu ao hotel do Louvre. + +--Pódes dar-me os parabens, meu leal Francisco, disse o conde, abraçando +o velho mordomo. + +--Quer dizer que ganhou o primeiro premio! + +--Não só o primeiro premio como tambem a aposta que tinha feito com lord +Rutheney. + +--Que grande alegria me dá, senhor conde, disse Francisco sem perder um +só momento a sua peculiar gravidade. Temos gasto tanto dinheiro durante +a viagem! + +--Ahi vens tu com os teus malditos numeros. + +--Senhor, o interesse que tomo pela casa faz com que muitas vezes tenha +certas liberdades... + +--Vamos, Francisco, não comeces a attribuir a ti faltas que não +commetteste. Quando o meu pae morreu disse-me: «Nunca deixes Francisco; +viu-te nascer, estima-te com idolatria e é honrado e leal.» Desde +então ainda não tive de que pense que não é tão grande como devia ser, +em relação ao que gasto; mas que queres... quando estiver arruinado, +quando me vir como vulgarmente se diz com a corda na garganta, então +seguirei o teu conselho e casarei. E a proposito: Que tal te parece a +filha do nosso companheiro de viagem? + +--É extremamente formosa! + +--E nada mais? perguntou o conde, sorrindo-se. + +--E que tem doze milhões de dote. + +--O que te traz preoccupado. Emfim, até lá veremos. Quem sabe se terás +razão, aconselhando-me a que case! Mas, dá-me algum dinheiro; vou cear +com alguns amigos á _Maison Dorée_ e talvez se jogue. + +--Hontem dei ao senhor conde tres mil francos. + +--Sim, e hoje não tenho nem um centimo, + +Francisco exhalou um suspiro, abriu a gaveta e deu tres notas de mil +francos ao amo, dizendo: + +--O tal inglez não pagará esta noite? + +--É natural; mas não devo acceitar um convite com sentido no que me devem. + +Fernando calçou as luvas, pôz o chapéu, pegou n'uma delicada bengala de +canna da India, e sahiu. + +A _Maison Dorée_ é um dos taes estabelecimentos que só se encontram em +Paris. Ponto de reunião da elegante e louca mocidade, centro d'esses +seres felizes, sempre occupados em não fazer nada; come-se, joga-se e +murmura-se, gastando dinheiro ás mãos cheias. + +Ahi tudo se sabe, tudo se commenta; e mais de uma vez têem ficado a +honra das mulheres da moda, de mistura com o _Champagne_ e o _Rheno_ +sobre aquellas elegantes mesas. + +O conde de Loreto estava convidado para jantar com o lord que fizera a +aposta, que o esperava com pontualidade britannica. + +Depois de cumprimentar, lord Rutheney tirou a carteira e entregou +friamente os cincoenta mil francos que perdera. + +--Senhor conde, antes que comecemos a jantar, e segundo o costume +inglez, de não fazer nada depois de nos levantarmos da mesa, vou +propôr-lhe um negocio. Quer vender-me _Rabeca_? Dou-lhe por ella egual +quantia á que me fez perder. + +--Mylord, desejo conservál-a. + +--Então não falemos mais no assumpto. + +E pediu que lhes servissem o jantar. + +Durante este, lord Rutheney fez elogios á egua do conde. + +--É um precioso animal, dizia. Se me pertencesse, nas proximas corridas +annunciadas em Londres, jogaria duas ou tres mil libras esterlinas com +certeza de ganhar. Pena será se soffrer algum desastre. + +Depois de jantar lord Rutheney e o conde de Loreto entraram no café. + +Depois passaram á sala do jogo e o conde sentou-se proximo ao banqueiro. + +Fernando jogava forte, mas com pouca sorte. + +Meia hora foi sufficiente para perder quanto trazia comsigo. + +Então voltou-se para o inglez que estava a seu lado ganhando mais de mil +francos e disse-lhe sorrindo-se: + +--Mylord, fica fechado o negocio: _Rabeca_ é sua. + +Lord Rutheney inclinou a cabeça em signal de approvação, e entregou ao +conde cincoenta notas de mil francos. + +Depois, tirou tranquillamente a charuteira e d'ella um havano e +dirigiu-se pachorrentamente para a sala de fumo. + +Sentou-se n'um commodo divan, e começou a saborear o delicioso charuto. + +Proximo do sitio em que se achava o conde, fumavam quatro rapazes, +conversando em voz alta. + +Nenhum d'elles reparára, em Fernando. + +--Desengana-te, Heitor, dizia um d'elles, o teu cavallo está muito longe +de ser o que é a egua do hespanhol, e o arabe de lord Rutheney. + +--Pois apezar da tua opinião, respondeu com voz alterada Heitor, +garanto-te que se o meu jockey não tivesse sido um parvo, ganhava o +primeiro premio. + +--A ti succede o mesmo que a Marco Antonio quando os seus gallos iam +combater com os de Octavio Augusto, que perdia e para consolação á sua +pouca sorte arranjava sempre uma desculpa. O cavallo de lord Rutheney +levava ao teu mais de vinte metros de avanço. Emquanto ao do hespanhol +não se fala, esse não era um animal, era um raio: nem mesmo o vento +corria mais do que elle. + +--Os hespanhoes, respondeu Heitor, em tom desdenhoso, têem nas veias um +sangue mixto de godo e arabe, e não é para estranhar que saibam dar +vantagens aos cavallos nas corridas. O conde de Loreto parecia um cigano +correndo d'aquella maneira. + +Fernando ao ouvir estas palavras, pôz-se de pé e pallido, com o olhar +turvo e ameaçador, dirigiu-se para o grupo que falava de si e encarando +o que acabava de falar, disse-lhe: + +--O conde de Loreto sabe correr como um cigano e bater-se como um +cavalheiro. + +E dizendo isto, atirou uma luva ao rosto de Heitor, que se lançou sobre +o seu antagonista. + +Fernando extendeu o braço e deteve-o com incrivel facilidade. + +Todos o rodearam. + +Da parte do conde foi um creado chamar lord Rutheney. + +--Que foi? perguntou elle. + +--Quer ser meu padrinho? + +--Como? Tem alguma pendencia? + +--Sim, senhor. Este cavalheiro acaba de me insultar e tenho de me bater. + +--Tem a escolha das armas. + +--Cedo-a ao meu adversario: espero-o no café. + +Pouco depois lord Rutheney reunia-se ao conde de Loreto. + +--Já está tudo combinado, disse o inglez. Batem-se ao florete, ámanhã, +ás oito horas da manhã, no bosque de Bolonha. + +--Perfeitamente. Espero-o ás seis no hotel do Louvre. + +--É sufficientemente forte ao florete para se pôr na frente de um +adversario que o escolhe para se bater? + +--Manejo-o regularmente, e tenho pouco amor á vida; com estes dois +requisitos não me devo arrecear d'um lance. Mas se me permitte, +retiro-me. São dez horas: esta noite canta a Patti, e desejo ouvil-a, +porque ámanhã mata-me o meu adversario. + +Lord Rutheney conduziu-o na sua carruagem á Opera. + +Quem visse Fernando na sua cadeira applaudindo com enthusiasmo a celebre +Patti, não supporia que elle se ia bater no dia seguinte. + +Á meia noite entrou no seu quarto do hotel do Louvre, sentou-se, +accendeu um charuto, e dirigindo um olhar tranquillo a Francisco, +disse-lhe: + +--Ámanhã bato-me ás oito horas da manhã. + +O mordomo recuou dois passos, e exclamou assombrado: + +--Outra vez?! + +--Sim, é a quinta. Quem sabe se será a ultima? Não é vontade minha; +quando menos se pensa, um insolente ou um enfatuado atravessa-se-nos no +caminho, insulta-nos, e a honra exige que nos batamos. Cinco vezes me +tem succedido isso. Prepara, pois, os meus floretes, e deita-te. Ah! +Esquecia-me. Ámanhã cedo, mandarás por um creado _Rabeca_ a lord +Rutheney; vendi-lh'a; e, verdade verdade, que isso me desgosta mais do +que o duello. + +Francisco fez um gesto como se fosse para falar. + +--Não te inquietes, não te inquietes com reflexões inuteis; o duello é +inevitavel. Quero dormir para estar fresco. Bôa noite. Acorda-me ás +cinco e tres quartos. + +E o conde principiou a deitar-se. + +Francisco sahiu triste e preoccupado. + +Alguns minutos depois o conde de Loreto dormia profundamente. + +O honrado mordomo não se deitou: ser-lhe-ia impossivel dormir, e +preferiu estar levantado. + +Ás cinco horas e meia entrou no quarto do amo. + +O velho esteve-o contemplando por alguns momentos. Notava-se-lhe na +triste expressão do rosto o estado do seu espirito. Receava pela vida do +amo. + +Por fim disse em voz alta: + +--Senhor, são horas. + +O conde abriu os olhos, bocejou, e, fixando um olhar somnolento no +mordomo, disse: + +--Nunca perdoarei ao meu adversario este delicioso sonho que me rouba. +Que mau costume baterem-se de manhã! + +Fernando vestiu-se com esmero, como se fosse fazer uma visita de +cerimonia, com a differença de que em vez do frack ridiculo e +incommodativo, vestiu uma sobrecasaca preta. + +--Querido Francisco, disse o conde, dando o ultimo toque na gravata em +frente ao espelho, se o meu adversario me matar, o que é provavel, mas +não impossivel, tu te arranjarás como puderes, com os meus crédores; e +visto o remanescente da minha fortuna ser para a avarenta da minha tia, +a marqueza del Ramo, aconselho-te que fiques com tudo quando te seja +possivel, porque não é justo que ao cabo de tantos annos de bons +serviços, tenhas que procurar um novo amo, que indubitavelmente te não +trataria como mereces. Agora faze o favor de dizer ao creado que me +sirva o chá. Mylord não se póde demorar; são já seis horas, e é pontual +até ao exaggero. + +Effectivamente lord Rutheney, acompanhado de outro amigo, entrou no quarto. + +--Creio, senhores, que temos tempo de tomar uma chavena de chá, disse o +conde. + +Rutheney olhou para o relogio. + +--Os meus cavallos conduzir-nos-hão em menos de uma hora: temos tempo, +isto é, podemos dispor de sessenta minutos. + +--Creio que este cavalheiro, ajuntou o conde, indicando o companheiro do +lord, será o meu segundo padrinho. + +--É _mister_ Carlos Bobbe, meu medico e meu amigo; servirá, pois, de +medico e de testemunha. + +--Tanto melhor. Mas vamos ao chá. + +O creado entrou trazendo uma bandeja com chavenas e pratos, que deixou +sobre uma meza. + +_Mister_ Bobbe bebeu cinco chavenas de chá; lord Rutheney tres e o conde +uma. + +--Quando quizerem, meus senhores, disse Fernando, vendo que os padrinhos +collocavam as chavenas na bandeja, como prova de que não queriam beber +mais. + +Fernando abraçou o mordomo, cujo rosto circumspecto e os olhos +arroxeados o fizeram sorrir. + +--Não receies, lhe disse; sahir-me-hei bem como das outras vezes. E +partiu. + + + + +CAPITULO XI + +Mais um + + +Quando Francisco ficou só, não poude conter as lagrimas; deixou-se cahir +n'uma cadeira e chorou. + +A dôr do mordomo era tão profunda, tão verdadeira que ao entrar o creado +para o serviço, nem sequer deu pela sua presença. + +O creado que servia seis quartos do corredor do segundo andar era um +rapaz tão diligente como desembaraçado, e ao vêr o profundo pesar do +velho creado do conde e que este sahira tão cedo, acompanhado de dois +amigos, suspeitou tudo, mas em vez de dirigir a palavra a Francisco, +julgou que era mais conveniente confiar as suas supposições ao hespanhol +que occupava o quarto n.º 14, intimo do conde de Loreto. Assim, +dirigiu-se para o quarto de D. Ventura e chamou-o. + +D. Ventura ainda não perdera o costume de madrugar; estava levantado +e disposto a barbear-se. Abriu a porta, julgando que fosse o conde a +propor-lhe algum passeio para aquelle dia, e encontrou-se com o creado e +o seu eterno sorriso. + +--Que ha? perguntou D. Ventura. + +O creado falava, ainda que mal, o hespanhol, mas o sufficiente para se +fazer comprehender pelos hospedes. + +--Cavalheiro, disse elle, sei que sou um tanto indiscreto e importuno +batendo tão cedo á porta de um hospede... + +--Bem, bem. Que é? perguntou D. Ventura. + +--Mas sei tambem, continuou o creado, que o senhor é o amigo intimo do +senhor conde de Loreto. + +--Sim, homem, sim, acaba. + +--Pois bem, o senhor conde deve correr algum perigo, porque o vi sahir +acompanhado de dois inglezes; e o mordomo do conde assim que elle sahiu, +pôz-se a chorar amargamente. Não quero equivocar-me, mas julgo que o +senhor conde vae bater-se. + +--Diabo! Bater-se? Isso é grave! + +--É muito, cavalheiro. + +--Mas não sabes porquê? + +--Só vi metter no trem os floretes. + +D. Ventura sahiu precipitadamente do quarto, e entrou no do conde. + +Francisco continuava prostrado na cadeira e com o rosto occulto entre as +mãos. + +--Que novidades temos? perguntou em voz alta D. Ventura. + +O mordomo levantou a cabeça. Aquelle rosto veneravel estava decomposto +pelas lagrimas e pela dôr: tinha uma expressão de profunda tristeza. + +--É certo o que me acabam de dizer? É certo que Fernando foi bater-se? + +--Desgraçadamente é certo, senhor D. Ventura. + +--Diabo! Não sei para que se expõe a vida assim com tanta facilidade. Eu +tive pelo menos, cincoenta mil questões, e nunca tive necessidade de me +bater com pessoa alguma. Para que temos os tribunaes, se fazemos +justiça por nossas mãos? E demais, o que deu origem ao duello, valeria a +pena? + +--Não sei detalhes; só me disse que se ia bater; mas ia apostar em como +o meu amo o não provocou, pois que o conde é incapaz de offender alguem. +Oh! se o seu adversario o matasse era uma desgraça. + +--Era, era! Mas tenho esperança em que não será assim. Ora o diabo do +rapaz!... + +E como o mordomo continuasse gemendo e suspirando, D. Ventura pôz-se a +passear pelo quarto. + +Assim se passou meia hora. Nenhum dos dois falava. D. Ventura pensou, +por fim, que seria mais conveniente esperar o resultado no seu quarto do +que junto do mordomo, cuja dôr o affligia duplamente. + +--E a que horas saberemos o resultado? perguntou D. Ventura. + +--Creio que ás nove, pouco mais ou menos. + +--E são só oito! Mas, não se poderia dar parte ás auctoridades para +evitar o duello? + +--Se tal fizessemos, o senhor conde nunca nos perdoaria. + +--Diz bem; não ha outro remedio senão esperar e conformarmo-nos com a +sorte. Ora o diabo do rapaz! Vou vêr se a minha filha já se levantou, e +peço-lhe que tão depressa saiba alguma cousa me avise. + +O quarto de Amparo era separado do de seu pae por uma debil parede +communicando por uma porta. + +Amparo ouvira entre sonhos parte do que o creado dissera a D. Ventura. + +Quando este entrou já estava levantada. + +--Não me occulte nada, disse, quero saber tudo quanto se passa. + +--Pois, filha, o que se passa é pouco agradavel. Fernando a esta hora +bate-se em duello. + +Amparo empallideceu e como se lhe faltassem as forças, sentou-se n'uma +cadeira. + +--Que é isso? Estás doente? Era só o que faltava. + +--Não se assuste; não tenho nada. + +--Nada! nada! Não me capacitas de que é sem motivos que perdes as +côres, commoveste-te, e isso é natural, muito natural, sim, senhora; +porque demais, o conde é um joven que se faz estimar; e se tivessemos a +desgraça de o perder, se o seu inimigo o matasse... + +--Cale-se, papá, cale-se! exclamou Amparo estremecendo. Não diga isso +nem a brincar. + +--Sim, bôa brincadeira, não haja duvida! Ora o diabo do rapaz! + +D. Ventura, depois de barbeado, assomava á porta a cada momento. + +Nunca o tempo lhe parecera tão comprido. + +Quando o relogio do quarto deu as nove horas, disse: + +--Já se não póde demorar. + +Como se estas palavras fossem como um amuleto magico, ouviram-se os +passos de varias pessoas no corredor. + +D. Ventura chegou á porta e não poude conter um grito. + +--É elle? perguntou Amparo. + +--É. + +--E como vem? perguntou a medo. + +--Perfeitamente, andando pelo seu pé. Ah! Louvado seja Deus! + +E dizendo isto, sahiu precipitadamente do quarto, entrando no do conde. + +--Venha um abraço, venha um abraço, exclamou. + +O conde deixou-se abraçar. + +--Com que então, foi feliz? perguntou D. Ventura com infantil alegria. +Muito folgo, muito folgo. + +Fernando dirigiu um olhar de censura ao mordomo, e deixando assomar aos +labios um amargo sorriso, disse: + +--Sabe então que me bati. Pois, visto isso, só me resta dizer-lhe que o +lance foi desgraçado; teve graves consequencias. + +--Como? Está ferido? exclamou D. Ventura. + +--Não, infelizmente. + +--Não o comprehendo. + +--Senhor D. Ventura, quando por uma d'essas nescias exigencias de decoro +se batem dois homens e um d'elles morre no que chamamos campo da honra, +o que sobrevive, o que torna para casa vencedor, traz uma espinha +cravada na alma que permanece ahi toda a vida. Indubitavelmente alguma +maldição está suspensa sobre a minha cabeça. Tenho má mão para desafios. + +E o conde deixou-se cair n'uma cadeira, dando mostras do mais profundo +abatimento. + +--Conheço, senhor conde, que se deve ter um remorso muito grande em +matar um homem, disse D. Ventura, mas, que remedio? Quando se tem em +frente um inimigo armado que cubiça a nossa vida temos o dever de +disputál-a. + +Lord Rutheney pronunciou algumas palavras para tranquillisar o conde que +parecia vivamente incommodado. + +--Agradeço o interesse que lhes inspirei, disse Fernando; mas ao mesmo +tempo, desejava que fizessem o favor de me deixarem só, pois estou +fatigado e preciso descançar. + +Era evidente que uma grande fadiga do espirito se apoderára do conde e +os seus amigos retiraram-se. + +D. Ventura entrou no quarto da filha a quem contou tudo quanto se +passára, que com esse natural egoismo da mulher se alegrou profundamente +ao saber que o conde se tinha sahido bem do lance de honra, visto ella +não conhecer o infeliz Heitor morto no desafio, e unirem-na a Fernando +relações de amizade que iam tomando o caracter de uma paixão verdadeira. + +Entretanto, o conde de Loreto fechava-se no quarto, permanecendo o resto +do dia sentado n'uma cadeira. Nem elle mesmo poderia dizer se o somno se +assenhoreou d'elle algum momento. + +Quando a obscuridade da noite se espalhou por todo o quarto, levantou a +cabeça e disse: + +--É uma desgraça que já não tem remedio; tenho uma mão fatal. Esta é +a quinta vez que causo a morte ao proximo e uma profunda dôr a um pae. + +E passando a mão pela fronte, como se quizesse livrar-se dos tristes +pensamentos que o preoccupavam, levantou-se e tocou a campainha. + +Francisco, o mordomo, tão pallido, tão commovido como o amo, entrou com +uma luz na mão. + +--Bôas noites, senhor conde, disse deixando a vella sobre uma mesa. + +--Bôas noites, Francisco. Já sabes; matei um homem. + +--E todavia o senhor tinha-me dito que não mais se bateria ainda que o +insultassem. + +--É verdade; jurei não me bater, mas para que ninguem duvidasse de que +sei defender o meu decoro, não me pude conter, e agora arrependo-me. Ah! +se fosse em Hespanha não me tinha batido. + +--O remedio que ha, disse Francisco, é esquecer o passado. + +--Isso é mais difficil do que parece. Na memoria, como n'uma chapa +d'aço, grava o buril do tempo todos os acontecimentos da vida. Só a +morte tem o privilegio de os apagar. Mas tu disseste: já não tem +remedio. Prepara tudo, que ámanhã sahiremos de Paris. Necessito, pelo +menos, afastar-me d'esta terra. + +--E para onde vamos, senhor? + +--Para Hespanha. + +--Está bem. + +Fernando del Villar exhalou um suspiro e sahiu do quarto dirigindo-se ao +de Amparo. + + + + +CAPITULO XII + +Como se pede + + +O piano é um grande recurso para aquelles que possuem e sentem na alma +as doces e gratas impressões da musica, essa linguagem universal a que +renderam tributo até os proprios deuses. + +Amparo estava tocando. Tinha na estante a partitura da _Estrangeira_, +mas os dedos percorriam machinalmente o teclado, e os olhos fixavam-se +distrahidamente nas notas. + +A musica para ella n'aquelle momento não era mais do que um grato ruido, +adormecedor, como o sussurro cadencioso de uma fonte que convida á +meditação. + +Não pensava quasi nada no piano, muito pouco na partitura que tinha ante +si, mas muito no conde de Loreto. + +De Florença a Paris, isto é, trinta e seis horas de comboio, foram +sufficientes para a formosa hespanhola se enamorar. + +Antes d'esta viagem a casualidade collocára, ainda que momentaneamente, +no palacio de Médicis, Fernando e Amparo; depois em Paris as corridas de +cavallos e o duello reforçaram a ideia fixa que começava a dominál-a. + +N'este momento Amparo estava só. D. Ventura sahira, depois de lhe contar +tudo quanto sabia referente ao desafio do conde. + +Tocava, pois, piano, pensando no seu companheiro de viagem, quando ouviu +passos atraz de si; voltou a cabeça, e encontrou-se com Fernando que lhe +dirigiu um cumprimento respeitoso e um sorriso cheio de tristeza. + +--Bôas noites, senhora D. Amparo. Talvez a venha incommodar, disse o conde. + +--Incommodar-me? respondeu ella, parando de tocar. Pelo contrario. Bem +vê que estou só... Meu pae é um valdevinos; abandona-me e então o piano +é o meu recurso. Mas que tem? Está mais pallido que de costume, e +noto-lhe uma expressão de tristeza na physionomia. + +--Suppunha que não ignorava a desgraça que me succedeu hoje, e venho +despedir-me. + +--Como? abandona Paris? + +--Ámanhã. + +--Tão depressa. + +--Pensava passar aqui alguns mezes, mas agora é-me impossivel; necessito +vêr outro sol, respirar outro ar. + +--E para onde vae? + +--Para Hespanha. + +--Então, sr. conde, não tardará muito que nos vejamos lá, porque, apezar +de tudo, creio que o céu de Hespanha é o melhor de todos. + +--Diz muito bem, e sobretudo quando no céu de Paris a imaginação +preoccupada vê algumas manchas de sangue que perturbam o socego e roubam +a paz de espirito. + +--Verdadeiramente, é uma desgraça que as leis da honra imponham aos +homens deveres tão desagradaveis. Meu pae contou-me tudo, e posso +garantir-lhe que tão desgraçado acontecimento me penalizou bastante. + +O conde sentou-se n'uma cadeira proximo do banco de Amparo. + +--Não parece senão que me persegue algum genio fatal, disse elle, como +se falasse comsigo. Quando o destino me colloca ante um homem com a arma +homicida na mão, juro-o pela memoria de meu pae, sempre preferi morrer a +matar, e expuz generosamente o peito ante o perigo, sem me preoccupar em +evitál-o. Mas indubitavelmente uma força superior á minha vontade guia a +minha mão, e sempre vejo cahir sem vida o meu adversario. Só a +primeira vez que me bati tive desejos de sahir vencedor; era uma +creança, e a vaidade e o amor proprio cegavam-me. Então tive a desgraça +de matar um amigo intimo, um antigo condiscipulo. Pobre Arthur! E +sobretudo, pobre mãe aquella, em cujos olhos não mais se lhe sêccaram as +lagrimas, até que a dôr a conduziu ao sepulchro! + +O conde deteve-se. Bastava vêr-lhe o semblante, ouvir-lhe o timbre da +voz para comprehender o estado do espirito. Amparo escutava-o +interessada e sem se atrever a interrompêl-o. + +O conde, mudando de tom, continuou. + +--Com franqueza, não sou ridiculo? Vim despedir-me de V. Ex.ª, e +estou-lhe contando historias que só a podem commover; mas ha dias em que +se apodera de mim uma tristeza tão grande que não sei falar de outra +coisa senão da minha vida passada, ou o que é o mesmo, dos meus +remorsos, porque os sinto, senhora D. Amparo, e a minha sorte é +duplamente desgraçada porque não tenho uma pessoa, que sendo depositaria +das minhas amarguras, me console com os seus conselhos. + +--Senhor Fernando, exclamou a joven verdadeiramente commovida, receando +que só o desespero fosse o motivo da melancholia do conde; senhor +Fernando, se julga que posso ser essa amiga, apezar da minha pouca +experiencia do mundo, não me occulte nada e honre-me com a sua confiança. + +--Senhora D. Amparo, ajuntou o conde com vehemencia, póde ser para mim o +anjo salvador que me arranque do antro escuro em que me revolvo, +conduzindo-me ao reino da luz e da felicidade; porque eu, qual judeu +errante vagueando pelo mundo, necessito d'uma alma sensivel que me +comprehenda, um coração bondoso que palpite com o meu e que se compadeça +de mim. De que serve a mocidade e a riqueza? Preciso amar e ser amado. O +bulicio do mundo não é sufficiente para distrahir a tenacidade do meu +pensamento, a soledade da minha alma. Para esquecer o passado +necessito que comece para mim uma vida nova; é indispensavel regenerar o +meu coração, porque não póde calcular a persistencia com que me persegue +o infortunio. Um anno depois do meu desgraçado lance com Arthur a quem +matei, estava na Italia, precisamente em Florença, no palacio de +Médicis, defronte do grupo de Niobe onde a vi pela primeira vez... + +O conde deteve-se, fez um brusco movimento com a cabeça, e exclamou: + +--Só uma creança ou um louco seria capaz de entabolar similhante +conversação; e talvez eu seja uma e outra coisa. Desculpe-me, minha +senhora, e perdôe-me todas as loucuras commettidas esta noite; mas parto +ámanhã, talvez que nos não tornemos a vêr mais, porque, já lhe disse, +como o judeu errante percorro o mundo em busca de uma alma que me +comprehenda, que se una á minha e que me dê parte da sua paz, da sua +tranquillidade, da sua seiva. Ao vêl-a, disse: «É este o anjo que +cubiço.» Mas creio-me indigno de merecêl-o; e já que o segredo do meu +coração assomou aos labios, ainda que lh'o quizesse occultar, a senhora +teria já comprehendido que a amo, e só me resta supplicar-lhe que não me +guarde rancor por tanto atrevimento, e que me permitta antes de partir +apertar-lhe a mão como amigo. + +Se Amparo não tivesse verdadeira sympathia pelo conde, se não estivesse +disposta a amal-o, necessariamente ter-lhe-hia parecido tão rara como +incoherente a declaração que o conde lhe acabava de fazer. + +Mas Amparo amava o conde, e não se enganava ao pensar que era amada por +elle. Por isso, aturdida, trémula, com voz commovida e pouco firme, o +olhar fixo no chão, extendeu a mão a Fernando e disse: + +--Pois bem; se o senhor julga que depende de mim a sua felicidade, +confie a meu pae, logo que elle volte, o seu segredo e partamos juntos +para Hespanha. + +O conde soltou um grito, pegou na mão que Amparo lhe offerecia, e +cobriu-a de beijos. + +.......................................................................... + +N'aquella noite o conde pediu a D. Ventura a mão da filha. + +O honrado millionario mal poude dissimular a alegria que similhante +pedido lhe causava. Era-lhe tão agradavel ouvir chamar á filha +condessa!... Fraqueza por certo muito natural n'um homem nas condições +de D. Ventura. + +Mas, ainda assim, não se precipitou: ouviu com apparente serenidade o +pedido, e concedeu o seu consentimento, depois de ouvida a opinião da +filha. + +Quando o conde sahiu, D. Ventura foi ao quarto de Amparo. + +--Venho dar-te uma noticia surprehendente, inesperada, talvez agradavel. + +--O que é papá? + +--Que o conde parte para Hespanha. + +--Já sabia. + +--Já sabias?! E quem t'o disse? + +--Elle proprio. + +--Mas sabes que quer partir ámanhã, se isso lhe fôr possivel? + +--Sim. + +--E sabes tambem que me pediu a tua mão? + +--Calculava tambem, meu pae, accrescentou Amparo, sorrindo-se. + +--Por conseguinte atraiçoaram-me? + +--O que perdoará, porque é muito generoso. + +--Será possivel que todos os paes sejam malucos? + +--Malucos só no preciso, isto é, d'alma e coração. + +--Sim, sim. Mas, dize-me que lhe hei-de responder. + +--Responda-lhe que sim, é o mais logico. + +--E o casamento. + +--Celebrar-se-ha em Madrid. + +--Claro. Quem se casa em França residindo em Hespanha? + +--Pois então já sabe; quando o conde lhe perguntar pela resposta +definitiva, diga que sim e é assumpto concluido. + +--Mas olha, Amparo, agora que já se póde dizer que és a promettida +esposa do conde de Loreto, vou contar-te uma cousa. Em Florença, suppuz +que tu e Ernesto se amavam; mas assim é melhor; enganei-me, com o que +muito folgo, porque, minha filha, n'estes tempos é mais acceitavel para +marido um conde rico, do que um artista pobre. Ernesto pinta muito bem, +mas não tem uma peseta. + +Amparo ao recordar-se de Ernesto commoveu-se; mas a commoção foi +passageira, como a ave que cruza sobre a nossa cabeça para não mais voltar. + +Dois dias depois, um compartimento de primeira classe conduzia a +Hespanha com a velocidade da locomotiva os nossos conhecidos. Era o dia +28 de junho. + + + + +CAPITULO XIII + +Os tres amigos + + +Dois mezes depois dos ultimos acontecimentos que acabamos de narrar, +isto é, no dia 1 de setembro ás seis horas da manhã, dois rapazes +passeavam na gare da estação do sul, esperando o comboio correio de +Alicante. + +--Garanto-te, dizia um d'elles, que Ernesto traz um grande quadro. + +--E eu concedo-lhe o primeiro premio, ainda antes de o vêr. + +--Tem muito talento. + +--Sim, mas segundo pude perceber nas suas ultimas cartas, está enamorado. + +--O amor abre muitas vezes o caminho. + +--Quando nos não conduz a precipicios horriveis. + +--Isso tudo depende da mulher que o inspira. + +--Dizes bem; ella faz do homem ou um heroe ou um parvo, mas quasi sempre +o segundo caso. + +--Não te concedo voto no assumpto. + +--Como! Collocas-me fóra das leis do sentimento humano? + +--Sim, porque és um exaggerado e odeias o sexo fraco. + +--Tenho motivos para isso. Procurei estudar a mulher e estou convencido +de que para ellas o mais importante é a exterioridade. Uma gravata bem +posta, brilhante e bem feita bota de polimento; n'uma palavra um _dandy_ +adamado e escravo da moda, e que tenha o cabello sempre bem apartado, +tem muitas probabilidades de ser amado; emquanto que um homem de +verdadeiro merito, que cuide mais da sua intelligencia do que do seu +traje, fica sempre derrotado em questões de amor. A historia +apresenta-nos milhares de exemplos: todos os homens que honraram a sua +patria não tiveram a quinta parte das aventuras amorosas de Lovelace, +cuja arte se reduzia em fazer olhares ternos e trazer magnificas +fivellas de prata nos sapatos. + +--Ovidio foi amado por uma princeza. + +--Quase esqueceu d'elle ao vêl-o n'uma masmorra. + +--Tasso foi amado por uma fidalga. + +--Que lhe não mandou nem um simples coto de vela quando por sua causa +estava no calabouço escrevendo, _Jerusalem libertada_. Mas tu só me dás +dois exemplos. Olha, André, Cesar foi o primeiro da sua epocha, a grande +figura de Roma, e comtudo, a sua mulher, Pompeya, preferiu-lhe um +imberbe creançola, Publio Clodio, que se vestia de mulher para pôr ao +conquistador do mundo, uma corôa que não era por certo de louro. Pobre +Cesar! Como era calvo, a sua cabeça estava sempre ameaçada. + +Os que assim matavam o tempo esperando o comboio, era um poeta a quem +conheceremos pelo nome de Marcial e um pintor que se chamava André, +ambos amigos intimos de Ernesto e a quem este remettêra de Alicante +um telegramma avisando-os da sua chegada. + +Marcial e André viviam juntos n'uma mansarda da rua do Prado, tinham um +creado para ambos e comiam no café Suisso. + +O unico patrimonio de Marcial era a penna; a fortuna de André, os +pinceis. Os dois amigos tinham passado a fatal epocha de bohemios e +tanto Marcial com os seus dramas; como André com os seus quadros, +ganhavam o sufficiente para viver bem e serem muitas vezes a Providencia +de alguns companheiros. + +Mas continuemos na gare, que não tardará que visitemos a mansarda da rua +do Prado. + +O agudo silvo da locomotiva annunciou aos dois amigos que o comboio +entrava nas agulhas; deixaram, pois, a discussão e dispuzeram-se a +abraçar Ernesto. + +Effectivamente chegou o comboio, e n'elle Ernesto, que se lançou nos +braços dos seus amigos. + +--Agora que já te abracei, digo que te acho muito abatido, disse Marcial. + +--Effectivamente, estavas melhor quando partiste de Madrid, ajuntou +André. Roma continúa a ser uma cidade doentia. + +--Pois estou bom, completamente bom, e com um appetite devorador, +respondeu Ernesto; mas, quando se vôa de Roma a Civita-Vecchia, de +Civita-Vecchia a Marselha, de Marselha a Alicante, de Alicante a Madrid +sem descançar nem uma noite, e quando de mais temos a infelicidade de +enjoar no mar, creio que se não póde exigir a um corpo como o meu, magro +e doente, que se apresente ante os seus amigos com as bochechas e a +barriga de Sancho. + +--Mas porque não vieste por Paris? + +--Tinha pressa de chegar a Madrid, e receei demorar-me na capital do +visinho imperio mais do que podia. E bem sabes que breve se fecha o +praso para a apresentação dos quadros; chego, pois, a tempo. +Arranjaram-me casa? + +--Tens a nossa. Nós temos casa. + +--Tenho quarto? + +--Viverás como um principe desthronado, não te apoquentes. + +--Conduzam-me, então, para onde quizerem. + +--E a tua bagagem? + +--Reduz-se a uma mala, dois caixotes com quadros, e a tela que venho +expôr, que vem enrolada em um cylindro de madeira. Aqui está a guia. + +--Dá-m'a. Pepe encarrega-se de tudo. É um rapaz muito esperto. + +Os tres amigos sahiram da estação, entregaram a guia ao creado que se +chamava Pepe, e subiram para um trem. + +Para chegar á mansarda dos artistas era necessario subir noventa e seis +degraus. + +Uma vez vencida a difficuldade dos noventa e seis degraus, a mansarda +occupada pelo pintor e pelo poeta era alegre como uma manhã de maio. + +Alli respirava-se o ar puro; d'alli o céu parecia mais azul e a vista +espairecia contemplando as arvores do Retiro e do Prado. + +André fizera da sala o seu _atelier_, onde tudo se encontrava n'uma +desordem encantadora e propria do genio. + +Marcial reservara a saleta para escriptorio. Ficava ainda a casa de +jantar bastante grande, outra sala, dois quartos e a cosinha. + +A segunda sala estava adornada com moveis alugados para receber Ernesto. + +Devemos advertir que era uma d'essas mansardas decentes, que têem fogão +em todas as casas, e que rendem ao senhorio oito mil reales por anno. + +Quando os tres amigos se installaram na sala que servia de _atelier_ a +André, este disse: + +--Aqui tens o nosso palacio, que de hoje em deante será tambem teu, se é +que desejas viver comnosco. + +--Está claro! Acceito uma parte da casa, porque vejo que têem um +grande _atelier_ e admiraveis luzes para trabalhar. + +--O que quer dizer que vens disposto a continuar com os pinceis. + +--Bem sabes que são elles o meu unico patrimonio. + +--Ai! Ernesto, por desgraça, em Hespanha a pintura pouco rende. + +--Bem sei; mas trabalhando muito, espero não morrer de fome. + +--Morrer de fome, estando comnosco!? exclamou Marcial. Isso não é facil; +aqui os bens são communs e d'esse modo nunca nos falta nada. Demais o +teu quadro será premiado, tu ficas rico, garanto-t'o eu. + +--Não confio em promessas de poetas. + +--O tempo te convencerá de que laboras n'um erro. Mas tratemos de outra +coisa. Que tal te déste em Roma? + +--Bem como sempre. Roma é a minha patria. + +--Sim, é a patria dos artistas. Mas agora dize-me com franqueza, tu +tiveste o mau gosto de te enamorares? + +--Meu caro Marcial o amor não é outra cousa do que uma contribuição que +todos pagamos, mais tarde ou mais cedo. + +--Em boa hora o fosse. Eu procurarei pagál-o o mais tarde possivel. Mas +com o direito que me concede a boa amizade, permitte-me que te continue +a interrogar. + +--Pergunta o que quizeres. + +--Amas? + +--Creio que sim. + +--Vamos vêr. Quantos graus attinge o teu amor? + +--Muitos, respondeu Ernesto, sorrindo-se. + +--E quem é ella? + +--Se me permittem, guardarei segredo. + +--Não ha inconveniente; mas sem dar nome ao santo, creio que nos pódes +dar alguns pormenores. + +--Isso é diverso. + +--É nova? + +--Vinte annos. + +--Formosa? + +--Como o mais bello sonho d'um pintor. + +--Bem, bem, a arte deve ser irmã da belleza. É rica? + +--Sim, por meu mal. + +--Diabo! Isso não se explica. + +--Digo por meu mal, porque se fosse pobre como eu, já seria minha mulher. + +--Tão enamorado estás? + +--Para que negál-o? Não tenho segredos para vocês, que são os meus +unicos amigos: amo-a com toda a minha alma. + +--De fórma que, quando terminar a exposição, regressas a Roma. + +--Não, porque ella vive em Madrid. + +--Anh! Isso é diverso; do mal o menos. Esperamos que nol-a apresentarás +quando já não fôr segredo o teu amor. + +--Prometto-o, tão depressa alcance o consentimento do pae. Por agora só +lhes peço uma cama onde me deite algumas horas, porque estou muito +moido. + +--Tens razão, vem. Nós mesmo te vamos acompanhar ao quarto que te +reservámos, mas não consentimos que durmas até muito tarde, porque +convidámos uns amigos para almoçar. + +--Acordem-me quando quizerem. + +Um quarto de hora depois dormia docemente emballado pela gloria e pelo +amor. + +Pobre Ernesto! Como estava longe de imaginar a volubilidade da creatura +a quem entregára toda a sua alma n'um só beijo! + + + + +CAPITULO XIV + +Curiosidade não satisfeita + + +Emquanto Ernesto dormia, os seus amigos collocaram convenientemente a +tela que o pintor trouxera de Roma. + +--Magnifico! exclamou Marcial ao vêl-a. Estou crente que na Exposição +não apparecerá nada melhor. + +--É uma grande obra, ajuntou André, contemplando o quadro com olhos de +entendedor. Ernesto obtem o primeiro premio. + +--Mas espera. Já vi esta cabeça de mulher em alguma parte, disse o poeta +fixando uma das figuras do primeiro plano, que representava a rainha +Esther. + +--Eu tambem, ajuntou o pintor. + +--Recordemo-nos onde. + +Mas de repente deu uma palmada na testa, e exclamou: + +--Espera, já sei! Esta cabeça não é outra senão a de uma menina que +conheço e que mora em Madrid. É a filha do milionario D. Ventura +d'Aguillar. + +--Ah! Sim! Aquelle sujeito que vem muito ao Suisso e que é tão amigo dos +artistas. + +--Esse mesmo. + +--E que faz esse senhor? + +--Não o vejo desde o inverno passado. Deve andar viajando. + +--Preoccupações dos ricos durante o verão. + +--Sabes que examinando este magnifico retrato me assalta uma suspeita? + +--Qual é? + +--Que seja a linda Amparo o amor de Ernesto. + +--Tambem me parece que tens razão em o suspeitares, visto que não ha +muito ainda nos disse que ella era rica. + +--Decididamente está decifrado o enigma. + +--Sendo assim, sou de opinião que Ernesto deve dar, o mais breve +possivel, o nó gordio. + +--Nunca! Um artista de merecimento, um homem de talento deve ser +solteiro toda a vida; o matrimonio é um obstaculo para a sua gloria. + +--Seja como fôr, o quadro é admiravel. + +--E devemos confessar que Ernesto será uma gloria nacional. + +--O quadro produzirá um effeito grandioso; tambem eu não esperava menos. + +--Se Ernesto encontrasse um Cosme de Médicis, tinha a fortuna feita. + +--Desgraçadamente para os pintores aquelles tempos passaram. + +--Sim, dizes bem. + +Ás onze horas chegaram tres amigos de Ernesto, pintores tambem, que +estavam convidados para almoçar com Marcial e André. + +Ernesto continuava dormindo, somno que se respeitou durante meia hora +que passaram entretidos a contemplar o quadro. + +Por fim decidiram-se a despertar o hospede, e Ernesto deixou a cama +entre applausos, felicitações e abraços dos amigos. + +Tudo sorria em volta de Ernesto, e elle pensava de si para si: + +--Hoje estou com os meus amigos; ámanhã... oh! ámanhã irei vêl-a ao seu +palacio de Caramanchel. + +Ernesto ignorava que Amparo tivesse morrido para elle. + +Os seis amigos foram para o restaurant do Arminho, onde estava +encommendado o almoço. + +Os poetas e os pintores são tão pobres de dinheiro como ricos de +imaginação. Quando a venda de um quadro ou a estreia de uma peça +lhes rende algum dinheiro, gastam-no alegremente com o mesmo +desprendimento de principes. Ao acabar-se o ultimo centimo puxa-se pela +intelligencia e cria-se outra obra. Assim passam a vida esses +sonhadores, esses filhos do genio que vivem acariciados pelo sopro da +gloria e pela interminavel melodia das suas illusões. + +O restaurant do Arminho hoje já não existe; ha ainda pouco tempo que +fechou as suas portas, convertendo-se no de Madrid. Mas seja como fôr, +occupemo-nos do primeiro. + +O Arminho no seu pequeno, mas elegante recinto, não era frequentado por +pobres ou economicos. O serviço era á lista, e os pratos caros, mas bons. + +Os frequentadores sabiam que um simples almoço lhes custava um par de +duros, mas sabiam tambem que era preciso pagar, não só os manjares que +depositavam no estomago, como as gravatas brancas dos creados e o +serviço de prata em que eram servidos. + +N'uma grande cidade como Madrid ha o costume de se atirar o ouro por um +lado, emquanto que do outro alguns desgraçados morrem de fome. + +Marcial encarregára-se do almoço. N'aquelle dia os estomagos dos amigos +estavam á sua disposição. Escreveu n'um papel os quatro pratos fortes de +que devia compôr-se, deixando ao gosto do cosinheiro do restaurant as +sobremezas e os vinhos. + +Os seis jovens, alegres e cheios de illusões, tinham bom apetite; +comeram como quem não sente remorsos na consciencia, falaram de +pinturas, de theatros, de mulheres. + +Ernesto ouvia com certa satisfação os seus amigos; fallava menos do que +elles sem duvida, porque tinha a imaginação mais preoccupada. + +Quando chegou o _Champagne_, o vinho da alegria, do amor, quando +começaram os brindes e os epigrammas picantes. Marcial levantou-se com +um copo na mão, e disse: + +--Brindo pelo original que serviu de modelo ao nosso amigo para +pintar a formosa figura de Esther no quadro que será a admiração de Madrid. + +Todos esvasiaram os copos. + +--E se essa figura que tanto celebras fosse uma creação minha? disse +Ernesto, sorrindo-se. + +--Então, respondeu Marcial maliciosamente, brindo pellas bellas creações +do teu genio, e se alguma vez tiver a triste ideia de me casar, +pedir-te-hei primeiro que pintes uma mulher a teu gosto, e juro-te que +não consumarei o sagrado laço do matrimonio sem que encontre uma de +carne que seja egual á do teu retrato. Mas, que queres, parece-me que já +vi a tua Esther com trajes á moderna. + +--Estás enganado, respondeu Ernesto com embaraço. + +--Senhores, disse André, levantando-se, eu, em nome da fraternal amizade +que nos une, peço que respeitem o silencio do nosso amigo. + +--Pois eu, pelo contrario, peço que nos conte todos os seus segredos, +exclamou um dos convidados. Entre amigos como nós, tudo é commum, até os +segredos. + +--Tem razão. Ernesto não deve ser avarento dos seus segredos, já que +nunca o foi da sua bolsa. + +--Fala! + +--Conta-nos o que fizeste em Roma desde o dia em que pisaste a cidade +eterna, até ao momento em que partiste para nos trazeres o melhor quadro +que verão os contemporaneos. + +--Sim, conta-nos a historia dos teus amores. + +--Basta, senhores! exclamou Ernesto, estendendo os braços para +restabelecer a ordem. Quem diabo lhes disse que estou enamorado? + +--Foi Marcial. + +--É uma calumnia. + +--Podemos provar-te o contrario. + +--De que maneira? + +--Apresentando-te o original da tua Esther. + +Ernesto estremeceu. + +--N'esse caso, só se poderia attribuir a uma casualidade, disse +inquieto. + +--A amizade não deve ser exigente, disse André desejoso de livrar o seu +amigo d'aquelles apuros. Visto que Ernesto não conta, respeitemos o seu +silencio, e tomemos café. + +--Sim, sim; tomemos café, ajuntou Marcial, e com pouco assucar, para que +allivie um pouco a cabeça, dissipando os vapores do vinho! + +--Isso é um insulto; chamas-nos _piteireiros_. + +--Póde ser que tenhas razão, disse outro. Apesar de tudo, o piteireiro é +um ser feliz. + +--Que seria dos homens se não existisse o vinho? + +--Uma sociedade de paes graves. + +--Um vasto cemiterio. + +--Viva o vinho! + +--E os homens despreoccupados, que se não importam de se embriagarem! + +--Viva a Inglaterra, onde a embriaguez é respeitada. + +--E está na ordem do dia. + +--Ah! Nós, os hespanhoes, somos uns hypocritas; criticamos os +piteireiros, mas bebemos vinho. + +Desde aquelle momento a conversa dos seis rapazes foi tão animada, tão +alegre, que nos seria difficil reproduzil-a. + +Contos, anecdotas, escandalos da capital, tudo serviu de assumpto, em +redor d'aquella mesa, onde fumegava a digestiva _moka_ e o estomacal +_cognac_. + +Ás seis da tarde abandonaram o restaurant, e dirigiram-se para +Castelhano. Necessitavam respirar o ar fresco do campo. + + + + +CAPITULO XV + +Carta interrompida + + +Penetremos na encantadora quinta que D. Ventura possuia em _Carabanchel +de Arriba_; mas não nas elegantes e luxuosas habitações, pois que Amparo +que é quem procuramos, está n'um caramanchão situado no extremo de uma +recta e larga rua formada por altos e copados castanheiros da India. + +Para que o leitor se inteire de tudo o que succedeu desde que perdeu de +vista a formosa herdeira de D. Ventura, bastará dar-se ao incommodo de +lêr a carta que Amparo escreve a uma amiga intima e antiga condiscipula. + +Leiamos, pois: + + + «Minha querida Luiza + + «Desde o dia do meu casamento com o conde de Loreto, isto é, ha um + mez, nem tu sabes o que tem sido de mim nem eu sei nada de ti. Agora + que meu marido me deixou, pois alguns negocios o prendem todo o dia + em Madrid, vou dar-te parte da minha vida. + + «Escrevo-te, ouvindo o canto das aves sobre a minha cabeça, e + aspirando o perfume do jasmim e da madresilva. A minha alma + necessita da doce quietação que me rodeia, para poder expressar-te + toda a immensa felicidade que sinto. + + «Ah! Luiza, já sei que amas um homem, e que és egualmente amada por + elle. Porque se não casam? E porque não veem para o campo? + + «Ignorava que no coração d'uma creatura o amor infundisse uma + felicidade tão ineffavel como a que experimento. É bem verdade que + Fernando, meu marido, é o melhor dos homens. + + «Se visses a maneira amavel e obsequiosa que tem sempre para + commigo! Eu sou, por assim dizer, a rainha absoluta d'este pequeno + paraizo. Meu pae ri-se do que chama caprichos de menina amimada, e + Fernando approva immediatamente, tendo por logico e natural até o + mais estranho e excentrico. + + «Muitas vezes pergunto a mim propria se esta felicidade poderá durar + muito. Mas porque não ha de durar? Quando o amor é verdadeiro, dura + tanto como a vida. Que digo? Mais do que a vida, pois acompanha a + alma até á eternidade. + + «Mas vou-te falar de Fernando a quem só conheces superficialmente. + Imagina, querida Luiza, um rapaz bonito, com um coração de anjo, a + quem os genios da musica e da pintura bafejaram em creança, pois que + Fernando é musico e pintor. + + «Toca orgão de uma maneira admiravel, e desenha quasi tão bem como + Gustavo Doré, cujos bellos trabalhos conheces. + + «Junta a isto uma bondade sempre disposta a comprazer e poderás + imaginar quem é o homem que me coube por sorte para companheiro de + toda a minha vida. + + «Demais, Fernando tem uma conversação que fascina. + + «Quando de noite passeamos pelo jardim de braço dado, deleita-me + ouvir-lhe os planos que formulou para que a minha felicidade seja + mais duradoura. + + «Se soubesses as viagens encantadoras que projecta para a proxima + primavera!...» + + +Estava a carta n'este ponto, quando Amparo ouviu pronunciar o seu nome; +levantou a cabeça e não poude conter um grito. + +Tinha na sua frente, seu pae e Ernesto. + +D. Ventura, alegre e risonho como sempre; o pintor pallido como um cadaver. + +Amparo ao vêl-o, deixou cair a penna da mão, exclamando: + +--Ah! é o sr. Ernesto! + +--Elle proprio, respondeu D. Ventura, collocando familiarmente uma mão +no hombro do pintor. Surprehendeste-te, não é verdade? Pois olha que a +mim tambem me succedeu o mesmo, apezar de o esperar mais dia, menos dia, +visto a exposição abrir em meados do mez. + +Durante este curto dialogo, Ernesto guardou silencio. Os olhos tinha-os +fixos em Amparo e os labios entre-abertos deixavam assomar um sorriso +tão amargo como doloroso. + +Amparo por sua parte, parecia perturbada. A presença inesperada de +Ernesto produzira-lhe um effeito desagradavel. Nos olhos d'aquelle homem +estava o ameaçador olhar do amante offendido. + +Aquelle homem era para ella um terrivel presagio, um vivo remorso. +Desejava estar a cem leguas d'alli. + +--Sem duvida, que viemos importunar esta senhora, disse Ernesto +procurando dominar-se. + +--Não, senhor Ernesto; escrevia a uma amiga, e tenho tempo. Só á noite é +que parte o correio. + +--Demais, disse D. Ventura, o senhor não é uma visita importuna para +nós, mas um bom amigo a quem tratamos com o maior prazer e recebemos +sempre com satisfação. Se assim não fosse commetteriamos uma ingratidão. +De fórma nenhuma se esquecem facilmente as nossas excursões por Florença +e Roma. + +Innocentemente D. Ventura feriu no mais recondito o coração da fllha. + +--Creio, senhor Ernesto, que concluiu o seu quadro que vimos começado em +Roma, disse Amparo. + +--Sim, minha senhora, concluio-o, e espero depois de ámanhã, +requerer um logar para a proxima exposição. + +--Onde iremos admiral-o e orgulharmo-nos, porque somos amigos do pintor, +ajuntou D. Ventura. + +--Quem o duvida? + +--Mas dize-me: onde está o teu marido. Desejava apresentar-lhe Ernesto. + +--Fernando foi esta manhã a Madrid e não volta senão á tarde. + +--É pena; mas tudo se póde remediar, ficando Ernesto e almoçando comnosco. + +Decididamente D. Ventura parecia disposto a atormentar a filha. + +Ernesto comprehendeu que Amparo desejava vêr-se livre da sua presença, +mas a noticia inesperada do seu casamento, causára-lhe tão terrivel +effeito, que acceitou o almoço que lhe offerecia D. Ventura, só pelo +prazer de atormentar aquella _coquette_ que brincára com o seu coração +para depois o despedaçar. + +O almoço ia ser egualmente terrivel para os dois, mas Ernesto devorado +pelo ciume, pela raiva, pelo desespero, estava resolvido a soffrer tudo. + +Acceite o convite, D. Ventura, que não sabia estar quieto em parte +alguma, teve ainda outro ensejo mais lamentavel para atormentar a filha +do que os anteriores. + +--Ernesto é como da familia e como fica para almoçar, vou dar as ordens +necessarias e escrever duas cartas; passeiem pelo jardim, que eu venho +buscal-os depois. + +E dizendo isto dirigiu-se precipitadamente, para casa. + +N'aquella occasião Ernesto daria a D. Ventura, a vida, e até a gloria; +tinha necessidade de falar com Amparo sem testemunhas, de ouvir uma +explicação da sua conducta; e demais, continuar o fingimento, a +dissimulação, seria impossivel. + +Quando n'um peito cheio de juventude e apaixonado se levanta essa +terrivel tempestade do ciume, é difficil dominál-a, chega o momento +em que, esquecendo-se dos deveres sociaes, estala e produz um conflicto. + +Ernesto, ao vêr-se só, suspirou com força. + +Amparo comprehendeu a sua situação e conhecendo o generoso coração de +Ernesto, juntou as mãos, deixou assomar aos olhos duas claras e +transparentes lagrimas e com voz commovida, disse: + +--Pela memoria de sua mãe, pela recordação d'aquellas noites imprudentes +de Florença, rogo-lhe, Ernesto, que se esqueça de tudo e me perdôe. + +O pintor fixou um olhar intenso, sinistro, n'aquella mulher que nunca lhe +parecêra tão bella, e dominando-se, mas estremecendo ao mesmo tempo, +como se o fosse a acommetter um ataque nervoso, disse: + +--Perdoar, é facil; basta ter um coração grande e generoso; esquecer é +impossivel, senhora, quando se tem uma alma como a minha, quando se +sente na bôcca o fogo de um beijo que ha de causar a minha desgraça e a +minha morte. + +E levando a mão á cabeça, em tom desesperado, exclamou: + +--Tudo isto é um sonho! É impossivel que isto seja realidade! Que mal +fiz a esta mulher, para que depois de mostrar-me o céu, me lance no +abysmo do desespero? + +--Ernesto, senhor Ernesto, por piedade. Conheço que fui uma imprudente, +que sou culpada, mas que quer... + +--Senhora, exclamou Ernesto com dignidade, ha procedimentos, que nem +Cicero com toda a sua eloquencia, poderia explicar satisfatoriamente, e +o seu, é um d'elles; e, se eu, vendo-me enganado, me quizesse vingar, se +eu n'este momento em que a vida me é indifferente, commettesse um +d'esses crimes que lança o desespero nos homens, seria mais desculpavel +ainda ante os homens do que a senhora ante a sua consciencia. + +--É verdade, é verdade! murmurou Amparo, escondendo o rosto nas +mãos. Póde-me matar se lhe apraz. + +--Não tenha medo; tenho bastante coragem para receber a morte sem me +defender. Até ainda ha pouco a esperança, essa bella flôr da vida que +tudo embelleza, esse grato perfume da alma, acariciou o meu coração, +porque a luz d'uns olhos que outr'ora se fixaram nos meus cheios de +ternura, illuminava todo o meu sêr; mas, agora, encontro-me subitamente +mergulhado na mais profunda escuridão. Foi tudo um sonho, tudo uma +mentira; a senhora nunca me amou; as noites de Florença foram momentos +passageiros de delirio, entretenimento de mulher _coquette_, esmola +concedida por uns labios lisongeiros, falso ouropel que tive a veleidade +de receber por ouro puro; e emquanto recebia um beijo falso, dava a +minha alma inteira. Ah! Que louco fui! Se ao menos tivesse tido +compaixão de mim, se se tivesse dignado escrever-me uma carta, +dizendo-me: «Ernesto, esqueça tudo quanto se passou entre nós; vou +casar-me com o conde de Loreto, meu pae exige-o, é um compromisso que +não posso evitar...» uma desculpa qualquer, uma mentira ao menos, porque +ha mentiras desculpaveis porque nos fazem bem... Mas não; a senhora, +pelo contrario, guardou silencio, e eu continuava alimentando as minhas +illusões. Hoje chego a esta casa com a alma repleta de amor e de +esperança e o seu pae diz-me com a mesma frieza e indifferença como se +me falasse de um dos seus negocios: «Amparo casou com o conde de +Loreto.» Comprehende, senhora, o effeito que em mim produziu esta +noticia? As palavras não matam porque eu ainda vivo. + +Amparo chorava. Só então comprehendeu a gravidade da sua imprudencia. O +conde de Loreto fascinara-a: desde o dia das corridas em Paris amava-o +de toda a sua alma, mas se antes de casar ouvisse as justas +recriminações que lhe dirigia Ernesto, não teria pronunciado o _sim_ de +esposa junto ao altar. + +Mas o coquettismo, essa arma terrivel da mulher, quando esgrimida contra +um coração enamorado e sensivel, dera os seus terriveis fructos e jé +era tarde para retroceder. + +Por isso Amparo não encontrava palavras com que se defendesse, com que +se justificasse. + +N'estes casos, a mulher tem dois caminhos; ou rir-se do amante enganado, +ou confiar na sua generosidade e pedir-lhe perdão. + +Amparo nem por sonhos pensou no primeiro caso; conhecia bem o amor de +Ernesto e a bondade do seu coração; por isso appellou para o segundo +recurso, e, levantando a cabeça, apresentou ante os olhos do pintor o +seu rosto interessante, formoso e pallido, e, derramando lagrimas, disse: + +--Pois bem, sim, Ernesto; fui uma _coquette_, uma imprudente, uma +leviana. O meu procedimento não tem desculpa; mas amo o meu marido e +preferiria cem vezes a morte a faltar ao que a minha honra e os meus +deveres de esposa me impõem. Se não é bastante generoso para perdoar, +mate-me, antes que Fernando conceba a menor suspeita, e antes que a mais +pequena nuvem empanne a sua felicidade, prefiro morrer. Mas o senhor é +bom e terá dó de mim. + +Ernesto começava a sentir-se enternecido. Amava tanto aquella mulher que +não se sentia com coragem para lhe negar fosse o que fosse. Amparo +aproveitava-se das vantagens que ia conquistando. + +--Sejamos, pois, amigos, como nos primeiros dias em que nos conhecemos; +irmão, se quizer, mas perdôe-me e esqueça-me... não será tão cruel que +m'o negue. + +--Amparo, a senhora não póde imaginar o sacrificio que me pede; mas faz +bem em confiar em mim. Como poderei ser a causa da desgraça da mulher +que amo de toda a minha alma? Perdôo-lhe todo o mal que me fez, mas +esquecer... é impossivel. Para amar não é preciso ser correspondido. Mas +para que prolongar por mais tempo uma scena que me despedaça o coração? +Adeus, minha senhora, seja feliz, viva socegada, porque entre os dois +abriu-se, desde hoje, um abysmo, no fundo do qual estão sepultadas +todas as minhas illusões, toda a minha felicidade. + +E Ernesto sahiu do caramanchão como o demente que arrebatado pela +vertigem do seu doente cerebro não sabe para onde caminha. + +O primeiro movimento de Amparo foi detêl-o; porém conteve-se, calculando +que ia commetter uma segunda imprudencia, e de mais graves consequencias +do que a primeira. + +Uma vez só procurou serenar-se. + +--Pobre Ernesto! disse ella, enxugando as lagrimas. Nunca imaginei que +fosse tão grande o seu amor. Ah! Tem muita razão para me odiar. Foi uma +imprudencia. + +E, recordando-se de que uma só palavra de Ernesto poderia perturbar a +sua felicidade, exclamou: + +--Meu Deus! Permitti que esse homem não seja assaltado pela terrivel +paixão da vingança. + +Amparo fixou o olhar na carta que escrevia tão alegre, poucos momentos +antes, á sua amiga, e não tendo paciencia nem socego n'aquelle momento +para concluil-a, guardou-a na carteira do seu estojo de viagem. + +Quando o pae voltou, Amparo estava quasi socegada, ou pelo menos fingia, +para que se não suspeitasse nada da scena que acabára de dar-se +n'aquelle logar. + +--Aonde está Ernesto? perguntou D. Ventura. + +Rapidamente imaginou uma desculpa que motivasse a precipitada fuga do +pintor. + +--Ernesto, disse, acaba de sahir. + +--Mas, volta para almoçar? + +--Não; disse-me para lhe pedir desculpa de se retirar, mas havia-se +esquecido de que tinha uma entrevista importante em Madrid ás duas horas +da tarde. + +--Todos os artistas têem a cabeça á razão de juros. Mas emfim que +remedio! Almoçaremos sósinhos. + +E offerecendo o braço á filha, dirigiram-se para casa. + + + + +CAPITULO XVI + +Propostas + + +Ernesto chegou a casa e deixou-se cahir desesperadamente na cama; +sentia-se fatigado, um desejo irresistivel de chorar, um calor immenso +nas fontes e um frio glacial no coração. + +Deitou a cabeça nas almofadas e chorou. + +Ás cinco horas da tarde, Marcial e André foram buscal-o para irem +jantar, e ao verem-n'o pallido, com o parecer decomposto e os olhos +avermelhados, perguntaram sobresaltados: + +--Estás doente? Que tens? + +--Nada, meus amigos, nada; quero estar só. Deixem-me; esta tarde não +tenho appetite. + +--Mais uma prova de que estas doente, e por isso não te abandonaremos. + +--Por Deus, não me obriguem a levantar. Um boccado de socego far-me-ha +bem. Repito-lhes que não tenho nada. Vão tranquillos que lhes peço eu. + +Depois de meia hora de inuteis perguntas, Marcial e André sahiram +afflictos do quarto de Ernesto. + +--Indubitavelmente ha alguma cousa, disse o poeta. + +--Que diabo succederia? ajuntou André. + +--Parece-me que anda n'este mysterio o original da formosa Esther do +quadro. + +--Tambem o creio. + +--Não te disse elle esta manhã, que ia a Carabanchel? + +--Sim. + +--Em Carabanchel tem D. Ventura uma casa de campo. + +--Que lhe succederia? + +--Quem sabe! Talvez algum desengano. + +--Seja o que fôr, procuremos indagar. É uma desgraça ter um coração +impressionavel como o de Ernesto; vae dar-lhe muitos desgostos. + +Marcial e André recolheram n'aquella noite mais cedo que de costume. + +Ernesto continuava deitado; no quarto não tinha luz. Marcial +approximou-se da cama com um phosphoro acceso para vêr se o seu amigo +ainda dormia. + +O pintor tinha os olhos abertos. + +O poeta accendeu a vela que estava na mesa de cabeceira, puxou uma +cadeira e sentou-se proximo da cama do amigo. + +--Olha, Ernesto, a dissimulação só tem logar entre pessoas que se não +estimam. É em vão que procuras occultar-me o que te succedeu. Soffres, +tens uma d'essas dôres immensas que opprimem o coração. Basta olhar-te +para a cara para te adivinhar. Comprehendes que, estimando-te como a um +irmão, não me posso retirar tranquillo, só porque me dizes: «Não tenho +nada». Confia, pois, na minha amizade, deposita em mim as tuas maguas. +Quem sabe se poderei servir-te de consolação? + +Ernesto apertou carinhosamente a mão do amigo e disse: + +--Sei quanto me estimas; sei de quanto é capaz o teu generoso coração. +Somos amigos ha muito tempo, e nunca tive o mais leve motivo para +duvidar da tua amizade. Em nome, pois, d'essa amizade, peço-te que +respeites o meu silencio e que me deixes só. + +--Está bem, obedeço; mas não esqueças nem um só momento de que me +encontro disposto a fazer o sacrificio da minha vida, se com ella posso +evitar-te algum desgosto. + +Marcial sahiu do quarto de Ernesto na occasião em que ia a entrar André. + +--Onde vaes? lhe disse. + +--Vêr Ernesto. + +--Deixa-o, está dormindo; o que precisa é de socego. + +No dia seguinte Ernesto levantou-se de melhor parecer, e os tres amigos +tomaram juntos uma chavena de chá e alguns biscoitos inglezes. + +Nem André, nem Marcial tornaram a perguntar a causa da sua tristeza, mas +elles tambem estavam tristes e desgostosos. + +N'aquelle mesmo dia ficou o quadro de Ernesto na exposição. Á noite +reuniu-se com os amigos no café. Todos respeitaram a taciturnidade do +pintor, porque todos o estimavam e se compadeciam da sua +incomprehensivel tristeza. + +Assim se passaram quinze dias. A exposição de pintura abriu as portas ao +publico, e o quadro de Ernesto arrancou um grito de admiração aos +espectadores. + +A figura de Esther era uma obra tão perfeita como a Virgem de Murillo. O +quadro tinha sempre um grupo de admiradores, que o contemplavam com +verdadeiro extasi. + +Uma manhã Ernesto acabava de se levantar quando José, o creado, entrou +participando-lhe que um cavalheiro lhe desejava falar. + +Esse cavalheiro não era outro senão Fernando del Villar, Conde de Loreto. + +Ernesto procurando simular uma serenidade que não sentia, offereceu-lhe +uma cadeira, e perguntou tranquillamente o que desejava. + +--Vi e admirei o precioso quadro que tem na exposição de pintura, disse +o conde. É na verdade uma obra-prima. Tenho a absoluta certeza de que +alcança o primeiro premio, e venho vêr se o senhor m'o quer vender. + +--Senhor, disse Ernesto, creia que concede ao meu trabalho mais +merecimentos do que os que realmente tem. Mas de modo nenhum desejo +desfazer-me d'elle emquanto o jury não resolver. + +--Entretanto póde confiar, disse o conde, que o jury lhe concede o +primeiro premio, e eu compro-lhe o quadro como uma obra-prima. Póde +pedir-me quanto quizer sem receio de que me pareça exaggerado o preço. +Felizmente sou rico, e sei avaliar o valor das obras como a tela de Esther. + +--Tenho tambem que advertir-lhe, senhor conde, de que um correspondente +da casa de Rotschild já me fez proposta sobre o quadro. + +--Rotschild é mais rico do que eu, disse o conde, sorrindo-se, mas tenho +mais direitos do que elle ao quadro a que nos referimos. + +--O senhor tem mais direito?! exclamou Ernesto, comprehendendo o ponto +para onde o conde desejava levar a conversa. + +--Sim, porque o senhor não ignora que a cabeça de Esther tem uma grande +parecença, parecença de retrato perfeito, com uma mulher que tenho em +muita conta, e cujo bom nome me importa mais do que e vida. + +--Não serei eu que o contradiga na sua opinião, senhor conde, mas se é +retrato, é por pura casualidade, pois foi pintado de imaginação. + +--Creio, senhor, ajuntou o conde manifestando a sua importancia, que +n'estas coisas o melhor é falar com a maxima franqueza. + +--Nada ha de que eu mais goste. + +--Assim, pois, começarei por lhe dizer o que o senhor não ignora, e é +que a cabeça de Esther não é outra cousa senão o retrato de minha +mulher, a quem o senhor conheceu em Roma e em Florença. + +--Pois bem, senhor conde, ainda que assim seja, ainda que visse e +tratasse em Roma e Florença com a senhora que hoje é sua esposa, ainda +que a minha memoria tivesse sido tão feliz que retivesse as suas feições +e as transportasse á tela, tudo isso não é mais do que uma liberdade que +tomei, e se o offende essa liberdade, a questão, entre pessoas de bem, +tem uma solução que o senhor não ignora. + +Ernesto pronunciára estas palavras com a altivez de quem provoca. O +conde ouviu-o tranquillamente e sem demonstrar a mais leve agitação. + +Quando o pintor concluiu, o conde fez um movimento de olhos e de rosto, +manifestando o desgosto que lhe causava similhante provocação. + +--Senhor, disse pausadamente, primeiro que tudo, previno-o de que não +vim aqui ao som de guerra e julgo por tanto fóra de proposito a solução +que acaba de me propôr. Que conseguiriamos batendo-nos? Justamente o +contrario do que desejo e do que o senhor desejará ámanhã. Poderia +provar-lhe, sem que lhe ficasse duvida alguma, que não sou um cobarde, e +que me tenho batido mais de uma vez. + +Ernesto sorriu-se. + +--Perdôo-lhe essa nova provocação, ajuntou o conde, e torno a pedir-lhe +não só que me venda o quadro, como tambem que espalhe a noticia de que +eu lh'o encommendei em Roma, pedindo-lhe que este fosse o retrato de +Amparo. + +--Nunca! + +O conde estremeceu, augmentou de uma maneira terrivel a sua pallidez, os +seus olhos brilharam momentaneamente de uma fórma sinistra, e fazendo um +esforço violento para dominar-se, continuou sem levantar a voz, com +humilde entoação. + +--Creia, meu amigo, que está em completo erro se julga que vim aqui com +exigencias; longe do meu espirito toda a ideia de ameaça; só supplico. +Se o senhor se nega a vender-me o quadro, mas se deseja evitar a minha +mulher graves desgostos, creio que por fim cederá a publicar um artigo +nos jornaes em que explique satisfatoria e convincentemente para todos, +a similhança que tem a figura de Esther com Amparo. + +E o conde, levantando-se ajuntou: + +--Pense, e pense tambem nas graves consequencias que a todos podem +trazer a sua negativa. Espero até ámanhã a sua resposta em minha casa. +Este cartão indica-lhe a minha residencia em Madrid. + +E deixando sobre uma mesa um bilhete de visita, cumprimentou-o e sahiu. + +Ernesto permanecia sentado com o olhar provocador, sem se dignar +corresponder ao cumprimento que o conde lhe dirigira ao sahir. + + + + +CAPITULO XVII + +Confiança + + +Quando o conde entrou na carruagem que o esperava á porta, deu ordem que +o conduzissem para casa, e deixou-se cahir no assento rugindo de raiva. + +--Ah! exclamou falando comsigo. Aquelle insensato julgou talvez que tive +medo. E não conheceu o horrivel tormento que me causava o conter-me. +Terei que matar outro homem? Não, não, mil vezes não. Consentirei antes +que elle me esbofeteie, preferirei fazer saltar os miolos. + +Quando o conde chegou a casa, situada na rua do Barquillo, entrou no +quarto de vestir de Amparo, que o esperava inquieta e commovida. + +--O tal senhor Ernesto, disse o conde, sentando-se n'um sofá, é menos +generoso do que suppunhas. Nem quer vender-me o quadro, nem publicar uma +communicação em que explique decentemente a natural curiosidade de todos +que te conhecem. + +--Mas elle não tinha nenhum direito para fazer o que fez, para me pintar +n'um quadro com risco de me comprometter, exclamou Amparo tartamudeando. + +O conde sorriu-se, e fazendo um movimento de hombros, disse: + +--Não pódes calcular o quanto me fez soffrer esse homem. Durante a nossa +entrevista, falei-lhe com doçura, com humildade, pedi-lhe que me +vendesse o quadro, suppliquei-lhe, e julgando, sem duvida, que as minhas +palavras eram dictadas pelo medo, que eu era um cobarde, teve o +atrevimento de me dizer que se não ficava satisfeito com a sua +negativa, o assumpto liquidava-se d'outra maneira entre homens. +Desgraçado! Necessitei de todo o valor, de toda a força do homem que se +não póde bater, depois de ter morto cinco homens, para não o esbofetear +na sua propria casa. Mas quem sabe se esse insensato me fará faltar ao +meu juramento e terei de matal-o. + +--Não, não, Fernando! Não quero que te batas! Não quero que te exponhas! +A tua vida pertence-me! + +--Mas se esse homem, depois de ter dado pasto a maledicencia com o seu +importuno quadro, me insultar na rua, no theatro, n'um passeio, o que +hei de fazer senão bater-me? + +--Pensa que um duello não serviria senão para augmentar essa +maledicencia que nos assusta, esse murmurio que receamos. + +--Sim, concordo; mas não vejo outro caminho. + +--Dize-me, Fernando, tens confiança em mim? + +--Se a não tivesse, estaria como estou, aqui? + +--Obrigada, meu amigo. + +--Mas a que proposito veiu essa pergunta? + +--Porque conheço o bello e nobre caracter de Ernesto. + +--Vaes fazer-me algum elogio das suas qualidades moraes? + +--Não; vou tranquilizar-te. Ouve. Uma casualidade fez com que eu +conhecesse Ernesto em Roma. Depois acompanhou-nos a Florença. Bondoso e +illustrado, levou-nos a toda a parte, e não demorou muito que não +percebesse que eu lhe não era indifferente. Bem sabes, Fernando, que não +tenho segredos para ti, porque o meu coração e a minha vida +pertencem-te, porque te amo de toda a minha alma. + +--Sim, sim, não tenho duvidas a esse respeito e comprehendo +perfeitamente tudo quanto se póde passar entre uma menina e demais +formosa como tu e um homem como Ernesto, que viajam juntos. Amou-te, +fez-te uma declaração que não regeitaste, já por coquettismo, já +por compaixão. Isso é natural nas mulheres, não as censuro; mas ás vezes +traz más consequencias. Agora, por exemplo: Ernesto ao voltar a +Hespanha, encontra-te casada e julga-se com o direito de fazer a tua e a +minha desgraça, e apezar d'isso não tenho a mais pequena duvida de que +esse rapaz tem uma boa alma, um generoso coração. + +--Dizes bem, é uma desgraça. Tomei aquelles passeios em Florença, por um +passatempo, por uma distracção. Aborrecia-me. Ernesto, pelo contrario, +julgou que eu o amava como Heloisa amou Abelardo... Lastimo tão funesto +engano. E agora auctoriza-me para que meu pae compre o quadro, eu +procurarei a maneira, sem faltar aos meus deveres de esposa, de liquidar +este assumpto satisfatoriamente, porque nada me interessa tanto como a +tua felicidade, meu Fernando. + +--Repara, Amparo, que o que me propões é uma imprudencia. Ernesto para +ceder aos teus pedidos, póde ser exigente. + +--N'esse caso, dir-te-hei: «Fernando, sou tua; o teu amor é a minha +vida. Mata esse homem, que me julgou capaz de faltar aos meus deveres.» + +O conde soltou um grito, abraçou com enthusiasmo a mulher. + +--Ah! disse Amparo, este abraço prova-me que te inspiro confiança, e que +annues ao meu pedido. + +--Faze o que quizeres; mas fica sabendo que se antes de vinte e quatro +horas esse homem não explicar nos jornaes, de um modo satisfatorio para +mim, a parecença da condessa de Loreto com a Esther do seu quadro, não +me fica outro remedio senão matal-o. + +E o conde cumprimentando a esposa, sahiu do quarto. + +Amparo ficou por um momento como que oppressa sob o peso da ameaça que o +marido acabava de proferir. + +Pela primeira vez comprehendeu até onde podia conduzil-a a +imprudencia do seu coquettismo em Florença. + +Rapidamente lhe passaram pela imaginação as recordações d'aquellas +noites passadas com Ernesto no jardim do hotel do senhor Rosales. + +--É preciso evitar a todo o transe que se batam. Um desafio entre meu +marido e Ernesto produziria um escandalo, e a maledicencia, duvidando da +minha honradez, poderia menoscabar na honra do conde. Se isto +succedesse, toda a felicidade que agora disfructo desappareceria. Não, +não, falarei com Ernesto e supplicar-lhe-hei se tanto fôr preciso. + +Amparo deteve-se, como se tivesse commettido alguma imprudencia. + +--Mas se lhe peço uma entrevista, continuou, ainda que esta seja com a +nobre intenção de evitar uma desgraça, se se sabe que a mulher do conde +de Loreto e o auctor do quadro de Esther se viram sem testemunhas, então... + +Amparo escondeu o rosto entre as mãos, rompendo em amargo choro, porque +comprehendia que por todos os lados sómente encontraria difficuldades. + +N'aquelle momento entrou D. Ventura. + +--Que é isso? Que tens? Porque choras? Acabo de encontrar o teu marido +que me cumprimentou com uma frialdade um tanto importuna. Vou-me +convencendo de que os aristocratas quando se casam com a filha d'um +plebeu, embora este seja o mais honrado e o mais rico do mundo, sempre +julgam que lhe fazem favor. E olha, como isto me desgosta, e caso +continue assim, separo-me de vocês, ainda que o não te vêr me amargure a +velhice e abbrevie os dias que me restam de vida. + +D. Ventura falava rapidamente, dissimulando mal o desgosto que sentia e +as lagrimas que lhe começavam a assomar aos olhos. + +--Meu querido pae. Creio que nos ameaça uma grande desgraça. + +Este grito sahido do peito de Amparo fez empallidecer o pae. + +--Uma desgraça! exclamou. E que desgraça é essa? + +--Ernesto foi um imprudente ao tomar-me para modelo do seu quadro. + +--E é só isso? perguntou D. Ventura que não via motivo para se +sobresaltar d'aquelle modo. Se o motivo é o quadro, se não querem que +elle continue exposto, comprem-lh'o, e é assumpto concluido. + +--Mas elle não o quer vender. + +--Ora! Porque não lh'o pagam bem. + +--Não, meu pae, não. Ernesto não o vende ainda que lhe offereçam um milhão. + +--Pateta! Nem tu nem Ernesto sabem o que é um milhão. Não ha quadro do +mundo que valha essa quantia. + +--O pae não conhece Ernesto. + +--Mas entendamo-nos. Que é que tu queres? Que elle retire o quadro? + +--Não é sómente que o tire da exposição, como tambem que publique nos +jornaes um artigo, assignado por elle, dizendo que o quadro é do conde, +o qual teve o capricho de que Esther fosse o retrato da esposa. + +--Pois bem, falarei com Ernesto, e tudo se arranjará. + +--Mas Ernesto recusa-se! + +--Como! E porque recusa? + +Amparo comprehendeu que era preciso revelar tudo ao pae, porque só elle +podia valer-lhe n'aquelle apuro, e pegando-lhe carinhosamente nas mãos e +olhando-o com doce expressão, disse-lhe: + +--Porque Ernesto ama-me; porque tem ciumes, porque ao chegar a Hespanha +e encontrando-me casada lhe fugiram todas as esperanças do seu generoso +coração, e receio que commetta alguma loucura. + +--Diabo! Diabo! Isso é muito differente! E teu marido sabe que Ernesto +te ama? + +--Suspeita-o, e jurou bater-se com elle, se antes de vinte e quatro +horas não ficar completamente resolvida a questão do quadro. + +D. Ventura deu um profundo suspiro. + +Começava a vêr a questão sob o seu verdadeiro ponto de vista, e receava +que tivesse um desenlace fatal. + +--Bem vê, meu pae que o meu sobresalto e o meu receio é fundado. Se +Fernando e Ernesto se baterem, se algum d'elles morrer... + +--Tudo, menos isso. É preciso liquidar esse negocio. Vou falar com Ernesto. + +--Negar-se-ha; estou crente. Será mais conveniente que eu lhe fale, mas +não na sua casa. É preciso que o papá o chame. + +--Não vejo inconveniente. Mas onde? Amparo reflectiu um momento. + +--Occupo o meu rez-do-chão d'esta casa; pois bem, escreva-lhe uma carta +pedindo-lhe para vir aqui; não a casa do conde de Loreto, mas--á sua. + +D. Ventura sentou-se a uma mesa, pegou na penna e disse: + +--Dicta a carta. + +Amparo pensou alguns instantes. Depois disse: + + + _Senhor Ernesto Alvarez_ + +«Meu bom amigo + + «Peço-lhe para que tão depressa receba esta carta tenha a bondade de + me vir procurar em minha casa pois desejo falar-lhe de um assumpto + da maior importancia. + + «Julgo inutil participar-lhe que moro no rez-do-chão, onde o espero, + confiado em que se apressará em satisfazer o pedido de um amigo que + tanto o estima. + + Sempre seu amigo, + + _D. Ventura de Aguillar._» + + +Fechada a carta, enviou-a immediatamente por um creado. + +Depois, D. Ventura e a filha desceram para o rez-do-chão. + +--Agora, meu pae, disse Amparo, só lhe peço que quando vier Ernesto +me deixe a sós, com elle, mas é preciso que, detraz d'aquelle +reposteiro, seja testemunha da nossa entrevista. + +--Farei o que quizeres, porque estas questões apoquentam-me atrozmente. + +--Preciso, para que se ámanhã tentarem debicar em mim, ao menos o meu +pae saiba que não sou uma d'essas mulheres que faltam aos seus deveres +com facilidade. + +Uma hora depois Ernesto era introduzido no gabinete em que estava Amparo. + +D. Ventura occultou-se precipitadamente no quarto contiguo. + + + + +CAPITULO XVIII + +A golfada de sangue + + +Ernesto, de pé, com o chapéu na mão, pallido, e surprehendido por se +encontrar com Amparo, não se atrevia a dar um passo. + +Amparo que fazia grandes esforços para dominar a commoção que +experimentava sorriu-se e extendeu-lhe a mão. + +--Que é isso, meu amigo! Tão zangado está comigo que não quer apertar-me +a mão? + +--Senhora condessa, em verdade que a não esperava encontrar aqui, +tartamudeou Ernesto. + +--Porque a suspeital-o não teria vindo, não é verdade? Agora vejo que +fiz bem em pedir a meu pae que escrevesse a carta. Mas, peço-lhe que se +sente aqui, ao meu lado; tenho que lhe falar de um assumpto de que +depende a tranquillidade da minha alma, o senhor que sempre foi tão bom +para commigo creio que não deixará de sel-o neste momento. + +Ernesto sentou-se ao lado de Amparo, mas sentia-se muito commovido, +agitado e quasi sem forças para fixar os seus olhos no formoso rosto da +condessa. + +--Conheço, senhor Ernesto, que me não assiste nenhum direito para lhe +pedir algum favor por mais insignificante que seja, porque comprehendo +que deve estar resentido commigo. Seria inutil desculpar-me; confesso-me +culpada, e fui, se assim quizer, uma _coquette_ que pagou esse tributo +de vaidade de que poucas mulheres escapam, e por isso vou-lhe falar, não +ao homem em cujo braço me appoiei para visitar o Colyseu de Roma e cujas +palavras carinhosas resoaram nos meus ouvidos como uma embriagadora +musica durante as noites de Florença, mas a um cavalheiro, a um homem +generoso e desinteressado, em cujo nobre coração só se albergam +sentimentos nobres, emfim, a si, senhor Ernesto, a quem não quero +occultar a situação em que me encontro, a si de quem depende a paz do +meu lar, a tranquillidade do meu espirito. + +Amparo deteve-se, levou uma das lindas mãos aos olhos e enxugou as +lagrimas que durante a conversa lhe assomaram. + +--Não creia, senhora condessa, que os meus labios pronunciem uma só +palavra que seja de recriminação, disse Ernesto. Desde que cheguei a +Madrid, e assim que soube que a senhora pertencia a outro, que era a +esposa do conde de Loreto, senti tão profunda dôr no coração, tão grande +magua na alma, que só então pude avaliar a enorme paixão que me tinha +inspirado. Não sou d'aquelles homens que se resignam a perder n'um +momento as esperanças que durante muito tempo acariciaram. Será isto uma +desgraça, concordo, porque não devemos encarar a sério esta vida. + +Ernesto passou a mão pelo rosto, fez um esforço para se dominar e +continuou: + +--Sou um nescio! Estou falando de mim, a senhora condessa, em logar de +lhe perguntar o que deseja e apressar-me a satisfazel-a. Peço-lhe +desculpa das minhas anteriores divagações, e ordene tudo quanto lhe +aprouver. + +--Não, senhor Ernesto, não; conheço todo o mal que o meu coquettismo lhe +causou, e por conseguinte não podem ser-me indifferentes os seus +soffrimentos. O que quero, o que lhe imploro é que me perdôe e me não +odeie, o que lhe peço é que annua ao que esta manhã lhe foi pedir meu +marido, porque só assim poderá a minha alma viver tranquilla e +restabecer-se a paz n'esta casa. + +--E... pensou bem no que me pede, minha senhora? + +--Sim, sei que para si é um grande sacrificio. Se o senhor fosse outro +homem nunca me resolveria a pedir-lhe tão grande favor, senhor Ernesto, +mas do senhor espero tudo, porque se tanto fôr preciso, lançar-me-hei a +seus pés até que o consiga, porque o senhor não quererá que nos meus +olhos nunca mais sequem as lagrimas, nem vêr-me desprezada pela +maledicencia e odeiada de meu marido a quem tanto amo; porque se o +senhor não cede acontecerá indubitavelmente uma desgraça. + +Ernesto fixou em Amparo um olhar intenso, profundo, como se pretendesse +lêr-lhe no fundo d'alma, e depois disse: + +--O senhor conde de Loreto é um homem valente, um dextro atirador que +tem provado a sua habilidade e o seu valor em mais de uma occasião. Sei +que se eu recusar terminantemente ao que me pede nos bateremos, e não +sendo eu um espadachim, será d'elle o melhor partido. Tambem não terei +grande trabalho para lhe provar, minha senhora, que a ideia de um duello +de morte pouco me preoccupa. A vida só é preciosa para os que são +felizes e a senhora destruiu toda a minha felicidade. De mais ha já +algum tempo que goso de pouca saude, e por conseguinte é desnecessario +pensar em mim. Só temo que em Madrid me tomem por um cobarde; é epitheto +que não mereço e por isso me recusei a satisfazer os pedidos do senhor +conde. + +--E quem ousará chamar-lhe cobarde? disse Amparo. Para que os seus +amigos fizessem similhante apreciação, seria preciso que houvesse alguma +cousa que não fosse natural. Acaba de chegar de Roma com o quadro de +Esther; em Roma estive este verão e lá esteve tambem meu marido. Nada +tão facil e tão interessante para a sublime obra que expôz n'um dos +salões da Exposição de pintura, como inventar uma d'essas anecdotas que +fazem na posteridade parte da historia de um quadro. Por exemplo: o +senhor precisava de um modelo para Esther; encontrou-me com o conde, +então meu noivo e seu amigo, e encontrando nas minhas feições tudo +quanto sonhava para a figura de Esther, pediu a Fernando para que eu +servisse de modelo. O conde annuiu com uma condição: a de comprar-lhe o +quadro pelo preço em que o senhor o avaliasse; e effectivamente +fechou-se o negocio por vinte e cinco mil duros. Tudo isto é o mais +natural do mundo. Ninguem depois de lêr nos jornaes a historia da +parecença de Esther com a condessa de Loreto, assignado por si, será +capaz de dizer que semelhante declaração foi escripta pela mão de um +medroso. + +--Effectivamente, minha senhora, respondeu Ernesto, d'esse modo, na +minha historia, haveria um episodio fabuloso, o de vender um quadro no +seculo da photographia pela fabulosa quantia de meio milhão, e estou +certo de que tão vantajosa venda produziria inveja a muitos. Mas +ignorando todos que conheci em Roma e que acompanhei a Florença D. +Amparo d'Aguillar, ninguem supporá qual a verdadeira historia da +parecença de Esther com a condessa de Loreto; e para mim, basta-me que a +senhora o saiba e que o não ignore o senhor conde. Tambem julgo que a +senhora não quererá fazer-me o aggravo de me julgar interesseiro. O meu +quadro não vale vinte e cinco mil duros e por isso não posso ceder aos +seus desejos. + +--Meu Deus! disse a joven juntando as mãos, e derramando abundantes +lagrimas. Julgava que este homem me amava, mas enganei-me. + +Ernesto fez-se pallido até ficar livido, os olhos brilharam-lhe de um +modo terrivel, pegou bruscamente em uma mão de Amparo, e disse: + +--Senhora, o meu amor é tão grande, que não encontraria palavras com que +podesse narrar-lh'o. + +E pondo uma mão sobre o peito, continuou: + +--Aqui, desde o momento em que perdi a esperança de realisar os meus +sonhos, sinto como que uma tempestade infernal que rebentará em breve, +despedaçando-me o peito. Oh! Como é insensato todo o homem que não sabe +ser superior ás paixões que o dominam. Eu nunca amara senão minha mãe e +a gloria. A que me deu o ser deixou de existir. Fiquei orphão, e a +gloria desde esse dia foi minha mãe, minha amada, minha vida; mas um dia +o destino ou a fatalidade collocou-a ante mim, e amei-a com toda a minha +alma. Este amor então foi correspondido, sellado com um beijo que ainda +me queima nos labios, que ainda abraza a alma, e depois... + +Ernesto soltou uma gargalhada hysterica e ajuntou: + +--Mas para que recordar-lhe o que a senhora esqueceu? Que deseja a +senhora? Fiz-lhe o sacrificio da minha felicidade, talvez o da minha +vida, farei tambem o da minha honra, estou disposto a tudo. O quadro é +seu, minha senhora; escreverei a noticia, e entregarei ao senhor conde +de Loreto o documento com que poderá retiral-o quando a Exposição +terminar. Depois, se quizerem, podem queimal-o, pois era esse o fim a +que o destinava. + +Ernesto poz-se de pé, fazendo um esforço supremo, e como se as suas +ultimas palavras tivesse esgotado as forças, dirigiu-se para a porta. + +Amparo olhava-o absorta, commovida, sem coragem para detel-o. Viu-o +partir, e notou que aquelle homem tremia como um ebrio. + +Apenas sahira do gabinete, ouviu-se na antecamara um ruido como o que +produz um corpo ao cahir desamparado. A condessa soltou um grito e D. +Ventura sahiu da alcova. + +--É um rapaz que vale quanto pesa, disse o commerciante. + +--Meu pae, corra, succedeu qualquer cousa a Ernesto. + +D. Ventura foi por onde o pintor tinha sahido, e effectivamente +encontrou-o estendido no chão. + +Soltou um grito e pediu soccorro. Ernesto estava desmaiado com a cara e +o peito manchados de sangue. + +Quando Amparo chegou, julgou que Ernesto se suicidara; os creados +levantaram-n'o e transportaram-n'o para a cama de D. Ventura, e quando +chegou o medico, soube-se a verdade: Ernesto tivera um grande vomito de +sangue que o obrigara a perder os sentidos. + +Uma hora depois, quando voltou a si e abriu os olhos, o conde de Loreto, +Amparo, Ventura e o medico estavam em volta da cama. + +O pintor estava extremamente pallido, mas com essa palidez mate, +melancholica, dos doentes de peito, e dirigindo um olhar vago e fatigado +em volta de si, disse com voz debil: + +--Quanto me penalisa, senhores, este contratempo. Senti-me mal +repentinamente, como se se tivesse rompido qualquer cousa dentro do +peito; quiz evitar á senhora condessa um desgosto, e retirei-me á +pressa, mas ao chegar á antecamara, perdi os sentidos. Espero que me +desculparão o susto que lhes causei. + +--O mais importante, meu amigo, disse o conde, é a sua saude, e desejo +que me faça o favor de permanecer em minha casa até que se encontre +completamente restabelecido. + +Havia tanta doçura, tanto interesse n'aquella voz, que Ernesto, fixando +o conde com um olhar replecto de agradecimento, respondeu: + +--Um doente nas minhas condições, senhor conde, é demasiadamente +importuno. Agradeço-lhe reconhecidissimo o seu offerecimento, mas não +devo acceital-o e peço-lhes que tão depressa o medico diga que me +encontro em estado de ir para minha casa, me concedam licença. + +--Não será hoje nem ámanhã, respondeu o medico, e por conseguinte creio +que não nos devemos occupar d'outra cousa que não seja fortalecer o +nosso doente. + +--Não se fala mais n'isso, disse D. Ventura, Ernesto é mais bem tratado +aqui do que em sua casa. Eu, em nome da nossa amizade, prohibo-lhe que +se levante da cama. Quando estiver restabelecido, quando estiver forte, +fará então o que lhe aprouver. Hoje mando eu. + +Ernesto fez um movimento d'olhos indicando que se resignava. Sentia-se +tão fraco, que lhe seria impossivel ter-se de pé. + +Ficou, pois, resolvido que ficaria no quarto de D. Ventura. + +Quando o medico sahiu, Amparo deteve-o para lhe perguntar pelo doente. + +--É grave, disse o facultativo. Mais tarde ou mais cedo morre. Deve ter +soffrido muito. + +Amparo retirou-se para os seus aposentos, e, fechando a porta, chorou. + +O remorso começava a preoccupar-lhe o espirito. + + + + +CAPITULO XIX + +Pagar a hospitalidade + + +D. Ventura mandou pôr uma cama no quarto de Ernesto. + +--Serei o seu enfermeiro, disse, Amparo, e o conde ajuda-me n'esta +tarefa. Animo, pois, amigo Ernesto, e não pense n'outra cousa que não +seja em restabelecer-se. + +Desde aquella occasião o pintor encontrou uma familia carinhosa, +solicita, que lhe prodigalizou todo o bem estar. Nem elle mesmo podia +explicar o que se passava em redor de si. + +Muitas vezes era Amparo quem lhe dava os remedios, limpando-lhe o +copioso suor que com frequencia lhe inundava a fronte, e isto fazia-o +mesmo deante do marido e com a amorosa solicitude de uma irmã. + +D. Ventura logo ao segundo dia começou a tratar o enfermo por tu com a +ternura e o interesse de um pae. + +Assim se passaram cinco dias. Ernesto falava pouco, não só porque o +medico lh'o prohibira, como tambem porque pensava muito em todos estes +acontecimentos. + +O seu amor por Amparo era immenso. O conde indubitavelmente conhecia +esse amor, e comtudo, dedicado e obsequioso, consentia que sua mulher +passasse horas inteiras sentada a cabeceira da sua cama. + +Em vão Ernesto perguntava a si mesmo porque era que aquella familia se +mostrava tão attenciosa, tão obsequiadora para com elle, e o seu coração +generoso repellia algum pensamento pouco favoravel para ella. O conde +parecia-lhe um homem digno e honrado, Amparo uma irmã, D. Ventura um +pae, e até o medico era para elle um amigo. + +Desde que recuperára os sentidos, durante os dias em que se achava +n'aquella casa, ninguem lhe tornára a falar do quadro. Ernesto +sentindo-se mais alliviado, aproveitou um momento em que estava só, pois +desejava demonstrar áquella familia o seu reconhecimento. + +Levantou-se da cama, chegou com algum custo a uma mesa onde estavam os +apetrechos de escripta, e poz-se a redigir um artigo. + +Passada uma hora tinha acabado. + +Então, voltou para a cama, tocou a campainha e disse ao creado que se +apresentou: + +--Faça favor de dizer ao senhor D. Ventura que desejo falar-lhe. + +O creado obedeceu e poucos momentos depois entrava o commerciante, +sorrindo como sempre. + +--Bravo, bravo, disse elle. Já te vejo esse parecer mais animado e gosto +d'isso. Mas, saibamos o que quer o meu doente. + +--Que leia isto, que mande tirar copias e que as remetta aos jornaes que +quizer. + +E Ernesto entregou uns linguados de papel em que pouco antes escrevera. +D. Ventura leu para si. Quando acabou a leitura lançou-se nos braços de +Ernesto, exclamando com voz commovida: + +--Obrigado, Ernesto, obrigado. Estas linhas trarão a paz a um lar e o +socego a um pae; és o homem mais generoso do mundo. + +D. Ventura tinha os olhos cheios de lagrimas. + +Ernesto estava impressionado ante a profunda satisfação do velho. + +--Demais, disse o pintor, fingindo grande naturalidade, essa declaração +que destruirá por completo a maledicencia, vale bem pouco, e não vejo +motivo para que o senhor m'o agradeca. Em poucos dias estarei +completamente restabelecido, e sahirei de Madrid, e nem o senhor conde, +nem a senhora condessa me tornarão a vêr. Tenho um plano de vida que me +será proveitoso. Emquanto ás nossas excursões artisticas por Florença, e +Roma só me resta julgál-as um encantador sonho, filho d'uma imaginação +viva e impressionavel, e como os sonhos se esquecem procurarei +esquecêl-as tambem. + +--Oh! Tu não dizes o que sentes, Ernesto, soffres e tentas occultal-o. + +--E quem não soffre n'este valle de lagrimas? Existe porventura homem +feliz n'este mundo? Creio que não. A vida não é outra cousa senão um +castigo que Deus impõe á humanidade pelo peccado original; +resignemo-nos, pois e paguemos esse tributo ao Creador. + +--Mas isso não me tranquillizou por completo. Dizes no teu artigo +que o quadro é propriedade do conde de Loreto, que o comprou em Roma, +com a condição de que Esther fosse o retrato de sua futura mulher, e +isso não é verdade. + +--Meu amigo, ás vezes a mentira, que tem alguma cousa de santa, é +indispensavel. + +--Comtudo o conde não te comprou o quadro. + +--Mas se eu lh'o offereço. + +--Isso não póde ser. Tu és pobre e nos não consentimos... + +--Mau! O quadro, dado o caso de ser premiado pelo governo, poderá +render-me quando muito cinco ou seis mil duros. Com essa quantia é rico +um homem como eu. + +--Mas nós podemos dar-te pelo quadro vinte mil duros. + +--Isso seria roubar o dinheiro, e não creio que o senhor me faça a +offensa de me julgar interesseiro. + +--Demais sei eu que todos os homens de talento desprezam o dinheiro. + +--Pois então consinta que a minha pobre Esther salvando os filhos de +Israel fique em paga da carinhosa hospitalidade que me concederam, e não +se fala mais no assumpto. Mas não percamos tempo; é preciso que ámanhã +saia em alguns jornaes o meu communicado. + +D. Ventura não poude convencer Ernesto a que acceitasse qualquer quantia +pelo quadro. + +--Para todos, disse o pintor, o quadro foi comprado pelo conde de Loreto +pela importancia que lhe aprouver dizer, e eu não o desmentirei; para +nós, o quadro será uma offerta que eu faço ao esposo de D. Amparo de +Aguillar. + +No dia seguinte, ao levantar-se, Amparo, viu varios jornaes sobre uma +pequena mesa de pau rosa. + +--Que é isto? perguntou. Cuidam que me vou dedicar á politica? + +--Não sei, minha senhora, mas o papá disse-me que os puzesse ahi e que +dissesse da sua parte á senhora condessa, quando se levantasse, que +lesse um communicado que trazem os jornaes. + +Amparo suspeitou do que tratava o communicado, pegou no jornal e leu em +voz baixa o que se segue: + + + «Senhor director do... + + «Espero da sua amabilidade que publicará esta carta no seu + acreditado jornal que tão dignamente dirige, pois importa ao senhor + conde de Loreto e ao que subscreve a presente carta, desvanecer + certas equivocas apreciações que uma parte do publico que visita a + Exposição de pintura tem feito sobre o meu quadro de Esther. + + «Ha alguns mezes estava em Roma pintando o quadro de Esther quando + tive a honra de ser visitado por Fernando del Villar, conde de + Loreto, com a então sua futura esposa, hoje condessa de Loreto. + + «Verdadeiro enthusiasta pela pintura, o conde de Loreto, protector + dos artistas, propôz-me comprar o quadro por uma quantia bastante + elevada; attendendo ao pouco ou nenhum merecimento da minha tela, + acceitei o negocio e ficou desde então o quadro de Esther sendo + propriedade do conde de Loreto. + + «A partir d'ahi o conde passou a visitar-me todas as manhãs, + passando algumas horas no meu atelier vendo-me pintar. + + «Um dia, ao ter quasi terminada a minha obra, occupava-me em retocar + a figura de Esther, quando o conde me disse: + + --«Meu amigo, tenho um capricho de homem rico que desejava + satisfazer. Se o senhor não se escandalizasse e quizesse, a cabeça + da rainha Esther poderia ser o retrato da senhora que em breve será + minha mulher. Ha algum inconveniente n'isso? + + --«Nenhum, senhor conde, lhe respondi. Nem conheci a celebre judia + da tribu de Benjamin, a bondosa sobrinha de Mardoques, nem vi mesmo + algum retrato d'ella, mas desde já aposto qualquer cousa em como a + mulher do rei Assuero não foi mais bella do que a joven que d'entre + em pouco será a condessa de Loreto. + + «Poucos dias depois, a cabeça de Esther era um retrato bastante + parecido da senhora D. Amparo de Aguillar, condessa de Loreto. + + «Assim fica explicada a similhança que com a esposa do senhor conde + de Loreto tem a figura principal do meu quadro. + + «Peço-lhe me desculpe o incommodo que lhe causo, mas a rectidão do + meu caracter e o agradecimento a isso me obrigam, e antecipadamente + agradece, o que é + + De V. S.ª + + Att.º V.or Cr.º e Obrg.º + + _Ernesto Alvarez._» + + +Quando Amparo acabou a leitura ouviu a voz do marido que lhe pedia +auctorização para entrar. Entrou com o jornal na mão. + +--Entra, Fernando. Não precisas auctorização para entrar no meu quarto, +lhe respondeu. + +O conde approximou-se da mulher e depois de lhe ter dado um carinhoso +beijo na face e dirigir-lhe um sorriso amoroso, disse: + +--Bom dia, querida Amparo, bom dia. Vejo que ambos lemos o communicado +de Ernesto. + +--Sim; meu pae mandou-me estes jornaes. + +--Tambem m'os mandou a mim, e vinha perguntar-te se sabes o que se +passou entre teu pae e Ernesto. + +--Não sei. + +--Fosse o que fosse, a conducta d'esse rapaz não póde ser mais nobre. +Bem vês que nos offerece o quadro, porque tu bem sabes que lh'o não +comprei. + +--Sim, é um rasgo de generosidade pouco vulgar n'um homem que não tem +outro patrimonio senão os pinceis. + +--Mas nós não podemos consentir em similhante offerta. + +--Ou pelo menos compensal-o com outra. + +--Dizes bem. N'este assumpto convém proceder com toda a delicadeza. +Vinha lêr-te isto mas como já lêste, retiro-me e vou vêr Ernesto. +Almoçamos juntos? + +--Sim, meu Fernando, espero-te aqui para me contares tudo o que resolveres. + +Fernando tornou a abraçar a mulher e sahiu. + +Amparo ao vêr-se só, deixou-se cair n'uma cadeira e leu pela segunda vez +o jornal. + +--Ah! exclamou, exhalando um suspiro que brotava do mais fundo da sua +alma. Ernesto vale cem vezes mais do que eu. Causei toda a sua desgraça. +O coração tambem me diz que serei a causa da sua morte. Que Deus me +perdôe o mal que fiz a esse homem. + +E, cobrindo o rosto com as mãos, deu livre curso ás lagrimas. + + + + +CAPITULO XX + +Abnegação + + +Quando o conde entrou no quarto de Ernesto, acabava este de se vestir. + +Pallido, com o parecer cadaverico, o semblante do pintor tinha +impressos os profundos vestigios da enfermidade que lhe minava o peito. + +O conde admirou-se de o vêr levantado. Ernesto, sorrindo, veiu-lhe ao +encontro. + +--O medico já lhe deu auctorização para se levantar? perguntou Fernando. + +--Os medicos são uns ignorantes. Se seguisse os seus conselhos, ficaria +ainda um mez na cama, mas tenho esperanças de me restabelecer d'outra +maneira sem auxilio da medicina. + +--Senhor Ernesto, disse o conde com voz carinhosa, ignoro o que tenciona +fazer para se curar, mas reprovo que abandonasse a cama. + +--O meu plano de vida é muito simples, senhor conde, reduz-se a ir viver +no monte, a respirar o ar puro e livre do campo, longe da balburdia da +cidade, do bulicio dos homens; é o remedio mais efficaz para os doentes +do peito. Em outros tempos fui um enthusiastico amador da caça. Quando o +governo me fez seu pensionista, quando parti para Roma, offereci os meus +cães e as minhas espingardas e abandonei a minha distracção favorita. Em +poucos dias adquirirei todos os apetrechos e partirei para os montes de +Toledo onde conheço um caçador de profissão, viverei com elle, caçando +umas vezes, pintando outras, e quem sabe se a vida semi-selvagem que vou +emprehender me restabelecerá a saude. + +O pintor procurava dissimular o cansaço que a conversação lhe causava. + +O conde, que o conhecia, disse com commoção: + +--Ernesto, offender-se-ha commigo se lhe falar com a franqueza de irmão? + +--Pelo contrario, senhor conde, julgar-me-hei muito honrado. + +--Pois bem, o senhor crê que essa viagem, essa vida semi-selvagem, como +acaba de dizer, lhe será tão proveitosa, como diz? + +--Sem perceber de medicina, comprehendo que a vida do campo é muito +proveitosa aos doentes do peito. + +--Comtudo a vida de caçador é agitada e precisa de corpos robustos e +fortes. + +--Quem sabe se o meu se fortalecerá? + +--Duvido! + +--É preciso dar-se tempo ao tempo. + +--Mas ainda que assim seja o senhor não é rico e precisa trabalhar para +viver. + +--Tão pouco precisa um caçador de profissão! disse Ernesto sorrindo-se. +Álêm d'isso pintarei quadros pequenos, que, vendendo-os baratos, sempre +terei quem m'os compre; por exemplo, assumptos de caça, paisagens +tiradas do natural. Oh! tenho esperanças que nada me faltará. + +--Está então resolvido a emprehender essa nova vida e eu não me opponho, +mas quero propor-lhe um negocio. + +--Qual? + +--O senhor precisa de quem lhe compre os quadros que pintar. + +--Certamente. + +--Pois bem, compro-lh'os eu. Como vê não tenho muitos quadros bons nas +minhas paredes, e por isso espero que me permitta pagar-lhe o que está +na Exposição das Bellas-Artes. + +--Emquanto a esse creio que o senhor já leu a carta que enviei aos +jornaes, e como digo que recebi em Roma antes de concluir... + +--Mas isso não é verdade. + +--Que importa? O quadro é seu, senhor conde, e não falemos mais de +similhante assumpto. Emquanto á venda dos que pinte de futuro, isso é +diverso e não vejo inconveniente em que o senhor m'os compre. + +--Fixemos então desde já o preço, ficando assente que recebo todos +quantos o senhor pintar. + +--Isso é offerecer muito. + +--Compro todos. Marque preço. + +--Marcarei quando lh'os mandar, a não ser que o senhor me indique desde +já os assumptos e os tamanhos. + +--Isso fica á sua escolha. + +--Pois então fica desde hoje sendo o meu unico comprador. + +--E o senhor o meu pintor. Mas repito que é uma loucura abandonar os +recursos da capital quando a saude não esta sufficientemente restabelecida. + +--Pelo contrario, senhor conde, é muito conveniente abreviar a minha +partida. + +Fernando encolheu os hombros conhecendo que Ernesto estava firmemente +resolvido a sahir de Madrid. + +--Não insisto mais, apezar de lamentar que nos deixe tão depressa, +porque de amigos tão generosos, tão nobres como o senhor, é sempre +custosa a separação. + +--Senhor conde, antes de nos separarmos tomarei a liberdade de lhe falar +com a rude franqueza de um homem que sempre foi dominado pelos impulsos +do seu coração. Odiei-o de morte durante algum tempo. Então não conhecia +o conde de Loreto mais do que de nome; hoje é diverso: tive occasião de +tratar comsigo, de apreciar o que vale, e a minha alma, sempre generosa, +arrepende-se de haver abrigado, ainda que por pouco tempo, sentimentos +perversos. A carta que mandei aos jornaes não é outra cousa que o +descargo da minha consciencia. Preciso, pois, partir e esquecer. O +senhor sabe que amei Amparo, e tambem não ignora que ainda a amo. +Tratou-me como a um bom amigo, e nada mais. Sei que são felizes, e que +se amam muito. Uma imprudencia minha esteve a ponto de destruir toda +essa felicidade, que não tem preço entre dois esposos. Reparei essa +imprudencia e tranquillizou-se um tanto a minha consciencia. O passado +será um sonho para mim, o presente, a soledade dos montes, até ao dia em +que Deus queira apagar o meu nome do grande livro dos vivos. + +Ernesto calou-se. O conde fixou n'elle um profundo olhar que demonstrava +a admiração que sentia ouvindo expressar-se com tão nobre franqueza, +julgando inverosimil que na corrupta sociedade ainda se pudesse +encontrar n'um homem um rival tão generoso. + +--Vá, disse o conde, depois de uma pausa, parta, mas nunca esqueça que +tem em todas as occasiões que precisar um irmão, em Fernando del Villar. + +--Obrigado, senhor conde, não esquecerei o seu offerecimento. Peço-lhe +me desculpe para com a senhora condessa, pois não me posso despedir +d'ella, e que mande que uma das suas carruagens me leve a minha casa. + +--Como! Partir sem apertar a mão a minha mulher, sem lhe dizer adeus? +Não, senhor Ernesto. Julga porventura que sou um d'esses maridos zelosos +e ridiculos que desconfiam da mulher a quem deram o nome? Julga-me capaz +de lhe fazer a offensa de duvidar de si, o homem mais generoso que +conheço, o melhor dos meus amigos? Não. Amparo virá despedir-se de si; +peço-lhe que não deixe esta casa sem que assim succeda. + +--Não insisto mais. Já que assim deseja despedir-me-hei da senhora +condessa. + +--Vou eu mesmo chamal-a. + +O conde sahiu, murmurando em voz baixa: + +--Este homem venceu-me á força de generosidade. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +A condessa acabava de se pentear: estava vestida com uma simples bata +branca. + +Ao vêr entrar o marido exclamou: + +--Tu, outra vez aqui! + +--Sim, Amparo, venho annunciar-te a partida de Ernesto. + +--Não é possivel, ainda está muito doente, segundo diz o medico. + +--Isso mesmo lhe disse eu, mas insiste em se querer restabelecer no +campo, e está resolvido a abandonar hoje mesmo a nossa casa. Pedi-lhe +que se não fosse, sem primeiro se despedir de ti e de teu pae. É +preciso que meu sogro, que tem mais confiança com elle, o convença a que +receba o valor do quadro que tão generosamente nos offerece. + +--Será inutil; não receberá nada. + +--Comtudo espero que teu pae insista pela ultima vez. Não pódes calcular +o quanto me interessa esse pobre rapaz, pobre como Diogenes e generoso +como Lucullo. Fala-lhe, fala-lhe sem perda de tempo; eu, entretanto vou +á loja de Manuel Arenas fazer umas compras. + +Fernando tocou uma campainha e disse ao creado: + +--Avise o senhor Ernesto de que a senhora condessa deseja vêl-o. + +E depois, abraçando Amparo, continuou: + +--Adeus, minha amiga. Procura convencer esse tresloucado. Não me demoro. +Vou comprar umas cousas para Ernesto. É preciso presenteal-o como a um +principe que pensa em passar uma grande temporada no monte, dedicando-se +a caça. + + + + +CAPITULO XXI + +Abandonando Madrid + + +Amparo, depois do conde sahir, ficou immovel, preoccupada. Ia +despedir-se de Ernesto, talvez para não mais o vêr; ia ter uma +entrevista sem testemunhas com o homem a quem tão desgraçado fizera, e +esta entrevista era proporcionada, pedida pelo marido. + +Por um momento Amparo receou que aquillo fosse um laço, mas rapidamente +affastou similhante pensamento, conhecendo a nobreza com que procederam +Ernesto e o conde de Loreto. + +--Não, não; Fernando não póde ter ciumes; tem confianca absoluta, +sabe que o amo com toda a minha alma, disse Amparo, falando comsigo. +Comtudo quer que me despeça de Ernesto a quem tão desgraçado fez uma +leviandade, filha do coquettismo. Devo obedecer-lhe, ainda que me seja +dolorosa esta entrevista. + +E como n'aquelle momento entrasse o creado para annunciar que o senhor +Ernesto esperava a condessa, Amparo encaminhou-se para o quarto do pintor. + +Ernesto, ao vêr entrar Amparo, pôz-se de pé, mas foi-lhe preciso +encostar-se ao espaldar d'uma cadeira. + +A condessa não se commoveu menos, vendo a extrema pallidez do seu antigo +apaixonado. + +--É verdade, senhor Ernesto, o que o meu marido acaba de me dizer? Pensa +em deixar-nos? + +--Senhora condessa, respondeu o pintor com uma tranquillidade que +assombrou Amparo, sinto-me muito melhor, e resolvi restabelecer-me no +campo. Dentro em pouco as brisas do outomno annunciarão o inverno, e +creio que me é conveniente fortalecer-me primeiro. + +--Se a sua resolução é inabalavel, não nos devemos oppôr, nem meu marido +nem eu, mas creia, senhor Ernesto, que ambos sentimos do coração que o +senhor deixe tão depressa esta casa, que podia considerar como sua. + +Ernesto sorriu-se amargamente, fez um movimento de indifferença com os +hombros, e ajuntou: + +--Ha creaturas, minha senhora, para quem o mundo é um deserto, um campo +de tristes saudades. Sósinhos na terra, vivem, sem uma affeição que os +console, sem um peito carinhoso onde possam reclinar a fronte nas horas +d'amargura. Para estes seres, a sociedade dos homens é demais, porque +desconhecendo o embuste e a falsidade, são sempre enganados; eu talvez +pertença a essa desgraçada familia de orphãos das grandes cidades. Por +isso estou resolvido a nunca mais pisar as suas ruas, por isso me vou +encerrar como um selvagem nos montes de Toledo esperando no meio +d'aquelles agrestes barrancos o ultimo momento da minha vida, que +felizmente não se fará esperar muito. + +Amparo inclinou tristemente a cabeça sobre o peito. As palavras eram uma +terrivel accusação, um castigo ao seu coquettismo. + +--Porque me não odeia, senhor Ernesto? tartamudeou Amparo. Porque me não +despreza? + +--Senhora, a minha alma não póde nem odiar, nem desprezar, nem esquecer. +As noites de Florença e de Roma imprimiram n'ella uma impressão +demasiadamente profunda. + +A condessa comprehendeu que a conversa ia seguindo um rumo perigoso. + +--Pois bem, senhor Ernesto, disse, peço-lhe em nome da amizade que +apague da memoria essas noites. + +--Impossivel; é uma recordação que faz parte da minha vida; e por assim +dizer a minha segunda natureza. Quando der o ultimo suspiro, quando +deixar de existir, então, sim, então é que se extinguirá do meu peito. + +--Mas sente-se assim tão doente? perguntou Amparo, que, aturdida ante as +sentidas recriminações do pintor, não sabia que dizer. + +--Quem sabe se serei um d'esses ridiculos apprehensivos que á força de +pensarem na morte sempre d'ella vão escapando! + +E sorrindo com um ar triste, continuou: + +--O ar saudavel das montanhas talvez me restabeleca. + +E puxando o cordão da campainha, disse a um creado: + +--Diga ao senhor D. Ventura que me vou embora immediatamente e que o +espero para me despedir. + +Amparo, ante aquella resolução inesperada, que punha fim á entrevista de +uma maneira brusca, levou as mãos á cara para occultar as lagrimas que +lhe fôra impossivel suster. + +--Póde-me odear, se assim lh'o apraz, disse a condessa; mereço-o, porque +não ha palavra com que possa desculpar o meu procedimento. + +E sahiu precipitadamente do quarto. + +--Ah! exclamou Ernesto, vendo-a sahir. Não posso esquecer esta mulher!... + +Deixou-se cair n'uma cadeira, como se o abandonassem as forças para +suster-se de pé. + +Em vão D. Ventura procurou persuadir Ernesto de que a vida de caçador +montez, quando se carece de saude, é uma temeridade. O pintor estava +resolvido, e sahiu de casa do conde. + +Quando chegou a sua casa da rua do Prado, quando os seus amigos André e +Marcial o viram entrar pallido como um cadaver e fraco como um +convalescente, depois de oito dias de ausencia, não puderam conter um +grito de assombro. + +Ernesto explicou-lhes a ausencia e participou-lhes o plano que concebêra +para se curar. + +N'aquella mesma noite escreveu uma carta a Mauricio, caçador de +profissão, que vivia nos montes de Toledo. + +Tres dias depois, Mauricio respondeu a Ernesto, offerecendo-lhe a sua +casa, participando-lhe que se casára, e que, por conseguinte, podia +estar com alguma commodidade. + +Ernesto fôra caçador n'outros tempos, antes de partir como pensionista +para Roma. Era d'aquella epocha que conhecia Mauricio, com quem entrára +em algumas caçadas. + +Resolvido a emprehender a viagem, principiou a dispôr tudo, isto é, pôz +n'um caixote alguns quadros, o cavallete, a caixa das tintas e os +pinceis; n'outra metteu alguns livros de estudo e de recreio. + +Só lhe faltavam os apetrechos de caça, quando uma manhã em que se +dispunha a sahir para comprar todos esses artigos, viu entrar o mordomo +do conde de Loreto, seguido de dois creados que traziam duas caixas e +dois bellos cães inglezes, um Setter e outro Pointer. + +O mordomo avançou com o seu costumado ar grave, e, entregando uma carta +a Ernesto, disse-lhe: + +--Meu amo, o senhor conde de Loreto, manda-me entregar esta carta, +estas caixas e estes cães, ao senhor, encarregando-me de lhe pedir o +desculpe de não vir pessoalmente, mas é-lhe inteiramente impossivel. + +A um signal do mordomo, os creados arriaram no chão as duas caixas e +amarraram os cães ao pé de uma mesa. + +--Creio que o senhor não deseja mais nada, ajuntou o mordomo, vendo que +Ernesto guardava silencio. + +--Diga ao senhor conde que lhe agradeço reconhecidissimo a offerta que +se digna fazer-me, e que lhe falarei ou escreverei antes de partir. + +O mordomo cumprimentou e sahiu seguido dos creados. + +Então Ernesto fez uma caricia aos cães, que se acercaram, meneando a +cauda, e exclamou: + +--Aqui estão os meus novos amigos. Oh! Estes sim, que não me venderão! + +E sentando-se n'uma cadeira, abriu a carta do conde e leu: + + +«Meu bom amigo + + «Deixou-me com o quadro de Esther uma recordação que conservarei + emquanto viver; permitta-me que lhe remetta tambem como uma + lembrança, os meus melhores cães e algumas armas e objectos que + podem ser de muita utilidade no campo. + + «Carlos I de Inglaterra offereceu a Rubens, em pleno parlamento, a + espada que levava cingida á cinta, um diamante que trazia no dedo e + uma banda de diamantes que lhe cruzava o peito. Tudo isto foi a paga + do magnifico retrato d'aquelle monarcha que mais tarde tão maus + boccados fez passar a Luiz XVI. Permitta, pois, que eu, sem ser rei, + tome a liberdade de offerecer alguns apetrechos de caça, de + pouco valor, e não esqueça que espero com anciedade noticias da sua + saude e algum quadro dos que me prometteu. + + «Minha mulher e meu sogro cumprimentam-n'o e desejam vêl-o + brevemente em Madrid restabelecido da sua doença + + Seu amigo + + _Fernando del Villar._» + + +Ernesto leu duas vezes a carta, e, soltando um suspiro, murmurou em voz +baixa: + +--Eis-me amigo do conde de Loreto, de um homem com quem estive a ponto +de me bater. + +Ernesto abriu as caixas, encontrando n'ellas tudo quanto póde necessitar +no campo um caçador de dinheiro. + +Só a mão de uma pessoa intelligente teria sido capaz de reunir todos +aquelles objectos. + +Ernesto encontrou duas espingardas, uma de Scotte de dois canos, do +systema Lefaucheux, outra de Greener para tiro de bala, uma excellente +botica de viagem, uma barraca de campo, uma mala de couro da Russia com +quinhentos cartuchos carregados com chumbo, e outra com duzentos +carregados com bala; um fato completo de camurça, botas de cautchouc, +facas de matto, um rewolver Flaubert de doze tiros, com ornamentações de +ouro, um estojo com todas as peças em prata, duas mantas inglezas e +varios artigos todos diversos e uteis. + +Indubitavelmente o conde de Loreto gastára mais de cinco mil duros com o +presente. + +Ernesto contemplou tudo com profunda melancholia. + +--É preciso acceitar, disse. Ia para Toledo com um equipamento mais +modesto. Emfim, tanto melhor para o pobre Mauricio, que se se portar +bem, será o meu herdeiro no dia em que eu morrer. + +Como se vê, Ernesto, não deixava nem um só momento a ideia da morte. + +N'aquella noite Ernesto escreveu a seguinte carta: + + +«Senhor conde + + «A opportunidade produz sempre bom resultado no animo impressionavel + das creaturas. Dispunha-me a sahir de casa com tenção de comprar + alguns apetrechos de caça, quando vi entrar o seu creado com o que + me enviou. + + «Sem ter nada de Pedro Paulo Rubens, não agradecerei menos os + presentes que me fez, do que agradeceu o pintor flammengo os + donativos de Carlos I. + + «Obrigado, pois, senhor conde, pela sua delicada offerta. Ámanhã + parto e talvez nos não tornemos a vêr, apezar dos bons desejos que + têem pelo meu restabelecimento. Ha doenças que cada hora qua passa + nos leva uma parte da existencia, são as incuraveis; e a minha é + d'essas que se chamam de morte. + + «Não é o medo nem a apprehensão que me fazem dizer isto; sei bem + qual é o mal que me consome, e só terei illusões, quando tiver sido + tocado pelos dedos gelados da morte. Deus quer que os doentes do + peito sonhem com a vida nos ultimos momentos. + + «Adeus, senhor conde. Em breve lhe enviarei por pessoa da minha + confiança o primeiro quadro que pintar, e assim o irei fazendo + successivamente, mas não receio, que a collecção seja muito grande. + + «Cumprimentos á senhora condessa e ao senhor D. Ventura, e não + esqueça este desterrado voluntariamente, que prefere a solidão do + campo ao ruido e bulicio dos homens. + + «Sempre seu amigo + + _Ernesto Alvarez._» + + +No dia seguinte, Ernesto, depois de fazer varias compras, entre as quaes +se contava um vestido para a mulher de Mauricio, despediu-se dos amigos +e entrou n'uma carruagem de primeira para Toledo. + +Ernesto possuia por uma unica fortuna, ao partir de Madrid, dez mil +reales que lhe produziram os objectos e quadros que vendeu. + +Álêm dos quinhentos duros e dos presentes do conde de Loreto, levou uma +grande caixa com garrafas de champagne, rhum, cognac, aguardente e bom +café. + +--Esta caixa será a minha alegria, disse Ernesto, sorrindo-se para os +amigos. O rhum concilia o somno e o champagne alegra os pensamentos. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +Mauricio esperava-o em Toledo. + +Carregou-se toda a bagagem em varios animaes e partiram para os montes, +onde o caçador morava. + + + + +CAPITULO XXII + +Vida de recordações + + +A mulher de Mauricio não conhecia Ernesto; mas vendo-o chegar com o +marido e toda aquella bagagem, disse: + +--É um principe que entra para nossa casa. + +E effectivamente, o pintor foi para aquelle honrado casal tanto como um +principe, a julgar pela generosidade com que pagava os serviços que +recebia. + +Petra ficou louca de contentamento, vendo sobre uma cadeira o presente +que Ernesto lhe trouxera, e que constava de um vestido de lã, um lenço +de seda e uns brincos de ouro e coral. + +Mauricio examinava tambem com satisfação uma espingarda de dois canos, +de fabrico belga, e uma forte e boa faca de matto. + +--Mauricio, disse Ernesto, depois de entregar os presentes; estou muito +doente e venho passar algum tempo comtigo. Sei que vives da caça. +Nomeio-te meu caçador, e dou-te um duro por dia. Aqui tens +adeantadamente dois mezes. + +Ernesto pôz na mesa sessenta duros. + +Mauricio e Petra olharam para o dinheiro, sem comprehenderem uma palavra +de tudo aquillo. + +--A caça que matarmos, exceptuando algumas peças que Petra cosinhará, é +tua e pódes vendêl-a e guardar o dinheiro. Eu comerei com vocês. Nada de +cerimonias, o modesto cosido e uma vez por outra uma perdiz com molho de +villão ou um coelho á caçadora, de que muito gósto, e por isso para +prato darei doze reales diarios. O café e o vinho ficam por minha conta. +Por agora aqui têem esse caixote, onde estão varias garrafas. Preciso +que me cedam a sala, porque tenciono pintar alguns boccados. Tambem +virei a precisar que de vez em quando vás a Madrid levar os quadros que +pintar e comprar varias cousas que me tornem mais ameno este deserto. +Emfim, meu caro Mauricio, sei que vou dar-te muitos incommodos, que vaes +ter muitos carinhos para commigo, mas eu procurarei recompensar-te o +melhor que puder. + +--Offerece-me muito, disse o caçador, visto poder vender uma parte da +caça que matarmos, e então com o senhor que atira tão bem ou melhor do +que eu!... + +--Mas estou doente, e já não tenho as infatigaveis pernas d'outros +tempos; e muitos dias deixaremos de matar por causa d'ellas. + +Durante aquelle dia, Ernesto, Mauricio e Petra occuparam-se em +arrumações, transformando a sala em atelier para o pintor. + +--Agora, meus amigos, só me falta advertil-os d'uma cousa, disse +Ernesto. Estou doente, e como todos os doentes tenho as minhas +rabugices. Quando estiver no meu quarto, depois de me chamarem duas +vezes para comer e eu não vier, comam sem esperarem por mim. + +Mauricio e Petra notaram que Ernesto estava muito pallido e com mau +parecer, que tinha uma tosse tão sêcca e importuna que não prophetisavam +nada de agradavel para o seu hospede. + +Quando Mauricio e sua mulher recolheram ao quarto, ella disse: + +--Uhn! Parece-me que o senhor Ernesto não viverá por muito tempo. + +--O mesmo penso eu. + +--Sabes, Mauricio, que me parece que deve haver algum mysterio em tudo +isto? + +--Anh! As mulheres não pensam n'outra cousa. Aqui não ha outro mysterio +senão que o senhor Ernesto está doente e que se vem restabelecer. + +--Seja como fôr, que seja bem vindo, porque com elle veiu a fortuna. + +Mauricio não respondeu. Como a mulher, suspeitára que algum desgosto +atormentava o seu hospede, mas mais prudente que Petra, disse de si para +comsigo: + +--Dêmos tempo ao tempo que saberemos a verdade. Emfim, seja como fôr, +Ernesto é bom rapaz e sinto-me satisfeito por vêl-o em minha casa. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +Ernesto estava fechado no quarto. Seriam onze horas da noite. O luar +entrava pela janella que se conservava aberta. A brisa nocturna levava +até elle, de envolta com as suas invisiveis pregas, o perfume das +silvestres plantas do monte. + +Aos pés da cama, sobre duas pelles de carneiro, dormiam os dois cães que +Ernesto baptisára com os nomes de Roma e Florença. + +O pintor, sentado junto de uma mesa, tinha na sua frente uma garrafa de +cognac e um copo. + +Não illuminava o quarto outra luz senão a do astro da noite. + +De vez em quando Ernesto bebia um gole de cognac e levava a mão ao +peito, respirando com difficuldade. + +--Ah! Sim, sim, dizia, falando comsigo. A solidão dos montes, é o que me +convêm, porque longe da importuna charlatanice dos homens poderei +dedicar a ella todos os momentos da minha vida. Quizera apagar da minha +alma a recordação d'aquellas noites de Florença e arrancar dos meus +labios o beijo de fogo que me queima o coração. Mas é impossivel! Cada +vez a amo mais. Que seja feliz já que eu o não posso ser! + +Ernesto bebeu de um só trago o conteúdo que ainda tinha no copo e +encheu-o novamente. + +--A embriaguez sempre me repugnou, continuou, mas é o meu unico recurso +para esquecer. Que feliz é o homem que esquece! + +E Ernesto esvasiou o segundo copo, fazendo um gesto de repugnancia; mas +dominando-se a si mesmo encheu-o pela terceira vez, despejando-o +rapidamente. + +--Abraza-se-me a garganta, murmurou, mas é preciso que durma e que esqueça. + +E, levantando-se tirou uma garrafa de champagne do armario onde as +arrumára, fez-lhe saltar a rolha, e bebeu com avidez, dizendo: + +--Este é que é o grande vinho! Vinde, sonhos côr de rosa! Vinde, ainda +que seja uma mentira, uma illusão, fumo que desappareça ao sopro +terrivel da realidade! + +E depois de exgotar a garrafa, deixou-se cahir na cama, onde não tardou +muito que adormecesse, porque estava completamente embriagado. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +Mauricio e Petra levantaram-se com o sol, e viram, com grande assombro, +ao passarem pelo quarto de Ernesto, que as janellas estavam abertas. + +--Sahiria tão cedo? disse Mauricio. + +E entrou no quarto. + +Ernesto dormia. Mauricio fechou a janella e sahiu nos bicos dos pés +para o não despertar, mas toda a precaução foi inutil, porque Ernesto +abriu os olhos e viu-o. + +--Ah! És tu? disse elle. Bons dias, Mauricio. Que bem que dormi. + +Mauricio reparou então que o seu hospede não se despira, e que sobre a +mesa estavam duas garrafas despejadas. + +--Sabes, Mauricio, que estou com vontade de experimentar os meus cães? + +--Podemos dar uma volta, se quizer. + +--Mas é preciso ter alguma contemplação. + +--Andaremos só o que quizer. + +--Então vamos. + +E Ernesto poz a cartucheira, pegou na espingarda e chamou os cães. + +A uns quinhentos passos de casa, Roma e Florença levantaram os focinhos +e moveram a cauda com mais viveza do que a usual. + +--Parece que os cães se sentem satisfeitos, disse Ernesto. + +--Têem bom faro. Já sabem que este terreno é muito abundante de caça; e +estou crente que algum dia vou encontrar as perdizes dentro de minha casa. + +Os cães deram signal: Roma todo curvado com o focinho junto ao matto, +Florença extendido. Roma encontrára uma peça de surpreza e Florença o +rasto verdadeiro. + +Um bando de perdizes levantou-se então com estrepito do meio do matto á +investida dos cães. + +Mauricio disparou, matando com o segundo tiro um perdigoto. Ernesto ia +tão distrahido que não teve tempo de fazer fogo. + +Desde o rei ao batedor, desde o caçador ao armador, todos quantos +abandonam as commodidades da sua casa e se dedicam aos prazeres da caça, +são inimigos irreconciliaveis da perdiz; por isso a natureza a dotou com +uma vista melhor que a do lynce, de um ouvido superior ao da lebre, e de +um instincto de conservação tão grande que não ha animal que lhe ganhe. + +Se a perdiz fosse tão dorminhôca como o arganaz e tão indolente como a +codorniz, teria desapparecido do reino animal antes de se inventar a +polvora. + +O arganaz tem, comtudo, tanto engenho como somno; diga o ardil +maravilhosamente inventado por elle para apanhar o incauto passarinho +que vae pôr sobre elle, satisfeito por ter encontrado um ninho onde +guardar os ovos. + +Mas deixemos esta digressão. Se algum dia as minhas occupações +permittirem, escreverei um livro para os caçadores que contenha a parte +agradavel e ridicula da caça, consignada na pratica de muitos annos de +experiencia passados na agreste e grata solidão dos montes. + +Voaram as perdizes, surprehendidas no seu doce bem-estar, á sombra de um +sobreiro, e como o violento e rapido vôo da perdiz excita e põe nervoso +o caçador aficcionado, Mauricio exclamou: + +--Vamos a ellas, senhor Ernesto. + +--Sim, sim, vamos, já que não disparei. + +Mauricio esqueceu n'aquelle momento que levava por companheiro um doente +fraco, e foi depressa, ou melhor dizendo, a correr pela encosta de um +barranco. + +Ernesto fez esforços para o seguir mas a meio caminho largou a +espingarda, extendeu os braços e cahiu desamparado. Tinha desmaiado. + +Mauricio deteve-se assustado, pegou no seu hospede ao collo e deitou a +correr até casa, que não era longe. Petra ao vêl-o entrar, trazendo +Ernesto nos braços, não poude conter um grito. + +Mauricio continuou o seu caminho e deitou Ernesto na sua cama, o qual, +pouco depois, abriu os olhos, enviando um sorriso de agradecimento ao +caçador. + +--Diabo! Que susto que me pregou, senhor Ernesto! Julguei que se +despenhava pelo barranco. + +--Bem vês, Mauricio, que não presto para nada, nem mesmo para caçar. Já +estou melhor. Mas em quanto não estiver em estado de te acompanhar, +dedicar-me-hei a caça de espera. Agora tranquilliza-te, hoje em vez +de caçar, pintarei. É preciso matar o tempo. + +Uma hora depois, Ernesto mais alliviado, tomava algum alimento e punha +uma tela n'um cavallete. + +Pensou alguns minutos qual o assumpto de que trataria primeiro, e acabou +por decidir-se, esboçando a scena que pouco antes succedêra no barranco. + + + + +CAPITULO XXIII + +Uma caçada + + +Durante oito dias Ernesto não tornou a pegar na espingarda. De manhã, +pintava, á tarde, seguido pelos cães dirigia-se a um monte proximo de +casa, sentava-se na parte mais alta e como gozava disfructando o +panorama que aquelle sitio apresentava, passava largas horas immovel +como uma estatua. + +Algumas vezes, já noite, Mauricio ia buscal-o e ambos regressavam a casa. + +Ao nono dia, Ernesto chamou Mauricio. + +--Desejo que vás a Madrid, disse-lhe, entregar este quadro á pessoa que +te indicarei, mas preciso primeiro que matemos um javali, para offerecer +á mesma pessoa. + +--Para isso é preciso fazermos uma espera toda a noite, e como o senhor +está muito fraco... + +--Não te inquietes com a minha fraqueza; esperaremos. Preciso de um javali. + +--Posso matal-o sósinho, se quizer. + +--Não, não; quero acompanhar-te. Quando póde ser? + +--Esta noite; sei onde se vae banhar uma manada d'elles, e é infallivel +matar-se algum. + +--Um só chega. + +--Pois matar-se-ha. + +--Então prepara tudo para esta noite. + +--Devo advertil-o de que o sitio onde vamos fazer a espera, fica a tres +quartos d'hora de caminho d'aqui. + +--Não faz mal, iremos com antecedencia. Sahiremos cedo. + +--Bem, bem. + +Mauricio sahiu do quarto de Ernesto, meneando a cabeça em signal de +desgosto, chegou á cosinha, onde estava sua mulher, e disse-lhe: + +--Petra, esta noite o senhor Ernesto quer que vamos á espera dos +javalis: tem desejos de matar um. Por isso cearemos uma hora antes de +pôr o sol. Talvez não voltemos em toda a noite. + +--Mas isso é uma loucura. O sr. Ernesto não está em estado de passar +tantas horas ao relento da noite. + +--Então que queres, embirrou que me ha de acompanhar! + +--Mas não acho bôa a vida que leva para quem precisa restabelecer-se. + +Mauricio encolheu os hombros, e, sentando-se num banco, enrolou um cigarro. + +--Estamos em quarto minguante. Para matar uma ou duas peças é preciso ir +aos charcos do barranco da Culebra, pois vão ali de noite beber agua e +fossar no barro. O caminho não é dos melhores. Queira Deus que possa lá +chegar. + +--Já lhe disseste isso? Porque não vae a cavallo? + +--Já, mulher, já; mas diz que quer ir a pé e quando elle teima não ha +outro remedio senão obedecer. + +Petra approximou-se do marido, e, baixando a voz, disse: + +--Dize-me, Mauricio. Tu conhécel-o ha muito tempo? + +--Sim, cacei com elle muitas vezes e sempre foi o melhor e o mais +generoso homem do mundo. + +--E tinha o vicio que tem agora? + +--Não, Petra, antigamente não bebia bebidas brancas, bebia sómente +vinho, e isso mesmo pouco. Hoje, como sabes, quasi todas as noites... + +Mauricio deteve-se, dirigiu um olhar para a porta, e depois continuou: + +--Hontem reprehendi-o amigavelmente, dizendo-lhe que não lhe podia +fazer bem beber tanto rhum, e elle, pondo-me uma mão no hombro, e +sorrindo-se com expressão bondosa, respondeu-me: + +--Caro Mauricio, ha dôres tão terriveis, desgostos tão profundos, que +para os esquecer algumas horas é preciso embriagarmo-nos. A minha doença +não tem cura; deixa-me, pois, beber, esquecer, dormir. + +--Quando eu disse que havia aqui algum mysterio!... disse Petra. + +--Tambem me parece que tens razão; aqui deve haver mysterio. + +--Sabes o que calculo? Que tudo isto deve ser obra de mulher. + +--E porque calculas que seja obra de saias? + +--Vaes vêr. Outro dia entrei no quarto para o tratar, como de costume, e +encontrei debaixo da almofada uma fita de seda, e um boccado de tela, +onde estava pintada uma cabeça de mulher extremamente formosa. Não tive +tempo para mais do que olhar rapidamente para estes objectos e tornal-os +a pôr no mesmo sitio em que os encontrei quando o vi entrar, +precipitadamente, dirigir-se para a cama, pegar n'elles e sahir do +quarto do mesmo modo, olhando-me de um modo estranho, como se quizesse +adivinhar se eu tinha visto. Fiz-me desentendida, e continuei arrumando +o quarto. + +--Que curiosas são as mulheres. + +--Juro-te que só por casualidade... + +--Emfim, seja como fôr, visto que elle nada nos disse, nos não lh'o +devemos perguntar. + +Como se vê a conducta de Ernesto causava viva curiosidade ao honrado +casal. + +Ao cair da tarde Ernesto e Mauricio levantaram-se da mesa. + +--Levamos Roma e Florença? perguntou o pintor. + +--Parece-me melhor deixal-os em casa, respondeu Mauricio; não estão +costumados ás esperas, e poderão espantar-nos a caça. Levarei antes o +meu podengo para que procure a presa no caso de ficar ferida. _Currito_ +(assim se chamava o cão de Mauricio) deita-se a meus pés e não se move +d'ahi. + +--Vamos quando quizeres. + +Mauricio carregou com escrupuloso cuidado a espingarda e guardou um +frasco de rhum no bolso. Ernesto pegou na sua e sahiram. + +O sol começava a declinar. + +--Temos tempo, disse Mauricio. D'aqui até aos charcos levaremos quando +muito tres quartos de hora. Reconheci esta manhã o terreno e calcúlo +pelas pégadas que são uma femea com sete a oito filhos, e dois machos +que não devem ter menos de dez annos. Os machos veem sós, antes ou +depois da femea. Parece-me que nos divertiremos, mas é preciso ter muita +paciencia, porque apezar de todas as rezes abandonarem as tocas quasi á +mesma hora, umas estão mais longe do que outras do barranco e chegam por +conseguinte mais tarde. Tenha cuidado em fazer fogo sobre a peça antes +d'ella entrar n'agua. Se cair morta fique quieto, porque quando o charco +estiver silencioso, em poucos minutos apresentar-se-nos-ha outra, e +assim successivamente se podem disparar alguns tiros durante a noite. O +sitio onde vamos é bom, e estaremos perfeitamente collocados. + +Ernesto ouvia satisfeito as lições que lhe dava aquelle homem +experimentado. + +Mauricio que como todo o caçador de profissão tinha uma vista +privilegiada, deteve-se, inclinou-se para reconhecer o caminho, e disse: + +--Ola! Por aqui passou um veado de _dez pontas novas_; aqui ha pégadas +recentes; os córtes na herva são frescos. A femea caminhava mais á +direita: passou por aqui. + +--Mas como diabo conheces se é femea ou macho? perguntou Ernesto, +admirado da certeza com que Mauricio falava. + +--Isso salta bem a vista. Um montanhez practico nunca se engana. O veado +tem o passo maior do que a corça, e deixa a pégada mais profunda, +caminha com mais regularidade, e colloca a pata trazeira sobre a pégada +da pata deanteira. A corça tem o pé mal feito, os seus passos são mais +curtos, e por conseguinte, não chega com as patas trazeiras ás pégadas +das patas deanteiras. Emquanto ao conhecimento pelas pégadas, é +unicamente devido á grande practica. Quando se segue um rasto pelas +pégadas, o caçador deve conhecer se o veado que persegue é _estaquero_, +isto é, se lhe começam a sahir os paus, tem um anno; _enodis_, tem tres +a quatro annos, _diez condiles nuevos_, se entrou nos seis annos, ou +_ciervo viejo_, se tem mais de dez annos. A estes conhece-se facilmente; +têem os pés deanteiros mais desenvolvidos do que os trazeiros. + +Depois d'estas explicações que deixaram Ernesto satisfeito, receou não +as poder pôr em practica sem commetter grandes erros. + +De vez em quando o caçador dirigia um olhar furtivo ao seu companheiro, +cuja pallidez e difficil respiração o inquietavam. + +A meio da ladeira, que tinham que transpôr para chegarem aos charcos, +situados em um dos barrancos, Mauricio deteve-se e disse com manifesto +interesse: + +--Senhor Ernesto, vejo que está muito cançado. Quer encostar-se ao meu +braço? + +--Não preciso, mas vamos mais devagar, se te parece. + +Como quizer. + +Quando chegaram ao cume, Ernesto teve necessidade de se sentar e, +encostando os cotovellos sobre os joelhos, deixou cahir a fronte entre +as mãos. + +O caçador não disse nada; de pé, immovel, ficou contemplando Ernesto com +tristeza. + +Mauricio não tinha palavras, mas sobrava-lhe coração para compadecer-se +do seu hospede, a quem julgava gravemente enfermo. + +--Podemos continuar, disse Ernesto, levantando-se. + +--Agora o caminho é mais facil, respondeu Mauricio. Os charcos estão +n'esse barranco; antes de um quarto de hora estaremos commodamente +sentados nos nossos postos. + +Mauricio seguiu por uma vereda aberta entre a matta. Ernesto caminhava +atraz. + +De vez em quando o caçador voltava a cabeça para vêr se o seu +companheiro o seguia. + +Quando chegaram aos charcos ainda restavam alguns instantes de dia. As +magestosas sombras da noite avançavam com rapidez, mas a lua ia +rapidamente tornal-as menos escuras, pois o seu disco despontava já no +horisonte. + +--Parece-me conveniente que fiquemos juntos, porque assim quando estiver +cançado voltaremos para casa, disse Mauricio. + +--Mas mataremos menos caça. + +--Quem sabe! Podem entrar juntas e então cada qual escolhe a sua. + +Mauricio conhecia varios esconderijos em torno do charco e escolheu, +pelas recentes pégadas dos javalis, o que lhe pareceu melhor; dobrou o +capote, e estendeu-o no chão para que Ernesto estivesse mais +commodamente e esperaram calados. + +A noite é mais magestosa, mais imponente, mais bella no meio do Oceano +ou n'uma montanha, do que nas ruas de Madrid. Nas grandes cidades vê-se +por toda a parte a mão do homem, mas no mar ou na montanha vê-se a de Deus. + +Ernesto e Mauricio esperavam no mais profundo silencio. O pintor +entretinha-se contemplando o magnifico astro da noite que subia +magestosamente pelo céu enchendo o espaço de poetica e melancholica +luz, que cahindo como chuva de perolas sobre as armadas das arvores +e sobre as silenciosas aguas do charco, dava um tom encantador á paisagem. + +Ernesto, como pintor, pensava em fazer um estudo d'aquelle logar e +pintar depois um quadro; mas ao mesmo tempo pensava na mulher do homem +que se compromettera a comprar-lhe tudo quanto pintasse durante a sua +estada nos montes de Toledo. + +A presença da lua, o imperceptivel movimento das ramadas dos azinheiros, +o silencio da noite que o rodeava, fizeram-lhe recordar Florença. Fechou +os olhos para sonhar acordado, e os seus labios entreabriram-se em doce +extasis, como se fôsse a dar e receber um apaixonado beijo de amor. + +N'aquelle momento para elle não existia mais do que o presente. A sua +vida era uma recordação; a sua alma apaixonada apresentava-lhe com todas +as côres da verdade as scenas apaixonadas e perdidas para sempre, causa +da sua desgraça, origem da sua morte. + +Se tivesse entrado no charco um bando de cincoenta rezes, Ernesto não +ouviria; mas, felizmente tinha ao seu lado Mauricio, caçador de +profissão, que sem ter a imaginação preoccupada com outra cousa que não +fosse o fim para que fôra até alli, estava com o olhar fixo, o ouvido +attento e a espingarda prompta a despedir a morte e como o verdadeiro +caçador que quando faz uma espera tem o ouvido e a vista tão perspicaz +como a da perdiz, e por isso sem duvida Ernesto sentiu que o seu +companheiro lhe tocava no braço. + +Ernesto abriu os olhos. + +--Acorde, que já as ouço. + +--Não estou a dormir, respondeu o pintor, mas não ouço nada. + +--Pois já se approximam, tenha a certeza, ainda estão longe, e são +femeas; conhecem-se pelo barulho que fazem. Os machos veem sempre mais +silenciosos. + +Ernesto applicou o ouvido, e, depois de um segundo de immobilidade, +meneou a cabeça dizendo: + +--Pois eu não ouço nada. + +--Sim? Pois tenha paciencia que não tardará muito que tenha de tapar os +ouvidos, porque a musica d'ellas, quando andam em manadas, não é por +certo das mais agradaveis. Veem a entrar por aquella clareira que está +na nossa frente. Antes de se metterem n'agua, de que tanto gostam, param +para conhecerem o terreno. Então deve fazer fogo, apontar á maior que +ficar a sua esquerda; eu entreter-me-hei com a direita a vêr se, +disparando ao mesmo tempo, matamos duas. + +E Mauricio, collocando o bico do pé esquerdo sobre o de Ernesto, disse: + +--Quando carregar com o meu pé, faça o _gosto ao dedo_ e faça fogo. E +agora silencio que já estão perto. + +Dois minutos depois, Ernesto ouvia a algazarra que Mauricio lhe annunciára. + +Esperaram, pois, pelo momento opportuno que se não devia fazer esperar +muito. + +No sitio que Mauricio indicára appareceu de repente uma femea muito +grande seguida de seis javalis pequeninos cujas desegualdades de tamanho +indicavam ser de duas ninhadas differentes. + +Ernesto pudéra ter feito fogo á femea; estava uns cinco passos afastada +dos filhos, levantando a cabeça em direcção aos charcos. + +O pintor olhou para o seu companheiro como que a interrogál-o, mas o +caçador indicou com um movimento de olhos que esperasse. E +effectivamente a uns vinte metros de distancia do logar em que estava a +femea, abriu-se uma clareira e appareceu um javali quasi do dobro do +tamanho da femea. + +A lua estava tão clara que os caçadores viram perfeitamente os animaes. + +Ernesto sentiu o pé de Mauricio comprimir o seu, e como tinha a +espingarda apontada, disparou. + +As duas detonações produziram no espaço um só echo. + +A bala de Mauricio foi tão bem apontada que o javali deu um salto, +caindo sem vida depois de soltar um grunhido de raiva. A femea, a que +Ernesto apontára foi ferida na cabeça; deu duas voltas, quiz fugir, mas +foi cair junto ao charco; depois fez um esforço supremo, levantou-se +novamente, entrou na agua para tornar a cair revolvendo-se nas ancias da +morte, soltando grunhidos desesperados que pouco a pouco foram +enfraquecendo. + +Os demais tinham desapparecido como por encanto. + +Mauricio ouvia as palpitações do coração de Ernesto cujo ruido e +precipitação o assustaram. + +--Está peor? lhe perguntou. + +--Não, não; é o prazer que experimento n'este momento. Se tornasse a +renascer em mim a paixão da caça, talvez esquecesse uma historia que me +assassina, que será a causa da minha morte. + +O pintor revelára a Mauricio n'um arranco de enthusiasmo, a causa da sua +melancholia, a origem da sua doença. + +--E que fazemos agora? perguntou Ernesto. + +--Primeiro que tudo castrar o macho para que sangre e a carne perca o +gosto a bravo. + +Mauricio levantou-se, tirou a faca de matto da bainha, e sahiu do +esconderijo, dirigindo-se para o sitio onde estava o javali. + +Ernesto segui-o, examinando com o mais particular interesse todas as +operações que Mauricio fazia ás duas peças mortas. + +O caçador depois de lhe abrir todo o ventre e de lhe tirar os +intestinos, pendurou-os pelos pés para que sangrassem e ficassem limpos. +Depois lavou as mãos na agua do charco, e disse: + +--Agora diga-me se quer dar por terminada a caçada ou quer fazer nova +espera, apezar de me parecer melhor, o primeiro caso, pois é preciso +esperar pelo menos duas horas até que volte outro javali. + +--Vamos para casa. E as rezes? + +--Ficam ahi. Venho logo buscal-as com o meu cavallo. + +--Então dá-me um gole de rhum, e a caminho. Passei um bom boccado. + +Ernesto bebeu e deu o frasco a Mauricio. Depois dirigiram-se para casa +onde o pintor chegou bastante fatigado. + + + + +CAPITULO XXIV + +Uma carta e um annel + + +Ernesto deixou-se cahir na cama, e como sempre, o seu pensamento +occupou-se de Amparo. + +--Ámanhã, disse, falando comsigo, ouvirá pronunciar o meu nome, e no +fundo da sua alma renascerá a recordação das noites de Florença. Os seus +labios, vermelhos como bagos de romã, recordar-se-hão tambem d'esse +beijo fatal que me fez o mais desgraçado dos homens, e pela mente do +conde de Loreto cruzará debil, mas ameaçador, o phantasma de uma duvida, +a sombra de uma suspeita. + +Ernesto tinha sempre na mesa de cabeceira uma garrafa de rhum; extendeu +o braço, pegou na garrafa e bebeu um gole. + +--Ha quasi um mez sem a vêr, continuou, e comtudo a ausencia não apagou +o fogo devorador d'esta paixão que me abraza. O conde de Loreto tinha +mais direito do que eu para ser amado, mas indubitavelmente não a ama +tanto. E que importa isso ás mulheres? O conde é rico, nobre, e a +vaidade é o dominio tentador do bello sexo. Se o amor é o fogo d'alma +que transmitte calôr ás ideias dos homens de genio, devo fazer grandes +quadros. + +E Ernesto soltou uma gargalhada, pegou novamente na garrafa, e +quasi a despejou de um trago. + +Na sua physionomia, no seu olhar, assomaram os symptomas da embriaguez +produzida pelo alcool. + +Com a lingua, presa e balbuciante, começou a falar em voz alta. + +--A luz dos seus bellos olhos é o unico reflexo que illumina as +profundas trevas da minha alma, a que acompanha a fria soledade do meu +coração; as seis lettras do seu nome, as notas mais harmoniosas que +resôam no fundo do meu peito. Insensato! A tua vida não é mais do que um +sonho, que se desvanece ante o sopro da realidade. Tu recebeste tres +beijos, durante tres noites de luar; aquelles beijos encerravam o veneno +do teu sangue. A tua vida não é vida; o teu amor é só uma recordação. +Onde está a morte? Porque tarda tanto? Porque não chega, quando a espero +de braços abertos? + +Ernesto fechou os olhos. Os seus labios entreabriram-se para deixar +passar um suspiro, e ficou dormindo pensando em Amparo. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +Mauricio entrou no quarto do seu hospede ás cinco da manhã. + +Ernesto levantou-se. + +--Está tudo prompto para partires? perguntou. + +--Sim senhor; tenho o javali grande preso convenientemente ao cavallo. Á +femea, segundo as suas ordens, tirei-lhe a cabeça e o lombo; o resto +fica em casa. + +--Espera, disse Ernesto. + +E pegando n'uma carta que estava sobre a mesa e n'uma tira de papel, +continuou: + +--Entregas esta carta, o javali grande e estes dois quadros ao senhor +conde de Loreto, rua do Barquillo, n.º..., e comprarás tudo o que vae +mencionado n'esta lista. + +Ernesto abriu uma gaveta da commoda, tirou dez moedas de cinco duros e +entregou-as a Mauricio. + +Depois escreveu rapidamente n'uma folha de papel: + + +«Meus bons amigos + + Marcial e André + + «Remetto-lhes uma cabeça de javali que cosinharão no restaurante do + _Armiño_ para almoçarem com alguns amigos, bebendo por este caçador + _selvagem_ que se não esquece de vocês. + + «Sempre amigo + + «_Ernesto._» + +--A cabeça e o lombo da femea entrega-os onde diz este envellope, rua do +Prado. Vae com Deus e vem ámanhã, se te fôr possivel. + +Mauricio sahiu, despedindo-se da mulher, e encaminhou-se para Toledo, +onde devia tomar o comboio de Madrid. + +Ernesto pegou na espingarda, chamou os seus cães Roma e Florença, e +sahiu tambem em busca de perdizes, prevenindo Petra de que não viria +almoçar antes do meio dia. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +O conde de Loreto, Amparo e D. Ventura estavam almoçando quando entrou +um creado dizendo-lhes que estava á porta um homem que parecia um +montanhez, que trazia uma carta, um javali e uns quadros. + +--Ah! exclamou o conde, Ernesto cumpriu a sua palavra. Dize a esse homem +que suba e tragam vocês o javali para o vêrmos. + +Dois creados trouxeram o javali para cima de uma mesa. + +--Soberbo animal! exclamou Fernando. Pelas cerdas e pelos dentes bem se +vê que deve ser velho. + +--Oito annos, respondeu Mauricio. Vale bem a onça de chumbo que lhe deu +a morte. + +--Pelo que vejo, Ernesto diverte-se pelos montes? + +--Diverte-se, exclamou o caçador, tudo menos isso; está muito +doente, dorme pouco e não tem appetite. A bem dizer que se alimenta só +com café e rhum. Tenho cá um palpite em que não morrerá de velho. + +Todos escutavam com interesse as palavras de Mauricio. + +--Disseram-me que traz uma carta e uns quadros, disse Fernando. + +--A carta está aqui: os quadros deixei-os n'aquella casa. + +O conde leu em voz alta o seguinte: + + +«Senhor conde de Loreto + + «Ignoro ainda se é proveitosa ao meu corpo esta soledade em que vivo + ha vinte dias, mas conheço que é ao espirito. + + «No cume d'estas montanhas não se vêem homens, não se encontra a + animação nem o bulicio das grandes cidades, mas o ar é mais puro, o + horisonte mais limpido, o ambiente mais perfumado e respira-se com + mais facilidade. + + «Seja como fôr, espero sem sobresalto que se resolva o problema da + minha enfermidade, sem me occupar muito se será ou não vantajoso o + desenlace. + + «Com o portador d'esta, caçador infatigavel e amigo leal, em casa de + quem vivo no meio d'estes barrancos solitarios, remetto-lhe o + primeiro javali que matámos e dois quadros sobre assumptos de caça, + genero a que tenciono dedicar-me emquanto tiver forças para + sustentar o pincel. + + «Não marco preço aos quadros que lhe envio, porque d'isso falaremos + depois de lhe mandar doze. Demais, ainda que pobre, hoje não preciso + de dinheiro, mas avisál-o-hei quando precisar. Seja, portanto, o meu + banqueiro. + + «Para lhes provar que não os esqueço, desejava que me concedessem + auctorização para fazer trez retratos de memoria, ainda que se + admire ao vêl-os, o meu leal amigo D. Ventura. + + «Deponha aos pés da senhora condessa os meus respeitos, dê um abraço + em seu sogro e não esqueça que n'este deserto fica esperando + occasião de lhe ser util + + «o seu amigo e obrg.º + + «_Ernesto Alvarez._» + + +Amparo ouvira lêr a carta sem descerrar os labios, mas agradecia do +fundo da alma a fórma delicada como estava escripta. + +Só lhe prendeu a attenção a auctorização que pedia para pintar os tres +retratos, entre os quaes devia figurar o seu. + +--Quando tenciona voltar para Toledo? perguntou o conde ao caçador. + +--Desejava ir esta noite no comboio das sete e quarenta. Os meus +affazeres em Madrid, depois de sahir d'esta casa, resumem-se apenas a +algumas compras de que o senhor Ernesto me encarregou, e entregar uma +cabeça de javali e um lombo a uns senhores que moram na rua do Prado. + +--Tem algum inconveniente em me dizer que objectos o senhor Ernesto o +encarregou de comprar. + +--Não, senhor; aqui está a relação. + +E Mauricio entregou-a ao conde que depois de lêr, disse: + +--Meu amigo, tenho em casa tudo quanto Ernesto deseja; não precisa, +pois, ir comprar cousa alguma. Agora vá almoçar emquanto escrevo uma +carta, depois irá levar a cabeça a esses senhores, e meia hora antes do +comboio partir encontrará na estação, despachado para Toledo, tudo +quanto Ernesto pede. + +Mauricio com sinceridade natural, ia entregar ao conde o dinheiro que +Ernesto lhe dera. + +--Não, esse dinheiro entregue-o a quem lh'o deu, e demais, far-me-ha o +favor de acceitar esta _onza_,[2] para comprar um presente a +sua mulher. + +Mauricio tentou recusar a _onza_, mas o conde obrigou-o a acceitál-a. + +Depois, conduziram-n'o a outra casa onde lhe serviram o almoço. + +O conde escreveu entretanto a seguinte carta. + + +«Amigo Ernesto + + «Os quadros são bellos e o javali soberbo. Quando os homens têem + talento trabalham em todos os generos. Obrigado pela sua boa + memoria, obrigado, porque se não esqueceu de nós, apezar do mal que + lhe temos feito. + + «Pede-me auctorização para fazer tres retratos; concedo-lh'a + satisfeito não só por lhe ser agradavel a si como tambem ás pessoas + que vão ser retratadas nas telas. + + «Desejava passar uma temporada na sua companhia para caçarmos + juntos, e para vêr se o convencia a abandonar essa vida solitaria, + principalmente durante os quatro mezes de rigoroso inverno. + + «Até então veremos o que posso conseguir. Hei de fazer a diligencia. + + «Fico esperando os doze quadros que me annuncia na sua carta, o que + me prova que se sente animado para o trabalho. + + «Adeus, meu amigo, e não esqueça que lhe desejamos todas as + propriedades. + + «Sempre seu amigo, + + «_Fernando del Villar._» + + +O conde leu a carta á mulher e disse: + +--Agora, minha querida, escreve quatro linhas ao nosso amigo; talvez +isso lhe faça bem. + +Amparo olhou o marido, receando que aquelle desejo envolvesse uma +intenção pouco agradavel. + +O conde sorriu-se porque comprehendêra a duvida da mulher. Mas +rodeando-lhe a cintura, e, dando-lhe um beijo apaixonado, disse-lhe: + +--Leio nos teus olhos, minha querida, a desconfiança, e sinto-o; isso +indica-me que me amas muito, mas que me conheces pouco. Escreve a +Ernesto, sou eu que t'o peço. Quatro palavras tuas far-lhe-hão bem, o +desgraçado ama-te de toda a sua alma. Muito desgraçado o fizemos. Não +sejamos egoistas até ao ponto de sermos malvados gozando com a sua +agonia, com a sua dôr, que só terá fim com a morte. Escreve-lhe, pois, o +que quizeres, Amparo. + +O conde sorrindo-se com bondade, e dando segundo beijo na esposa, +continuou: + +--Não lerei o que escreves. Adeus. Quando acabares fecha a carta e +entrega-a tu mesma a esse homem. + +E o conde sahiu. + +Amparo ficou com a carta na mão e como que pregada ao chão. + +Aquella confiança que o marido acabava de mostrar era verdadeira ou um +laço? + +Amparo não podia crêr na hypothese de um laço n'um homem tão generoso +como Fernando. + +O conde de Loreto não era um homem vulgar. Amava a mulher, perdoára-lhe +o seu coquettismo com Ernesto antes de o conhecer a elle, calculava as +dôres e os soffrimentos do pintor a quem estimava devéras e por isso +disséra á mulher que escrevesse. + +Amparo sentou-se, pegou na penna e durante dez minutos não soube como +começar. + +De subito teve uma ideia. Os olhos brilharam-lhe, o semblante +reanimou-se-lhe: dir-se-hia que receava transmittil-a ao papel, mas +fazendo um esforço, e com mão mal segura, escreveu: + + +«Senhor Ernesto + + «Ja que meu marido o auctoriza a fazer os tres retratos, e julgando + que d'elles um será o meu, peço-lhe, (queira perdoar este capricho + de mulher), que se não esqueça do vestido que tinha em Roma quando + veiu offerecer-me o que fizera, e que ainda conservo sobre o fogão + do meu gabinete. + + «Trate-se, porque desejamos em breve vêl-o completamente restabelecido. + + _Amparo._» + + +A condessa fechou a carta e foi entregál-a a Mauricio, que já tinha +acabado de almoçar. + +--Entregue esta carta ao senhor Ernesto, mas só a elle, disse-lhe. + +--Sim, senhora condessa. + +Amparo ia a sahir, mas deteve-se. + +--É casado? perguntou. + +--Sim, minha senhora. + +--Então faça favor de dar da minha parte este annel a sua mulher, e +recommendar-lhe que trate do senhor Ernesto com todo o carinho. + +E Amparo como que envergonhada por aquelle arranco, tirou um annel do +dedo, entregou-o a Mauricio e sahiu, dizendo para comsigo: + +--Assim comprehenderá que me não é indifferente o seu soffrimento e que +a sua morte me ha de custar algumas lagrimas. + +Mauricio ficou um momento immovel. Pensava se aquella mulher tão formosa +teria alguma coisa que vêr com os padecimentos do seu hospede. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +Á hora indicada pelo conde, Mauricio estava na estação, onde um +creado lhe entregou uma guia do caminho de ferro. + +--Que é isto? perguntou elle. + +--Da parte de meu amo, o senhor conde de Loreto. Com esta guia lhe +entregarão em Toledo, pois que foram expedidas em grande velocidade, +duas caixas e um caixote grande. N'ellas vae tudo quanto o senhor +Ernesto encommendou. + +Mauricio guardou a guia na carteira e entrou para a _gare_, tomando +então logar n'um compartimento de terceira classe. + +Durante a viagem, o caçador olhou muitas vezes para o annel, e pensava +em quem lh'o dera, dizendo de si para comsigo: + +--Parece-me que vou descobrindo alguma cousa do segredo! + + + + +CAPITULO XXV + +O regresso de Mauricio + + +Quando Ernesto sahia só, afastava-se pouco da habitação de Mauricio. + +Muitas vezes pendurava a espingarda no ramo de um azinheiro, e, subindo +com difficuldade ao mais alto monte, sentava-se ahi, ficando largas +horas a contemplar a paisagem; outras, sem temer o perigo, descia ao +mais fundo dos barrancos, agarrando-se ás plantas, gozando tambem +n'aquella silenciosa soledade, onde o menor suspiro faz na concavidade +das rochas um echo como se repetisse a voz humana. + +Então esquecia os cães, a espingarda e a caça, e a recordação +inolvidavel de Florença preenchia-lhe por completo a sua imaginação. + +O seu amor por Amparo era tão constante, tão verdadeiro, tão grande, +que, enchendo todo o seu ser, formára n'elle uma segunda natureza tão +poderosa que era impossivel separar-se d'elle sem perder a vida. + +Conhecia, comtudo, toda a loucura da sua paixão, e acceitára-a como se +acceita uma d'essas doenças que se não procura e que nos causa a morte. + +Se Ernesto tivesse encontrado uma Heloisa, a terra para os dois amantes +teria sido um paraiso, mas encontrára uma _coquette_ que lh'a +converteu em pantanoso charco, que lhe envenenou o sangue ao aspirar os +maleficos miasmas que exhalava. + +O seu mal era irremediavel. O amor tem muitas vezes a sua dose de veneno +que causa a morte. + +Mas, apezar d'isso, o coração de Ernesto era tão grande, tão nobre, tão +generoso, que não odiava aquella que era seu tormento, antes pelo +contrario, amava-a cada vez mais. + +Talvez que ainda lhe restasse um pouco de esperança, e d'essa esperança +emanava a doce compaixão que sentia por Amparo. + +Por outro lado, o conde de Loreto era um homem digno de ser amado. Quão +doloroso teria sido para Ernesto vêr-se preferido por um homem indigno, +por um ser desprezivel, como acontece tantas vezes na vida! + +Quantos exemplos se podem citar de levianas mulheres que espesinham a +honra de homens illustres nos braços de amantes despreziveis! + +Ernesto reconhecia no conde grandes qualidades, e isto fazia-lhe menos +culposa a conducta de Amparo. Conhecia tambem que, se o conde não fosse +um homem superior e menos conhecedor do mundo, sabendo os antecedentes +de Roma e Florença e a parecença de Esther com a mulher, tomaria isso +por uma grave offensa e o assumpto não teria ficado assim. Talvez um +duello, e, por conseguinte, o escandalo que segue casos d'esta natureza, +teria augmentado as difficuldades a Ernesto para chegar até Amparo, +para ser talvez amado por ella com a vertiginosa paixão do adulterio. + +Com a conducta prudente, digna e sabia do conde, evitou todos os perigos +que ameaçavam o marido, a mulher e o amante, cortando com um só golpe a +cabeça á repugnante maledicencia, que já comecava a levantar-se, +sorrindo-se de uma maneira satanica. + +Por isso, Amparo e Ernesto admiravam o procedimento do conde de Loreto, +e este por seu lado, podia dormir tranquillo, com a segurança de que sua +mulher não o trahiria. E emquanto a Ernesto, sabia que de rival +intransigente se convertêra em amigo leal. + +Amparo, comtudo, passou mal algumas noites. Amava com delirio o marido, +mas convencida de que ella era a causadora da doença de Ernesto, temia o +momento em que uma carta participasse a sua morte, isto é, que em seu +peito entrasse o remorso, que tira o somno, que entristece a alma, que +põe uma nuvem no coração. + +.......................................................................... + +Mauricio chegou ao monte ao amanhecer do dia seguinte; Petra acabava de +se levantar, e ouvindo assobiar correu a abrir a porta. + +O caçador não vinha só. Acompanhava-o um homem com tres burros +carregados com os objectos que o conde enviára a Ernesto. + +--Tudo isto é para nos? perguntou Petra, depois de abraçar o marido. + +--É para o senhor Ernesto, que lh'o manda um amigo de Madrid. Mas tambem +trago um presente para ti. + +--Isso já eu esperava porque os bons maridos não se esquecem das +mulheres quando vão ás grandes cidades. + +O homem começou a descarregar as caixas e o caixote, deixando tudo junto +da porta. + +Mauricio entretanto metteu dois dedos da mão direita no bolso do collete +e tirou a _onza_ que o conde lhe dera, dizendo em voz baixa: + +Pega: isto offereceu-me aquelle senhor a quem levei o javali e os +quadros como gorgeta. É para comprares o que quizeres. + +--Uma _onza_! Fizeste bem em a não trocares, porque a mulher cuidadosa +pensa sempre no dia de ámanhã, e, quando apanha á mão uma moeda d'estas, +guarda-a como um remedio contra as necessidades da vida. + +--E o senhor Ernesto? perguntou Mauricio. + +--Ainda dorme. + +--Hontem sahiu? + +--Sim, um boccadito de manhã. Voltou muito cançado e comeu pouco. +Coitado! está cada vez mais triste. Esta noite entrei no quarto para vêr +se queria tomar alguma coisa, e encontrei-o com os olhos inchados, +enegrecidos, como se tivesse chorado. Muito grande deve ser o seu desgosto. + +Mauricio guardou silencio; e como o homem já tinha descarregado todos os +objectos pagou-lhe, dizendo: + +--Petra, dá a este homem alguma coisa de comer e de beber. + +Mauricio entrou em casa, dirigindo-se ao quarto de Ernesto, e, como +reinava o mais profundo silencio, pensou que se não respondesse, +chamando baixinho, seria melhor deixal-o dormir. + +Chamou, pois, á porta suavemente, mas a voz do hospede respondeu: + +--Quem é? + +--Sou, eu, senhor Ernesto. + +--Ah! Mauricio! Espera que vou abrir. + +Ernesto saltou da cama, abriu a porta e tornou a deitar-se. + +--Bem vindo sejas, Mauricio. Não te esperava tão cedo. Abre a janella e +dá-me conta da tua missão. + +--O conde de Loreto é um sujeito muito generoso, disse Mauricio. Depois +de me receber muito bem e de me dar de almoçar como a um principe, +deu-me uma _onza_ em ouro. + +Mauricio continuou contando tudo quanto se passára em casa do conde e +terminou: + +--Emquanto a senhora condessa entregou-me esta carta para si e +perguntando-me se era casado, disse-me: Pois dê este annel da minha +parte a sua mulher para que tratem com muito cuidado o senhor Ernesto. + +O pintor sentiu-se commovido até ao fundo d'alma. Mauricio comprehendeu +o effeito das suas palavras, e, tirando a carta e o annel, entregou tudo +ao hospede. + +--Mas este annel é para tua mulher, disse Ernesto, fixando-o com um +olhar penetrante. + +Mauricio sorriu-se e disse: + +--Isso é uma joia bôa de mais para quem está todo o dia a trabalhar. +Póde guardal-a. E de mais, Petra não sabe de nada, e olhos que não vêem +coração que não sente. + +Ernesto não poude conter a sua alegria e lançou-se nos braços de +Mauricio, cujo procedimento delicado lhe causou profunda admiração. + +--Ah! já me esquecia, disse Mauricio. Tambem os seus amigos da rua do +Prado me deram esta carta para si. + +E, entregando a carta, sahiu do quarto afim de deixar só o seu hospede, +de quem começava a descobrir o segredo. + +Ernesto, ao vêr-se só, beijou repetidas vezes o annel, apertando-o +depois com delirio de encontro ao peito. + +Leu a carta do conde e o post-scriptum da condessa, guardou-a juntamente +com o annel n'uma gaveta da commoda, e, procurando serenar, disse: + +--Ella não me esqueceu; isto sempre serve de consolação para o meu +peito. Vejamos o que me dizem Marcial e André, os meus bons amigos. + +Ernesto então leu: + + +«Illustre Robinson dos montes de Toledo + + «Recebemos a _tua cabeça_ e o _teu lombo_. e ámanhã brindaremos á + tua saude no restaurant do _Armiño_. + + «Não deves admirar-te de que te tenhamos na conta de um animal + feroz, pois que outro nome não merece o homem que deixa as delicias + de Madrid pelos selvagens barrancos dos montes de Toledo. + + «Agora outro assumpto. Tens todas as probabilidades que te concedam + o primeiro premio ao teu celebre quadro de Esther. Se assim fôr, + iremos entregar-te a medalha de ouro, e beber comtigo uma duzia de + garrafas de Champagne. + + «Procura, comtudo, restabelecer-te rapidamente e voltares, porque + nós preferimos comer sentados em volta de uma mesa, pisando + alcatifas, recebendo o calor de fogões e a luz do gaz, do que comer + no campo sobre o duro chão, acariciado pelas formigas e outros + animaes importunos. + + «Estimando-te sempre e admirando como nunca. + + «Somos teus amigos + + «_Marcial e André._» + + +Ernesto sorriu-se tristemente quando acabou a leitura da carta. + +--Ah! exclamou. Que feliz que é o mortal que encontra uma mulher que o +ama e dois amigos leaes e carinhosos! Mas a felicidade nunca é completa +para o homem. Só encontrei os amigos. Onde acharei a mulher? + +E deixando cahir a cabeça sobre o peito melancholicamente, ficou immovel +como uma estatua. + + + + +CAPITULO XXVI + +Uma caçada ás raposas + + +Se nos entretivessemos detalhando dia a dia a vida de Ernesto desde que +chegou a casa de Mauricio até ao dia em que deixou de existir, fariamos +um livro interminavel. Procuraremos, pois, tocar sómente nos pontos que +julgamos mais importantes. + +Ernesto, como dissémos, cançava-se muito a subir as encostas, e o ponto +que escolhera para caçar não era dos mais commodos. + +Um doente de peito pode caçar sem perigo, mas em terrenos planos que não +cancem os pulmões; porêm os montes de Toledo, os de Almenara e outros +não têem nada de hygienicos para um caçador de pouca saude. + +Poder-se-ha matar muita caça, respirar-se ar puro mas são fatigantes em +demasia! Ernesto, pois, escolhêra mau sitio para se restabelecer, mas, +como a vida lhe importava pouco, era o mais apropriado para lhe dar cabo +dos seus arruinados pulmões. + +Ernesto tratava-se pouco. Quando sentia a mente cheia de ideias tristes, +pegava na espingarda, chamava os cães e sahia. Se tropeçava com um bando +de perdizes, segui-as até que, cançado, se deixava cahir no chão, +permanecendo ás vezes mais de uma hora soffrendo angustias de morte. + +Muitas vezes a noite surprehendeu-o nos barrancos, e Mauricio, +sobresaltado, sahia em sua procura; e então o honrado caçador trazia-o +ás costas até casa. Petra e Mauricio lamentavam em voz baixa a teimosia +de Ernesto em não querer que se chamasse o medico do povoado proximo. + +--Está claro, dizia Mauricio. A dôr que o afflige é tal que deseja +acabar depressa com a vida, e quando menos pensarmos encontramol-o morto +no monte. + +Demais Ernesto, cuja fraqueza era em extremo, ia perdendo as forças e o +appetite, e tinha caprichos extraordinarios que faziam estremecer Mauricio. + +Certa manhã do mez de março (nevára muito durante a noite anterior e o +sol que começava a elevar-se no horisonte convertia o gelo em brando +rócio que tornava difficil o transito pelas ladeiras dos barrancos). +Mauricio e Ernesto estavam no cume de um monte, quando se aperceberam de +que andava uma raposa n'um monte proximo. Ernesto disparou, e o arisco +animal soltou um grunhido. + +O tiro ferira a raposa nas patas trazeiras; mas com o instincto da +conservação arrastou-se até a borda de um barranco, deixando-se cair +para a frente. + +Ernesto correu até chegar á mesma borda do precipicio. + +Mauricio gritou-lhe: + +--Cuidado, cuidado, senhor Ernesto. Por ahi não ha passagem. + +Ernesto dirigiu um olhar para o abysmo, viu a raposa que fazia esforços +desesperados para chegar a uma toca, onde por fim se metteu. + +--Indubitavelmente tem alli a femea e os filhos. Se pudessemos descer... +disse Mauricio. + +--E porque não? respondeu Ernesto, avançando intrepidamente até a +abertura do abysmo. + +--O terreno está escorregadio; é uma temeridade descer por este +despenhadeiro. Um pé em falso, uma tontura, precipital-o-hia a +quinhentas varas de profundidade, sobre um leito de pedras. + +Ernesto inclinou-se, e, agarrando-se a uma matta que vegetava na borda +do abysmo, começara descendo, procurando appoio para os pés nas +saliencias da rocha e nos arbustos que cresciam entre as fendas. + +Mauricio advertiu segunda vez do perigo imminente que o seu hospede +corria, mas Ernesto, detendo-se na sua descida e levantando a +cabeça, disse sorrindo-se: + +--Não receies, meu bom Mauricio, ninguem morre sem que Deus queira; e se +succeder faltar-me o appoio que procuro tranquillamente, e precipitar-me +no abysmo, previno-te de que na minha carteira acharás um testamento que +te livra de toda a responsabilidade. + +E continuou descendo. + +Mauricio sustinha com trabalho os cães, olhando com admiração para Ernesto. + +Não faltava valor ao caçador para descer por aquelle difficil e perigoso +caminho; mas isto teria sido uma imprudencia, pois, descendo atraz, +augmentava muito o perigo do pintor. + +Mauricio era um bom christão, acreditava nos destinos da Providencia, e, +calculando que d'aquelle perigo só Deus podia salvar Ernesto, +encommendou-o com fervor ao Altissimo. + +A descida de Ernesto até chegar ao penedo onde se havia refugiado a +raposa ferida, durou quatro minutos. + +O pintor dirigiu um olhar sereno para o abysmo, murmurando em voz baixa: + +--Mais profunda é a soledade da minha alma. + +Mauricio fechou os olhos muitas vezes, julgando que o seu amigo ia +despenhar-se, quando ao pôr o pé ou a mão em algum appoio este cedia. + +Por fim Ernesto chegou a uma especie de plataforma. Alli estava seguro, +mas era extremamente difficil subir, visto necessitar para isso de muita +força nos pulsos. + +De repente Mauricio, que se dispunha a descer, viu que as pernas de +Ernesto se dobravam e que caia desamparado sobre as rochas que o +sustentavam, dando com a cabeça n'um sovereiro, que providencialmente o +salvou de uma queda fatal. + +Mauricio soltou um grito. Ao principio julgou que o seu hospede rolasse +para o abysmo, e então era indubitavel que o seu corpo, feito em mil +pedaços, não pararia senão quando chegasse ao fundo. Com grande +surpresa sua, viu que o mesmo sovereiro que crescia na fenda da rocha +deteve o corpo da queda mortal, mas observou tambem que o corpo estava +immovel e como morto e que da bôcca sahia algum sangue. + +Mauricio, deixando-se levar pelo seu generoso coração, confiado nas suas +herculeas forças desceu rapidamente até onde estava Ernesto, +completamente desmaiado. + +Durante dez minutos fez todos os esforços imaginaveis para o tornar a +si; ora lhe chegava a garrafa do rhum ao nariz, ora lhe banhava as +fontes com agua fria. Nada: Ernesto parecia um cadaver. + +Então, desprezando o perigo que o cercava, tirou a cinta, atou Ernesto a +ella, prendendo-o pela cintura, e, com o desespero do naufrago, começou +a trepar pela ladeira levando suspenso á cintura o inanimado corpo do +seu hospede, que oscillava sobre o abysmo como a pendula de um relogio. + +Se a bôa Petra tivesse chegado n'aquella occasião e visto o perigo que o +marido corria, certamente morreria de susto. Deus, evidentemente, que vê +e premeia as bôas-acções, deu n'aquelle momento forças a Mauricio para +chegar ao cume, salvando o hospede e salvando-se elle proprio. + +Quando se viu fóra do abysmo, soltou um d'esses suspiros que dilatam o +peito e, ajoelhando-se junto ao corpo inanimado do seu companheiro, deu +graças á Providencia, que os salvara de tão imminente perigo. + +O pintor continuava sem voltar a si. + +Mauricio pôz depois as duas espingardas ao hombro, levantou com os seus +robustos braços Ernesto e encaminhou-se precipitadamente para casa, que +não ficava muito longe. + +Petra ao vêl-o entrar pallido, coberto de suor, a respiração offegante e +com Ernesto desmaiado nos braços, cujo rosto estava manchado de sangue, +soltou um grito de espanto e disse: + +--Que foi, Mauricio? Que succedeu? Morreu o senhor Ernesto? + +--Não, não morreu, respondeu Mauricio, está apenas desmaiado. Não te +assustes e ajuda-me a mettêl-o na cama. + +Um quarto de hora depois Ernesto abriu os olhos, dirigiu um olhar vago +em redor, e vendo Mauricio e Petra juntos de si, extendeu-lhes as mãos e +disse com difficuldade: + +--Obrigado, meus amigos, devo-lhes a vida e agradeço-lhes de toda a +minha alma, porque não quero morrer emquanto não concluir os tres +retratos que prometti ao conde de Loreto. + +--Mau! mau! disse o caçador. É verdade que o perigo foi grande, mas já +lá vae. Que maldita raposa. + +Ernesto não respondeu, mas, pegando na mão de Mauricio, apertou-a de +encontro ao peito com fraternal carinho. + + + + +CAPITULO XXVII + +O anjo da morte + + +Durante quinze dias, Ernesto não sahiu de casa; pintava de manhã e de +tarde. Só alguns curtos momentos deixava a sua tarefa, para dar um +passeio em frente de casa. + +Vendo pintar aquelle joven febril com os olhos encovados e a respiração +fatigante, dir-se-hia que tinha esse afan do homem de genio que presente +a morte e que quer concluir a obra que o deve immortalizar. + +Estavam concluidos os retratos do conde, e de D. Ventura e tinha entre +mãos o de Amparo. + +Ás vezes chamava Mauricio e perguntava-lhe: + +--Conhécel-os? Parecem-se? + +--Oh! Muito! São elles por uma penna. + +Depois dava um charuto a Mauricio, accendia outro, apezar da tosse que o +fumo lhe causava, e continuava pintando. + +No quarto do pintor, graças ás offertas do conde de Loreto, +encontravam-se todas as commodidades apetecidas. Quatro pelles de leão +almofadavam o sobrado; duas commodas cadeiras de braços forradas de +marroquim recebiam o pintor quando se sentia fatigado. + +Muitas vezes dizia o pintor, sentado junto do fogão e tomando uma +chavena de café: + +--Isto não é viver n'um monte: é ter um oasis no meio d'um deserto. + +Certa manhã recebeu uma carta dos seus amigos Marcial e André, +dizendo-lhe que lhe haviam conferido o primeiro premio e que lhe iam +levar a medalha: que mandasse um homem á estação de Toledo para os +acompanhar ao monte. + +Ernesto chamou Mauricio e disse-lhe: + +--Ámanhã devem chegar a Toledo uns amigos de Madrid que veem passar +alguns dias commigo. É preciso que os vás esperar á estação, que +arranjes cavallos para o que fôr preciso e que os tragas para aqui. +Tambem seria bom que trouxesses da cidade o que tua mulher precisar. + +Ernesto guardou os retratos para que os seus amigos não vissem. Era +avaro do seu thesouro, não queria que o profanasse a publicidade. + +Marcial e André não eram caçadores; mas a caça é agradavel a todos os +homens, sem duvida porque os coelhos não usam revólver para se +defenderem, nem as perdizes disparam dardos contra os seus perseguidores. + +Dizem que a caça é a imagem da guerra, sem duvida porque se queima +polvora e se derrama sangue; mas a mim parece-me que da guerra á caça +vae muita differença e bem crente estou de que o governo não passaria +todos os annos trinta e seis mil licenças de caça se o caçador corresse +tanto perigo como o soldado deante do inimigo. + +Mas se todos gostam de disparar contra os inoffensivos coelhos, as +ladinas perdizes e as ligeiras lebres, não é para admirar que qualquer +habitante da cidade, ao encontrar-se n'um monte, povoado de caça e tendo +á sua disposição uma espingarda, não tente derramar sangue, ainda que +não seja senão para se baptisar com a cruz de Santo Eustachio. + +Chegaram os amigos de Ernesto e depois dos abraços e das exclamações +ante o selvagem panorama, falou-se do quadro de Esther; almoçaram, +tomaram café, beberam tres garrafas de Champagne e pensaram em caçar +visto haver espingardas e caça. + +Mauricio propoz uma batida e se bem que os caçadores não fossem muito +felizes, em compensação viram correr e voar muita caça. + +Á noite, Petra serviu uma ceia, senão muito variada, pelo menos muito +abundante. + +A mocidade tem bom estomago. Comeram bem e beberam muito melhor. +Falou-se de Ernesto chegar a Madrid e este disse: + +--Não penso por emquanto em abandonar estes montes, porque estou aqui +perfeitamente. Convenci-me de que a solidão do campo e o ar saudavel +d'estas serras me são muito mais proveitosas do que a vida agitada da +cidade. + +Todas as reflexões de Marcial, todos os conselhos de André não +conseguiram demover Ernesto. Os amigos convenceram-se de que seria +inutil falar em similhante assumpto. + +Os amigos do pintor ficaram com elle mais tres dias. Chegou a hora da +partida. Marcial tinha em ensaios uma comedia e não podia retardar o seu +regresso a Madrid. Despediram-se promettendo fazer outra visita no mez +de maio, se Ernesto até então não tivesse abandonado os montes. + +Ernesto, n'um ponto elevado, viu-os afastarem-se montados nos cavallos e +cantando o côro das bruxas de Macbeth. + +--Aquelles são felizes, disse com tristeza, porque em seus corações vive +a alegria da juventude, a esperança da gloria. Ide em paz, meus +amigos, a quem nunca mais verei, a não ser que exista alguma cousa da +vida occulta ao olhar do homem para lá d'esse céu azul que se extende +sobre a minha cabeça. + +Ernesto sentou-se. Uma volta do caminho tinha occultado os amigos, a +quem, como acabava de dizer, não tornaria a vêr. + +Durante uma hora ficou immovel como o penedo que lhe servia de appoio. + +Depois levantou-se, vagarosa e tristemente, dirigiu-se para casa, tirou +o retrato de Amparo, collocou-o no cavallete e pôz-se a pintar. + +.......................................................................... +.......................................................................... + +Quando algum conhecido de Mauricio ia caçar aos montes, Ernesto +fechava-se no seu quarto e poucas vezes sahia. Pintava, lia, e bebia rhum. + +Estava muito doente, mas continuava regeitando os conselhos dos amigos e +os auxilios da sciencia. + +Durante os mezes da primavera, pareceu fortalecer-se alguma cousa. +Passou o verão um tanto alliviado, trabalhava pouco, e ainda por duas +vezes mandára Mauricio a Madrid levar quadros de caça ao conde, ficando +em seu poder os retratos completamente concluidos, dizendo: + +--Isto será a minha despedida, o meu testamento. Chegou o mez de +outubro, e Ernesto com os primeiros frios, apanhou uma recahida e perdeu +por completo o appettite; apenas se levantava para se sentar na cadeira +e d'esta para se metter na cama. Mauricio e Petra insistiram varias +vezes com elle para o convencer a que chamasse o medico. + +--É inutil, meus amigos, dizia-lhes, talvez que em breve me faça mais +falta um sacerdote. + +Uma noite, Ernesto peorou a tal ponto, que Mauricio, sem o consultar, +montou a cavallo, foi ao povoado de Orgaz e trouxe um medico. + +Ernesto, ao vêl-o entrar, ao perceber a que vinha, encolheu os hombros, +dirigiu um olhar de gratidão a Mauricio, e disse: + +--Tudo isso é inutil. O que preciso ámanhã é de um sacerdote. + +O medico viu effectivamente que a doença de Ernesto era incuravel, +receitou por simples formalidade e disse que o chamassem se houvesse +mais alguma novidade. + +Ao sahir, disse a Petra: + +--Chamem o padre com urgencia, porque este homem apenas tem tres dias de +vida. + +Petra chorou, e contou ao marido o que o medico lhe dissera. + +Estavam verdadeiramente impressionados. + +Quando Mauricio á noite entrou com a luz no quarto de Ernesto este +estava sentado n'uma cadeira proximo da mesa. + +Ardia um bom fogo no fogão e, apezar do frio não ser muito, Ernesto +queixava-se de que se sentia gelado; era a morte, que avançava a passos +gigantescos para se apoderar do coração, para extinguir a vida n'aquelle +corpo, para separar a alma da materia. + +--Mauricio, poe ahi a luz, approxima uma cadeira, senta-te aqui a meu +lado, disse o pintor, porque temos muito que conversar e não temos tempo +a perder. + +Mauricio obedeceu sem dizer uma palavra. Só de quando em quando olhava +para o cadaverico semblante do seu hospede, pensando que já tinha visto +defuntos com muito melhor parecer. + +--Tudo n'este mundo tem o seu fim, meu amigo, ajuntou Ernesto com voz +fraca e pausadamente. O dia nasce e morre como a planta e o homem. A +vida, como o canto do passaro, como as folhas das arvores, está sujeita +á vontade do Creador. Rebellarmo-nos contra tal, é uma loucura, uma +temeridade ou uma cobardia. Ninguem se salva da morte, ainda que diga +com toda a força do seu desespero: «Não quero morrer.» Assim, pois, é +preciso resignarmo-nos. Toda a sabedoria, toda a sciencia, toda a +grandeza do homem não é sufficiente para prolongar um segundo sequer a +sua vida. Alexandre como Cesar, Aristoteles como Cicero, morreram +quando soaram as suas horas, apezar de serem quem foram. A minha +approxima-se e é preciso preparar tudo para a minha ultima viagem. + +Ernesto deteve-se, respirou, levou a mão ao peito e fixou os olhos em +Mauricio, cujo semblante compungido, manifestava a profunda magua da sua +alma, porque as palavras sentenciosas e tristes do seu hospede, a quem +estimava como a um pae, o affligiam. + +--Quero, pois, meu bom Mauricio, inteirar-te do que tens a fazer no dia +seguinte ao da minha morte, que não está longe. Por isso, te pedi para +te sentares e que me prestasses attenção. Dei grandes incommodos tanto a +ti como a tua mulher; têem sido bons amigos para mim, devo-lhes muitos +favores, e é por conseguinte meu dever não os esquecer na hora da minha +morte. Quizera ser rico como um nababo para lhes deixar toda a minha +fortuna, pois bem sabes que não tenho herdeiros forçados; mas, apezar de +ser muito pobre, farei tudo quanto possa para os recompensar em parte de +todos os beneficios que recebi. + +--Mas, senhor Ernesto, nós é que devemos estar agradecidos ao senhor, +disse Mauricio, porque desde que tivemos a fortuna de o vêr entrar para +nossa casa, têem sido muito maiores as recompensas que temos recebido do +que os insignificantes serviços que lhe temos prestado. Por isso não +temos que falar sobre esse assumpto. + +--O interesse e o carinho que têem dispensado a este pobre doente, nunca +o pagarei sufficientemente. Mas deixemos esse assumpto, e ouve. + +Ernesto fez uma pausa, pegou n'um rolo de papeis e n'uma carta, e disse: + +--Quando eu morrer, e depois do meu enterro, vaes a Madrid onde tens +duas commissões a desempenhar da maior importancia. Esta carta para os +meus amigos da rua do Prado, e os tres retratos e esta outra carta para +o senhor conde de Loreto. Indubitavelmente todos, ao saberem que +deixei de existir, querem saber pormenores da minha morte. Dize-lhes o +que vires, a verdade. E agora só me falta dizer-te que encontrarás +escripto e assignado n'esta folha de papel, que te deixo como herança, +como livre senhor que sou de tudo, que me pertence; isto é, tudo isto +que nos rodeia, inclusivamente o pouco dinheiro que eu tiver na gaveta +da commoda, é teu e de tua mulher. + +Mauricio que havia já um boccado luctava para suster as lagrimas, levou +as mãos aos olhos. + +--Vamos, não te afflijas; da-me um abraço e vae-te deitar. Só tenho +ainda a pedir-te para que ámanhã cedo me tragas um padre, porque é bom +pensar em Deus alguns minutos antes de morrer, quem esteve tantos annos +occupando-se sómente dos pygmeus da terra. + +Mauricio precisava sahir d'aquelle quarto para chorar desafogadamente; +entrou na cosinha, contou a Petra tudo quanto se passára e acabaram por +desatar em amargo pranto. + +N'aquella noite nem Petra nem Mauricio puderam dormir. + +De quando em quando vinham em bicos de pés até a porta do quarto de +Ernesto, e espreitavam pelo buraco da fechadura. + +Ernesto continuava sentado na cadeira, ora escrevendo, ora com os +cotovellos encostados na borda da meza, e a cabeça appoiada nas mãos. + +Pouco antes de amanhecer, Mauricio montou a cavallo e foi chamar o padre. + +Ás sete da manhã, Ernesto viu entrar um velho de rosto bondoso e +cabellos brancos. A batina preta, a sobrepeliz, e sobretudo a doce +expressão d'aquelle rosto, fel-o comprehender que tinha na sua presença +o pastor das almas d'algum povoado proximo. + +O sacerdote e o pintor estiveram fechados tres horas. O que disseram +pertence ao segredo inviolavel da confissão. + +Quando o padre sahiu, entrou Mauricio. + +Ernesto disse-lhe: + +--Faze favor de pôr uma tela no cavallete e de o levares bem como esta +cadeira para proximo da janella. Vou fazer o meu ultimo trabalho. + +Ernesto pegou na paleta, nos pinceis e sentou-se porque não podia +trabalhar de pé, principiando a esboçar uma Nossa Senhora das Dôres. + +Apezar do seu estado, pintava com incrivel ligeireza. + +A febre da morte guiava-lhe a mão. + +Em dia e meio pintou uma formosa mãe do Nazareno, de corpo inteiro; mas +aquella virgem, apezar da doce melancholia do seu semblante, era um +perfeito retrato da condessa de Loreto. + +Evidentemente aquella obra feita de momento, aquelle trabalho feito ás +portas da morte, era uma das melhoras obras de Ernesto. + +Mauricio e Petra ficaram assombrados ao verem-no concluido. + +--Ah! Que pena um homem assim morrer tão novo! exclamou o rude caçador +n'um arranco de sublime enthusiasmo. + +--Mauricio, disse Ernesto, quando eu morrer entregarás este quadro ao +sacerdote que me ouviu em confissão, e diras que, já que os francezes +roubaram de uma capella da sua modesta egreja uma formosa Senhora das +Dôres, eu offereço-lhe esta para que a ponha no seu logar, apezar de não +valer, estou certo, nem a quinta parte do que valia a outra. + +No dia seguinte, Ernesto conheceu que lhe restava poucos minutos de vida. + +O sol entrava pela janella. + +O enfermo permaneceu cêrca de meia hora com o olhar fito no céu e as +mãos postas em religioso recolhimento. + +Petra e Mauricio, que estavam a seu lado, não se atreviam a +interrompel-o d'aquelle doce extasis. + +--Meus amigos, disse Ernesto, extendendo os braços e, pegando nas mãos +de Petra e de Mauricio, vêem aquella nuvemsinha branca que está suspensa +no espaço? + +Os dois olharam para o céu, mas não viram nuvem nenhuma, contudo Petra +respondeu com voz fraca: + +--Sim. + +--Pois bem, no meio d'essa nuvem vem o anjo da morte buscar-me. Oh! É +mais bello do que eu o suppunha. Os seus trajes são brancos como o disco +da lua, brilhante como a prata polida. Os seus olhos são negros e de um +brilho raro. O seu rosto, pallido e cheio de bondade, sorri-se com um +sorriso frio que penetra até a medulla dos ossos. Sobre a fronte lê-se a +palavra _Perdão_, e os seus braços extendem-se até mim como para me +receber. Ah! Se eu pudesse retratal-o!... Mas experimentemos. Dá-me a +paleta e os pinceis! Põe uma tela no cavallete! + +Ernesto apertava as mãos de Petra e Mauricio; mas subitamente soltou-os +e dando um debil gemido, levou-as aos olhos e disse: + +--Não posso!... Não posso!... Perdi a luz dos olhos!... Estou cego!... +Amparo!... Amparo!... Amo-te como sempre!... Meu Deus!... Recebei-me!... + +Os braços do pintor cairam sem forças, estremeceu todo o corpo, +abriram-se-lhe e fecharam-se-lhe tres vezes as palpebras, e um debil +suspiro se lhe escapou do peito. + +Depois ficou immovel na cadeira e reinou o silencio frio da morte. + +A alma do pintor abandonára a materia. + +Ernesto já não existia. + +Pobre filho do genio! Pobre sonhador que trocou a sua gloria, o seu +futuro, por um beijo. + +Mauricio e Petra ajoelharam junto da cadeira onde jazia o seu hospede, e +com os olhos cheios de lagrimas, resaram pelo eterno descanço d'aquelle +desventurado moço que tinha deixado de existir, e em cujos pallidos e +entreabertos labios julgavam ver um sorriso triste, lamentoso, como a +morte que lh'o produzira. + + + + +CAPITULO XXVIII + +Conclusão + + +O sacerdote, que ouvira o pintor em confissão, em signal de +agradecimento pela bellissima Senhora das Dôres que elle offerecera á +sua egreja, resou uma missa cantada pelo descanço da alma do artista. + +Mauricio deu sepultura ao corpo de Ernesto no cemiterio da villa de Orgaz. + +Depois de cumpridos estes tristes deveres, Mauricio dispôz-se a cumprir +as ultimas vontades do seu hospede. + +Preparou tudo para a viagem e disse á mulher: + +--Ámanhã vou a Madrid desempenhar-me das commissões de que me encarregou +o senhor Ernesto. Durante a minha ausencia se não queres ficar só +levar-te-hei até Toledo. Calculo não me demorar mais de tres dias. + +--Vae socegado e sem pressa; eu não deixo a casa onde estão os nossos +haveres. Demais, os pastores têem as choças aqui perto, e se tivesse +necessidade, bem sabes que me prestariam qualquer auxilio. + +Mauricio partiu. + +A carta que Ernesto escrevêra aos seus amigos da rua do Prado, +resumia-se a uma terna despedida. + +Sigamos, pois, Mauricio, a casa do conde de Loreto. + +Fernando del Villar, por quem uma carruagem esperava á porta, descia a +escada do seu palacio quando viu entrar Mauricio com os tres quadros +perfeitamente empacotados. + +O conde parou ao reconhecer o caçador dos montes de Toledo. + +--Ah! É o senhor? lhe disse. Como está Ernesto? + +--Morreu! respondeu Mauricio. + +--Como? Morreu? + +--Ha quatro dias, senhor conde. + +--Pobre rapaz! Mas suba, suba. + +O conde começou a subir precipitadamente, seguido de Mauricio, +atravessou varias casas e por fim entrou n'um elegante e luxuoso +escriptorio. + +--Morreu!... repetiu o conde deixando-se cair n'uma cadeira. Pobre +Ernesto! Não esperava similhante noticia. Sente-se, sente-se, meu amigo, +e diga-me qual o fim da sua vinda, porque creio que ha mais alguma cousa +do que annunciar-me tão irreparavel desgraça. + +--O senhor Ernesto encarregou-me na vespera da sua morte de trazer ao +senhor conde estes tres retratos e esta carta. + +O conde levantou-se, desatou o cordão que prendia os quadros, e, +collocando cada um em sua cadeira, levantou o estore da janella para que +entrasse mais luz. + +Quando os olhos se fixaram nos retratos, e em especial no da condessa, +não poude conter uma exclamação, um grito de assombro. + +--Isto é admiravel! Isto é admiravel! Que pena que homens assim vivam +tão pouco! + +E ficou immovel como que extasiado deante do retrato da mulher. + +O conde era um conhecedor de pintura. Viajára muito e vira muitissimo; +conhecia toda essa collecção de retratos celebres, que honram os seus +auctores, pendurados em exposição nas paredes dos museus; mas nenhum +ainda lhe produzira tanta admiração como a tela que tinha ante si. + +O retrato de Amparo era uma obra-prima, pelo desenho, pelo colorido e +sobretudo pela parecença. + +Demais a bôcca d'aquella mulher, perfeitamente modelada, tinha uma +expressão tal que parecia ter vida. Dir-se-hia que aquelles labios +humidos, de uma côr bella, um pouco entreabertos, palpitantes de amor e +de ternura, iam dar um d'esses beijos que inflammam para sempre a +alma do homem que o recebe. + +Os olhos, de belleza irresistivel, meio velados pelas compridas pestanas +exprimiam tambem amor e melancholia. + +Ao conde de Loreto nunca parecêra tão formosa a mulher como n'aquelle +momento em que comparava o original com o retrato; mas aquelle retrato, +onde a mão do pintor, sem se servir da adulação, possuia alguma cousa +mais do que a frialdade immovel da pintura, tinha por assim dizer a alma +do artista occulta atraz dos olhos e atravez aquella bôcca encantadora. + +Ninguem, ao vêr o retrato, duvidaria de que estava um beijo suspenso dos +divinos labios d'aquella mulher, e, comtudo, o pintor não violára nem +uma só linha, nem na mais delicada sombra, a posição natural d'aquella +incomparavel bôcca. + +O conde, que assim o comprehendeu, teve o retrato por uma obra-prima, e, +amante da arte que immortalizou Raphael, não podia desviar os olhos do +quadro. + +Durante um quarto de hora Fernando permaneceu como um extasiado. +Mauricio estava triste e silencioso a seu lado. + +Quando se cançou de contemplal-o, viu que tinha uma carta na mão. Era a +que pouco antes lhe entregára o honrado Mauricio. + +Rasgou o envellope e leu: + + +«Senhor conde de Loreto. + + «Prestes a entregar a alma a Deus e o corpo á terra, pego na penna + com mão fraca para lhe enviar as minhas despedidas. + + «Quando receber a minha carta já terei deixado de existir. Um sêr a + menos na terra, uma particula de pó a mais em algum ignorado + cemiterio d'estas regiões; mas em compensação, outros seres nascem, + emquanto o vento levanta o pó dos que morrem. O mundo segue o + seu caminho: esta é a cadeia da humanidade. + + «Remetto-lhe os tres retratos offerecidos. São as minhas ultimas + obras; depois d'ellas os meus pobres pinceis não offenderão mais a + arte inutilisando telas, estragando tintas. O unico merito que se + lhe poderá attribuir será a parecença, e isso, sem duvida por que + eu, durante o meu voluntario e penoso desterro, me não esqueci nem + um só instante dos meus amigos. + + «Vou concluir pedindo-lhe, senhor conde, um favor. Mauricio e Petra, + isto é, o portador d'esta e sua mulher, foram durante a minha doença + dois irmãos carinhosos. Se eu fosse tão rico como Salomão, + deixar-lhes-hia toda a minha fortuna e creio que assim mesmo não + lhes pagaria quanto lhes devo; mas sou pobre, e só posso pagar-lhes + com amor e agradecimento os beneficios recebidos. + + «Assim, pois, senhor conde, peço-lhe que entregue a Mauricio o valor + que der aos tres retratos para que tenham com essa importancia uma + recompensa do muito que lhes devo. + + «Mauricio é um honrado caçador de profissão que me serviu com + desinteresse e sem esperança de recompensa: não sabe portanto que me + occupo d'elle n'esta carta. + + «Desculpe-me, senhor conde, a liberdade que tomo, e não se esqueça + de que ao soltar o meu ultimo suspiro bemdirei os meus amigos. + + «Apresente os meus respeitos á senhora condessa e dê um abraço de + eterna despedida ao meu bom amigo D. Ventura. + + _Ernesto._» + + +O conde acabou a leitura da carta commovido, dobrou-a e guardou-a na +algibeira. + +Nos olhos havia uma certa humidade, devida ás lagrimas. + +Mauricio, vendo que o conde guardava silencio, e desejando acabar com +aquella visita, disse: + +--Se o senhor conde m'o permitte, retiro-me, pois preciso ainda esta +noite regressar a Toledo. + +O conde dirigiu-se para o cofre, abriu-o, e, depois de pensar um +momento, começou a contar notas de banco. + +--Mauricio, disse Fernando, ignora sem duvida qual a missão de que o meu +amigo Ernesto me encarrega n'esta carta. + +--Só me disse para a entregar ao senhor conde juntamente com os retratos. + +--Pois bem; Ernesto encarrega-me de lhe entregar seis mil duros que lhe +devo. + +--A mim? disse admirado o caçador. + +--Sim, a si. + +--Mas que devo fazer a esse dinheiro? Porque elle nada me disse ao morrer. + +--Guardál-os para si. + +--É impossivel! Seis mil duros é uma fortuna para um pobre como eu. + +O conde, admirado da honradez d'aquelle homem, teve um nobre pensamento, +e ajuntou: + +--Desculpe-me; enganei-me. + +--Eu logo vi que não podia ser, disse Mauricio quasi contente. + +--Enganei-me na importancia, continuou o conde: em logar de seis mil +duros são dez mil. + +Mauricio empallideceu. Era uma fortuna. + +O conde entretanto contou dez mil duros em notas do banco de quatro mil +_reales_, e, collocando-os depois n'uma bandeja, approximou-se de +Mauricio, dizendo: + +--Isto é o que Ernesto Alvarez deixa como herança a Mauricio e Petra +pelo seu generoso comportamento, pelos seus bellos sentimentos. Agora +eu, o conde de Loreto, offereço a Mauricio, quando se fartar de ser +caçador, o logar de administrador em um monte nas Asturias, com +vinte e cinco reales por dia, casa, lenha e mais vantagens que me não +recordam agora. + +E o conde, apertando a mão ao honrado montanhez, ajuntou: + +--Vá a Toledo, diga a sua mulher o que o senhor Ernesto dispôz na sua +ultima carta, pense socegadamente o que mais lhe convêm, que aqui me +encontrará sempre disposto a cumprir a minha palavra. + +Mauricio pegou com a mão trémula nos dez mil reales, apertou depois de +encontro ao peito a mão do conde e, com olhos marejados de lagrimas e o +parecer bastante commovido, disse: + +--Mas que fiz eu para merecer tantos favores? + +--Foi um homem de bem, um homem justo, respondeu o conde. + +--Ah! a minha pobre Petra vae enlouquecer de alegria. Ella que dentro em +pouco vae ser mãe! Ella, que nunca viu cem mil reales! Ella que é tão +boa! Todos os nossos filhos aprenderão a bem dizerem os nomes do senhor +Ernesto e do senhor conde de Loreto. + +Fernando acompanhou Mauricio até á porta, depois voltou para o +escriptorio e, sentando-se em frente do retrato da mulher, disse: + +--Ernesto não existe, mas nos labios d'este retrato, n'aquella bôcca +doce, apaixonada, amorosa como um beijo, deixou escripta a historia da +sua morte. + + + + + +FIM + + + + + + [1] Um duro corresponde a 900 réis e um real a 50 réis, + approximadamente. + + [2] Moeda de ouro, que vale approximadamente 14$500 réis. + + _N. do T._ + + + + Indice + + CAPITULO I--Uma chavena de café + CAPITULO II--Uma noite no Colyseu + CAPITULO III--Sonhos côr-de-rosa + CAPITULO IV--O pintor e o judeu + CAPITULO V--O grupo de Niobe + CAPITULO VI--Um beijo + CAPITULO VII--Separação + CAPITULO VIII--Caminho de Hespanha + CAPITULO IX--De Florença a Paris + CAPITULO X--A rosa de brilhantes + CAPITULO XI--Mais um + CAPITULO XII--Como se pede + CAPITULO XIII--Os tres amigos + CAPITULO XIV--Curiosidade não satisfeita + CAPITULO XV--Carta interrompida + CAPITULO XVI--Propostas + CAPITULO XVII--Confiança + CAPITULO XVIII--A golfada de sangue + CAPITULO XIX--Pagar a hospitalidade + CAPITULO XX--Abnegação + CAPITULO XXI--Abandonando Madrid + CAPITULO XXII--Vida de recordações + CAPITULO XXIII--Uma caçada + CAPITULO XXIV--Uma carta e um annel + CAPITULO XXV--O regresso de Mauricio + CAPITULO XXVI--Uma caçada ás raposas + CAPITULO XXVII--O anjo da morte + CAPITULO XXVIII--Conclusão + + + + + +Livraria Editora Guimarães & C.ª + +68--RUA DO MUNDO--70 + +LISBOA + +CONDESSA DE GENCÉ + +*Guia mundano das meninas casadoiras*, 1 vol. br. 500, enc. 700 + +D. JOÃO DA CAMARA + +*Meia noite*, drama. 500 + +*Contos*, 1 vol. 600 + +*A cidade*, versos, 1 vol. 300 + +DELFIM GUIMARÃES + +*Outonaes*, 1 vol. 500 + +*Aldeia na Corte*, 1 vol. 500 + +*O Rosquedo*, 1 vol. 200 + +*Juramento Sagrado*, 1 vol. 200 + +*Ares do Minho*, 1 vol. 200 + +*Flores do mal*, interpretação em versos portugueses, de poesias de +Baudelaire, 1 vol. 700 + +*Bernardim Ribeiro*, (o poeta Crisfal), 1 vol. 800 + +*Theofilo Braga e a lenda do Crisfal*, 1 vol. 500 + +DR. A. DA SILVA GAYO + +*Mario*, romance historico, 1 vol. ill. br. 1$700, enc. 2$200 + +CARLOS BENTO DA MAIA + +*Tratado completo de cosinha e de copa*. 1 vol., br. 2$000, enc. 2$500 + +*Tratado de risco e côrte de roupa*, 1 vol. 600 + +JOSÉ VALDEZ + +*O cão*, raças, hygiene, ensino, e tratamento, 1 vol. 500 + +ANDRÉ ANGIULI + +*A pedagogia, o estado e a familia*, 1 vol. 300 + +JULIO PAYOT + +*A moral na escola*, 1 vol. 400 + +*A educação da vontade*, 1 vol. 500 + +DR. MAURICIO DE FLEURI + +*Para prolongar a vida*, 1 vol. 400 + +MIGUEL CERVANTES + +*D. Quixote de la Mancha*, ed. ill. com 200 grav. 2 vol. br. 2$400, enc. +3$200 + +FRANCISCO D'ALMEIDA + +*Thesouro domestico*, receitas e processos uteis, 1 vol. 800 + +JOÃO CHAGAS + +*O Crime da Sociedade*, 2 vol. in-4.º, ill. 1 vol. 3$600 + +LEÃO TOLSTOI + +*A escravidão moderna*, 1 vol. 200 + +*A Sonata de Kreutzer*, 1 vol. 200 + +*O canto do cysne*, 1 vol. 200 + +*Ana Karenine*, 3 vol. 600 + +CAROLUS E LADOUCETE + +*Os amores de Napoleão*, romance historico. 1 vol. de 1000 pag. +profusamente ill. br. 2$000, enc. 2$600 + +OCTAVIO MIRBEAU + +*Memorias de uma criada de quarto*, 1 vol. 600 + + + + + + +End of Project Gutenberg's Historia de um beijo, by Enrique Pérez Escrich + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE UM BEIJO *** + +***** This file should be named 32793-8.txt or 32793-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/2/7/9/32793/ + +Produced by Pedro Saborano + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/32793-8.zip b/32793-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..cdf71d6 --- /dev/null +++ b/32793-8.zip diff --git a/32793-h.zip b/32793-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..0ed07e4 --- /dev/null +++ b/32793-h.zip diff --git a/32793-h/32793-h.htm b/32793-h/32793-h.htm new file mode 100644 index 0000000..a7b3a5a --- /dev/null +++ b/32793-h/32793-h.htm @@ -0,0 +1,8267 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html> +<head> + <title>História de um beijo, por Enrique Pérez Escrich</title> + <meta name="Author" content="Enrique Pérez Escrich, 1829-1897"> + <meta name="Edition" content="2.ª Edição. 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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Historia de um beijo + +Author: Enrique Pérez Escrich + +Translator: A. J. Lione Soutelo + +Release Date: June 13, 2010 [EBook #32793] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE UM BEIJO *** + + + + +Produced by Pedro Saborano + + + + + +</pre> + + +<div style="margin: 10%;"> +<p><small>XLVII<br> +Colecção<br> +Horas de Leitura</small></p> + +<p style="text-align: right; text-decoration: underline;"><big>Enrique Perez +Escrich</big></p> + +<p +style="text-align: center;"><big><big><big><big>HISTORIA</big></big></big></big></p> + + +<p style="text-align: center;">DE UM</p> + +<p +style="text-align: center;"><big><big><big><big>BEIJO</big></big></big></big></p> + +<p> </p> + +<p style="text-align: center;">2.ª Edição<br> +</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + + +<p style="text-align: center;">1912<br> +GUIMARÃES & C.ª—Editores<br> +<small>68, Rua do Mundo (Ex. Rua de S. Roque), 70</small><br> +LISBOA</p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p +style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto; font-weight: bold;"><big><big>Historia +de um Beijo</big></big></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="margin-left: 160px; text-align: center;"><small>COMPOSTO E IMPRESSO +NA IMPRENSA<br> +DE MANUEL LUCAS TORRES<br> +RUA DIARIO DE NOTICIAS, 93</small></p> + +<p> <br> +<br> +</p> + +<p style="text-align: center;">Colecção Horas de Leitura</p> + +<div style="font-size: 0.7em; margin-left: 20%;"> +<p><i>Obras publicadas, a 200 réis o volume</i></p> + +<p>1 a 4—<b>Ivanhoé</b>, de W. Scott, (2.ª edição) 800</p> + +<p>5—<b>O frade negro</b>, por Clemencia Robert, (2.ª edição) 200</p> + +<p>6 e 7—<b>As Semi-Virgens</b>, de Marcello Prévost, (3.ª edição +illustrada) 400</p> + +<p>8—<b>Werther</b>, de Goethe, (3.ª edição illustrada) 400</p> + +<p>9—<b>Madame Flirt</b>, de Jaques Yvel, (2.ª edição) 200</p> + +<p>10 a 12—<b>A Taberna</b>, de Zola, (2.ª edição) 600</p> + +<p>13—<b>O Vigario de Wakefield</b>, de Goldsmith, (2.ª edição) 200</p> + +<p>14—<b>A vida aos vinte annos</b>, de Dumas, filho, (2.ª edição) 200</p> + +<p>15—<b>A agua profunda</b>, de Bourget, (2.ª edição) 200</p> + +<p>16—<b>O dominó amarello</b>, de Marcello Prévost, (2.ª edição) 200</p> + +<p>17—<b>Cortezã</b>, de A Belot, (2.ª edição) 200</p> + +<p>18—<b>O Rosquedo</b>, de Delfim Guimarães, (2.ª edição) 200</p> + +<p>19—<b>Os Vagabundos</b>, de Maximo Gorki, (3.ª edição) 200</p> + +<p>20—<b>A escravidão moderna</b>, de Tolstoi, (2.ª edição) 200</p> + +<p>21—<b>Os degenerados</b>, de Maximo Gorki, (3.ª edição) 200</p> + +<p>22—<b>A Dama das camelias</b>, de Dumas, filho, (3.ª edição +illustrada) 200</p> + +<p>23—<b>As Virgens</b>, de G. d'Annunzio, (2.ª edição) 200</p> + +<p>24—<b>Na prisão</b>, de Maximo Gorki, (2.ª edição) 200</p> + +<p>25 e 26—<b>A Dama das perolas</b>, de Dumas, filho, 400</p> + +<p>27—<b>Varenka Olessova</b>, de Maximo Gorki, 200</p> + +<p>28—<b>O jardim dos suplicios</b>, de Octavio Mirbeau, (2.ª edição) +200</p> + +<p>29—<b>Saudades</b>, (Menina e Moça) de Bernardim Ribeiro, (2.ª edição) +200</p> + +<p>30—<b>Na Esteppa</b>, de Maximo Gorki, 200</p> + +<p>31—<b>Nami-ko</b>, Tokatomi, 200</p> + +<p>32—<b>Um conchego de Solteirão</b>, Balzac, (2.ª edição) 200</p> + +<p>33—<b>Sapho</b>, de Daudet, (a sahir 2.ª edição)</p> + +<p>34—<b>Um começo de vida</b>, de Balzac, 200</p> + +<p>35 e 36—<b>O Paraiso das Damas</b>, de Zola, (esgotado)</p> + +<p>37—<b>Amor e liberdade</b>, de Tolstoi, (esgotado)</p> + +<p>38—<b>Casamento de Amor</b>, de Theuriet, (esgotado)</p> + +<p>39 e 40—<b>Illusões perdidas</b>, de Balzac, 400</p> + +<p>41 e 42—<b>Esplendores e miserias das cortezãs</b>, de Balzac, 400</p> + +<p>43—<b>A ultima incarnação de Vautrin</b>, de Balzac, 200</p> + +<p>44—<b>Mater dolorosa</b>, de Ernesto Daudet, 200</p> + +<p>45—<b>O Immortal</b>, de Affonso Daudet, 200</p> + +<p>46—<b>Ares do Minho</b>, de Delfim Guimarães, 200</p> + +<p>47—<b>Historia d'um beijo</b>, de E. Perez Escrich, 200</p> + +<p>48—<b>O intruso</b>, de Gabriel d'Annunzio, (esgotado)</p> + +<p>49—<b>A mulher de 30 annos</b>, de Balzac, 200</p> + +<p>50 e 51—<b>Germinal</b>, de Zola, 400</p> + +<p>52—<b>O crime de Silvestre Bonnard</b>, de Anatolio France, 200</p> + +<p>53—<b>Miseraveis</b>, (Cañas y barro) de Blasco Ibañez, 200</p> + +<p>54—<b>O Abade Constantino</b>, de L. Halévy, 200</p> + +<p>55—<b>O Dr. Rameau</b>, de Jorge Ohnet, 200</p> + +<p>56—<b>Agua corrente</b>, de Severo Portella, 200</p> + +<p>57—<b>O luxo dos outros</b>, de Bourget, 200</p> + +<p>58—<b>O tio Goriot</b>, de Balzac, 200</p> + +<p>59 e 60—<b>A derrocada</b>, de Zola, 400</p> + +<p>61—<b>O canto do Cysne</b>, de Tolstoi, 200</p> + +<p>62—<b>Contos</b>, de G. de Maupassant, 200</p> + +<p>63 e 64—<b>Náná</b>, de Zola, 400</p> + +<p>65—<b>A Sonata de Kreutzer</b>, de Tolstoi, 200</p> + +<p>66—<b>O Padre Maldito</b>, de Silva Pinto, 200</p> + +<p>67—<b>Paulo e Virginia</b>, de Sain-Pierre, 200</p> + +<p>68 e 69—<b>O Dinheiro</b>, de Zola, 400</p> + +<p>70—<b>Confissão d'um Amante</b>, de Prévost, 200</p> + +<p>71—<b>A sepultura de ferro</b>, de H. Conscience, 200</p> + +<p>72—<b>A musa do departamento</b>, de Balzac, 200</p> + +<p>73 e 74—<b>A Obra</b>, de Zola, 400</p> + +<p>75—<b>Genoveva</b>, de A. de Lamartine, 200</p> + +<p>76—<b>Um filho do povo</b>, de Escrich, 200</p> + +<p>77 e 78—<b>O crime do padre Mouret</b>, de Zola, 400</p> + +<p>79—<b>Casamentos fidalgos</b>, de Feuillet, 200</p> + +<p>80—<b>Amor tragico</b>, de A. Hermant, 200</p> + +<p>81—<b>A Religiosa</b>, de Diderot, 200</p> + +<p>82 a 84—<b>Ana Karenine</b>, de Tolstoi, 600</p> +</div> + +<p> <br> +</p> + +<p><br> +</p> + +<div style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;"> +<p style="text-decoration: underline;">C<small>OLECÇÃO </small>H<small>ORAS DE +</small>L<small>EITURA</small></p> + +<p style="margin-left: 80px;"><big>Enrique Perez Escrich</big></p> + +<p style="font-weight: bold;"><big><big><big><span style="margin-right: 4em;">Historia</span><br> <span style="margin-left: 4em;">de um +Beijo</span></big></big></big></p> + +<p><small>TRADUCÇÃO DE</small></p> + +<p><big>A. J. LIONE SOUTELLO</big><br> +<br> +</p> + +<p>2.ª Edição</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p><small>1912</small><br> +GUIMARÃES & C.ª—Editores<br> +<small>68, Rua do Mundo (Ex. Rua de S. Roque), 70</small><br> +LISBOA</p> +</div> + +<p> </p> + +<p><span class="pn">{5}</span></p> + +<p> </p> + +<div id="corpo"> +<h4><a name="SECTION0001000">CAPITULO I</a></h4> + +<h2>Uma chavena de café</h2> + +<blockquote style="margin-left: 40px;"> + <p style="margin-left: 120px;">Um beijo é muitas vezes a esmola que faz uma + mulher a uns labios lisonjeiros; outras um pedaço d'alma que se escapa pela + bôcca. No primeiro caso o homem é a victima, no segundo é a mulher.</p> +</blockquote> + +<p> </p> + +<p>Existem na terra creaturas tão bem organisadas, corações tão generosos, que +não necessitam ser correspondidas para amar com toda a sua alma, para terem +gravada em seu coração uma imagem querida.</p> + +<p>Estes entes soffrem com o rosto sereno e choram com o sorriso nos labios, +porque se chora de dois modos: umas vezes deixando correr as lagrimas, outras +recolhendo-se ao coração a queimarem essa bella flôr da juventude chamada a +esperança.</p> + +<p>A vida n'estes casos é um desejo infinito que se afoga em pranto porque se +vê a felicidade que se deseja rodeada de uma muralha cheia de impossiveis. Se +pudesse conquistar-se a tiro, conhecer-se-hiam os nomes de muitos heroes +ignorados.</p> + +<p>A incerteza, essa anciedade da alma que tem o poder de reduzir e prolongar o +tempo segundo o seu capricho, faz-se sempre sujeita á poderosa magia de uma +syllaba. Um <i>sim</i>, resoa docemente no ouvido do namorado e tem a +encantadora poesia do mez de Maio com os seus perfumes, as suas flôres, e o +harmonioso canto das aves; um <i>não</i>, tem a aridez do deserto, a +melancholia da desgraça, a solidão da morte.</p> + +<p>Vou, pois, contar-lhes uma historia sentida, um gemido do coração.</p> + +<p>Vou dar-lhes a conhecer a protogonista do meu livro<span +class="pn">{6}</span> e supplico-lhes o perdão para a fraqueza da sua alma: o +coquettismo.</p> + +<p>Chama-se Amparo, nome cujas seis letras encerram uma promessa de amor nunca +realisada.</p> + +<p>Procurarei pintar com as côres da verdade o seu rosto, formoso como um sonho +da adolescencia; a sua fronte radiante como a luz do sol quando apparece, ao +romper do dia, do fundo do mar; os seus olhos claros e expressivos através dos +quaes se lêem todas as impressões da sua alma, sensivel como as harpas das +filhas de Sião que vibram ao menor sopro do zephiro.</p> + +<p>Se os impressionam as scenas terriveis, as grandes catastrophes, as +situações inverosimeis, fechem o meu livro, porque em suas paginas só acharão a +historia de um coração que se partiu em pedaços.</p> +<hr class="dotted"> + +<p>Ernesto foi para Roma, pensionista do governo hespanhol. Era um rapaz de 25 +annos, cheio de vida, de illusões, um genio; muitas vezes nos seus sonhos de +pintor julgava egualar-se a Velasquez, Murillo e todos esses grandes homens que +brilham em primeiro logar na historia da pintura hespanhola.</p> + +<p>Vivia n'uma pequena casa nas immediações da Cidade Eterna, a Deusa da arte; +pensando na gloria, trabalhando sempre, porque Ernesto era um sonhador +infatigavel, o mundo para elle resumia-se nos seus quadros, nos seus pinceis, +na sua paleta.</p> + +<p>Nunca amara senão sua mãe, que já tinha morrido, e a gloria, que desejava +alcançar.</p> + +<p>Coração impressionavel, mas adormecido, as mulheres eram para elle como +flôres formosas de um jardim.</p> + +<p>N'uma palavra, Ernesto ainda não tinha encontrado o seu bello ideal, o +perfume da sua alma.</p> + +<p>A mulher formosa, para elle, só era uma bella obra onde o grande artista, +que se chama a natureza, derramara os seus mais preciosos dotes.</p> + +<p>Vejam, pois, como a casualidade lhe proporcionou o meio de pagar de um modo +terrivel o tributo das almas sensiveis, que é o amor.<span +class="pn">{7}</span></p> + +<p>Como dissémos, Ernesto habitava uma casinha nas proximidades de Roma.</p> + +<p>O <i>atelier</i>, situado na parte que dava para o jardim, recebia a luz de +duas grandes janellas por onde entravam os caprichos e interessantes braços de +algumas trepadeiras.</p> + +<p>Era uma tarde do mez de Maio. Ernesto estava retocando uma figura quando +veiu o creado dizer-lhe que um cavalheiro e uma senhora desejavam falar-lhe.</p> + +<p>—São hespanhoes, disse o criado, e parece-me que o conhecem.</p> + +<p>—Hespanhoes? exclamou Ernesto, largando a paleta. Que entrem +immediatamente!</p> + +<p>Ernesto dirigiu-se para a porta seguindo o creado, quando ouviu uma voz que +lhe não era desconhecida, dizendo:</p> + +<p>—Onde está este mau hespanhol, que é preciso vir a Roma, á Via Appia +para lhe dar um abraço?</p> + +<p>—Oh! é o sr. D. Ventura! exclamou o pintor, vendo entrar um sujeito +d'uns 50 annos, dando o braço a uma menina tão formosa como elegante.</p> + +<p>—Sim, sou eu, querido pintor, sou eu, o D. Ventura do café Suisso, o +amigo dos artistas, o enthusiasta pela divina arte de Apollo; eu que, apezar do +meu enthusiasmo pela pintura, nunca soube collocar n'um rosto o nariz no seu +verdadeiro lagar. Mas, senta-te, querida Amparo, senta-te; os homens do talento +são sem-cerimonia como aldeãos, e francos como a verdade—e apoz pequena +pausa, continuou:</p> + +<p>—Começarei por pedir-lhe duas chavenas de café.</p> + +<p>Ernesto deu ao creado as ordens necessarias.</p> + +<p>A joven, que se sentara n'uma cadeira d'onde distrahidamente contemplava os +quadros do <i>atelier</i>, dispensou um sorriso de cumprimento ao pintor, +deixando vêr uns dentes pequenos como os de uma creança, e brancos como o miolo +do coco.</p> + +<p>Tudo o que é bello attrae irresistivelmente os homens de talento.</p> + +<p>Ernesto fitou a joven.<span class="pn">{8}</span></p> + +<p>Amparo teria 20 annos. O seu rosto de uma graça attrahente, provocadora, +via-se quasi animado por um d'esses sorrisos em que ficamos em duvida se são a +manifestação do coquettismo ou a ternura da alma.</p> + +<p>Os seus labios bastante vermelhos e humidos pelo constante roçar dos dentes, +ficavam ás vezes entreabertos como se fossem a exhalar um suspiro ou a receber +um beijo.</p> + +<p>Os seus olhos eram grandes e negros como amoras maduras; mas tão +movimentados, tão inquietos, tão cheios de vida, tão promptos em manifestar as +impressões da alma, que tão depressa se viam enlanguescer com a sombra +embriagadora de um amor platonico, como brilhar com todo o fogo da paixão que +conduziu Ovidio a um calabouço e Sapho á morte.</p> + +<p>Ernesto estudava dissimuladamente aquella joven que tão profunda sensação +causava na sua alma, virgem das terriveis tempestades do amor; e, cousa rara, o +seu genio de artista, tão depressa encontrava em Amparo a belleza sensual e +provocadora das mulheres de Rubens, como o pudor candido das virgens de +Murillo.</p> + +<p>Emquanto a D. Ventura só diremos que era um homem de 50 annos, calvo, com os +poucos cabellos que possuia já grisalhos, um rosto cheio de saude e alegria; +n'uma palavra, uma d'estas physionomias que sorriem sempre, até quando choram; +o typo, emfim do honrado commerciante que conseguiu, depois de muitos annos de +trabalho, reunir um peculio que o livra de necessidades na velhice.</p> + +<p>Amparo era filha unica; fôra educada n'um dos melhores collegios de Madrid, +e possuia um dote de quatro milhões de pesetas para quando achasse quem a +merecesse.</p> + +<p>D. Ventura era feliz, revendo-se na filha, nova, formosa, vivaz e alegre; +tocava piano com bastante correcção, cantava regularmente e pintava quasi com +tanta perfeição como o divino Raphael.</p> + +<p>Amparo era, por assim dizer, rainha absoluta, e seu pae um ministro bastante +condescendente.<span class="pn">{9}</span></p> + +<p>A mulher nova e livre, quando a riqueza lhe permitte emprehender viagens de +recreio durante a estação calmosa, precisa de alguma cousa mais do que mudar de +paiz para distrahir-se; a viagem torna-se fastidiosa se a alma não toma parte e +o coquettismo não esgrime as suas armas, tão deliciosas como traidoras, para +matar o tempo.</p> + +<p>Fazer uma conquista sem graves compromissos, sem funestos resultados, n'um +commodo <i>wagon-lit</i>; trocar olhares expressivos com qualquer mancebo pela +praia de Biarritz ou no cume das montanhas da Suissa, tem tantos attractivos +para as jovens viajantes!... É tão agradavel ao coração de uma mulher encontrar +a duzentas leguas da patria um patricio que se torne seu escravo, que esteja +disposto a salval-a, a defendel-a e juncar-lhe de flôres a terra que pisa, que +não póde resistir á tentação de pôr em jogo todas as suas seducções.</p> + +<p>Demais, a mulher tem a facilidade de comprehender a impressão que causa e +sabe aproveitar-se d'ella. Quando volta o inverno, quando as primeiras nuvens +do outomno as obriga a recolher aos seus lares, esses ternos bandos de aves +emigradoras, com saias de <i>piquet</i>, chapéu de palha e botas brancas, +recordam-se então já ao calor do fogão, de todas as loucuras, de todas as +innocentes concessões feitas ao ar livre e poetisadas pelo vento da montanha ou +pela brisa do mar; e como não ha mulher que não saiba calcular, como o melhor +mathematico, pensa se deve acabar ou continuar com os amores do verão.</p> + +<p>Amparo, pois, encontrou casualmente Ernesto em Roma. Tinha ouvido dizer que +possuia talento; agradaram-lhe alguns quadros que viu no <i>atelier</i>, e não +lhe parecendo má a figura do pintor, dirigiu-lhe alguns olhares e sorrisos, +d'esses que no coração de um homem sincero e apaixonado causam uma terrivel +tempestade.</p> + +<p>Não pensava a joven que aquelle coquettismo era condemnado pelo bom-senso. +Empregou-o com a mais santa intenção, apezar de começar a sentir-se +aborrecida<span class="pn">{10}</span> em Roma, onde andava só com seu pae por +toda a parte. Ernesto, então, foi olhado, como um recurso, como uma +distracção.</p> + +<p>Quando Amparo sahiu de casa do pintor, ia convicta de que o tinha +captivado.</p> + +<p>—Pensará em mim, disse ella, virá vêr-me, falaremos de pintura, de +musica e d'esta fórma aborrecer-me-hei menos.</p> + +<p>Amparo ignorava ainda as terriveis consequencias que os seus olhares e +sorriso deviam exercer na alma do artista. Se o soubesse, indubitavelmente se +teria abstido, porque o seu coração era bom, generoso e tão impressionavel, que +se commovia ante a mais ligeira contrariedade, como a folha do trémulo alamo +ante o mais ligeiro sopro do zephiro.</p> + + + +<h4><a name="SECTION0002000">CAPITULO II</a></h4> + +<h2>Uma noite no Colyseu</h2> + +<p>Quando Ernesto ficou só, em vez de pegar na paleta e nos pinceis +approximou-se da janella e ficou pensando na joven hespanhola que acabava de +sahir.</p> + +<p>Depois de uma hora de meditação, retirou-se da janella, dizendo para +comsigo:</p> + +<p>—Se me encommendassem um quadro onde figurasse alguma das tres +encantadoras filhas de Jupiter e de Eurinome pediria a Amparo para me servir de +modelo.</p> + +<p>E, tomado de uma subita inspiração, pegou na paleta e nos pinceis e começou +a pintar, n'um pedaço de tela, uma cabeça, mas com tanta rapidez que, em vinte +minutos, estava completamente esboçada.</p> + +<p>Afastou-se um pouco do cavallete para examinar o seu trabalho, e disse:</p> + +<p>—Sim, é ella. Tenho boa memoria.<span class="pn">{11}</span></p> + +<p>E como não se contentasse com a sua opinião, chamou o creado e +perguntou-lhe:</p> + +<p>—Com quem se parece esta cabeça?</p> + +<p>—Bravo! Com quem se ha-de parecer? Com a senhora que esteve cá, +respondeu o creado sem vacillar. Não é preciso ser muito esperto para a +reconhecer.</p> + +<p>Ernesto tornou a pegar nos pinceis e retocou o seu trabalho.</p> + +<p>Duas horas depois tinha terminado um soberbo retrato de Amparo, que o pintor +mais escrupuloso não recearia pôr em exposição.</p> + +<p>Tinha promettido a D. Ventura ir no dia seguinte almoçar com elle ao hotel +de Londres na praça de Hespanha, onde estavam hospedados.</p> + +<p>Ernesto levantou-se cedo, fez a barba, vestiu-se com mais cuidado do que de +costume, admirando-se de ter gasto tanto tempo ao espelho.</p> + +<p>Assim que terminou a sua <i>toilette</i>, satisfeito de si mesmo, enrolou a +tela com o retrato de Amparo, embrulhou-a n'um papel e sahiu de casa dizendo ao +creado que tinha o dia livre, visto não voltar senão á noite.</p> + +<p>D. Ventura e a filha occupavam dois quartos no primeiro andar do hotel de +Londres.</p> + +<p>Quando Ernesto subia a escada ouviu os accordes de um piano. Deteve-se: +tocavam a magnifica symphonia de <i>Guilherme Tell</i>.</p> + +<p>—Será Amparo? pensou elle.</p> + +<p>E vendo um creado no corredor, disse-lhe:</p> + +<p>—Qual é o quarto do sr. D. Ventura d'Aguillar?</p> + +<p>—O seis: ahi onde estão tocando.</p> + +<p>Ernesto não se tinha enganado: era Amparo quem tão magnificamente +interpretava uma das mais bellas composições de Rossini.</p> + +<p>Receoso de interromper aquella brilhante corrente de notas que tão docemente +resoavam no coração, esperou junto da porta que terminasse a symphonia.</p> + +<p>Logo que ella acabou bateu á porta.</p> + +<p>—Entre, disse D. Ventura.</p> + +<p>Entrou. Amparo estava ainda sentada ao piano. Por cima d'este estava um +grande espelho e no limpido<span class="pn">{12}</span> crystal Ernesto viu +retratado o encantador rosto de Amparo, que sorria, enviando-lhe um olhar que o +perturbou por um momento.</p> + +<p>—Bravo, é um homem de palavra, disse D. Ventura. Ahi está uma +qualidade que não é muito vulgar nos artistas.</p> + +<p>—Então não me esperavam?</p> + +<p>—Eu esperava, mas o meu pae, não, disse Amparo, fazendo girar o banco +do piano, até ficar voltada para o pintor.</p> + +<p>Amparo tinha um vestido tão simples como elegante. O seu cabello negro e +frizado, estava atado com uma fita azul que fazia realçar a brancura do seu +rosto e o tom rosado das faces.</p> + +<p>O pintor achou-a muito mais formosa do que no dia anterior.</p> + +<p>De bôa-vontade ficaria contemplando o encantador modelo que tinha ante si; +mas isso álêm de inconveniente seria ridiculo.</p> + +<p>A donzella, por seu lado, olhava o pintor com o mais seductor dos seus +olhares e enviava-lhe o mais bello dos seus sorrisos.</p> + +<p>Comprehendera o que se passava na alma de Ernesto. Só D. Ventura não via +nada. É bem certo o dictado que diz que os paes são todos myopes.</p> + +<p>—Que traz ahi, sr. Ernesto? É algum quadro? perguntou Amparo vendo o +rolo que o pintor tinha na mão.</p> + +<p>—Como estava distrahido! respondeu Ernesto. Hontem de tarde fiz um +trabalho. É um atrevimento que espero me desculpem.</p> + +<p>O pintor desenrolou a tela e apresentou-a, sorrindo-se.</p> + +<p>A joven não poude conter um grito de assombro, e D. Ventura pronunciou uma +interjeição.</p> + +<p>—Sou eu!</p> + +<p>—É a minha filha!</p> + +<p>—É um retrato d'esta senhora, e venho offerecel-o como uma recordação +da visita que tiveram a bondade de me fazer.<span class="pn">{13}</span></p> + +<p>—São levados da breca estes pintores, exclamou D. Ventura. Como se +póde reter na memoria de uma fórma tão completa as feições de uma pessoa e +passal-as para a tela com tanta verdade?! Porque és tu! Sim, tão parecida como +duas gottas d'agua; muito mais parecida do que uma photographia.</p> + +<p>Ernesto sorriu-se das admirações de D. Ventura. Amparo parecia agradecer-lhe +com um olhar cheio de ternura aquella recordação tão delicada.</p> + +<p>—Pois é a cousa mais facil do mundo, disse o pintor olhando para +Amparo, comprometia-me a fazer outro d'aqui a tres annos sem me esquecer do +menor detalhe do vestido e do penteado que tem n'esta occasião.</p> + +<p>—Pegue-lhe na palavra, papá, disse Amparo, e d'aqui a tres annos, se +nos encontrarmos em Madrid havemos de vel-o ficar mal.</p> + +<p>—Fica encommendado o retrato. Mas agora parecia-me melhor que nos +servissem o almoço e que pensassemos em que devemos entreter o dia.</p> + +<p>—Já visitaram as <i>vilas</i> ou casas de campo dos arredores? +perguntou Ernesto.</p> + +<p>—Já visitámos uma... Como se chama a que vimos hontem? perguntou D. +Ventura á filha.</p> + +<p>—<i>Vila Aldobrandini</i>.</p> + +<p>—É magnifica, mas está pouco menos do que abandonada. Deliciosa mansão +se se arranjassem os jardins em fórma de amphitheatro. O Dominiquino deixou-nos +n'essa casa sumptuosa uns quadros inegualaveis. Faz pena ouvir, no meio de +tanto abandono, o cadente murmurio das suas cascatas que se assimilham á +harmonia dos orgãos aquaticos da antiguidade como ao mesmo tempo vêr as +soberbas estatuas e outros objectos de esculptura de grande merito.</p> + +<p>—Com franqueza não a achei grande cousa... como disseste que se +chamava, Amparo?</p> + +<p>—<i>Aldobrandini</i>, papá. Valha-o Deus, que cabeça a sua!</p> + +<p>E Amparo trocou um sorriso com Ernesto.</p> + +<p>—Podemos vêr outras que estão melhor conservadas, ajuntou o pintor. +Por exemplo, é digna de visitar-se<span class="pn">{14}</span> a <i>Vila +Borghése</i> pelo seu grandioso lago, pelo hypodromo, pelo templo, pelos +jardins e, sobretudo, pelo rico museu de numismatica, e se desejarem +visitaremos a <i>Vila Albani</i> e o seu celebre museu. Os antigos romanos +tiveram grande predilecção pelas casas de campo. Os historiadores d'aquelle +tempo contavam cousas fabulosas. Os poetas, esses sonhadores de todas as +epochas, esses pobres loucos que não tendo um real de seu phantasiam palacios e +cascatas brilhantes, falam com grande entusiasmo das quintas que nos arredores +de Roma possuia Cesar, Lucullo, Marcello, Nero, Pompeu, Salustio e muitos +outros homens celebres; mas hoje não existem mais do que ruinas. A casa de +campo de Mecenas, onde iam Augusto, Virgilio, Horacio, Plocio, Tiscca e Polion +descançar das fadigas de Roma, converteram-se hoje em forja de um pobre +ferreiro. Que ode tão sentimental escreveria o pudico auctor da <i>Eneida</i> +se ressuscitasse ao contemplar as ruinas de Roma.</p> + +<p>D. Ventura ouvia Ernesto de bôcca aberta. Tudo isto para elle era grego. +Amparo não deixava de se sorrir. Entre elles começava a existir uma grande +intimidade, a intimidade que produz as sympathias.</p> + +<p>—Sabe o que desejo vêr, sr. Ernesto? disse Amparo. É o Colyseu. Li, +não me recordo em que livro, que visto n'uma noite de luar é surprehendente.</p> + +<p>—Os viajantes julgam segundo a impressão que os objectos produzem no +seu temperamento. Por isso emquanto uns ao percorrer a Palestina a descrevem +cheia de frondosidade e poesia que a adornava no tempo de Salomão, outros a +classificam de um arido areal, um deserto insupportavel, pobre, povoado por +tribus selvagens e ascorosas, mas o Colyseu começado por Vespasiano e acabado +por Tito, visto, quer á luz do sol quer á da lua é verdadeiramente +admiravel.</p> + +<p>—Ainda assim prefiro vel-o de noite, disse Amparo.</p> + +<p>—Então aproveitaremos o luar, e hoje mesmo se póde realisar o seu +desejo.</p> + +<p>—Que dizes a isso, papá?</p> + +<p>—Que estou ao teu dispor.</p> + +<p>—Fica, pois, combinado para esta noite.<span class="pn">{15}</span></p> + +<p>Almoçaram como bons hespanhoes, depressa e sem lhe dar grande importancia, +pois não é a Hespanha a terra dos Lucullos.</p> + +<p>Do meio-dia ás 5 horas da tarde visitaram algumas casas de campo dos +arredores de Roma.</p> + +<p>D. Ventura estava encantado. Ernesto sabia tudo; era, como vulgarmente se +diz, um livro aberto.</p> + +<p>Não encontraram uma pedra, uma columna, um sepulchro do qual o pintor não +soubesse a historia.</p> + +<p>Amparo escutava-o com prazer. Encostando-se-lhe familiarmente ao braço +fazia-lhe perguntas, principalmente quando encontrava alguma inscripção +latina.</p> + +<p>O dia passou-se agradavelmente para os tres; as horas foram curtas, e os +laços de amisade estreitaram-se duplamente com aquelle agradavel passeio.</p> + +<p>Ás seis horas regressaram ao hotel. O jantar já os esperava. Depois +metteram-se n'um trem que os conduziu ao Colyseu.</p> + +<p>A noite estava serena; a lua no seu auge, e a sua clara luz banhava as +colossaes ruinas onde em outros tempos oitenta e sete mil espectadores iam +gozar o barbaro espectaculo das luctas humanas.</p> + +<p>Então, o povo romano pedia pão e circo, e os imperadores tinham o cuidado de +satisfazer os desejos da terrivel fera que dormia, lambendo-lhe os pés.</p> + +<p>Ernesto levava os dois amigos a um e outro lado, esplicando-lhe com o mesmo +conhecimento que poderia fazer-lhe um <i>cicerone</i> do tempo do imperador +Claudio, descrevendo-lhe ao mesmo tempo aquellas terriveis luctas, dos +adestrados gladiadores, cujo sangue regou com abundancia a arena do circo.</p> + +<p>—Assistiram mulheres a esse barbaro espectaculo? perguntou Amparo.</p> + +<p>—Ao principio era-lhes prohibida a entrada, respondeu Ernesto, mas +depois foi auctorisada, reservando-lhes Octavio Augusto as bancadas mais altas +do amphitheatro. Precisamente aqui onde estamos era a tribuna do imperador, e +alli a das vestaes, cujo docel era egual ao do imperador. A este sitio +chamava-se<span class="pn">{16}</span> <i>Spoliarium</i>, para onde conduziam +os cadaveres dos gladiadores ou os que estavam mortalmente feridos, puxando-os +com um gancho de ferro. Esta obra colossal foi construida no curto espaço de +quatro annos. Tinha setenta portas, sem contar com as entradas reservadas para +o imperador e a sua côrte. As festas da inauguração no tempo de Flavio Sabino +Tito duraram cem dias consecutivos, e n'ella perderam a vida dois mil +gladiadores.</p> + +<p>—Parece impossivel que tão sanguinolentos espectaculos agradassem a +mulheres, exclamou Amparo.</p> + +<p>—A vida dos feridos, continuou Ernesto, quando caíam banhados de +sangue na arena, ficavam sempre á disposição dos espectadores. O vencedor +collocava a ponta da espada no peito do vencido e esperava que o publico lhe +dissesse; «Mata» ou «Perdôa». Outras vezes o ferido arremessava as armas e caía +ao pé das grades a implorar clemencia. Se os espectadores levantavam o dedo +pollegar, concedia-se-lhe a vida; mas se o viravam para baixo, então o ferido +apresentava o peito ao seu adversario para que o acabasse de matar.</p> + +<p>—Mas perdoavam sempre? disse D. Ventura.</p> + +<p>—Algumas vezes. Durante o reinado do infame Caracalla nem uma só vez +se concedeu o indulto aos gladiadores vencidos. O povo romano de então, era tão +feroz como sanguinario, e só gozava com a agonia dos seus similhantes, pois, +como disse o grande poeta inglez Lord Byron, ácêrca dos costumes do povo, assim +apparecem singelas e naturaes as cousas mais horriveis e sangrentas.</p> + +<p>D. Ventura escutava em silencio o narrador, que lhe contava com a precisão +de um bom livro, todas as horriveis scenas que tiveram logar no Colyseu.</p> + +<p>Algumas vezes Amparo, para caminhar com mais segurança por aquellas +sumptuosas ruinas, dava a mão a Ernesto. Aquellas duas mãos apertavam-se +docemente, transmittindo um suave estremecimento.</p> + +<p>D. Ventura era um homem de bem, mas um homem todo prosa; e aquillo tudo, +apezar do luar e das<span class="pn">{17}</span> descripções historicas de +Ernesto, parecia-lhe um montão de ruinas, uma toca de lagartos.</p> + +<p>Comtudo, para não ser <i>desmancha-prazeres</i>, dizia de quando em +quando:</p> + +<p>—Soberbo! Magnifico!</p> + +<p>Á meia-noite regressaram ao hotel.</p> + +<p>Quando Ernesto se despediu, Amparo disse-lhe, apertando-lhe a mão e +dirigindo-lhe um olhar cheio de doce esperança:</p> + +<p>—Passei uma noite deliciosa. Estou certa de que sempre me lembrarei do +Colyseu de Roma.</p> + +<p>Para Ernesto aquella despedida foi uma promessa irmã da esperança, essa +bella flôr que perfuma a alma.</p> + + + +<h4><a name="SECTION0003000">CAPITULO III</a></h4> + +<h2>Sonhos côr-de-rosa</h2> + +<p>Ernesto teve aquella noite um sonho côr-de-rosa, porque a bella Amparo foi o +anjo do seu sonho.</p> + +<p>Os homens de genio e sobretudo os pintores, quando pensam no amor, antes de +amar, criam um typo perfeito como todas as sublimes creações da imaginação; uma +d'essas mulheres de extraordinaria belleza cheia de luz, sem um <i>senão</i> no +moral, sem um defeito no physico, perfeita de corpo e d'alma: mas quando chega +o momento de, ou cançados do celibato, ou para pagar esse tributo de que poucos +se salvam, chamado matrimonio, se decidem a casar, então já é outra cousa, pois +muitas, mesmo muitissimas vezes a poesia se incarna na prosa, e depois... +Satanaz toma parte activa na symphonia do matrimonio.</p> + +<p>O amor é cego, e os homens e as mulheres devem resignar-se a não vêr bem, +precisamente quando deviam ter olhos de lynce.<span class="pn">{18}</span></p> + +<p>Ernesto levantou-se alegre e cantando a symphonia de <i>Guilherme Tell</i>; +e pensando em Amparo pegou na paleta e poz-se a pintar no seu quadro.</p> + +<p>A filha do D. Ventura tinha-se photographado d'uma maneira tão profunda na +sua imaginação, que o pintor achou sem saber como que uma das figuras do seu +quadro tinha grandes parecenças com Amparo. Admirou-se, mas agradou-lhe ao +mesmo tempo.</p> + +<p>Ás dez horas largou a paleta, almoçou, e pegando n'uma folha de papel, +poz-se a pintar uma aguarella do Colyseu visto á luz do luar.</p> + +<p>—Isto será uma recordação dedicada a Amparo, disse elle. Dir-lhe-hei +que a colloque no seu gabinete para que nunca se esqueça da noite que +representa.</p> + +<p>Ernesto esmerou-se marcando com arte e delicadeza todos os detalhes da +aguarella. Collocou n'um ponto conveniente um pintor tirando o <i>croquis</i> +do Colyseu, e ao seu lado um cavalheiro e uma joven.</p> + +<p>Apezar das figuras terem apenas duas pollegadas, o pintor tinha o maximo +empenho em que ficassem parecidas com os originaes que representavam. A empreza +era difficil; mas por fim, apoz algum trabalho, conseguiu o que desejava.</p> + +<p>Satisfeito com a sua obra e com a alegria do homem que sente na alma os +primeiros perfumes do amor e julga causar uma surpresa agradavel á provocadora +dos seus sonhos, ao cair da tarde dirigiu-se para Roma.</p> + +<p>D. Ventura e a filha estavam tomando café. Tinham acabado de jantar.</p> + +<p>—Chega a proposito, disse D. Ventura.</p> + +<p>—Dou-me por feliz, respondeu Ernesto, cumprimentando a joven.</p> + +<p>—Sente-se e tome café comnosco.</p> + +<p>—Primeiro que tudo, desejo saber em que consiste a opportunidade da +minha chegada.</p> + +<p>—Aborreciamo-nos, disse Amparo, Roma é uma cidade morta; nem sequer +tem theatros.</p> + +<p>—Diz muito bem. Roma é um cadaver que todos os annos ressuscita pelo +Carnaval, e vive um mez<span class="pn">{19}</span> commettendo as mais +excentricas loucuras; depois torna a cahir na soledade da tumba, até ao anno +seguinte.</p> + +<p>—Quer dizer que errámos a epocha da nossa viagem, disse D. Ventura.</p> + +<p>—Justamente. Mas se a sr.ª D. Amparo quizer ir ao theatro, temos +actualmente um aberto.</p> + +<p>—Qual?</p> + +<p>—O do Tiano.</p> + +<p>—Dizem que não é bonito.</p> + +<p>—Sim, mas em compensação representam admiravelmente.</p> + +<p>—Sabe, senhor Ernesto, que esta noite tive uma ideia? disse Amparo, +cerrando docemente as palpebras para conservar a luz dos seus formosos olhos +fixos no pintor.</p> + +<p>—Estou crente, de que foi uma ideia sublime.</p> + +<p>—Vaes ouvir, papá; o senhor Ernesto já disse que a minha ideia era +sublime; agora só necessito que o papá a ache tambem.</p> + +<p>—Olha que os artistas são muito aduladores; não te fies n'elles. Mas +vamos, dize qual é a tua ideia.</p> + +<p>—Resume-se em deixarmos Roma e irmos passar um mez em Florença; mas +com uma condição: que o senhor Ernesto nos acompanhe como nosso +<i>cicerone</i>.</p> + +<p>—Essa exigencia é uma loucura, filha da pouca experiencia propria da +tua edade, disse D. Ventura. Ernesto está pintando um quadro que tem de mandar +para a proxima exposição de Madrid, em setembro.</p> + +<p>—Sim, o senhor Ernesto tem o quadro muito adeantado e d'aqui até +setembro vão ainda quatro mezes, disse rapidamente Amparo, dirigindo ao pintor +um olhar supplicante para que elle annuisse.</p> + +<p>—Acceito sem vacillar, disse Ernesto, e dou as minhas razões. Preciso +só de um mez para concluir o meu quadro. E antes de voltar a Hespanha tinha +necessidade de ir a Florença para tirar uns croquis da <i>Venus de Médicis</i>, +do <i>Grupo de Niobe</i> e de alguns quadros da escola flammenga que existem no +celebre palacio de Pitti. Quero tambem tirar alguns <i>croquis</i> da +<i>cathedral de Santa Maria de Fiore</i>, d'essa memoravel architectura<span +class="pn">{20}</span> da qual Miguel Angelo, disse ser impossivel fazer outra +mais bella, pois era digna de servir de frontespicio ao Paraiso, e que o +imperador Carlos <small>V</small> devia pôl-a n'um estojo para melhor a +conservar. Assim pois, tudo se resume em adeantar dois mezes a minha viagem a +Florença. Quando partirem para Hespanha, eu regressarei a Roma para terminar o +meu quadro, e prometto que o verão collocado n'um dos salões da Exposição no +dia 20 de setembro.</p> + +<p>Amparo applaudiu, como uma creança que manifesta sem reserva a sua alegria. +A viagem projectada por ella era encantadora. Grande foi o seu contentamento +vendo que era acceite o seu plano, porque nada é tão grato ao coração de uma +mulher joven, como realisar um dos seus sonhos côr-de-rosa que de vez em quando +lhe acariciam a alma.</p> + +<p>Na noite anterior deitara-se, pensando no seu poetico passeio ao Colyseu. +Como o somno se mostrasse rebelde, recapitulou na memoria até as mais +pequeninas cousas acontecidas nas celebres ruinas.</p> + +<p>Os olhares de Ernesto, os suaves apertos de mão, a lua que banhava, +poetisando, as pardas e as derrubadas galerias do Colyseu, as descripções +historicas que com doce e carinhoso accento narrava Ernesto, tudo isto formava +um conjuncto agradavel ao coração de Amparo.</p> + +<p>Amava Ernesto? Nem ella mesmo sabia que responder a esta pergunta que fez +pelo silencio da noite.</p> + +<p>O pintor era novo, elegante, bem parecido, com uma educação pouco vulgar, e +pelo menos era-lhe sympathico.</p> + +<p>Como ha sempre algum egoismo no coração da mulher, Amparo pensou que +continuar a sua viagem pela Italia acompanhada de Ernesto tinha muito mais +encanto, era mais divertido do que viajar sósinha com o pae.</p> + +<p>Amparo não pensou senão em si. Com algum conhecimento mais profundo da vida +material dos artistas, isto é, a prosa do talento, teria pensado que talvez +Ernesto não se encontrasse em condições de emprehender<span +class="pn">{21}</span> uma viagem em carruagem de primeira classe, e +installar-se n'um hotel de luxo.</p> + +<p>É bem certo que Amparo ignorava o valor do dinheiro: gastava o do pae, que +era rico, sem se preoccupar com o valor que tem um duro<a name="tex2html1" +href="#foot162"><sup>[1]</sup></a> para quem não possue vinte reales.</p> + +<p>Por outro lado Ernesto, um verdadeiro artista, sonhava que era um principe e +julgava os seus sonhos uma realidade... Era mais ambicioso de gloria do que de +ouro.</p> + +<p>Quando acceitou a projectada viagem por Amparo, sem pensar se o dinheiro que +possuia por sua unica fortuna chegaria para occorrer a todas as despezas, só +pensou na felicidade de viajar com aquella mulher formosa, por uma terra +encantadora, cujo céu azul e o perfume das brisas são o orgulho das filhas de +Toscana, a admiração dos estrangeiros.</p> + +<p>Combinada a partida para quatro dias depois, Ernesto apresentou a aguarella +do Colyseu, que arrancou um grito de admiração e muitos olhares de +agradecimento a Amparo.</p> + +<p>O pintor regressou a casa já bastante tarde, tão alegre, tão feliz, que não +teria trocado a sua existencia por cousa alguma d'este mundo.</p> + +<p>A felicidade está ás vezes em tão pequenas cousas!... O pobre artista +julgava-se amado, e começava a amar com toda a sua alma virgem e apaixonada.</p> + +<p>Quando chegou a casa, pegou n'uma folha de papel para fazer o orçamento das +suas despezas.</p> + +<p>—Necessito, disse elle, de quatro mil reales para a viagem. Vejamos +como estou a respeito de fundos.</p> + +<p>Ernesto só tinha seiscentos. Era-lhe preciso arranjar dinheiro.</p> + +<p>Procurou na memoria os nomes de alguns amigos pintores que como elle viviam +em Roma, mas um sorriso lhe assomou aos labios.<span class="pn">{22}</span></p> + +<p>—Todos elles, disse, são tão pobres ou mais do que eu; não devo +expôr-me a uma negativa forçada, que é tão desagradavel a quem a dá como a quem +a recebe. Melhor será sacrificar alguns dos meus quadros. O senhor Daniel é um +judeu, menos judeu que os dez mil que pelo interesse do commercio o papá +consente em Roma. Escrever-lhe-hei.</p> + +<p>E pegando na penna escreveu:</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Senhor Daniel +Raithany</i></p> + +<p>«Meu bom amigo</p> + +<p> </p> + +<p style="margin-left:2em;">«Vou emprehender uma viagem a Florença e preciso +vender alguns quadros. Tenha, pois, a bondade de vir hoje ao meu +<i>atelier</i>, onde o espero até ás quatro horas da tarde.</p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"> <small +class="SMALL">Seu amigo</small>,</p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"> <i>Ernesto +Alvarez</i>.»</p> + +<p> </p> + +<p>O pintor chamou o creado e disse-lhe:</p> + +<p>—Amanha, quando te levantares, vaes a Roma entregar esta carta ao sr. +Daniel, negociante de quadros. Mora no bairro dos judeus; já o conheces.</p> + +<p>Depois deitou-se para sonhar com Florença e Amparo.</p> + +<p>Ernesto achava-se na ditosa edade dos sonhos côr-de-rosa, e viu durante +algumas horas passar pelos olhos da sua illusão um panorama encantador onde a +flôr mais perfumada, mais bella, mais resplandecente, era Amparo que, olhando-o +com languidez, lhe dizia uma e mil vezes mais: «amo-te! amo-te! amo-te!»</p> + +<p>E para que desperta um homem d'estes sonhos encantadores?<span +class="pn">{23}</span></p> + + + +<h4><a name="SECTION0004000">CAPITULO IV</a></h4> + +<h2>O pintor e o judeu</h2> + +<p>Daniel Raithany era um dos maiores negociantes do bairro judaico. Tinha em +toda a Europa fama de intelligente e honrado, apezar de ninguem ignorar que +vendia caro e comprava barato. Esta qualidade era descupavel, tratando-se de um +negociante judeu; mas, em compensação, tinha uma grande qualidade, que era que +quando um admirador de pintura, ainda que de Londres, Paris, Vienna, S. +Petersburgo, Madrid ou de qualquer das grandes capitaes da Europa necessitava +para a sua galeria um quadro d'este ou d'aquelle auctor celebre, escrevia-lhe +uma carta, e não olhando a preço tinha o que desejava.</p> + +<p>Nunca enganava ninguem, dando uma copia por original. Daniel era +intelligente, e apezar de não saber pintura, tão conhecedor era das escolas que +mais de uma vez, em casos duvidosos, o chamavam como períto.</p> + +<p>Todos os pintores eram amigos de Daniel e era tão difficil enganal-o +vendendo-lhe gato por lebre, como vulgarmente se diz, que ninguem tentava +fazel-o.</p> + +<p>Dizia-se que o negociante conseguira juntar muitos milhões. Comtudo a sua +loja apresentava sempre o mesmo aspecto modesto, e a sua pessoa conservava a +mesma linha; isto é, usava constantemente uma sobrecasaca verde com grandes +abas, calças e collete preto, uma gravata de velludo, um chapéu usado, um +chapéu de chuva velho debaixo do braço e uma cadeia d'aço, em cuja extremidade +estava preso um modesto relogio de prata.</p> + +<p>Daniel era um homem alto, magro e pallido, nariz arqueado, cabello grisalho, +olhos verdes, pequenos o encovados; um d'esses typos vulgares, mas em<span +class="pn">{24}</span> quem, olhados com attenção, se encontra bondade e doçura +no semblante.</p> + +<p>Ernesto estava pintando. Eram dez horas da manhã quando viu entrar no +<i>atelier</i> o judeu.</p> + +<p>Daniel entrou como sempre, sorrindo-se, com o chapéu de chuva debaixo do +braço, e a caixa do rapé que nunca abandonava, na mão esquerda.</p> + +<p>—Bons dias, millionario, disse Ernesto, extendendo-lhe a mão. Muito +agradecido pela sua pontualidade.</p> + +<p>—Em questão de dinheiro, respondeu Daniel, é preciso sermos pontuaes, +e aproveitarmos o tempo. Por um minuto se póde perder um bom negocio.</p> + +<p>—Pelo que se vê o senhor é negociante até á medulla dos ossos. Mas +vamos falar do nosso.</p> + +<p>O pintor deixou a paleta e os pinceis, indicou-lhe uma cadeira e sentou-se +n'outra.</p> + +<p>—Preciso dinheiro.</p> + +<p>—Já o suppunha.</p> + +<p>—Por isso lhe pedi que me viesse visitar.</p> + +<p>—E eu, conhecendo a impaciencia dos artistas, apressei-me em vir.</p> + +<p>—Agradecendo-lhe pela segunda vez, começarei por lhe dizer que dentro +de tres dias parto para Florença.</p> + +<p>—Uma viagem de recreio.</p> + +<p>—De recreio e estudo. Tenciono tirar alguns <i>croquis</i> da celebre +galeria do palacio de Pitti.</p> + +<p>—Bello pensamento!</p> + +<p>—E como para ir a Florença é preciso dinheiro e como eu não o tenho, +ou melhor, tenho pouco, quero que me compre alguns quadros. Póde escolher, +exceptuando o que está no cavallete, pois esse é, como sabe, para a Exposição +de Madrid, e póde dizer-se que me não pertence.</p> + +<p>Daniel guardou silencio, levantou-se, poz os oculos e começou a passar +revista aos quadros, e estudos que estavam nas paredes.</p> + +<p>Ernesto entretanto accendeu um charuto e recostou preguiçosamente a cabeça +no espaldar da cadeira.<span class="pn">{25}</span></p> + +<p>Mais de tres quartos de hora durou a revista passada ás telas por Daniel. +Quando estava perfeitamente inteirado, tirou os oculos, com todo o seu vagar, +guardou-os no bolso, e, sentando-se, disse:</p> + +<p>—Tem seis quadros de comestiveis, quatro pequenos de costumes +hespanhoes, e dois de flôres. Fico com os doze, pois tenho probabilidade de os +vender a um inglez que me encarregou de comprar alguma cousa n'este genero, e +dou por elles quatrocentos duros.</p> + +<p>—É pouco dinheiro.</p> + +<p>Daniel encolheu os hombros.</p> + +<p>—Não dou mais, respondeu; é impossivel.</p> + +<p>—Dou-lh'os por doze mil reales e creia que ainda ganhará uns duzentos +por cento.</p> + +<p>—N'estes tempos não é possivel. Desde que a photographia póde +offerecer o <i>fac-simile</i> de uma obra-prima por um franco, a pintura perdeu +muito.</p> + +<p>—Senhor Daniel, concedo-lhe o direito de regatear o preço de um +quadro, de dizer que é mau sendo bom, mas não lhe consinto que ponha a +photographia a par da pintura. Poderá ter-se uma copia do Ticiano estampada em +um boccado de papel por dois reales, mas não se terá Ticiano, nem pela +photographia se poderá nunca formar uma ideia, ainda que vaga, do que vale o +citado auctor.</p> + +<p>Daniel fez um gesto de indifferença, o ajuntou:</p> + +<p>—Sabe que tenho em muita consideração os seus trabalhos, e que se não +estivesse tão occupado, o encarregaria de algumas copias, e isso deve +inspirar-lhe confiança para crer que não procuro exploral-o. Quem sabe se terei +quatro ou mais annos armazenados na loja esses doze quadros que pretendo +comprar. E se assim succeder, o senhor bem sabe que dinheiro vale dinheiro, e +isso representa uma grande perda.</p> + +<p>Ernesto comprehendeu que o judeu não lhe daria mais, visto conhecer a +necessidade que elle tinha do dinheiro.</p> + +<p>Calculou que com a importancia offerecida e o que possuia podia fazer +desafogadamente e até com luxo a viagem e resolveu acceitar o negocio.<span +class="pn">{26}</span></p> + +<p>—Está fechada a transacção, disse o pintor. Mando-lh'os ainda hoje +mesmo.</p> + +<p>Daniel tirou a carteira, e d'ella a importancia offerecida em notas do Banco +Romano, e entregou-a ao pintor, dizendo:</p> + +<p>—Muito dinheiro podia ganhar!</p> + +<p>—Não desejo outra cousa, respondeu Ernesto, pondo o dinheiro sobre a +mesa.</p> + +<p>—Seriamente?</p> + +<p>—O dinheiro é a primeira necessidade do homem n'este valle de +lagrimas.</p> + +<p>—Então posso offerecer-lhe á volta de Florença algumas notas mais, se +me trouxer algumas copias da escola flammenga e franceza dos originaes que +existem no palacio Pitti.</p> + +<p>—Isso depende do tempo.</p> + +<p>—A actividade augmenta as horas.</p> + +<p>—Não me comprometo, mas farei todo o possivel porque receio que me +faça falta o dinheiro para ir a Hespanha expor o meu quadro.</p> + +<p>—Pois já sabe o meio de o obter.</p> + +<p>Daniel começou a despendurar os quadros que comprara e ia-os collocando +todos juntos, para que Ernesto ao mandal-os se não esquecesse de algum.</p> + +<p>Depois despediu-se do pintor, tornando-lhe a recommendar que trabalhasse +muito.</p> + +<p>—O trabalho, senhor Ernesto, é a maior fortuna do homem. Não se +esqueça de que as formigas e as abelhas são muito mais ricas do que as +cigarras.</p> + +<p>Ha conselhos que só produzem um ligeiro murmurio nos ouvidos de quem os +ouve.</p> + +<p>Daniel sahiu. Ernesto chamou o creado.</p> + +<p>—Logo levas esses doze quadros a casa do senhor Daniel Raithany, +disse-lhe. Vou fazer uma viagem a Florença. Demoro-me um mez. Podes dispor de +ti como te aprouver, n'esses trinta dias, mas nem uma só noite deixarás de +dormir em casa.</p> + +<p>Entregou o dinheiro que julgou sufficiente para o sustento do creado, mandou +que lhe servissem o almoço, e depois sahiu.<span class="pn">{27}</span></p> + +<p>Uma vez em Roma comprou alguma roupa para a viagem.</p> + +<p>Á tarde foi visitar os seus amigos e jantar com elles.</p> + +<p>D. Ventura começava a olhar Ernesto como da familia; é verdade que quando se +encontra um compatriota a algumas centenas de leguas distantes da mãe patria, +sente-se uma alegria tão grande no coração que o tratamos como se fosse um +parente.</p> + +<p>A D. Ventura parecia o mais natural do mundo que um rapaz tão bem educado, +tão fino, tão illustrado como Ernesto o acompanhasse na sua viagem a +Florença.</p> + +<p>Emquanto a Amparo, não pensou senão em realisar o seu desejo; viajando com +Ernesto, tinha mais encanto a excursão, porque o pintor lhe era sympathico.</p> + +<p>Os olhares, os sorrisos, os apertos de mão, as palavras carinhosas são +impulsos muitas vezes naturaes do coração feminino, e é sem duvida por isso que +não lhes dão nenhuma importancia.</p> + +<p>Mas Ernesto pensava de outro modo, e ia reunindo na sua alma simples e +apaixonada, um sem numero de esperanças encantadoras, que eram o seu maior +thesouro, e que deviam tornar-se a sua maior desgraça, porque o amor quasi +sempre é um jogo em que um dos jogadores perde.</p> + +<p>Os preparativos de uma viagem em que esperamos gozar e divertirmo-nos são +muito encantadores. Ernesto offereceu a D. Ventura um <i>Guia do forasteiro em +Florença</i>, preciosamente illustrado, e a Amparo um elegante album para +desenhos.</p> + +<p>—Temos que trabalhar muito, dizia o pintor, e não podemos consentir +que nos importune com perguntas.</p> + +<p>—Sim, sim, o senhor Ernesto tem razão; temos que fazer muitos +desenhos, e para que se não aborreça, emquanto trabalhamos, lerá o seu +<i>Guia</i> deante das obras d'arte que vamos visitar.</p> + +<p>D. Ventura para quem não havia maior felicidade<span class="pn">{28}</span> +do que a alegria de Amparo, vendo-a contente e feliz, ria-se com a expansão de +um pae que ama com loucura a filha.</p> + +<p>Só uma vez se poz serio vendo crescer aquella sympathia entre Amparo e o +pintor, e disse:</p> + +<p>—E a rapariga acaba por se enamorar de Ernesto. Fez algumas reflexões +mentaes e ajuntou:</p> + +<p>—Diabo, Ernesto é pobre; minha filha tem quatro milhões de dote no dia +do casamento e mais oito quando eu morrer.</p> + +<p>Aqui tornou a deter-se; mordeu o labio inferior como o negociante que pensa +n'um negocio importante, mas rapidamente se lhe alegrou o rosto e exclamou:</p> + +<p>—Se ella o ama e quizer casar com elle, que se case; vale mais ter por +genro um homem como Ernesto, pobre, do que um parvo rico.</p> + +<p>Desde aquelle momento, Ernesto podia contar com a protecção do pae.</p> + +<p>Chegou o dia da partida. A viagem podia fazer-se de dois modos: em pequenas +jornadas, parando-se para vêr as povoações de alguma importancia artistica, ou +em caminho de ferro.</p> + +<p>D. Ventura optou pela ligeireza da locomotiva, e os nossos tres viajantes, +alegres como estudantes em ferias, installaram-se n'um compartimento de +primeira classe. A fortuna favorecia-os: iam sós. Emquanto foi dia, Amparo e +Ernesto passaram a maior parte do tempo á janella da carruagem, admirando o +panorama que se ia desenrolando a seus olhos.</p> + +<p>Os jovens só trocaram algumas palavras em voz baixa; mas os olhos têem uma +linguagem tão expressiva, que dizem tudo, quando se movem impulsionados por uma +alma apaixonada.</p> + +<p>D. Ventura lia o livro offerecido pelo pintor, ou dormitava. Quando chegou a +noite, Ernesto bastante timido, apoderou-se de uma das mãos de Amparo, não +menos linda do que a da Laura que inspirou a Petrarcha quatro sonetos, e +disse-lhe:</p> + +<p>—Que feliz eu sou!...<span class="pn">{29}</span></p> + +<p>Amparo sorriu-se e retirou a mão.</p> + +<p>Depois, reclinando a cabeça em um dos cantos da carruagem, cerrou os olhos, +fingindo que dormia.</p> + +<p>Assim collocara certa distancia entre si e Ernesto. Amparo, apezar de nova, +tinha mais conhecimento do coração humano do que o seu companheiro de viagem, e +temeu que prolongando a conversação á tenue luz do vagon e quasi tocando-se os +joelhos, fizesse alguma d'essas concessões de que mais tarde se arrepende a +mulher.</p> + +<p>Ernesto procurou tambem posição commoda e tentou dormir, mas foi em vão.</p> + +<p>Nasceu o dia, e com elle a animação entre os viajantes.</p> + +<p>A linha seguia n'aquelle momento o curso do rio Arno. A conversação +renovava-se a cada paragem do comboio. D. Ventura lia o nome das estações e +procurava no <i>Guia</i> a parte interessante da terra.</p> + +<p>Em Signa atravessaram o Arno e não demorou muito vêr-se ao longe as torres +elevadas de Florença, os quatro pontos e os quatros bairros.</p> + +<p>Ernesto exclamou:</p> + +<p>—Alli está Florença, berço do renascimento das artes, patria de Dante, +de Petrarcha, e de Galiléu!</p> + + + +<h4><a name="SECTION0005000">CAPITULO V</a></h4> + +<h2>O grupo de Niobe</h2> + +<p>A Florença dos nossos dias é muito differente da que engrandeceram os +Médicis; mas por toda a parte se encontram as pégadas de Cosme o Virtuoso, +chamado o pae da patria, talvez pelo excessivo rigor com que tratava os +filhos.</p> + +<p>Indubitavelmente os Médicis foram grandes negociantes. A sua fortuna +fabulosa e a sua honradez ao<span class="pn">{30}</span> mesmo tempo, elevou-os +á primeira dignidade da republica florentina.</p> + +<p>Mas como em todas as familias ha sempre um judas que vende a sua raça, +succedeu que emquanto Cosme o Virtuoso, chamado pae da patria, mandava +emissarios por todo o mundo em busca de manuscriptos para enriquecer as +bibliothecas, pensionando com luxo artistas, e Lourenço Magnifico sahia em +segredo de Florença e apresentando-se ante Fernando de Napoles, com quem estava +em guerra, dizia-lhe: «<i>Aqui me tens só e desarmado. Se é a mim a quem odeias +satisfaz a tua vingança com a minha morte, pois ditoso me julgarei libertando +com a minha vida a de tantos valentes, dispostos a despedaçarem-se pelas nossas +rivalidades</i>», outros Médicis deshonraram o illustre appellido que tinham +herdado de seus nobres antepassados.</p> + +<p>Sublime foi o rasgo de abnegação levado a cabo por Lourenço de Médicis, +evitando a corrente de sangue que ameaçava inundar Napoles e Toscana, apezar de +dizer a historia que o papá Sixto <small>IV</small> preferia a guerra, +esquecendo-se de que era um representante de Christo, do Deus da bondade, do +perdão e da tolerancia.</p> + +<p>Mas a natureza é variada, e depois dos grandes Médicis da republica vieram +os pequenos ladrões do despotismo.</p> + +<p>Chegou Alexandre, verdugo do povo, morto ás mãos do sobrinho, que com +incrivel cynismo lhe perguntou ao enterrar-lhe a espada no peito: «<i>Senhor, +estaes dormindo?</i>» Veiu depois Fernando, que morreu d'uma indigestão de +fructa verde, e por ultimo o estupido Cosme <small>III</small>, cuja esposa +Margarida de Orléans, não podendo supportar a repugnancia que lhe causava o +marido, o abandonou, envergonhada de lhe ter pertencido. Para que a estupidez +de Cosme chegasse ao cumulo, dedicou-se em procurar a mulher pelas côrtes da +Europa: mas em toda a parte se riram d'elle, despedindo-o vergonhosamente como +a um ente repugnante.<span class="pn">{31}</span></p> + +<p>Deixemos os Médicis á historia, e continuemos a narração interrompida ao +avistar as altas muralhas de Florença.</p> + +<p>Na estação, entre os muitos corretores d'hoteis que disputam os +estrangeiros, D. Ventura encontrou-se com um hespanhol que tinha casa de +hospedes, entrou em ajuste com elle, e conduziu-os n'um trem para casa.</p> + +<p>D. Ventura alugou todo o rez-do-chão, com o direito de lhe pertencer o +jardim plantado de laranjeiras, limoeiros e grandes acacias.</p> + +<p>O rez-do-chão compunha-se de um quarto com janellas para o jardim, uma sala +grande, um quarto de vestir, uma casa de jantar e uma sala. Amparo installou-se +em dois quartos. D. Ventura e Ernesto ficaram com a sala e outro quarto +contiguo á casa de jantar; a sala declarou-se terreno neutral e todos podiam +dispôr d'ella para o que necessitassem. Era o ponto de reunião dos nossos +viajantes.</p> + +<p>O senhor Rosales, dono da casa, era um sujeito muito amavel e serviçal. +Disse-lhes que tinha sempre muitos bons hospedes; que o primeiro andar estava +todo alugado ao sr. Conde de Loreto e ao seu velho mordomo; que no segundo +estavam varios portuguezes e que era tão apaixonado das cousas de Hespanha, que +mandava vir grão e chouriço hespanhoes, para que quando algum hospede quizesse +de vez em quando comer rico cosido madrileno, podel-o servir.</p> + +<p>D. Ventura esteve quasi a abraçar o seu hospedeiro, porque como bom +madrileno começava a sentir a falta d'aquelle manjar predilecto.</p> + +<p>Emquanto a Amparo acercou-se da janella do gabinete, viu o formoso céu de +Florença, aspirou o perfume das laranjas e dos limões, exclamou:</p> + +<p>—Oh! que delicioso cheiro! que bem que ficamos aqui!</p> + +<p>A alegria de Amparo reflectia-se no coração de Ernesto.</p> + +<p>No primeiro dia entretiveram-se os nossos viajantes<span +class="pn">{32}</span> em arranjar itinerario. Ernesto propoz visitar na manhã +seguinte o palacio de Médicis.</p> + +<p>Em Florença o céu tem sempre luz, doçura, poesia. Os nossos viajantes +levantaram-se, dispostos a emprehender o seu passeio. A manhã não podia estar +melhor, o céu mais azul.</p> + +<p>Como não necessitavam de <i>cicerone</i>, porque Ernesto conhecia Florença +tão bem como Roma, sahiram em direcção ao celebre palacio de Médicis.</p> + +<p>Amparo e Ernesto levaram os seus <i>carnets</i>, e D. Ventura o seu +<i>Guia</i>.</p> + +<p>Logo que chegaram ao palacio e entraram nos jardins, Ernesto, depois de +fazer observar aos seus amigos as duas distinctas architecturas do edificio, a +construida na Edade Media e a edificada por Vasari no seculo +<small>XIV</small>, exclamou:</p> + +<p>—Quando o viajante passeia por estes vastos jardins, parece que +encontra de menos Lourenço de Médicis, cognominado o Magnifico. Oh! ditosa +epocha aquella em que Lourenço, agarrando o braço de Miguel Angelo, reprehendia +com doçura paternal a indolencia do grande artista, incitando-o ao trabalho! +Ditoso tempo aquelle! Lourenço ria e applaudia os comicos epigrammas do alegre +Pulci, fazendo-o escrever o <i>Morgante Maggiore</i>, o poema heroe-comico mais +celebre de Italia, e em que Angelo Poliano lhe lia os discursos de historia e +philosophia.</p> + +<p>E mudando de entoação continuou com accento alegre:</p> + +<p>—É preciso confessar, meu caro senhor D. Ventura, que hoje os reis, os +potentados da terra se occupam pouco ou nada dos pobres sonhadores, dos filhos +do genio. Então, ante o talento dobravam a fronte os soberanos. Cosme de +Médicis encontrou um manuscripto de Tito Livio, enviou-o a Fernando de Napoles, +com quem estava em guerra, e foi tão grande a alegria d'este rei, que receando +ser ingrato, assignou o tratado de paz que Cosme solicitava; devendo as mães de +Italia a sua tranquillidade e a vida dos filhos a umas folhas de pergaminho +manuscriptas.<span class="pn">{33}</span> Hoje, nem todos os preciosos +manuscriptos das bibliothecas romanas decidiriam dos reis, quando disputam um +palmo de terra, a deporem as armas. Mas entremos na sala que immortalisou o +cinzel do filho de Paros.</p> + +<p>D. Ventura, que ouvia com satisfação as palavras de Ernesto, exclamou:</p> + +<p>—Para que diacho me comprou este livro se aqui não diz nada do que tem +estado a contar?</p> + +<p>—Senhor D. Ventura, respondeu o pintor, sorrindo-se, breve chegará a +hora em que lhe seja util. A collecção de camafeus, medalhas e debuxos +compõe-se de vinte e oito mil estudos e <i>croquis</i>, feitos pelos mais +celebres pintores italianos, e em chegando ahi, fecho a bôcca e pego no lapis. +É então que o livro falará pelo <i>cicerone</i>.</p> + +<p>Ernesto conduziu os seus amigos á sala de Niobe e ao chegar deante d'aquelle +grupo que representa a mais sublime epopeia da dôr maternal, ao deter-se em +frente d'aquella mãe, cem vezes mais dolorosa do que a dos Machabeos, tirou o +chapéu com veneração e ficou como que fascinado ante aquella esculptura, creada +pelo magico cinzel de Scopas 478 annos antes de Christo, para que fosse o pasmo +e a admiração das edades futuras.</p> + +<p>D. Ventura descobriu-se tambem, apezar de não comprehender o valor de tão +interessante grupo que tinha ante si. Para elle, aquillo era uma mãe chorando +seu filho morto e uma joven ferida que agonisava; para Ernesto e Amparo, que +tinham uma alma mais artistica, mais enthusiastica, aquelle drama maternal, +aquella cabeça sublime modelada, enlouquecida pela dôr, era uma obra sem rival. +Scopas, o <i>artista da verdade</i>, apparecia ante os seus olhos como o +gigante da esculptura.</p> + +<p>—Que bello grupo!</p> + +<p>—Sim, senhora D. Amparo, respondeu Ernesto. Para os que têem a arte em +alguma conta só para vêr esse grupo vale a pena vir a Florença, ainda que das +regiões mais afastadas do universo. Essa<span class="pn">{34}</span> scena é +tão sublime, tão dramatica, que os exigentes criticos de Athenas inclinaram a +cabeça com admiração, assombrados de tão grande obra. Na figura da mãe está +toda a alma de Scopas.</p> + +<p>D. Ventura, que não compartilhava do enthusiasmo do pintor nem de Amparo, um +pouco enfadado com tantas exclamações, nas quaes não podia tomar parte por se +julgar profano no assumpto, disse, instigado pela curiosidade:</p> + +<p>—Mas o que representa esse grupo que tanto admiram?</p> + +<p>—Scopas foi um artista pagão. No seu tempo estava em moda a +Mythologia, e os homens adoravam as deusas e os deuses do Olympo, apezar dos +seus defeitos e fraquezas, disse Ernesto. Pois bem, Niobe era filha de Tantalo +e esposa de Anfior, rei de Tebas, tão presumida da sua fecundidade, que se +queixou amargamente aos deuses vendo que no Olympo se dava sensivel preferencia +sobre ella á deusa Latona, filha de Saturno e de Febe, mãe de Apollo e Diana, e +esposa, segundo se assegura, de Jupiter. Os deuses irritaram-se da soberba +d'aquella pobre mortal que se atrevia a refutal-o e combinaram um terrivel +castigo. Appollo e Diana feriram com as suas flechas os filhos de Niobe; +Jupiter converteu em pedras os subditos da orgulhosa rainha de Thebas, que +queria ser mais do que uma deusa. Durante nove dias, os filhos de Niobe +permaneceram no solo cobertos de sangue; a agonia foi grande, terrivel, +tragica, até ao grau mais sublime; Niobe, louca de dôr e de amargura, +derramando um mar de lagrimas, arrancando os cabellos de desespero, pedia +soccorro com gritos d'alma, mas os seus vassallos permaneceram immoveis e +indiferentes. Por fim ao decimo dia Jupiter compadeceu-se d'aquella mãe e +julgando-a já sufficientemente castigada, tornou á vida os thebanos, permittiu +que tomassem algum alimento, mandou enterrar os filhos, e convertendo Niobe em +uma rocha, collocou-a no cume d'um solitario monte, onde chora eternamente a +perda dos queridos fructos das suas entranhas, sendo um<span +class="pn">{35}</span> monumento de vergonha dos vingativos deuses do +Olympo.</p> + +<p>Quando Ernesto acabou o conto mythologico D. Ventura, movendo a cabeça em +signal de duvida, disse:</p> + +<p>—Mas tudo isso é uma fabula.</p> + +<p>—Que deu bastante assumpto, respondeu o pintor, para que Scopas, +deixasse essa sublime e inimitavel esculptura, que é uma verdade admirada por +todas as nações; grupo sublime do qual nos permittirá que tiremos um rapido +<i>croquis</i>.</p> + +<p>E Ernesto começou a copiar a obra prima do celebre filho de Paros.</p> + +<p>D. Ventura encolheu os hombros, e emquanto Amparo e Ernesto desenhavam a +Niobe, entreteve-se a vêr os bustos antigos, as estatuas egypcias, os +sarcophagos e o retrato de Bruto feito por Miguel-Angelo.</p> + +<p>O rico commerciante passava com ligeireza por todas aquellas obras de +merito. Para elle não tinham a importancia que lhe attribuiam; e do fundo do +coração dizia que os artistas eram uns pobres loucos que viviam de illusões, +exaggerando tudo.</p> + +<p>Ernesto e Amparo entretanto tiravam um desenho do grupo: e tão embebidos +estavam no seu trabalho que não repararam que um rapaz elegantemente vestido, +de correctas feições e maneiras distinctas, se deteve a poucos passos d'elles, +e tomando das mãos de um creado que o seguiu o <i>carnet</i> de desenhos, +começou a tirar uma copia da celebre esculptura de Scopas.</p> + +<p>Chamava-se Fernando de Villar, Conde de Loreto.</p> + +<p>Quando Amparo desviou os olhos do papel onde desenhava viu o conde, e este +cumprimentou-a com um ligeiro movimento de cabeça. Ernesto cumprimentou-o mas +com uma certa frieza que demonstrava o desgosto que lhe causava a presença +d'aquelle homem.</p> + +<p>Ao sair da sala de Niobe, D. Ventura disse:</p> + +<p>—Viram o conde de Loreto?</p> + +<p>—Era o joven que desenhava proximo de nós? perguntou Amparo.<span +class="pn">{36}</span></p> + +<p>—Sim. Occupa o andar por cima de nós.</p> + +<p>E deixando a conversação continuaram visitando o palacio.</p> + +<p>O rico museu dos Médicis, contem dezenove galerias.</p> + +<p>Não é, pois, nosso intento percorrer minuciosamente estes immensos arsenaes +da arte, detendo-nos ante cada obra-prima que se apresenta aos avidos olhos do +viajante enthusiasta.</p> + +<p>Os nossos amigos dedicaram os dias a vêr os museus, as bibliothecas e as +egrejas. Para as noites ou assistiriam aos espectaculos, ou passeariam nos +jardins, aspirando os perfumes.</p> + +<p>A segunda noite da sua estada em Florença, Amparo passeava no jardim com +Ernesto, quando lhe chegaram aos ouvidos as melodiosas notas de um orgão +expressivo, tocado com tanto gôsto como mestria. Detiveram-se e ouviram com a +religiosidade dos amantes de musica.</p> + +<p>No dia seguinte Amparo perguntou ao senhor Rosales quem tocava o orgão.</p> + +<p>—O senhor conde de Loreto. É um grande musico.</p> + +<p>Desde então Amparo abriu algumas noites a janella para ouvir o orgão</p> + +<p>Um dia D. Ventura deteve-se deante da celebre mula negra do palacio +Pitti.</p> + +<p>—Isto será um capricho de algum celebre esculptor? perguntou.</p> + +<p>—Isto é a vergonha de um nobre tão ingrato como parvo, respondeu +Ernesto.</p> + +<p>—Temos outra historia como a da Niobe?</p> + +<p>—Não, esta é historica e vergonhosa para o auctor. Luc Pitti foi um +homem cuja riqueza e liberdades lhe tinham grangeado a estima dos seus +concidadãos e a aura da popularidade. Pitti quiz luctar em magnificencia com +Cosme de Médicis, e começou a construir um palacio, que é este em que nos +achamos; mas bem depressa se viu arruinado, e a obra teve que suspender-se. O +povo sempre generoso e<span class="pn">{37}</span> agradecido com os que d'elle +se recordavam e os Médicis, protectores da arte, vieram em ajuda do soberbo +Pitti, publicou-se um decreto concedendo o perdão a todos os criminosos e +malfeitores que viessem trabalhar no palacio de Luc. O povo correu em tropel a +trabalhar nas obras: todos os condemnados de Italia vieram tambem. O palacio +acabou-se com o suor dos pobres; mas Pitti tão nescio como ingrato, fez +construir essa mula gravando-lhe no pedestal um distico latino para sua eterna +vergonha, pois prova-nos a sua inqualificavel ingratidão, porque a mula +representa o povo e o distico diz: «<i>Esta azemola trabalhou e conduziu tudo; +pedras, marmores, madeiras e columnas.</i>»</p> + +<p>Outra tarde Ernesto conduziu os seus amigos á egreja de São Giovanni, +fazendo-lhes admirar os quadros de Andrea del Sarto, tão miseravelmente +retribuido pelos frades, e ante a inimitavel <i>Virgem do Sacco</i>, por cuja +obra, que admira o orbe, pagaram-lhe com um sacco de trigo os irmãos servitas +da Annunciada, abusando da pobreza do artista, que se vingou, pondo o mundo por +testemunha da sua humilhação dando á sua obra o nome de <i>Virgem do +Sacco</i>.</p> + +<p>Visitaram tambem os sepulchros dos poetas e dos grandes artistas. Junto ao +de Dante Alighieri, onde chora a poesia e medita a estatua de Florença, Amparo +e Ernesto recordaram Beatriz e os seus interessantes amores.</p> + +<p>Assim se passavam os dias, crescendo nas almas dos dois jovens esse preludio +do amor que se chama sympathia.</p> + +<p>Mas deixemos a luz d'esse esplendoroso sol de Floreça, para gosar dos +poeticos raios da lua. A noite tem tambem os seus attractivos.</p> + + + +<h4><a name="SECTION0006000">CAPITULO VI</a></h4> + +<h2>Um beijo</h2> + +<p>Os nossos viajantes foram varias vezes aos theatros mais importantes de +Florença; ao de <i>Pergola</i> que comporta duas mil e quinhentas pessoas, que +tem cinco ordens e cento e dez camarotes, ao de <i>Los Intrepidos</i> e ao de +<i>Alfieri</i>.</p> + +<p>O tempo passava-se sem se sentir.</p> + +<p>D. Ventura disse uma manhã:</p> + +<p>—É preciso pensar na nossa volta para Hespanha, e contando que sempre +nos demoraremos quinze dias em Paris, não temos muito tempo para permanecer em +Florença.</p> + +<p>Isto foi um grito de alarme para Ernesto. Era tão feliz ao lado de +Amparo!</p> + +<p>Os vinte cinco dias passados em Florença tiveram para elle a duração de um +minuto. Milhares de vezes durante esse periodo esteve a ponto de lhe assomar +aos labios o segredo que se lhe occultava no coração.</p> + +<p>O receio detinha-o. Amava Amparo com tão firme, tão pura paixão, que o medo +de um desengano lhe emmudecia a bôcca.</p> + +<p>Uma tarde D. Ventura sahiu para receber uma lettra. Amparo, sentada proximo +da janella, entretinha-se em colleccionar e guardar um grande numero de +desenhos, feitos pelo seu companheiro, das bellezas artisticas que juntos +tinham admirado.</p> + +<p>Ernesto entrou no gabinete. Amparo extendeu-lhe a mão sorrindo-se:</p> + +<p>—Bem vê, senhor Ernesto, que como a nossa partida se approxima, +occupo-me em colleccionar convenientemente estes preciosos desenhos, que +conservarei<span class="pn">{39}</span> toda a minha vida, pois encerram a +historia d'esta viagem encantadora, viagem que, como todas as cousas +terrestres, tem que acabar em breve.</p> + +<p>Ernesto julgou ouvir sair um debil suspiro dos labios de Amparo. O seu +coração bateu com violencia, fez-se pallido e como receasse que as forças o +abandonassem, sentou-se n'uma cadeira ao lado da joven.</p> + +<p>—Para que a vi em Roma?!</p> + +<p>Esta exclamação que se lhe escapou do coração fez estremecer Amparo; mas +serenando immediatamente disse:</p> + +<p>—Tem pena que a casualidade nos tivesse feito amigos?</p> + +<p>Ernesto deixou cair a cabeça sobre o peito. A sympathica physionomia do +pintor tinha n'aquelle momento a expressão da mais profunda tristeza.</p> + +<p>Amparo compadeceu-se d'aquelle amante respeitoso que se não atrevia a +declarar-lhe o seu amor.</p> + +<p>A compaixão, essa bella e delicada qualidade da alma da mulher, apoderou-se +do coração da joven, e com uma doçura infinita, perguntou:</p> + +<p>—Mas, meu Deus. O que tem, Ernesto? Nunca mais nos tornaremos a +vêr?</p> + +<p>Ernesto, que sentia penetrar no fundo do seu coração a doce voz de Amparo, +levantou a cabeça, fixou n'ella um amoroso olhar, e disse:</p> + +<p>—Irei a Madrid antes do fim de setembro; mas durante esses tres mezes +que faltam, a minha alma viverá em eterna solidão, rodeada de triste +melancholia porque vae partir, e eu amo-a como um louco.</p> + +<p>Amparo córou. As suas formosas faces cobriram-se d'esse encantador carmim +que tão bem assenta ás jovens e que tanto arrebatam e enlouquecem os homens.</p> + +<p>—Sim, para que occultar-lh'o por mais tempo? continuou Ernesto. Deve +tel-o comprehendido. Se os meus labios ainda lh'o não disseram, os meus olhos +têem-lh'o confessado infinitas vezes. Quando se ama pela primeira vez, com a +vehemencia filha de um<span class="pn">{40}</span> amor tão firme como +verdadeiro, é trabalho em vão dissimulal-o. Os olhos revelam o sentimento da +alma e atraiçoam-nos. Não é verdade, Amparo, que já tinha adivinhado que eu +desde Roma a amava com toda a minha alma? Oh! isto certamente não era segredo +para si.</p> + +<p>Amparo suspirou. Os seus olhos bellos, cheios de melancholica expressão, +fixaram-se com certo receio no joven, e com voz tremula e doce, respondeu:</p> + +<p>—Sim, Ernesto, adivinhei-o e, não obstante, fui a causadora d'esta +viagem. Se em Roma nos tivessemos separado, talvez que a estas horas já não +pensasse em mim.</p> + +<p>—Não pensar em si! Isso para mim é tão impossivel como seria a Tasso +não pensar em Leonor, a Raphael esquecer a Fornarina, cujo retrato contemplámos +os dois de mãos dadas em Roma, e cuja copia admirámos tambem em Florença. Para +certos homens é um passa-tempo, uma nuvem de verão carregada de mais ou menos +electricidade, mas que passa e que rapidamente desapparece; para outros, o amor +é a vida, é a luz, é o ar que dá vida, força á imaginação, alegria á alma, +porque o amor é para elle a unica luz que lhe embelleza tudo; tirando-lhe esse +amor, ficam rodeados das mais profundas trevas e morrem de tristeza.</p> + +<p>Ernesto ia continuar quando se ouviu a voz de D. Ventura, que falava na sala +anterior com o senhor Rosales.</p> + +<p>—Por Deus, Ernesto, disse Amparo com voz supplicante, que meu pae não +suspeite nada!</p> + +<p>—Esteja descançada, Amparo. Não receie que a importune; para amar não +é preciso ser correspondido. Esta noite estarei á meia-noite no caramanchão do +jardim. Espero-a até que amanheça: se vier, a bella flôr da esperança renascerá +na minha alma, perfumando a minha existencia, se não vier, ámanhã, com qualquer +pretexto, partirei para Roma e não nos tornaremos a vêr.</p> + +<p>Amparo guardou silencio. Ernesto poz-se a arranjar<span +class="pn">{41}</span> os desenhos, procurando dissimular a sua commoção.</p> + +<p>Quando entraram Rosales e D. Ventura, os dois jovens occupados com os +desenhos, não inspiraram a menor suspeita ao honrado commerciante.</p> + +<p>—Fazem muito bem em dispor tudo, disse D. Ventura. Entre quatro ou +cinco dias tomaremos o caminho de França.</p> + +<p>—Com que então decididamente partimos, papá? perguntou Amparo.</p> + +<p>—Filha, ha cêrca de tres mezes que sahimos da nossa casa, é preciso +voltarmos a ella.</p> + +<p>—Em verdade, senhor D. Ventura, que esta viagem tem um tanto de +traiçoeira, respondeu Ernesto esforçando por rir-se. Emfim, brevemente nos +veremos em Madrid.</p> + +<p>—Diga que é a melhor terra do mundo.</p> + +<p>—Assim a reputo.</p> + +<p>—Creio que hoje não temos nada que fazer, proseguiu D. Ventura.</p> + +<p>—Esta noite, se quizerem, iremos ao theatro. Estreia-se uma opera em +Pergala.</p> + +<p>—Não, estou muito cançado, e esta noite quero-me deitar cedo; mas se +quizer não se prenda por nossa causa.</p> + +<p>—Convem-me ficar em casa. Temos que aperfeiçoar alguns desenhos, +tirados tanto á pressa, que apenas são quatro traços. Tambem fico em casa.</p> + +<p>—Ah! esquecia-me dizer-te que estive falando com o visinho do primeiro +andar.</p> + +<p>—Com o conde de Loreto?</p> + +<p>—Sim.</p> + +<p>—Dizem que é um sujeito que deu muitos desgostos á mãe... disse +Amparo.</p> + +<p>—Em Madrid está sempre em ordem do dia a mexeriquice: O conde de +Loreto é um rapaz como muitos outros, que se divertem quanto podem, porque teve +a sorte de herdar dos paes uma grande fortuna. Imagina que esse rapaz tem agora +28 annos, possue uma fortuna de quinze milhões. Demais, dizem que<span +class="pn">{48}</span> é muito instruido. O nosso hospedeiro não se cança de o +gabar.</p> + +<p>—É um bom hospede, disse Amparo, sorrindo-se.</p> + +<p>Ernesto não tomava parte na conversa: desagradava-lhe ouvir elogios do +conde.</p> + +<p>Mas deixemos correr as horas, e com a rapidez do pensamento transportemo-nos +ao jardim da casa que occupavam os nossos conhecidos.</p> + +<p>Os relogios de Florença acabam de dar as onze e tres quartos, quando Ernesto +saltou da janella para o jardim dirigindo-se para o caramanchão, coberto de +madresilva, lupulo e hera.</p> + +<p>Dentro do caramanchão haviam quatro bancos e uma mesa. Ernesto sentou-se +n'um disposto a esperar toda a noite como tinha dito a Amparo.</p> + +<p>A lua estava em quarto minguante, o céu limpido e de um azul escuro +carregado onde as estrellas brilham de uma maneira extraordinaria.</p> + +<p>A brisa nocturna roubava a essencia perfumada das flôres, e, sempre prodiga, +espargia pelo ambiente como se tivesse envergonhado d'aquella usurpação.</p> + +<p>N'um relogio de torre soou a meia-noite.</p> + +<p>Ernesto levantou a cabeça, poz-se de pé e foi pôr-se em uma das entradas do +caramanchão. O coração dizia-lhe que Amparo vinha.</p> + +<p>A noite é em todos os paizes a protectora carinhosa dos namorados, porque o +amor, vulgarmente timido á luz do sol, cobra valor e energia antes esses tibios +reflexos que a lua envia do céu.</p> + +<p>Ernesto, de pé junto da entrada do caramanchão, com uma das mãos sobre o +coração e a outra languidamente caída, dirigia olhares cheios de inquietação +para o silencioso edificio d'onde devia vir a sua felicidade, a sua dita, o +anjo dos seus sonhos.</p> + +<p>Passou-se um quarto de hora. Amparo não vinha, e os segundos passavam com um +vagar, com uma monotonia aborrecedora para Ernesto.</p> + +<p>Por fim os labios entreabriram-se-lhe, sem duvida para dar um grito de +prazer, mas conteve-se. Vira desenhar-se entre as sombras das arvores a +encantadora<span class="pn">{43}</span> silhueta de um corpo para elle +conhecido, e em seguida uns passos se ouviram na areia das ruas que conduziam +ao caramanchão, e o ligeiro <i>frou-frou</i> de um vestido que se +approximava.</p> + +<p>Ernesto sahiu ao encontro de Amparo, porque era ella; pegou-lhe n'uma mão e +conduziu-a até ao caramanchão.</p> + +<p>A joven tremia; estava nervosa e pallida.</p> + +<p>Ernesto sentou-a n'um dos bancos procurando tranquilisal-a.</p> + +<p>—Obrigado, Amparo, obrigado por tanta bondade. Tranquilise-se, os +homens honrados que amam como eu, sabem respeitar o objecto do seu amor.</p> + +<p>—Ernesto, respondeu a joven, commetti uma imprudencia. Nunca devia ter +vindo.</p> + +<p>—Tão pouca confiança lhe inspiro?</p> + +<p>—Sim, muita, meu amigo, muita; de contrario não teria vindo. Mas sou +franca, não pude resistir, porque as ultimas palavras que me disse esta tarde +pareciam recriminar-me. Bem vê: aqui estou, apezar de tudo. Tive um susto +terrivel. Para vir ao jardim era preciso passar pelo quarto de meu pae; receei +despertal-o. E sabe o que fiz? Pois bem, vou-lhe dizer: saltei pela janella. +Nem eu mesmo posso explicar como tive coragem para tanto: tratava-se de me +despedir de um amigo bom e leal, e não tive animo para faltar.</p> + +<p>Ernesto tinha entre as suas as mãos de Amparo, que apertava docemente, +escutando ao mesmo tempo aquella voz encantadora que tão suavemente lhe vibrava +no coração.</p> + +<p>Nunca experimentára um prazer tão completo, uma felicidade tão ineffavel.</p> + +<p>O perfume das flôres, o aroma da madresilva que se espalhava n'aquelle +recinto; a luz tibia da lua, que penetrava no caramanchão pelos intervallos das +folhas; aquella mulher, bella como o mais perfeito e encantador sonho da sua +alma de artista, tudo contribuia para que Ernesto se julgasse arrebatado da +terra pelos anjos e transportado a esse paraizo<span class="pn">{44}</span> de +amor que tanto embriaga as pobres creaturas.</p> + +<p>—Ha momentos de felicidade, exclamou Ernesto, que nunca deviam acabar. +Se ao homem fosse dado escolher o momento da sua morte sem passar por suicida, +eu escolheria este.</p> + +<p>—Está louco, Ernesto?</p> + +<p>—Quem sabe! Talvez. O amor não é outra cousa senão uma loucura sublime +que conduziu Raphael aos pés de uma moleira, Tasso a uma prisão e Ovidio a uma +masmorra. A historia conta-nos tantas loucuras de amor, que seriam necessarios +muitos volumes para a descrever. Mas, feliz o que ama e é correspondido! Ditoso +o que ao dar metade da sua alma, recebe em troca outra metade que lhe envia um +peito agradecido em mutua correspondencia.</p> + +<p>Amparo suspirou em silencio. Ernesto, julgando que esse suspiro era uma +confissão, levou aos labios a mão da donzella, imprimindo n'ella um beijo.</p> + +<p>Amparo estremeceu sem retirar a mão.</p> + +<p>Esta condescendencia animou o pintor.</p> + +<p>—Vamo-nos separar, Amparo; não nos veremos durante tres mezes; +necessito ouvir antes uma palavra que inunde de felicidade o meu peito, que +deposite o perfume da esperança em meu coração. Tambem me ama?</p> + +<p>—Ernesto, Ernesto, tudo isto me parece uma loucura, respondeu +debilmente Amparo.</p> + +<p>—Não, não é essa a resposta que desejo, é outra, meu anjo. Ama-me, sim +ou não?</p> + +<p>—Pois bem, sim. Ha muito que o devia saber; desde a noite do Colyseu +de Roma.</p> + +<p>Ernesto não poude conter um grito de immensa felicidade, e enlaçando com o +braço a cintura da donzella exclamou:</p> + +<p>—Juro pelas cinzas de minha mãe amar-te emquanto viva, e conquistar um +nome tão glorioso que te sintas orgulhosa chamando-te minha.</p> + +<p>Este juramento, esta exclamação, brotaram de uma alma de artista, cheia de +fé, de enthusiasmo, de amor.<span class="pn">{45}</span></p> + +<p>Amparo assim o comprehendeu, e, agradecida por tão grande paixão, achava-se +n'um d'esses momentos de fraqueza em que a mulher não tem forças para resistir, +momentos perigosos, dos quaes só se aproveita o homem para satisfazer um +desejo, causando a infelicidade d'aquella a quem jura um amor eterno e por quem +n'esse instante faz os maiores sacrificios.</p> + +<p>Mas Amparo rapidamente serenou; conheceu que era uma imprudencia permanecer +á beira de tão grande precipicio, e ainda que Ernesto lhe inspirasse absoluta +confiança, como elle mesmo acabava de dizer, amor não é outra cousa senão uma +loucura sublime; por isso poz-se de pé e disse:</p> + +<p>—Separemo-nos, Ernesto, estou desassocegada e por enquanto convêm que +o nosso amor seja um segredo.</p> + +<p>—Já? disse o pintor, tornando a cingil-a pela cintura. Pensa, querida, +que em poucos dias nos vamos separar.</p> + +<p>—Ámanhã nos tornaremos a vêr aqui, se eu puder vir; mas hoje... hoje +não devo ficar mais tempo.</p> + +<p>—Pois bem, sim, separemo-nos, não quero que estejas inquieta; sou +demasiado feliz para te desgostar; mas se te inspiro confiança, se queres que +seja esta a noite mais bella da minha vida, permitte-me que selle com um beijo +a mutua promessa que acabamos de fazer.</p> + +<p>—Meu Deus, Ernesto, por compaixão! Ah! Para que vim?</p> + +<p>O pintor estreitou docemente o desfallecido corpo de Amparo de encontro ao +seu. Aquellas duas cabeças jovens, apaixonadas, uniram-se; aquellas duas boccas +tocaram-se e o doce som de dois beijos confundidos n'um fugiu nas azas da brisa +nocturna.</p> + +<p>Pobre Ernesto! Elle tinha dado toda a sua alma n'aquelle beijo, emquanto que +Amparo só lhe tinha feito uma esmola como paga de agradecimento que a sua +deferencia para com ella inspirava.<span class="pn">{46}</span></p> + +<p>Amparo desprendeu-se dos braços de Ernesto, sahindo rapidamente do +caramanchão.</p> + +<p>Ernesto deixou-se cahir n'um dos bancos, murmurando em voz baixa:</p> + +<p>—Meu Deus! Esta felicidade que sinto é demasiadamente grande para que +seja duradoura!</p> + + + +<h4><a name="SECTION0007000">CAPITULO VII</a></h4> + +<h2>Separação</h2> + +<p>No dia seguinte quando Ernesto appareceu no quarto de D. Ventura, este +disse-lhe:</p> + +<p>—Que pallido que está? Que é isso? Não se sente bem? São más as aguas +de Florença?</p> + +<p>—Pallido? respondeu Ernesto. Estou como sempre, estou bom.</p> + +<p>—Não, não, está com muito má côr. Não achas, Amparo?</p> + +<p>—Acho-o na mesma, papá, respondeu Amparo de um modo natural.</p> + +<p>—Seja como fôr, disse Ernesto sorrindo-se, não pensemos n'isso e +tratemos de aproveitar o tempo que nos resta.</p> + +<p>D. Ventura, que não tinha vontade propria, pegou no Guia, Ernesto e Amparo +nos seus <i>carnets</i> de desenho e sahiram de casa com a incançavel +curiosidade dos viajantes.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>N'aquella noite foram ao theatro de <i>Alfiere</i>, onde se representava +<i>O pae de familia</i>, do celebre poeta cómico Carlos Goldoni, a quem +chamavam o <i>Molière italiano</i>.</p> + +<p>Ao começar o primeiro acto abriu-se o camarote<span class="pn">{47}</span> +fronteiro ao dos nossos amigos e entrou um joven vestido de rigoroso luto.</p> + +<p>—Olhem, disse D. Ventura. É o nosso visinho do primeiro andar, o conde +de Loreto.</p> + +<p>Amparo dirigiu o olhar machinalmente até ao camarote.</p> + +<p>Ernesto, como sempre, ao ouvir pronunciar aquelle nome sentiu uma vaga +inquietação.</p> + +<p>O conde de Loreto teria vinte e oito annos. Era alto; não podiam vêr-se com +facilidade as suas feições, mas de longe parecia muito pallido, elegante e +sympathico. Era um d'esses typos distinctos que fazem com que se fixe n'elles a +attenção. Como o panno acabára de levantar, o conde sentou-se. Durante o acto +esteve ouvindo com grande attenção. Ao acabar sahiu do camarote para não +tornar.</p> + +<p>A mais de metade do terceiro acto, D. Ventura que parecia gosar falando do +seu visinho, disse:</p> + +<p>—Que homem tão extraordinario!</p> + +<p>—Quem? perguntou a filha.</p> + +<p>—O conde de Loreto. Durante o primeiro acto, nem pestanejou, ouvindo +com attenção os versos de Goldoni, e durante o segundo e terceiro não tornou a +entrar, mostrando a indifferença irritante dos nossos elegantes de Madrid em +noite de estreia.</p> + +<p>Amparo nada respondeu. Ernesto guardou silencio.</p> + +<p>Depois da comedia representava-se uma d'essas farças em um acto que tanto +agrada aos italianos em que toma parte a figura de Polichinello; farças +vulgarmente improvisadas pelos actores que as representam.</p> + +<p>Como D. Ventura era um bom hespanhol, não sabia passar sem o cigarro, e +sahiu do camarote para satisfazer o innocente vicio.</p> + +<p>Ernesto e Amparo ficaram sós.</p> + +<p>Durante alguns segundos ficaram silenciosos; ella parecia preoccupada, elle +triste.</p> + +<p>Por fim Ernesto rompeu o silencio.</p> + +<p>—Que tem, Amparo? Noto nos seus formosos olhos uma melancholia que me +entristece.<span class="pn">{48}</span></p> + +<p>—Penso que em breve nos vamos separar.</p> + +<p>—Ah! sim! É verdade! Mas esta noite...</p> + +<p>—Não, Ernesto, não; esta noite não vou ao jardim, receio que meu pae +saiba.</p> + +<p>—Pois bem, não quero ser exigente; não sáias, mas ao menos abre-me a +janella para que possa vêr o luar sem testemunhas importunas; que possa +dizer-te no silencio da noite o que sente o meu coração.</p> + +<p>—Ámanhã, Ernesto, ámanhã, prometto-te abrir a janella para me despedir +de ti; hoje sinto-me mal; necessito descançar.</p> + +<p>—Mas é uma crueldade roubar-me uma noite quando tão poucas nos +restam.</p> + +<p>Amparo fixou os seus olhos no pintor, e compadecida da triste e apaixonada +expressão de Ernesto, disse:</p> + +<p>—Bem, abrirei.</p> + +<p>Ernesto fez um movimento como para se apoderar de uma mão da Amparo, mas +esta conteve-o com o olhar, exclamando:</p> + +<p>—Que vae fazer? Que imprudencia!</p> + +<p>Ernesto conteve-se, e só então se recordou que se achava no theatro.</p> + +<p>Durante a farça, D. Ventura riu-se muito. Ao acabar dirigiram-se para +casa.</p> + +<p>Á uma da madrugada, Ernesto estava junto á janella do quarto de Amparo. +Chamou suavemente. A janella abriu-se. Amparo apagara a luz; assomou á janella +e começaram um d'esses dialogos, doces, apaixonados, cheios de encantadoras +trivialidades, que só têem valor aos ouvidos dos namorados.</p> + +<p>Quando eram tres horas. Amparo disse:</p> + +<p>—Separemo-nos já, Ernesto.</p> + +<p>—Bem, separemo-nos, mas dá-me outro beijo de despedida.</p> + +<p>Amparo inclinou a cabeça e como na noite anterior, duas boccas se juntaram, +e um beijo cheio de amorosa ternura interrompeu o silencio da noite.</p> + +<p>Ernesto e Amparo, durante aquellas duas horas de<span class="pn">{49}</span> +amoroso colloquio, fizeram mil promessas de amor e fidelidade.</p> + +<p>—Não me esqueças nunca, disse o pintor; pensa sempre em mim.</p> + +<p>Amparo tirou uma fita de seda com que prendia os cabellos e deu-a a +Ernesto.</p> + +<p>—Esta fita será a que une os nossos corações. Pega, conserva-a.</p> + +<p>Ernesto cobriu de beijos aquella fita, que jurou conservar toda a sua vida +como uma recordação de tão feliz noite.</p> + +<p>Quando o pintor entrou no seu quarto, pegou na penna e escreveu na fita: +«<i>Florença, 2 de Julho de 186...</i>».</p> + +<p>Depois deitou-se, e não demorou muito em gosar um d'esses sonhos de que não +quizera despertar.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>Dois dias depois, Amparo, seu pae e Ernesto entravam na sala de espera da +estação. O comboio estava preparado para partir; faltavam alguns minutos para +se pôr em andamento.</p> + +<p>O pintor esforçava-se por se mostrar satisfeito, mas uma enorme tristeza lhe +opprimia o coração.</p> + +<p>Nunca Amparo lhe parecera tão bella como n'aquella occasião, mas era preciso +resignar-se á separação.</p> + +<p>Os olhares furtivos que ella lhe dirigia pareciam dizer-lhe:</p> + +<p>—Confia e espera. Em breve nos tornaremos a juntar.</p> + +<p>Rapidamente D. Ventura pôz a sua mala de mão sobre um banco da estação e +disse:</p> + +<p>—Oh! Aquelle não é o conde de Loreto?</p> + +<p>Ernesto e Amparo voltaram-se.</p> + +<p>Effectivamente, o conde estava sentado a um canto com um livro na mão, e +falando em voz baixa com um velho de cabellos brancos, gravata branca e +sobrecasaca preta que o ouvia em respeitosa attitude.</p> + +<p>O velho era um d'esses typos proprios para mordomo<span +class="pn">{50}</span> de casa rica; de parecer carregado, severo e +completamente barbeado.</p> + +<p>O conde de Loreto parecia dar-lhe algumas ordens; o velho cumprimentou e +sahiu do salão e foi para o local destinado aos despachos na estação.</p> + +<p>Ernesto poude vêr então perfeitamente aquelle rapaz, que parecia seguil-o +como uma sombra.</p> + +<p>Era, em verdade, bello e distincto, notando-se-lhe na pallida e sympathica +physionomia uma profunda melancholia que interessava.</p> + +<p>A julgar pelo traje, o conde ia emprehender alguma viagem.</p> + +<p>—Irá para Paris, tambem? pensou Ernesto, sentindo-se inquieto, mau +grado seu, ante o conde de Loreto.</p> + +<p>A sineta deu o signal. Os passageiros dirigiram-se para a gare afim de +escolherem logares.</p> + +<p>D. Ventura, que caminhava á frente, deteve-se junto de um compartimento de +primeira classe, e disse:</p> + +<p>—Aqui.</p> + +<p>E subiu adeante para dar a mão a Amparo.</p> + +<p>N'um canto do compartimento e sobre um banco estava uma mala de viagem; no +da frente o velho que pouco antes estivera falando com o conde de Loreto.</p> + +<p>Era por acaso ou propositadamente a escolha de D. Ventura? Quem sabe? Talvez +que o honrado commerciante, vendo n'um compartimento de primeira classe o +mordomo do conde de Loreto, escolhesse aquella carruagem com o firme proposito +de viajar com um compatriota de sangue azul, ou talvez não reparasse senão +depois no silencioso e sympathico ancião.</p> + +<p>Mas a escolha causou um profundo desgosto a Ernesto, que pela primeira vez +sentiu no peito a terrivel punhalada do ciume.</p> + +<p>O pintor apertou a mão do commerciante e depois a de Amparo, enviando-lhe +toda a sua alma n'um olhar.</p> + +<p>—Até setembro, lhe disse.<span class="pn">{51}</span></p> + +<p>N'aquelle momento ouviu-se uma voz varonil, mas doce e respeitosa, que disse +em castelhano:</p> + +<p>—Dá-me licença, cavalheiro?</p> + +<p>Ernesto deixou-o passar. O conde de Loreto cumprimentou e subiu para a +carruagem, indo sentar-se em frente do seu mordomo.</p> + +<p>Apitou a locomotiva, e começou o comboio a mover-se e a sahir pausadamente +da estação.</p> + +<p>Amparo e D. Ventura assomaram á janella e acenaram com um lenço ao seu bom +amigo.</p> + +<p>Um momento depois, o comboio tinha desapparecido; mas Ernesto como se +estivesse pregado ao chão permanecia immovel e preoccupado.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>N'aquella noite, Ernesto partiu para Roma, levando a duvida na alma e o +ciume no coração.</p> + +<p>Pobre sonhador! Infeliz artista, que tinha trocado por um beijo, a +felicidade, a paz do seu espirito e todos os seus sonhos de gloria!</p> + + + +<h4><a name="SECTION0008000">CAPITULO VIII</a></h4> + +<h2>Caminho de Hespanha</h2> + +<p>Ernesto encerrou-se no <i>atelier</i>. Era preciso ganhar o tempo perdido; +era preciso acabar o seu quadro quanto antes e regressar a Hespanha e sobretudo +era indispensavel fazer uma obra-prima que cobrisse o auctor de gloria, que +fosse falada em todo o mundo, e que Amparo se sentisse orgulhosa. Mas ai! o +pobre artista tinha a imaginação demasiadamente occupada, a alma pouco socegada +para conseguir o seu fim.</p> + +<p>Comtudo, fez esforços heroicos, trabalhava emquanto<span +class="pn">{52}</span> tinha luz, e durante as noites, fechado no quarto, +passava longas horas, escrevendo as impressões da sua alma no meio da soledade +em que vivia.</p> + +<p>—Ámanhã, quando nos tornarmos a reunir, pensava elle, entregar-lhe-hei +estas folhas de papel em que diariamente escrevo os meus pensamentos, e ella +verá que a não esqueci nem um só instante, que a continuo amando como nunca.</p> + +<p>Ernesto pintára um pequeno quadro, representando a scena do caramanchão, no +momento de dar e receber o beijo de Amparo. Os dois jovens, docemente +abraçados, estavam illuminados pela debil luz da lua.</p> + +<p>O grupo era encantador; respirava amor, ternura, poesia.</p> + +<p>Era aquelle quadro uma grata recordação que a sua alma sensivel transportára +á téla.</p> + +<p>Em volta do quadro collocou a fita que lhe dera Amparo.</p> + +<p>Durante a noite, Ernesto passava ás vezes um quarto de hora contemplando o +pequeno quadro, pendurado n'uma parede do seu quarto.</p> + +<p>Depois pegava na penna e escrevia. Isto consolava-o.</p> + +<p>O pintor acabou por fim o seu quadro e convidou para almoçar alguns amigos +para que vissem a sua obra e dessem a sua opinião.</p> + +<p>A opinião geral foi de que ganharia o primeiro premio.</p> + +<p>Ernesto meneou a cabeça em signal de duvida.</p> + +<p>—Parece-me que podia fazer mais do que o que fiz, e duvido muito que o +meu quadro tenha o merito que suppõem.</p> + +<p>Os seus companheiros trataram de convencêl-o de que o seu desalento, a sua +falta de confiança eram infundados.</p> + +<p>No dia seguinte, Ernesto escreveu uma carta ao judeu Daniel.</p> + +<p>O negociante de quadros, como sempre que se tratava de fazer algum negocio, +apresentou-se com pontualidade.<span class="pn">{53}</span></p> + +<p>—Vou para Hespanha, disse Ernesto.</p> + +<p>—O que quer dizer que precisa de dinheiro.</p> + +<p>—Sim, vou expôr o meu quadro; por conseguinte escolha o que gostar.</p> + +<p>Daniel passou revista aos quadros com a sua tranquillidade costumada, e +escolheu a maior parte das pequenas telas que o pintor possuia.</p> + +<p>Depois de ajustar e ao entregar o dinheiro, disse Daniel:</p> + +<p>—São os artistas tão pouco agarrados ao dinheiro!... E comtudo, o +dinheiro é a alma da vida. Com que então vae para Madrid?</p> + +<p>—Sim, senhor. Ámanhã saio de Roma.</p> + +<p>—No museu de Madrid ha quadros de muito merito, como tambem em varias +egrejas; e se o senhor fosse um homem de palavra...</p> + +<p>Ernesto sorriu-se.</p> + +<p>—Se eu não soubesse o quanto me aprecia, respondeu, quasi teria +direito a offender-me com as suas palavras.</p> + +<p>O senhor Daniel que nunca abandonava a caixa de rapé, tomou uma pitada com +gravidade, e disse:</p> + +<p>—Em Madrid existem preciosos originaes dos melhores auctores. Temos +ahi sobretudo os da escola hespanhola, e se quizesse tirar-me algumas copias +feitas com consciencia, não teria inconveniente em ficar com ellas.</p> + +<p>—Isso depende do trabalho que tiver na minha patria.</p> + +<p>—Será pouco. Em Hespanha não ha costume de proteger as artes. A +politica, os touros e a bolsa absorvem a attenção dos hespanhoes. As artes e a +agricultura encontram-se em completo abandono. Para ser artista em Hespanha, +precisa ter a força de vontade de Aristoteles, a paciencia de Job, e o estomago +privilegiado dos arabes; e para ser agricultor a resignação de Santo Isidro, +com a desvantagem de que no tempo d'aquelle santo, os anjos desciam á terra e +lavravam para que o santo dormisse, e hoje os anjos não lavram. Mas, emfim, o +senhor pensará<span class="pn">{54}</span> o que lhe convém e n'esse sentido me +escreverá indicando-me os tamanhos e o preço por que m'os vende.</p> + +<p>Ernesto comprehendendo que o judeu tinha razão, não o contradisse, porque +sabido é que sendo Hespanha um paiz agricola, não tem outra protecção senão a +da Providencia. Quando chove muito succede como no Egypto, têem boa colheita. +Quando chove pouco, os pobres lavradores pagam o mesmo ao <i>protector</i> +governo que não se occupa d'elles e morrem de fome; mas isso pouco importa, +comtanto que se receba a contribuição, porque n'essa desgraçada nação chegou a +ser impossivel encontrar-se um governo <i>bom</i> e <i>barato</i>.</p> + +<p>Resumindo: Ernesto partiu de Roma, no dia seguinte, levando no quadro uma +esperança de gloria; no beijo que abrazara a sua alma uma esperança de amor.</p> + +<p>Tres mezes tinham decorrido desde o dia em que se separou de Amparo. Durante +este tempo, nem uma só carta recebêra.</p> + +<p>Ernesto levava, sem saber porquê, a tristeza na alma. Ha presentimentos que +perseguem o homem com a tenacidade da sombra. O conde de Loreto fôra para +Ernesto, desde o primeiro dia, uma ave de mau agouro.</p> + +<p>Deixemol-o viajar até Hespanha, e encontremo-nos novamente com a formosa +Amparo.</p> + +<p>O coração da mulher é insondavel; não se póde definir, porque é vario e +caprichoso como a mesma natureza. Por isso Amparo, que indubitavelmente sahiu +de Florença enamorada do pintor, chegou a Paris pensando muito no seu +companheiro de viagem, o joven conde de Loreto.</p> + +<p>Vejamos o que succedeu.<span class="pn">{55}</span></p> + + + +<h4><a name="SECTION0009000">CAPITULO IX</a></h4> + +<h2>De Florença a Paris</h2> + +<p>Fernando del Villar, conde de Loreto, depois de cumprimentar respeitosamente +com um movimento de cabeça os seus companheiros de viagem, accomodou-se do +melhor modo possivel no canto, e pôz-se a lêr. Em frente d'elle, grave e +immovel como <i>El banquero de Cera</i>, de Paulo Féval, estava o velho +mordomo. D. Ventura pensou que com uns companheiros tão graves se iria +aborrecer extraordinariamente, mas restando-lhe a consolação de lêr até que se +apresentasse melhor occasião, tirou o <i>Guia</i> que lhe offerecêra +Ernesto.</p> + +<p>Amparo, alguma cousa preoccupada com a recente despedida do homem a quem +julgava amar, fechou languidamente os olhos e entregou-se a essa doce vida das +recordações em que o passado é o presente da imaginação.</p> + +<p>Durante a primeira hora tudo se passou da fórma por que acabamos de +descrever. Depois, como se prolongasse o silencio, Amparo, olhava +dissimuladamente o joven aristocrata que tão embebido estava na leitura.</p> + +<p>O conde de Loreto era um d'esses homens a quem as mulheres não podem olhar +impunemente, porque o seu rosto pallido e formoso, a triste expressão do seu +semblante, convida o bello sexo a fazer esses terriveis commentarios que lhe +são tão peculiares.</p> + +<p>Porque seria que sendo o conde de Loreto immensamente rico, estava tão +triste? Isto pensou Amparo. E vendo atravéz aquella melancholia impropria da +juventude, uma historia interessante, teve empenho em conhecel-a.<span +class="pn">{56}</span></p> + +<p>Desde aquelle momento a felicidade de Ernesto estava ameaçada da morte.</p> + +<p>D. Ventura, que tinha passado a maior parte da sua juventude atraz de um +balcão, com os olhos alegres, o sorriso nos labios, a lingua disposta a +entabolar conversação com os freguezes, aborrecia-se extraordinariamente no +meio d'aquelle silencio enfadonho e do ruido da trepidação que a machina +transmitte aos vagons.</p> + +<p>Não podendo supportar aquella situação por mais tempo, deixou o livro e +dispôz-se a falar com a filha, pensando que talvez assim conseguisse interessar +o conde na conversa.</p> + +<p>—Olha, Amparo, que delicioso panorama apresenta essa povoação +collocada assim na falda d'esse monte, exclamou Ventura. Oh! decididamente a +Italia é um paiz encantador.</p> + +<p>—Que povo é este? perguntou Amparo.</p> + +<p>—Diabo! É difficil de t'o dizer porque me esqueci de comprar o Guia +dos Caminhos de Ferro.</p> + +<p>O conde levantou a cabeça e assomando-a á portinhola, disse com voz +harmoniosa e clara.</p> + +<p>—Este povoado, chama-se, se me não engano, <i>Santa Maria della +Spina</i>.</p> + +<p>Amparo cumprimentou com a cabeça, como dando os agradecimentos ao conde pela +sua deferencia.</p> + +<p>—Obrigado, senhor conde, disse D. Ventura, no tom mais amavel que lhe +foi possivel.</p> + +<p>O conde tirou um livro da sua mala de mão, e dando-o a D. Ventura, +continuou:</p> + +<p>—Possuo por casualidade dois Guias Geraes dos Caminhos de Ferro de +Italia e França. Se o senhor quer acceitar um...</p> + +<p>—Bem vês, Amparo; isto é o que se chama viajar com sorte. Em Roma +encontrámos o bom Ernesto, que foi para nós o melhor dos <i>cicerones</i>; aqui +o senhor conde de Loreto offerece-nos um <i>Guia</i> que tirará pelo caminho +todas as duvidas.</p> + +<p>Fernando sorriu-se, e respondeu:</p> + +<p>—O favor é tão insignificante, que não merece a<span +class="pn">{57}</span> pena falar n'elle; sobretudo, entre compatriotas e +visinhos, pois creio que somos visinhos ha um mez.</p> + +<p>—Sim, senhor, em casa de Rosales.</p> + +<p>—Tive o prazer de ouvir esta senhora tocar piano algumas noites; toca +admiravelmente.</p> + +<p>—E o senhor conde, segundo me disse minha filha, toca muito bem +orgão.</p> + +<p>Amparo se pudesse teria tapado a bôcca a seu pae. Mas já dissémos que D. +Ventura tinha muita vontade de falar, e sobretudo fazer-se amigo do conde.</p> + +<p>—Ah! incommodei com o meu orgão algumas noites esta senhora?</p> + +<p>—Pelo contrario, pelo contrario, senhor conde; ouvimol-o com muito +prazer. Abriamos as janellas para o ouvir melhor, ajuntou D. Ventura.</p> + +<p>—O orgão, disse Amparo, tomando parte na conversa, receando sem duvida +que seu pae commettesse alguma imprudencia, é um dos instrumentos que, quando +bem tocado, expressa melhor o sentimento da musica.</p> + +<p>—Sim, minha senhora, quando seja bem tocado, accrescentou o conde, +deixando assomar aos labios um sorriso imperceptivel: mas, desgraçadamente, não +succede isso commigo; toco por curiosidade, e nada mais. Apaixonado pela musica +até ao exaggero dedico-lhe alguns momentos d'ocio. Admiro os grandes mestres, +mas em mim a musica, como em tantos outros, não é mais do que um adorno, uma +parte da educação. Toco, é verdade, mas toco muito mal, o que é o peior.</p> + +<p>D. Ventura estava encantado com a singeleza e naturalidade com que se +expressava o conde.</p> + +<p>—Quizera, comtudo, disse o pae de Amparo, saber tanto como o +senhor.</p> + +<p>—Saberia muito pouco, meu amigo; sobretudo, na Italia que estamos +atravessando, onde todos são musicos.</p> + +<p>—O senhor conde chamar-me-hia indiscreto se lhe fizesse uma pergunta? +disse D. Ventura.</p> + +<p>—Entre compatriotas que viajam juntos na mesma<span +class="pn">{58}</span> carruagem deve reinar a maior franqueza. Póde perguntar +o que quizer.</p> + +<p>—Vae directamente para Paris, ou pensa detêr-se em alguma cidade de +Italia?</p> + +<p>—Vou para Paris; já percorri tres vezes toda a Italia.</p> + +<p>—Então faremos a viagem juntos.</p> + +<p>—Pelo que me considero extremamente feliz.</p> + +<p>—Paris é o povo mais alegre da Europa.</p> + +<p>—E tem a vantagem de que os estrangeiros em Paris encontram-se quasi +tão bem como na sua patria.</p> + +<p>—O caracter parisiense é a reunião da alegria e da amabilidade; gostam +de ser amaveis, e esforçam-se para o conseguir.</p> + +<p>—Sempre que d'isso lhes resulte alguma vantagem, continuou o conde, +mas seja como fôr, passa-se admiravelmente uma temporada n'aquelles modernos +<i>boulevards</i>, onde o luxo reuniu todas as encantadoras loucuras. Oh! Só +para cear uma noite no café <i>Tortoni</i>, almoçar na <i>Maison Dorée</i> e +passear uma tarde no <i>boulevard dos Italianos</i> vale a pena fazer-se uma +viagem a Paris.</p> + +<p>—E vae estar muito tempo na capital de França? perguntou D. +Ventura.</p> + +<p>—Tenho muito que fazer, disse Fernando, sorrindo-se; primeiro ouvir a +Patti na <i>Somnambula</i>, depois correr uma egua arabe nas proximas corridas +de cavallos. Quero ganhar o premio que offerece a Imperatriz, que é uma rosa de +brilhantes.</p> + +<p>Amparo, que ouvia com prazer a conversa, ainda que não tomasse parte n'ella, +ás ultimas palavras do conde, pensou que não seria pelo valor da rosa de +brilhantes que elle desejava ganhar o premio, mas para fazer com elle uma +offerta a alguma pessoa querida.</p> + +<p>Desde aquelle momento Fernando del Villar, conde de Loreto, era para ella um +homem que começava a espicaçar-lhe a curiosidade.</p> + +<p>—Ah! disse D. Ventura. Tem em Paris a egua que vae correr?<span +class="pn">{59}</span></p> + +<p>—Tenho em Madrid os meus cavallos, mas mandei vir para Paris a minha +invencivel <i>Rabeca</i>. Creio que assistirão ás corridas.</p> + +<p>—Teremos muito gôsto desde que se effectuem dentro d'um mez, e ao +mesmo tempo uma grande alegria em que seja vencedor.</p> + +<p>Quando se começa uma viagem, durante os primeiros momentos, mais ou menos +prolongados, segundo o caracter dos viajantes, só reina o maior silencio; cada +um pensa quem será o companheiro da frente ou lado, mas uma vez entabolada a +conversa estabelece-se uma certa intimidade agradavel que dura toda a viagem e +ás vezes toda a vida.</p> + +<p>Durante a viagem dos nossos conhecidos, reinou a maior harmonia. Amparo e o +conde falavam de musica; o mordomo e D. Ventura, de numeros. O honrado +millionario estava satisfeito por ter encontrado tão bons companheiros.</p> + +<p>Uma vez em Paris, como D. Ventura era um homem rico que viajava por prazer e +não tinha casa na moderna Babylonia, deixou ao conde de Loreto a escolha do +hotel onde deviam hospedar-se.</p> + +<p>Fernando optou pelo Hotel do Louvre, e installaram-se em dois quartos +contiguos no segundo andar com toda a commodidade que offerece aos passageiros +o citado estabelecimento.</p> + +<p>O conde quiz que se collocasse um orgão no quarto de Amparo, offerecendo-se +para lhe dar algumas lições.</p> + +<p>—Sou muito pouco habilidosa, disse Amparo, agradecendo-lhe com um +olhar aquella deferencia.</p> + +<p>—Ora, respondeu o conde. Para uma mestra de piano como Vossa +Excellencia nada mais facil que aprender orgão. Creia que em quinze dias póde +tocar perfeitamente.</p> + +<p>—O que me vae custar uns oito ou dez mil <i>reales</i>, disse D. +Ventura, porque terei de comprar um.</p> + +<p>—E nunca em melhor occasião do que agora que estamos em Paris, onde os +constructores mais afamados têem os seus armazens. Ámanhã visitaremos<span +class="pn">{60}</span> alguns, com tres mil francos na carteira.</p> + +<p>—Vejo, que tanto o senhor conde como Amparo, conspiram contra a minha +bolsa.</p> + +<p>No dia seguinte compraram um orgão, precioso instrumento de doze registos, +incrustado em madreperola; uma verdadeira obra de arte que custou a D. Ventura +seis mil francos, e que foi escolhido pelo conde, e o ex-commerciante não quiz +deixar mal o joven aristocrata.</p> + +<p>Pagou D. Ventura, encarregando o fabricante de lh'o remetter para Hespanha, +e não se tornou mais a falar no assumpto.</p> + +<p>Todas as tardes Fernando dava lição de orgão a Amparo. Ao principio estas +lições foram curtas, depois prolongaram-se a duas horas.</p> + +<p>Quando cantava a Patti iam juntos ao theatro; sómente o conde ia para as +cadeiras e D. Ventura para um camarote, mas durante os intervallos o conde +visitava o millionario.</p> + +<p>Assim se passaram vinte dias. Amparo começava a pensar muito no conde e +pouco em Ernesto.</p> + +<p>Quando a mulher faz comparações, a derrota de um dos comparados é +infallivel. Vejamos como o conde de Loreto cahiu a fundo sobre o pintor.</p> + +<p>Tudo estava preparado para as corridas.</p> + +<p>A Imperatriz Eugenia, com toda a sua côrte, devia assistir.</p> + +<p>D. Ventura tinha conseguido a peso d'ouro, alugar uma luxuosa caleche. +Amparo mandára fazer uma elegantissima <i>toilette</i>. A festa promettia ser +das mais brilhantes. Toda a aristocracia de sangue e de dinheiro se reunia +n'aquellas corridas. Amparo desejava vivamente que Fernando ganhasse o premio. +D. Ventura, pela sua parte, dizia:</p> + +<p>—É uma questão de honra nacional.</p> + +<p>Ao meio dia appareceu Fernando: estava pallido, nervoso; no rosto tinha +marcados signaes de desgosto.</p> + +<p>—Succedeu uma grande desgraça, exclamou.</p> + +<p>—Morreu <i>Rabeca</i>? perguntou D. Ventura.<span +class="pn">{61}</span></p> + +<p>—Não, respondeu, esforçando-se por se rir.</p> + +<p>—Mas o que é? disse Amparo.</p> + +<p>—O meu jockey que está doente e que não póde correr.</p> + +<p>—É verdade que é um contratempo. Mas não se encontrará outro?</p> + +<p>—Outro? exclamou o conde assombrado. E quem me responde pela sua +habilidade, pelos seus dotes, pela boa fé de um jockey alugado? Todos os leões +de Paris, todos os afficionados de equitação, que não são poucos, que +frequentam á noite a <i>Maison Dorée</i> e á tarde o <i>boulevard dos +Italianos</i> conhecem <i>Rabeca</i> e têem grande interesse em que fique +vencida; e seriam capazes de comprar o jockey que n'ella corrresse, para que a +sopeasse e perdesse. Demais isso é sériamente grave para mim. Se não corre a +minha <i>Rabeca</i> perco cinco ou seis mil francos que apostei a noite passada +com um <i>lord</i> que traz tambem um dos seus cavallos para a corrida de hoje. +A aposta está feita com as seguintes condições: «Se por qualquer casualidade um +dos cavallos não puder correr dá-se por perdida a aposta.» É preciso portanto +que <i>Rabeca</i> corra, e por isso venho dizer-lhes que não os posso +acompanhar, pois que sou eu quem a vae correr.</p> + +<p>—O senhor? disseram ao mesmo tempo pae e filha.</p> + +<p>—Sim, eu. Sei que é uma desvantagem para mim. O jockey do meu +adversario pesa escassamente tres arrobas: é um liliputiano, um homem em +miniatura, é o rei dos jockeys, emquanto eu péso muito mais. Mas não quer dizer +nada: a minha egua fará um esforço e vencerá.</p> + +<p>—Permitta-me que lhe diga, disse D. Ventura, que se expõe...</p> + +<p>—Isso é o menos. Quando chegar á terceira volta, saltarei já +affoitamente. Tenho confiança na egua.</p> + +<p>E o conde, depois de algumas respostas dadas aos argumentos que lhe +apresentavam os seus amigos, sahiu, despedindo-se d'elles.</p> + +<p>Como se póde calcular o interesse de Amparo cresceu uns setenta e cinco por +cento.<span class="pn">{62}</span></p> + + + +<h4><a name="SECTION00010000">CAPITULO X</a></h4> + +<h2>A rosa de brilhantes</h2> + +<p>Uma hora depois, a caleche de D. Ventura estava parada quasi ao fim da +pista.</p> + +<p>D'aquelle ponto tinha a vantagem de vêr perfeitamente o cavallo que chegasse +em primeiro logar á meta e estar proximo do camarote imperial onde o vencedor +devia ir receber o premio.</p> + +<p>Amparo, de pé sobre as almofadas da carruagem, com a mão esquerda appoiada +no hombro do pae, percorria com o binoculo o pittoresco panorama que a +rodeava.</p> + +<p>Parecia-lhe impossivel que se pudesse reunir tanto luxo, tanta riqueza n'uma +cidade.</p> + +<p>Dizem os francezes que Paris é a capital do mundo civilizado, e em verdade +assim é.</p> + +<p>Quando a imperatriz Eugenia entrou no camarote, fez um signal com o lenço +para que começassem as corridas, e ouviu-se então o sonoro som dos clarins.</p> + +<p>Amparo sentia palpitar o coração com violencia; deixou de olhar para o +camarote e viu na pista, no ponto por onde deviam entrar os concorrentes, o +conde de Loreto.</p> + +<p>N'aquelle momento daria tudo quanto lhe exigissem para conceder a victoria +ao seu companheiro de viagem.</p> + +<p>Pouco depois, ouviu-se o tropel que vinha do lado para onde se fixaram todos +os olhares, e o precipitado e forte galope de muitos cavallos chegou aos +ouvidos de Amparo como surdo rumor da tempestade que avança com rapidez.<span +class="pn">{63}</span></p> + +<p>Começaram por admirar os cavallos; de todos os lados se ouviam bravos e +gritos de enthusiasmo, misturados com exclamações de raiva.</p> + +<p>Quando um cavallo passava adeante de outro, ouvia-se um rugido de raiva que +exhalava o peito do vencido.</p> + +<p>Entretanto aquella quantidade de cavallos, deitando espuma pela bôcca, fogo +pelas narinas, avançava com uma velocidade vertiginosa até ao sitio onde estava +Amparo.</p> + +<p>Aquillo era um furacão de carne, empenhado pelo amor-proprio; parecia que +arrebatava tudo.</p> + +<p>Amparo tremia; estremecia, mau grado seu, procurando avidamente o conde de +Loreto entre aquelles bonets de variadas côres.</p> + +<p>Subitamente soltou um grito e fez com que D. Ventura, que contemplava +boquiaberto aquelle soberbo espectaculo, voltasse a cabeça.</p> + +<p>—Que é? perguntou elle.</p> + +<p>—Alli, alli! exclamou Amparo. Vem á frente e traz n'uma mão o bonet e +na outra o <i>stick</i>.</p> + +<p>—Oh! meu Deus! Que loucura! Póde cahir.</p> + +<p>N'aquelle momento o conde de Loreto passou pela frente da caleche de Amparo +com velocidade de um raio. Mas apesar d'isso, cumprimentou-a com o bonet.</p> + +<p>Amparo levou a mão ao peito como para conter as palpitações do coração.</p> + +<p>Fernando levava pelo menos quarenta metros de avanço a todos os outros +concorrentes.</p> + +<p>Quando chegou á ultima valla, <i>Rabeca</i> saltou com tanta facilidade como +se aquelle fosse o primeiro obstaculo. Um applauso geral resoou dedicado ao +cavalleiro e cavallo.</p> + +<p>O conde de Loreto ganhára a rosa de brilhantes e os cincoenta mil francos, e +não tardou que não estivesse rodeado de admiradores e curiosos.</p> + +<p>Fernando del Villar apertava a mão de alguns desconhecidos e cumprimentava +os espectadores.</p> + +<p>O <i>lord</i> approximou-se montando um soberbo cavallo de pura raça +arabe.<span class="pn">{64}</span></p> + +<p>—Ganhou, senhor conde, disse apertando-lhe a mão. Esta noite espero-o +para cear na <i>Maison Dorée</i>, não só para lhe pagar o que lhe devo, como +tambem para lhe propôr um negocio, ácêrca da sua preciosa egua.</p> + +<p>N'essa occasião approximou-se um dignitario da côrte a dizer-lhe que a +imperatriz Eugenia esperava o vencedor.</p> + +<p>O conde não esperou segundo convite: dirigiu a egua para o camarote real. +Grande quantidade de cavalleiros o acompanharam.</p> + +<p>Ao chegar, Fernando desmontou-se e foi introduzido no camarote pelo +fidalgo.</p> + +<p>—Disseram-me que era hespanhol, disse Eugenia em castelhano.</p> + +<p>—Nasci na Andaluzia, senhora, respondeu o conde inclinando-se +respeitosamente.</p> + +<p>—Ainda bem, somos compatriotas. Aqui tem o premio que ganhou.</p> + +<p>A imperatriz entregou-lhe um estojo de velludo. O conde ajoelhou-se para o +receber, beijou a mão e sahiu do camarote.</p> + +<p>Amparo não perdera o conde de vista nem um só momento. Quando viu que se +dirigia para a sua carruagem, sentiu uma commoção desconhecida, como nunca +tinha experimentado.</p> + +<p>Fernando foi até ella, sorrindo-se.</p> + +<p>—Bravo! bravo! exclamou D. Ventura, enthusiasmadissimo. Fazia o senhor +muito bem, caro conde, em ter toda a confiança na valente <i>Rabeca</i>.</p> + +<p>—É invencivel, disse elle. Tinha inteira segurança, de que, a não me +succeder uma desgraça, o triumpho era meu.</p> + +<p>E extendendo o braço, apresentou o estojo a Amparo, dizendo-lhe:</p> + +<p>—Senhora D. Amparo, como sei que pedia a Deus para que me concedesse a +victoria, como sei o interesse que tomou, ouso pedir-lhe que acceite como uma +recordação d'este dia o premio que me acaba de offerecer a imperatriz dos +francezes.<span class="pn">{65}</span></p> + +<p>Amparo pegou com mão trémula no estojo, e antes de ter tempo para responder +uma só palavra de agradecimento por aquella amabilidade, o conde partiu a +galope em direcção a Paris.</p> + +<p>D. Ventura estava louco de alegria.</p> + +<p>Amparo commovida, pallida, seguiu o conde com a vista.</p> + +<p>—É um cavalheiro, disse o commerciante.</p> + +<p>—Sim, papá; não se póde ser mais delicado.</p> + +<p>—Mas, vamos vêr isso que tens na mão. Parece que não estás em ti.</p> + +<p>E D. Ventura, notando que a filha corava, sorriu-se maliciosamente.</p> + +<p>Amparo abriu o estojo: tinha um broche de brilhantes. Não se podia exigir +mais gosto n'uma joia d'aquella natureza.</p> + +<p>—Em verdade, é um bonito premio, disse D. Ventura, fixando os olhos no +broche.</p> + +<p>Amparo guardou silencio.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>Sigamos o conde de Loreto, que, entregando a egua ao creado, tomou um trem +de praça que o conduziu ao hotel do Louvre.</p> + +<p>—Pódes dar-me os parabens, meu leal Francisco, disse o conde, +abraçando o velho mordomo.</p> + +<p>—Quer dizer que ganhou o primeiro premio!</p> + +<p>—Não só o primeiro premio como tambem a aposta que tinha feito com +lord Rutheney.</p> + +<p>—Que grande alegria me dá, senhor conde, disse Francisco sem perder um +só momento a sua peculiar gravidade. Temos gasto tanto dinheiro durante a +viagem!</p> + +<p>—Ahi vens tu com os teus malditos numeros.</p> + +<p>—Senhor, o interesse que tomo pela casa faz com que muitas vezes tenha +certas liberdades...</p> + +<p>—Vamos, Francisco, não comeces a attribuir a ti faltas que não +commetteste. Quando o meu pae morreu disse-me: «Nunca deixes Francisco; viu-te +nascer, estima-te com idolatria e é honrado e leal.»<span +class="pn">{66}</span> Desde então ainda não tive de que pense que não é tão +grande como devia ser, em relação ao que gasto; mas que queres... quando +estiver arruinado, quando me vir como vulgarmente se diz com a corda na +garganta, então seguirei o teu conselho e casarei. E a proposito: Que tal te +parece a filha do nosso companheiro de viagem?</p> + +<p>—É extremamente formosa!</p> + +<p>—E nada mais? perguntou o conde, sorrindo-se.</p> + +<p>—E que tem doze milhões de dote.</p> + +<p>—O que te traz preoccupado. Emfim, até lá veremos. Quem sabe se terás +razão, aconselhando-me a que case! Mas, dá-me algum dinheiro; vou cear com +alguns amigos á <i>Maison Dorée</i> e talvez se jogue.</p> + +<p>—Hontem dei ao senhor conde tres mil francos.</p> + +<p>—Sim, e hoje não tenho nem um centimo,</p> + +<p>Francisco exhalou um suspiro, abriu a gaveta e deu tres notas de mil francos +ao amo, dizendo:</p> + +<p>—O tal inglez não pagará esta noite?</p> + +<p>—É natural; mas não devo acceitar um convite com sentido no que me +devem.</p> + +<p>Fernando calçou as luvas, pôz o chapéu, pegou n'uma delicada bengala de +canna da India, e sahiu.</p> + +<p>A <i>Maison Dorée</i> é um dos taes estabelecimentos que só se encontram em +Paris. Ponto de reunião da elegante e louca mocidade, centro d'esses seres +felizes, sempre occupados em não fazer nada; come-se, joga-se e murmura-se, +gastando dinheiro ás mãos cheias.</p> + +<p>Ahi tudo se sabe, tudo se commenta; e mais de uma vez têem ficado a honra +das mulheres da moda, de mistura com o <i>Champagne</i> e o <i>Rheno</i> sobre +aquellas elegantes mesas.</p> + +<p>O conde de Loreto estava convidado para jantar com o lord que fizera a +aposta, que o esperava com pontualidade britannica.</p> + +<p>Depois de cumprimentar, lord Rutheney tirou a carteira e entregou friamente +os cincoenta mil francos que perdera.</p> + +<p>—Senhor conde, antes que comecemos a jantar, e<span +class="pn">{67}</span> segundo o costume inglez, de não fazer nada depois de +nos levantarmos da mesa, vou propôr-lhe um negocio. Quer vender-me +<i>Rabeca</i>? Dou-lhe por ella egual quantia á que me fez perder.</p> + +<p>—Mylord, desejo conservál-a.</p> + +<p>—Então não falemos mais no assumpto.</p> + +<p>E pediu que lhes servissem o jantar.</p> + +<p>Durante este, lord Rutheney fez elogios á egua do conde.</p> + +<p>—É um precioso animal, dizia. Se me pertencesse, nas proximas corridas +annunciadas em Londres, jogaria duas ou tres mil libras esterlinas com certeza +de ganhar. Pena será se soffrer algum desastre.</p> + +<p>Depois de jantar lord Rutheney e o conde de Loreto entraram no café.</p> + +<p>Depois passaram á sala do jogo e o conde sentou-se proximo ao banqueiro.</p> + +<p>Fernando jogava forte, mas com pouca sorte.</p> + +<p>Meia hora foi sufficiente para perder quanto trazia comsigo.</p> + +<p>Então voltou-se para o inglez que estava a seu lado ganhando mais de mil +francos e disse-lhe sorrindo-se:</p> + +<p>—Mylord, fica fechado o negocio: <i>Rabeca</i> é sua.</p> + +<p>Lord Rutheney inclinou a cabeça em signal de approvação, e entregou ao conde +cincoenta notas de mil francos.</p> + +<p>Depois, tirou tranquillamente a charuteira e d'ella um havano e dirigiu-se +pachorrentamente para a sala de fumo.</p> + +<p>Sentou-se n'um commodo divan, e começou a saborear o delicioso charuto.</p> + +<p>Proximo do sitio em que se achava o conde, fumavam quatro rapazes, +conversando em voz alta.</p> + +<p>Nenhum d'elles reparára, em Fernando.</p> + +<p>—Desengana-te, Heitor, dizia um d'elles, o teu cavallo está muito +longe de ser o que é a egua do hespanhol, e o arabe de lord Rutheney.</p> + +<p>—Pois apezar da tua opinião, respondeu com voz alterada Heitor, +garanto-te que se o meu jockey não tivesse sido um parvo, ganhava o primeiro +premio.<span class="pn">{68}</span></p> + +<p>—A ti succede o mesmo que a Marco Antonio quando os seus gallos iam +combater com os de Octavio Augusto, que perdia e para consolação á sua pouca +sorte arranjava sempre uma desculpa. O cavallo de lord Rutheney levava ao teu +mais de vinte metros de avanço. Emquanto ao do hespanhol não se fala, esse não +era um animal, era um raio: nem mesmo o vento corria mais do que elle.</p> + +<p>—Os hespanhoes, respondeu Heitor, em tom desdenhoso, têem nas veias um +sangue mixto de godo e arabe, e não é para estranhar que saibam dar vantagens +aos cavallos nas corridas. O conde de Loreto parecia um cigano correndo +d'aquella maneira.</p> + +<p>Fernando ao ouvir estas palavras, pôz-se de pé e pallido, com o olhar turvo +e ameaçador, dirigiu-se para o grupo que falava de si e encarando o que acabava +de falar, disse-lhe:</p> + +<p>—O conde de Loreto sabe correr como um cigano e bater-se como um +cavalheiro.</p> + +<p>E dizendo isto, atirou uma luva ao rosto de Heitor, que se lançou sobre o +seu antagonista.</p> + +<p>Fernando extendeu o braço e deteve-o com incrivel facilidade.</p> + +<p>Todos o rodearam.</p> + +<p>Da parte do conde foi um creado chamar lord Rutheney.</p> + +<p>—Que foi? perguntou elle.</p> + +<p>—Quer ser meu padrinho?</p> + +<p>—Como? Tem alguma pendencia?</p> + +<p>—Sim, senhor. Este cavalheiro acaba de me insultar e tenho de me +bater.</p> + +<p>—Tem a escolha das armas.</p> + +<p>—Cedo-a ao meu adversario: espero-o no café.</p> + +<p>Pouco depois lord Rutheney reunia-se ao conde de Loreto.</p> + +<p>—Já está tudo combinado, disse o inglez. Batem-se ao florete, ámanhã, +ás oito horas da manhã, no bosque de Bolonha.</p> + +<p>—Perfeitamente. Espero-o ás seis no hotel do Louvre.<span +class="pn">{69}</span></p> + +<p>—É sufficientemente forte ao florete para se pôr na frente de um +adversario que o escolhe para se bater?</p> + +<p>—Manejo-o regularmente, e tenho pouco amor á vida; com estes dois +requisitos não me devo arrecear d'um lance. Mas se me permitte, retiro-me. São +dez horas: esta noite canta a Patti, e desejo ouvil-a, porque ámanhã mata-me o +meu adversario.</p> + +<p>Lord Rutheney conduziu-o na sua carruagem á Opera.</p> + +<p>Quem visse Fernando na sua cadeira applaudindo com enthusiasmo a celebre +Patti, não supporia que elle se ia bater no dia seguinte.</p> + +<p>Á meia noite entrou no seu quarto do hotel do Louvre, sentou-se, accendeu um +charuto, e dirigindo um olhar tranquillo a Francisco, disse-lhe:</p> + +<p>—Ámanhã bato-me ás oito horas da manhã.</p> + +<p>O mordomo recuou dois passos, e exclamou assombrado:</p> + +<p>—Outra vez?!</p> + +<p>—Sim, é a quinta. Quem sabe se será a ultima? Não é vontade minha; +quando menos se pensa, um insolente ou um enfatuado atravessa-se-nos no +caminho, insulta-nos, e a honra exige que nos batamos. Cinco vezes me tem +succedido isso. Prepara, pois, os meus floretes, e deita-te. Ah! Esquecia-me. +Ámanhã cedo, mandarás por um creado <i>Rabeca</i> a lord Rutheney; vendi-lh'a; +e, verdade verdade, que isso me desgosta mais do que o duello.</p> + +<p>Francisco fez um gesto como se fosse para falar.</p> + +<p>—Não te inquietes, não te inquietes com reflexões inuteis; o duello é +inevitavel. Quero dormir para estar fresco. Bôa noite. Acorda-me ás cinco e +tres quartos.</p> + +<p>E o conde principiou a deitar-se.</p> + +<p>Francisco sahiu triste e preoccupado.</p> + +<p>Alguns minutos depois o conde de Loreto dormia profundamente.</p> + +<p>O honrado mordomo não se deitou: ser-lhe-ia impossivel dormir, e preferiu +estar levantado.<span class="pn">{70}</span></p> + +<p>Ás cinco horas e meia entrou no quarto do amo.</p> + +<p>O velho esteve-o contemplando por alguns momentos. Notava-se-lhe na triste +expressão do rosto o estado do seu espirito. Receava pela vida do amo.</p> + +<p>Por fim disse em voz alta:</p> + +<p>—Senhor, são horas.</p> + +<p>O conde abriu os olhos, bocejou, e, fixando um olhar somnolento no mordomo, +disse:</p> + +<p>—Nunca perdoarei ao meu adversario este delicioso sonho que me rouba. +Que mau costume baterem-se de manhã!</p> + +<p>Fernando vestiu-se com esmero, como se fosse fazer uma visita de cerimonia, +com a differença de que em vez do frack ridiculo e incommodativo, vestiu uma +sobrecasaca preta.</p> + +<p>—Querido Francisco, disse o conde, dando o ultimo toque na gravata em +frente ao espelho, se o meu adversario me matar, o que é provavel, mas não +impossivel, tu te arranjarás como puderes, com os meus crédores; e visto o +remanescente da minha fortuna ser para a avarenta da minha tia, a marqueza del +Ramo, aconselho-te que fiques com tudo quando te seja possivel, porque não é +justo que ao cabo de tantos annos de bons serviços, tenhas que procurar um novo +amo, que indubitavelmente te não trataria como mereces. Agora faze o favor de +dizer ao creado que me sirva o chá. Mylord não se póde demorar; são já seis +horas, e é pontual até ao exaggero.</p> + +<p>Effectivamente lord Rutheney, acompanhado de outro amigo, entrou no +quarto.</p> + +<p>—Creio, senhores, que temos tempo de tomar uma chavena de chá, disse o +conde.</p> + +<p>Rutheney olhou para o relogio.</p> + +<p>—Os meus cavallos conduzir-nos-hão em menos de uma hora: temos tempo, +isto é, podemos dispor de sessenta minutos.</p> + +<p>—Creio que este cavalheiro, ajuntou o conde, indicando o companheiro +do lord, será o meu segundo padrinho.</p> + +<p>—É <i>mister</i> Carlos Bobbe, meu medico e meu<span +class="pn">{71}</span> amigo; servirá, pois, de medico e de testemunha.</p> + +<p>—Tanto melhor. Mas vamos ao chá.</p> + +<p>O creado entrou trazendo uma bandeja com chavenas e pratos, que deixou sobre +uma meza.</p> + +<p><i>Mister</i> Bobbe bebeu cinco chavenas de chá; lord Rutheney tres e o +conde uma.</p> + +<p>—Quando quizerem, meus senhores, disse Fernando, vendo que os +padrinhos collocavam as chavenas na bandeja, como prova de que não queriam +beber mais.</p> + +<p>Fernando abraçou o mordomo, cujo rosto circumspecto e os olhos arroxeados o +fizeram sorrir.</p> + +<p>—Não receies, lhe disse; sahir-me-hei bem como das outras vezes. E +partiu.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00011000">CAPITULO XI</a></h4> + +<h2>Mais um</h2> + +<p>Quando Francisco ficou só, não poude conter as lagrimas; deixou-se cahir +n'uma cadeira e chorou.</p> + +<p>A dôr do mordomo era tão profunda, tão verdadeira que ao entrar o creado +para o serviço, nem sequer deu pela sua presença.</p> + +<p>O creado que servia seis quartos do corredor do segundo andar era um rapaz +tão diligente como desembaraçado, e ao vêr o profundo pesar do velho creado do +conde e que este sahira tão cedo, acompanhado de dois amigos, suspeitou tudo, +mas em vez de dirigir a palavra a Francisco, julgou que era mais conveniente +confiar as suas supposições ao hespanhol que occupava o quarto n.º 14, intimo +do conde de Loreto. Assim, dirigiu-se para o quarto de D. Ventura e +chamou-o.</p> + +<p>D. Ventura ainda não perdera o costume de madrugar;<span +class="pn">{72}</span> estava levantado e disposto a barbear-se. Abriu a porta, +julgando que fosse o conde a propor-lhe algum passeio para aquelle dia, e +encontrou-se com o creado e o seu eterno sorriso.</p> + +<p>—Que ha? perguntou D. Ventura.</p> + +<p>O creado falava, ainda que mal, o hespanhol, mas o sufficiente para se fazer +comprehender pelos hospedes.</p> + +<p>—Cavalheiro, disse elle, sei que sou um tanto indiscreto e importuno +batendo tão cedo á porta de um hospede...</p> + +<p>—Bem, bem. Que é? perguntou D. Ventura.</p> + +<p>—Mas sei tambem, continuou o creado, que o senhor é o amigo intimo do +senhor conde de Loreto.</p> + +<p>—Sim, homem, sim, acaba.</p> + +<p>—Pois bem, o senhor conde deve correr algum perigo, porque o vi sahir +acompanhado de dois inglezes; e o mordomo do conde assim que elle sahiu, pôz-se +a chorar amargamente. Não quero equivocar-me, mas julgo que o senhor conde vae +bater-se.</p> + +<p>—Diabo! Bater-se? Isso é grave!</p> + +<p>—É muito, cavalheiro.</p> + +<p>—Mas não sabes porquê?</p> + +<p>—Só vi metter no trem os floretes.</p> + +<p>D. Ventura sahiu precipitadamente do quarto, e entrou no do conde.</p> + +<p>Francisco continuava prostrado na cadeira e com o rosto occulto entre as +mãos.</p> + +<p>—Que novidades temos? perguntou em voz alta D. Ventura.</p> + +<p>O mordomo levantou a cabeça. Aquelle rosto veneravel estava decomposto pelas +lagrimas e pela dôr: tinha uma expressão de profunda tristeza.</p> + +<p>—É certo o que me acabam de dizer? É certo que Fernando foi +bater-se?</p> + +<p>—Desgraçadamente é certo, senhor D. Ventura.</p> + +<p>—Diabo! Não sei para que se expõe a vida assim com tanta facilidade. +Eu tive pelo menos, cincoenta mil questões, e nunca tive necessidade de me +bater com pessoa alguma. Para que temos os tribunaes, se<span +class="pn">{73}</span> fazemos justiça por nossas mãos? E demais, o que deu +origem ao duello, valeria a pena?</p> + +<p>—Não sei detalhes; só me disse que se ia bater; mas ia apostar em como +o meu amo o não provocou, pois que o conde é incapaz de offender alguem. Oh! se +o seu adversario o matasse era uma desgraça.</p> + +<p>—Era, era! Mas tenho esperança em que não será assim. Ora o diabo do +rapaz!...</p> + +<p>E como o mordomo continuasse gemendo e suspirando, D. Ventura pôz-se a +passear pelo quarto.</p> + +<p>Assim se passou meia hora. Nenhum dos dois falava. D. Ventura pensou, por +fim, que seria mais conveniente esperar o resultado no seu quarto do que junto +do mordomo, cuja dôr o affligia duplamente.</p> + +<p>—E a que horas saberemos o resultado? perguntou D. Ventura.</p> + +<p>—Creio que ás nove, pouco mais ou menos.</p> + +<p>—E são só oito! Mas, não se poderia dar parte ás auctoridades para +evitar o duello?</p> + +<p>—Se tal fizessemos, o senhor conde nunca nos perdoaria.</p> + +<p>—Diz bem; não ha outro remedio senão esperar e conformarmo-nos com a +sorte. Ora o diabo do rapaz! Vou vêr se a minha filha já se levantou, e +peço-lhe que tão depressa saiba alguma cousa me avise.</p> + +<p>O quarto de Amparo era separado do de seu pae por uma debil parede +communicando por uma porta.</p> + +<p>Amparo ouvira entre sonhos parte do que o creado dissera a D. Ventura.</p> + +<p>Quando este entrou já estava levantada.</p> + +<p>—Não me occulte nada, disse, quero saber tudo quanto se passa.</p> + +<p>—Pois, filha, o que se passa é pouco agradavel. Fernando a esta hora +bate-se em duello.</p> + +<p>Amparo empallideceu e como se lhe faltassem as forças, sentou-se n'uma +cadeira.</p> + +<p>—Que é isso? Estás doente? Era só o que faltava.</p> + +<p>—Não se assuste; não tenho nada.</p> + +<p>—Nada! nada! Não me capacitas de que é sem<span class="pn">{74}</span> +motivos que perdes as côres, commoveste-te, e isso é natural, muito natural, +sim, senhora; porque demais, o conde é um joven que se faz estimar; e se +tivessemos a desgraça de o perder, se o seu inimigo o matasse...</p> + +<p>—Cale-se, papá, cale-se! exclamou Amparo estremecendo. Não diga isso +nem a brincar.</p> + +<p>—Sim, bôa brincadeira, não haja duvida! Ora o diabo do rapaz!</p> + +<p>D. Ventura, depois de barbeado, assomava á porta a cada momento.</p> + +<p>Nunca o tempo lhe parecera tão comprido.</p> + +<p>Quando o relogio do quarto deu as nove horas, disse:</p> + +<p>—Já se não póde demorar.</p> + +<p>Como se estas palavras fossem como um amuleto magico, ouviram-se os passos +de varias pessoas no corredor.</p> + +<p>D. Ventura chegou á porta e não poude conter um grito.</p> + +<p>—É elle? perguntou Amparo.</p> + +<p>—É.</p> + +<p>—E como vem? perguntou a medo.</p> + +<p>—Perfeitamente, andando pelo seu pé. Ah! Louvado seja Deus!</p> + +<p>E dizendo isto, sahiu precipitadamente do quarto, entrando no do conde.</p> + +<p>—Venha um abraço, venha um abraço, exclamou.</p> + +<p>O conde deixou-se abraçar.</p> + +<p>—Com que então, foi feliz? perguntou D. Ventura com infantil alegria. +Muito folgo, muito folgo.</p> + +<p>Fernando dirigiu um olhar de censura ao mordomo, e deixando assomar aos +labios um amargo sorriso, disse:</p> + +<p>—Sabe então que me bati. Pois, visto isso, só me resta dizer-lhe que o +lance foi desgraçado; teve graves consequencias.</p> + +<p>—Como? Está ferido? exclamou D. Ventura.</p> + +<p>—Não, infelizmente.<span class="pn">{75}</span></p> + +<p>—Não o comprehendo.</p> + +<p>—Senhor D. Ventura, quando por uma d'essas nescias exigencias de +decoro se batem dois homens e um d'elles morre no que chamamos campo da honra, +o que sobrevive, o que torna para casa vencedor, traz uma espinha cravada na +alma que permanece ahi toda a vida. Indubitavelmente alguma maldição está +suspensa sobre a minha cabeça. Tenho má mão para desafios.</p> + +<p>E o conde deixou-se cair n'uma cadeira, dando mostras do mais profundo +abatimento.</p> + +<p>—Conheço, senhor conde, que se deve ter um remorso muito grande em +matar um homem, disse D. Ventura, mas, que remedio? Quando se tem em frente um +inimigo armado que cubiça a nossa vida temos o dever de disputál-a.</p> + +<p>Lord Rutheney pronunciou algumas palavras para tranquillisar o conde que +parecia vivamente incommodado.</p> + +<p>—Agradeço o interesse que lhes inspirei, disse Fernando; mas ao mesmo +tempo, desejava que fizessem o favor de me deixarem só, pois estou fatigado e +preciso descançar.</p> + +<p>Era evidente que uma grande fadiga do espirito se apoderára do conde e os +seus amigos retiraram-se.</p> + +<p>D. Ventura entrou no quarto da filha a quem contou tudo quanto se passára, +que com esse natural egoismo da mulher se alegrou profundamente ao saber que o +conde se tinha sahido bem do lance de honra, visto ella não conhecer o infeliz +Heitor morto no desafio, e unirem-na a Fernando relações de amizade que iam +tomando o caracter de uma paixão verdadeira.</p> + +<p>Entretanto, o conde de Loreto fechava-se no quarto, permanecendo o resto do +dia sentado n'uma cadeira. Nem elle mesmo poderia dizer se o somno se +assenhoreou d'elle algum momento.</p> + +<p>Quando a obscuridade da noite se espalhou por todo o quarto, levantou a +cabeça e disse:</p> + +<p>—É uma desgraça que já não tem remedio; tenho<span +class="pn">{76}</span> uma mão fatal. Esta é a quinta vez que causo a morte ao +proximo e uma profunda dôr a um pae.</p> + +<p>E passando a mão pela fronte, como se quizesse livrar-se dos tristes +pensamentos que o preoccupavam, levantou-se e tocou a campainha.</p> + +<p>Francisco, o mordomo, tão pallido, tão commovido como o amo, entrou com uma +luz na mão.</p> + +<p>—Bôas noites, senhor conde, disse deixando a vella sobre uma mesa.</p> + +<p>—Bôas noites, Francisco. Já sabes; matei um homem.</p> + +<p>—E todavia o senhor tinha-me dito que não mais se bateria ainda que o +insultassem.</p> + +<p>—É verdade; jurei não me bater, mas para que ninguem duvidasse de que +sei defender o meu decoro, não me pude conter, e agora arrependo-me. Ah! se +fosse em Hespanha não me tinha batido.</p> + +<p>—O remedio que ha, disse Francisco, é esquecer o passado.</p> + +<p>—Isso é mais difficil do que parece. Na memoria, como n'uma chapa +d'aço, grava o buril do tempo todos os acontecimentos da vida. Só a morte tem o +privilegio de os apagar. Mas tu disseste: já não tem remedio. Prepara tudo, que +ámanhã sahiremos de Paris. Necessito, pelo menos, afastar-me d'esta terra.</p> + +<p>—E para onde vamos, senhor?</p> + +<p>—Para Hespanha.</p> + +<p>—Está bem.</p> + +<p>Fernando del Villar exhalou um suspiro e sahiu do quarto dirigindo-se ao de +Amparo.<span class="pn">{77}</span></p> + + + +<h4><a name="SECTION00012000">CAPITULO XII</a></h4> + +<h2>Como se pede</h2> + +<p>O piano é um grande recurso para aquelles que possuem e sentem na alma as +doces e gratas impressões da musica, essa linguagem universal a que renderam +tributo até os proprios deuses.</p> + +<p>Amparo estava tocando. Tinha na estante a partitura da <i>Estrangeira</i>, +mas os dedos percorriam machinalmente o teclado, e os olhos fixavam-se +distrahidamente nas notas.</p> + +<p>A musica para ella n'aquelle momento não era mais do que um grato ruido, +adormecedor, como o sussurro cadencioso de uma fonte que convida á +meditação.</p> + +<p>Não pensava quasi nada no piano, muito pouco na partitura que tinha ante si, +mas muito no conde de Loreto.</p> + +<p>De Florença a Paris, isto é, trinta e seis horas de comboio, foram +sufficientes para a formosa hespanhola se enamorar.</p> + +<p>Antes d'esta viagem a casualidade collocára, ainda que momentaneamente, no +palacio de Médicis, Fernando e Amparo; depois em Paris as corridas de cavallos +e o duello reforçaram a ideia fixa que começava a dominál-a.</p> + +<p>N'este momento Amparo estava só. D. Ventura sahira, depois de lhe contar +tudo quanto sabia referente ao desafio do conde.</p> + +<p>Tocava, pois, piano, pensando no seu companheiro de viagem, quando ouviu +passos atraz de si; voltou a cabeça, e encontrou-se com Fernando que lhe +dirigiu um cumprimento respeitoso e um sorriso cheio de tristeza.<span +class="pn">{78}</span></p> + +<p>—Bôas noites, senhora D. Amparo. Talvez a venha incommodar, disse o +conde.</p> + +<p>—Incommodar-me? respondeu ella, parando de tocar. Pelo contrario. Bem +vê que estou só... Meu pae é um valdevinos; abandona-me e então o piano é o meu +recurso. Mas que tem? Está mais pallido que de costume, e noto-lhe uma +expressão de tristeza na physionomia.</p> + +<p>—Suppunha que não ignorava a desgraça que me succedeu hoje, e venho +despedir-me.</p> + +<p>—Como? abandona Paris?</p> + +<p>—Ámanhã.</p> + +<p>—Tão depressa.</p> + +<p>—Pensava passar aqui alguns mezes, mas agora é-me impossivel; +necessito vêr outro sol, respirar outro ar.</p> + +<p>—E para onde vae?</p> + +<p>—Para Hespanha.</p> + +<p>—Então, sr. conde, não tardará muito que nos vejamos lá, porque, +apezar de tudo, creio que o céu de Hespanha é o melhor de todos.</p> + +<p>—Diz muito bem, e sobretudo quando no céu de Paris a imaginação +preoccupada vê algumas manchas de sangue que perturbam o socego e roubam a paz +de espirito.</p> + +<p>—Verdadeiramente, é uma desgraça que as leis da honra imponham aos +homens deveres tão desagradaveis. Meu pae contou-me tudo, e posso garantir-lhe +que tão desgraçado acontecimento me penalizou bastante.</p> + +<p>O conde sentou-se n'uma cadeira proximo do banco de Amparo.</p> + +<p>—Não parece senão que me persegue algum genio fatal, disse elle, como +se falasse comsigo. Quando o destino me colloca ante um homem com a arma +homicida na mão, juro-o pela memoria de meu pae, sempre preferi morrer a matar, +e expuz generosamente o peito ante o perigo, sem me preoccupar em evitál-o. Mas +indubitavelmente uma força superior á minha vontade guia a minha mão, e sempre +vejo<span class="pn">{79}</span> cahir sem vida o meu adversario. Só a primeira +vez que me bati tive desejos de sahir vencedor; era uma creança, e a vaidade e +o amor proprio cegavam-me. Então tive a desgraça de matar um amigo intimo, um +antigo condiscipulo. Pobre Arthur! E sobretudo, pobre mãe aquella, em cujos +olhos não mais se lhe sêccaram as lagrimas, até que a dôr a conduziu ao +sepulchro!</p> + +<p>O conde deteve-se. Bastava vêr-lhe o semblante, ouvir-lhe o timbre da voz +para comprehender o estado do espirito. Amparo escutava-o interessada e sem se +atrever a interrompêl-o.</p> + +<p>O conde, mudando de tom, continuou.</p> + +<p>—Com franqueza, não sou ridiculo? Vim despedir-me de V. Ex.ª, e +estou-lhe contando historias que só a podem commover; mas ha dias em que se +apodera de mim uma tristeza tão grande que não sei falar de outra coisa senão +da minha vida passada, ou o que é o mesmo, dos meus remorsos, porque os sinto, +senhora D. Amparo, e a minha sorte é duplamente desgraçada porque não tenho uma +pessoa, que sendo depositaria das minhas amarguras, me console com os seus +conselhos.</p> + +<p>—Senhor Fernando, exclamou a joven verdadeiramente commovida, receando +que só o desespero fosse o motivo da melancholia do conde; senhor Fernando, se +julga que posso ser essa amiga, apezar da minha pouca experiencia do mundo, não +me occulte nada e honre-me com a sua confiança.</p> + +<p>—Senhora D. Amparo, ajuntou o conde com vehemencia, póde ser para mim +o anjo salvador que me arranque do antro escuro em que me revolvo, +conduzindo-me ao reino da luz e da felicidade; porque eu, qual judeu errante +vagueando pelo mundo, necessito d'uma alma sensivel que me comprehenda, um +coração bondoso que palpite com o meu e que se compadeça de mim. De que serve a +mocidade e a riqueza? Preciso amar e ser amado. O bulicio do mundo não é +sufficiente para distrahir a tenacidade do meu pensamento, a soledade da minha +alma. Para<span class="pn">{80}</span> esquecer o passado necessito que comece +para mim uma vida nova; é indispensavel regenerar o meu coração, porque não +póde calcular a persistencia com que me persegue o infortunio. Um anno depois +do meu desgraçado lance com Arthur a quem matei, estava na Italia, precisamente +em Florença, no palacio de Médicis, defronte do grupo de Niobe onde a vi pela +primeira vez...</p> + +<p>O conde deteve-se, fez um brusco movimento com a cabeça, e exclamou:</p> + +<p>—Só uma creança ou um louco seria capaz de entabolar similhante +conversação; e talvez eu seja uma e outra coisa. Desculpe-me, minha senhora, e +perdôe-me todas as loucuras commettidas esta noite; mas parto ámanhã, talvez +que nos não tornemos a vêr mais, porque, já lhe disse, como o judeu errante +percorro o mundo em busca de uma alma que me comprehenda, que se una á minha e +que me dê parte da sua paz, da sua tranquillidade, da sua seiva. Ao vêl-a, +disse: «É este o anjo que cubiço.» Mas creio-me indigno de merecêl-o; e já que +o segredo do meu coração assomou aos labios, ainda que lh'o quizesse occultar, +a senhora teria já comprehendido que a amo, e só me resta supplicar-lhe que não +me guarde rancor por tanto atrevimento, e que me permitta antes de partir +apertar-lhe a mão como amigo.</p> + +<p>Se Amparo não tivesse verdadeira sympathia pelo conde, se não estivesse +disposta a amal-o, necessariamente ter-lhe-hia parecido tão rara como +incoherente a declaração que o conde lhe acabava de fazer.</p> + +<p>Mas Amparo amava o conde, e não se enganava ao pensar que era amada por +elle. Por isso, aturdida, trémula, com voz commovida e pouco firme, o olhar +fixo no chão, extendeu a mão a Fernando e disse:</p> + +<p>—Pois bem; se o senhor julga que depende de mim a sua felicidade, +confie a meu pae, logo que elle volte, o seu segredo e partamos juntos para +Hespanha.<span class="pn">{81}</span></p> + +<p>O conde soltou um grito, pegou na mão que Amparo lhe offerecia, e cobriu-a +de beijos.</p> +<hr class="dotted"> + +<p>N'aquella noite o conde pediu a D. Ventura a mão da filha.</p> + +<p>O honrado millionario mal poude dissimular a alegria que similhante pedido +lhe causava. Era-lhe tão agradavel ouvir chamar á filha condessa!... Fraqueza +por certo muito natural n'um homem nas condições de D. Ventura.</p> + +<p>Mas, ainda assim, não se precipitou: ouviu com apparente serenidade o +pedido, e concedeu o seu consentimento, depois de ouvida a opinião da filha.</p> + +<p>Quando o conde sahiu, D. Ventura foi ao quarto de Amparo.</p> + +<p>—Venho dar-te uma noticia surprehendente, inesperada, talvez +agradavel.</p> + +<p>—O que é papá?</p> + +<p>—Que o conde parte para Hespanha.</p> + +<p>—Já sabia.</p> + +<p>—Já sabias?! E quem t'o disse?</p> + +<p>—Elle proprio.</p> + +<p>—Mas sabes que quer partir ámanhã, se isso lhe fôr possivel?</p> + +<p>—Sim.</p> + +<p>—E sabes tambem que me pediu a tua mão?</p> + +<p>—Calculava tambem, meu pae, accrescentou Amparo, sorrindo-se.</p> + +<p>—Por conseguinte atraiçoaram-me?</p> + +<p>—O que perdoará, porque é muito generoso.</p> + +<p>—Será possivel que todos os paes sejam malucos?</p> + +<p>—Malucos só no preciso, isto é, d'alma e coração.</p> + +<p>—Sim, sim. Mas, dize-me que lhe hei-de responder.</p> + +<p>—Responda-lhe que sim, é o mais logico.</p> + +<p>—E o casamento.</p> + +<p>—Celebrar-se-ha em Madrid.</p> + +<p>—Claro. Quem se casa em França residindo em Hespanha?</p> + +<p>—Pois então já sabe; quando o conde lhe perguntar<span +class="pn">{82}</span> pela resposta definitiva, diga que sim e é assumpto +concluido.</p> + +<p>—Mas olha, Amparo, agora que já se póde dizer que és a promettida +esposa do conde de Loreto, vou contar-te uma cousa. Em Florença, suppuz que tu +e Ernesto se amavam; mas assim é melhor; enganei-me, com o que muito folgo, +porque, minha filha, n'estes tempos é mais acceitavel para marido um conde +rico, do que um artista pobre. Ernesto pinta muito bem, mas não tem uma +peseta.</p> + +<p>Amparo ao recordar-se de Ernesto commoveu-se; mas a commoção foi passageira, +como a ave que cruza sobre a nossa cabeça para não mais voltar.</p> + +<p>Dois dias depois, um compartimento de primeira classe conduzia a Hespanha +com a velocidade da locomotiva os nossos conhecidos. Era o dia 28 de junho.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00013000">CAPITULO XIII</a></h4> + +<h2>Os tres amigos</h2> + +<p>Dois mezes depois dos ultimos acontecimentos que acabamos de narrar, isto é, +no dia 1 de setembro ás seis horas da manhã, dois rapazes passeavam na gare da +estação do sul, esperando o comboio correio de Alicante.</p> + +<p>—Garanto-te, dizia um d'elles, que Ernesto traz um grande quadro.</p> + +<p>—E eu concedo-lhe o primeiro premio, ainda antes de o vêr.</p> + +<p>—Tem muito talento.</p> + +<p>—Sim, mas segundo pude perceber nas suas ultimas cartas, está +enamorado.</p> + +<p>—O amor abre muitas vezes o caminho.<span class="pn">{83}</span></p> + +<p>—Quando nos não conduz a precipicios horriveis.</p> + +<p>—Isso tudo depende da mulher que o inspira.</p> + +<p>—Dizes bem; ella faz do homem ou um heroe ou um parvo, mas quasi +sempre o segundo caso.</p> + +<p>—Não te concedo voto no assumpto.</p> + +<p>—Como! Collocas-me fóra das leis do sentimento humano?</p> + +<p>—Sim, porque és um exaggerado e odeias o sexo fraco.</p> + +<p>—Tenho motivos para isso. Procurei estudar a mulher e estou convencido +de que para ellas o mais importante é a exterioridade. Uma gravata bem posta, +brilhante e bem feita bota de polimento; n'uma palavra um <i>dandy</i> adamado +e escravo da moda, e que tenha o cabello sempre bem apartado, tem muitas +probabilidades de ser amado; emquanto que um homem de verdadeiro merito, que +cuide mais da sua intelligencia do que do seu traje, fica sempre derrotado em +questões de amor. A historia apresenta-nos milhares de exemplos: todos os +homens que honraram a sua patria não tiveram a quinta parte das aventuras +amorosas de Lovelace, cuja arte se reduzia em fazer olhares ternos e trazer +magnificas fivellas de prata nos sapatos.</p> + +<p>—Ovidio foi amado por uma princeza.</p> + +<p>—Quase esqueceu d'elle ao vêl-o n'uma masmorra.</p> + +<p>—Tasso foi amado por uma fidalga.</p> + +<p>—Que lhe não mandou nem um simples coto de vela quando por sua causa +estava no calabouço escrevendo, <i>Jerusalem libertada</i>. Mas tu só me dás +dois exemplos. Olha, André, Cesar foi o primeiro da sua epocha, a grande figura +de Roma, e comtudo, a sua mulher, Pompeya, preferiu-lhe um imberbe creançola, +Publio Clodio, que se vestia de mulher para pôr ao conquistador do mundo, uma +corôa que não era por certo de louro. Pobre Cesar! Como era calvo, a sua cabeça +estava sempre ameaçada.</p> + +<p>Os que assim matavam o tempo esperando o comboio, era um poeta a quem +conheceremos pelo nome de Marcial e um pintor que se chamava André, ambos<span +class="pn">{81}</span> amigos intimos de Ernesto e a quem este remettêra de +Alicante um telegramma avisando-os da sua chegada.</p> + +<p>Marcial e André viviam juntos n'uma mansarda da rua do Prado, tinham um +creado para ambos e comiam no café Suisso.</p> + +<p>O unico patrimonio de Marcial era a penna; a fortuna de André, os pinceis. +Os dois amigos tinham passado a fatal epocha de bohemios e tanto Marcial com os +seus dramas; como André com os seus quadros, ganhavam o sufficiente para viver +bem e serem muitas vezes a Providencia de alguns companheiros.</p> + +<p>Mas continuemos na gare, que não tardará que visitemos a mansarda da rua do +Prado.</p> + +<p>O agudo silvo da locomotiva annunciou aos dois amigos que o comboio entrava +nas agulhas; deixaram, pois, a discussão e dispuzeram-se a abraçar Ernesto.</p> + +<p>Effectivamente chegou o comboio, e n'elle Ernesto, que se lançou nos braços +dos seus amigos.</p> + +<p>—Agora que já te abracei, digo que te acho muito abatido, disse +Marcial.</p> + +<p>—Effectivamente, estavas melhor quando partiste de Madrid, ajuntou +André. Roma continúa a ser uma cidade doentia.</p> + +<p>—Pois estou bom, completamente bom, e com um appetite devorador, +respondeu Ernesto; mas, quando se vôa de Roma a Civita-Vecchia, de +Civita-Vecchia a Marselha, de Marselha a Alicante, de Alicante a Madrid sem +descançar nem uma noite, e quando de mais temos a infelicidade de enjoar no +mar, creio que se não póde exigir a um corpo como o meu, magro e doente, que se +apresente ante os seus amigos com as bochechas e a barriga de Sancho.</p> + +<p>—Mas porque não vieste por Paris?</p> + +<p>—Tinha pressa de chegar a Madrid, e receei demorar-me na capital do +visinho imperio mais do que podia. E bem sabes que breve se fecha o praso para +a apresentação dos quadros; chego, pois, a tempo. Arranjaram-me casa?<span +class="pn">{85}</span></p> + +<p>—Tens a nossa. Nós temos casa.</p> + +<p>—Tenho quarto?</p> + +<p>—Viverás como um principe desthronado, não te apoquentes.</p> + +<p>—Conduzam-me, então, para onde quizerem.</p> + +<p>—E a tua bagagem?</p> + +<p>—Reduz-se a uma mala, dois caixotes com quadros, e a tela que venho +expôr, que vem enrolada em um cylindro de madeira. Aqui está a guia.</p> + +<p>—Dá-m'a. Pepe encarrega-se de tudo. É um rapaz muito esperto.</p> + +<p>Os tres amigos sahiram da estação, entregaram a guia ao creado que se +chamava Pepe, e subiram para um trem.</p> + +<p>Para chegar á mansarda dos artistas era necessario subir noventa e seis +degraus.</p> + +<p>Uma vez vencida a difficuldade dos noventa e seis degraus, a mansarda +occupada pelo pintor e pelo poeta era alegre como uma manhã de maio.</p> + +<p>Alli respirava-se o ar puro; d'alli o céu parecia mais azul e a vista +espairecia contemplando as arvores do Retiro e do Prado.</p> + +<p>André fizera da sala o seu <i>atelier</i>, onde tudo se encontrava n'uma +desordem encantadora e propria do genio.</p> + +<p>Marcial reservara a saleta para escriptorio. Ficava ainda a casa de jantar +bastante grande, outra sala, dois quartos e a cosinha.</p> + +<p>A segunda sala estava adornada com moveis alugados para receber Ernesto.</p> + +<p>Devemos advertir que era uma d'essas mansardas decentes, que têem fogão em +todas as casas, e que rendem ao senhorio oito mil reales por anno.</p> + +<p>Quando os tres amigos se installaram na sala que servia de <i>atelier</i> a +André, este disse:</p> + +<p>—Aqui tens o nosso palacio, que de hoje em deante será tambem teu, se +é que desejas viver comnosco.</p> + +<p>—Está claro! Acceito uma parte da casa, porque<span +class="pn">{86}</span> vejo que têem um grande <i>atelier</i> e admiraveis +luzes para trabalhar.</p> + +<p>—O que quer dizer que vens disposto a continuar com os pinceis.</p> + +<p>—Bem sabes que são elles o meu unico patrimonio.</p> + +<p>—Ai! Ernesto, por desgraça, em Hespanha a pintura pouco rende.</p> + +<p>—Bem sei; mas trabalhando muito, espero não morrer de fome.</p> + +<p>—Morrer de fome, estando comnosco!? exclamou Marcial. Isso não é +facil; aqui os bens são communs e d'esse modo nunca nos falta nada. Demais o +teu quadro será premiado, tu ficas rico, garanto-t'o eu.</p> + +<p>—Não confio em promessas de poetas.</p> + +<p>—O tempo te convencerá de que laboras n'um erro. Mas tratemos de outra +coisa. Que tal te déste em Roma?</p> + +<p>—Bem como sempre. Roma é a minha patria.</p> + +<p>—Sim, é a patria dos artistas. Mas agora dize-me com franqueza, tu +tiveste o mau gosto de te enamorares?</p> + +<p>—Meu caro Marcial o amor não é outra cousa do que uma contribuição que +todos pagamos, mais tarde ou mais cedo.</p> + +<p>—Em boa hora o fosse. Eu procurarei pagál-o o mais tarde possivel. Mas +com o direito que me concede a boa amizade, permitte-me que te continue a +interrogar.</p> + +<p>—Pergunta o que quizeres.</p> + +<p>—Amas?</p> + +<p>—Creio que sim.</p> + +<p>—Vamos vêr. Quantos graus attinge o teu amor?</p> + +<p>—Muitos, respondeu Ernesto, sorrindo-se.</p> + +<p>—E quem é ella?</p> + +<p>—Se me permittem, guardarei segredo.</p> + +<p>—Não ha inconveniente; mas sem dar nome ao santo, creio que nos pódes +dar alguns pormenores.</p> + +<p>—Isso é diverso.</p> + +<p>—É nova?<span class="pn">{87}</span></p> + +<p>—Vinte annos.</p> + +<p>—Formosa?</p> + +<p>—Como o mais bello sonho d'um pintor.</p> + +<p>—Bem, bem, a arte deve ser irmã da belleza. É rica?</p> + +<p>—Sim, por meu mal.</p> + +<p>—Diabo! Isso não se explica.</p> + +<p>—Digo por meu mal, porque se fosse pobre como eu, já seria minha +mulher.</p> + +<p>—Tão enamorado estás?</p> + +<p>—Para que negál-o? Não tenho segredos para vocês, que são os meus +unicos amigos: amo-a com toda a minha alma.</p> + +<p>—De fórma que, quando terminar a exposição, regressas a Roma.</p> + +<p>—Não, porque ella vive em Madrid.</p> + +<p>—Anh! Isso é diverso; do mal o menos. Esperamos que nol-a apresentarás +quando já não fôr segredo o teu amor.</p> + +<p>—Prometto-o, tão depressa alcance o consentimento do pae. Por agora só +lhes peço uma cama onde me deite algumas horas, porque estou muito moido.</p> + +<p>—Tens razão, vem. Nós mesmo te vamos acompanhar ao quarto que te +reservámos, mas não consentimos que durmas até muito tarde, porque convidámos +uns amigos para almoçar.</p> + +<p>—Acordem-me quando quizerem.</p> + +<p>Um quarto de hora depois dormia docemente emballado pela gloria e pelo +amor.</p> + +<p>Pobre Ernesto! Como estava longe de imaginar a volubilidade da creatura a +quem entregára toda a sua alma n'um só beijo!<span class="pn">{88}</span></p> + + + +<h4><a name="SECTION00014000">CAPITULO XIV</a></h4> + +<h2>Curiosidade não satisfeita</h2> + +<p>Emquanto Ernesto dormia, os seus amigos collocaram convenientemente a tela +que o pintor trouxera de Roma.</p> + +<p>—Magnifico! exclamou Marcial ao vêl-a. Estou crente que na Exposição +não apparecerá nada melhor.</p> + +<p>—É uma grande obra, ajuntou André, contemplando o quadro com olhos de +entendedor. Ernesto obtem o primeiro premio.</p> + +<p>—Mas espera. Já vi esta cabeça de mulher em alguma parte, disse o +poeta fixando uma das figuras do primeiro plano, que representava a rainha +Esther.</p> + +<p>—Eu tambem, ajuntou o pintor.</p> + +<p>—Recordemo-nos onde.</p> + +<p>Mas de repente deu uma palmada na testa, e exclamou:</p> + +<p>—Espera, já sei! Esta cabeça não é outra senão a de uma menina que +conheço e que mora em Madrid. É a filha do milionario D. Ventura d'Aguillar.</p> + +<p>—Ah! Sim! Aquelle sujeito que vem muito ao Suisso e que é tão amigo +dos artistas.</p> + +<p>—Esse mesmo.</p> + +<p>—E que faz esse senhor?</p> + +<p>—Não o vejo desde o inverno passado. Deve andar viajando.</p> + +<p>—Preoccupações dos ricos durante o verão.</p> + +<p>—Sabes que examinando este magnifico retrato me assalta uma +suspeita?</p> + +<p>—Qual é?<span class="pn">{89}</span></p> + +<p>—Que seja a linda Amparo o amor de Ernesto.</p> + +<p>—Tambem me parece que tens razão em o suspeitares, visto que não ha +muito ainda nos disse que ella era rica.</p> + +<p>—Decididamente está decifrado o enigma.</p> + +<p>—Sendo assim, sou de opinião que Ernesto deve dar, o mais breve +possivel, o nó gordio.</p> + +<p>—Nunca! Um artista de merecimento, um homem de talento deve ser +solteiro toda a vida; o matrimonio é um obstaculo para a sua gloria.</p> + +<p>—Seja como fôr, o quadro é admiravel.</p> + +<p>—E devemos confessar que Ernesto será uma gloria nacional.</p> + +<p>—O quadro produzirá um effeito grandioso; tambem eu não esperava +menos.</p> + +<p>—Se Ernesto encontrasse um Cosme de Médicis, tinha a fortuna feita.</p> + +<p>—Desgraçadamente para os pintores aquelles tempos passaram.</p> + +<p>—Sim, dizes bem.</p> + +<p>Ás onze horas chegaram tres amigos de Ernesto, pintores tambem, que estavam +convidados para almoçar com Marcial e André.</p> + +<p>Ernesto continuava dormindo, somno que se respeitou durante meia hora que +passaram entretidos a contemplar o quadro.</p> + +<p>Por fim decidiram-se a despertar o hospede, e Ernesto deixou a cama entre +applausos, felicitações e abraços dos amigos.</p> + +<p>Tudo sorria em volta de Ernesto, e elle pensava de si para si:</p> + +<p>—Hoje estou com os meus amigos; ámanhã... oh! ámanhã irei vêl-a ao seu +palacio de Caramanchel.</p> + +<p>Ernesto ignorava que Amparo tivesse morrido para elle.</p> + +<p>Os seis amigos foram para o restaurant do Arminho, onde estava encommendado +o almoço.</p> + +<p>Os poetas e os pintores são tão pobres de dinheiro como ricos de imaginação. +Quando a venda de um<span class="pn">{90}</span> quadro ou a estreia de uma +peça lhes rende algum dinheiro, gastam-no alegremente com o mesmo +desprendimento de principes. Ao acabar-se o ultimo centimo puxa-se pela +intelligencia e cria-se outra obra. Assim passam a vida esses sonhadores, esses +filhos do genio que vivem acariciados pelo sopro da gloria e pela interminavel +melodia das suas illusões.</p> + +<p>O restaurant do Arminho hoje já não existe; ha ainda pouco tempo que fechou +as suas portas, convertendo-se no de Madrid. Mas seja como fôr, occupemo-nos do +primeiro.</p> + +<p>O Arminho no seu pequeno, mas elegante recinto, não era frequentado por +pobres ou economicos. O serviço era á lista, e os pratos caros, mas bons.</p> + +<p>Os frequentadores sabiam que um simples almoço lhes custava um par de duros, +mas sabiam tambem que era preciso pagar, não só os manjares que depositavam no +estomago, como as gravatas brancas dos creados e o serviço de prata em que +eram servidos.</p> + +<p>N'uma grande cidade como Madrid ha o costume de se atirar o ouro por um +lado, emquanto que do outro alguns desgraçados morrem de fome.</p> + +<p>Marcial encarregára-se do almoço. N'aquelle dia os estomagos dos amigos +estavam á sua disposição. Escreveu n'um papel os quatro pratos fortes de que +devia compôr-se, deixando ao gosto do cosinheiro do restaurant as sobremezas e +os vinhos.</p> + +<p>Os seis jovens, alegres e cheios de illusões, tinham bom apetite; comeram +como quem não sente remorsos na consciencia, falaram de pinturas, de theatros, +de mulheres.</p> + +<p>Ernesto ouvia com certa satisfação os seus amigos; fallava menos do que +elles sem duvida, porque tinha a imaginação mais preoccupada.</p> + +<p>Quando chegou o <i>Champagne</i>, o vinho da alegria, do amor, quando +começaram os brindes e os epigrammas picantes. Marcial levantou-se com um copo +na mão, e disse:</p> + +<p>—Brindo pelo original que serviu de modelo ao<span +class="pn">{91}</span> nosso amigo para pintar a formosa figura de Esther no +quadro que será a admiração de Madrid.</p> + +<p>Todos esvasiaram os copos.</p> + +<p>—E se essa figura que tanto celebras fosse uma creação minha? disse +Ernesto, sorrindo-se.</p> + +<p>—Então, respondeu Marcial maliciosamente, brindo pellas bellas +creações do teu genio, e se alguma vez tiver a triste ideia de me casar, +pedir-te-hei primeiro que pintes uma mulher a teu gosto, e juro-te que não +consumarei o sagrado laço do matrimonio sem que encontre uma de carne que seja +egual á do teu retrato. Mas, que queres, parece-me que já vi a tua Esther com +trajes á moderna.</p> + +<p>—Estás enganado, respondeu Ernesto com embaraço.</p> + +<p>—Senhores, disse André, levantando-se, eu, em nome da fraternal +amizade que nos une, peço que respeitem o silencio do nosso amigo.</p> + +<p>—Pois eu, pelo contrario, peço que nos conte todos os seus segredos, +exclamou um dos convidados. Entre amigos como nós, tudo é commum, até os +segredos.</p> + +<p>—Tem razão. Ernesto não deve ser avarento dos seus segredos, já que +nunca o foi da sua bolsa.</p> + +<p>—Fala!</p> + +<p>—Conta-nos o que fizeste em Roma desde o dia em que pisaste a cidade +eterna, até ao momento em que partiste para nos trazeres o melhor quadro que +verão os contemporaneos.</p> + +<p>—Sim, conta-nos a historia dos teus amores.</p> + +<p>—Basta, senhores! exclamou Ernesto, estendendo os braços para +restabelecer a ordem. Quem diabo lhes disse que estou enamorado?</p> + +<p>—Foi Marcial.</p> + +<p>—É uma calumnia.</p> + +<p>—Podemos provar-te o contrario.</p> + +<p>—De que maneira?</p> + +<p>—Apresentando-te o original da tua Esther.</p> + +<p>Ernesto estremeceu.</p> + +<p>—N'esse caso, só se poderia attribuir a uma casualidade, disse +inquieto.<span class="pn">{92}</span></p> + +<p>—A amizade não deve ser exigente, disse André desejoso de livrar o seu +amigo d'aquelles apuros. Visto que Ernesto não conta, respeitemos o seu +silencio, e tomemos café.</p> + +<p>—Sim, sim; tomemos café, ajuntou Marcial, e com pouco assucar, para +que allivie um pouco a cabeça, dissipando os vapores do vinho!</p> + +<p>—Isso é um insulto; chamas-nos <i>piteireiros</i>.</p> + +<p>—Póde ser que tenhas razão, disse outro. Apesar de tudo, o piteireiro +é um ser feliz.</p> + +<p>—Que seria dos homens se não existisse o vinho?</p> + +<p>—Uma sociedade de paes graves.</p> + +<p>—Um vasto cemiterio.</p> + +<p>—Viva o vinho!</p> + +<p>—E os homens despreoccupados, que se não importam de se +embriagarem!</p> + +<p>—Viva a Inglaterra, onde a embriaguez é respeitada.</p> + +<p>—E está na ordem do dia.</p> + +<p>—Ah! Nós, os hespanhoes, somos uns hypocritas; criticamos os +piteireiros, mas bebemos vinho.</p> + +<p>Desde aquelle momento a conversa dos seis rapazes foi tão animada, tão +alegre, que nos seria difficil reproduzil-a.</p> + +<p>Contos, anecdotas, escandalos da capital, tudo serviu de assumpto, em redor +d'aquella mesa, onde fumegava a digestiva <i>moka</i> e o estomacal +<i>cognac</i>.</p> + +<p>Ás seis da tarde abandonaram o restaurant, e dirigiram-se para Castelhano. +Necessitavam respirar o ar fresco do campo.<span class="pn">{93}</span></p> + + + +<h4><a name="SECTION00015000">CAPITULO XV</a></h4> + +<h2>Carta interrompida</h2> + +<p>Penetremos na encantadora quinta que D. Ventura possuia em <i>Carabanchel de +Arriba</i>; mas não nas elegantes e luxuosas habitações, pois que Amparo que é +quem procuramos, está n'um caramanchão situado no extremo de uma recta e larga +rua formada por altos e copados castanheiros da India.</p> + +<p>Para que o leitor se inteire de tudo o que succedeu desde que perdeu de +vista a formosa herdeira de D. Ventura, bastará dar-se ao incommodo de lêr a +carta que Amparo escreve a uma amiga intima e antiga condiscipula.</p> + +<p>Leiamos, pois:</p> + +<p> </p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p style="text-align:right;">«Minha querida Luiza</p> + +<p>«Desde o dia do meu casamento com o conde de Loreto, isto é, ha um mez, nem +tu sabes o que tem sido de mim nem eu sei nada de ti. Agora que meu marido me +deixou, pois alguns negocios o prendem todo o dia em Madrid, vou dar-te parte +da minha vida.</p> + +<p>«Escrevo-te, ouvindo o canto das aves sobre a minha cabeça, e aspirando o +perfume do jasmim e da madresilva. A minha alma necessita da doce quietação que +me rodeia, para poder expressar-te toda a immensa felicidade que sinto.</p> + +<p>«Ah! Luiza, já sei que amas um homem, e que és egualmente amada por elle. +Porque<span class="pn">{94}</span> se não casam? E porque não veem para o +campo?</p> + +<p>«Ignorava que no coração d'uma creatura o amor infundisse uma felicidade tão +ineffavel como a que experimento. É bem verdade que Fernando, meu marido, é o +melhor dos homens.</p> + +<p>«Se visses a maneira amavel e obsequiosa que tem sempre para commigo! Eu +sou, por assim dizer, a rainha absoluta d'este pequeno paraizo. Meu pae ri-se +do que chama caprichos de menina amimada, e Fernando approva immediatamente, +tendo por logico e natural até o mais estranho e excentrico.</p> + +<p>«Muitas vezes pergunto a mim propria se esta felicidade poderá durar muito. +Mas porque não ha de durar? Quando o amor é verdadeiro, dura tanto como a vida. +Que digo? Mais do que a vida, pois acompanha a alma até á eternidade.</p> + +<p>«Mas vou-te falar de Fernando a quem só conheces superficialmente. Imagina, +querida Luiza, um rapaz bonito, com um coração de anjo, a quem os genios da +musica e da pintura bafejaram em creança, pois que Fernando é musico e +pintor.</p> + +<p>«Toca orgão de uma maneira admiravel, e desenha quasi tão bem como Gustavo +Doré, cujos bellos trabalhos conheces.</p> + +<p>«Junta a isto uma bondade sempre disposta a comprazer e poderás imaginar +quem é o homem que me coube por sorte para companheiro de toda a minha vida.</p> + +<p>«Demais, Fernando tem uma conversação que fascina. </p> + +<p>«Quando de noite passeamos pelo jardim de braço dado, deleita-me ouvir-lhe +os planos que formulou para que a minha felicidade seja mais duradoura. </p> + +<p>«Se soubesses as viagens encantadoras que projecta para a proxima +primavera!...»<span class="pn">{95}</span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p>Estava a carta n'este ponto, quando Amparo ouviu pronunciar o seu nome; +levantou a cabeça e não poude conter um grito.</p> + +<p>Tinha na sua frente, seu pae e Ernesto.</p> + +<p>D. Ventura, alegre e risonho como sempre; o pintor pallido como um +cadaver.</p> + +<p>Amparo ao vêl-o, deixou cair a penna da mão, exclamando:</p> + +<p>—Ah! é o sr. Ernesto!</p> + +<p>—Elle proprio, respondeu D. Ventura, collocando familiarmente uma mão +no hombro do pintor. Surprehendeste-te, não é verdade? Pois olha que a mim +tambem me succedeu o mesmo, apezar de o esperar mais dia, menos dia, visto a +exposição abrir em meados do mez.</p> + +<p>Durante este curto dialogo, Ernesto guardou silencio. Os olhos tinha-os +fixos em Amparo e os labios entre-abertos deixavam assomar um sorriso tão +amargo como doloroso.</p> + +<p>Amparo por sua parte, parecia perturbada. A presença inesperada de Ernesto +produzira-lhe um effeito desagradavel. Nos olhos d'aquelle homem estava o +ameaçador olhar do amante offendido.</p> + +<p>Aquelle homem era para ella um terrivel presagio, um vivo remorso. Desejava +estar a cem leguas d'alli.</p> + +<p>—Sem duvida, que viemos importunar esta senhora, disse Ernesto +procurando dominar-se.</p> + +<p>—Não, senhor Ernesto; escrevia a uma amiga, e tenho tempo. Só á noite +é que parte o correio.</p> + +<p>—Demais, disse D. Ventura, o senhor não é uma visita importuna para +nós, mas um bom amigo a quem tratamos com o maior prazer e recebemos sempre com +satisfação. Se assim não fosse commetteriamos uma ingratidão. De fórma nenhuma +se esquecem facilmente as nossas excursões por Florença e Roma.</p> + +<p>Innocentemente D. Ventura feriu no mais recondito o coração da fllha.</p> + +<p>—Creio, senhor Ernesto, que concluiu o seu quadro que vimos começado +em Roma, disse Amparo.</p> + +<p>—Sim, minha senhora, concluio-o, e espero depois<span +class="pn">{96}</span> de ámanhã, requerer um logar para a proxima +exposição.</p> + +<p>—Onde iremos admiral-o e orgulharmo-nos, porque somos amigos do +pintor, ajuntou D. Ventura.</p> + +<p>—Quem o duvida?</p> + +<p>—Mas dize-me: onde está o teu marido. Desejava apresentar-lhe +Ernesto.</p> + +<p>—Fernando foi esta manhã a Madrid e não volta senão á tarde.</p> + +<p>—É pena; mas tudo se póde remediar, ficando Ernesto e almoçando +comnosco.</p> + +<p>Decididamente D. Ventura parecia disposto a atormentar a filha.</p> + +<p>Ernesto comprehendeu que Amparo desejava vêr-se livre da sua presença, mas a +noticia inesperada do seu casamento, causára-lhe tão terrivel effeito, que +acceitou o almoço que lhe offerecia D. Ventura, só pelo prazer de atormentar +aquella <i>coquette</i> que brincára com o seu coração para depois o +despedaçar.</p> + +<p>O almoço ia ser egualmente terrivel para os dois, mas Ernesto devorado pelo +ciume, pela raiva, pelo desespero, estava resolvido a soffrer tudo.</p> + +<p>Acceite o convite, D. Ventura, que não sabia estar quieto em parte alguma, +teve ainda outro ensejo mais lamentavel para atormentar a filha do que os +anteriores.</p> + +<p>—Ernesto é como da familia e como fica para almoçar, vou dar as ordens +necessarias e escrever duas cartas; passeiem pelo jardim, que eu venho +buscal-os depois.</p> + +<p>E dizendo isto dirigiu-se precipitadamente, para casa.</p> + +<p>N'aquella occasião Ernesto daria a D. Ventura, a vida, e até a gloria; tinha +necessidade de falar com Amparo sem testemunhas, de ouvir uma explicação da sua +conducta; e demais, continuar o fingimento, a dissimulação, seria +impossivel.</p> + +<p>Quando n'um peito cheio de juventude e apaixonado se levanta essa terrivel +tempestade do ciume, é difficil<span class="pn">{97}</span> dominál-a, chega o +momento em que, esquecendo-se dos deveres sociaes, estala e produz um +conflicto.</p> + +<p>Ernesto, ao vêr-se só, suspirou com força.</p> + +<p>Amparo comprehendeu a sua situação e conhecendo o generoso coração de +Ernesto, juntou as mãos, deixou assomar aos olhos duas claras e transparentes +lagrimas e com voz commovida, disse:</p> + +<p>—Pela memoria de sua mãe, pela recordação d'aquellas noites +imprudentes de Florença, rogo-lhe, Ernesto, que se esqueça de tudo e me +perdôe.</p> + +<p>O pintor fixou um olhar intenso, sinistro, n'aquella mulher que nunca lhe +parecêra tão bella, e dominando-se, mas estremecendo ao mesmo tempo, como se o +fosse a acommetter um ataque nervoso, disse:</p> + +<p>—Perdoar, é facil; basta ter um coração grande e generoso; esquecer é +impossivel, senhora, quando se tem uma alma como a minha, quando se sente na +bôcca o fogo de um beijo que ha de causar a minha desgraça e a minha morte.</p> + +<p>E levando a mão á cabeça, em tom desesperado, exclamou:</p> + +<p>—Tudo isto é um sonho! É impossivel que isto seja realidade! Que mal +fiz a esta mulher, para que depois de mostrar-me o céu, me lance no abysmo do +desespero?</p> + +<p>—Ernesto, senhor Ernesto, por piedade. Conheço que fui uma imprudente, +que sou culpada, mas que quer...</p> + +<p>—Senhora, exclamou Ernesto com dignidade, ha procedimentos, que nem +Cicero com toda a sua eloquencia, poderia explicar satisfatoriamente, e o seu, +é um d'elles; e, se eu, vendo-me enganado, me quizesse vingar, se eu n'este +momento em que a vida me é indifferente, commettesse um d'esses crimes que +lança o desespero nos homens, seria mais desculpavel ainda ante os homens do +que a senhora ante a sua consciencia.</p> + +<p>—É verdade, é verdade! murmurou Amparo, escondendo<span +class="pn">{98}</span> o rosto nas mãos. Póde-me matar se lhe apraz.</p> + +<p>—Não tenha medo; tenho bastante coragem para receber a morte sem me +defender. Até ainda ha pouco a esperança, essa bella flôr da vida que tudo +embelleza, esse grato perfume da alma, acariciou o meu coração, porque a luz +d'uns olhos que outr'ora se fixaram nos meus cheios de ternura, illuminava todo +o meu sêr; mas, agora, encontro-me subitamente mergulhado na mais profunda +escuridão. Foi tudo um sonho, tudo uma mentira; a senhora nunca me amou; as +noites de Florença foram momentos passageiros de delirio, entretenimento de +mulher <i>coquette</i>, esmola concedida por uns labios lisongeiros, falso +ouropel que tive a veleidade de receber por ouro puro; e emquanto recebia um +beijo falso, dava a minha alma inteira. Ah! Que louco fui! Se ao menos tivesse +tido compaixão de mim, se se tivesse dignado escrever-me uma carta, dizendo-me: +«Ernesto, esqueça tudo quanto se passou entre nós; vou casar-me com o conde de +Loreto, meu pae exige-o, é um compromisso que não posso evitar...» uma desculpa +qualquer, uma mentira ao menos, porque ha mentiras desculpaveis porque nos +fazem bem... Mas não; a senhora, pelo contrario, guardou silencio, e eu +continuava alimentando as minhas illusões. Hoje chego a esta casa com a alma +repleta de amor e de esperança e o seu pae diz-me com a mesma frieza e +indifferença como se me falasse de um dos seus negocios: «Amparo casou com o +conde de Loreto.» Comprehende, senhora, o effeito que em mim produziu esta +noticia? As palavras não matam porque eu ainda vivo.</p> + +<p>Amparo chorava. Só então comprehendeu a gravidade da sua imprudencia. O +conde de Loreto fascinara-a: desde o dia das corridas em Paris amava-o de toda +a sua alma, mas se antes de casar ouvisse as justas recriminações que lhe +dirigia Ernesto, não teria pronunciado o <i>sim</i> de esposa junto ao +altar.</p> + +<p>Mas o coquettismo, essa arma terrivel da mulher, quando esgrimida contra um +coração enamorado e<span class="pn">{99}</span> sensivel, dera os seus +terriveis fructos e jé era tarde para retroceder.</p> + +<p>Por isso Amparo não encontrava palavras com que se defendesse, com que se +justificasse.</p> + +<p>N'estes casos, a mulher tem dois caminhos; ou rir-se do amante enganado, ou +confiar na sua generosidade e pedir-lhe perdão.</p> + +<p>Amparo nem por sonhos pensou no primeiro caso; conhecia bem o amor de +Ernesto e a bondade do seu coração; por isso appellou para o segundo recurso, +e, levantando a cabeça, apresentou ante os olhos do pintor o seu rosto +interessante, formoso e pallido, e, derramando lagrimas, disse:</p> + +<p>—Pois bem, sim, Ernesto; fui uma <i>coquette</i>, uma imprudente, uma +leviana. O meu procedimento não tem desculpa; mas amo o meu marido e preferiria +cem vezes a morte a faltar ao que a minha honra e os meus deveres de esposa me +impõem. Se não é bastante generoso para perdoar, mate-me, antes que Fernando +conceba a menor suspeita, e antes que a mais pequena nuvem empanne a sua +felicidade, prefiro morrer. Mas o senhor é bom e terá dó de mim.</p> + +<p>Ernesto começava a sentir-se enternecido. Amava tanto aquella mulher que não +se sentia com coragem para lhe negar fosse o que fosse. Amparo aproveitava-se +das vantagens que ia conquistando.</p> + +<p>—Sejamos, pois, amigos, como nos primeiros dias em que nos conhecemos; +irmão, se quizer, mas perdôe-me e esqueça-me... não será tão cruel que m'o +negue.</p> + +<p>—Amparo, a senhora não póde imaginar o sacrificio que me pede; mas faz +bem em confiar em mim. Como poderei ser a causa da desgraça da mulher que amo +de toda a minha alma? Perdôo-lhe todo o mal que me fez, mas esquecer... é +impossivel. Para amar não é preciso ser correspondido. Mas para que prolongar +por mais tempo uma scena que me despedaça o coração? Adeus, minha senhora, seja +feliz, viva socegada, porque entre os dois abriu-se, desde hoje, um abysmo, no +fundo do qual estão sepultadas<span class="pn">{100}</span> todas as minhas +illusões, toda a minha felicidade.</p> + +<p>E Ernesto sahiu do caramanchão como o demente que arrebatado pela vertigem +do seu doente cerebro não sabe para onde caminha.</p> + +<p>O primeiro movimento de Amparo foi detêl-o; porém conteve-se, calculando que +ia commetter uma segunda imprudencia, e de mais graves consequencias do que a +primeira.</p> + +<p>Uma vez só procurou serenar-se.</p> + +<p>—Pobre Ernesto! disse ella, enxugando as lagrimas. Nunca imaginei que +fosse tão grande o seu amor. Ah! Tem muita razão para me odiar. Foi uma +imprudencia.</p> + +<p>E, recordando-se de que uma só palavra de Ernesto poderia perturbar a sua +felicidade, exclamou:</p> + +<p>—Meu Deus! Permitti que esse homem não seja assaltado pela terrivel +paixão da vingança.</p> + +<p>Amparo fixou o olhar na carta que escrevia tão alegre, poucos momentos +antes, á sua amiga, e não tendo paciencia nem socego n'aquelle momento para +concluil-a, guardou-a na carteira do seu estojo de viagem.</p> + +<p>Quando o pae voltou, Amparo estava quasi socegada, ou pelo menos fingia, +para que se não suspeitasse nada da scena que acabára de dar-se n'aquelle +logar.</p> + +<p>—Aonde está Ernesto? perguntou D. Ventura.</p> + +<p>Rapidamente imaginou uma desculpa que motivasse a precipitada fuga do +pintor.</p> + +<p>—Ernesto, disse, acaba de sahir.</p> + +<p>—Mas, volta para almoçar?</p> + +<p>—Não; disse-me para lhe pedir desculpa de se retirar, mas havia-se +esquecido de que tinha uma entrevista importante em Madrid ás duas horas da +tarde.</p> + +<p>—Todos os artistas têem a cabeça á razão de juros. Mas emfim que +remedio! Almoçaremos sósinhos.</p> + +<p>E offerecendo o braço á filha, dirigiram-se para casa.<span +class="pn">{101}</span></p> + + + +<h4><a name="SECTION00016000">CAPITULO XVI</a></h4> + +<h2>Propostas</h2> + +<p>Ernesto chegou a casa e deixou-se cahir desesperadamente na cama; sentia-se +fatigado, um desejo irresistivel de chorar, um calor immenso nas fontes e um +frio glacial no coração.</p> + +<p>Deitou a cabeça nas almofadas e chorou.</p> + +<p>Ás cinco horas da tarde, Marcial e André foram buscal-o para irem jantar, e +ao verem-n'o pallido, com o parecer decomposto e os olhos avermelhados, +perguntaram sobresaltados:</p> + +<p>—Estás doente? Que tens?</p> + +<p>—Nada, meus amigos, nada; quero estar só. Deixem-me; esta tarde não +tenho appetite.</p> + +<p>—Mais uma prova de que estas doente, e por isso não te +abandonaremos.</p> + +<p>—Por Deus, não me obriguem a levantar. Um boccado de socego far-me-ha +bem. Repito-lhes que não tenho nada. Vão tranquillos que lhes peço eu.</p> + +<p>Depois de meia hora de inuteis perguntas, Marcial e André sahiram afflictos +do quarto de Ernesto.</p> + +<p>—Indubitavelmente ha alguma cousa, disse o poeta.</p> + +<p>—Que diabo succederia? ajuntou André.</p> + +<p>—Parece-me que anda n'este mysterio o original da formosa Esther do +quadro.</p> + +<p>—Tambem o creio.</p> + +<p>—Não te disse elle esta manhã, que ia a Carabanchel?</p> + +<p>—Sim.</p> + +<p>—Em Carabanchel tem D. Ventura uma casa de campo.<span +class="pn">{102}</span></p> + +<p>—Que lhe succederia?</p> + +<p>—Quem sabe! Talvez algum desengano.</p> + +<p>—Seja o que fôr, procuremos indagar. É uma desgraça ter um coração +impressionavel como o de Ernesto; vae dar-lhe muitos desgostos.</p> + +<p>Marcial e André recolheram n'aquella noite mais cedo que de costume.</p> + +<p>Ernesto continuava deitado; no quarto não tinha luz. Marcial approximou-se +da cama com um phosphoro acceso para vêr se o seu amigo ainda dormia.</p> + +<p>O pintor tinha os olhos abertos.</p> + +<p>O poeta accendeu a vela que estava na mesa de cabeceira, puxou uma cadeira e +sentou-se proximo da cama do amigo.</p> + +<p>—Olha, Ernesto, a dissimulação só tem logar entre pessoas que se não +estimam. É em vão que procuras occultar-me o que te succedeu. Soffres, tens uma +d'essas dôres immensas que opprimem o coração. Basta olhar-te para a cara para +te adivinhar. Comprehendes que, estimando-te como a um irmão, não me posso +retirar tranquillo, só porque me dizes: «Não tenho nada». Confia, pois, na +minha amizade, deposita em mim as tuas maguas. Quem sabe se poderei servir-te +de consolação?</p> + +<p>Ernesto apertou carinhosamente a mão do amigo e disse:</p> + +<p>—Sei quanto me estimas; sei de quanto é capaz o teu generoso coração. +Somos amigos ha muito tempo, e nunca tive o mais leve motivo para duvidar da +tua amizade. Em nome, pois, d'essa amizade, peço-te que respeites o meu +silencio e que me deixes só.</p> + +<p>—Está bem, obedeço; mas não esqueças nem um só momento de que me +encontro disposto a fazer o sacrificio da minha vida, se com ella posso +evitar-te algum desgosto.</p> + +<p>Marcial sahiu do quarto de Ernesto na occasião em que ia a entrar André.</p> + +<p>—Onde vaes? lhe disse.</p> + +<p>—Vêr Ernesto.<span class="pn">{103}</span></p> + +<p>—Deixa-o, está dormindo; o que precisa é de socego.</p> + +<p>No dia seguinte Ernesto levantou-se de melhor parecer, e os tres amigos +tomaram juntos uma chavena de chá e alguns biscoitos inglezes.</p> + +<p>Nem André, nem Marcial tornaram a perguntar a causa da sua tristeza, mas +elles tambem estavam tristes e desgostosos.</p> + +<p>N'aquelle mesmo dia ficou o quadro de Ernesto na exposição. Á noite +reuniu-se com os amigos no café. Todos respeitaram a taciturnidade do pintor, +porque todos o estimavam e se compadeciam da sua incomprehensivel tristeza.</p> + +<p>Assim se passaram quinze dias. A exposição de pintura abriu as portas ao +publico, e o quadro de Ernesto arrancou um grito de admiração aos +espectadores.</p> + +<p>A figura de Esther era uma obra tão perfeita como a Virgem de Murillo. O +quadro tinha sempre um grupo de admiradores, que o contemplavam com verdadeiro +extasi.</p> + +<p>Uma manhã Ernesto acabava de se levantar quando José, o creado, entrou +participando-lhe que um cavalheiro lhe desejava falar.</p> + +<p>Esse cavalheiro não era outro senão Fernando del Villar, Conde de Loreto.</p> + +<p>Ernesto procurando simular uma serenidade que não sentia, offereceu-lhe uma +cadeira, e perguntou tranquillamente o que desejava.</p> + +<p>—Vi e admirei o precioso quadro que tem na exposição de pintura, disse +o conde. É na verdade uma obra-prima. Tenho a absoluta certeza de que alcança o +primeiro premio, e venho vêr se o senhor m'o quer vender.</p> + +<p>—Senhor, disse Ernesto, creia que concede ao meu trabalho mais +merecimentos do que os que realmente tem. Mas de modo nenhum desejo desfazer-me +d'elle emquanto o jury não resolver.</p> + +<p>—Entretanto póde confiar, disse o conde, que o jury lhe concede o +primeiro premio, e eu compro-lhe o quadro<span class="pn">{104}</span> como uma +obra-prima. Póde pedir-me quanto quizer sem receio de que me pareça exaggerado +o preço. Felizmente sou rico, e sei avaliar o valor das obras como a tela de +Esther.</p> + +<p>—Tenho tambem que advertir-lhe, senhor conde, de que um correspondente +da casa de Rotschild já me fez proposta sobre o quadro.</p> + +<p>—Rotschild é mais rico do que eu, disse o conde, sorrindo-se, mas +tenho mais direitos do que elle ao quadro a que nos referimos.</p> + +<p>—O senhor tem mais direito?! exclamou Ernesto, comprehendendo o ponto +para onde o conde desejava levar a conversa.</p> + +<p>—Sim, porque o senhor não ignora que a cabeça de Esther tem uma grande +parecença, parecença de retrato perfeito, com uma mulher que tenho em muita +conta, e cujo bom nome me importa mais do que e vida.</p> + +<p>—Não serei eu que o contradiga na sua opinião, senhor conde, mas se é +retrato, é por pura casualidade, pois foi pintado de imaginação.</p> + +<p>—Creio, senhor, ajuntou o conde manifestando a sua importancia, que +n'estas coisas o melhor é falar com a maxima franqueza.</p> + +<p>—Nada ha de que eu mais goste.</p> + +<p>—Assim, pois, começarei por lhe dizer o que o senhor não ignora, e é +que a cabeça de Esther não é outra cousa senão o retrato de minha mulher, a +quem o senhor conheceu em Roma e em Florença.</p> + +<p>—Pois bem, senhor conde, ainda que assim seja, ainda que visse e +tratasse em Roma e Florença com a senhora que hoje é sua esposa, ainda que a +minha memoria tivesse sido tão feliz que retivesse as suas feições e as +transportasse á tela, tudo isso não é mais do que uma liberdade que tomei, e se +o offende essa liberdade, a questão, entre pessoas de bem, tem uma solução que +o senhor não ignora.</p> + +<p>Ernesto pronunciára estas palavras com a altivez de quem provoca. O conde +ouviu-o tranquillamente e sem demonstrar a mais leve agitação.<span +class="pn">{105}</span></p> + +<p>Quando o pintor concluiu, o conde fez um movimento de olhos e de rosto, +manifestando o desgosto que lhe causava similhante provocação.</p> + +<p>—Senhor, disse pausadamente, primeiro que tudo, previno-o de que não +vim aqui ao som de guerra e julgo por tanto fóra de proposito a solução que +acaba de me propôr. Que conseguiriamos batendo-nos? Justamente o contrario do +que desejo e do que o senhor desejará ámanhã. Poderia provar-lhe, sem que lhe +ficasse duvida alguma, que não sou um cobarde, e que me tenho batido mais de +uma vez.</p> + +<p>Ernesto sorriu-se.</p> + +<p>—Perdôo-lhe essa nova provocação, ajuntou o conde, e torno a pedir-lhe +não só que me venda o quadro, como tambem que espalhe a noticia de que eu lh'o +encommendei em Roma, pedindo-lhe que este fosse o retrato de Amparo.</p> + +<p>—Nunca!</p> + +<p>O conde estremeceu, augmentou de uma maneira terrivel a sua pallidez, os +seus olhos brilharam momentaneamente de uma fórma sinistra, e fazendo um +esforço violento para dominar-se, continuou sem levantar a voz, com humilde +entoação.</p> + +<p>—Creia, meu amigo, que está em completo erro se julga que vim aqui com +exigencias; longe do meu espirito toda a ideia de ameaça; só supplico. Se o +senhor se nega a vender-me o quadro, mas se deseja evitar a minha mulher graves +desgostos, creio que por fim cederá a publicar um artigo nos jornaes em que +explique satisfatoria e convincentemente para todos, a similhança que tem a +figura de Esther com Amparo.</p> + +<p>E o conde, levantando-se ajuntou:</p> + +<p>—Pense, e pense tambem nas graves consequencias que a todos podem +trazer a sua negativa. Espero até ámanhã a sua resposta em minha casa. Este +cartão indica-lhe a minha residencia em Madrid.</p> + +<p>E deixando sobre uma mesa um bilhete de visita, cumprimentou-o e sahiu.</p> + +<p>Ernesto permanecia sentado com o olhar provocador,<span +class="pn">{106}</span> sem se dignar corresponder ao cumprimento que o conde +lhe dirigira ao sahir.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00017000">CAPITULO XVII</a></h4> + +<h2>Confiança</h2> + +<p>Quando o conde entrou na carruagem que o esperava á porta, deu ordem que o +conduzissem para casa, e deixou-se cahir no assento rugindo de raiva.</p> + +<p>—Ah! exclamou falando comsigo. Aquelle insensato julgou talvez que +tive medo. E não conheceu o horrivel tormento que me causava o conter-me. Terei +que matar outro homem? Não, não, mil vezes não. Consentirei antes que elle me +esbofeteie, preferirei fazer saltar os miolos.</p> + +<p>Quando o conde chegou a casa, situada na rua do Barquillo, entrou no quarto +de vestir de Amparo, que o esperava inquieta e commovida.</p> + +<p>—O tal senhor Ernesto, disse o conde, sentando-se n'um sofá, é menos +generoso do que suppunhas. Nem quer vender-me o quadro, nem publicar uma +communicação em que explique decentemente a natural curiosidade de todos que te +conhecem.</p> + +<p>—Mas elle não tinha nenhum direito para fazer o que fez, para me +pintar n'um quadro com risco de me comprometter, exclamou Amparo +tartamudeando.</p> + +<p>O conde sorriu-se, e fazendo um movimento de hombros, disse:</p> + +<p>—Não pódes calcular o quanto me fez soffrer esse homem. Durante a +nossa entrevista, falei-lhe com doçura, com humildade, pedi-lhe que me vendesse +o quadro, suppliquei-lhe, e julgando, sem duvida, que as minhas palavras eram +dictadas pelo medo, que eu era um cobarde, teve o atrevimento de me<span +class="pn">{107}</span> dizer que se não ficava satisfeito com a sua negativa, +o assumpto liquidava-se d'outra maneira entre homens. Desgraçado! Necessitei de +todo o valor, de toda a força do homem que se não póde bater, depois de ter +morto cinco homens, para não o esbofetear na sua propria casa. Mas quem sabe se +esse insensato me fará faltar ao meu juramento e terei de matal-o.</p> + +<p>—Não, não, Fernando! Não quero que te batas! Não quero que te +exponhas! A tua vida pertence-me!</p> + +<p>—Mas se esse homem, depois de ter dado pasto a maledicencia com o seu +importuno quadro, me insultar na rua, no theatro, n'um passeio, o que hei de +fazer senão bater-me?</p> + +<p>—Pensa que um duello não serviria senão para augmentar essa +maledicencia que nos assusta, esse murmurio que receamos.</p> + +<p>—Sim, concordo; mas não vejo outro caminho.</p> + +<p>—Dize-me, Fernando, tens confiança em mim?</p> + +<p>—Se a não tivesse, estaria como estou, aqui?</p> + +<p>—Obrigada, meu amigo.</p> + +<p>—Mas a que proposito veiu essa pergunta?</p> + +<p>—Porque conheço o bello e nobre caracter de Ernesto.</p> + +<p>—Vaes fazer-me algum elogio das suas qualidades moraes?</p> + +<p>—Não; vou tranquilizar-te. Ouve. Uma casualidade fez com que eu +conhecesse Ernesto em Roma. Depois acompanhou-nos a Florença. Bondoso e +illustrado, levou-nos a toda a parte, e não demorou muito que não percebesse +que eu lhe não era indifferente. Bem sabes, Fernando, que não tenho segredos +para ti, porque o meu coração e a minha vida pertencem-te, porque te amo de +toda a minha alma.</p> + +<p>—Sim, sim, não tenho duvidas a esse respeito e comprehendo +perfeitamente tudo quanto se póde passar entre uma menina e demais formosa como +tu e um homem como Ernesto, que viajam juntos. Amou-te, fez-te uma declaração +que não regeitaste, já por<span class="pn">{108}</span> coquettismo, já por +compaixão. Isso é natural nas mulheres, não as censuro; mas ás vezes traz más +consequencias. Agora, por exemplo: Ernesto ao voltar a Hespanha, encontra-te +casada e julga-se com o direito de fazer a tua e a minha desgraça, e apezar +d'isso não tenho a mais pequena duvida de que esse rapaz tem uma boa alma, um +generoso coração.</p> + +<p>—Dizes bem, é uma desgraça. Tomei aquelles passeios em Florença, por +um passatempo, por uma distracção. Aborrecia-me. Ernesto, pelo contrario, +julgou que eu o amava como Heloisa amou Abelardo... Lastimo tão funesto engano. +E agora auctoriza-me para que meu pae compre o quadro, eu procurarei a maneira, +sem faltar aos meus deveres de esposa, de liquidar este assumpto +satisfatoriamente, porque nada me interessa tanto como a tua felicidade, meu +Fernando.</p> + +<p>—Repara, Amparo, que o que me propões é uma imprudencia. Ernesto para +ceder aos teus pedidos, póde ser exigente.</p> + +<p>—N'esse caso, dir-te-hei: «Fernando, sou tua; o teu amor é a minha +vida. Mata esse homem, que me julgou capaz de faltar aos meus deveres.»</p> + +<p>O conde soltou um grito, abraçou com enthusiasmo a mulher.</p> + +<p>—Ah! disse Amparo, este abraço prova-me que te inspiro confiança, e +que annues ao meu pedido.</p> + +<p>—Faze o que quizeres; mas fica sabendo que se antes de vinte e quatro +horas esse homem não explicar nos jornaes, de um modo satisfatorio para mim, a +parecença da condessa de Loreto com a Esther do seu quadro, não me fica outro +remedio senão matal-o.</p> + +<p>E o conde cumprimentando a esposa, sahiu do quarto.</p> + +<p>Amparo ficou por um momento como que oppressa sob o peso da ameaça que o +marido acabava de proferir.</p> + +<p>Pela primeira vez comprehendeu até onde podia<span class="pn">{109}</span> +conduzil-a a imprudencia do seu coquettismo em Florença.</p> + +<p>Rapidamente lhe passaram pela imaginação as recordações d'aquellas noites +passadas com Ernesto no jardim do hotel do senhor Rosales.</p> + +<p>—É preciso evitar a todo o transe que se batam. Um desafio entre meu +marido e Ernesto produziria um escandalo, e a maledicencia, duvidando da minha +honradez, poderia menoscabar na honra do conde. Se isto succedesse, toda a +felicidade que agora disfructo desappareceria. Não, não, falarei com Ernesto e +supplicar-lhe-hei se tanto fôr preciso.</p> + +<p>Amparo deteve-se, como se tivesse commettido alguma imprudencia.</p> + +<p>—Mas se lhe peço uma entrevista, continuou, ainda que esta seja com a +nobre intenção de evitar uma desgraça, se se sabe que a mulher do conde de +Loreto e o auctor do quadro de Esther se viram sem testemunhas, então...</p> + +<p>Amparo escondeu o rosto entre as mãos, rompendo em amargo choro, porque +comprehendia que por todos os lados sómente encontraria difficuldades.</p> + +<p>N'aquelle momento entrou D. Ventura.</p> + +<p>—Que é isso? Que tens? Porque choras? Acabo de encontrar o teu marido +que me cumprimentou com uma frialdade um tanto importuna. Vou-me convencendo de +que os aristocratas quando se casam com a filha d'um plebeu, embora este seja o +mais honrado e o mais rico do mundo, sempre julgam que lhe fazem favor. E olha, +como isto me desgosta, e caso continue assim, separo-me de vocês, ainda que o +não te vêr me amargure a velhice e abbrevie os dias que me restam de vida.</p> + +<p>D. Ventura falava rapidamente, dissimulando mal o desgosto que sentia e as +lagrimas que lhe começavam a assomar aos olhos.</p> + +<p>—Meu querido pae. Creio que nos ameaça uma grande desgraça.</p> + +<p>Este grito sahido do peito de Amparo fez empallidecer o pae.<span +class="pn">{110}</span></p> + +<p>—Uma desgraça! exclamou. E que desgraça é essa?</p> + +<p>—Ernesto foi um imprudente ao tomar-me para modelo do seu quadro.</p> + +<p>—E é só isso? perguntou D. Ventura que não via motivo para se +sobresaltar d'aquelle modo. Se o motivo é o quadro, se não querem que elle +continue exposto, comprem-lh'o, e é assumpto concluido.</p> + +<p>—Mas elle não o quer vender.</p> + +<p>—Ora! Porque não lh'o pagam bem.</p> + +<p>—Não, meu pae, não. Ernesto não o vende ainda que lhe offereçam um +milhão.</p> + +<p>—Pateta! Nem tu nem Ernesto sabem o que é um milhão. Não ha quadro do +mundo que valha essa quantia.</p> + +<p>—O pae não conhece Ernesto.</p> + +<p>—Mas entendamo-nos. Que é que tu queres? Que elle retire o quadro?</p> + +<p>—Não é sómente que o tire da exposição, como tambem que publique nos +jornaes um artigo, assignado por elle, dizendo que o quadro é do conde, o qual +teve o capricho de que Esther fosse o retrato da esposa.</p> + +<p>—Pois bem, falarei com Ernesto, e tudo se arranjará.</p> + +<p>—Mas Ernesto recusa-se!</p> + +<p>—Como! E porque recusa?</p> + +<p>Amparo comprehendeu que era preciso revelar tudo ao pae, porque só elle +podia valer-lhe n'aquelle apuro, e pegando-lhe carinhosamente nas mãos e +olhando-o com doce expressão, disse-lhe:</p> + +<p>—Porque Ernesto ama-me; porque tem ciumes, porque ao chegar a Hespanha +e encontrando-me casada lhe fugiram todas as esperanças do seu generoso +coração, e receio que commetta alguma loucura.</p> + +<p>—Diabo! Diabo! Isso é muito differente! E teu marido sabe que Ernesto +te ama?</p> + +<p>—Suspeita-o, e jurou bater-se com elle, se antes de vinte e quatro +horas não ficar completamente resolvida a questão do quadro.</p> + +<p>D. Ventura deu um profundo suspiro.<span class="pn">{111}</span></p> + +<p>Começava a vêr a questão sob o seu verdadeiro ponto de vista, e receava que +tivesse um desenlace fatal.</p> + +<p>—Bem vê, meu pae que o meu sobresalto e o meu receio é fundado. Se +Fernando e Ernesto se baterem, se algum d'elles morrer...</p> + +<p>—Tudo, menos isso. É preciso liquidar esse negocio. Vou falar com +Ernesto.</p> + +<p>—Negar-se-ha; estou crente. Será mais conveniente que eu lhe fale, mas +não na sua casa. É preciso que o papá o chame.</p> + +<p>—Não vejo inconveniente. Mas onde? Amparo reflectiu um momento.</p> + +<p>—Occupo o meu rez-do-chão d'esta casa; pois bem, escreva-lhe uma carta +pedindo-lhe para vir aqui; não a casa do conde de Loreto, mas—á sua.</p> + +<p>D. Ventura sentou-se a uma mesa, pegou na penna e disse:</p> + +<p>—Dicta a carta.</p> + +<p>Amparo pensou alguns instantes. Depois disse:</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Senhor Ernesto +Alvarez</i></p> + +<p>«Meu bom amigo</p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p>«Peço-lhe para que tão depressa receba esta carta tenha a bondade de me vir +procurar em minha casa pois desejo falar-lhe de um assumpto da maior +importancia. </p> + +<p>«Julgo inutil participar-lhe que moro no rez-do-chão, onde o espero, +confiado em que se apressará em satisfazer o pedido de um amigo que tanto o +estima. </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small +class="SMALL">Sempre seu amigo,</small></p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>D. Ventura de +Aguillar.</i>»</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>Fechada a carta, enviou-a immediatamente por um creado.</p> + +<p>Depois, D. Ventura e a filha desceram para o rez-do-chão.</p> + +<p>—Agora, meu pae, disse Amparo, só lhe peço que<span +class="pn">{112}</span> quando vier Ernesto me deixe a sós, com elle, mas é +preciso que, detraz d'aquelle reposteiro, seja testemunha da nossa +entrevista.</p> + +<p>—Farei o que quizeres, porque estas questões apoquentam-me +atrozmente.</p> + +<p>—Preciso, para que se ámanhã tentarem debicar em mim, ao menos o meu +pae saiba que não sou uma d'essas mulheres que faltam aos seus deveres com +facilidade.</p> + +<p>Uma hora depois Ernesto era introduzido no gabinete em que estava Amparo.</p> + +<p>D. Ventura occultou-se precipitadamente no quarto contiguo.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00018000">CAPITULO XVIII</a></h4> + +<h2>A golfada de sangue</h2> + +<p>Ernesto, de pé, com o chapéu na mão, pallido, e surprehendido por se +encontrar com Amparo, não se atrevia a dar um passo.</p> + +<p>Amparo que fazia grandes esforços para dominar a commoção que experimentava +sorriu-se e extendeu-lhe a mão.</p> + +<p>—Que é isso, meu amigo! Tão zangado está comigo que não quer +apertar-me a mão?</p> + +<p>—Senhora condessa, em verdade que a não esperava encontrar aqui, +tartamudeou Ernesto.</p> + +<p>—Porque a suspeital-o não teria vindo, não é verdade? Agora vejo que +fiz bem em pedir a meu pae que escrevesse a carta. Mas, peço-lhe que se sente +aqui, ao meu lado; tenho que lhe falar de um assumpto de que depende a +tranquillidade da minha alma, o senhor que sempre foi tão bom para commigo +creio que não deixará de sel-o neste momento.<span class="pn">{113}</span></p> + +<p>Ernesto sentou-se ao lado de Amparo, mas sentia-se muito commovido, agitado +e quasi sem forças para fixar os seus olhos no formoso rosto da condessa.</p> + +<p>—Conheço, senhor Ernesto, que me não assiste nenhum direito para lhe +pedir algum favor por mais insignificante que seja, porque comprehendo que deve +estar resentido commigo. Seria inutil desculpar-me; confesso-me culpada, e fui, +se assim quizer, uma <i>coquette</i> que pagou esse tributo de vaidade de que +poucas mulheres escapam, e por isso vou-lhe falar, não ao homem em cujo braço +me appoiei para visitar o Colyseu de Roma e cujas palavras carinhosas resoaram +nos meus ouvidos como uma embriagadora musica durante as noites de Florença, +mas a um cavalheiro, a um homem generoso e desinteressado, em cujo nobre +coração só se albergam sentimentos nobres, emfim, a si, senhor Ernesto, a quem +não quero occultar a situação em que me encontro, a si de quem depende a paz do +meu lar, a tranquillidade do meu espirito.</p> + +<p>Amparo deteve-se, levou uma das lindas mãos aos olhos e enxugou as lagrimas +que durante a conversa lhe assomaram.</p> + +<p>—Não creia, senhora condessa, que os meus labios pronunciem uma só +palavra que seja de recriminação, disse Ernesto. Desde que cheguei a Madrid, e +assim que soube que a senhora pertencia a outro, que era a esposa do conde de +Loreto, senti tão profunda dôr no coração, tão grande magua na alma, que só +então pude avaliar a enorme paixão que me tinha inspirado. Não sou d'aquelles +homens que se resignam a perder n'um momento as esperanças que durante muito +tempo acariciaram. Será isto uma desgraça, concordo, porque não devemos encarar +a sério esta vida.</p> + +<p>Ernesto passou a mão pelo rosto, fez um esforço para se dominar e +continuou:</p> + +<p>—Sou um nescio! Estou falando de mim, a senhora condessa, em logar de +lhe perguntar o que deseja e apressar-me a satisfazel-a. Peço-lhe desculpa<span +class="pn">{114}</span> das minhas anteriores divagações, e ordene tudo quanto +lhe aprouver.</p> + +<p>—Não, senhor Ernesto, não; conheço todo o mal que o meu coquettismo +lhe causou, e por conseguinte não podem ser-me indifferentes os seus +soffrimentos. O que quero, o que lhe imploro é que me perdôe e me não odeie, o +que lhe peço é que annua ao que esta manhã lhe foi pedir meu marido, porque só +assim poderá a minha alma viver tranquilla e restabecer-se a paz n'esta +casa.</p> + +<p>—E... pensou bem no que me pede, minha senhora?</p> + +<p>—Sim, sei que para si é um grande sacrificio. Se o senhor fosse outro +homem nunca me resolveria a pedir-lhe tão grande favor, senhor Ernesto, mas do +senhor espero tudo, porque se tanto fôr preciso, lançar-me-hei a seus pés até +que o consiga, porque o senhor não quererá que nos meus olhos nunca mais sequem +as lagrimas, nem vêr-me desprezada pela maledicencia e odeiada de meu marido a +quem tanto amo; porque se o senhor não cede acontecerá indubitavelmente uma +desgraça.</p> + +<p>Ernesto fixou em Amparo um olhar intenso, profundo, como se pretendesse +lêr-lhe no fundo d'alma, e depois disse:</p> + +<p>—O senhor conde de Loreto é um homem valente, um dextro atirador que +tem provado a sua habilidade e o seu valor em mais de uma occasião. Sei que se +eu recusar terminantemente ao que me pede nos bateremos, e não sendo eu um +espadachim, será d'elle o melhor partido. Tambem não terei grande trabalho para +lhe provar, minha senhora, que a ideia de um duello de morte pouco me +preoccupa. A vida só é preciosa para os que são felizes e a senhora destruiu +toda a minha felicidade. De mais ha já algum tempo que goso de pouca saude, e +por conseguinte é desnecessario pensar em mim. Só temo que em Madrid me tomem +por um cobarde; é epitheto que não mereço e por isso me recusei a satisfazer os +pedidos do senhor conde.<span class="pn">{115}</span></p> + +<p>—E quem ousará chamar-lhe cobarde? disse Amparo. Para que os seus +amigos fizessem similhante apreciação, seria preciso que houvesse alguma cousa +que não fosse natural. Acaba de chegar de Roma com o quadro de Esther; em Roma +estive este verão e lá esteve tambem meu marido. Nada tão facil e tão +interessante para a sublime obra que expôz n'um dos salões da Exposição de +pintura, como inventar uma d'essas anecdotas que fazem na posteridade parte da +historia de um quadro. Por exemplo: o senhor precisava de um modelo para +Esther; encontrou-me com o conde, então meu noivo e seu amigo, e encontrando +nas minhas feições tudo quanto sonhava para a figura de Esther, pediu a +Fernando para que eu servisse de modelo. O conde annuiu com uma condição: a de +comprar-lhe o quadro pelo preço em que o senhor o avaliasse; e effectivamente +fechou-se o negocio por vinte e cinco mil duros. Tudo isto é o mais natural do +mundo. Ninguem depois de lêr nos jornaes a historia da parecença de Esther com +a condessa de Loreto, assignado por si, será capaz de dizer que semelhante +declaração foi escripta pela mão de um medroso.</p> + +<p>—Effectivamente, minha senhora, respondeu Ernesto, d'esse modo, na +minha historia, haveria um episodio fabuloso, o de vender um quadro no seculo +da photographia pela fabulosa quantia de meio milhão, e estou certo de que tão +vantajosa venda produziria inveja a muitos. Mas ignorando todos que conheci em +Roma e que acompanhei a Florença D. Amparo d'Aguillar, ninguem supporá qual a +verdadeira historia da parecença de Esther com a condessa de Loreto; e para +mim, basta-me que a senhora o saiba e que o não ignore o senhor conde. Tambem +julgo que a senhora não quererá fazer-me o aggravo de me julgar interesseiro. O +meu quadro não vale vinte e cinco mil duros e por isso não posso ceder aos seus +desejos.</p> + +<p>—Meu Deus! disse a joven juntando as mãos, e derramando abundantes +lagrimas. Julgava que este homem me amava, mas enganei-me.<span +class="pn">{116}</span></p> + +<p>Ernesto fez-se pallido até ficar livido, os olhos brilharam-lhe de um modo +terrivel, pegou bruscamente em uma mão de Amparo, e disse:</p> + +<p>—Senhora, o meu amor é tão grande, que não encontraria palavras com +que podesse narrar-lh'o.</p> + +<p>E pondo uma mão sobre o peito, continuou:</p> + +<p>—Aqui, desde o momento em que perdi a esperança de realisar os meus +sonhos, sinto como que uma tempestade infernal que rebentará em breve, +despedaçando-me o peito. Oh! Como é insensato todo o homem que não sabe ser +superior ás paixões que o dominam. Eu nunca amara senão minha mãe e a gloria. A +que me deu o ser deixou de existir. Fiquei orphão, e a gloria desde esse dia +foi minha mãe, minha amada, minha vida; mas um dia o destino ou a fatalidade +collocou-a ante mim, e amei-a com toda a minha alma. Este amor então foi +correspondido, sellado com um beijo que ainda me queima nos labios, que ainda +abraza a alma, e depois...</p> + +<p>Ernesto soltou uma gargalhada hysterica e ajuntou:</p> + +<p>—Mas para que recordar-lhe o que a senhora esqueceu? Que deseja a +senhora? Fiz-lhe o sacrificio da minha felicidade, talvez o da minha vida, +farei tambem o da minha honra, estou disposto a tudo. O quadro é seu, minha +senhora; escreverei a noticia, e entregarei ao senhor conde de Loreto o +documento com que poderá retiral-o quando a Exposição terminar. Depois, se +quizerem, podem queimal-o, pois era esse o fim a que o destinava.</p> + +<p>Ernesto poz-se de pé, fazendo um esforço supremo, e como se as suas ultimas +palavras tivesse esgotado as forças, dirigiu-se para a porta.</p> + +<p>Amparo olhava-o absorta, commovida, sem coragem para detel-o. Viu-o partir, +e notou que aquelle homem tremia como um ebrio.</p> + +<p>Apenas sahira do gabinete, ouviu-se na antecamara um ruido como o que produz +um corpo ao cahir desamparado. A condessa soltou um grito e D. Ventura sahiu da +alcova.<span class="pn">{117}</span></p> + +<p>—É um rapaz que vale quanto pesa, disse o commerciante.</p> + +<p>—Meu pae, corra, succedeu qualquer cousa a Ernesto.</p> + +<p>D. Ventura foi por onde o pintor tinha sahido, e effectivamente encontrou-o +estendido no chão.</p> + +<p>Soltou um grito e pediu soccorro. Ernesto estava desmaiado com a cara e o +peito manchados de sangue.</p> + +<p>Quando Amparo chegou, julgou que Ernesto se suicidara; os creados +levantaram-n'o e transportaram-n'o para a cama de D. Ventura, e quando chegou o +medico, soube-se a verdade: Ernesto tivera um grande vomito de sangue que o +obrigara a perder os sentidos.</p> + +<p>Uma hora depois, quando voltou a si e abriu os olhos, o conde de Loreto, +Amparo, Ventura e o medico estavam em volta da cama.</p> + +<p>O pintor estava extremamente pallido, mas com essa palidez mate, +melancholica, dos doentes de peito, e dirigindo um olhar vago e fatigado em +volta de si, disse com voz debil:</p> + +<p>—Quanto me penalisa, senhores, este contratempo. Senti-me mal +repentinamente, como se se tivesse rompido qualquer cousa dentro do peito; quiz +evitar á senhora condessa um desgosto, e retirei-me á pressa, mas ao chegar á +antecamara, perdi os sentidos. Espero que me desculparão o susto que lhes +causei.</p> + +<p>—O mais importante, meu amigo, disse o conde, é a sua saude, e desejo +que me faça o favor de permanecer em minha casa até que se encontre +completamente restabelecido.</p> + +<p>Havia tanta doçura, tanto interesse n'aquella voz, que Ernesto, fixando o +conde com um olhar replecto de agradecimento, respondeu:</p> + +<p>—Um doente nas minhas condições, senhor conde, é demasiadamente +importuno. Agradeço-lhe reconhecidissimo o seu offerecimento, mas não devo +acceital-o e peço-lhes que tão depressa o medico diga<span +class="pn">{118}</span> que me encontro em estado de ir para minha casa, me +concedam licença.</p> + +<p>—Não será hoje nem ámanhã, respondeu o medico, e por conseguinte creio +que não nos devemos occupar d'outra cousa que não seja fortalecer o nosso +doente.</p> + +<p>—Não se fala mais n'isso, disse D. Ventura, Ernesto é mais bem tratado +aqui do que em sua casa. Eu, em nome da nossa amizade, prohibo-lhe que se +levante da cama. Quando estiver restabelecido, quando estiver forte, fará então +o que lhe aprouver. Hoje mando eu.</p> + +<p>Ernesto fez um movimento d'olhos indicando que se resignava. Sentia-se tão +fraco, que lhe seria impossivel ter-se de pé.</p> + +<p>Ficou, pois, resolvido que ficaria no quarto de D. Ventura.</p> + +<p>Quando o medico sahiu, Amparo deteve-o para lhe perguntar pelo doente.</p> + +<p>—É grave, disse o facultativo. Mais tarde ou mais cedo morre. Deve ter +soffrido muito.</p> + +<p>Amparo retirou-se para os seus aposentos, e, fechando a porta, chorou.</p> + +<p>O remorso começava a preoccupar-lhe o espirito.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00019000">CAPITULO XIX</a></h4> + +<h2>Pagar a hospitalidade</h2> + +<p>D. Ventura mandou pôr uma cama no quarto de Ernesto.</p> + +<p>—Serei o seu enfermeiro, disse, Amparo, e o conde ajuda-me n'esta +tarefa. Animo, pois, amigo Ernesto, e não pense n'outra cousa que não seja em +restabelecer-se.<span class="pn">{119}</span></p> + +<p>Desde aquella occasião o pintor encontrou uma familia carinhosa, solicita, +que lhe prodigalizou todo o bem estar. Nem elle mesmo podia explicar o que se +passava em redor de si.</p> + +<p>Muitas vezes era Amparo quem lhe dava os remedios, limpando-lhe o copioso +suor que com frequencia lhe inundava a fronte, e isto fazia-o mesmo deante do +marido e com a amorosa solicitude de uma irmã.</p> + +<p>D. Ventura logo ao segundo dia começou a tratar o enfermo por tu com a +ternura e o interesse de um pae.</p> + +<p>Assim se passaram cinco dias. Ernesto falava pouco, não só porque o medico +lh'o prohibira, como tambem porque pensava muito em todos estes +acontecimentos.</p> + +<p>O seu amor por Amparo era immenso. O conde indubitavelmente conhecia esse +amor, e comtudo, dedicado e obsequioso, consentia que sua mulher passasse horas +inteiras sentada a cabeceira da sua cama.</p> + +<p>Em vão Ernesto perguntava a si mesmo porque era que aquella familia se +mostrava tão attenciosa, tão obsequiadora para com elle, e o seu coração +generoso repellia algum pensamento pouco favoravel para ella. O conde +parecia-lhe um homem digno e honrado, Amparo uma irmã, D. Ventura um pae, e até +o medico era para elle um amigo.</p> + +<p>Desde que recuperára os sentidos, durante os dias em que se achava n'aquella +casa, ninguem lhe tornára a falar do quadro. Ernesto sentindo-se mais +alliviado, aproveitou um momento em que estava só, pois desejava demonstrar +áquella familia o seu reconhecimento.</p> + +<p>Levantou-se da cama, chegou com algum custo a uma mesa onde estavam os +apetrechos de escripta, e poz-se a redigir um artigo.</p> + +<p>Passada uma hora tinha acabado.</p> + +<p>Então, voltou para a cama, tocou a campainha e disse ao creado que se +apresentou:<span class="pn">{120}</span></p> + +<p>—Faça favor de dizer ao senhor D. Ventura que desejo falar-lhe.</p> + +<p>O creado obedeceu e poucos momentos depois entrava o commerciante, sorrindo +como sempre.</p> + +<p>—Bravo, bravo, disse elle. Já te vejo esse parecer mais animado e +gosto d'isso. Mas, saibamos o que quer o meu doente.</p> + +<p>—Que leia isto, que mande tirar copias e que as remetta aos jornaes +que quizer.</p> + +<p>E Ernesto entregou uns linguados de papel em que pouco antes escrevera. D. +Ventura leu para si. Quando acabou a leitura lançou-se nos braços de Ernesto, +exclamando com voz commovida:</p> + +<p>—Obrigado, Ernesto, obrigado. Estas linhas trarão a paz a um lar e o +socego a um pae; és o homem mais generoso do mundo.</p> + +<p>D. Ventura tinha os olhos cheios de lagrimas.</p> + +<p>Ernesto estava impressionado ante a profunda satisfação do velho.</p> + +<p>—Demais, disse o pintor, fingindo grande naturalidade, essa declaração +que destruirá por completo a maledicencia, vale bem pouco, e não vejo motivo +para que o senhor m'o agradeca. Em poucos dias estarei completamente +restabelecido, e sahirei de Madrid, e nem o senhor conde, nem a senhora +condessa me tornarão a vêr. Tenho um plano de vida que me será proveitoso. +Emquanto ás nossas excursões artisticas por Florença, e Roma só me resta +julgál-as um encantador sonho, filho d'uma imaginação viva e impressionavel, e +como os sonhos se esquecem procurarei esquecêl-as tambem.</p> + +<p>—Oh! Tu não dizes o que sentes, Ernesto, soffres e tentas +occultal-o.</p> + +<p>—E quem não soffre n'este valle de lagrimas? Existe porventura homem +feliz n'este mundo? Creio que não. A vida não é outra cousa senão um castigo +que Deus impõe á humanidade pelo peccado original; resignemo-nos, pois e +paguemos esse tributo ao Creador.</p> + +<p>—Mas isso não me tranquillizou por completo. Dizes<span +class="pn">{121}</span> no teu artigo que o quadro é propriedade do conde de +Loreto, que o comprou em Roma, com a condição de que Esther fosse o retrato de +sua futura mulher, e isso não é verdade.</p> + +<p>—Meu amigo, ás vezes a mentira, que tem alguma cousa de santa, é +indispensavel.</p> + +<p>—Comtudo o conde não te comprou o quadro.</p> + +<p>—Mas se eu lh'o offereço.</p> + +<p>—Isso não póde ser. Tu és pobre e nos não consentimos...</p> + +<p>—Mau! O quadro, dado o caso de ser premiado pelo governo, poderá +render-me quando muito cinco ou seis mil duros. Com essa quantia é rico um +homem como eu.</p> + +<p>—Mas nós podemos dar-te pelo quadro vinte mil duros.</p> + +<p>—Isso seria roubar o dinheiro, e não creio que o senhor me faça a +offensa de me julgar interesseiro.</p> + +<p>—Demais sei eu que todos os homens de talento desprezam o dinheiro.</p> + +<p>—Pois então consinta que a minha pobre Esther salvando os filhos de +Israel fique em paga da carinhosa hospitalidade que me concederam, e não se +fala mais no assumpto. Mas não percamos tempo; é preciso que ámanhã saia em +alguns jornaes o meu communicado.</p> + +<p>D. Ventura não poude convencer Ernesto a que acceitasse qualquer quantia +pelo quadro.</p> + +<p>—Para todos, disse o pintor, o quadro foi comprado pelo conde de +Loreto pela importancia que lhe aprouver dizer, e eu não o desmentirei; para +nós, o quadro será uma offerta que eu faço ao esposo de D. Amparo de +Aguillar.</p> + +<p>No dia seguinte, ao levantar-se, Amparo, viu varios jornaes sobre uma +pequena mesa de pau rosa.</p> + +<p>—Que é isto? perguntou. Cuidam que me vou dedicar á politica?</p> + +<p>—Não sei, minha senhora, mas o papá disse-me que os puzesse ahi e que +dissesse da sua parte á senhora<span class="pn">{122}</span> condessa, quando +se levantasse, que lesse um communicado que trazem os jornaes.</p> + +<p>Amparo suspeitou do que tratava o communicado, pegou no jornal e leu em voz +baixa o que se segue:</p> + +<p> </p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p style="text-align: right;">«Senhor director do...</p> + +<p> </p> + +<p>«Espero da sua amabilidade que publicará esta carta no seu acreditado jornal +que tão dignamente dirige, pois importa ao senhor conde de Loreto e ao que +subscreve a presente carta, desvanecer certas equivocas apreciações que uma +parte do publico que visita a Exposição de pintura tem feito sobre o meu quadro +de Esther. </p> + +<p>«Ha alguns mezes estava em Roma pintando o quadro de Esther quando tive a +honra de ser visitado por Fernando del Villar, conde de Loreto, com a então sua +futura esposa, hoje condessa de Loreto. </p> + +<p>«Verdadeiro enthusiasta pela pintura, o conde de Loreto, protector dos +artistas, propôz-me comprar o quadro por uma quantia bastante elevada; +attendendo ao pouco ou nenhum merecimento da minha tela, acceitei o negocio e +ficou desde então o quadro de Esther sendo propriedade do conde de Loreto. </p> + +<p>«A partir d'ahi o conde passou a visitar-me todas as manhãs, passando +algumas horas no meu atelier vendo-me pintar. </p> + +<p>«Um dia, ao ter quasi terminada a minha obra, occupava-me em retocar a +figura de Esther, quando o conde me disse: </p> + +<p>—«Meu amigo, tenho um capricho de homem rico que desejava satisfazer. +Se o senhor não se escandalizasse e quizesse, a cabeça da rainha Esther poderia +ser o retrato da senhora que em breve será minha mulher. Ha algum inconveniente +n'isso?<span class="pn">{123}</span> </p> + +<p>—«Nenhum, senhor conde, lhe respondi. Nem conheci a celebre judia da +tribu de Benjamin, a bondosa sobrinha de Mardoques, nem vi mesmo algum retrato +d'ella, mas desde já aposto qualquer cousa em como a mulher do rei Assuero não +foi mais bella do que a joven que d'entre em pouco será a condessa de Loreto. +</p> + +<p>«Poucos dias depois, a cabeça de Esther era um retrato bastante parecido da +senhora D. Amparo de Aguillar, condessa de Loreto. </p> + +<p>«Assim fica explicada a similhança que com a esposa do senhor conde de +Loreto tem a figura principal do meu quadro. </p> + +<p>«Peço-lhe me desculpe o incommodo que lhe causo, mas a rectidão do meu +caracter e o agradecimento a isso me obrigam, e antecipadamente agradece, o que +é</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align: right;">De V. S.ª</p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small>Att.º +V.<sup>or</sup> Cr.º e Obrg.º</small></p> + +<p style="text-align: right;"><i>Ernesto Alvarez.</i>»</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>Quando Amparo acabou a leitura ouviu a voz do marido que lhe pedia +auctorização para entrar. Entrou com o jornal na mão.</p> + +<p>—Entra, Fernando. Não precisas auctorização para entrar no meu quarto, +lhe respondeu.</p> + +<p>O conde approximou-se da mulher e depois de lhe ter dado um carinhoso beijo +na face e dirigir-lhe um sorriso amoroso, disse:</p> + +<p>—Bom dia, querida Amparo, bom dia. Vejo que ambos lemos o communicado +de Ernesto.</p> + +<p>—Sim; meu pae mandou-me estes jornaes.</p> + +<p>—Tambem m'os mandou a mim, e vinha perguntar-te se sabes o que se +passou entre teu pae e Ernesto.<span class="pn">{124}</span></p> + +<p>—Não sei.</p> + +<p>—Fosse o que fosse, a conducta d'esse rapaz não póde ser mais nobre. +Bem vês que nos offerece o quadro, porque tu bem sabes que lh'o não comprei.</p> + +<p>—Sim, é um rasgo de generosidade pouco vulgar n'um homem que não tem +outro patrimonio senão os pinceis.</p> + +<p>—Mas nós não podemos consentir em similhante offerta.</p> + +<p>—Ou pelo menos compensal-o com outra.</p> + +<p>—Dizes bem. N'este assumpto convém proceder com toda a delicadeza. +Vinha lêr-te isto mas como já lêste, retiro-me e vou vêr Ernesto. Almoçamos +juntos?</p> + +<p>—Sim, meu Fernando, espero-te aqui para me contares tudo o que +resolveres.</p> + +<p>Fernando tornou a abraçar a mulher e sahiu.</p> + +<p>Amparo ao vêr-se só, deixou-se cair n'uma cadeira e leu pela segunda vez o +jornal.</p> + +<p>—Ah! exclamou, exhalando um suspiro que brotava do mais fundo da sua +alma. Ernesto vale cem vezes mais do que eu. Causei toda a sua desgraça. O +coração tambem me diz que serei a causa da sua morte. Que Deus me perdôe o mal +que fiz a esse homem.</p> + +<p>E, cobrindo o rosto com as mãos, deu livre curso ás lagrimas.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00020000">CAPITULO XX</a></h4> + +<h2>Abnegação</h2> + +<p>Quando o conde entrou no quarto de Ernesto, acabava este de se vestir.</p> + +<p>Pallido, com o parecer cadaverico, o semblante do<span +class="pn">{125}</span> pintor tinha impressos os profundos vestigios da +enfermidade que lhe minava o peito.</p> + +<p>O conde admirou-se de o vêr levantado. Ernesto, sorrindo, veiu-lhe ao +encontro.</p> + +<p>—O medico já lhe deu auctorização para se levantar? perguntou +Fernando.</p> + +<p>—Os medicos são uns ignorantes. Se seguisse os seus conselhos, ficaria +ainda um mez na cama, mas tenho esperanças de me restabelecer d'outra maneira +sem auxilio da medicina.</p> + +<p>—Senhor Ernesto, disse o conde com voz carinhosa, ignoro o que +tenciona fazer para se curar, mas reprovo que abandonasse a cama.</p> + +<p>—O meu plano de vida é muito simples, senhor conde, reduz-se a ir +viver no monte, a respirar o ar puro e livre do campo, longe da balburdia da +cidade, do bulicio dos homens; é o remedio mais efficaz para os doentes do +peito. Em outros tempos fui um enthusiastico amador da caça. Quando o governo +me fez seu pensionista, quando parti para Roma, offereci os meus cães e as +minhas espingardas e abandonei a minha distracção favorita. Em poucos dias +adquirirei todos os apetrechos e partirei para os montes de Toledo onde conheço +um caçador de profissão, viverei com elle, caçando umas vezes, pintando outras, +e quem sabe se a vida semi-selvagem que vou emprehender me restabelecerá a +saude.</p> + +<p>O pintor procurava dissimular o cansaço que a conversação lhe causava.</p> + +<p>O conde, que o conhecia, disse com commoção:</p> + +<p>—Ernesto, offender-se-ha commigo se lhe falar com a franqueza de +irmão?</p> + +<p>—Pelo contrario, senhor conde, julgar-me-hei muito honrado.</p> + +<p>—Pois bem, o senhor crê que essa viagem, essa vida semi-selvagem, como +acaba de dizer, lhe será tão proveitosa, como diz?</p> + +<p>—Sem perceber de medicina, comprehendo que a vida do campo é muito +proveitosa aos doentes do peito.<span class="pn">{126}</span></p> + +<p>—Comtudo a vida de caçador é agitada e precisa de corpos robustos e +fortes.</p> + +<p>—Quem sabe se o meu se fortalecerá?</p> + +<p>—Duvido!</p> + +<p>—É preciso dar-se tempo ao tempo.</p> + +<p>—Mas ainda que assim seja o senhor não é rico e precisa trabalhar para +viver.</p> + +<p>—Tão pouco precisa um caçador de profissão! disse Ernesto sorrindo-se. +Álêm d'isso pintarei quadros pequenos, que, vendendo-os baratos, sempre terei +quem m'os compre; por exemplo, assumptos de caça, paisagens tiradas do natural. +Oh! tenho esperanças que nada me faltará.</p> + +<p>—Está então resolvido a emprehender essa nova vida e eu não me +opponho, mas quero propor-lhe um negocio.</p> + +<p>—Qual?</p> + +<p>—O senhor precisa de quem lhe compre os quadros que pintar.</p> + +<p>—Certamente.</p> + +<p>—Pois bem, compro-lh'os eu. Como vê não tenho muitos quadros bons nas +minhas paredes, e por isso espero que me permitta pagar-lhe o que está na +Exposição das Bellas-Artes.</p> + +<p>—Emquanto a esse creio que o senhor já leu a carta que enviei aos +jornaes, e como digo que recebi em Roma antes de concluir...</p> + +<p>—Mas isso não é verdade.</p> + +<p>—Que importa? O quadro é seu, senhor conde, e não falemos mais de +similhante assumpto. Emquanto á venda dos que pinte de futuro, isso é diverso e +não vejo inconveniente em que o senhor m'os compre.</p> + +<p>—Fixemos então desde já o preço, ficando assente que recebo todos +quantos o senhor pintar.</p> + +<p>—Isso é offerecer muito.</p> + +<p>—Compro todos. Marque preço.</p> + +<p>—Marcarei quando lh'os mandar, a não ser que o senhor me indique desde +já os assumptos e os tamanhos.<span class="pn">{127}</span></p> + +<p>—Isso fica á sua escolha.</p> + +<p>—Pois então fica desde hoje sendo o meu unico comprador.</p> + +<p>—E o senhor o meu pintor. Mas repito que é uma loucura abandonar os +recursos da capital quando a saude não esta sufficientemente restabelecida.</p> + +<p>—Pelo contrario, senhor conde, é muito conveniente abreviar a minha +partida.</p> + +<p>Fernando encolheu os hombros conhecendo que Ernesto estava firmemente +resolvido a sahir de Madrid.</p> + +<p>—Não insisto mais, apezar de lamentar que nos deixe tão depressa, +porque de amigos tão generosos, tão nobres como o senhor, é sempre custosa a +separação.</p> + +<p>—Senhor conde, antes de nos separarmos tomarei a liberdade de lhe +falar com a rude franqueza de um homem que sempre foi dominado pelos impulsos +do seu coração. Odiei-o de morte durante algum tempo. Então não conhecia o +conde de Loreto mais do que de nome; hoje é diverso: tive occasião de tratar +comsigo, de apreciar o que vale, e a minha alma, sempre generosa, arrepende-se +de haver abrigado, ainda que por pouco tempo, sentimentos perversos. A carta +que mandei aos jornaes não é outra cousa que o descargo da minha consciencia. +Preciso, pois, partir e esquecer. O senhor sabe que amei Amparo, e tambem não +ignora que ainda a amo. Tratou-me como a um bom amigo, e nada mais. Sei que são +felizes, e que se amam muito. Uma imprudencia minha esteve a ponto de destruir +toda essa felicidade, que não tem preço entre dois esposos. Reparei essa +imprudencia e tranquillizou-se um tanto a minha consciencia. O passado será um +sonho para mim, o presente, a soledade dos montes, até ao dia em que Deus +queira apagar o meu nome do grande livro dos vivos.</p> + +<p>Ernesto calou-se. O conde fixou n'elle um profundo olhar que demonstrava a +admiração que sentia ouvindo expressar-se com tão nobre franqueza, +julgando<span class="pn">{128}</span> inverosimil que na corrupta sociedade +ainda se pudesse encontrar n'um homem um rival tão generoso.</p> + +<p>—Vá, disse o conde, depois de uma pausa, parta, mas nunca esqueça que +tem em todas as occasiões que precisar um irmão, em Fernando del Villar.</p> + +<p>—Obrigado, senhor conde, não esquecerei o seu offerecimento. Peço-lhe +me desculpe para com a senhora condessa, pois não me posso despedir d'ella, e +que mande que uma das suas carruagens me leve a minha casa.</p> + +<p>—Como! Partir sem apertar a mão a minha mulher, sem lhe dizer adeus? +Não, senhor Ernesto. Julga porventura que sou um d'esses maridos zelosos e +ridiculos que desconfiam da mulher a quem deram o nome? Julga-me capaz de lhe +fazer a offensa de duvidar de si, o homem mais generoso que conheço, o melhor +dos meus amigos? Não. Amparo virá despedir-se de si; peço-lhe que não deixe +esta casa sem que assim succeda.</p> + +<p>—Não insisto mais. Já que assim deseja despedir-me-hei da senhora +condessa.</p> + +<p>—Vou eu mesmo chamal-a.</p> + +<p>O conde sahiu, murmurando em voz baixa:</p> + +<p>—Este homem venceu-me á força de generosidade.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>A condessa acabava de se pentear: estava vestida com uma simples bata +branca.</p> + +<p>Ao vêr entrar o marido exclamou:</p> + +<p>—Tu, outra vez aqui!</p> + +<p>—Sim, Amparo, venho annunciar-te a partida de Ernesto.</p> + +<p>—Não é possivel, ainda está muito doente, segundo diz o medico.</p> + +<p>—Isso mesmo lhe disse eu, mas insiste em se querer restabelecer no +campo, e está resolvido a abandonar hoje mesmo a nossa casa. Pedi-lhe que se +não fosse, sem primeiro se despedir de ti e de teu pae.<span +class="pn">{129}</span> É preciso que meu sogro, que tem mais confiança com +elle, o convença a que receba o valor do quadro que tão generosamente nos +offerece.</p> + +<p>—Será inutil; não receberá nada.</p> + +<p>—Comtudo espero que teu pae insista pela ultima vez. Não pódes +calcular o quanto me interessa esse pobre rapaz, pobre como Diogenes e generoso +como Lucullo. Fala-lhe, fala-lhe sem perda de tempo; eu, entretanto vou á loja +de Manuel Arenas fazer umas compras.</p> + +<p>Fernando tocou uma campainha e disse ao creado:</p> + +<p>—Avise o senhor Ernesto de que a senhora condessa deseja vêl-o.</p> + +<p>E depois, abraçando Amparo, continuou:</p> + +<p>—Adeus, minha amiga. Procura convencer esse tresloucado. Não me +demoro. Vou comprar umas cousas para Ernesto. É preciso presenteal-o como a um +principe que pensa em passar uma grande temporada no monte, dedicando-se a +caça.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00021000">CAPITULO XXI</a></h4> + +<h2>Abandonando Madrid</h2> + +<p>Amparo, depois do conde sahir, ficou immovel, preoccupada. Ia despedir-se de +Ernesto, talvez para não mais o vêr; ia ter uma entrevista sem testemunhas com +o homem a quem tão desgraçado fizera, e esta entrevista era proporcionada, +pedida pelo marido.</p> + +<p>Por um momento Amparo receou que aquillo fosse um laço, mas rapidamente +affastou similhante pensamento, conhecendo a nobreza com que procederam Ernesto +e o conde de Loreto.</p> + +<p>—Não, não; Fernando não póde ter ciumes; tem<span +class="pn">{130}</span> confianca absoluta, sabe que o amo com toda a minha +alma, disse Amparo, falando comsigo. Comtudo quer que me despeça de Ernesto a +quem tão desgraçado fez uma leviandade, filha do coquettismo. Devo +obedecer-lhe, ainda que me seja dolorosa esta entrevista.</p> + +<p>E como n'aquelle momento entrasse o creado para annunciar que o senhor +Ernesto esperava a condessa, Amparo encaminhou-se para o quarto do pintor.</p> + +<p>Ernesto, ao vêr entrar Amparo, pôz-se de pé, mas foi-lhe preciso encostar-se +ao espaldar d'uma cadeira.</p> + +<p>A condessa não se commoveu menos, vendo a extrema pallidez do seu antigo +apaixonado.</p> + +<p>—É verdade, senhor Ernesto, o que o meu marido acaba de me dizer? +Pensa em deixar-nos?</p> + +<p>—Senhora condessa, respondeu o pintor com uma tranquillidade que +assombrou Amparo, sinto-me muito melhor, e resolvi restabelecer-me no campo. +Dentro em pouco as brisas do outomno annunciarão o inverno, e creio que me é +conveniente fortalecer-me primeiro.</p> + +<p>—Se a sua resolução é inabalavel, não nos devemos oppôr, nem meu +marido nem eu, mas creia, senhor Ernesto, que ambos sentimos do coração que o +senhor deixe tão depressa esta casa, que podia considerar como sua.</p> + +<p>Ernesto sorriu-se amargamente, fez um movimento de indifferença com os +hombros, e ajuntou:</p> + +<p>—Ha creaturas, minha senhora, para quem o mundo é um deserto, um campo +de tristes saudades. Sósinhos na terra, vivem, sem uma affeição que os console, +sem um peito carinhoso onde possam reclinar a fronte nas horas d'amargura. Para +estes seres, a sociedade dos homens é demais, porque desconhecendo o embuste e +a falsidade, são sempre enganados; eu talvez pertença a essa desgraçada familia +de orphãos das grandes cidades. Por isso estou resolvido a nunca mais pisar as +suas ruas, por isso me vou encerrar como um selvagem nos montes de Toledo +esperando no meio d'aquelles agrestes barrancos o<span class="pn">{131}</span> +ultimo momento da minha vida, que felizmente não se fará esperar muito.</p> + +<p>Amparo inclinou tristemente a cabeça sobre o peito. As palavras eram uma +terrivel accusação, um castigo ao seu coquettismo.</p> + +<p>—Porque me não odeia, senhor Ernesto? tartamudeou Amparo. Porque me +não despreza?</p> + +<p>—Senhora, a minha alma não póde nem odiar, nem desprezar, nem +esquecer. As noites de Florença e de Roma imprimiram n'ella uma impressão +demasiadamente profunda.</p> + +<p>A condessa comprehendeu que a conversa ia seguindo um rumo perigoso.</p> + +<p>—Pois bem, senhor Ernesto, disse, peço-lhe em nome da amizade que +apague da memoria essas noites.</p> + +<p>—Impossivel; é uma recordação que faz parte da minha vida; e por assim +dizer a minha segunda natureza. Quando der o ultimo suspiro, quando deixar de +existir, então, sim, então é que se extinguirá do meu peito.</p> + +<p>—Mas sente-se assim tão doente? perguntou Amparo, que, aturdida ante +as sentidas recriminações do pintor, não sabia que dizer.</p> + +<p>—Quem sabe se serei um d'esses ridiculos apprehensivos que á força de +pensarem na morte sempre d'ella vão escapando!</p> + +<p>E sorrindo com um ar triste, continuou:</p> + +<p>—O ar saudavel das montanhas talvez me restabeleca.</p> + +<p>E puxando o cordão da campainha, disse a um creado:</p> + +<p>—Diga ao senhor D. Ventura que me vou embora immediatamente e que o +espero para me despedir.</p> + +<p>Amparo, ante aquella resolução inesperada, que punha fim á entrevista de uma +maneira brusca, levou as mãos á cara para occultar as lagrimas que lhe fôra +impossivel suster.</p> + +<p>—Póde-me odear, se assim lh'o apraz, disse a condessa; mereço-o, +porque não ha palavra com que possa desculpar o meu procedimento.<span +class="pn">{132}</span></p> + +<p>E sahiu precipitadamente do quarto.</p> + +<p>—Ah! exclamou Ernesto, vendo-a sahir. Não posso esquecer esta +mulher!...</p> + +<p>Deixou-se cair n'uma cadeira, como se o abandonassem as forças para +suster-se de pé.</p> + +<p>Em vão D. Ventura procurou persuadir Ernesto de que a vida de caçador +montez, quando se carece de saude, é uma temeridade. O pintor estava resolvido, +e sahiu de casa do conde.</p> + +<p>Quando chegou a sua casa da rua do Prado, quando os seus amigos André e +Marcial o viram entrar pallido como um cadaver e fraco como um convalescente, +depois de oito dias de ausencia, não puderam conter um grito de assombro.</p> + +<p>Ernesto explicou-lhes a ausencia e participou-lhes o plano que concebêra +para se curar.</p> + +<p>N'aquella mesma noite escreveu uma carta a Mauricio, caçador de profissão, +que vivia nos montes de Toledo.</p> + +<p>Tres dias depois, Mauricio respondeu a Ernesto, offerecendo-lhe a sua casa, +participando-lhe que se casára, e que, por conseguinte, podia estar com alguma +commodidade.</p> + +<p>Ernesto fôra caçador n'outros tempos, antes de partir como pensionista para +Roma. Era d'aquella epocha que conhecia Mauricio, com quem entrára em algumas +caçadas.</p> + +<p>Resolvido a emprehender a viagem, principiou a dispôr tudo, isto é, pôz n'um +caixote alguns quadros, o cavallete, a caixa das tintas e os pinceis; n'outra +metteu alguns livros de estudo e de recreio.</p> + +<p>Só lhe faltavam os apetrechos de caça, quando uma manhã em que se dispunha a +sahir para comprar todos esses artigos, viu entrar o mordomo do conde de +Loreto, seguido de dois creados que traziam duas caixas e dois bellos cães +inglezes, um Setter e outro Pointer.</p> + +<p>O mordomo avançou com o seu costumado ar grave, e, entregando uma carta a +Ernesto, disse-lhe:</p> + +<p>—Meu amo, o senhor conde de Loreto, manda-me<span +class="pn">{133}</span> entregar esta carta, estas caixas e estes cães, ao +senhor, encarregando-me de lhe pedir o desculpe de não vir pessoalmente, mas +é-lhe inteiramente impossivel.</p> + +<p>A um signal do mordomo, os creados arriaram no chão as duas caixas e +amarraram os cães ao pé de uma mesa.</p> + +<p>—Creio que o senhor não deseja mais nada, ajuntou o mordomo, vendo que +Ernesto guardava silencio.</p> + +<p>—Diga ao senhor conde que lhe agradeço reconhecidissimo a offerta que +se digna fazer-me, e que lhe falarei ou escreverei antes de partir.</p> + +<p>O mordomo cumprimentou e sahiu seguido dos creados.</p> + +<p>Então Ernesto fez uma caricia aos cães, que se acercaram, meneando a cauda, +e exclamou:</p> + +<p>—Aqui estão os meus novos amigos. Oh! Estes sim, que não me +venderão!</p> + +<p>E sentando-se n'uma cadeira, abriu a carta do conde e leu:</p> + +<p> </p> + +<p>«Meu bom amigo</p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p>«Deixou-me com o quadro de Esther uma recordação que conservarei emquanto +viver; permitta-me que lhe remetta tambem como uma lembrança, os meus melhores +cães e algumas armas e objectos que podem ser de muita utilidade no campo. </p> + +<p>«Carlos <small>I</small> de Inglaterra offereceu a Rubens, em pleno +parlamento, a espada que levava cingida á cinta, um diamante que trazia no dedo +e uma banda de diamantes que lhe cruzava o peito. Tudo isto foi a paga do +magnifico retrato d'aquelle monarcha que mais tarde tão maus boccados fez +passar a Luiz <small>XVI</small>. Permitta, pois, que eu, sem ser rei, tome a +liberdade de offerecer alguns apetrechos de<span class="pn">{134}</span> caça, +de pouco valor, e não esqueça que espero com anciedade noticias da sua saude e +algum quadro dos que me prometteu. </p> + +<p>«Minha mulher e meu sogro cumprimentam-n'o e desejam vêl-o brevemente em +Madrid restabelecido da sua doença </p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small +class="SMALL">Seu amigo</small></p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Fernando del +Villar.</i>»</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>Ernesto leu duas vezes a carta, e, soltando um suspiro, murmurou em voz +baixa:</p> + +<p>—Eis-me amigo do conde de Loreto, de um homem com quem estive a ponto +de me bater.</p> + +<p>Ernesto abriu as caixas, encontrando n'ellas tudo quanto póde necessitar no +campo um caçador de dinheiro.</p> + +<p>Só a mão de uma pessoa intelligente teria sido capaz de reunir todos +aquelles objectos.</p> + +<p>Ernesto encontrou duas espingardas, uma de Scotte de dois canos, do systema +Lefaucheux, outra de Greener para tiro de bala, uma excellente botica de +viagem, uma barraca de campo, uma mala de couro da Russia com quinhentos +cartuchos carregados com chumbo, e outra com duzentos carregados com bala; um +fato completo de camurça, botas de cautchouc, facas de matto, um rewolver +Flaubert de doze tiros, com ornamentações de ouro, um estojo com todas as peças +em prata, duas mantas inglezas e varios artigos todos diversos e uteis.</p> + +<p>Indubitavelmente o conde de Loreto gastára mais de cinco mil duros com o +presente.</p> + +<p>Ernesto contemplou tudo com profunda melancholia.</p> + +<p>—É preciso acceitar, disse. Ia para Toledo com um equipamento mais +modesto. Emfim, tanto melhor para o pobre Mauricio, que se se portar bem, será +o meu herdeiro no dia em que eu morrer.<span class="pn">{135}</span></p> + +<p>Como se vê, Ernesto, não deixava nem um só momento a ideia da morte.</p> + +<p>N'aquella noite Ernesto escreveu a seguinte carta:</p> + +<p> </p> + +<p>«Senhor conde</p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p>«A opportunidade produz sempre bom resultado no animo impressionavel das +creaturas. Dispunha-me a sahir de casa com tenção de comprar alguns apetrechos +de caça, quando vi entrar o seu creado com o que me enviou.</p> + +<p>«Sem ter nada de Pedro Paulo Rubens, não agradecerei menos os presentes que +me fez, do que agradeceu o pintor flammengo os donativos de Carlos +<small>I</small>. </p> + +<p>«Obrigado, pois, senhor conde, pela sua delicada offerta. Ámanhã parto e +talvez nos não tornemos a vêr, apezar dos bons desejos que têem pelo meu +restabelecimento. Ha doenças que cada hora qua passa nos leva uma parte da +existencia, são as incuraveis; e a minha é d'essas que se chamam de morte. </p> + +<p>«Não é o medo nem a apprehensão que me fazem dizer isto; sei bem qual é o +mal que me consome, e só terei illusões, quando tiver sido tocado pelos dedos +gelados da morte. Deus quer que os doentes do peito sonhem com a vida nos +ultimos momentos. </p> + +<p>«Adeus, senhor conde. Em breve lhe enviarei por pessoa da minha confiança o +primeiro quadro que pintar, e assim o irei fazendo successivamente, mas não +receio, que a collecção seja muito grande. </p> + +<p>«Cumprimentos á senhora condessa e ao senhor D. Ventura, e não esqueça este +desterrado voluntariamente, que prefere a solidão do campo ao ruido e bulicio +dos homens.</p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small +class="SMALL">«Sempre seu amigo</small></p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Ernesto +Alvarez.</i>»<span class="pn">{136}</span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p>No dia seguinte, Ernesto, depois de fazer varias compras, entre as quaes se +contava um vestido para a mulher de Mauricio, despediu-se dos amigos e entrou +n'uma carruagem de primeira para Toledo.</p> + +<p>Ernesto possuia por uma unica fortuna, ao partir de Madrid, dez mil reales +que lhe produziram os objectos e quadros que vendeu.</p> + +<p>Álêm dos quinhentos duros e dos presentes do conde de Loreto, levou uma +grande caixa com garrafas de champagne, rhum, cognac, aguardente e bom café.</p> + +<p>—Esta caixa será a minha alegria, disse Ernesto, sorrindo-se para os +amigos. O rhum concilia o somno e o champagne alegra os pensamentos.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>Mauricio esperava-o em Toledo.</p> + +<p>Carregou-se toda a bagagem em varios animaes e partiram para os montes, onde +o caçador morava.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00022000">CAPITULO XXII</a></h4> + +<h2>Vida de recordações</h2> + +<p>A mulher de Mauricio não conhecia Ernesto; mas vendo-o chegar com o marido e +toda aquella bagagem, disse:</p> + +<p>—É um principe que entra para nossa casa.</p> + +<p>E effectivamente, o pintor foi para aquelle honrado casal tanto como um +principe, a julgar pela generosidade com que pagava os serviços que recebia.</p> + +<p>Petra ficou louca de contentamento, vendo sobre uma cadeira o presente que +Ernesto lhe trouxera, e que constava de um vestido de lã, um lenço de seda e +uns brincos de ouro e coral.</p> + +<p>Mauricio examinava tambem com satisfação uma<span class="pn">{137}</span> +espingarda de dois canos, de fabrico belga, e uma forte e boa faca de matto.</p> + +<p>—Mauricio, disse Ernesto, depois de entregar os presentes; estou muito +doente e venho passar algum tempo comtigo. Sei que vives da caça. Nomeio-te meu +caçador, e dou-te um duro por dia. Aqui tens adeantadamente dois mezes.</p> + +<p>Ernesto pôz na mesa sessenta duros.</p> + +<p>Mauricio e Petra olharam para o dinheiro, sem comprehenderem uma palavra de +tudo aquillo.</p> + +<p>—A caça que matarmos, exceptuando algumas peças que Petra cosinhará, é +tua e pódes vendêl-a e guardar o dinheiro. Eu comerei com vocês. Nada de +cerimonias, o modesto cosido e uma vez por outra uma perdiz com molho de villão +ou um coelho á caçadora, de que muito gósto, e por isso para prato darei doze +reales diarios. O café e o vinho ficam por minha conta. Por agora aqui têem +esse caixote, onde estão varias garrafas. Preciso que me cedam a sala, porque +tenciono pintar alguns boccados. Tambem virei a precisar que de vez em quando +vás a Madrid levar os quadros que pintar e comprar varias cousas que me tornem +mais ameno este deserto. Emfim, meu caro Mauricio, sei que vou dar-te muitos +incommodos, que vaes ter muitos carinhos para commigo, mas eu procurarei +recompensar-te o melhor que puder.</p> + +<p>—Offerece-me muito, disse o caçador, visto poder vender uma parte da +caça que matarmos, e então com o senhor que atira tão bem ou melhor do que +eu!...</p> + +<p>—Mas estou doente, e já não tenho as infatigaveis pernas d'outros +tempos; e muitos dias deixaremos de matar por causa d'ellas.</p> + +<p>Durante aquelle dia, Ernesto, Mauricio e Petra occuparam-se em arrumações, +transformando a sala em atelier para o pintor.</p> + +<p>—Agora, meus amigos, só me falta advertil-os d'uma cousa, disse +Ernesto. Estou doente, e como todos os doentes tenho as minhas rabugices. +Quando<span class="pn">{138}</span> estiver no meu quarto, depois de me +chamarem duas vezes para comer e eu não vier, comam sem esperarem por mim.</p> + +<p>Mauricio e Petra notaram que Ernesto estava muito pallido e com mau parecer, +que tinha uma tosse tão sêcca e importuna que não prophetisavam nada de +agradavel para o seu hospede.</p> + +<p>Quando Mauricio e sua mulher recolheram ao quarto, ella disse:</p> + +<p>—Uhn! Parece-me que o senhor Ernesto não viverá por muito tempo.</p> + +<p>—O mesmo penso eu.</p> + +<p>—Sabes, Mauricio, que me parece que deve haver algum mysterio em tudo +isto?</p> + +<p>—Anh! As mulheres não pensam n'outra cousa. Aqui não ha outro mysterio +senão que o senhor Ernesto está doente e que se vem restabelecer.</p> + +<p>—Seja como fôr, que seja bem vindo, porque com elle veiu a fortuna.</p> + +<p>Mauricio não respondeu. Como a mulher, suspeitára que algum desgosto +atormentava o seu hospede, mas mais prudente que Petra, disse de si para +comsigo:</p> + +<p>—Dêmos tempo ao tempo que saberemos a verdade. Emfim, seja como fôr, +Ernesto é bom rapaz e sinto-me satisfeito por vêl-o em minha casa.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>Ernesto estava fechado no quarto. Seriam onze horas da noite. O luar entrava +pela janella que se conservava aberta. A brisa nocturna levava até elle, de +envolta com as suas invisiveis pregas, o perfume das silvestres plantas do +monte.</p> + +<p>Aos pés da cama, sobre duas pelles de carneiro, dormiam os dois cães que +Ernesto baptisára com os nomes de Roma e Florença.</p> + +<p>O pintor, sentado junto de uma mesa, tinha na sua frente uma garrafa de +cognac e um copo.</p> + +<p>Não illuminava o quarto outra luz senão a do astro da noite.<span +class="pn">{139}</span></p> + +<p>De vez em quando Ernesto bebia um gole de cognac e levava a mão ao peito, +respirando com difficuldade.</p> + +<p>—Ah! Sim, sim, dizia, falando comsigo. A solidão dos montes, é o que +me convêm, porque longe da importuna charlatanice dos homens poderei dedicar a +ella todos os momentos da minha vida. Quizera apagar da minha alma a recordação +d'aquellas noites de Florença e arrancar dos meus labios o beijo de fogo que me +queima o coração. Mas é impossivel! Cada vez a amo mais. Que seja feliz já que +eu o não posso ser!</p> + +<p>Ernesto bebeu de um só trago o conteúdo que ainda tinha no copo e encheu-o +novamente.</p> + +<p>—A embriaguez sempre me repugnou, continuou, mas é o meu unico recurso +para esquecer. Que feliz é o homem que esquece!</p> + +<p>E Ernesto esvasiou o segundo copo, fazendo um gesto de repugnancia; mas +dominando-se a si mesmo encheu-o pela terceira vez, despejando-o +rapidamente.</p> + +<p>—Abraza-se-me a garganta, murmurou, mas é preciso que durma e que +esqueça.</p> + +<p>E, levantando-se tirou uma garrafa de champagne do armario onde as arrumára, +fez-lhe saltar a rolha, e bebeu com avidez, dizendo:</p> + +<p>—Este é que é o grande vinho! Vinde, sonhos côr de rosa! Vinde, ainda +que seja uma mentira, uma illusão, fumo que desappareça ao sopro terrivel da +realidade!</p> + +<p>E depois de exgotar a garrafa, deixou-se cahir na cama, onde não tardou +muito que adormecesse, porque estava completamente embriagado.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>Mauricio e Petra levantaram-se com o sol, e viram, com grande assombro, ao +passarem pelo quarto de Ernesto, que as janellas estavam abertas.</p> + +<p>—Sahiria tão cedo? disse Mauricio.</p> + +<p>E entrou no quarto.</p> + +<p>Ernesto dormia. Mauricio fechou a janella e sahiu<span +class="pn">{140}</span> nos bicos dos pés para o não despertar, mas toda a +precaução foi inutil, porque Ernesto abriu os olhos e viu-o.</p> + +<p>—Ah! És tu? disse elle. Bons dias, Mauricio. Que bem que dormi.</p> + +<p>Mauricio reparou então que o seu hospede não se despira, e que sobre a mesa +estavam duas garrafas despejadas.</p> + +<p>—Sabes, Mauricio, que estou com vontade de experimentar os meus +cães?</p> + +<p>—Podemos dar uma volta, se quizer.</p> + +<p>—Mas é preciso ter alguma contemplação.</p> + +<p>—Andaremos só o que quizer.</p> + +<p>—Então vamos.</p> + +<p>E Ernesto poz a cartucheira, pegou na espingarda e chamou os cães.</p> + +<p>A uns quinhentos passos de casa, Roma e Florença levantaram os focinhos e +moveram a cauda com mais viveza do que a usual.</p> + +<p>—Parece que os cães se sentem satisfeitos, disse Ernesto.</p> + +<p>—Têem bom faro. Já sabem que este terreno é muito abundante de caça; e +estou crente que algum dia vou encontrar as perdizes dentro de minha casa.</p> + +<p>Os cães deram signal: Roma todo curvado com o focinho junto ao matto, +Florença extendido. Roma encontrára uma peça de surpreza e Florença o rasto +verdadeiro.</p> + +<p>Um bando de perdizes levantou-se então com estrepito do meio do matto á +investida dos cães.</p> + +<p>Mauricio disparou, matando com o segundo tiro um perdigoto. Ernesto ia tão +distrahido que não teve tempo de fazer fogo.</p> + +<p>Desde o rei ao batedor, desde o caçador ao armador, todos quantos abandonam +as commodidades da sua casa e se dedicam aos prazeres da caça, são inimigos +irreconciliaveis da perdiz; por isso a natureza a dotou com uma vista melhor +que a do lynce, de um ouvido superior ao da lebre, e de um instincto de +conservação tão grande que não ha animal que lhe ganhe.<span +class="pn">{141}</span></p> + +<p>Se a perdiz fosse tão dorminhôca como o arganaz e tão indolente como a +codorniz, teria desapparecido do reino animal antes de se inventar a +polvora.</p> + +<p>O arganaz tem, comtudo, tanto engenho como somno; diga o ardil +maravilhosamente inventado por elle para apanhar o incauto passarinho que vae +pôr sobre elle, satisfeito por ter encontrado um ninho onde guardar os ovos.</p> + +<p>Mas deixemos esta digressão. Se algum dia as minhas occupações permittirem, +escreverei um livro para os caçadores que contenha a parte agradavel e ridicula +da caça, consignada na pratica de muitos annos de experiencia passados na +agreste e grata solidão dos montes.</p> + +<p>Voaram as perdizes, surprehendidas no seu doce bem-estar, á sombra de um +sobreiro, e como o violento e rapido vôo da perdiz excita e põe nervoso o +caçador aficcionado, Mauricio exclamou:</p> + +<p>—Vamos a ellas, senhor Ernesto.</p> + +<p>—Sim, sim, vamos, já que não disparei.</p> + +<p>Mauricio esqueceu n'aquelle momento que levava por companheiro um doente +fraco, e foi depressa, ou melhor dizendo, a correr pela encosta de um +barranco.</p> + +<p>Ernesto fez esforços para o seguir mas a meio caminho largou a espingarda, +extendeu os braços e cahiu desamparado. Tinha desmaiado.</p> + +<p>Mauricio deteve-se assustado, pegou no seu hospede ao collo e deitou a +correr até casa, que não era longe. Petra ao vêl-o entrar, trazendo Ernesto nos +braços, não poude conter um grito.</p> + +<p>Mauricio continuou o seu caminho e deitou Ernesto na sua cama, o qual, pouco +depois, abriu os olhos, enviando um sorriso de agradecimento ao caçador.</p> + +<p>—Diabo! Que susto que me pregou, senhor Ernesto! Julguei que se +despenhava pelo barranco.</p> + +<p>—Bem vês, Mauricio, que não presto para nada, nem mesmo para caçar. Já +estou melhor. Mas em quanto não estiver em estado de te acompanhar, +dedicar-me-hei<span class="pn">{142}</span> a caça de espera. Agora +tranquilliza-te, hoje em vez de caçar, pintarei. É preciso matar o tempo.</p> + +<p>Uma hora depois, Ernesto mais alliviado, tomava algum alimento e punha uma +tela n'um cavallete.</p> + +<p>Pensou alguns minutos qual o assumpto de que trataria primeiro, e acabou por +decidir-se, esboçando a scena que pouco antes succedêra no barranco.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00023000">CAPITULO XXIII</a></h4> + +<h2>Uma caçada</h2> + +<p>Durante oito dias Ernesto não tornou a pegar na espingarda. De manhã, +pintava, á tarde, seguido pelos cães dirigia-se a um monte proximo de casa, +sentava-se na parte mais alta e como gozava disfructando o panorama que aquelle +sitio apresentava, passava largas horas immovel como uma estatua.</p> + +<p>Algumas vezes, já noite, Mauricio ia buscal-o e ambos regressavam a casa.</p> + +<p>Ao nono dia, Ernesto chamou Mauricio.</p> + +<p>—Desejo que vás a Madrid, disse-lhe, entregar este quadro á pessoa que +te indicarei, mas preciso primeiro que matemos um javali, para offerecer á +mesma pessoa.</p> + +<p>—Para isso é preciso fazermos uma espera toda a noite, e como o senhor +está muito fraco...</p> + +<p>—Não te inquietes com a minha fraqueza; esperaremos. Preciso de um +javali.</p> + +<p>—Posso matal-o sósinho, se quizer.</p> + +<p>—Não, não; quero acompanhar-te. Quando póde ser?</p> + +<p>—Esta noite; sei onde se vae banhar uma manada d'elles, e é infallivel +matar-se algum.<span class="pn">{143}</span></p> + +<p>—Um só chega.</p> + +<p>—Pois matar-se-ha.</p> + +<p>—Então prepara tudo para esta noite.</p> + +<p>—Devo advertil-o de que o sitio onde vamos fazer a espera, fica a tres +quartos d'hora de caminho d'aqui.</p> + +<p>—Não faz mal, iremos com antecedencia. Sahiremos cedo.</p> + +<p>—Bem, bem.</p> + +<p>Mauricio sahiu do quarto de Ernesto, meneando a cabeça em signal de +desgosto, chegou á cosinha, onde estava sua mulher, e disse-lhe:</p> + +<p>—Petra, esta noite o senhor Ernesto quer que vamos á espera dos +javalis: tem desejos de matar um. Por isso cearemos uma hora antes de pôr o +sol. Talvez não voltemos em toda a noite.</p> + +<p>—Mas isso é uma loucura. O sr. Ernesto não está em estado de passar +tantas horas ao relento da noite.</p> + +<p>—Então que queres, embirrou que me ha de acompanhar!</p> + +<p>—Mas não acho bôa a vida que leva para quem precisa +restabelecer-se.</p> + +<p>Mauricio encolheu os hombros, e, sentando-se num banco, enrolou um +cigarro.</p> + +<p>—Estamos em quarto minguante. Para matar uma ou duas peças é preciso +ir aos charcos do barranco da Culebra, pois vão ali de noite beber agua e +fossar no barro. O caminho não é dos melhores. Queira Deus que possa lá +chegar.</p> + +<p>—Já lhe disseste isso? Porque não vae a cavallo?</p> + +<p>—Já, mulher, já; mas diz que quer ir a pé e quando elle teima não ha +outro remedio senão obedecer.</p> + +<p>Petra approximou-se do marido, e, baixando a voz, disse:</p> + +<p>—Dize-me, Mauricio. Tu conhécel-o ha muito tempo?</p> + +<p>—Sim, cacei com elle muitas vezes e sempre foi o melhor e o mais +generoso homem do mundo.</p> + +<p>—E tinha o vicio que tem agora?<span class="pn">{144}</span></p> + +<p>—Não, Petra, antigamente não bebia bebidas brancas, bebia sómente +vinho, e isso mesmo pouco. Hoje, como sabes, quasi todas as noites...</p> + +<p>Mauricio deteve-se, dirigiu um olhar para a porta, e depois continuou:</p> + +<p>—Hontem reprehendi-o amigavelmente, dizendo-lhe que não lhe podia +fazer bem beber tanto rhum, e elle, pondo-me uma mão no hombro, e sorrindo-se +com expressão bondosa, respondeu-me:</p> + +<p>—Caro Mauricio, ha dôres tão terriveis, desgostos tão profundos, que +para os esquecer algumas horas é preciso embriagarmo-nos. A minha doença não +tem cura; deixa-me, pois, beber, esquecer, dormir.</p> + +<p>—Quando eu disse que havia aqui algum mysterio!... disse Petra.</p> + +<p>—Tambem me parece que tens razão; aqui deve haver mysterio.</p> + +<p>—Sabes o que calculo? Que tudo isto deve ser obra de mulher.</p> + +<p>—E porque calculas que seja obra de saias?</p> + +<p>—Vaes vêr. Outro dia entrei no quarto para o tratar, como de costume, +e encontrei debaixo da almofada uma fita de seda, e um boccado de tela, onde +estava pintada uma cabeça de mulher extremamente formosa. Não tive tempo para +mais do que olhar rapidamente para estes objectos e tornal-os a pôr no mesmo +sitio em que os encontrei quando o vi entrar, precipitadamente, dirigir-se para +a cama, pegar n'elles e sahir do quarto do mesmo modo, olhando-me de um modo +estranho, como se quizesse adivinhar se eu tinha visto. Fiz-me desentendida, e +continuei arrumando o quarto.</p> + +<p>—Que curiosas são as mulheres.</p> + +<p>—Juro-te que só por casualidade...</p> + +<p>—Emfim, seja como fôr, visto que elle nada nos disse, nos não lh'o +devemos perguntar.</p> + +<p>Como se vê a conducta de Ernesto causava viva curiosidade ao honrado +casal.<span class="pn">{145}</span></p> + +<p>Ao cair da tarde Ernesto e Mauricio levantaram-se da mesa.</p> + +<p>—Levamos Roma e Florença? perguntou o pintor.</p> + +<p>—Parece-me melhor deixal-os em casa, respondeu Mauricio; não estão +costumados ás esperas, e poderão espantar-nos a caça. Levarei antes o meu +podengo para que procure a presa no caso de ficar ferida. <i>Currito</i> (assim +se chamava o cão de Mauricio) deita-se a meus pés e não se move d'ahi.</p> + +<p>—Vamos quando quizeres.</p> + +<p>Mauricio carregou com escrupuloso cuidado a espingarda e guardou um frasco +de rhum no bolso. Ernesto pegou na sua e sahiram.</p> + +<p>O sol começava a declinar.</p> + +<p>—Temos tempo, disse Mauricio. D'aqui até aos charcos levaremos quando +muito tres quartos de hora. Reconheci esta manhã o terreno e calcúlo pelas +pégadas que são uma femea com sete a oito filhos, e dois machos que não devem +ter menos de dez annos. Os machos veem sós, antes ou depois da femea. Parece-me +que nos divertiremos, mas é preciso ter muita paciencia, porque apezar de todas +as rezes abandonarem as tocas quasi á mesma hora, umas estão mais longe do que +outras do barranco e chegam por conseguinte mais tarde. Tenha cuidado em fazer +fogo sobre a peça antes d'ella entrar n'agua. Se cair morta fique quieto, +porque quando o charco estiver silencioso, em poucos minutos +apresentar-se-nos-ha outra, e assim successivamente se podem disparar alguns +tiros durante a noite. O sitio onde vamos é bom, e estaremos perfeitamente +collocados.</p> + +<p>Ernesto ouvia satisfeito as lições que lhe dava aquelle homem +experimentado.</p> + +<p>Mauricio que como todo o caçador de profissão tinha uma vista privilegiada, +deteve-se, inclinou-se para reconhecer o caminho, e disse:</p> + +<p>—Ola! Por aqui passou um veado de <i>dez pontas novas</i>; aqui ha +pégadas recentes; os córtes na herva<span class="pn">{146}</span> são frescos. +A femea caminhava mais á direita: passou por aqui.</p> + +<p>—Mas como diabo conheces se é femea ou macho? perguntou Ernesto, +admirado da certeza com que Mauricio falava.</p> + +<p>—Isso salta bem a vista. Um montanhez practico nunca se engana. O +veado tem o passo maior do que a corça, e deixa a pégada mais profunda, caminha +com mais regularidade, e colloca a pata trazeira sobre a pégada da pata +deanteira. A corça tem o pé mal feito, os seus passos são mais curtos, e por +conseguinte, não chega com as patas trazeiras ás pégadas das patas deanteiras. +Emquanto ao conhecimento pelas pégadas, é unicamente devido á grande practica. +Quando se segue um rasto pelas pégadas, o caçador deve conhecer se o veado que +persegue é <i>estaquero</i>, isto é, se lhe começam a sahir os paus, tem um +anno; <i>enodis</i>, tem tres a quatro annos, <i>diez condiles nuevos</i>, se +entrou nos seis annos, ou <i>ciervo viejo</i>, se tem mais de dez annos. A +estes conhece-se facilmente; têem os pés deanteiros mais desenvolvidos do que +os trazeiros.</p> + +<p>Depois d'estas explicações que deixaram Ernesto satisfeito, receou não as +poder pôr em practica sem commetter grandes erros.</p> + +<p>De vez em quando o caçador dirigia um olhar furtivo ao seu companheiro, cuja +pallidez e difficil respiração o inquietavam.</p> + +<p>A meio da ladeira, que tinham que transpôr para chegarem aos charcos, +situados em um dos barrancos, Mauricio deteve-se e disse com manifesto +interesse:</p> + +<p>—Senhor Ernesto, vejo que está muito cançado. Quer encostar-se ao meu +braço?</p> + +<p>—Não preciso, mas vamos mais devagar, se te parece.</p> + +<p>Como quizer.</p> + +<p>Quando chegaram ao cume, Ernesto teve necessidade de se sentar e, encostando +os cotovellos sobre os joelhos, deixou cahir a fronte entre as mãos.<span +class="pn">{147}</span></p> + +<p>O caçador não disse nada; de pé, immovel, ficou contemplando Ernesto com +tristeza.</p> + +<p>Mauricio não tinha palavras, mas sobrava-lhe coração para compadecer-se do +seu hospede, a quem julgava gravemente enfermo.</p> + +<p>—Podemos continuar, disse Ernesto, levantando-se.</p> + +<p>—Agora o caminho é mais facil, respondeu Mauricio. Os charcos estão +n'esse barranco; antes de um quarto de hora estaremos commodamente sentados nos +nossos postos.</p> + +<p>Mauricio seguiu por uma vereda aberta entre a matta. Ernesto caminhava +atraz.</p> + +<p>De vez em quando o caçador voltava a cabeça para vêr se o seu companheiro o +seguia.</p> + +<p>Quando chegaram aos charcos ainda restavam alguns instantes de dia. As +magestosas sombras da noite avançavam com rapidez, mas a lua ia rapidamente +tornal-as menos escuras, pois o seu disco despontava já no horisonte.</p> + +<p>—Parece-me conveniente que fiquemos juntos, porque assim quando +estiver cançado voltaremos para casa, disse Mauricio.</p> + +<p>—Mas mataremos menos caça.</p> + +<p>—Quem sabe! Podem entrar juntas e então cada qual escolhe a sua.</p> + +<p>Mauricio conhecia varios esconderijos em torno do charco e escolheu, pelas +recentes pégadas dos javalis, o que lhe pareceu melhor; dobrou o capote, e +estendeu-o no chão para que Ernesto estivesse mais commodamente e esperaram +calados.</p> + +<p>A noite é mais magestosa, mais imponente, mais bella no meio do Oceano ou +n'uma montanha, do que nas ruas de Madrid. Nas grandes cidades vê-se por toda a +parte a mão do homem, mas no mar ou na montanha vê-se a de Deus.</p> + +<p>Ernesto e Mauricio esperavam no mais profundo silencio. O pintor +entretinha-se contemplando o magnifico astro da noite que subia magestosamente +pelo céu enchendo o espaço de poetica e melancholica luz,<span +class="pn">{148}</span> que cahindo como chuva de perolas sobre as armadas das +arvores e sobre as silenciosas aguas do charco, dava um tom encantador á +paisagem.</p> + +<p>Ernesto, como pintor, pensava em fazer um estudo d'aquelle logar e pintar +depois um quadro; mas ao mesmo tempo pensava na mulher do homem que se +compromettera a comprar-lhe tudo quanto pintasse durante a sua estada nos +montes de Toledo.</p> + +<p>A presença da lua, o imperceptivel movimento das ramadas dos azinheiros, o +silencio da noite que o rodeava, fizeram-lhe recordar Florença. Fechou os olhos +para sonhar acordado, e os seus labios entreabriram-se em doce extasis, como se +fôsse a dar e receber um apaixonado beijo de amor.</p> + +<p>N'aquelle momento para elle não existia mais do que o presente. A sua vida +era uma recordação; a sua alma apaixonada apresentava-lhe com todas as côres da +verdade as scenas apaixonadas e perdidas para sempre, causa da sua desgraça, +origem da sua morte.</p> + +<p>Se tivesse entrado no charco um bando de cincoenta rezes, Ernesto não +ouviria; mas, felizmente tinha ao seu lado Mauricio, caçador de profissão, que +sem ter a imaginação preoccupada com outra cousa que não fosse o fim para que +fôra até alli, estava com o olhar fixo, o ouvido attento e a espingarda prompta +a despedir a morte e como o verdadeiro caçador que quando faz uma espera tem o +ouvido e a vista tão perspicaz como a da perdiz, e por isso sem duvida Ernesto +sentiu que o seu companheiro lhe tocava no braço.</p> + +<p>Ernesto abriu os olhos.</p> + +<p>—Acorde, que já as ouço.</p> + +<p>—Não estou a dormir, respondeu o pintor, mas não ouço nada.</p> + +<p>—Pois já se approximam, tenha a certeza, ainda estão longe, e são +femeas; conhecem-se pelo barulho que fazem. Os machos veem sempre mais +silenciosos.</p> + +<p>Ernesto applicou o ouvido, e, depois de um segundo<span +class="pn">{149}</span> de immobilidade, meneou a cabeça dizendo:</p> + +<p>—Pois eu não ouço nada.</p> + +<p>—Sim? Pois tenha paciencia que não tardará muito que tenha de tapar os +ouvidos, porque a musica d'ellas, quando andam em manadas, não é por certo das +mais agradaveis. Veem a entrar por aquella clareira que está na nossa frente. +Antes de se metterem n'agua, de que tanto gostam, param para conhecerem o +terreno. Então deve fazer fogo, apontar á maior que ficar a sua esquerda; eu +entreter-me-hei com a direita a vêr se, disparando ao mesmo tempo, matamos +duas.</p> + +<p>E Mauricio, collocando o bico do pé esquerdo sobre o de Ernesto, disse:</p> + +<p>—Quando carregar com o meu pé, faça o <i>gosto ao dedo</i> e faça +fogo. E agora silencio que já estão perto.</p> + +<p>Dois minutos depois, Ernesto ouvia a algazarra que Mauricio lhe +annunciára.</p> + +<p>Esperaram, pois, pelo momento opportuno que se não devia fazer esperar +muito.</p> + +<p>No sitio que Mauricio indicára appareceu de repente uma femea muito grande +seguida de seis javalis pequeninos cujas desegualdades de tamanho indicavam ser +de duas ninhadas differentes.</p> + +<p>Ernesto pudéra ter feito fogo á femea; estava uns cinco passos afastada dos +filhos, levantando a cabeça em direcção aos charcos.</p> + +<p>O pintor olhou para o seu companheiro como que a interrogál-o, mas o caçador +indicou com um movimento de olhos que esperasse. E effectivamente a uns vinte +metros de distancia do logar em que estava a femea, abriu-se uma clareira e +appareceu um javali quasi do dobro do tamanho da femea.</p> + +<p>A lua estava tão clara que os caçadores viram perfeitamente os animaes.</p> + +<p>Ernesto sentiu o pé de Mauricio comprimir o seu, e como tinha a espingarda +apontada, disparou.</p> + +<p>As duas detonações produziram no espaço um só echo.<span +class="pn">{150}</span></p> + +<p>A bala de Mauricio foi tão bem apontada que o javali deu um salto, caindo +sem vida depois de soltar um grunhido de raiva. A femea, a que Ernesto apontára +foi ferida na cabeça; deu duas voltas, quiz fugir, mas foi cair junto ao +charco; depois fez um esforço supremo, levantou-se novamente, entrou na agua +para tornar a cair revolvendo-se nas ancias da morte, soltando grunhidos +desesperados que pouco a pouco foram enfraquecendo.</p> + +<p>Os demais tinham desapparecido como por encanto.</p> + +<p>Mauricio ouvia as palpitações do coração de Ernesto cujo ruido e +precipitação o assustaram.</p> + +<p>—Está peor? lhe perguntou.</p> + +<p>—Não, não; é o prazer que experimento n'este momento. Se tornasse a +renascer em mim a paixão da caça, talvez esquecesse uma historia que me +assassina, que será a causa da minha morte.</p> + +<p>O pintor revelára a Mauricio n'um arranco de enthusiasmo, a causa da sua +melancholia, a origem da sua doença.</p> + +<p>—E que fazemos agora? perguntou Ernesto.</p> + +<p>—Primeiro que tudo castrar o macho para que sangre e a carne perca o +gosto a bravo.</p> + +<p>Mauricio levantou-se, tirou a faca de matto da bainha, e sahiu do +esconderijo, dirigindo-se para o sitio onde estava o javali.</p> + +<p>Ernesto segui-o, examinando com o mais particular interesse todas as +operações que Mauricio fazia ás duas peças mortas.</p> + +<p>O caçador depois de lhe abrir todo o ventre e de lhe tirar os intestinos, +pendurou-os pelos pés para que sangrassem e ficassem limpos. Depois lavou as +mãos na agua do charco, e disse:</p> + +<p>—Agora diga-me se quer dar por terminada a caçada ou quer fazer nova +espera, apezar de me parecer melhor, o primeiro caso, pois é preciso esperar +pelo menos duas horas até que volte outro javali.</p> + +<p>—Vamos para casa. E as rezes?<span class="pn">{151}</span></p> + +<p>—Ficam ahi. Venho logo buscal-as com o meu cavallo.</p> + +<p>—Então dá-me um gole de rhum, e a caminho. Passei um bom boccado.</p> + +<p>Ernesto bebeu e deu o frasco a Mauricio. Depois dirigiram-se para casa onde +o pintor chegou bastante fatigado.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00024000">CAPITULO XXIV</a></h4> + +<h2>Uma carta e um annel</h2> + +<p>Ernesto deixou-se cahir na cama, e como sempre, o seu pensamento occupou-se +de Amparo.</p> + +<p>—Ámanhã, disse, falando comsigo, ouvirá pronunciar o meu nome, e no +fundo da sua alma renascerá a recordação das noites de Florença. Os seus +labios, vermelhos como bagos de romã, recordar-se-hão tambem d'esse beijo fatal +que me fez o mais desgraçado dos homens, e pela mente do conde de Loreto +cruzará debil, mas ameaçador, o phantasma de uma duvida, a sombra de uma +suspeita.</p> + +<p>Ernesto tinha sempre na mesa de cabeceira uma garrafa de rhum; extendeu o +braço, pegou na garrafa e bebeu um gole.</p> + +<p>—Ha quasi um mez sem a vêr, continuou, e comtudo a ausencia não apagou +o fogo devorador d'esta paixão que me abraza. O conde de Loreto tinha mais +direito do que eu para ser amado, mas indubitavelmente não a ama tanto. E que +importa isso ás mulheres? O conde é rico, nobre, e a vaidade é o dominio +tentador do bello sexo. Se o amor é o fogo d'alma que transmitte calôr ás +ideias dos homens de genio, devo fazer grandes quadros.</p> + +<p>E Ernesto soltou uma gargalhada, pegou novamente<span +class="pn">{152}</span> na garrafa, e quasi a despejou de um trago.</p> + +<p>Na sua physionomia, no seu olhar, assomaram os symptomas da embriaguez +produzida pelo alcool.</p> + +<p>Com a lingua, presa e balbuciante, começou a falar em voz alta.</p> + +<p>—A luz dos seus bellos olhos é o unico reflexo que illumina as +profundas trevas da minha alma, a que acompanha a fria soledade do meu coração; +as seis lettras do seu nome, as notas mais harmoniosas que resôam no fundo do +meu peito. Insensato! A tua vida não é mais do que um sonho, que se desvanece +ante o sopro da realidade. Tu recebeste tres beijos, durante tres noites de +luar; aquelles beijos encerravam o veneno do teu sangue. A tua vida não é vida; +o teu amor é só uma recordação. Onde está a morte? Porque tarda tanto? Porque +não chega, quando a espero de braços abertos?</p> + +<p>Ernesto fechou os olhos. Os seus labios entreabriram-se para deixar passar +um suspiro, e ficou dormindo pensando em Amparo.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>Mauricio entrou no quarto do seu hospede ás cinco da manhã.</p> + +<p>Ernesto levantou-se.</p> + +<p>—Está tudo prompto para partires? perguntou.</p> + +<p>—Sim senhor; tenho o javali grande preso convenientemente ao cavallo. +Á femea, segundo as suas ordens, tirei-lhe a cabeça e o lombo; o resto fica em +casa.</p> + +<p>—Espera, disse Ernesto.</p> + +<p>E pegando n'uma carta que estava sobre a mesa e n'uma tira de papel, +continuou:</p> + +<p>—Entregas esta carta, o javali grande e estes dois quadros ao senhor +conde de Loreto, rua do Barquillo, n.º..., e comprarás tudo o que vae +mencionado n'esta lista.</p> + +<p>Ernesto abriu uma gaveta da commoda, tirou dez moedas de cinco duros e +entregou-as a Mauricio.</p> + +<p>Depois escreveu rapidamente n'uma folha de papel:<span +class="pn">{153}</span></p> + +<p> </p> + +<p>«Meus bons amigos</p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">Marcial e André</p> + +<p>«Remetto-lhes uma cabeça de javali que cosinharão no restaurante do +<i>Armiño</i> para almoçarem com alguns amigos, bebendo por este caçador +<i>selvagem</i> que se não esquece de vocês.</p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">«<small +class="SMALL">Sempre amigo</small></p> + +<p +style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">«<i>Ernesto.</i>»</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>—A cabeça e o lombo da femea entrega-os onde diz este envellope, rua +do Prado. Vae com Deus e vem ámanhã, se te fôr possivel.</p> + +<p>Mauricio sahiu, despedindo-se da mulher, e encaminhou-se para Toledo, onde +devia tomar o comboio de Madrid.</p> + +<p>Ernesto pegou na espingarda, chamou os seus cães Roma e Florença, e sahiu +tambem em busca de perdizes, prevenindo Petra de que não viria almoçar antes do +meio dia.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>O conde de Loreto, Amparo e D. Ventura estavam almoçando quando entrou um +creado dizendo-lhes que estava á porta um homem que parecia um montanhez, que +trazia uma carta, um javali e uns quadros.</p> + +<p>—Ah! exclamou o conde, Ernesto cumpriu a sua palavra. Dize a esse +homem que suba e tragam vocês o javali para o vêrmos.</p> + +<p>Dois creados trouxeram o javali para cima de uma mesa.</p> + +<p>—Soberbo animal! exclamou Fernando. Pelas cerdas e pelos dentes bem se +vê que deve ser velho.</p> + +<p>—Oito annos, respondeu Mauricio. Vale bem a onça de chumbo que lhe deu +a morte.</p> + +<p>—Pelo que vejo, Ernesto diverte-se pelos montes?</p> + +<p>—Diverte-se, exclamou o caçador, tudo menos isso;<span +class="pn">{154}</span> está muito doente, dorme pouco e não tem appetite. A +bem dizer que se alimenta só com café e rhum. Tenho cá um palpite em que não +morrerá de velho.</p> + +<p>Todos escutavam com interesse as palavras de Mauricio.</p> + +<p>—Disseram-me que traz uma carta e uns quadros, disse Fernando.</p> + +<p>—A carta está aqui: os quadros deixei-os n'aquella casa.</p> + +<p>O conde leu em voz alta o seguinte:</p> + +<p> </p> + +<p>«Senhor conde de Loreto </p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p>«Ignoro ainda se é proveitosa ao meu corpo esta soledade em que vivo ha +vinte dias, mas conheço que é ao espirito. </p> + +<p>«No cume d'estas montanhas não se vêem homens, não se encontra a animação +nem o bulicio das grandes cidades, mas o ar é mais puro, o horisonte mais +limpido, o ambiente mais perfumado e respira-se com mais facilidade. </p> + +<p>«Seja como fôr, espero sem sobresalto que se resolva o problema da minha +enfermidade, sem me occupar muito se será ou não vantajoso o desenlace. </p> + +<p>«Com o portador d'esta, caçador infatigavel e amigo leal, em casa de quem +vivo no meio d'estes barrancos solitarios, remetto-lhe o primeiro javali que +matámos e dois quadros sobre assumptos de caça, genero a que tenciono +dedicar-me emquanto tiver forças para sustentar o pincel. </p> + +<p>«Não marco preço aos quadros que lhe envio, porque d'isso falaremos depois +de lhe mandar doze. Demais, ainda que pobre, hoje não preciso de dinheiro, mas +avisál-o-hei quando precisar. Seja, portanto, o meu banqueiro.<span +class="pn">{155}</span> </p> + +<p>«Para lhes provar que não os esqueço, desejava que me concedessem +auctorização para fazer trez retratos de memoria, ainda que se admire ao +vêl-os, o meu leal amigo D. Ventura. </p> + +<p>«Deponha aos pés da senhora condessa os meus respeitos, dê um abraço em seu +sogro e não esqueça que n'este deserto fica esperando occasião de lhe ser util +</p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small +class="SMALL">«o seu amigo e obrg.º</small> </p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">«<i>Ernesto +Alvarez.</i>»</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>Amparo ouvira lêr a carta sem descerrar os labios, mas agradecia do fundo da +alma a fórma delicada como estava escripta.</p> + +<p>Só lhe prendeu a attenção a auctorização que pedia para pintar os tres +retratos, entre os quaes devia figurar o seu.</p> + +<p>—Quando tenciona voltar para Toledo? perguntou o conde ao caçador.</p> + +<p>—Desejava ir esta noite no comboio das sete e quarenta. Os meus +affazeres em Madrid, depois de sahir d'esta casa, resumem-se apenas a algumas +compras de que o senhor Ernesto me encarregou, e entregar uma cabeça de javali +e um lombo a uns senhores que moram na rua do Prado.</p> + +<p>—Tem algum inconveniente em me dizer que objectos o senhor Ernesto o +encarregou de comprar.</p> + +<p>—Não, senhor; aqui está a relação.</p> + +<p>E Mauricio entregou-a ao conde que depois de lêr, disse:</p> + +<p>—Meu amigo, tenho em casa tudo quanto Ernesto deseja; não precisa, +pois, ir comprar cousa alguma. Agora vá almoçar emquanto escrevo uma carta, +depois irá levar a cabeça a esses senhores, e meia hora antes do comboio partir +encontrará na estação, despachado para Toledo, tudo quanto Ernesto pede.<span +class="pn">{156}</span></p> + +<p>Mauricio com sinceridade natural, ia entregar ao conde o dinheiro que +Ernesto lhe dera.</p> + +<p>—Não, esse dinheiro entregue-o a quem lh'o deu, e demais, far-me-ha o +favor de acceitar esta <i>onza</i>,<a name="tex2html2" +href="#foot606"><sup>[2]</sup></a> para comprar um presente a sua mulher.</p> + +<p>Mauricio tentou recusar a <i>onza</i>, mas o conde obrigou-o a +acceitál-a.</p> + +<p>Depois, conduziram-n'o a outra casa onde lhe serviram o almoço.</p> + +<p>O conde escreveu entretanto a seguinte carta.</p> + +<p> </p> + +<p>«Amigo Ernesto</p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p>«Os quadros são bellos e o javali soberbo. Quando os homens têem talento +trabalham em todos os generos. Obrigado pela sua boa memoria, obrigado, porque +se não esqueceu de nós, apezar do mal que lhe temos feito.</p> + +<p>«Pede-me auctorização para fazer tres retratos; concedo-lh'a satisfeito não +só por lhe ser agradavel a si como tambem ás pessoas que vão ser retratadas nas +telas. </p> + +<p>«Desejava passar uma temporada na sua companhia para caçarmos juntos, e para +vêr se o convencia a abandonar essa vida solitaria, principalmente durante os +quatro mezes de rigoroso inverno. </p> + +<p>«Até então veremos o que posso conseguir. Hei de fazer a diligencia. </p> + +<p>«Fico esperando os doze quadros que me annuncia na sua carta, o que me prova +que se sente animado para o trabalho. </p> + +<p>«Adeus, meu amigo, e não esqueça que lhe desejamos todas as propriedades. +</p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small +class="SMALL">«Sempre seu amigo,</small></p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">«<i>Fernando del +Villar.</i>»<span class="pn">{157}</span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p>O conde leu a carta á mulher e disse:</p> + +<p>—Agora, minha querida, escreve quatro linhas ao nosso amigo; talvez +isso lhe faça bem.</p> + +<p>Amparo olhou o marido, receando que aquelle desejo envolvesse uma intenção +pouco agradavel.</p> + +<p>O conde sorriu-se porque comprehendêra a duvida da mulher. Mas rodeando-lhe +a cintura, e, dando-lhe um beijo apaixonado, disse-lhe:</p> + +<p>—Leio nos teus olhos, minha querida, a desconfiança, e sinto-o; isso +indica-me que me amas muito, mas que me conheces pouco. Escreve a Ernesto, sou +eu que t'o peço. Quatro palavras tuas far-lhe-hão bem, o desgraçado ama-te de +toda a sua alma. Muito desgraçado o fizemos. Não sejamos egoistas até ao ponto +de sermos malvados gozando com a sua agonia, com a sua dôr, que só terá fim com +a morte. Escreve-lhe, pois, o que quizeres, Amparo.</p> + +<p>O conde sorrindo-se com bondade, e dando segundo beijo na esposa, +continuou:</p> + +<p>—Não lerei o que escreves. Adeus. Quando acabares fecha a carta e +entrega-a tu mesma a esse homem.</p> + +<p>E o conde sahiu.</p> + +<p>Amparo ficou com a carta na mão e como que pregada ao chão.</p> + +<p>Aquella confiança que o marido acabava de mostrar era verdadeira ou um +laço?</p> + +<p>Amparo não podia crêr na hypothese de um laço n'um homem tão generoso como +Fernando.</p> + +<p>O conde de Loreto não era um homem vulgar. Amava a mulher, perdoára-lhe o +seu coquettismo com Ernesto antes de o conhecer a elle, calculava as dôres e os +soffrimentos do pintor a quem estimava devéras e por isso disséra á mulher que +escrevesse.</p> + +<p>Amparo sentou-se, pegou na penna e durante dez minutos não soube como +começar.</p> + +<p>De subito teve uma ideia. Os olhos brilharam-lhe, o semblante +reanimou-se-lhe: dir-se-hia que receava<span class="pn">{158}</span> +transmittil-a ao papel, mas fazendo um esforço, e com mão mal segura, +escreveu:</p> + +<p> </p> + +<p>«Senhor Ernesto</p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p>«Ja que meu marido o auctoriza a fazer os tres retratos, e julgando que +d'elles um será o meu, peço-lhe, (queira perdoar este capricho de mulher), que +se não esqueça do vestido que tinha em Roma quando veiu offerecer-me o que +fizera, e que ainda conservo sobre o fogão do meu gabinete. </p> + +<p>«Trate-se, porque desejamos em breve vêl-o completamente restabelecido. </p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Amparo.</i>»</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>A condessa fechou a carta e foi entregál-a a Mauricio, que já tinha acabado +de almoçar.</p> + +<p>—Entregue esta carta ao senhor Ernesto, mas só a elle, disse-lhe.</p> + +<p>—Sim, senhora condessa.</p> + +<p>Amparo ia a sahir, mas deteve-se.</p> + +<p>—É casado? perguntou.</p> + +<p>—Sim, minha senhora.</p> + +<p>—Então faça favor de dar da minha parte este annel a sua mulher, e +recommendar-lhe que trate do senhor Ernesto com todo o carinho.</p> + +<p>E Amparo como que envergonhada por aquelle arranco, tirou um annel do dedo, +entregou-o a Mauricio e sahiu, dizendo para comsigo:</p> + +<p>—Assim comprehenderá que me não é indifferente o seu soffrimento e que +a sua morte me ha de custar algumas lagrimas.</p> + +<p>Mauricio ficou um momento immovel. Pensava se aquella mulher tão formosa +teria alguma coisa que vêr com os padecimentos do seu hospede.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>Á hora indicada pelo conde, Mauricio estava na<span class="pn">{159}</span> +estação, onde um creado lhe entregou uma guia do caminho de ferro.</p> + +<p>—Que é isto? perguntou elle.</p> + +<p>—Da parte de meu amo, o senhor conde de Loreto. Com esta guia lhe +entregarão em Toledo, pois que foram expedidas em grande velocidade, duas +caixas e um caixote grande. N'ellas vae tudo quanto o senhor Ernesto +encommendou.</p> + +<p>Mauricio guardou a guia na carteira e entrou para a <i>gare</i>, tomando +então logar n'um compartimento de terceira classe.</p> + +<p>Durante a viagem, o caçador olhou muitas vezes para o annel, e pensava em +quem lh'o dera, dizendo de si para comsigo:</p> + +<p>—Parece-me que vou descobrindo alguma cousa do segredo!</p> + + + +<h4><a name="SECTION00025000">CAPITULO XXV</a></h4> + +<h2>O regresso de Mauricio</h2> + +<p>Quando Ernesto sahia só, afastava-se pouco da habitação de Mauricio.</p> + +<p>Muitas vezes pendurava a espingarda no ramo de um azinheiro, e, subindo com +difficuldade ao mais alto monte, sentava-se ahi, ficando largas horas a +contemplar a paisagem; outras, sem temer o perigo, descia ao mais fundo dos +barrancos, agarrando-se ás plantas, gozando tambem n'aquella silenciosa +soledade, onde o menor suspiro faz na concavidade das rochas um echo como se +repetisse a voz humana.</p> + +<p>Então esquecia os cães, a espingarda e a caça, e a recordação inolvidavel de +Florença preenchia-lhe por completo a sua imaginação.<span +class="pn">{160}</span></p> + +<p>O seu amor por Amparo era tão constante, tão verdadeiro, tão grande, que, +enchendo todo o seu ser, formára n'elle uma segunda natureza tão poderosa que +era impossivel separar-se d'elle sem perder a vida.</p> + +<p>Conhecia, comtudo, toda a loucura da sua paixão, e acceitára-a como se +acceita uma d'essas doenças que se não procura e que nos causa a morte.</p> + +<p>Se Ernesto tivesse encontrado uma Heloisa, a terra para os dois amantes +teria sido um paraiso, mas encontrára uma <i>coquette</i> que lh'a converteu em +pantanoso charco, que lhe envenenou o sangue ao aspirar os maleficos miasmas +que exhalava.</p> + +<p>O seu mal era irremediavel. O amor tem muitas vezes a sua dose de veneno que +causa a morte.</p> + +<p>Mas, apezar d'isso, o coração de Ernesto era tão grande, tão nobre, tão +generoso, que não odiava aquella que era seu tormento, antes pelo contrario, +amava-a cada vez mais.</p> + +<p>Talvez que ainda lhe restasse um pouco de esperança, e d'essa esperança +emanava a doce compaixão que sentia por Amparo.</p> + +<p>Por outro lado, o conde de Loreto era um homem digno de ser amado. Quão +doloroso teria sido para Ernesto vêr-se preferido por um homem indigno, por um +ser desprezivel, como acontece tantas vezes na vida!</p> + +<p>Quantos exemplos se podem citar de levianas mulheres que espesinham a honra +de homens illustres nos braços de amantes despreziveis!</p> + +<p>Ernesto reconhecia no conde grandes qualidades, e isto fazia-lhe menos +culposa a conducta de Amparo. Conhecia tambem que, se o conde não fosse um +homem superior e menos conhecedor do mundo, sabendo os antecedentes de Roma e +Florença e a parecença de Esther com a mulher, tomaria isso por uma grave +offensa e o assumpto não teria ficado assim. Talvez um duello, e, por +conseguinte, o escandalo que segue casos d'esta natureza, teria augmentado as +difficuldades a Ernesto para chegar até Amparo,<span class="pn">{161}</span> +para ser talvez amado por ella com a vertiginosa paixão do adulterio.</p> + +<p>Com a conducta prudente, digna e sabia do conde, evitou todos os perigos que +ameaçavam o marido, a mulher e o amante, cortando com um só golpe a cabeça á +repugnante maledicencia, que já comecava a levantar-se, sorrindo-se de uma +maneira satanica.</p> + +<p>Por isso, Amparo e Ernesto admiravam o procedimento do conde de Loreto, e +este por seu lado, podia dormir tranquillo, com a segurança de que sua mulher +não o trahiria. E emquanto a Ernesto, sabia que de rival intransigente se +convertêra em amigo leal.</p> + +<p>Amparo, comtudo, passou mal algumas noites. Amava com delirio o marido, mas +convencida de que ella era a causadora da doença de Ernesto, temia o momento em +que uma carta participasse a sua morte, isto é, que em seu peito entrasse o +remorso, que tira o somno, que entristece a alma, que põe uma nuvem no +coração.</p> +<hr class="dotted"> + +<p>Mauricio chegou ao monte ao amanhecer do dia seguinte; Petra acabava de se +levantar, e ouvindo assobiar correu a abrir a porta.</p> + +<p>O caçador não vinha só. Acompanhava-o um homem com tres burros carregados +com os objectos que o conde enviára a Ernesto.</p> + +<p>—Tudo isto é para nos? perguntou Petra, depois de abraçar o marido.</p> + +<p>—É para o senhor Ernesto, que lh'o manda um amigo de Madrid. Mas +tambem trago um presente para ti.</p> + +<p>—Isso já eu esperava porque os bons maridos não se esquecem das +mulheres quando vão ás grandes cidades.</p> + +<p>O homem começou a descarregar as caixas e o caixote, deixando tudo junto da +porta.</p> + +<p>Mauricio entretanto metteu dois dedos da mão direita no bolso do collete e +tirou a <i>onza</i> que o conde lhe dera, dizendo em voz baixa:<span +class="pn">{162}</span></p> + +<p>Pega: isto offereceu-me aquelle senhor a quem levei o javali e os quadros +como gorgeta. É para comprares o que quizeres.</p> + +<p>—Uma <i>onza</i>! Fizeste bem em a não trocares, porque a mulher +cuidadosa pensa sempre no dia de ámanhã, e, quando apanha á mão uma moeda +d'estas, guarda-a como um remedio contra as necessidades da vida.</p> + +<p>—E o senhor Ernesto? perguntou Mauricio.</p> + +<p>—Ainda dorme.</p> + +<p>—Hontem sahiu?</p> + +<p>—Sim, um boccadito de manhã. Voltou muito cançado e comeu pouco. +Coitado! está cada vez mais triste. Esta noite entrei no quarto para vêr se +queria tomar alguma coisa, e encontrei-o com os olhos inchados, enegrecidos, +como se tivesse chorado. Muito grande deve ser o seu desgosto.</p> + +<p>Mauricio guardou silencio; e como o homem já tinha descarregado todos os +objectos pagou-lhe, dizendo:</p> + +<p>—Petra, dá a este homem alguma coisa de comer e de beber.</p> + +<p>Mauricio entrou em casa, dirigindo-se ao quarto de Ernesto, e, como reinava +o mais profundo silencio, pensou que se não respondesse, chamando baixinho, +seria melhor deixal-o dormir.</p> + +<p>Chamou, pois, á porta suavemente, mas a voz do hospede respondeu:</p> + +<p>—Quem é?</p> + +<p>—Sou, eu, senhor Ernesto.</p> + +<p>—Ah! Mauricio! Espera que vou abrir.</p> + +<p>Ernesto saltou da cama, abriu a porta e tornou a deitar-se.</p> + +<p>—Bem vindo sejas, Mauricio. Não te esperava tão cedo. Abre a janella e +dá-me conta da tua missão.</p> + +<p>—O conde de Loreto é um sujeito muito generoso, disse Mauricio. Depois +de me receber muito bem e de me dar de almoçar como a um principe, deu-me uma +<i>onza</i> em ouro.<span class="pn">{163}</span></p> + +<p>Mauricio continuou contando tudo quanto se passára em casa do conde e +terminou:</p> + +<p>—Emquanto a senhora condessa entregou-me esta carta para si e +perguntando-me se era casado, disse-me: Pois dê este annel da minha parte a sua +mulher para que tratem com muito cuidado o senhor Ernesto.</p> + +<p>O pintor sentiu-se commovido até ao fundo d'alma. Mauricio comprehendeu o +effeito das suas palavras, e, tirando a carta e o annel, entregou tudo ao +hospede.</p> + +<p>—Mas este annel é para tua mulher, disse Ernesto, fixando-o com um +olhar penetrante.</p> + +<p>Mauricio sorriu-se e disse:</p> + +<p>—Isso é uma joia bôa de mais para quem está todo o dia a trabalhar. +Póde guardal-a. E de mais, Petra não sabe de nada, e olhos que não vêem coração +que não sente.</p> + +<p>Ernesto não poude conter a sua alegria e lançou-se nos braços de Mauricio, +cujo procedimento delicado lhe causou profunda admiração.</p> + +<p>—Ah! já me esquecia, disse Mauricio. Tambem os seus amigos da rua do +Prado me deram esta carta para si.</p> + +<p>E, entregando a carta, sahiu do quarto afim de deixar só o seu hospede, de +quem começava a descobrir o segredo.</p> + +<p>Ernesto, ao vêr-se só, beijou repetidas vezes o annel, apertando-o depois +com delirio de encontro ao peito.</p> + +<p>Leu a carta do conde e o post-scriptum da condessa, guardou-a juntamente com +o annel n'uma gaveta da commoda, e, procurando serenar, disse:</p> + +<p>—Ella não me esqueceu; isto sempre serve de consolação para o meu +peito. Vejamos o que me dizem Marcial e André, os meus bons amigos.</p> + +<p>Ernesto então leu:<span class="pn">{164}</span></p> + +<p> </p> + +<p>«Illustre Robinson dos montes de Toledo</p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p>«Recebemos a <i>tua cabeça</i> e o <i>teu lombo</i>. e ámanhã brindaremos á +tua saude no restaurant do <i>Armiño</i>. </p> + +<p>«Não deves admirar-te de que te tenhamos na conta de um animal feroz, pois +que outro nome não merece o homem que deixa as delicias de Madrid pelos +selvagens barrancos dos montes de Toledo. </p> + +<p>«Agora outro assumpto. Tens todas as probabilidades que te concedam o +primeiro premio ao teu celebre quadro de Esther. Se assim fôr, iremos +entregar-te a medalha de ouro, e beber comtigo uma duzia de garrafas de +Champagne. </p> + +<p>«Procura, comtudo, restabelecer-te rapidamente e voltares, porque nós +preferimos comer sentados em volta de uma mesa, pisando alcatifas, recebendo o +calor de fogões e a luz do gaz, do que comer no campo sobre o duro chão, +acariciado pelas formigas e outros animaes importunos. </p> + +<p>«Estimando-te sempre e admirando como nunca. </p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><small +class="SMALL">«Somos teus amigos</small></p> + +<p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">«<i>Marcial e +André.</i>»</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>Ernesto sorriu-se tristemente quando acabou a leitura da carta.</p> + +<p>—Ah! exclamou. Que feliz que é o mortal que encontra uma mulher que o +ama e dois amigos leaes e carinhosos! Mas a felicidade nunca é completa para o +homem. Só encontrei os amigos. Onde acharei a mulher?</p> + +<p>E deixando cahir a cabeça sobre o peito melancholicamente, ficou immovel +como uma estatua.<span class="pn">{165}</span></p> + + + +<h4><a name="SECTION00026000">CAPITULO XXVI</a></h4> + +<h2>Uma caçada ás raposas</h2> + +<p>Se nos entretivessemos detalhando dia a dia a vida de Ernesto desde que +chegou a casa de Mauricio até ao dia em que deixou de existir, fariamos um +livro interminavel. Procuraremos, pois, tocar sómente nos pontos que julgamos +mais importantes.</p> + +<p>Ernesto, como dissémos, cançava-se muito a subir as encostas, e o ponto que +escolhera para caçar não era dos mais commodos.</p> + +<p>Um doente de peito pode caçar sem perigo, mas em terrenos planos que não +cancem os pulmões; porêm os montes de Toledo, os de Almenara e outros não têem +nada de hygienicos para um caçador de pouca saude.</p> + +<p>Poder-se-ha matar muita caça, respirar-se ar puro mas são fatigantes em +demasia! Ernesto, pois, escolhêra mau sitio para se restabelecer, mas, como a +vida lhe importava pouco, era o mais apropriado para lhe dar cabo dos seus +arruinados pulmões.</p> + +<p>Ernesto tratava-se pouco. Quando sentia a mente cheia de ideias tristes, +pegava na espingarda, chamava os cães e sahia. Se tropeçava com um bando de +perdizes, segui-as até que, cançado, se deixava cahir no chão, permanecendo ás +vezes mais de uma hora soffrendo angustias de morte.</p> + +<p>Muitas vezes a noite surprehendeu-o nos barrancos, e Mauricio, sobresaltado, +sahia em sua procura; e então o honrado caçador trazia-o ás costas até casa. +Petra e Mauricio lamentavam em voz baixa a teimosia de Ernesto em não querer +que se chamasse o medico do povoado proximo.<span class="pn">{166}</span></p> + +<p>—Está claro, dizia Mauricio. A dôr que o afflige é tal que deseja +acabar depressa com a vida, e quando menos pensarmos encontramol-o morto no +monte.</p> + +<p>Demais Ernesto, cuja fraqueza era em extremo, ia perdendo as forças e o +appetite, e tinha caprichos extraordinarios que faziam estremecer Mauricio.</p> + +<p>Certa manhã do mez de março (nevára muito durante a noite anterior e o sol +que começava a elevar-se no horisonte convertia o gelo em brando rócio que +tornava difficil o transito pelas ladeiras dos barrancos). Mauricio e Ernesto +estavam no cume de um monte, quando se aperceberam de que andava uma raposa +n'um monte proximo. Ernesto disparou, e o arisco animal soltou um grunhido.</p> + +<p>O tiro ferira a raposa nas patas trazeiras; mas com o instincto da +conservação arrastou-se até a borda de um barranco, deixando-se cair para a +frente.</p> + +<p>Ernesto correu até chegar á mesma borda do precipicio.</p> + +<p>Mauricio gritou-lhe:</p> + +<p>—Cuidado, cuidado, senhor Ernesto. Por ahi não ha passagem.</p> + +<p>Ernesto dirigiu um olhar para o abysmo, viu a raposa que fazia esforços +desesperados para chegar a uma toca, onde por fim se metteu.</p> + +<p>—Indubitavelmente tem alli a femea e os filhos. Se pudessemos +descer... disse Mauricio.</p> + +<p>—E porque não? respondeu Ernesto, avançando intrepidamente até a +abertura do abysmo.</p> + +<p>—O terreno está escorregadio; é uma temeridade descer por este +despenhadeiro. Um pé em falso, uma tontura, precipital-o-hia a quinhentas varas +de profundidade, sobre um leito de pedras.</p> + +<p>Ernesto inclinou-se, e, agarrando-se a uma matta que vegetava na borda do +abysmo, começara descendo, procurando appoio para os pés nas saliencias da +rocha e nos arbustos que cresciam entre as fendas.</p> + +<p>Mauricio advertiu segunda vez do perigo imminente que o seu hospede corria, +mas Ernesto, detendo-se na<span class="pn">{167}</span> sua descida e +levantando a cabeça, disse sorrindo-se:</p> + +<p>—Não receies, meu bom Mauricio, ninguem morre sem que Deus queira; e +se succeder faltar-me o appoio que procuro tranquillamente, e precipitar-me no +abysmo, previno-te de que na minha carteira acharás um testamento que te livra +de toda a responsabilidade.</p> + +<p>E continuou descendo.</p> + +<p>Mauricio sustinha com trabalho os cães, olhando com admiração para +Ernesto.</p> + +<p>Não faltava valor ao caçador para descer por aquelle difficil e perigoso +caminho; mas isto teria sido uma imprudencia, pois, descendo atraz, augmentava +muito o perigo do pintor.</p> + +<p>Mauricio era um bom christão, acreditava nos destinos da Providencia, e, +calculando que d'aquelle perigo só Deus podia salvar Ernesto, encommendou-o com +fervor ao Altissimo.</p> + +<p>A descida de Ernesto até chegar ao penedo onde se havia refugiado a raposa +ferida, durou quatro minutos.</p> + +<p>O pintor dirigiu um olhar sereno para o abysmo, murmurando em voz baixa:</p> + +<p>—Mais profunda é a soledade da minha alma.</p> + +<p>Mauricio fechou os olhos muitas vezes, julgando que o seu amigo ia +despenhar-se, quando ao pôr o pé ou a mão em algum appoio este cedia.</p> + +<p>Por fim Ernesto chegou a uma especie de plataforma. Alli estava seguro, mas +era extremamente difficil subir, visto necessitar para isso de muita força nos +pulsos.</p> + +<p>De repente Mauricio, que se dispunha a descer, viu que as pernas de Ernesto +se dobravam e que caia desamparado sobre as rochas que o sustentavam, dando com +a cabeça n'um sovereiro, que providencialmente o salvou de uma queda fatal.</p> + +<p>Mauricio soltou um grito. Ao principio julgou que o seu hospede rolasse para +o abysmo, e então era indubitavel que o seu corpo, feito em mil pedaços, não +pararia senão quando chegasse ao fundo. Com<span class="pn">{168}</span> grande +surpresa sua, viu que o mesmo sovereiro que crescia na fenda da rocha deteve o +corpo da queda mortal, mas observou tambem que o corpo estava immovel e como +morto e que da bôcca sahia algum sangue.</p> + +<p>Mauricio, deixando-se levar pelo seu generoso coração, confiado nas suas +herculeas forças desceu rapidamente até onde estava Ernesto, completamente +desmaiado.</p> + +<p>Durante dez minutos fez todos os esforços imaginaveis para o tornar a si; +ora lhe chegava a garrafa do rhum ao nariz, ora lhe banhava as fontes com agua +fria. Nada: Ernesto parecia um cadaver.</p> + +<p>Então, desprezando o perigo que o cercava, tirou a cinta, atou Ernesto a +ella, prendendo-o pela cintura, e, com o desespero do naufrago, começou a +trepar pela ladeira levando suspenso á cintura o inanimado corpo do seu +hospede, que oscillava sobre o abysmo como a pendula de um relogio.</p> + +<p>Se a bôa Petra tivesse chegado n'aquella occasião e visto o perigo que o +marido corria, certamente morreria de susto. Deus, evidentemente, que vê e +premeia as bôas-acções, deu n'aquelle momento forças a Mauricio para chegar ao +cume, salvando o hospede e salvando-se elle proprio.</p> + +<p>Quando se viu fóra do abysmo, soltou um d'esses suspiros que dilatam o peito +e, ajoelhando-se junto ao corpo inanimado do seu companheiro, deu graças á +Providencia, que os salvara de tão imminente perigo.</p> + +<p>O pintor continuava sem voltar a si.</p> + +<p>Mauricio pôz depois as duas espingardas ao hombro, levantou com os seus +robustos braços Ernesto e encaminhou-se precipitadamente para casa, que não +ficava muito longe.</p> + +<p>Petra ao vêl-o entrar pallido, coberto de suor, a respiração offegante e com +Ernesto desmaiado nos braços, cujo rosto estava manchado de sangue, soltou um +grito de espanto e disse:</p> + +<p>—Que foi, Mauricio? Que succedeu? Morreu o senhor Ernesto?<span +class="pn">{169}</span></p> + +<p>—Não, não morreu, respondeu Mauricio, está apenas desmaiado. Não te +assustes e ajuda-me a mettêl-o na cama.</p> + +<p>Um quarto de hora depois Ernesto abriu os olhos, dirigiu um olhar vago em +redor, e vendo Mauricio e Petra juntos de si, extendeu-lhes as mãos e disse com +difficuldade:</p> + +<p>—Obrigado, meus amigos, devo-lhes a vida e agradeço-lhes de toda a +minha alma, porque não quero morrer emquanto não concluir os tres retratos que +prometti ao conde de Loreto.</p> + +<p>—Mau! mau! disse o caçador. É verdade que o perigo foi grande, mas já +lá vae. Que maldita raposa.</p> + +<p>Ernesto não respondeu, mas, pegando na mão de Mauricio, apertou-a de +encontro ao peito com fraternal carinho.</p> + + + +<h4><a name="SECTION00027000">CAPITULO XXVII</a></h4> + +<h2>O anjo da morte</h2> + +<p>Durante quinze dias, Ernesto não sahiu de casa; pintava de manhã e de tarde. +Só alguns curtos momentos deixava a sua tarefa, para dar um passeio em frente +de casa.</p> + +<p>Vendo pintar aquelle joven febril com os olhos encovados e a respiração +fatigante, dir-se-hia que tinha esse afan do homem de genio que presente a +morte e que quer concluir a obra que o deve immortalizar.</p> + +<p>Estavam concluidos os retratos do conde, e de D. Ventura e tinha entre mãos +o de Amparo.</p> + +<p>Ás vezes chamava Mauricio e perguntava-lhe:</p> + +<p>—Conhécel-os? Parecem-se?</p> + +<p>—Oh! Muito! São elles por uma penna.<span class="pn">{170}</span></p> + +<p>Depois dava um charuto a Mauricio, accendia outro, apezar da tosse que o +fumo lhe causava, e continuava pintando.</p> + +<p>No quarto do pintor, graças ás offertas do conde de Loreto, encontravam-se +todas as commodidades apetecidas. Quatro pelles de leão almofadavam o sobrado; +duas commodas cadeiras de braços forradas de marroquim recebiam o pintor quando +se sentia fatigado.</p> + +<p>Muitas vezes dizia o pintor, sentado junto do fogão e tomando uma chavena de +café:</p> + +<p>—Isto não é viver n'um monte: é ter um oasis no meio d'um deserto.</p> + +<p>Certa manhã recebeu uma carta dos seus amigos Marcial e André, dizendo-lhe +que lhe haviam conferido o primeiro premio e que lhe iam levar a medalha: que +mandasse um homem á estação de Toledo para os acompanhar ao monte.</p> + +<p>Ernesto chamou Mauricio e disse-lhe:</p> + +<p>—Ámanhã devem chegar a Toledo uns amigos de Madrid que veem passar +alguns dias commigo. É preciso que os vás esperar á estação, que arranjes +cavallos para o que fôr preciso e que os tragas para aqui. Tambem seria bom que +trouxesses da cidade o que tua mulher precisar.</p> + +<p>Ernesto guardou os retratos para que os seus amigos não vissem. Era avaro do +seu thesouro, não queria que o profanasse a publicidade.</p> + +<p>Marcial e André não eram caçadores; mas a caça é agradavel a todos os +homens, sem duvida porque os coelhos não usam revólver para se defenderem, nem +as perdizes disparam dardos contra os seus perseguidores.</p> + +<p>Dizem que a caça é a imagem da guerra, sem duvida porque se queima polvora e +se derrama sangue; mas a mim parece-me que da guerra á caça vae muita +differença e bem crente estou de que o governo não passaria todos os annos +trinta e seis mil licenças de caça se o caçador corresse tanto perigo como o +soldado deante do inimigo.<span class="pn">{171}</span></p> + +<p>Mas se todos gostam de disparar contra os inoffensivos coelhos, as ladinas +perdizes e as ligeiras lebres, não é para admirar que qualquer habitante da +cidade, ao encontrar-se n'um monte, povoado de caça e tendo á sua disposição +uma espingarda, não tente derramar sangue, ainda que não seja senão para se +baptisar com a cruz de Santo Eustachio.</p> + +<p>Chegaram os amigos de Ernesto e depois dos abraços e das exclamações ante o +selvagem panorama, falou-se do quadro de Esther; almoçaram, tomaram café, +beberam tres garrafas de Champagne e pensaram em caçar visto haver espingardas +e caça.</p> + +<p>Mauricio propoz uma batida e se bem que os caçadores não fossem muito +felizes, em compensação viram correr e voar muita caça.</p> + +<p>Á noite, Petra serviu uma ceia, senão muito variada, pelo menos muito +abundante.</p> + +<p>A mocidade tem bom estomago. Comeram bem e beberam muito melhor. Falou-se de +Ernesto chegar a Madrid e este disse:</p> + +<p>—Não penso por emquanto em abandonar estes montes, porque estou aqui +perfeitamente. Convenci-me de que a solidão do campo e o ar saudavel d'estas +serras me são muito mais proveitosas do que a vida agitada da cidade.</p> + +<p>Todas as reflexões de Marcial, todos os conselhos de André não conseguiram +demover Ernesto. Os amigos convenceram-se de que seria inutil falar em +similhante assumpto.</p> + +<p>Os amigos do pintor ficaram com elle mais tres dias. Chegou a hora da +partida. Marcial tinha em ensaios uma comedia e não podia retardar o seu +regresso a Madrid. Despediram-se promettendo fazer outra visita no mez de maio, +se Ernesto até então não tivesse abandonado os montes.</p> + +<p>Ernesto, n'um ponto elevado, viu-os afastarem-se montados nos cavallos e +cantando o côro das bruxas de Macbeth.</p> + +<p>—Aquelles são felizes, disse com tristeza, porque em seus corações +vive a alegria da juventude, a esperança<span class="pn">{172}</span> da +gloria. Ide em paz, meus amigos, a quem nunca mais verei, a não ser que exista +alguma cousa da vida occulta ao olhar do homem para lá d'esse céu azul que se +extende sobre a minha cabeça.</p> + +<p>Ernesto sentou-se. Uma volta do caminho tinha occultado os amigos, a quem, +como acabava de dizer, não tornaria a vêr.</p> + +<p>Durante uma hora ficou immovel como o penedo que lhe servia de appoio.</p> + +<p>Depois levantou-se, vagarosa e tristemente, dirigiu-se para casa, tirou o +retrato de Amparo, collocou-o no cavallete e pôz-se a pintar.</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>Quando algum conhecido de Mauricio ia caçar aos montes, Ernesto fechava-se +no seu quarto e poucas vezes sahia. Pintava, lia, e bebia rhum.</p> + +<p>Estava muito doente, mas continuava regeitando os conselhos dos amigos e os +auxilios da sciencia.</p> + +<p>Durante os mezes da primavera, pareceu fortalecer-se alguma cousa. Passou o +verão um tanto alliviado, trabalhava pouco, e ainda por duas vezes mandára +Mauricio a Madrid levar quadros de caça ao conde, ficando em seu poder os +retratos completamente concluidos, dizendo:</p> + +<p>—Isto será a minha despedida, o meu testamento. Chegou o mez de +outubro, e Ernesto com os primeiros frios, apanhou uma recahida e perdeu por +completo o appettite; apenas se levantava para se sentar na cadeira e d'esta +para se metter na cama. Mauricio e Petra insistiram varias vezes com elle para +o convencer a que chamasse o medico.</p> + +<p>—É inutil, meus amigos, dizia-lhes, talvez que em breve me faça mais +falta um sacerdote.</p> + +<p>Uma noite, Ernesto peorou a tal ponto, que Mauricio, sem o consultar, montou +a cavallo, foi ao povoado de Orgaz e trouxe um medico.</p> + +<p>Ernesto, ao vêl-o entrar, ao perceber a que vinha, encolheu os hombros, +dirigiu um olhar de gratidão a Mauricio, e disse:<span +class="pn">{173}</span></p> + +<p>—Tudo isso é inutil. O que preciso ámanhã é de um sacerdote.</p> + +<p>O medico viu effectivamente que a doença de Ernesto era incuravel, receitou +por simples formalidade e disse que o chamassem se houvesse mais alguma +novidade.</p> + +<p>Ao sahir, disse a Petra:</p> + +<p>—Chamem o padre com urgencia, porque este homem apenas tem tres dias +de vida.</p> + +<p>Petra chorou, e contou ao marido o que o medico lhe dissera.</p> + +<p>Estavam verdadeiramente impressionados.</p> + +<p>Quando Mauricio á noite entrou com a luz no quarto de Ernesto este estava +sentado n'uma cadeira proximo da mesa.</p> + +<p>Ardia um bom fogo no fogão e, apezar do frio não ser muito, Ernesto +queixava-se de que se sentia gelado; era a morte, que avançava a passos +gigantescos para se apoderar do coração, para extinguir a vida n'aquelle corpo, +para separar a alma da materia.</p> + +<p>—Mauricio, poe ahi a luz, approxima uma cadeira, senta-te aqui a meu +lado, disse o pintor, porque temos muito que conversar e não temos tempo a +perder.</p> + +<p>Mauricio obedeceu sem dizer uma palavra. Só de quando em quando olhava para +o cadaverico semblante do seu hospede, pensando que já tinha visto defuntos com +muito melhor parecer.</p> + +<p>—Tudo n'este mundo tem o seu fim, meu amigo, ajuntou Ernesto com voz +fraca e pausadamente. O dia nasce e morre como a planta e o homem. A vida, como +o canto do passaro, como as folhas das arvores, está sujeita á vontade do +Creador. Rebellarmo-nos contra tal, é uma loucura, uma temeridade ou uma +cobardia. Ninguem se salva da morte, ainda que diga com toda a força do seu +desespero: «Não quero morrer.» Assim, pois, é preciso resignarmo-nos. Toda a +sabedoria, toda a sciencia, toda a grandeza do homem não é sufficiente para +prolongar um segundo sequer a sua vida. Alexandre como Cesar,<span +class="pn">{174}</span> Aristoteles como Cicero, morreram quando soaram as suas +horas, apezar de serem quem foram. A minha approxima-se e é preciso preparar +tudo para a minha ultima viagem.</p> + +<p>Ernesto deteve-se, respirou, levou a mão ao peito e fixou os olhos em +Mauricio, cujo semblante compungido, manifestava a profunda magua da sua alma, +porque as palavras sentenciosas e tristes do seu hospede, a quem estimava como +a um pae, o affligiam.</p> + +<p>—Quero, pois, meu bom Mauricio, inteirar-te do que tens a fazer no dia +seguinte ao da minha morte, que não está longe. Por isso, te pedi para te +sentares e que me prestasses attenção. Dei grandes incommodos tanto a ti como a +tua mulher; têem sido bons amigos para mim, devo-lhes muitos favores, e é por +conseguinte meu dever não os esquecer na hora da minha morte. Quizera ser rico +como um nababo para lhes deixar toda a minha fortuna, pois bem sabes que não +tenho herdeiros forçados; mas, apezar de ser muito pobre, farei tudo quanto +possa para os recompensar em parte de todos os beneficios que recebi.</p> + +<p>—Mas, senhor Ernesto, nós é que devemos estar agradecidos ao senhor, +disse Mauricio, porque desde que tivemos a fortuna de o vêr entrar para nossa +casa, têem sido muito maiores as recompensas que temos recebido do que os +insignificantes serviços que lhe temos prestado. Por isso não temos que falar +sobre esse assumpto.</p> + +<p>—O interesse e o carinho que têem dispensado a este pobre doente, +nunca o pagarei sufficientemente. Mas deixemos esse assumpto, e ouve.</p> + +<p>Ernesto fez uma pausa, pegou n'um rolo de papeis e n'uma carta, e disse:</p> + +<p>—Quando eu morrer, e depois do meu enterro, vaes a Madrid onde tens +duas commissões a desempenhar da maior importancia. Esta carta para os meus +amigos da rua do Prado, e os tres retratos e esta outra carta para o senhor +conde de Loreto. Indubitavelmente<span class="pn">{175}</span> todos, ao +saberem que deixei de existir, querem saber pormenores da minha morte. +Dize-lhes o que vires, a verdade. E agora só me falta dizer-te que encontrarás +escripto e assignado n'esta folha de papel, que te deixo como herança, como +livre senhor que sou de tudo, que me pertence; isto é, tudo isto que nos +rodeia, inclusivamente o pouco dinheiro que eu tiver na gaveta da commoda, é +teu e de tua mulher.</p> + +<p>Mauricio que havia já um boccado luctava para suster as lagrimas, levou as +mãos aos olhos.</p> + +<p>—Vamos, não te afflijas; da-me um abraço e vae-te deitar. Só tenho +ainda a pedir-te para que ámanhã cedo me tragas um padre, porque é bom pensar +em Deus alguns minutos antes de morrer, quem esteve tantos annos occupando-se +sómente dos pygmeus da terra.</p> + +<p>Mauricio precisava sahir d'aquelle quarto para chorar desafogadamente; +entrou na cosinha, contou a Petra tudo quanto se passára e acabaram por desatar +em amargo pranto.</p> + +<p>N'aquella noite nem Petra nem Mauricio puderam dormir.</p> + +<p>De quando em quando vinham em bicos de pés até a porta do quarto de Ernesto, +e espreitavam pelo buraco da fechadura.</p> + +<p>Ernesto continuava sentado na cadeira, ora escrevendo, ora com os cotovellos +encostados na borda da meza, e a cabeça appoiada nas mãos.</p> + +<p>Pouco antes de amanhecer, Mauricio montou a cavallo e foi chamar o padre.</p> + +<p>Ás sete da manhã, Ernesto viu entrar um velho de rosto bondoso e cabellos +brancos. A batina preta, a sobrepeliz, e sobretudo a doce expressão d'aquelle +rosto, fel-o comprehender que tinha na sua presença o pastor das almas d'algum +povoado proximo.</p> + +<p>O sacerdote e o pintor estiveram fechados tres horas. O que disseram +pertence ao segredo inviolavel da confissão.</p> + +<p>Quando o padre sahiu, entrou Mauricio.<span class="pn">{176}</span></p> + +<p>Ernesto disse-lhe:</p> + +<p>—Faze favor de pôr uma tela no cavallete e de o levares bem como esta +cadeira para proximo da janella. Vou fazer o meu ultimo trabalho.</p> + +<p>Ernesto pegou na paleta, nos pinceis e sentou-se porque não podia trabalhar +de pé, principiando a esboçar uma Nossa Senhora das Dôres.</p> + +<p>Apezar do seu estado, pintava com incrivel ligeireza.</p> + +<p>A febre da morte guiava-lhe a mão.</p> + +<p>Em dia e meio pintou uma formosa mãe do Nazareno, de corpo inteiro; mas +aquella virgem, apezar da doce melancholia do seu semblante, era um perfeito +retrato da condessa de Loreto.</p> + +<p>Evidentemente aquella obra feita de momento, aquelle trabalho feito ás +portas da morte, era uma das melhoras obras de Ernesto.</p> + +<p>Mauricio e Petra ficaram assombrados ao verem-no concluido.</p> + +<p>—Ah! Que pena um homem assim morrer tão novo! exclamou o rude caçador +n'um arranco de sublime enthusiasmo.</p> + +<p>—Mauricio, disse Ernesto, quando eu morrer entregarás este quadro ao +sacerdote que me ouviu em confissão, e diras que, já que os francezes roubaram +de uma capella da sua modesta egreja uma formosa Senhora das Dôres, eu +offereço-lhe esta para que a ponha no seu logar, apezar de não valer, estou +certo, nem a quinta parte do que valia a outra.</p> + +<p>No dia seguinte, Ernesto conheceu que lhe restava poucos minutos de vida.</p> + +<p>O sol entrava pela janella.</p> + +<p>O enfermo permaneceu cêrca de meia hora com o olhar fito no céu e as mãos +postas em religioso recolhimento.</p> + +<p>Petra e Mauricio, que estavam a seu lado, não se atreviam a interrompel-o +d'aquelle doce extasis.</p> + +<p>—Meus amigos, disse Ernesto, extendendo os braços e, pegando nas mãos +de Petra e de Mauricio, vêem aquella nuvemsinha branca que está suspensa no +espaço?<span class="pn">{177}</span></p> + +<p>Os dois olharam para o céu, mas não viram nuvem nenhuma, contudo Petra +respondeu com voz fraca:</p> + +<p>—Sim.</p> + +<p>—Pois bem, no meio d'essa nuvem vem o anjo da morte buscar-me. Oh! É +mais bello do que eu o suppunha. Os seus trajes são brancos como o disco da +lua, brilhante como a prata polida. Os seus olhos são negros e de um brilho +raro. O seu rosto, pallido e cheio de bondade, sorri-se com um sorriso frio que +penetra até a medulla dos ossos. Sobre a fronte lê-se a palavra <i>Perdão</i>, +e os seus braços extendem-se até mim como para me receber. Ah! Se eu pudesse +retratal-o!... Mas experimentemos. Dá-me a paleta e os pinceis! Põe uma tela no +cavallete!</p> + +<p>Ernesto apertava as mãos de Petra e Mauricio; mas subitamente soltou-os e +dando um debil gemido, levou-as aos olhos e disse:</p> + +<p>—Não posso!... Não posso!... Perdi a luz dos olhos!... Estou cego!... +Amparo!... Amparo!... Amo-te como sempre!... Meu Deus!... Recebei-me!...</p> + +<p>Os braços do pintor cairam sem forças, estremeceu todo o corpo, +abriram-se-lhe e fecharam-se-lhe tres vezes as palpebras, e um debil suspiro se +lhe escapou do peito.</p> + +<p>Depois ficou immovel na cadeira e reinou o silencio frio da morte.</p> + +<p>A alma do pintor abandonára a materia.</p> + +<p>Ernesto já não existia.</p> + +<p>Pobre filho do genio! Pobre sonhador que trocou a sua gloria, o seu futuro, +por um beijo.</p> + +<p>Mauricio e Petra ajoelharam junto da cadeira onde jazia o seu hospede, e com +os olhos cheios de lagrimas, resaram pelo eterno descanço d'aquelle +desventurado moço que tinha deixado de existir, e em cujos pallidos e +entreabertos labios julgavam ver um sorriso triste, lamentoso, como a morte que +lh'o produzira.<span class="pn">{178}</span></p> + + + +<h4><a name="SECTION00028000">CAPITULO XXVIII</a></h4> + +<h2>Conclusão</h2> + +<p>O sacerdote, que ouvira o pintor em confissão, em signal de agradecimento +pela bellissima Senhora das Dôres que elle offerecera á sua egreja, resou uma +missa cantada pelo descanço da alma do artista.</p> + +<p>Mauricio deu sepultura ao corpo de Ernesto no cemiterio da villa de +Orgaz.</p> + +<p>Depois de cumpridos estes tristes deveres, Mauricio dispôz-se a cumprir as +ultimas vontades do seu hospede.</p> + +<p>Preparou tudo para a viagem e disse á mulher:</p> + +<p>—Ámanhã vou a Madrid desempenhar-me das commissões de que me +encarregou o senhor Ernesto. Durante a minha ausencia se não queres ficar só +levar-te-hei até Toledo. Calculo não me demorar mais de tres dias.</p> + +<p>—Vae socegado e sem pressa; eu não deixo a casa onde estão os nossos +haveres. Demais, os pastores têem as choças aqui perto, e se tivesse +necessidade, bem sabes que me prestariam qualquer auxilio.</p> + +<p>Mauricio partiu.</p> + +<p>A carta que Ernesto escrevêra aos seus amigos da rua do Prado, resumia-se a +uma terna despedida.</p> + +<p>Sigamos, pois, Mauricio, a casa do conde de Loreto.</p> + +<p>Fernando del Villar, por quem uma carruagem esperava á porta, descia a +escada do seu palacio quando viu entrar Mauricio com os tres quadros +perfeitamente empacotados.</p> + +<p>O conde parou ao reconhecer o caçador dos montes de Toledo.<span +class="pn">{179}</span></p> + +<p>—Ah! É o senhor? lhe disse. Como está Ernesto?</p> + +<p>—Morreu! respondeu Mauricio.</p> + +<p>—Como? Morreu?</p> + +<p>—Ha quatro dias, senhor conde.</p> + +<p>—Pobre rapaz! Mas suba, suba.</p> + +<p>O conde começou a subir precipitadamente, seguido de Mauricio, atravessou +varias casas e por fim entrou n'um elegante e luxuoso escriptorio.</p> + +<p>—Morreu!... repetiu o conde deixando-se cair n'uma cadeira. Pobre +Ernesto! Não esperava similhante noticia. Sente-se, sente-se, meu amigo, e +diga-me qual o fim da sua vinda, porque creio que ha mais alguma cousa do que +annunciar-me tão irreparavel desgraça.</p> + +<p>—O senhor Ernesto encarregou-me na vespera da sua morte de trazer ao +senhor conde estes tres retratos e esta carta.</p> + +<p>O conde levantou-se, desatou o cordão que prendia os quadros, e, collocando +cada um em sua cadeira, levantou o estore da janella para que entrasse mais +luz.</p> + +<p>Quando os olhos se fixaram nos retratos, e em especial no da condessa, não +poude conter uma exclamação, um grito de assombro.</p> + +<p>—Isto é admiravel! Isto é admiravel! Que pena que homens assim vivam +tão pouco!</p> + +<p>E ficou immovel como que extasiado deante do retrato da mulher.</p> + +<p>O conde era um conhecedor de pintura. Viajára muito e vira muitissimo; +conhecia toda essa collecção de retratos celebres, que honram os seus auctores, +pendurados em exposição nas paredes dos museus; mas nenhum ainda lhe produzira +tanta admiração como a tela que tinha ante si.</p> + +<p>O retrato de Amparo era uma obra-prima, pelo desenho, pelo colorido e +sobretudo pela parecença.</p> + +<p>Demais a bôcca d'aquella mulher, perfeitamente modelada, tinha uma expressão +tal que parecia ter vida. Dir-se-hia que aquelles labios humidos, de uma côr +bella, um pouco entreabertos, palpitantes de amor e de ternura, iam dar um +d'esses beijos que inflammam<span class="pn">{180}</span> para sempre a alma do +homem que o recebe.</p> + +<p>Os olhos, de belleza irresistivel, meio velados pelas compridas pestanas +exprimiam tambem amor e melancholia.</p> + +<p>Ao conde de Loreto nunca parecêra tão formosa a mulher como n'aquelle +momento em que comparava o original com o retrato; mas aquelle retrato, onde a +mão do pintor, sem se servir da adulação, possuia alguma cousa mais do que a +frialdade immovel da pintura, tinha por assim dizer a alma do artista occulta +atraz dos olhos e atravez aquella bôcca encantadora.</p> + +<p>Ninguem, ao vêr o retrato, duvidaria de que estava um beijo suspenso dos +divinos labios d'aquella mulher, e, comtudo, o pintor não violára nem uma só +linha, nem na mais delicada sombra, a posição natural d'aquella incomparavel +bôcca.</p> + +<p>O conde, que assim o comprehendeu, teve o retrato por uma obra-prima, e, +amante da arte que immortalizou Raphael, não podia desviar os olhos do +quadro.</p> + +<p>Durante um quarto de hora Fernando permaneceu como um extasiado. Mauricio +estava triste e silencioso a seu lado.</p> + +<p>Quando se cançou de contemplal-o, viu que tinha uma carta na mão. Era a que +pouco antes lhe entregára o honrado Mauricio.</p> + +<p>Rasgou o envellope e leu:</p> + +<p> </p> + +<p>«Senhor conde de Loreto.</p> + +<div style="margin-left:3em;"> +<p>«Prestes a entregar a alma a Deus e o corpo á terra, pego na penna com mão +fraca para lhe enviar as minhas despedidas. </p> + +<p>«Quando receber a minha carta já terei deixado de existir. Um sêr a menos na +terra, uma particula de pó a mais em algum ignorado cemiterio d'estas regiões; +mas em compensação, outros seres nascem, emquanto o vento levanta o pó dos que +morrem. O mundo<span class="pn">{181}</span> segue o seu caminho: esta é a +cadeia da humanidade. </p> + +<p>«Remetto-lhe os tres retratos offerecidos. São as minhas ultimas obras; +depois d'ellas os meus pobres pinceis não offenderão mais a arte inutilisando +telas, estragando tintas. O unico merito que se lhe poderá attribuir será a +parecença, e isso, sem duvida por que eu, durante o meu voluntario e penoso +desterro, me não esqueci nem um só instante dos meus amigos. </p> + +<p>«Vou concluir pedindo-lhe, senhor conde, um favor. Mauricio e Petra, isto é, +o portador d'esta e sua mulher, foram durante a minha doença dois irmãos +carinhosos. Se eu fosse tão rico como Salomão, deixar-lhes-hia toda a minha +fortuna e creio que assim mesmo não lhes pagaria quanto lhes devo; mas sou +pobre, e só posso pagar-lhes com amor e agradecimento os beneficios recebidos. +</p> + +<p>«Assim, pois, senhor conde, peço-lhe que entregue a Mauricio o valor que der +aos tres retratos para que tenham com essa importancia uma recompensa do muito +que lhes devo. </p> + +<p>«Mauricio é um honrado caçador de profissão que me serviu com desinteresse e +sem esperança de recompensa: não sabe portanto que me occupo d'elle n'esta +carta. </p> + +<p>«Desculpe-me, senhor conde, a liberdade que tomo, e não se esqueça de que ao +soltar o meu ultimo suspiro bemdirei os meus amigos. </p> + +<p>«Apresente os meus respeitos á senhora condessa e dê um abraço de eterna +despedida ao meu bom amigo D. Ventura. </p> + +<p +style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;"><i>Ernesto.</i>»</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>O conde acabou a leitura da carta commovido, dobrou-a e guardou-a na +algibeira.<span class="pn">{182}</span></p> + +<p>Nos olhos havia uma certa humidade, devida ás lagrimas.</p> + +<p>Mauricio, vendo que o conde guardava silencio, e desejando acabar com +aquella visita, disse:</p> + +<p>—Se o senhor conde m'o permitte, retiro-me, pois preciso ainda esta +noite regressar a Toledo.</p> + +<p>O conde dirigiu-se para o cofre, abriu-o, e, depois de pensar um momento, +começou a contar notas de banco.</p> + +<p>—Mauricio, disse Fernando, ignora sem duvida qual a missão de que o +meu amigo Ernesto me encarrega n'esta carta.</p> + +<p>—Só me disse para a entregar ao senhor conde juntamente com os +retratos.</p> + +<p>—Pois bem; Ernesto encarrega-me de lhe entregar seis mil duros que lhe +devo.</p> + +<p>—A mim? disse admirado o caçador.</p> + +<p>—Sim, a si.</p> + +<p>—Mas que devo fazer a esse dinheiro? Porque elle nada me disse ao +morrer.</p> + +<p>—Guardál-os para si.</p> + +<p>—É impossivel! Seis mil duros é uma fortuna para um pobre como eu.</p> + +<p>O conde, admirado da honradez d'aquelle homem, teve um nobre pensamento, e +ajuntou:</p> + +<p>—Desculpe-me; enganei-me.</p> + +<p>—Eu logo vi que não podia ser, disse Mauricio quasi contente.</p> + +<p>—Enganei-me na importancia, continuou o conde: em logar de seis mil +duros são dez mil.</p> + +<p>Mauricio empallideceu. Era uma fortuna.</p> + +<p>O conde entretanto contou dez mil duros em notas do banco de quatro mil +<i>reales</i>, e, collocando-os depois n'uma bandeja, approximou-se de +Mauricio, dizendo:</p> + +<p>—Isto é o que Ernesto Alvarez deixa como herança a Mauricio e Petra +pelo seu generoso comportamento, pelos seus bellos sentimentos. Agora eu, o +conde de Loreto, offereço a Mauricio, quando se fartar de ser caçador, o logar +de administrador<span class="pn">{183}</span> em um monte nas Asturias, com +vinte e cinco reales por dia, casa, lenha e mais vantagens que me não recordam +agora.</p> + +<p>E o conde, apertando a mão ao honrado montanhez, ajuntou:</p> + +<p>—Vá a Toledo, diga a sua mulher o que o senhor Ernesto dispôz na sua +ultima carta, pense socegadamente o que mais lhe convêm, que aqui me encontrará +sempre disposto a cumprir a minha palavra.</p> + +<p>Mauricio pegou com a mão trémula nos dez mil reales, apertou depois de +encontro ao peito a mão do conde e, com olhos marejados de lagrimas e o parecer +bastante commovido, disse:</p> + +<p>—Mas que fiz eu para merecer tantos favores?</p> + +<p>—Foi um homem de bem, um homem justo, respondeu o conde.</p> + +<p>—Ah! a minha pobre Petra vae enlouquecer de alegria. Ella que dentro +em pouco vae ser mãe! Ella, que nunca viu cem mil reales! Ella que é tão boa! +Todos os nossos filhos aprenderão a bem dizerem os nomes do senhor Ernesto e do +senhor conde de Loreto.</p> + +<p>Fernando acompanhou Mauricio até á porta, depois voltou para o escriptorio +e, sentando-se em frente do retrato da mulher, disse:</p> + +<p>—Ernesto não existe, mas nos labios d'este retrato, n'aquella bôcca +doce, apaixonada, amorosa como um beijo, deixou escripta a historia da sua +morte.</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">FIM</p> + +<p><span class="pn">{184}</span></p> + +<p> </p> + +<div class="rodape"> +<p><a name="foot162" href="#tex2html1" id="foot162"><sup>[1]</sup></a> Um duro +corresponde a 900 réis e um real a 50 réis, approximadamente.</p> + +<p><a name="foot606" href="#tex2html2" id="foot606"><sup>[2]</sup></a> Moeda de +ouro, que vale approximadamente 14$500 réis.</p> + +<p style="text-align: right;"><i>N. do T.</i></p> +</div> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h2>INDICE</h2> +<ul class="TofC"> + <li><a name="tex2html61" href="#SECTION0001000">CAPITULO I—Uma chavena + de café</a> </li> + <li><a name="tex2html63" href="#SECTION0002000">CAPITULO II—Uma noite + no Colyseu</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html65" href="#SECTION0003000">CAPITULO III—Sonhos + côr-de-rosa</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html67" href="#SECTION0004000">CAPITULO IV—O pintor e + o judeu</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html69" href="#SECTION0005000">CAPITULO V—O grupo de + Niobe</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html71" href="#SECTION0006000">CAPITULO VI—Um + beijo</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html73" href="#SECTION0007000">CAPITULO + VII—Separação</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html75" href="#SECTION0008000">CAPITULO VIII—Caminho + de Hespanha</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html77" href="#SECTION0009000">CAPITULO IX—De Florença + a Paris</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html79" href="#SECTION00010000">CAPITULO X—A rosa de + brilhantes</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html81" href="#SECTION00011000">CAPITULO XI—Mais + um</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html83" href="#SECTION00012000">CAPITULO XII—Como se + pede</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html85" href="#SECTION00013000">CAPITULO XIII—Os tres + amigos</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html87" href="#SECTION00014000">CAPITULO + XIV—Curiosidade não satisfeita</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html89" href="#SECTION00015000">CAPITULO XV—Carta + interrompida</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html91" href="#SECTION00016000">CAPITULO + XVI—Propostas</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html93" href="#SECTION00017000">CAPITULO + XVII—Confiança</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html95" href="#SECTION00018000">CAPITULO XVIII—A + golfada de sangue</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html97" href="#SECTION00019000">CAPITULO XIX—Pagar a + hospitalidade</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html99" href="#SECTION00020000">CAPITULO + XX—Abnegação</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html101" href="#SECTION00021000">CAPITULO + XXI—Abandonando Madrid</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html103" href="#SECTION00022000">CAPITULO XXII—Vida de + recordações</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html105" href="#SECTION00023000">CAPITULO XXIII—Uma + caçada</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html107" href="#SECTION00024000">CAPITULO XXIV—Uma + carta e um annel</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html109" href="#SECTION00025000">CAPITULO XXV—O + regresso de Mauricio</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html111" href="#SECTION00026000">CAPITULO XXVI—Uma + caçada ás raposas</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html113" href="#SECTION00027000">CAPITULO XXVII—O anjo + da morte</a> <br> + </li> + <li><a name="tex2html115" href="#SECTION00028000" id="tex2html115">CAPITULO + XXVIII—Conclusão</a><!--—End of Table of Contents—--> + </li> +</ul> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p +style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto; font-weight: bold;"><big>Livraria +Editora Guimarães & C.ª</big></p> + +<p +style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">68—RUA +DO MUNDO—70</p> + +<p +style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto; font-weight: bold;">LISBOA</p> + +<div style="font-size: 0.7em;"> +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">CONDESSA +DE GENCÉ</p> + +<p><b>Guia mundano das meninas casadoiras</b>, 1 vol. br. 500, enc. 700</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">D. JOÃO +DA CAMARA</p> + +<p><b>Meia noite</b>, drama. 500</p> + +<p><b>Contos</b>, 1 vol. 600</p> + +<p><b>A cidade</b>, versos, 1 vol. 300</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">DELFIM +GUIMARÃES</p> + +<p><b>Outonaes</b>, 1 vol. 500</p> + +<p><b>Aldeia na Corte</b>, 1 vol. 500</p> + +<p><b>O Rosquedo</b>, 1 vol. 200</p> + +<p><b>Juramento Sagrado</b>, 1 vol. 200</p> + +<p><b>Ares do Minho</b>, 1 vol. 200</p> + +<p><b>Flores do mal</b>, interpretação em versos portugueses, de poesias de +Baudelaire, 1 vol. 700</p> + +<p><b>Bernardim Ribeiro</b>, (o poeta Crisfal), 1 vol. 800</p> + +<p><b>Theofilo Braga e a lenda do Crisfal</b>, 1 vol. 500</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">DR. A. DA +SILVA GAYO</p> + +<p><b>Mario</b>, romance historico, 1 vol. ill. br. 1$700, enc. 2$200</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">CARLOS +BENTO DA MAIA</p> + +<p><b>Tratado completo de cosinha e de copa</b>. 1 vol., br. 2$000, enc. +2$500</p> + +<p><b>Tratado de risco e côrte de roupa</b>, 1 vol. 600</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">JOSÉ +VALDEZ</p> + +<p><b>O cão</b>, raças, hygiene, ensino, e tratamento, 1 vol. 500</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">ANDRÉ +ANGIULI</p> + +<p><b>A pedagogia, o estado e a familia</b>, 1 vol. 300</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">JULIO +PAYOT</p> + +<p><b>A moral na escola</b>, 1 vol. 400</p> + +<p><b>A educação da vontade</b>, 1 vol. 500</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">DR. +MAURICIO DE FLEURI</p> + +<p><b>Para prolongar a vida</b>, 1 vol. 400</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">MIGUEL +CERVANTES</p> + +<p><b>D. Quixote de la Mancha</b>, ed. ill. com 200 grav. 2 vol. br. 2$400, +enc. 3$200</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">FRANCISCO +D'ALMEIDA</p> + +<p><b>Thesouro domestico</b>, receitas e processos uteis, 1 vol. 800</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">JOÃO +CHAGAS</p> + +<p><b>O Crime da Sociedade</b>, 2 vol. in-4.º, ill. 1 vol. 3$600</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">LEÃO +TOLSTOI</p> + +<p><b>A escravidão moderna</b>, 1 vol. 200</p> + +<p><b>A Sonata de Kreutzer</b>, 1 vol. 200</p> + +<p><b>O canto do cysne</b>, 1 vol. 200</p> + +<p><b>Ana Karenine</b>, 3 vol. 600</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">CAROLUS E +LADOUCETE</p> + +<p><b>Os amores de Napoleão</b>, romance historico. 1 vol. de 1000 pag. +profusamente ill. br. 2$000, enc. 2$600</p> + +<p style="text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto;">OCTAVIO +MIRBEAU</p> + +<p><b>Memorias de uma criada de quarto</b>, 1 vol. 600</p> + +<p> </p> +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of Project Gutenberg's Historia de um beijo, by Enrique Pérez Escrich + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE UM BEIJO *** + +***** This file should be named 32793-h.htm or 32793-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/2/7/9/32793/ + +Produced by Pedro Saborano + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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