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diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes new file mode 100644 index 0000000..6833f05 --- /dev/null +++ b/.gitattributes @@ -0,0 +1,3 @@ +* text=auto +*.txt text +*.md text diff --git a/31657-8.txt b/31657-8.txt new file mode 100644 index 0000000..a4c4b71 --- /dev/null +++ b/31657-8.txt @@ -0,0 +1,6087 @@ +Project Gutenberg's Um club da Má-Lingua, by Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Um club da Má-Lingua + +Author: Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky + +Translator: Manuel de Macedo + +Release Date: March 15, 2010 [EBook #31657] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UM CLUB DA MÁ-LINGUA *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net + + + + + + + Notas de transcrição: + + O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em + 1908. + + Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos + alguns pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a + leitura do texto, e que por isso não considerámos necessário + assinalá-los. Os nomes das personagens apareciam impressos de + múltiplas formas, e foi feito um esforço de uniformização da grafia + dos mesmos, tomando como referencia uma tradução em inglês da mesma + obra. Na versão htm deste texto estão assinaladas as correcções. + + +UM CLUB DA MÁ-LINGUA + + + + + +FÉDOR (THEODORO) DOSTOIEVSKY + +Um club da má-lingua + +TRADUCÇÃO DE MANUEL DE MACEDO + + + +1908 + +"A EDITORA" + +_Largo do Conde Barão, 50_ + +LISBOA + + + +Typographia "A Editora"--Largo do Conde Barão, 50--Lisboa + + + + +O SONHO DO PRINCIPE GAVRILA + + + + +I + + +Maria Alexandrovna Moskalev é com toda a certeza a dama de mais subida +importancia em Mordassov, nem haverá quem o conteste. Ao contemplál-a, +dirieis que não precisa seja de quem fôr, e que, antes pelo contrario, +toda a gente lhe deve obrigações. Goza de poucas sympathias, na verdade, +é cordialmente detestada, até: mas temida tambem universalmente, e é +isso que ella quer. E não representará isto um rasgo de finura politica? +Por que será que, por exemplo, apezar de nutrir paixão por mexericos e +de não poder dormir descansada no dia em que não soube nada de novo, por +que será, sim, que pela apparencia de Maria Alexandrovna, tal é a sua +majestade, não occorre á mente, seja de quem fôr, o facto de ella ser a +primeira coscovilheira d'este mundo, ou quando menos, de Mordassov? +Dir-se-ia antes que assim que apparece deveriam cessar, acto-continuo, +de todo os mexericos, as comadres tremerem como garotetes em presença do +prefeito, e as conversas guindarem-se desde logo aos assuntos mais +transcendentes. E todavia, ella, a respeito de uns certos Mordassovenses +está em dia com umas chronicas tão escandalosas que, se as dissesse a +proposito e provando-lhes--como ella o sabe fazer--a authenticidade, +Mordassov em pêso tremeria tal qual tremeu Lisboa em tempos. Mas se ella +quanto a segredos é o proprio tumulo; é necessario dar-se um concurso de +circumstancias extraordinarias para que ella consinta em falar n'umas +certas coisas,--e isto ainda entre amigos da maxima intimidade. Poderá +arriscar uma allusão, dar a entender que "está em dia"; mas pella-se por +manter a qualquer individuo--homem ou mulher--na sugestão de um temor +perpetuo, em vez de o esmagar de um golpe. Isto é que é intelligencia, +isto é que é tactica! Maria Alexandrovna sempre se distinguiu mercê do +seu irreprehensivel _comme il faut_. É citada como modêlo. Lá quanto ao +_comme il faut_ não tem rival em toda Mordassov. + +Poderá, com uma palavrinha, matar, esfacelar, anniquilar uma pessoa que +lhe haja cahido no desagrado,--mas sem lhe tocar, sem suspeitar, +dir-se-hia, a importancia da dita palavrinha. Semelhante traço de +caracter assás trescala a alta sociedade. + +Tem optimas relações. A Mordassov ainda não veiu pessoa que não ficasse +penhorada com as recepções de Maria Alexandrovna. O maximo numero até de +taes visitantes accidentaes ficaram-se carteando com ella. Houve até um +poeta que lhe dedicou versos: Maria Alexandrovna exhibe-os com +desvanecimento. Um litterato de arribação offereceu-lhe uma novélla da +qual fizera leitura em casa da nobre senhora, durante um sarau: produziu +optimo effeito. Um sabio allemão, vindo expressamente de Carlsruhe no +intuito de estudar uma especie singular de vermezinhos chavelhudos que +se encontram no nosso governo (o dito sabio escreveu ácerca do alludido +vermezinho quatro volumes _in-quarto_) tão encantado ficou com a +amabilidade de Maria Alexandrovna, que ainda hoje, lá de Carlsruhe, lhe +escreve cartas respeitosas e moraes. Chegaram até a estabelecer +parallelos entre Napoleão e Maria Alexandrovna. Foi brincadeira, facecia +de ciumentos, e comtudo, apontando a estranheza de semelhante +comparação, atrever-me-hei a fazer uma pergunta ingenua; por que seria +que a Napoleão, no acume da sua gloria, o tomaria uma vertigem? Os +legitimistas attribuem uma tal fraqueza á vilã extracção de Bonaparte, +que nem era de estirpe realenga nem sequer de nobreza limpa. Por +espirituosa que seja semelhante opinião,--pois tresanda á mais brilhante +épocha da antiga côrte franceza,--atrever-me-hei ainda a perguntar: mas +por que é que a Maria Alexandrovna não a tomaram nunca vertigens? Pois é +um facto; veiu a ser e depois ficou sendo sempre a dama de mais subida +importancia em Mordassov. Conheceu horas atribuladas, não ha duvida, e, +em certas circumstancias, houve até quem dissesse lá comsigo: «Mas que é +que ha de agora fazer Maria Alexandrovna?» E o obstaculo achava-se +transposto como que por encanto. + +Toda a gente estará lembrada da maneira porque o marido, o Aphanassi +Matveich, perdeu a posição. Deu-se isso em seguida a uma inspecção aos +fiscaes a quem esta achou tolos em demasia. E a cuidarem que Maria +Alexandrovna não deixaria de perder o sizo, humilhar-se, supplicar, +n'uma palavra, "rebaixar a sua linguarice." Longe d'isso! Percebendo que +as supplicas nada adeantariam, houve-se de modo que a sua influencia não +soffreu a minima quebra, e que a sua casa continuou a ser a primeira +casa de Mordassov. Anna Nikolaievna Antipova, inimiga figadal de Maria +Alexandrovna, a despeito das exteriorizações de mundana amizade, já +cantava victoria. Mas não tardaram em perceber que era difficil +atrapalhar Maria Alexandrovna, e que esta era mais fina do que a +suppunham. + +Aqui, vem ao pintar umas palavras a respeito de Aphanassi Matveich, +marido de Maria Alexandrovna. É um homem muito bem parecido, a correcção +em pessoa. Mas, nos casos criticos, assustava-se que nem um borrêgo que +percebesse que lhe mudaram o que quer que fosse ao cancêlo do redil. +Circumstancia que lhe não tolhia o ostentar ordinariamente uns ares de +summa importancia, sobretudo nos jantares de apparato, quando punha a +gravata branca. A majestade de taes sujeitos dura até ao momento de +abrirem a bôca: mas então é tratar de metter rolha nos ouvidos. +Semelhante homem, com toda a certeza, é indigno de pertencer a Maria +Alexandrovna. É esta a opinião geral. + +E d'ahi, é unicamente devido á genialissima esposa o facto de elle se +conservar no seu posto. A meu ver, ha muito tempo que o deveriam ter +espetado na horta á laia de espantalho para os pardaes. + +Alli, e só alli, poderia ter sido de alguma utilidade. Maria +Alexandrovna fez, pois, muito bem em exilar Aphanassi Matveich para a +aldeia de cento e vinte almas que ella possuia a tres verstas de +Mordassov. E de caminho, digamos que a dita propriedade representava a +totalidade dos bens facultando a Maria Alexandrovna o custear tão bem, e +com tamanho estadão, a sua casa. Facil foi pois o perceberem que havia +supportado Aphanassi Matveich unica e exclusivamente por causa do seu +cargo, dos respectivos ordenados e... e ainda de uns certos +emolumentosinhos. Agora, que, velho, já nem representava ordenados nem +emolumentos, não seria de justiça affastá-lo na qualidade de inutil +trambolho? + +Aphanassi Matveich leva no campo uma vida agradabilissima. Fiz-lhe uma +visita e passei com elle uma hora encantadora. Ensaia ao espelho as +gravatas brancas, engraxa as proprias botas, não por necessidade, mas +sim por amor da arte, porque gosta de ver as botas a luzir muito. Toma +chá tres vezes ao dia, vae a miudo ao banho e não se rala com coisa +nenhuma... + +Estão lembrados d'aquella nojenta historia, ha dezoito mêses, a +proposito da Zinaida Aphanassièvna, filha unica, de Maria Alexandrovna e +de Aphanassi Matveich? Zinaida é uma beldade, e uma menina muito bem +educada, de mais a mais; mas tem vinte e trez annos e ainda está +solteira. Uma das principaes causas a que atribuem o celibato da Zina, é +o boato vago da estrambotica ligação que dizem haver tido, ha +exactamente dezoito mêses, com um réles utchitel[1]--boato que ainda se +não desvaneceu.--Citam uma missiva amorosa escrita pela Zina e que dizem +ter corrido Mordassov de um extremo ao outro. Mas, por favor, não me +dirão, leram a tal epistola? Não houve em Mordassov pessoa que a não +visse. E então! onde pára ella actualmente? Toda a gente ouviu falar +nella, mas quem foi que a viu? Eu, da minha parte, ainda não encontrei +uma só pessoa que a tenha visto com seus proprios olhos. + +Alluda alguem á tal epistola na presença de Maria Alexandrovna e aposto +desde já que ella não perceberá sequer esse alguem. Mas supponhamos que +tenha havido o que quer que fosse de verdade em semelhante atoarda, e +que a Zina haja escrito a decantada epistola, (effectivamente, estou +convencido de que a escreveu): admirem então a habilidade de Maria +Alexandrovna. + +Como se havia de atabafar caso tão escandaloso?--Pois bem, procurem, nem +vestigios, prova, que é della? Maria Alexandrovna nem sequer se digna +tomar conhecimento de calumnia tão soez, e comtudo, Deus sabe o trabalho +que lhe custou conservar intacta a honra da filha unica! Que a Zina não +tenha ainda casado, isso percebe-se, de mais, até: onde iria ella por +aqui encontrar noivo? A Zina só pode casar com um principe reinante! Já +alguem viu mais peregrina formosura? É soberba, lá isso é... Dizem que +Mozgliakov a pedira em casamento, mas semelhante consorcio jámais se +effectuará. Quem vem a ser esse tal Mozgliakov? É môço, assás bem +parecido, elegante, peterburguense, proprietario de cento e cincoenta +almas livres de hypotheca. Mas não fura paredes! Leviano, tagarélla, +apaixonado pelas novas ideias... E que representarão cento e cincoenta +almas com ideias novas? O casamento nunca se realizará. + +Quanto acaba de ler o amavel leitor foi escrito, ha cinco mêses, +unicamente por admiração. Devo convir em que nutro uma tal ou qual +sympathia por Maria Alexandrovna. Quizera escrever o panegyrico de tão +magnifica dama sob a forma de uma carta dirigida a um amigo, a exemplo +d'aquellas que outrora publicavam as revistas, n'esses bons tempos que +já lá vão, e que, louvôres a Deus! não voltam cá outra vez! + +Mas se não tenho um unico amigo, e, graças á incuravel timidez que de +mim se apodera assim que se trata de litteratura, a minha obra ficou na +gaveta na qualidade de tentame sem seguimento. + +Cinco mezes eram pois decorridos, quando em Mordassov se deu um +acontecimento extraordinario. + +Um dia, de madrugada, eis que chega o principe K... e vae hospedar-se em +casa de Maria Alexandrovna. + +As consequencias d'este acontecimento são incalculaveis. O principe +passou apenas trez dias em Mordassov. Mas esses trez dias deixaram +recordações fataes e inexpungiveis. Direi mais: o principe foi causa de +uma verdadeira revolução n'esta nossa cidade. A narrativa da alludida +revolução virá a ser, certamente, a pagina mais importante da historia +de Mordassov. E é essa pagina que eu, após innumeras hesitações, me +resolvi a offerecer, sob forma litteraria ao criterio do respeitavel +publico. + +A minha narrativa poder-se-ia intitular: "Grandeza e Decadencia de Maria +Alexandrovna." Grande e seductor assumpto para um poeta. + + + + +II + + +Direi desde já que o principe K... não era um ancião centenario. + +Á primeira vista, comtudo, ninguem podia deixar de pensar que ia +reverter outra vez aos elementos, a tal ponto se achava gasto! Corriam +em Mordassov as historias mais estranhas a respeito do dito principe. +Affirmavam que estava um tanto ou quanto tinôco. + +Effectivamente, parecia exquisito que um _pomiestchik_[2] de uma das +mais notaveis familias, dono de quatro mil almas, em posição de obter +consideravel influencia na provincia, permanecesse enclausurado, tal +qual um eremitão, na sua magnifica propriedade. Muitos que o tinham +visto, seis ou sete annos atraz, por occasião da primeira vinda do +principe a Mordassov, affirmavam que nesse tempo nem podia supportar a +solidão nem tinha ainda aquelles seus costumes de eremita. + +Eis os esclarecimentos que pude colher a seu respeito bebidos das mais +seguras fontes. + +Outrora--e onde irá isso!--o principe havia effectuado na sociedade um +ingresso de aurora... Durante os annos todos da juventude levara vida +airada, requestando as damas, esbanjando por vezes repetidas o seu +dinheiro em viagens ao estrangeiro, cantando romanzas, fazendo +trocadilhos; mas não se distinguia mediante uma intelligencia acima da +marca. Em semelhante vida, não tardou em dar cabo do que tinha, e, +quando chegaram os dias da senéctude, ficou sem um kopek. Aconselhou-lhe +alguem que voltasse para a sua aldeia, que principiava já a ser vendida +em hasta publica. + +Aproveitou o conselho, e foi nessa occasião que veiu passar seis mêses +em Mordassov. Agradou-lhe immenso a vida de provincia, e pelo espaço de +seis mêses acabou de se "alimpar" em amorios com as mundanas +provinciaes. Era aliás excellente pessoa, de um fausto principesco (em +Mordassov o fausto é o signal caracteristico da mais alta aristocracia.) + +As damas sobretudo não cessavam de se alegrar com um hospede encantador +a tal ponto. Deixou entre nós curiosissimas recordações; entre outras +exquisitices, contavam que o principe gastava a maxima parte do dia ao +toucador. Parecia todo elle feito de pedacinhos enxertados. Scismavam +onde e como fôra que elle se haveria decomposto d'aquella maneira. Usava +chinó, bigode, suissas, e inclusivé uma pêra, tudo postiço até o minimo +pellinho, e tudo preto como o proprio azeviche--uma lindeza! Levava todo +o santo dia a pôr caio e carmim. Affirmavam que dispunha de um talento +especialissimo em disfarçar as rugas do rosto por meio de umas +mólazinhas escondidas com o chinó. Affirmavam ainda que trazia +espartilho, havendo ficado sem uma costella ao saltar desastradamente de +uma janella abaixo durante uma aventura amorosa, na Italia. Coxeava da +perna esquerda, uma perna postiça de cortiça, affirmavam, havendo +quebrado a verdadeira em Paris, em outra aventura. É possivel que +houvesse exaggêro, mas o que é certo, é que o olho direito era de vidro: +illudia completamente, aliás; ninguem diria que não era natural. Os +proprios dentes eram artificiaes. Passava dias inteiros a lavar-se com +aguas-garantidas, a perfumar-se, a encalamistrar-se. Ultimamente, +comtudo, principiava a fazer-se velho e a tresler. Parecia estar prestes +a terminar a sua carreira, e sabia toda a gente que se achava +arruinado,--e eis que de repente lhe morre uma sua parenta muito +chegada, senhora de muita edade, vivendo em Paris, e de quem não +esperava herdar, em seguida a haver enterrado um mez, exactamente, antes +de fallecer, o unico herdeiro. Eram quatro mil almas e uma soberba +propriedade a sessenta verstas de Mordassov a reverterem no principe sem +a minima partilha. Abalou desde logo para Petersburgo a fim de pôr em +ordem seus negocios. Por occasião da partida, offereceram-lhe as damas +um sumptuoso banquete por subscripção. Ha quem se lembre ainda de como, +n'aquelle dia, o principe foi seductor e espirituoso! Era um tiroteio de +calemburgos, de anecdótas extraordinarias. Prometeu voltar o mais breve +possivel para a sua nova propriedade e jurou que na volta daria meza +franca e uma festa--bailes e luminarias--que nunca havia de ter fim. +Depois da sua partida, ficaram as senhoras um anno a falar da tal +promettida festa e impacientes á espera do encantador velhinho. +Organizavam até excursões a Dukhanovo, a aldeóla do principe, onde se +admirava um antigo solar acastellado, um parque adornado de acacias a +imitar leões, colinas artificiaes, lagos em que navegavam barquinhos +tripulados por turcos de madeira, a tocar flauta, pavilhões de +_Mon-Plaisir_, e quejandos attractivos. + +Até que por fim veiu o principe, com grande espanto e não menor decepção +de toda a gente, nem sequer passou por Mordassov e foi encerrar-se em +absoluto isolamento em Dukhanovo. Correram boatos singularissimos. A +datar d'esse momento, torna-se obscura e phantastica a historia do +principe. A principio constou que lá por Petersburgo lhe não tinham +corrido bem os negocios, que os herdeiros, em vista do seu estado senil, +queriam nomear-lhe um conselho judicial receando que voltasse a esbanjar +os seus bens. Ainda mais: accrescentavam que aquelles ávidos caçadores +de heranças tinham querido internál-o n'uma casa de saude! +Afortunadamente para o principe, um seu parente, personagem de summa +importancia, saiu em sua defêsa, provando á evidencia que o pobre homem, +semi-morto e todo elle artificial, não estava para muita dura, +certamente. E que n'essa conformidade os seus bens viriam a reverter nos +herdeiros sem que estes se vissem na necessidade de recorrer á casa de +saude. Eis o que se diz. São compridinhas as linguas lá em Mordassov. +Tudo isto havia assustado o principe, a tal ponto, que se lhe tinha +demudado o genio, descambando em eremitão. Por mera curiosidade, vieram +felicitál-o varios Mordassovenses: e ou não foram recebidos, ou se o +foram foi de modo um tanto exquisito. O principe nem mesmo reconheceu, +ou antes, não quiz reconhecer os seus amigos de outrora. + +O proprio governador o foi visitar, mas voltou pelo mesmo caminho +dizendo que o principe estava tinôco. D'alli em deante notaram que o +governador punha uma cara de palmo, assim que lhe falavam na jornada a +Dukhanovo... Indignavam-se as senhoras. Até que por fim se veiu a saber +uma coisa capital; o principe vivia submettido á tutella de uma figurona +por nome Stepanida Matveiévna,--Deus sabe que casta de mulher!--que +tinha vindo lá de Petersburgo, velha, obêsa, usando constantemente o +mesmo vestido de cassa, e sempre com um mólho de chaves na mão. O +principe obedece-lhe em tudo e por tudo e não se atreve a dar um passo +sem a consultar. Ella, lava-o com suas proprias mãos, apaparica-o, +passeia-o e entretem-n'o, como se fôra um néné; em conclusão, é ella +quem bate com a porta na cara aos parentes que principiam a saber o +caminho de Dukhanovo... Foi muito discutida, sobretudo entre as +senhoras, tão incomprehensivel ligação. Accrescentavam que Stepanida +Matveiévna regia com plenos poderes, e sem ter quem lhe fosse á mão, a +totalidade dos bens do principe. Substitue feitores, creados, arrecada +os rendimentos; é aliás boa a sua administração, e os camponêzes não +vêem outra coisa. Com respeito ao principe, este nem já arreda um passo +do toucador, a ensaiar chinós, pêras postiças, casacos. Uma vez por +outra, joga ás cartas com Stepanida Matveiévna; de vez em quando, dá o +seu passeio n'uma egua inglêsa muito mansa: Stepanida Matveiévna +acompanha-o sempre em carruagem fechada, prompta á primeira voz, visto +como o principe só monta a cavallo por garridice e mal se pode ter em +cima do selim. Acontece-lhe tambem o sair a pé, embrulhado n'um +sobretudo, com um chapéu de palha enterrado na cabeça, um lenço de +mulher ao pescoço, um monoculo no olho e pendurado na mão esquerda um +açafate para recolher cogumelos e flôres campestres. Stepanida +Matveiévna, vae-lhe seguindo as pisadas, levando á tréla dois latagões +de dois lacaios; e um pouco mais atráz, uma carruagem. Se calha +encontrarem um mujik que pára e tira o bonné para lhe fazer a sua +contumélia dizendo: "Bom dia, paezinho principe. Nossa Excellencia, +nosso solzinho!" o principe assesta-lhe o monoculo, acêna-lhe com a +cabeça com bom modo e diz-lhe em francêz: "Bom dia, amigo, bom dia!" +Qual não foi porém o espanto de toda a gente quando, uma bella manhã, se +espalhou o boato de como o principe, aquelle eremitão, aquelle original, +tinha vindo em pessoa a Mordassov e se hospedara em casa de Maria +Alexandrovna! Foi um reboliço por ahi além! Estavam á espera de uma +explicação, e perguntavam uns aos outros: "Que quererá isto dizer?" Não +faltou quem se estivesse enfeitando para ir a casa de Maria +Alexandrovna. Carteavam-se as senhoras, visitavam-se, mandavam as +creadas e os maridos colher informações. O que maior espectação causava +era a circunstancia de se ter ido o principe hospedar em casa de Maria +Alexandrovna, e não em qualquer outra parte. Anna Nikolaievna Antipova +ficou mais escandalizada do que outra qualquer pessoa, visto o principe +ser ainda seu parente, parente muito arredado, é verdade. + + + + +III + + +São dez horas da manhã. Estamos em casa de Maria Alexandrovna, na Rua +Grande, no aposento que a dona da casa, nos dias duplices, enfeita com o +titulo de sala. (Maria Alexandrovna, dispõe tambem de um camarim.) O +papel das paredes é correctissimo. Os moveis, pouco commodos, arvoram +com verdadeira predilecção a côr vermelha. Ha um fogão, e em cima do +fogão um espelho; deante do espelho um relogio tendo por assunto um +Cupido do mais execrando gosto. Nas paredes, no intervallo das janéllas, +dois espelhos a que já tiraram as capas. Adeante dos espelhos, duas +banquinhas, e ainda dois relogios. Toma a metade de um apainelado um +piano de cauda. (Mandaram vir o dito piano para a Zina: cultiva a +musica.) Ao pé do fogão, no qual arde uma bôa fogueira, estão dispostas +umas poltronas em desalinho pinturesco a mais não poder ser. Ao meio +outra banquinha. No outro extremo da casa, ainda outra mesa, tapada com +uma toalha immaculada e em cima, um samovar de prata, a ferver, no meio +de um lindissimo serviço para chá. Uma senhora, residente em casa de +Maria Alexandrovna, a titulo de parenta affastada, Nastassia Petrovna +Ziablova, está especialmente incumbida do chá. + +Duas palavras ácerca da alludida senhora. É viuva, frescalhona, com uns +olhos castanhos escuros muito vivos, assaz bem parecida; é alegre, +velhaca, até; linguareira, escusado será dizê-lo, e sabendo levar agua +ao seu moinho; tem dois filhos no collegio, para ahi, algures. Não se +lhe daria de tornar a casar; vive com bastante independencia; o marido +era official. + +Maria Alexandrovna em pessoa está sentada ao pé do fogão: acha-se de boa +catadura. Traja um vestido verde claro, assentando-lhe a primor. Está +contentissima com a vinda do principe. N'este ensejo, o principe está lá +em cima, todo elle entregue á tarefa de se infunicar. + +Maria Alexandrovna nem sequer pensa em esconder o seu contentamento. +Deante d'ella, um rapaz a fazer boquinhas e a cantar, muito animado, +seja o que fôr. Percebe-se que se desvéla por agradar a quem o está +escutando. Tem vinte e cinco annos. Se não fossem as suas exuberancias, +se não fossem tambem as suas pretensões a engraçado, seria toleravel. +Está bem vestido, é loiro e de agradavel presença. Já a elle nos +referimos, é o senhor Mozgliakov, môço sobre quem se fundaram esperanças +matrimoniaes. Maria Alexandrovna acha-lhe a cabeça um tanto ôca, mas nem +por isso deixa de o receber muito bem. Diz elle que está loucamente +apaixonado pela Zina. Dirige-se a esta continuamente, ancioso por +alcançar um ar de riso a poder de bons ditos e de azoamento. Ella, +comtudo, mantem-n'o a distancia, com extrema frialdade. A joven está de +pé junto ao piano, a folhear um almanaque. É uma dessas mulheres que +produzem effeito geral ao entrarem numa sala. É peregrinamente formosa: +alta, morena, com uns immensos olhos quasi pretos, esbelta, com um collo +magnifico, uns pésinhos encantadores, espaduas e mãos de molde classico, +e um pisar de rainha. Está hoje um tanto descoráda, a pallidez, comtudo, +torna-lhe mais conspicuo o rubido fulgor dos labios por entre os quaes +lhe luzem, tal qual perolas em fio, uns dentinhos miudinhos e regulares. +Era caso para qualquer de nós sonhar com elles, três dias a fio, só de +lhes ter posto a vista em cima. É séria a sua expressão. + +O senhor Mozgliakov dir-se-hia arrecear-se do olhar fito da Zina, pelo +menos não ergue para esta os olhos sem um tal qual enleio. + +É singelissimo o vestido da joven, de gaze branca: Está-lhe bem o +branco, está-lhe lindamente o branco... E d'ahi, que haverá que lhe não +fique bem? Traz enfiado n'um dedo um annel de cabello entrançado. A +julgar pela côr, aquelles cabellos não são os da mamã. Mozgliakov nunca +se afoitou a perguntar de quem seriam aquelles cabellos. Está taciturna, +esta manhã, triste, até, ou preoccupada, pelo menos. Em compensação, +Maria Alexandrovna acha-se em maré de dar á lingua. De vez em quando, +esguêlha uns olhos desconfiados para a Zina, e olhos furtivos quanto +possivel, como que não se arreceando menos da joven. + +--Estou tão contente, Pavel Alexandrovitch, (dir-se-hia pipilar) que +estou capaz de gritar da janella abaixo o meu contentamento a quem passa +pela rua. Sem falarmos da agradabilissima surpreza que nos proporcionou, +a mim e á Zina, com vir quinze dias mais cedo do que o esperavamos. É +caso á parte. Mas o que mais me penhorou foi a attenção que teve +comnosco trazendo comsigo o principe. Se soubesse como eu adoro aquelle +encanto aquelle vélhinho! Não pode comprehender-me! As pessoas da sua +edade seriam incapazes de semelhante affeição. Não sabe as +circumstancias que entre mim e elle se deram, ha seis annos? Lembras-te, +Zina? E eu sem me lembrar de que n'esse tempo estavas em casa de tua +tia. Estou que me não acreditaria, Pavel Alexandrovitch, se eu lhe +dissesse, que servi de guia ao principe, que fui para elle, irmã, mãe? +Havia lhaneza, carinho, nobreza n'aquella nossa ligação. Era... +pastoril!... Nem eu sei como a hei de definir. Eis o motivo porque elle +se lembrou da minha casa com tamanha gratidão, o pobre do principe! E se +eu lhe disser, Pavel Alexandrovitch, que é possivel até que o salvasse +trazendo-o para minha casa? Não podia evitar o confranger-se-me o +coração, durante aquelles seis annos, sempre que me punha a pensar +n'elle!... Eu... quer acreditar?... até sonhava com elle! Dizem que +aquella creatura, a tal sua carcereira, o enfeitiçou, que o deitou a +perder... mas, emfim, o senhor arrancou-o das garras d'aquella harpia! +Urge aproveitar a occasião para o salvar completamente... Mas conte-me, +mais uma vez, como foi que o conseguiu? Descreva-me, muito por miudos, o +encontro de um e outro. Eu ainda agora fiquei tão sobresaltada! Não vi +senão os traços geraes, mas não ha pormenor que não seja precioso a meus +olhos. Se eu sou assim! Pello-me pelas minudencias, nos acontecimentos +de maior vulto, são os pormenores que primeiramente me chamam +attenção... e... emquanto elle se está arrebicando... + +--Mas se eu já lhe contei tudo, apressa-se em responder Mozgliakov, +prompto a recapitular a narrativa pela décima vez. Tinha viajado toda a +noite... não tinha pregado olho; estava com tanta pressa de chegar ao +meu destino! (Esta ultima phrase ia sobrescritada para a Zina.) Tive que +aturar contendas, berreiros por occasião das mudas. Eu proprio, +confesso, não fiz tambem pouca algazarra. É um poema moderno, sem tirar +nem pôr. Mas vamos adeante. Ás seis horas da manhã, em ponto, eis que +chêgo á ultima muda, em Ignichévo. Tranzido, mas, isso sim! nem sequer +tiro uns minutos para me aquécer. Pégo a gritar: "Cavallos!" Estou em +dizer, até, que metti um susto á mulher do capataz das mudas: tinha ao +collo um néné, de peito, e estou com receio que se lhe talhasse o +leite.--Era admiravel o despontar do sol! Sabe, aquelle pó da geada +escarlate e prateada? E eu, sem attentar em coisa nenhuma, ia a vapor! + +Empalmo uns cavallos a um tal conselheiro de collegio,--com quem por um +triz que não tenho um duéllo. Afiançam-me que um quarto de hora antes +tinha abalado da dita muda um certo principe que viaja com cavallos +proprios. Que pernoitara na muda. Quasi que nem lhes dou ouvidos, salto +para a carruagem, vôo por ali fóra tal qual um prisioneiro +escapulido.--Ha uma situação parecida em uma elegia de Fet[3].--Ora, a +nove verstas da cidade, justamente, em vista do retiro de +Svietozerskaia, avisto o que quer que seja de singular! Uma grande +carruagem de jornada caída na estrada. O cocheiro e dois latagões de +dois lacaios, de pé, junto da mesma, e muito atrapalhados. Lá do fundo +da carruagem vinham uns bérros que me confrangiam a alma!... Eu podia +seguir por deante, não tinha nada com isso, mas levou a melhor a +humanidade, pois, como diz Heine, mette o nariz em toda a parte. Paro, +pois. Eu, o meu yamstchik Semene, e uma outra alma russa, accudimos a +ajudar e entre nós seis pômos em pé a carruagem. Pômol-a de pé,--quero +dizer, sobre os patins.--Uns mujiks que levavam uma carga de lenha para +a cidade ajudaram-nos tambem, (apanharam bem boa gorgêta). E eu a dizer +commigo: É o tal principe que passou a noite na muda. Ólho: Santo Deus! +É o principe Gavrila! Que encontro este! "Principe! bradei: tiozinho!" Á +primeira vista, não me conheceu; nem sei se me reconheceria á segunda: e +agora mesmo não estou bem certo em que me reconhecesse. Creio que nem +sequer já se lembra do nosso parentesco. Vi-o pela primeira vez, em +Petersburgo. N'esse tempo era eu um garoto. Lembro-me muito bem, mas +elle, podia-se lá lembrar de mim? Apresento-me: fica encantado! +Beija-me, e depois pega a tremer de susto e, em conclusão, desata a +soluçar. Por Deus! Vi-o com meus proprios olhos: até chorou! Palavra +puxa palavra e, em conclusão, acabei por lhe propôr que viesse até +Mordassov tomar um dia de descanso. Consentiu sem hesitações. +Declarou-me que ia para o retiro de Svietozerskaia, para casa do +arcypreste Missail a quem tem em grande conta; que a Stepanida +Matvéina--qual de nós, parentes do Principe, não terá ouvido falar de +Stepanida Matveiévna? O anno passado, escorraçou-me de Dukhanovo com o +pau da vassoira!... Que a Stepanida Matveiévna recebera pois uma carta +exigindo a sua presença em Moscou pelo fallecimento de alguem, o pae ou +a filha, nem sei nem quero saber,--talvez que pae e filha ao mesmo +tempo, e ainda por cima para ahi qualquer segundo sobrinho empregado na +fiscalização dos vinhos. N'uma palavra, tivera que conformar-se, +desamparar o seu principe por uns dez dias e levantar vôo, a toda a +pressa, para a capital. + +O principe demóra-se um dia; dois dias, sem se mexer, a experimentar +chinós, a encalamistrar-se, a pentear-se, a fazer paciencias: em +conclusão, a solidão acabou por lhe ser pesada. Foi então que mandou pôr +o trem e metteu a caminho do retiro de Svietozerskaia. Alguem do seu +séquito, com medo do phantasma da Stepanida Matveiévna, atrevera-se a +ir-lhe á mão. Mas o principe é cabeçudo e tinha abalado na vespera, +depois de jantar, pernoitando em Ignichevo, largara da muda de +madrugada, e, justamente na volta do caminho que vae ter á residencia do +arcypreste, por pouco se não despenha com a carruagem n'uma barroca. +Salvei-o e persuadi-o a vir para casa da nossa amiga commum, a +dignissima Maria Alexandrovna. Diz elle que a senhora é a dama mais +encantadora que tem encontrado em toda a sua vida, e cá estamos. O +principe está a pôr em ordem os arrebiques com o criado particular de +quem porfiou em não prescindir. Mais depressa se deixaria morrer do que +apresentar-se em casa de uma senhora sem a roupa toda da ordem... E aqui +tem a historia toda... é uma historia deliciosa! + +--Que humorista, hein! Zina? exclama Maria Alexandrovna. Que captivante +narrador! Escute, Pavel, uma pergunta: explique-me bem o seu parentesco +com o principe. O senhor trata-o de tio. + +--Por Deus! Maria Alexandrovna, se eu sou o proprio a não saber, como é +que sou seu parente. Estou em dizer, até, que talvez seja preciso para +ahi um cento de gravêtos para sermos do mesmo ramo. Mas eu cá trato-o de +tiozinho, e elle responde-me. E ahi tem, até hoje, todo o nosso +parentesco... + +--Foi Deus em pessoa que o inspirou em m'o trazer para aqui. Arrepio-me +só de pensar que poderia ter ido hospedar-se para outra qualquer parte. +Devoravam-n'o! Atiravam-se a elle como quem se atira a um thesouro, a +uma mina!... Eram capazes de lhe tirar a camisa! Não põe na sua ideia o +que por ahi vae de almas sofregas, vis e arteiras n'esta nossa +Mordassov. + +--Ah! meu Deus! mas para onde queria que o levassem a não ser para sua +casa? Sempre tem cada uma, Maria Alexandrovna, interveiu Nastassia +Petrovna, a incumbida do chá. Talvez quisesse que carregassem com elle +para casa da Anna Nikolaievna! + +--Mas com tudo isso, por que se demorará elle tanto? É exquisito! disse +Maria Alexandrovna, erguendo-se, impaciente. + +--O tio? Aquillo ainda é negocio para cinco horas! E d'ahi, bem sabe que +está perdido da memoria; é capaz de se ter esquecido de que é seu +hospede. É um homem extraordinario, Maria Alexandrovna. Se soubesse! + +--Ora vamos! Que está a dizer? + +--A verdade, Maria Alexandrovna. É um homem _mecanico_. Não o vê ha seis +annos, mas sei o que ha a esse respeito. É a recordação de um homem, +esquéceram-se de o enterrar. Tem olhos de vidro, pernas de cortiça; todo +elle de _engonços_, a propria voz é artificial. + +--Valha-nos Deus, sempre é um tal esturdio! exclamou Maria Alexandrovna +com uns modos doridos. Não tem vergonha, o senhor, a falar assim de um +veneravel ancião, que é seu parente? (A voz de Maria Alexandrovna, +n'esta altura assume entonação tocante.) Sequer ao menos, lembre-se de +que é uma reliquia da nossa aristocracia! Meu amigo, essas leviandades +provêm-lhe das taes novas ideias em que está sempre a falar. Meu Deus! +tambem eu participo dessas ideias; comprehendo que o principio que rege +as suas opiniões é nobre, honrado. Presinto n'essas ideias novas o que +quer que é de elevado, de sublime. Mas tudo isso não me impede de ver os +lados praticos, por assim dizer--da questão. Tenho vivido na sociedade, +conheço melhor que o senhor os homens e as coisas, pois que o senhor é +apenas um rapaz. Este vélhinho afigura-se-lhe ridiculo lá por causa da +edade. O senhor, ha dias, affirmava que queria dar alforria aos seus +servos, que cada qual deve ir com o seu século. Tudo isso, sem duvida, +lá por que o leu para ahi algures no tal seu Shakespeare! Acredite, +Pavel Alexandrovitch, o seu Shakespeare já lá vae ha que tempos. Se elle +resuscitasse, apezar de ser um génio, não percebia uma palavra do viver +moderno. Se alguma coisa existe de majestoso, de cavalheiresco n'esta +nossa sociedade contemporanea, é com certeza a aristocracia. Um principe +é sempre um principe; faz um palacio ainda que seja de uma cabana. Ao +passo que o marido da Natalia Dmitrievna, que mandou construir um +palacio, fica sendo o marido da Natalia Dmitrievna, e mais nada,--e a +Natalia Dmitrievna pode pôr em cima de si meio cento de crinólines, que +nunca passará de ser a Natalia Dmitrievna como d'antes. Tambem o senhor, +meu caro Pavel, é um representante da aristocracia, de lá veiu. Aqui +onde me vê, ouso tambem ter-me na conta de não ser alheia á +aristocracia. Pois bem! Ai do filho que chasqueia dos proprios +antepassados! E d'ahi, não deixará de convir, d'aqui a nada, meu +amiguinho, que é preciso pôr de lado o seu Shakespeare, sou eu que lh'o +digo. Estou certa em que agora mesmo não é sincéro. Está armando ao +effeito!... Mas... eu para aqui a dar á lingua! Deixe-se estar, meu +querido Pavel; vou saber noticias do principe. Talvez precise de alguma +coisa, e com estes meus criados!... E saiu apressada Maria Alexandrovna. + +--Maria Alexandrovna parece estar contentissima pelo facto de o principe +não se ter ido hospedar para casa da elegante Anna Nikolaievna; e +comtudo, a Anna Nikolaievna tem pretensões a ser parente do principe. É +capaz de estoirar de raiva!--observou Nastassia Petrovna. + +Mas, notando que lhe não respondem, Madame Ziablova, depois de haver +esguelhado uma olhadéla para a Zina e para Pavel Alexandrovitch, percebe +que é alli de mais e sae, tambem, como quem vae procurar qualquer coisa. +E d'ahi, desforra-se da propria discreção deixando-se ficar atráz da +porta, de ouvido á escuta. + +Pavel Alexandrovitch trata logo de se approximar da Zina; está +commovidissimo, com a voz a tremer: + +--Zinaida Aphanassievna! Não está zangada commigo? diz timidamente e com +modo supplice. + +--Com o senhor? Mas por quê? pergunta a Zina um tanto ruborizada, +erguendo sobre elle os esplendidos olhos. + +--Pela minha vinda prematura, Zinaida Aphanassievna, já não podia +supportar mais longo apartamento. Ainda mais quinze dias! E eu a vêl-a +sempre em sonhos! Vim para saber a minha sorte... Mas por que franze as +sobrancelhas, está zangada? Com que então, ainda hoje não apanho +resposta decisiva? + +Á Zinaida, effectivamente, carregou-se-lhe o parecer. + +--E eu antevia que me havia de falar a esse respeito, encetou ella em +voz rispida com uns vislumbres de despeito. (Declina a vista.) E como +semelhante apprehensão me maguou em extremo, acho melhor cortar de vez +toda e qualquer indecisão... mais vale assim... O senhor exige, quero +dizer, pede uma resposta? Seja assim. A minha resposta será a mesma que +já lhe dei: espere. Repito-lhe, ainda não estou resolvida, não lhe posso +prometter o ser sua mulher... Não é coisa que se obtenha por exigencia, +Pavel Alexandrovitch; mas, para o tranquillizar accrescentarei que o não +rejeito definitivamente. E comtudo, note que, se o deixo esperar uma +decisão favoravel, é por dó da sua inquietação. Repito-lhe que quero +tomar em plena liberdade a minha decisão, e se eu em conclusão lhe +declarar que o rejeito, nem por isso depois me deve increpar por lhe ter +dado esperanças. E fique isto assente por uma vez! + +--Mas então, então! exclamou Mozgliakov em voz de mais em mais supplice, +será isso uma esperança? Poderei fundar uma qualquer esperança n'essas +suas palavras, Zinaida Aphanassievna? + +--Lembre-se de tudo que lhe tenho dito e funde tudo que quiser: é livre. +E nada mais acrescentarei. Não o rejeito, digo-lhe, tão somente: Espere! +Reservo-me o direito de o rejeitar se assim o julgar necessario... +Far-lhe-hei ainda notar o seguinte, Pavel Alexandrovitch: se veiu mais +cedo do que tinha dito com o sentido em operar por meios indirectos, +esperançado em fazer valer a sua influencia, a da mamã, por exemplo, +enganou-se nos seus calculos. Se assim fôra, rejeitál-o-hia de vez, +entendeu? E agora, basta, se me faz favor! Até que eu proprio lhe torne +a falar n'isso, nem palavra a semelhante respeito. + +Foi proferido em tom firme, sêcco, o conjuncto d'este discurso, sem +hesitações, como se fôra decorado de antemão. E Pavel sente o nariz a +crescer-lhe. N'este comenos eis que entra Maria Alexandrovna. Logo atráz +d'esta entra madame Ziablova. + +--Já ahi vem, Zina! Quer-me parecer que não tarda ahi! Nastassia +Petrovna, avie-se... o chá! + +E Maria Alexandrovna n'uma azafama, toda ella. + +--A Anna Nikolaievna já mandou saber noticias; a Aniutka, a creada, até +já veiu pedir informações á copa. Ha de estar como uma bicha! disse a +Nastassia Petrovna, investindo com o samovar. + +--E a mim que me importa? responde Maria Alexandrovna, a desfechar as +palavras por cima do hombro a madame Ziablova. Como se me interessasse o +que poderá pensar Anna Nikolaievna! Tenho a certeza em como não serei eu +que mande seja quem fôr á sua copa. E demais, fique sabendo, muito me +admiro de que me façam passar por inimiga da Anna Nikolaievna, coitada! +Pois é opinião corrente em Mordassov. Ora seja juiz, Pavel +Alexandrovitch. Conhece-nos a ambas: por que é que eu havia de ser sua +inimiga? Para lhe disputar a supremacia? Sou indifferente a essas +coisas! Ella que seja a primeira, eu lhe irei dar os parabens! Emfim, é +injusto, e quero defendêl-a. É meu dever. Mas para que é que a +calumniam, para que hão de andar a malhar assim na pobre da creatura? É +nova, gosta de se enfeitar: será por isso? Quanto a mim, acho que vale +mais gostar dos trapos do que um certo numero de coisas de que tanto +gosta a Natalia Dmitrievna, das taes coisas que nem sequer se podem +nomear. Será ainda lá porque a Anna Nikolaievna gosta de visitas e não +pode parar em casa? Mas, santo Deus! Se ella não tem instrucção de +qualidade nenhuma, e com certeza que lhe havia de ser difficil o abrir +um livro e entreter-se dez minutos a fio fosse com o que fosse. É +garrida, dá de olho, da janella abaixo, a todo e qualquer que passa pela +rua. E d'ahi?... Mas para que será que andam para ahi a apontál-a como +uma beldade? É macilenta, que até mete medo! Dansa que é um riso vê-la, +chega a ser comica, convenho, mas por que será que dizem que a polkar é +um portento? Usa uns chapeus inconcebiveis! E d'ahi, ella terá culpa de +lhe faltar o gosto? Affirme-lhe que faz bem em pregar na cabeça um papel +de rebuçado, e verá que o faz. É linguareira, mas se por aqui não haverá +quem o não seja. O senhor Suchilov, com aquellas suas enormes suissas, +está pregado em casa della de manhã até á noite, e de noite até manhã, +tenho a certeza. E d'ahi, santo Deus! para que é que o marido joga as +cartas até ás cinco horas da madrugada? Se o que se vê por ahi são maus +exemplos! E demais, não deixará de ser _talvez_ mais outra calumnia. +N'uma palavra, hei de sair sempre, sempre, sempre, sempre a +defendêl-a... Mas! ai, Senhor! Ahi vem o principe! É elle! é elle! +conheci-lhe os passos! Era capaz de os distinguir entre mil. Até que o +vejo, afinal, meu principe!... + + + + +IV + + +Á primeira vista, ninguem confundiria o principe com um velho, mas +examinado de mais perto, ninguem deixaria de verificar que é um cadaver +movido por mólas; empregaram toda a casta de artificios para disfarçar +n'um adolescente semelhante mumia. Um chinó estupendo, suissas, bigodes +postiços, mais pretos que o proprio ébano, lhe tapam metade do rosto. As +faces estão pintadas com singular pericia; nem uma ruga: que é +d'ellas?... Vestido no rigor da moda, dir-se-hia saído de um figurino de +alfaiate. Traz assim a modos de uma _visite_, isto é, qualquer coisa +elegantissima feita expressamente para as visitas matutinas. Luvas, +gravata, collete, tudo isso de brancura deslumbrante e do mais +requintado gosto. O principe manqueja um tudo-nada, mas tão levemente! +Dir-se-hia mais um tempêrozinho exigido pela móda. + +Um monoculo no olho,--n'aquelle, exactamente, que é de vidro,--vem +saturado de perfumes. Quando fala, arrasta umas certas palavras, talvez +por impotencia senil, ou por serem postiços os dentes, ou ainda por +elegancia. Pronuncia umas certas syllabas com doçura extraordinaria e +accentua a letra _e_. Tem uma pontinha de não se-me-dá que lhe ficou da +sua vida de homem feliz em amores. Se não perdeu de todo a transmontana, +pelo menos está sem memoria. Engana-se a cada instante, fica-se a mascar +e a metter os pés pelas mãos. É necessario ter um certo dom de +opportunismo para sustentar com elle uma conversa. Maria Alexandrovna, +todavia, tem a consciencia dos proprios recursos, e a presença do +principe léva-a ao auge do enthusiasmo. + +--Mas não o acho nada mudado, nada, nada! exclama ella agarrando em +ambas as mãos ao hospede e amesendando-o n'uma commoda poltrona. +Sente-se! sente-se, principe! Seis annos! seis annos, inteirinhos e +integrados sem nos vermos, e nem uma carta, nem uma linha, durante todo +o tempo! Oh! quantas culpas não tem para commigo, principe! Se soubesse +o quanto eu estava zangada comsigo, meu caro principe! Mas, e esse chá! +esse chá! Ah! meu Deus! Nastassia Petrovna, o chá! + +--Obrigado... ô--ôbrigado!... sou cul... cul... pado... gaguejou o +principe. + +(Esqueceu-nos dizer que gaguejava um tanto; e d'ahi, é moda.) + +--Cul... culpado! Ora imagine que, o anno passado, quiz abs... +absolutamente vir aqui, acrescentou a mirar a casa através da luneta. + +Mas tinham-me mettido medo: disseram-me que por aqui andava a có... +cólera... + +--Não, principe, não a tivemos por cá, affirmou Maria Alexandrovna. + +--Tinhamos a morrinha, meu tiozinho, interrompeu Mozgliakov, que se quer +tornar conspicuo. + +Maria Alexandrovna méde-o com olhar sevéro. + +--Ha de ser isso... a mo... mo... rrinha ou coisa que o valha. E vae, eu +então deixei-me ficar. E seu marido, minha que... querida Maria +Nikolaievna, ainda está na ma... a... gistratura? + +--Não, principe, diz Maria Alexandrovna, meu marido não está na ma... +a... gistratura. + +--Iá apostar que o tiozinho a está confundido com a Anna Nikolaievna +Antipova! exclama o perspicaz Mozgliakov. + +Acto continuo, porém, mordeu o beiço, percebendo que nem por isso está +muito á vontade Maria Alexandrovna: + +--Pois é isso, é... A Anna Nikolaievna, e... e... e eu sempre a +esquecer-me... e então! Antipovna, exactamente, An... ti... povna, +confirma o principe. + +--Não, principe, está equivocado! disse Maria Alexandrovna com um +rizinho azêdo. Eu não me chamo Anna Nikolaievna, e, confesso, nunca +suppuz que se esquecesse de mim. Estou espantada, principe, sou a sua +velha amiga, a Maria Alexandrovna Moskalieva. Não se recorda, principe, +da Maria Alexandrovna? + +--Maria Ale... lexan... xandrovna! Ora vejam! E eu a confundi-la com a +Anna Vassiliévna... é delicioso!... Dizia eu, pois, que me não fui +hospedar em casa da... E eu, amigo, a cuidar que me levavas exactamente +para casa da tal Anna Matveina! + +É impagavel! E dahi, acontece-me isto tanta vez! Quanta vez não vou eu +parar onde não quizéra!... Em geral, fico sempre contente, sempre +contente, aconteça o que acontecer. Com que então não é a Nastassia +Vassiliévna! + +É interessante! + +--Maria Alexandrovna, principe! Maria A--lex--androvna! Se é coisa que +se faça! Esquecer-se assim da sua melhor amiga! + +--Melhor amiga, sim, é verdade! Perdão, pe... er... dão! silva o +principe fixando a attenção na Zina. + +--A minha filha Zina! O principe ainda a não conhece! Não estava em +minha casa quando aqui veiu pela ultima vez; lembra-se? + +--Sua filha! É um encanto! um encanto! murmura o principe assestando +ávido a luneta na Zina.--Mas que belleza; disse com visivel sobresalto. + +--Serve-se de chá, principe? pergunta Maria Alexandrovna desviando a +attenção do jarreta para um _groom_, parado defronte d'elle com uma +bandeja. + +O principe serve-se de uma chavena de chá e contempla o _groom_ de +bochechas rochonchudas e rosadas. + +--Ah! ah! ah! É seu filho? Perfeito, muito perfeito! e... e... e... bem +comportado, já se vê? + +--Perdão, principe... accode pressurosa Maria Alexandrovna. Ainda estou +toda a tremer... Com que, então, deu uma quéda? Não se magoaria? Não é +prudente arriscar a sua pessoa em semelhantes aventuras!... + +--Virou-se! virou-se! O cocheiro virou a carruagem commigo dentro! +exclama o principe com extraordinaria animação. E eu, a pensar que era o +fim do mundo ou coisa parecida. Os santos me perdoem: apanhei um +susto... vi as estrellas ao meio dia, eu esperava lá!... eu es... +pera... va lá!... E tudo aquillo, por culpa do meu cocheiro, do +Pamphilio: entrego-te este negocio, meu amigo, has de tratar do +inquerito... Estou convencido de que attentou contra a minha vida! + +--Muito bem! muito bem, tiosinho! responde Pavel Alexandrovitch, fica a +meu cuidado. Mas oiça lá; se lhe perdoasse por esta vez, hein, que lhe +parece? + +--Por caso nenhum! Tenho a certeza de que quiz dar cabo de mim, elle e +mais o Lavrenty, que eu deixei lá em casa. Ora imaginem, +encasquetaram-se-lhe as taes ideias novas, uma negação... que eu sei +lá... e era um communista em toda a extensão da palavra. Quando me vejo +a sós com elle... fico logo em suores frios. + +--Ah! que verdade, principe! Não pôe na sua ideia o que eu tambem tenho +aturado a esta sucia! Já despedi por duas vezes toda a creadagem. Que +gente tão estupida! Anda uma pessoa a ralhar com elles de manhã até á +noite. + +--E... stá claro! Gosto de ver um lacaio que não fure paredes, observou +o principe, satisfeito, como aliás succede aos velhos, de que lhes +escutem com respeito a tagarelice,--é até a principal qualidade de +qualquer lacaio,... uma to... leima sincera... em certas occasiões. +Incute-lhes uma certa imponencia... solemnidade! N'uma palavra, é mais +distincto, e eu, a primeira qualidade que exijo a um serviçal é a +distincção. É por isso, que conservo o Tarenty, estás lembrado do +Tarenty, meu amigo? Assim que o vi, percebi-lhe a vocação: Has de ser +porteiro. É phe... e-nome-nalmente es... tupido. Com aquelles olhos de +carneiro mal morto: Mas que boa presença! que solemnidade! Em pondo a +gravata branca, faz um figurão! Gosto d'elle deveras! Eu, ás vezes, +ponho-me a olhar para elle, e não me canço de o ver: ali onde o vêem, +está escrevendo um livro... É um verdadeiro philosopho a... al... lemão, o +proprio Kant, ou antes, um, perú gordo e bem comido, um ser incompleto, +tal qual cumpre a todo e qualquer se... er... viçal. + +Maria Alexandrovna ri ás gargalhadas e bate palmas; Pavel Alexandrovitch +faz côro: acha immensa graça ao tio. A Nastassia Petrovna ri tambem; e a +propria Zina dá um ar de riso. + +--Mas que graça, principe! que alegria! exclama Maria Alexandrovna. Que +preciosa faculdade de observar ridiculos... E desappareceu o senhor da +sociedade! Privar assim de um talento o mundo durante cinco annos +inteiros!... Mas podia até escrever comedias, principe! Podia muito bem +restituir-nos Visine, Griboiedov, Gogol! + +--É verdade, é verdade!... confirma encantado o principe... eu podia +restituir... Quer crêr? Eu d'antes tinha muita graça, até escrevi para o +theatro um vô... ô... deville. Com umas coplas que eram uma delicia! Por +signal que nunca foi representado. + +--Que pena! Como havia de ser divertido? Sabes o que te digo, Zina, que +vinha mesmo a proposito. Nós, justamente, principe, andamos a combinar +umas récitas de amadores com um fim de beneficencia patriotica, em favor +dos feridos... Vinha mesmo ao pintar o seu vaudeville. + +--E... stá claro, estou prompto a escrevêl-o. De mais a mais, já nem me +lembra uma palavra, mas tenho de memoria um ou dois trocadilhos que... +(O principe beija as pontas dos dedos.) Eu, em geral, quando estava no +estrangeiro... fazia um verda... deiro _furor_... Lembro-me de mylord +Byron... fomos muito intimos... Dansava á maravilha a krakoviak no +congresso de Vienna... + +--Mylord Byron, meu tio? Ora vamos, que está para ahi a dizer! + +--Está claro!... Byron. E d'ahi, talvez fosse outro. Exactamente, era um +polaco, lembro-me agora muito bem; um grande original, o tal polaco! +Intitulava-se conde, e porfim, veiu-se a saber que era cozinheiro. + +Mas dansava lindamente a krakoviak. Quebrou uma perna. Foi n'essa +occasião, até, que lhe fiz estes versos: + + O nosso conde polaco + Dansava a krakoviak + +E d'ahi... já me esqueceu... ah! + + Desde que partiu a perna, + Nunca mais pôde dansar. + +--Sim, sim, deve de ser isso, rico tiozinho! exclama Mozgliakov, pôdre de +riso! + +--Está c-claro! Quer-me parecer que seria isto ou coisa que o valha. E +d'ahi é possivel que não seja. O que lhes sei dizer é que os versos me +saíram muito bons. Escapam-me certas coisas, tenho tanto que fazer! + +--Mas, não me dirá, principe, pergunta com muito interesse Maria +Alexandrovna, em que é que se occupa n'aquella sua solidão? Lembrava-me +tanta vez do principe! Estou a arder de impaciencia por saber tudo por +miudos... + +--Em que é que me occupo! Ora essa... immensa coisa em que me occupar... +em geral. Umas vezes descanso, outras vezes dou o meu passeio... a +imaginar cá umas coisas... + +--Deve de ter muita imaginação, rico tiozinho. + +--Muita, meu caro. Ás vezes, acontece-me imaginar coisas de que eu +proprio fico pasmado. Quando eu estava em Kadnievo... A proposito, tu +não foste vice-governador em Kadnievo? + +--Eu, tiozinho? Que está dizendo! Pelo amor de Deus! exclama Pavel +Alexandrovitch. + +--E eu a confundir-te com elle... + +E dizia eu commigo: Por que será que elle está tão mudado?... Porque o +outro tinha uma phisionomia imponente, espirituosa... um homem +extra-a-ordina... ria... mente intelligente. Compunha sempre versos... a +proposito... De perfil, era tal qual um rei de copas. + +--Acredite, principe, interrompeu Maria Alexandrovna, essa vida ha de +deitál-o a perder, lhe juro eu! Encerrar-se durante cinco annos n'um +ermo! Não ver, não ouvir pessoa alguma!... Sabe o que lhe digo, o +principe é um homem perdido! Pergunte a algum dos seus amigos, que lhe +sejam fieis, e todos lhe dirão isto mesmo: é um homem perdido! + +--De... de... vé-éras? arrasta o principe. + +--Com certeza... Digo-lh'o como se fôra uma irmã, porque sou muito sua +amiga,--pois que as recordações do passado, para mim são sagradas. Que +interesse poderia eu ter em o enganar? Nada, nada, é preciso +absolutamente mudar de vida, aliás, não resiste?... + +--Valha-me Deus! pois eu hei de morrer, assim, tão depressa? exclama o +principe, assustadissimo. E caso é que adivinhou: as minhas humorroides +dão cabo de mim, e ha uns tempos para cá, principalmente... e quando me +atacam as crises, tenho sin-tó-ó-mas es... espan... tosos... Eu já lhe +vou contar tudo... por miudos... + +--Deixe lá, tiozinho, contará isso tudo, para outra vez. Agora, não será +tempo de irmos dar o nosso passeio? + +--Pois, sim, vá lá, ficará para outra vez; e d'ahi talvez não +interésse... Mas com tudo isso... é uma doença... extrê-ê-mamente +interessante. Com uma tal variedade de episodios! Vê se me lembras, meu +caro, contar esta noite, com todos os pormenores, uma certa +particularidade das humorroides. + +--Ora, escute, principe, atalhou ainda Maria Alexandrovna. Devia ir ao +estrangeiro, para ver se se curava. + +--É isso, é! Ao estrangeiro, absolutamente. Lembro-me de que, ahi por +1820, a gente divertia-se im-men-sa-mente no estrangeiro. Estive para +casar com uma viscondessa, e era francêsa. Eu estava apaixonado por +ella, e queria consagrar-lhe toda a minha vida. Que ella, aliás, casou +com outro... Caso exquisito!... Tinha estado em casa della não havia +ainda duas horas, e foi n'este meio tempo que um barão allemão a +conquistou. Veiu a acabar n'um hospital de doidos. + +--Mas, caro principe, estavamos falando na sua saúde, e dizia-lhe eu que +devia pensar n'isso muito a sério. Ha grandes medicos lá pelo +estrangeiro. De mais a mais a mudança de ar, já por si, é +importantissima. Terá que renunciar a Dukhanovo, por uns tempos, quando +menos. + +--Abso-o-lu-tamente! Já me conformei, tenciono tratar-me pela +hy-dro... the... rapia. + +--Pela hydrotherapia? + +--Está claro! Foi isso mesmo que eu disse, pela hy... dro... the... rapia. +Já me tratei pela hy... drotherapia. Estava eu nas aguas. Tambem lá +estava uma senhora de Moscou, varreu-se-me o nome, uma mulher muito +poetica, com setenta annos, ou coisa assim; tinha uma filha com uns +cincoenta annos, e com uma belida n'um olho. Falavam ambas sempre em +verso. Aconteceu-lhe um desastre! N'um fogacho de genio, matou o criado. +Teve seus da-res e to... mares com a justiça. E como eu ia dizendo, +puzeram-me no regimen da agua; que eu, ainda assim, não estava doente: +mas se não faziam senão dizer-me "Trate de si! trate de si!" E eu, por +delicadeza, puz-me a beber a agua e, effectivamente, senti allivio. +Bebi, bebi, e tornei a beber! Acho que bebi um lago inteiro... É optima +coisa a tal hy-dro-the-rapia. Dou-me muito bem. Eu, se não tivesse caído +de cama, tinha passado lindamente. + +--Lá isso é verdade, rico tio. Ora dize-me, rico tio, aprendeste +logica? + +--Valha-o Deus! Que pergunta? observa Maria Alexandrovna, escandalizada. + +--Está c-claro, meu amigo... ha muito tempo, aqui para nós. Estudei +philosophia, na Allemanha. Frequentei os cursos todos mas d'ali a pouco +esqueceu-me tudo... Mas... confesso, metteu-me um tal susto no corpo com +as taes do... enças que... fiquei atarantado... Eu volto já. Dêem-me +licença! + +--Aonde vae, principe? exclama, pasmada, Maria Alexandrovna. + +--Não tardo aqui. Não me demoro... Vou apenas... assentar um +pensamento... Até já... + +--Que tal lhe pareceu? exclama Pavel Alexandrovitch, á gargalhada. + +Maria Alexandrovna perde de todo a paciencia. + +--Eu não o entendo, na verdade, não posso comprehender de que é que se +ri!--começa ella com animação. Rir de um ancião respeitavel, de um +parente! Rebentar a rir a cada palavra que elle solta da bôcca! Abusar +d'aquella bondade evangelica! Tenho até vergonha de o ouvir, Pavel +Alexandrovitch! Mas não me dirá o que é que lhe encontra de ridiculo? +Ainda não fui capaz de lhe notar o lado ridiculo. + +--Mas se nunca conhece ninguem, se não faz senão metter os pés pelas +mãos! + +--Ahi tem as consequencias do tal sequestro de cinco annos entregue á +guarda d'aquella megéra! Devemos antes ter dó d'elle, em vez de rirmos á +sua custa. Veja lá, nem a mim mesmo me conheceu, até! O senhor foi +testemunha. Pois não é terrivel! É preciso salvá-lo. Eu, se lhe propuz +ir ao estrangeiro, foi na esperança de que se resolva a largar de mão +aquella... regateira. + +--Sabe o que lhe digo, é preciso casál-o, Maria Alexandrovna. + +--E o senhor a dar-lhe! É incorrigivel, senhor Mozgliakov. + +--Não sou, acredite, Maria Alexandrovna, eu, d'esta vez, estou falando +até muito a sério. Por que é que o não havemos de casar? É uma ideia +como outra qualquer. Em que é que isso o pode prejudicar? No estado a +que elle chegou, é um expediente que o pode salvar, creio eu. A lei +ainda lhe permitte casar. D'esse modo, vê-se livre d'aquella +desavergonhada, desculpe a expressão. Escolherá para ahi qualquer +menina, ou qualquer viuva honesta, intelligente, carinhosa e pobre, +sobretudo, que não deixará de o tratar como filha e que comprehenderá +que lhe deve ser grata. Que coisa melhor lhe poderia acontecer? Um +coração terno e fiel, em vez d'aquella... moita! Está claro que convem +que seja bonita, pois o tio professa ainda o culto da belleza. Não viu +os olhos que elle deitava á Zinaida Aphanassievna? + +--E onde irá desencantar semelhante ideal? pergunta Nastassia Petrovna +toda ella ouvidos. + +--Não está má pergunta? A senhora, por exemplo, sem irmos mais longe... +se me dá licença, perguntar-lhe-hei por que é que não ha de casar com o +principe? Primeiro e segundo, porque é bonita, e viuva, ainda por cima. +Terceiro, por que é fidalga. Quarto, por que é honestissima. Ha de +amá-lo, amimá-lo, pôr na rua a tal carcereira, carregar com o principe +para o estrangeiro, dar-lhe papinha e goloseimas... tudo isto até que +chegue o dia em que elle diga adeus a este mundo de amarguras, o que +tardará para ahi um anno, quando muito, ou um mez ou dois, quem sabe; +depois fica sendo princesa, viuva, rica e, para compensar o trabalho, +casa para ahi com um marquez qualquer, ou um general. É bonito, pois não +acha? + +--Ai! Deus meu! Que amor eu lhe havia de ter, por gratidão, quando por +mais não fosse, se elle pedisse a minha mão! exclama Madame Ziablova. + +Os olhos feriram-lhe lume, até. + +--Mas, isso sim!... são sonhos!... + +--Sonhos? Tem empenho em que se realisem? Experimente, peça-me que lhe +alcance essa pechincha. E corto desde já este dedo se hoje mesmo não fôr +noiva do principe. Não ha nada mais facil do que persuadir o meu tio. +Diz sempre a tudo, que sim. A senhora bem o ouviu, ha boccado. Casamol-o +sem elle dar por isso. Enganamol-o, é verdade, mas se é para seu bem, +pois não acha? Em todo o caso, a senhora do que devia tratar era de ir +arranjando uma _toilette_ á altura das circumstancias, Nastassia +Petrovna. + +A animação de Mozgliakov transforma-se em enthusiasmo. A Madame +Ziablova, com o seu tino todo, está-lhe a crescer até agua na bôcca. + +--Eu bem sei; nem é preciso que m'o lembre, que estou para aqui uma +trapalhona... Pareço até uma cozinheira, pois não pareço? + +Maria Alexandrovna está com um cara de palmo. Afoito-me a affirmar que +ouviu a proposta de Pavel Alexandrovitch com uma pontinha de terror. +Quer sim quer não, teve mão em si. + +--Tudo isso é muito bonito, mas é um chorrilho de futilidades sem pés +nem cabeça, e que não vem nada a proposito! disse, com sequidão, +dirigindo-se ao Mozgliakov. + +--Então por quê, minha querida Maria Alexandrovna? Por que é que diz que +são futilidades fóra de proposito? + +--O senhor está em minha casa, e o principe é meu hospede. Não consinto +que ninguem se esqueça do respeito que se deve á minha casa! Tomo as +suas palavras como mera brincadeira, Pavel Alexandrovitch; mas, ahi vem +o principe, graças a Deus! + +--Eu... c... cá... es... tou, guincha o principe ao entrar. É espantoso, +querida amiga,... que fecundidade com que acordou hoje este m... meu +espirito! Ás vezes--talvez não acredites--mas acontece-me estar um dia +inteiro sem me accudir um pensamento a esta cabeça... + +--Seria a tal queda d'inda agora que lhe abalou os nervos... + +--Tambem me quer parecer, meu amigo, ach... acho util, até, o tal +accidente, tanto assim que estou resolvido a perdoar ao meu Pheophilo. +Queres que te diga?--Palpita-me que não premeditará attentar contra os +meus dias. E demais... já está bem castigado, cortaram-lhe as barbas. + +--Cortaram-lhe as barbas!--Que me diz? Elle, que tinha umas barbas mais +compridas que um principado allemão. + +--Es... tá c-claro!... sim... um principado. Em geral, meu amigo, são +muito acertadas as tuas conclusões. Mas as barbas d'elle são postiças. +Ora imaginem: Mandaram-me um catalogo: acabam de chegar do estrangeiro +umas optimas barbas quer para cocheiros quer para gentlemen: suissas, +barbas á hespanhola, pêras á império, etc.; tudo de primeira qualidade, +por preços muito mó-mó-di... cos. E eu, então, encommendei umas barbas +para cocheiro. Mandaram-m'as: Ma-a... gnificas! Mas a do Pheophilo era +duas vezes mais comprida. E eu muito atrapalhado: que hei de eu fazer? +Recambiar as barbas postiças, ou mandar rapar as do Pheophilo? Reflecti +maduramente e resolvi em favôr das barbas postiças. + +--Prefere a arte á natureza, rico tiozinho? + +--Pois está claro!... E que desgosto que elle teve quando se viu de cara +rapada. Cada pêllo que lhe cortavam era um dia de vida que lhe tiravam. +Mas não serão horas de sair, meu caro? + +--Estou ás suas ordens, tio. + +--Principe, ouso esperar que só irá a casa do governador! exclamou Maria +Alexandrovna, muito sobresaltada. O principe, _pertence-me_, faz parte +da minha familia, por todo o dia. Escusado é dizer, que não tenho nada +que ensinar-lhe, pelo que diz respeito a Mordassov. Talvez queira ir +fazer a sua visita á Anna Nikolaievna, e não tenho direito de o +dissuadir de dar semelhante passo. Tanto mais que estou persuadida de +que a sua propria experiencia lhe servirá de guia. Lembre-se de que, +hoje, sou sua irmã, sua mãe e sua aia por todo o dia... Ah! Estou toda a +tremer por sua causa, principe!... O principe não conhece esta gente, +não conhece, digo-lho eu... Não, que elle é preciso tempo para os +conhecer. + +--Deixe o caso por minha conta, Maria Alexandrovna, disse Mozgliakov; +tudo se passará conforme lhe prometti. + +--Entregar-me nas suas mãos, eu?... O senhor é um estouvado? Cá o espero +para jantar, principe. Costumamos jantar cedo. Que pena que eu tenho de +que, n'esta occasião, meu marido esteja no campo! Havia de gostar tanto +de o ver! Estima-o tanto! Dedica-lhe tão sincera amizade! + +--Seu marido?--Com que então,... tem marido?-- + +--Valha-me Deus! Que pessima memoria é a sua, principe? Pois esqueceu o +passado a esse ponto? E meu marido, o Aphanassi Matveich, querem ver que +tambem se não lembra d'elle? Está no campo, mas o principe, em tempos, +viu-o, até, muita vez. Veja lá se se lembra; o Aphanassi Matveich? + +--Aphanassi Matveich! No campo? Ora vejam lá! Mas é delicioso! Tem então +marido! Que ratice! Existe um vô... ô... de ville versando sobre o mesmo +assunto: _O marido á porta e a mulher na_... Conceda-me licença!... já +me não lembro lá muito bem... a mulher safa-se para Tula... ou para +Yoroslav!... + +_O marido á porta e a mulher em Tver_, rico tio, sopra-lhe o Mozgliakov. + +--Está c-claro, sim, é isso! Obrigado, caro amigo, exa... cta... +mente... em Tver... É um encanto... um en... can... to... É assim,... +é!... a mulher em Koxtroma... quero dizer... em conclusão... safou-se... +Um encanto! um encanto! Mas já não sei o que é que eu ia dizendo!... Ah! +sim! vamo-nos embora, hein? Até á vista! minha rica senhora! Adeus... +minha linda menina! + +O principe beija as pontas dos dedos á Zinaida. + +--O jantar! O jantar, principe! + +--Demore-se o menos que puder! brada Maria Alexandrovna deitando a +correr atráz d'elle. + + + + +V + + +--Nastassia Petrovna, não seria mau ir deitar a sua rabisáca pela +cozinha, disse ella apóz de haver acompanhado o principe. Palpita-me que +aquelle traste do Nikitka é capaz de se tomar da pinga e deita-nos a +perder o jantar. + +Obedeceu Nastassia Petrovna. Á saída, olhou para Maria Alexandrovna e +percebeu que estava animadissima a digna senhora. Em vez de ir vigiar o +tratante do Nikitka, Nastassia Petrovna dirige-se a uma saleta contigua, +d'alli, enfiando pelo corredor, vae ao quarto, e esgueira-se para um +cubiculo de despejos, atulhado de bahús, de vestidos velhos e de roupa +suja de toda a familia. Nos bicos dos pés, acerca-se de uma porta +fechada, sustendo a respiração, e espreita pelo buraco da fechadura: +Aquella porta é uma das três que abrem para a sala (está condemnada). +Maria Alexandrovna sabe que a Nastassia Petrovna é velhaca, pouco +delicada, de poucos escrupulos, e muito capaz de escutar ás portas. +N'este momento, comtudo, Madame Moskalieva está tão preoccupada, que se +descuida de toda e qualquer cautélla. + +Senta-se n'uma poltrona e despede significativa olhadela á Zina. E a +Zina a sentir o pêso d'aquelle olhar. Dá-lhe um pulo o coração! + +--Zina! + +A Zina volta com muito vagar para a mãe o descorado semblante e aquelles +olhos sonhadores. + +--Zina, tenho que te falar em negocio importante. + +Está de pé a Zina; cruza os braços e espera. Deslisa-lhe pelo semblante +expressão fugaz de despeito e de ironia. + +--Quero perguntar-te qual é a tua opinião a respeito d'este tal +Mozgliakov? + +--Está farta de saber a conta em que o tenho, responde a Zina com modo +constrangido. + +--Pois sim, filha, mas está-me parecendo que se vae tornando um tanto ou +quanto impertinente, atrevido; e em conclusão, aquella sua +insistencia... + +--Diz elle que me ama; se assim fôr, acho perdoavel a sua insistencia. + +--Admiro-me de uma circumstancia: tu, d'antes, não o desculpavas, assim, +tanto;... antes pelo contrario, eras, até, muito rispida para com elle, +sempre que eu a elle me referia. + +--E a mim, o que me causa admiração é outra circumstancia: A mamã, +d'antes, estava sempre a defendêl-o, e é agora a propria a condemnál-o. + +--Confesso que me sorria este casamento. Custava-me vêr-te assim sempre, +tão triste.--Avaliava bem a tua tristeza,--pois sou capaz de a +comprehender, seja qual fôr o juizo que faças a meu respeito.--Chegou +até a tirar-me o somno! Em summa, estou convencida de que só uma mudança +radical na tua vida te poderia salvar, e essa mudança, ha de ser o +casamento. Não somos ricos, não podemos ir dar a nossa volta pelo +estrangeiro. Os asnos que povoam esta cidade espantam-se de te ver ainda +solteira aos vinte e três annos e inventam fabulas a tal respeito. Mas +poderei eu dar-te por marido para ahi um conselheiro d'esta estupida +cidade ou o Ivan Ivanovitch, nosso procurador? Haverá por aqui marido á +altura dos teus merecimentos? É certo que o Mozgliakov é apenas um +peralvilho, e com tudo isso, de todos elles, é ainda o mais acceitavel. +É de boa familia, dôno de cincoenta mil almas: sempre valerá mais que um +procurador que vive de propinas e á custa Deus sabe de que +tranquibernias. E eis o motivo porque me lembrei d'elle. Tanto menos +verdadeira simpathia me merecia, e tanto mais me convenço hoje de que +era o Suprêmo Senhor quem me enviava semelhante desconfiança como +advertencia. Pensa bem! Se porventura se offerecesse agora um partido +mais vantajoso, não serias tu a propria a louvar-me de não ter até hoje +dado a tua palavra a ninguem? Pois, ouso crer, Zina, que tu hoje, nada +lhe terás dito de positivo.--Pois não é verdade? + +--Para que servirão tantos rodeios, mamã? quando podia muito bem ter-me +dito tudo isso em duas palavras, replica a Zina com modo resoluto. + +--Rodeios, Zina! Serão coisas que se digam a tua mãe? Ah! Vejo que de +modo nenhum te mereço confiança! Consideras-me como inimiga muito mais +do que como mãe! + +--Acabemos com isto, minha mãe. Parece-lhe bonito ficarmos para aqui a +fazer questão de palavras? Não estaremos fartas de nos conhecermos uma á +outra? + +--Repara em que me estás offendendo, minha filha. Pois não vês que estou +resolvida a tudo, a tudo, comtanto que tu sejas feliz? + +A Zina põe-se a olhar para a mãe com aquella singularissima expressão de +despeito e ironia. + +--Não estará morrendo por que eu case com o principe para complemento da +minha ventura? pergunta a joven com extranho sorriso. + +--Nem sequer te disse uma palavra a semelhante respeito, mas visto que +isso veiu á teia, dir-te-hei que, se fosse possivel, representaria para +ti a felicidade, effectivamente. + +--Pois eu acho isso pueril, exclama a Zina toda assommada, pueril, +pueril e mais que pueril! e acho, ainda, que a mamã é dotada de +excessiva imaginação: é uma mulher poetica; e tanto mais que é assim que +a classificam em Mordassov. Está sempre a fazer planos. Nem lhe mettem +medo impossibilidades. Assim que vi o principe, tive um presentimento, +de como não deixaria de lhe accudir semelhante ideia. Quando o +Mozgliakov mettia o caso a ridiculo e pretendia que era urgente casál-o, +li no semblante á mamã o pensamento. E d'ahi, foi para me falar n'esse +jarreta que a mamã principiou por se referir ao Mozgliakov. Mas esses +seus sonhos aborrecem-me de morte, não sei se sabe? E peço-lhe que +fiquêmos por aqui!... Nem mais uma palavra, entendeu, mamã? Nem mais uma +palavra! Peço-lhe que tome a serio isto que acaba de ouvir da minha +bocca. + +--És uma criança, Zina, uma criança doente, e com mau genio! responde +Maria Alexandrovna em voz meliflua; e estás-me faltando ao +respeito.--Offendes-me! Não ha mãe que aturasse o que eu te tenho +aturado! Mas padeces, e eu acima de tudo sou christã. Vou aturando, e +perdôo-te. Responde-me a uma pergunta, só e mais nada, Zina. Vamos que +eu, effectivamente, tivesse sonhado semelhante alliança, onde é que está +a puerilidade?--Quanto a mim, nunca o Mozgliakov falou com tanto acerto +como ainda agora, quando tentava demonstrar que o casamento é uma +necessidade para o principe. O disparate era o ter-se lembrado d'aquella +fufia da Nastassia. + +--Mamã, declare-me com franqueza, se me está dizendo isso por méra +curiosidade ou com um fim qualquer. + +--Peço-te que me respondas: onde vês tu n'isto puerilidade? + +--Que aborrecimento! Triste sorte é a minha! exclama a Zina a bater o +pé. Vou dizer-lh'o, se é que ainda o não percebeu: aproveitar o ensejo +d'esse velho se achar caído em demencia para o enganar, para o desposar, +assim, enfermo e caduco, para lhe extorquir o dinheiro e andar todo o +santo dia a desejar-lhe a morte, representa, a meu vêr, não só uma +puerilidade, mas uma vilania, e não serei eu quem lhe dê os parabens por +semelhante ideia, mamã. + +Silencio. + +--Zina, já te esqueceste d'aquillo que se passou ha dois annos? pergunta +de chofre Maria Alexandrovna. + +Estremece a Zina. + +--Mamã, profere com accentuada seriedade, lembre-se de que me prometteu +não me tornar a falar em semelhante coisa. + +--Pois bem, minha filha--que eu até hoje ainda não tornei a dizer-te uma +palavra--peço-te que por uma vez tão somente me desligues da minha +promessa. Zina! Soou a hora de uma franca explicação. Foram mortaes +estes dois annos de silencio! Isto assim não pode continuar!... Estou +prompta a supplicar-te de joelhos que me permittas falar. Entendes, +Zina, é a tua propria mãe que cae de joelhos a teus pés! E +demais--dou-te a minha palavra solemne--a palavra de uma mãe desgraçada +que adora a propria filha--seja qual for o pretexto, em circumstancia +alguma d'este mundo, com risco até da propria vida, de nunca mais abrir +a bocca a tal respeito. + +--Fale! diz Zina, muito enfiada. + +Maria Alexandrovna calculou optimamente o lance. + +--Obrigada, Zina. Ha dois annos, pois, que frequentava esta casa, por +causa do teu irmãozinho, do Mitra, que Deus tem, um _utchitel_. + +--Mas para que foi que a mamã assumiu esses modos tão solemnes, para que +estará a desperdiçar toda essa eloquencia, esses pormenores tão +escusados e penosos que ambas estamos fartas de conhecer? interrompeu a +Zina com enfado. + +--Porque a mim, que sou tua mãe, Zina, me assiste o dever de me +justificar a teus olhos. E demais, quero apresentar-te este negocio, +todo elle, sob uma luz nova para ti e que é a unica verdadeira. Emfim, +sem estas promessas, não poderias comprehender a conclusão que d'ellas +pretendo deduzir. Não creias, minha filha, que intento fazer pouco dos +teus sentimentos. Não Zina, has de encontrar em mim uma verdadeira mãe, +e quem sabe se não serás tu a propria a cair-me aos pés, lavada em +lagrimas, a supplicar-me que conclua essa reconciliação á qual o teu +orgulho se nega ha tanto tempo. Tenho pois que recapitular as coisas +desde o principio, ou calar-me. + +--Fale, repetiu a Zina, a maldizer de todo o coração a grandiloquencia +maternal. + +--Continúo, Zina. Esse tal _utchitel_ da escóla communal, um fedêlho, +por assim dizer, produziu em ti inconcebivel impressão. Contei sempre +com que o teu sizo, a elevação dos teus sentimentos e tambem a +indignidade do individuo, (visto que é preciso dizer tudo) evitariam +qualquer approximação entre tu e elle. E de repente, vens ter commigo e +declarar-me com firmeza que tens tenção de casar com elle. Foi uma +punhalada que me déste no coração, Zina! Soltei um grito e caí sem +sentidos, mas... não deixarás de te lembrar do incidente. É certo que +julguei necessario empregar n'aquella occorrencia toda a minha +auctoridade: e por signal que a acoimaste de tyrannia. Reflécte, pois: +um garotête, filho d'um _diatchok_,[4] com um salario de doze rublos +mensaes, um escrevinhador de máus versos que lhe imprimem por dó na +_Bibliothéca de Leitura_, que não sabe falar em outra coisa a não ser +n'esse maldito Shakspeare,--aquelle fedêlho, teu marido! marido da +Zinaida Moskalieva! São coisas que só acontecem nas novéllas pastorís de +Florian. Perdão, Zina, mas quando me lembro de tal, saio fóra de mim! +Neguei-me a consentir. Não houve influencia que conseguisse +convencer-te. Teu pae, naturalmente, manteve-se na neutralidade, incapaz +de comprehender-me quando tentei expor-lhe o caso e sem saber fazer +outra coisa além de pestanejar. Mantens relações com esse garoto, +proporcionas-lhe até ensejo de te ver, e o que é ainda muito peor que +tudo isso, tens o arrojo de lhe escrever! E as más linguas desde logo a +trabalhar! Fazem allusões offensivas na minha presença. Estão a pular de +contentes, a embocar as mil trombetas da calumnia. As minhas +antecipações a semelhante respeito vão se realizando uma por uma. Dá-se +entre ti e elle um desaguizado e elle manifesta-se indigno de ti. +Ameaça-te de mostrar as tuas cartas, e tu, num assômo de justa +indignação, dás-lhe uma bofetada!... Sim, Zina, conheço tambem essa +circumstancia, estou inteirada de tudo--de tudo, sim! Esse traste, +n'esse mesmo dia, mostra uma das tuas cartas áquelle miseravel do +Zanchine, e, d'alli a uma hora a carta está em poder da Natalia +Dmitrievna, minha inimiga figadal! Á noite, aquelle, doido, arrependido +já de semelhante acção inqualificavel, por toleima tenta envenenar-se! +N'uma palavra, um escandalo medonho! Aquella pécora da Nastassia accode +toda assustada, a participar-me que ha uma hora que a Natalia Dmitrievna +se acha de posse da tua carta: não se passarão duas horas, sem que a +cidade em pêso apregôe para ahi a tua vergonha. E eu a esticar os nervos +para não caír para ali inanimada. Que lance, Zina! Aquella descarada, +aquella desavergonhada! + +A Nastassia exige duzentos rublos para inutilizar a carta. Eu propria, +deito a correr, com os sapatos de trazer por casa, até, atravéz da neve, +para ir a casa do judeu Bumschtein empenhar o meu abrochador, recordação +da minha virtuosa mãe! D'alli a duas horas tinha a carta em meu poder: +roubou-a a Nastassia: arrombou uma boceta e está salva a tua honra. Nem +vestigios, sequer! Mas que dia de angustias! Logo ao outro dia, +encontrei entre os meus cabellos immensos fios brancos,--os primeiros, +Zina! Tu foste a propria a avaliar até que ponto era indigno de ti +aquelle garoto, pois concordas agora, não sem amargura, talvez, que +teria sido uma loucura entregar-lhe o teu destino. Depois, comtudo, +pégas a atormentar-te, a soffrer, não podes varrêl-o da lembrança,--não +a elle,--foi sempre coisa tão rasteira que a tua vista nem sequer podia +deter-se n'elle,--mas ao teu primeiro sonho de amor. Hoje, esse +desgraçado está a expirar--nem sequer já se levanta.--Dizem que morre +tisico, e tu--anjo de bondade,--não queres casar emquanto elle fôr vivo; +para lhe poupar soffrimento, visto que é ciumento... e não obstante, +nunca te teve amor, tenho a certeza, amor sincero, elevado! O que o não +impede de espionar os passos do Mozgliakov, de te rondar a casa, de +tirar indagações...--Tens dó delle, minha filha, adivinhou-te o meu +coração, e Deus sabe as lagrimas amargas que me tem encharcado o +travesseiro. + +--Veja se acaba com tudo isso, mamã! atalhou Zina com enfado. O seu +travesseiro não vem cá fazer coisa nenhuma! Não poderá falar com +singeleza? + +--Não me acreditas, Zina! Não me trates tão mal, minha filha! Já lá vão +dois annos, e não faço outra coisa senão chorar, mas tenho-te encoberto +as minhas lagrimas, Zina, durante esses dois annos mortaes!... Ha muito +tempo que conheço os teus sentimentos. Medi todo o alcance da tua magua. +Poderá alguem lançar-me em rosto, minha querida, o haver considerado +semelhante ligação como uma phantasia romanesca, nascida sob a +influencia do tal maldito Shakspeare? Qual seria a mãe que condemnasse +os alvitres de que tenho lançado mão e achasse rigoroso em demasia o +modo por que avalio este caso? E comtudo, a mim propria represento o teu +longo padecer, comprehendo e apprecio a tua sensibilidade. Acredita: +comprehendo-te melhor, talvez, do que te comprehendes a ti propria. +Estou certa de que o não amas, a esse garoto ridiculo: a quem tu amas é +ao teu sonho, á tua ventura mallograda, ao esvair das tuas illusões. Eu +tambem amei, não cuides que não, e com mais excesso de paixão do que tu; +tambem eu padeci; tinha tambem as minhas illusões!... Não falo pois sem +experiencia, e se affirmo que uma alliança com o principe representaria +para mim a salvação, mereço talvez que me dêem ouvidos. + +A Zina ouviu com espanto aquella estirada declaração, farta de saber que +a mamã nunca assume aquelle tom pathetico sem designio occulto. E +comtudo, a conclusão deixa confundida a joven. + +--É pois a sério, que fala em casar-me com o principe? exclama pasmada a +considerar a mãe que assumiu attitude majestatica; não é então uma +hypothese, como se dissessemos? É tenção firme e assente, pelo que vejo? +Mas... como é que poderia salvar-me semelhante casamento? E... e... que +relação terá tudo isso com o que acaba de expôr-me, com essa historia +toda?... Declaro que a não percebo, mamã. + +--E a mim, meu anjo, espanta-me que o não percebas! exclama Maria +Alexandrovna, com subita animação. Primeiramente, o facto só por si de +teres de transferir-te para outra sociedade, para um mundo differente; +de teres de dizer adeus de uma vez para sempre a esta nojenta cidade das +duzias, semeada para ti de tão temiveis recordações, á qual te não +prende a minima affeição, onde te assacaram calumnias, onde essa sucia +de pêgas te detestam por causa da tua formosura, esse facto só por si, +repito, é já capital. E depois, podes, ainda esta primavera, ir para o +estrangeiro, para a Italia, para a Suissa, para a Hespanha,--Zina--para +a Hespanha, onde irás ver a Alhambra, o Guadalquivir! Não estarás farta +d'este immundo riacho de Mordassov, com aquelle seu nome inconveniente? + +--Mas se me dá licença, mamã! está falando como se eu já estivesse +casada, ou pelo menos como se o principe me tivesse já pedido em +casamento... + +--Lá quanto a isso não te dê cuidado, meu anjo, sei o que estou dizendo. +Deixa-me continuar. Eu disse _primeiramente_, e ahi vae o segundo ponto: +Comprehendo, minha filha, quanto te contraría o dares a mão de esposa a +este Mozgliakov... + +--Sei muito bem, nem preciso de que m'o digam--que nunca serei sua +mulher! interrompeu Zina com arrebatamento. + +--Se tu soubesses, meu amor, como eu avalio essa repugnancia! É terrivel +o ter que jurar perante o altar de Deus amor e fidelidade áquelle a quem +se não pode ter amor! É terrivel o pertencer a um homem a quem se não +pode respeitar. E todavia, exigir-te-hia amor; foi para te possuir que +elle casou comtigo: isso adivinha-se nos olhos que elle te deita quando +não olhas para elle. Mas como simular perpetuamente amor? Ah! minha +filha, aqui estou eu que ando a padecer ha vinte e cinco annos com esta +comedia necessaria. Teu pae deitou-me a perder. Posso afirmar, até, que +envenenou de todo a minha mocidade, e quantas vezes não terás visto +correr as minhas lagrimas? + +--O papá está no campo; não esteja a atacál-o, por quem é! + +--Sim, tu saes sempre em sua defêsa, bem o sei... Ah! Zina! +Confrangia-se-me o coração quando a prudencia me obrigava a desejar o +teu casamento com o Mozgliakov! Com respeito ao principe, com esse não +tinhas tu necessidade de representar nenhuma comedia. Escusado é dizer +que lhe não poderás dedicar o que se chama amor. E demais, elle proprio +é _incapaz_ de exigir semelhante amor. + +--Que disparate, meu Deus! E eu affirmo-lhe que se engana de meio a +meio: não tenciono sacrificar-me,--ignoro aliás o fim com que o faria. +Fique sabendo que não quero casar. Não casarei seja com quem fôr; +ficarei solteira. Tem-se farto de me atormentar ha dois annos para cá, +por causa de eu ter rejeitado quantos noivos me tem apparecido, mas não +tem remedio senão conformar-se; não quero, já disse! + +--Zinotchka, não te alteres, pelo amor de Deus, sem me ouvires, meu +amorzinho! Que cabeça tão esturrada! Consente em que eu te exponha o +caso em conformidade com o meu modo de ver, e verás que has de vir a +concordar commigo. O principe poderá ainda viver um anno, dois, talvez, +mas não vae além, com certeza. Ora, mais vale ser viuva e nova do que +velha solteirona, isto sem falarmos em que depois de elle fechar o olho +ficas sendo princêsa, rica e livre. Minha querida, desprezas talvez +estes meus calculos baseados na morte de um homem, mas sou mãe, e quem +haverá ahi que condemne a minha previdencia? Em conclusão, se tu, anjo +de bondade, ainda tens pena d'esse tal garoto, se tu, conforme eu +suspeito, não queres casar emquanto elle fôr vivo, considera que, se +casares com o principe, vaes resuscitar aquelle a quem amas! Se é que a +elle lhe restam ainda uns vislumbres de bom senso, comprehenderá, +manifestamente, que o ter ciumes a respeito do principe, seria coisa +fora de proposito, ridiculo. Comprehenderá que não casas com este velho +a não ser por interesse, por necessidade. N'uma palavra, +comprehenderá... quero dizer--depois de fallecido o principe, já se +vê,--que poderás casar segunda vez, se fôr da tua vontade... + +--Casar com o principe, expoliá-lo, e estar á espera de que elle morra +para depois ir casar com o meu amante, não é assim? É muito habil; quer +seduzir-me propondo-me... Percebo-a á legua, minha mãe, percebo-a +optimamente. Só o lembrar-me eu de que não pode deixar de fazer alarde +de nobres sentimentos, até, n'um negocio tão pouco limpo? Seria muito +mais estimavel o dizer-me, singelamente: "É uma ignominia, Zina, mas é +lucrativa; e portanto, acceita." Sequer ao menos era mais franco. + +--Mas que teimosia será essa tua em encarar o negocio no ponto de vista +da trapaça, da arteirice, da cobiça? Consideras os meus calculos como +uma soez hypocrisia; mas, em nome de quanto venéras como mais sagrado, +onde estará a baixeza, onde a hypocrisia? Vê-te bem n'aquelle espelho: +és formosa o sufficiente para conquistares com esses teus olhos, sem +mais nada, um reino! E tu, tão formosa, sacrificas a um velho os teus +melhores annos; tu, estrella magnifica, vaes embellezar-lhe o occaso da +vida; tal qual a hera viçosa, florir na sua velhice! Está afeito á +companhia de uma feiticeira que o sequestra lá n'um canto do mundo, e +d'essa feiticeira, és tu, tu, Zina, quem vaes ser successora! O dinheiro +e o titulo d'elle podem lá equiparar-se ao teu valor? Onde vês pois +n'isto a baixeza, a hypocrisia? + +Nem sabes o que estou dizendo, Zina! + +--O dinheiro e o titulo d'elle valem mais do que eu, visto que para os +alcançar, teria que resignar-me a casar com um enfermo. Dêmos ás coisas +os seus nomes: é uma ignobil hypocrisia, mamã! + +--Pelo contrario, minha querida, pelo contrario! O caso pode até ser +encarado de um ponto de vista superior, christão. Declaraste-me, um dia, +em um assômo de enthusiasmo, que querias ser irmã da caridade: o teu +coração exaltara-se de amor ao pensares nos humanos soffrimentos, outro +qualquer amor parecia-te tibio e mesquinho. Pois bem! Se ainda queres +acreditar no amor, acredita na dedicação, com sinceridade, tal qual uma +creança, com candura. Dedica-te, e abençoar-te-ha Deus! Tem padecido +este velho; é desditoso, perseguem-n'o. Conheço-o ha muitos annos e +sempre lhe dediquei incomprehensivel simpathia, carinho, por assim +dizer: presentia o futuro. Sê sua amiga, minha filha, seu brinquedo, +até, se é forçoso dizêl-o, mas aquenta-lhe o coração e fál-o por amor de +Deus! Admittamos que é ridiculo? Elle nem sequer d'isso tem consciencia. +Não chega a ser a metade de um homem. Tem dó d'elle, tu, que és christã. +Contrafaze-te; com força de vontade consegue-se domar a alma para +semelhantes façanhas. Quanto não custa o pensar as chagas nos hospitaes, +com que repugnancia se não respira o ar viciado dos lazaretos: mas não +ha anjos que desempenham sem asco essas repugnantissimas taréfas e que +ainda dão graças a Deus pela triste sorte que lhes coube? E ahi está o +remedio de que tanto necessitava o teu magoado coração: uma tarefa +heroica! Onde vês tu n'isto egoismo? Baixeza? Não me acreditas, suppões +que estou representando uma comedia, não podes comprehender que uma +mulher mundana, n'este meio de viver leviano, possa ter uns sentimentos +de tanta elevação? Pois bem, não me acredites, minha filha! Desconfia do +coração de tua mãe! mas sequer ao menos concorda em que as minhas +palavras são sensatas e salutares. Esquece que sou eu quem te estou +falando, fecha os olhos, volta-me as costas e põe na tua ideia que é uma +voz misteriosa que estás ouvindo... O que acima de tudo te prende, é a +questão de dinheiro, essa apparencia de compra e venda. Pois bem, +rejeita o dinheiro visto que lhe tens tamanha aversão, acceita apenas o +necessario, e o resto, dá-o aos pobres. Por exemplo, estende o teu braço +áquelle desgraçado que está ás portas da morte. + +--Elle nunca acceitaria, disse a Zina, baixinho, como se estivera +falando comsigo. + +--Dado o caso de que elle rejeite, lá está a mãe para o acceitar em nome +d'elle, responde Maria Alexandrovna sentindo que conseguiu acertar-lhe +com a corda sensivel. Acceitará sem que elle proprio o saiba. Já +vendeste os teus brincos (presente de tua tia) para lhe accudir, ha seis +meses, que eu bem o sei, e tambem sei que a mãe, a pobre da velha, anda +a lavar roupa para sustentar o filho. + +--Dentro em pouco deixará de precisar seja do que fôr. + +--Comprehendo-te! apanha de relance Maria Alexandrovna, (accode-lhe +uma inspiração, uma verdadeira inspiração.) Dizem que morre tisico: +mas quem é que o affirma? Indaguei a seu respeito, ha dias, do +Kalist-Stanislavitch... Pois sou a primeira a interessar-me pelo pobre +rapaz, tambem tenho coração, Zina! E o Kalist-Stanislavitch respondeu-me +que a doença é grave, não ha duvida, mas que, até hoje, existe apenas +uma forte affecção dos bronchios,--tu mesmo lh'o podes perguntar. E +accrescentou que a mudança de clima, impressões fortes, podiam curar o +doente. Contou-me elle que, em Hespanha--e já não é a primeira vez que o +oiço... li-o, até--ha uma ilha extraordinaria, Malaga, creio eu... +emfim, um nome que lembra o de um qualquer vinho--onde não só os que +padecem do peito, mas até os proprios tisicos saram de todo, graças ao +clima. Vão ali tratar-se fidalgos, e commerciantes ricos. Que elle, +effectivamente, a Alhambra--esse palacio encantado--as murtas e os +limoeiros, os hespanhoes a cavallo nas mulas, não será o sufficiente a +produzir impressão n'uma natureza de poeta? Suppões que rejeitaria o teu +dinheiro?... Enganas-te se tens dó d'elle! A mentira é perdoavel, quando +d'ella depende a vida. Alimenta-lhe a esperança, promette-lhe o teu +amor, dize-lhe que casarás com elle quando enviuvares,--tudo se pode +dizer com nobreza: tua mãe não era capaz de te dar maus conselhos, +Zina!--Has de fazer tudo isso para o salvar e o bastante para te +justificares. Recuperará alento assim que souber que está esperando por +ti. Tratar-se-ha, seguirá rigorosamente as recommendações do medico, ha +de querer resuscitar para a ventura. Se elle se curar, ainda quando não +viesses a ser sua mulher, sequer ao menos têl-o-has salvo! e se a +desventura o tiver mudado, se o houver tornado digno de ti, casarás com +elle. Effectuada a cura, poderás alcançar-lhe uma situação na sociedade, +facultar-lhe uma carreira. O teu casamento, n'estas condições, +tornar-se-ha possivel. Hoje!... que é que os espera a ambos, se +porfiassem em perpetrar o acto de loucura de casarem. O desprezo de toda +a gente e a miseria. + +Pensas acaso que a leitura entre ambos do seu Shakspeare lhes havia de +compensar tudo isso? Ficariam a vegetar aqui em Mordassov até que elle +morresse, o que não tardaria, aliás. Mas se está na tua mão o +incutir-lhe gosto pelo trabalho e pela virtude! + +Perdoa-lhe e adorar-te-ha. O remorso d'aquelle seu acto vergonhoso +apavóra-o! O teu perdão tudo irá ápagar e reconciliál-o-ha comsigo +mesmo. + +Passa ao serviço activo, sobe postos, e se morrer, sequer ao menos +morrerá feliz, nos teus braços (visto que poderás achar-te a seu lado), +seguro do teu amor, do teu perdão, á sombra das murtas e dos limoeiros, +debaixo da cupula azul de um ceu exotico. Ah! Zina! Tudo isto se acha +nas tuas mãos; basta que consintas em casar com o principe. + +Cala-se Maria Alexandrovna. Segue-se prolongado silencio. A Zina acha-se +no auge da afflicção. + +Não nos abalançaremos a descrever os seus sentimentos: não os +conhecemos. Mas, a julgar pelas apparencias, Maria Alexandrovna +encontrou o verdadeiro caminho para o coração da filha. Não ha duvida de +que a excellente mãe andou um tanto ás apalpadélas, até que por fim +conseguiu pôr o dedo na ferida, principiou por maguar sem precaução os +pontos mais sensiveis das feridas ainda abertas, a despeito de um +desenvolvimento por ahi além de sentimentos. + +Agora, comtudo, logrou introduzir na mente da Zina o pensamento que a si +lhe convinha: produzindo-se o effeito, alcançou-se o fim desejado. A +Zina escuta com soffreguidão, com as faces afogueadas, o seio a arfar. + +--Ora escute, mamã,... diz por fim, resoluta, comquanto a subita +pallidez manifeste claramente quanto lhe custa semelhante resolução. + +--Escute, mamã... + +N'este ensejo, comtudo, resôa no vestibulo um ruido: uma voz aguda a +chamar por Maria Alexandrovna. + +Maria Alexandrovna levanta-se com vivacidade. + +--Ah! meu Deus! demonios levem aquella pêga! É a coronela! E eu que +quasi que a despedi, ha quinze dias! accrescenta, desesperada... + +Mas é impossivel recebêl-a agora! De todo impossivel! E comtudo isso... +quem me diz que me não virá trazer noticias... aliás, nunca se +atreveria. É caso sério, Zina, é-me indispensavel sabêl-o, nada se póde +desprezar... + +--Como lhe fico grata por esta sua visita... quanto estimo!... exclama +correndo ao encontro da coronela. A que feliz acaso serei eu devedora de +se ter lembrado de mim, minha preciosa Sofia Petrovna? Encantadora +surpreza! + +A Zina deitou a fugir. + + + + +VI + + +A coronela Sofia Petrovna Farpukhina apenas suggere moralmente o tipo da +pêga. Quanto ao phisico, participa antes do pardal. É uma mulherita +cincoentona com sardas entre ruivas e amareladas pela cara e uns olhos +que nunca param. O corpo ético, implantado sobre umas sólidas pernas de +pardal, esconde-se por debaixo das amplas pregas d'um vestido escuro, de +seda, em continuo restralar, visto como a coronela nunca póde estar +quiéta. É uma linguareira ruim e vingativa, perde o tino com a seguinte +ideia: "Sou coronela." Ella e o marido, coronel reformado, jogavam a +unhada a toda a hora: elle ostentava no rosto os signaes das garras da +consorte. Ella, préga no bucho com quatro copinhos de vodka, todas as +manhãs, e outros tantos ao deitar. Vota um odio figadal a Anna +Nikolaievna Antipova e á Natalia Dmitrievna Padknvina, que a sacudiram +das suas salas, ha oito dias. + +--Demoro-me apenas um instantinho, meu anjo, pia a dama; nem +sequer me quero sentar. Traz-me aqui unicamente o desejo de lhe +contar os singularissimos acontecimentos que se estão dando. O tal +principe faz andar n'uma roda viva esta nossa Mordassov. Os nossos +espertalhões--comprehende--não lhe largam o rastro, a farejál-o por +todos os cantos, a puxál-o para todos os lados, obrigam-n'o a beber +champanhe. Eu se o não visse não o acreditava. Como é que o deixou saír? +Não sei se sabe que, n'este instante, está em casa da Natalia +Dmitrievna? + +--Em casa de Natalia Dmitrievna? exclama Maria Alexandrovna dando um +pulo na cadeira. Mas se elle ia apenas fazer a sua visita ao governador +e a casa de Anna Nikolaievna, e sem tenção de se demorar. + +--Para se não demorar, isso sim! E agora, corra atrás d'elle! + +Não encontrou em casa o governador, foi visitar a Anna Nikolaievna, e +prometteu-lhe jantar com ella, e a Natachka[5], bem sabe, que nunca sáe +de casa, lá estava pespegada; carregou com elle para almoçar. E ahi tem +o seu principe! + +--Que me diz! E o Mozgliakov a prometter-me... + +--Pois sim! O tal seu Mozgliakov a quem a senhora não se farta de pôr +nas nuvens!... Está em casa delles! Olho n'elle! Veja lá se o obrigam a +jogar as cartas e principia para ahi a perder como succedeu o anno +passado. E o principe é capaz de se deixar limpar que nem um prato. E +que calumnias que ella inventa, aquella Natachka! A atordoar os ouvidos +a toda a gente com a galga de como a senhora faz a côrte ao principe com +o sentido em... com um certo sentido, não sei se m'entende? E +pespega-lh'o a elle na cara, até; e elle sem perceber patavina, sentado +para ali como um gato encharcado e a responder, a cada palavra: "Ah! +Está claro, está claro!" E sabidas as contas é ella a propria que... +Mandou saír a Sonka[6]. Ora imagine! Com quinze annos e anda ainda de +vestido curto que mal lhe chega ao joelho; tambem mandou vir aquella +orfã, a Machka,[7] com um vestido ainda mais curto. Impingiram a ambas +uns casquêtesinhos encarnados cheios de plumas, não sei para quê, e ao +som do piano põem-se a dansar, aquelles dois espinafres, deante do +principe, a Kozatchok.[8] Ora a minha amiga está farta de conhecer o +fraco ao principe! A babar-se todo: "Que... e... fó... órmas!" diz elle +"... Que... e... fó... ó... órmas!" E a mirál-as pelo monóculo, e ellas com +uns módinhos, as duas perúas! Todas afogueadas á força de levantarem a +perna! E toda a gente a rir, faça ideia como e porquê!... Que nojo! E +chamam áquillo dansar! Aqui estou eu que dansei de chale, quando saí do +collegio aristocratico de Madame Jarmé: fiz sensação, acredite... pela +nobreza! + +Fartaram-se até de dar palmas uns senadores. Estavam a educar nesse +mesmo collegio filhas de principes e de condes.--Mas a tal Kozatchok, +aqui para nós, é tal qual o Cancan! E eu com a cara a arder, de +envergonhada! Não me pude conter... + +--Mas, então... tambem estava em casa da Natalia Dmitrievna? A senhora? +Cuidei que... + +--Então que quer! Ella offendeu-me, a semana passada, e não me ensaiei +para o pespegar a toda a gente. Mas que quer, minha amiguinha, se eu +estava morta por ver o principe, ainda que fosse por uma greta da porta, +e ahi tem por que é que lá fui, apezar de tudo, a casa da Natalia +Dmitrievna; a não ser o principe, não era eu que lá tornava a pôr os +pés! Ora imagine; servem chocolate a toda a gente, e a mim, nem raça, +nem sequer abrem a bocca para me pedir desculpa! Ha de ter noticias +minhas! Mas adeus, meu anjo, vou-me embora, estou com muita pressa... +é-me indispensavel encontrar em casa a Apulina Panfilovna para lhe +contar o caso. Ah! Pode-se desde já considerar viuva da lindeza do tal +principe, não é elle que volta para sua casa. Está perdido da memoria, +bem sabe, e a Anna Nikolaievna terá cuidado em o não deixar saír. + +Estão com medo de que a minha amiga... todas ellas... não sei se +percebe? a proposito da Zina... + +--Que horror! + +--É como lhe digo; já corre até por essa cidade. A Anna Nikolaievna não +o deixa saír sem jantar e depois não o larga. Os planos d'ella são todos +elles armados contra a senhora, meu anjo! Fui deitando o olho para o +pateo: que reboliço! Prepararam um jantar com trinta entradas, mandaram +vir champanhe. Quer um conselho? Veja se trata de lhe deitar a mão antes +de que elle vá a casa d'ella. Não, que elle, pertence-lhe, é seu +hospede! Não se deixe engazupar por aquella espertalhona, por aquella +ranhosa! Não vale a sola de um sapato, lá com ser mulher de um +procurador. E eu, aqui onde me vê, sou coronela, fui educada no collegio +aristocratico de Madame Jarmé... Forte nojo! Adeus, meu anjinho, tenho o +trenó á espera, se não fosse isso, fazia-lhe companhia. + +E abalou a gazeta viva. + +Maria Alexandrovna, desesperada, toda ella n'um tremor. Não padece +duvida que o conselho da coronela é seguro e pratico; não ha tempo para +perder, mas subsiste ainda a grande difficuldade. + +Maria Alexandrovna investe para o quarto da Zina. A Zina andava ás +voltas pela casa, de mãos no peito, muito enfiada, cabisbaixa, no auge +da afflicção. Borbotavam-lhe nos olhos as lagrimas. Fulge-lhe porém no +semblante uma expressão de decisão, assim que põe os olhos na mãe. +Engole as lagrimas e refega-lhe os labios um risinho sarcastico. + +--Mamã, diz ella, antecipando-se a Maria Alexandrovna, desperdiçou +thesouros de eloquencia em minha honra, de mais, até, visto que me não +conseguiu cegar a vista, e eu não ser nenhuma creança. Querer +persuadir-me de que, eu, casando com o principe, ia praticar um acto de +irmã de caridade,--profissão para que não sinto a minima +vocação,--justificar mediante um nobre fim baixezas egoistas, tudo isso +representa apenas o mais grosseiro egoismo, entendeu? + +--Porém, meu anjo... + +--Cale-se, mamã, tenha paciencia, e oiça-me até ao fim. Saiba, pois, que +tenho a consciencia da sua hypocrisia. Estou pois plenamente convencida +de que o verdadeiro fim de tudo isto é vil; e comtudo, acceito a sua +proposta, completamente, mas _completamente_, entendeu? Estou prompta a +casar com o tal principe, prompta a ajudar os seus esforços no sentido +de o convencer a casar commigo. O motivo d'esta minha resolução, não é +da conta da mamã, baste-lhe saber que me prontifico a tudo: ajudál-o-hei +a enfiar as botas, serei sua creada, hei de dansar para que elle se não +arrependa de ter casado commigo. Mas, em troca, peço-lhe que me diga, o +modo por que pretende alcançar semelhante resultado. Não ponho em +duvida, visto que se empenha n'este negocio, o facto da mamã ter já +urdido o seu plano. Transmita-m'o, seja franca uma vez na sua vida, eis +as minhas condições. + +Maria Alexandrovna ficou tão embatucada, que emudeceu sem bulir com um +dedo, com os olhos espipados. Contara com a lucta contra as ideias +romanescas da filha, e ficou estupefacta ao vêl-a decidida a agir contra +as proprias convicções. O negocio toma verdadeira consistencia. Maria +Alexandrovna, lá por dentro, não cabe em si de contente. + +--Zinotchka! exclama enthusiasmada, és a carne da minha carne e o osso +dos meus óssos! + +Nem uma palavra mais pode accrescentar, lança-se nos braços da filha. + +--Ah! meu Deus! Dispense-me dos seus abraços, mamã! respondeu, enfadada, +a Zina. É absolutamente deslocado esse seu enthusiasmo. Exijo uma +resposta á minha pergunta, e nada mais! + +--Mas, Zina, eu amo-te, adoro-te, e tu a repelires-me! É para te ver +feliz que eu ando a trabalhar. E, dos olhos de Maria Alexandrovna +borbotavam lagrimas _sincéras_. Effectivamente, ama a seu modo a Zina, e +d'ahi, a commoção do triumpho torna-a tão sentimental como qualquer +_baba_,[9] áquelle general de saias. A Zina sente bem, a despeito de +tudo, que a mãe é sua amiga; mas pésa-lhe semelhante amor, +preferir-lhe-hia o odio. + +--Pois bem! Não se zangue, mamã; sei muito bem o que vou fazer, se eu +estou tão afflicta!... disse para tranquillizál-a. + +--Eu não me zango, não me zango, meu anjinho, cacarêja Maria +Alexandrovna recuperando animo. Não deixo de avaliar a tua agitação. Mas +não vês tu, querida amiguinha... tu pediste-me franqueza... Seja assim, +serei franca, mas acredita-me. Lá quanto a um plano inteiramente +definido, é coisa que ainda não tenho, nem o posso ter: tudo depende das +circumstancias. Antevejo até algumas difficuldades. + +... Se aquella pêga, aindagora, esteve-me para ahi a grasnar um +chorrilho de pessimas noticias. (Ah! meu Deus! não tenho tempo para +perder!) Serei pois franca: juro-te que hei de conseguir o meu fim. Não +vás acreditar n'uma miragem qualquer, n'uma illusão; o meu plano assenta +todo elle na toleima do principe, e representa isso uma talagarça em que +se pode bordar tudo que se quiser. O mais importante é que nos deixem +operar. E demais, essas fufias nada podem contra mim! exclama Maria +Alexandrovna assentando um murro na mêsa. Tem confiança, mas cumpre +operar depressa! Hoje ainda façamos o principal, se for possivel. + +--Está bem, mamã; escute ainda... uma franqueza. Sabe o motivo porque +tanto me interessa esse seu plano? É porque não estou segura de mim +propria. Disse-lhe que me achava decidida a praticar semelhante baixeza. +Mas se os pormenores d'esse seu plano forem repugnantes em demasia, +desde já lhe declaro que me verei obrigada a desistir. Sei que será mais +uma baixeza, o resignar-me a entrar no lodaçal e não ter animo de lá +ficar. Mas que se lhe ha de fazer? Se não pode deixar de ser assim! + +--Mas, Zina, meu anjo, onde é que tu vês n'isto baixeza? replica, +timida, Maria Alexandrovna. Trata-se de um bom casamento, de uma coisa +normal; encara as coisas d'este ponto de vista e verás que te ha de +parecer muitissimo razoavel. + +--Ah! mamã, pelo amor de Deus, nada de dissimulações para commigo! Estou +prompta para tudo, bem vê; que mais quer? Não se escandalize, peço-lh'o +eu, por eu dar ás coisas o nome que lhes compete: será, talvez, +actualmente, essa a minha unica consolação. + +E sorriu com tristeza. + +--Ora vamos! Vamos! Está bom, meu anjinho; pode haver estima reciproca sem +identidade de convicções. Quanto ao meu plano, tem a certeza em como te +não irá salpicar de lama, isso te juro eu! Quererás talvez +comprometter-me? Tudo ha de correr bem, com muita dignidade, até. Não ha +de haver escandalo. E ainda quando o houvesse, n'esse caso, d'este ou +d'aquelle modo... já nós estariamos d'aqui muito longe... diziamos adeus +a Mordassov. E depois, essas gralhas que piassem para ahi até rebentar, +já nos não fazia mossa. Merecem que façamos caso d'ellas, porventura? E +como é que tu, Zina, tão soberba, podes arrecear-te de semelhante gente? + +--Ah! mamã, a mim não me mettem medo, acredite! Não me entende! +respondeu a Zina, irritadissima. + +--Está bom, está bom, minha joia, não te zangues! Onde eu queria chegar +era a que essa gentalha praticam vilanias a cada instante, e que tu... +por uma só vez... Mas, que digo eu... sempre sou muita tola! Trata-se +até de uma nobre acção! Depende tudo do ponto de vista... + +--Basta, mamã, basta! exclama a Zina. + +E bate o pé. + +Deixa lá! meu anjo, não torno mais! + +Silencio. Maria Alexandrovna fica a olhar pelas costas para a Zina, que +seguiu por a casa fora com uma expressão de cachorro a olhar para a +chibata. + +--Nem sequer chego a perceber como é que tenciona dar-lhe volta, +prosegue com enfado a Zina. Tenho a certeza de que o resultado que +tirará será uma affronta. Pela parte que me toca, tanto se me dá, mas +vae ter desgosto, creia. + +--Ora! Se é só isso que te dá cuidado, vae descançada, meu anjo! + +Comtanto que estejamos de accordo, quanto ao mais, pouco importa! Se tu +soubesses os transes de que eu tenho escapado, sã e a salvo! Em summa, +permitte-me fazer uma tentativa. É urgente que eu tenha quanto antes uma +conferencia com o principe. Já estou adivinhando o que d'aqui sairá. De +quem eu tenho medo é do tal Mozgliakov. + +--Do Mozgliakov? perguntou a Zina com desdem. + +--Do Mozgliakov, sim, pois que cuidas? Mas não te assustes, ainda assim, +Zina, hei-de induzil-o a auxiliar-me, até. Nem tu sabes ainda quem aqui +está, Zina! Ah! tão certa tenha eu a salvação, mas assim que ouvi falar +no principe, accudiu-me logo semelhante ideia! Foi uma revelação. Quem +havia de dizer que elle havia de vir parar a nossa casa! Bem podiamos +estar cem annos á espera d'uma occasião d'estas! Ah! és tão linda, minha +Zina! Que belleza! Olha, eu, se fosse homem, atirar-te-hia aos pés um +reino! Sucia de asnos! Quem não ha de estar morrendo por beijar esta +mãozinha? (Maria Alexandrovna, effusiva, beija a mão da filha.) É a +carne da minha carne!... É preciso casál-o dê por onde der, áquelle +imbecil! E que bem viveriamos depois, Zina! Pois nunca nos havemos de +apartar, não é verdade? Não pões na rua tua mãe, quando te vires feliz? +Tivemos os nossos desaguizados, mas aonde irás tu encontrar outra amiga +como eu? Eu, apezar de tudo... + +--Mamã, se está resolvida, é tempo de fazer alguma coisa. Está perdendo +minutos preciosos! disse a Zina, com impaciencia. + +--E já vae apertando. Vae, sim, effectivamente. E eu aqui a dar á +lingua! Querem açambarcar o principe! Vou já a correr. É já; mando +chamar o Mozgliakov e carrégo com o principe, á força, se fôr preciso. +Adeus, Zinotchka! Adeus, meu amor, minha pomba! Não te desconsoles, não +desanimes, não estejas triste. Então!... Tudo ha de correr com +dignidade, com muita, até. Tudo está no modo de encarar as coisas. +Emfim! adeus, adeus! + +Maria Alexandrovna faz o signal da cruz á Zina e sae. Investe para o +quarto, detem-se um momento em frente do espelho e, d'alli a dez +minutos, lá vae rodando por essas ruas de Mordassov, na carruagem de +patins (já dissemos que Maria Alexandrovna vivia á larga.) + +--Não, não são vocês que podem luctar de esperteza commigo! A Zina +annue, e já é meio caminho andado! Não ser bem succedida! Que asneira! +Ah! Zina, com que então, ha calculos que influem no teu animo? Commovi-a +fazendo-lhe luzir deante dos olhos um risonho porvir... Como ella estava +linda, hoje! Ora, tivera eu sido tão formosa, e haveria revolvido, até, +meia Europa. Em summa, paciencia, esperemos. O tal Shakspeare ha-de-lhe +passar assim que ella se vir princêsa... E que princêsa não ha de +ser!... Gosto de a ver assim; tão soberba, tão senhora de si!... Tem uns +olhos de rainha!... Como é que ella poderia deixar de conhecer que ia +n'isso o seu interesse?--Até que emfim percebeu-o! Ficarei vivendo em +sua companhia, e ha de consentir em tudo que eu quiser. É princêsa? pois +tambem eu! Hão-de falar de mim, em Petersburgo, até... E adeus... +cidadezinha da asneira! O principe e o garoto hão-de ir marchando d'esta +para melhor, e eu, caso-a com uma testa coroada! Ha só uma coisa que me +mette medo: não terei usado para com ella excesso de franqueza? +Assusta-me! Assusta-me deveras! + +E engolfa-se em suas cogitações Maria Alexandrovna. + +Assim que se viu entre quatro paredes, a Zina poz-se ás voltas no +quarto, de mãos atráz das costas, a pensar. E não lhe faltava em quê, +com certeza! E a revezes e quasi inconscia repetia: "é urgente, é +urgente, ha já muito tempo que devia estar feito!" Que quereria dizer +aquella exclamação? Por mais de uma vez as lagrimas lhe refulgiram +n'aquellas pestanas tão longas e sedeúdas. Nem pensava, sequer, em as +enxugar. A mãe fazia mal em estar-se inquietando! A Zina achava-se +disposta para tudo... + +"Eu te direi, deixa estar! pensou a Nastassia Petrovna ao saír do seu +cadoz da farrapada depois de se haver retirado a coronela. E eu com +tenções de pôr uma gravata côr de rosa por causa do tal principe! Sempre +sou bem tola! A enfeitar-me para casar com elle! Ora, uma gravata +depressa se põe! Deixa tu estar, minha Maria Alexandrovna! Com que +então, eu, sou uma pécora, uma miseravel? Acceito duzentos rublos para +arrombar uma bocêta! Pois já se vê, não deixar escapar a occasião!... E +demais... eu se o fiz foi por ser generosa, pois ainda tive que fazer +despêsa... Eu te direi! Hei-de-lhes fazer ver a ambas se sou uma pécora +ou se o não sou! Hão de aprender a lidar com a Nastassia Petrovna!" + + + + +VII + + +Maria Alexandrovna, comtudo, deixava-se arrastar pelo proprio talento. +Concebeu um plano grandioso quanto audaz. Casar a filha com um ricaço, +com um principe e um moribundo; casál-a sem que ninguem o soubesse, +aproveitando a senilidade do seu hospede, era não só ousadia, mas +imprudencia, até. Não havia duvida, o projecto era seductor, porém, em +caso de malogro, poderia vir a reverter para o autor n'uma confusão sem +antecedentes. Maria Alexandrovna bem o sabia, mas não era mulher para +recuar. + +--Tenho-me visto em peores lances, dissera ella á Zina, e era verdade. E +seria uma heroina, se assim não fôra? + +Certamente, o projecto tinha seus visos de bandoleirismo á mão armada; +Maria Alexandrovna não era, porém, mulher para se prender com taes +ninharias. Resumia o caso n'um dito muito acertado: "uma pessoa não fica +para sempre casada." Era simplicissima semelhante ideia, mas apresentava +á imaginação tamanhas vantagens, que Maria Alexandrovna era a propria a +assustar-se. + +Como mulher de recursos, dotada de legitima faculdade creadora, urdiu o +seu plano n'um revez de mão. É certo que apenas se lhe pintiparava na +mente a largos traços, um tanto vagos, até. Escasseavam pormenores e +havia que contar com circumstancias imprevistas. Maria Alexandrovna +tinha porém confiança em si mesmo. Não era o malogro que lhe mettia +medo, lá isso, não; o que a sobresaltava, era a impaciencia em encetar a +lucta. A impaciencia, a nobre impaciencia minava-a, ao pensar nos +possiveis obstaculos. + +As mais sérias difficuldades, antecipava-as Maria Alexandrovna por parte +dos seus nobres concidadãos de Mordassov, e acima de tudo, da nobre +sociedade das damas Mordassovenses: Conhecia, por experiencia propria, +até onde ia o odio de semelhante gente. Nem sequer punha em duvida, já +se vê, que n'aquelle ensejo toda a gente lhe avaliava as intenções, +supposto que ninguem houvesse dito ainda uma palavra fosse a quem fosse. +Sabia, á força de triste experiencia, que não havia um unico +acontecimento, por mais secreto que fosse, referente á sua vida, que, +dando-se pela manhã, não andasse á noite na lingua de todas as +mexeriqueiras. Maria Alexandrovna, pois, antevia apenas o perigo, esta +casta de presentimentos, porém, que jamais a haviam enganado, não a +enganariam ainda d'esta vez. + +Eis, effectivamente, o que succedera, e de que ella ainda não tinha +conhecimento. Pela volta do meio dia, isto é, tres horas, minuto por +minuto, depois de haver chegado o principe a Mordassov, corriam pela +cidade uns boatos algo singulares. Qual teria sido o ponto de partida? +Ninguem o sabia, mas caso é que se espalharam acto continuo. + +Afiançava toda a gente que Maria Alexandrovna já tinha promettido a mão +da filha, da sua Zina, com vinte e tres annos e sem um kopek de dote, ao +principe: que o Mozgliakov tinha sido posto a andar e que estava tudo +resolvido e assignado. + +Qual era a causa de semelhantes boatos? Tão bem conheciam Maria +Alexandrovna que lhe tivessem adivinhado, com tão perfeita unidade, os +mais intimos pensamentos? Nem a inverosemelhança de um tal boato, visto +como um projecto d'aquelle genero se não leva a effeito no espaço de uma +hora, nem a falta evidente de todo e qualquer fundamento, pois ninguem +sabia d'onde partira a noticia, puderam dissuadir os Mordassovenses. O +mais surprehendente, era o haver-se principiado a espalhar o boato no +proprio ensejo em que Maria Alexandrovna encetava aquella sua conversa +com a Zina a semelhante respeito. Tal é o faro dos provincianos! O +instincto dos novelleiros das cidadécas attinge por vezes as raias do +maravilhoso. E todavia, o caso explica-se. Baseia-se no estudo intimo e +perseverante do proximo. Todo o provinciano vive debaixo de uma redoma +de vidro, como se disséssemos. É-lhe absolutamente impossivel esconder +seja o que fôr aos seus honrados concidadãos. Sabem a seu respeito +aquillo que elle é o proprio a ignorar. O provinciano, de sua natureza, +devia de ser um psicologo profundissimo. E eis o motivo porque eu ás +vezes pasmava sincéramente d'encontrar na provincia tão poucos +psicólogos e tanto imbecil! Mas ponhamos isso de banda. + +Estoirou a noticia tal qual o raio. O casamento com o principe +antolhava-se tão vantajoso a toda a gente, tão brilhante, que a face +extranha d'aquelle negocio a todos escapou. Dava-se ainda uma +circumstancia: A Zina era tão odiada ou mais ainda que a propria Maria +Alexandrovna; e por quê? Ninguem o sabia. Entraria talvez em linha de +conta a formosura da Zina, talvez pelo facto de Maria Alexandrovna, +apezar de todos os pezares, ser, muito mais do que a filha, da mesma +massa das outras Mordassovenses. Ausentasse-se ella da cidade, e quem +sabe, é possivel que deixasse saudades. Dava animação á sociedade +mediante incidentes variados. Sem ella aborrecer-se-hiam. Por outro +lado, a Zina, pela sua attitude, parecia pairar nas nuvens e não em +Mordassov. Não era da mesma raça, e talvez, inconsciamente, até, tivesse +uns modos demasiado altivos. E eis que esta mesma Zina, ácerca de quem +corria tanta historia escandalosa, aquella soberbona, apparecia +millionaria, princêsa e entrava no rol da aristocracia. Dentro de um ou +dois annos, talvez, vem a enviuvar e casa para ahi com algum duque, ou +algum general, e quem sabe, com o governador, e coincide exactamente o +estar viuvo e o ser grande admirador da formosura o governador de +Mordassov. Desde então virá a ser a primeira senhora da provincia, e um +tal pensamento, só por si, era intoleravel, nem haveria noticia capaz de +provocar tanta indignação em Mordassov. + +Estrugiam por todos os lados clamores de raiva. Diziam que era indigno; +que o jarreta não tinha o juizo todo; que o tinham enganado, embaído; +que urgia livrál-o da soffreguidão d'aquellas garras; que, apuradas as +contas, era immoral,--uma ladroeira! Que não faltavam meninas valendo +tanto como a Zina e em condições de casar com o principe. + +Todas estas exclamações e estas linguarices eram apenas supposições da +parte de Maria Alexandrovna, e já era demais. Estava farta de saber que +toda a gente se achava prompta a praticar o possivel e o impossivel, +até, para se oppôr a seus projectos. Pois não haviam confiscado o +principe e não tinha agora que o reconquistar a unhas e dentes? E d'ahi, +dado ainda o caso de que ella lograsse tornál-o a agarrar e trazêl-o +outra vez para sua casa, não poderá comtudo têl-o preso a toda a hora. +Em summa, quem é que lhe podia affiançar que hoje, ainda, dentro em duas +horas, o côro solemne em peso das damas de Mordassov se não terá +congregado na sua sala, e a pretexto de ordem tal que se torne +impossivel recebêl-as? Se ella lhes fechar a porta, entram-lhe pela +janella. Em conclusão, não se podia perder um instante, e todavia, nada +estava feito ainda. + +De subito, eis que brota na mente de Maria Alexandrovna, e amadurece do +mesmo jacto, uma ideia genial. Referir-nos-hemos á dita ideia em logar +competente: n'este ensejo, a nossa heroina lá ia rodando a toda a pressa +através das ruas de Mordassov, tremenda e inspirada, decidida a dar +batalha para reconquistar o principe. Nem sequer sabia o alvitre que +esposaria nem onde o iria encontrar; mas sabia com certeza que mais +depressa devia afundar-se Mordassov do que falhar-lhe um unico de seus +projectos. + +Do seu primeiro passo não podia saír-se melhor. Encontrou o principe na +rua e carregou com elle para jantar. + +Se me perguntarem o modo porquê, cercada por tantas ciladas armadas +contra si, conseguiu pôr o nariz a uma banda á Anna Nikolaievna, declaro +que considero esta pergunta offensiva para Maria Alexandrovna. Deteve o +principe no acto d'este estar á porta da casa da sua rival, e a despeito +de tudo, a despeito até das objecções do proprio Mozgliakov, receoso de +um escandalo, atirou com o ginjinha para dentro do trem. Era n'isto +exactamente que Maria Alexandrovna levava as lampas ás suas rivaes. Nos +lances decisivos, não se detinha em presença de um escandalo, tendo como +axioma que o exito a tudo justifica. Escusado será dizer que o principe +não oppôz resistencia de maior, e como sempre esqueceu-se de tudo e +ficou muito contente da sua vida. + +Ao jantar, não fez senão dar á lingua, muito alegre, a fazer +trocadilhos, a contar anecdótas que nunca concluia e passando de uma +para outra sem dar por isso. Tinha bebido tres copos de champanhe em +casa de Natalia Dmitrievna. Ao jantar, bebeu mais alguns e ficou +alegrinho. Maria Alexandrovna era a propria a lhe não deixar nunca o +copo vazio. + +Eram irreprehensiveis as iguarias, aquelle ladrão do Nitichka +esquecera-se de as chamuscar. A dona da casa desvelava-se em electrizar +os seus hospedes com os enlevos da sua amabilidade. A Zina, comtudo, +mantinha gélido silencio, e o Mozgliakov nem por isso estava nos seus +dias. Comia pouco, estava muito preoccupado, a pensar; e, coisa que +raras vezes lhe succedia, Maria Alexandrovna estava inquieta. A Nastassia +Petrovna, mazomba, fazia ás escondidas signaes ao Mozgliakov e este sem +dar por tal. A não serem Maria Alexandrovna e o principe, haveria +descambado em jantar de enterro. + +E comtudo, Maria Alexandrovna encobre intima afflicção: assusta-a a +Zina, com aquelles seus modos tristonhos, de olhos vermelhos. E demais, +o tempo não sobeja, e Mozgliakov, esse obstaculo material, está para +alli como um marco de pedra. Ergue-se da mêsa Maria Alexandrovna, minada +por funda inquietação. Mas qual não é o seu espanto, deixem-me assim +dizer, quando vem ter com ella o Mozgliakov e lhe declara, que sente +muito, mas que se vae retirar immediatamente! + +--Aonde é que vae, então? indaga ella, com simpatia. + +--Eu lhe digo, Maria Alexandrovna, enceta o Mozgliakov atrapalhado, +aconteceu-me um caso um tanto esquisito... Nem sei até como lh'o diga... +Mas, pelo amor de Deus, dê-me um conselho. + +--Que é, diga lá? + +--Meu padrinho, o Borodoniev... conhece, aquelle commerciante... +encontrei-o hoje... está irritadissimo, dirigiu-me exprobações, diz que +sou um soberbo. Com esta é a terceira vez que venho a Mordassov sem ir +para sua casa. "Vem hoje, me disse elle, tomar uma chavena de chá +commigo". São quatro horas em ponto, e elle toma o chá, á antiga, ahi +pelas cinco horas, depois da sésta. Que quer que lhe eu faça... Eu +avalio, Maria Alexandrovna... Mas colloque-se no meu logar! Foi elle que +teve mão em meu pae que se queria enforcar, quando perdeu aquelle +dinheiro do Estado!... Foi n'essa occasião, por signal, que elle +insistiu em ser meu padrinho. Se fôr a effeito o meu casamento com Zina +Aphanassievna, bem sabe que disponho apenas de cento e cincoenta almas, +ao passo que elle é millionario, e mais que isso, até, segundo affirmam. +Não tem filhos. Se eu estiver a bem com elle, pode deixar-me cem mil +rublos. Ora elle está com setenta annos, lembre-se d'isto! + +--Ah! meu Deus! Mas então que é que o prende? Por que está para ahi a +marralhar? exclama Maria Alexandrovna, disfarçando a custo o +contentamento. Vá-se embora, vá! Com essas coisas não se brinca! E era +por isso então que estava tão absorto durante o jantar? Vá, meu amigo, +não se demore! Mas devia de ter ido vêl-o esta manhã para lhe provar que +aprecia a sua benevolencia. Ai! esta mocidade! + +--Mas, se Maria Alexandrovna tem sido a propria a arguir-me de +semelhantes relações! Tudo era dizer-me que era um mujik, parente de +taberneiros e agentes de negocio! + +--Ah! meu amigo, quanta coisa se diz sem pensar! Tambem sou sujeita a +enganar-me.--Não me tenho na conta de infallivel. E d'ahi... não me +recordo... mas... é possivel que eu me achasse numa tal disposição de +espirito... em summa, o senhor não tinha ainda formulado o seu pedido. +Certamente, que houve da minha parte egoismo maternal, mas agora devo +encarar as coisas de um ponto de vista novo. Qual seria a mãe que m'o +levasse a mal? Vá e não perca um instante. Passe a noite com elle... e +oiça lá! Fale-lhe a meu respeito, diga-lhe que o tenho em muita conta, +que sou muito sua amiga... Proceda com habilidade. Ah! meu Deus! +Tinha-se-me varrido de todo. E era eu que lh'o devia ter lembrado. + +--Resuscitou-me, Maria Alexandrovna! exclama Mozgliakov encantado. E +agora obedecer-lhe-hei em tudo e por tudo. E eu sem me atrever a +falar-lhe n'isso! Pois bem, adeus! vou-me embora. Desculpe-me para com a +Zinaida Aphanassievna. E d'ahi, hei de voltar. + +--Receba a minha benção, meu amigo. E não se esqueça de falar a meu +respeito. Effectivamente, é um velho estimabilissimo. Ha muito tempo que +mudei de opinião a seu respeito. E demais, eu sempre o estimei na +qualidade de Russo dos bons tempos, tão despido de artificios. Até mais +ver, meu amigo, até mais ver! + +"Foi uma fortuna carregar com elle o demonio! Que estou dizendo, foi o +proprio Deus que veiu em meu auxilio." + +Pavel Alexandrovitch estava já no vestibulo a enfiar a _chuba_, eis que +rompe por alli dentro, saída não se sabe d'onde, a Nastassia Petrovna. + +--Aonde vae? diz, agarrando-o pela mão. + +--A casa do Borodoniev, Nastassia Petrovna, a casa do meu padrinho. +Coube-lhe a honra de me baptizar. Um velho rico, um padrinho de quem se +herda, um homem que se deve amimar. + +--A casa do Borodoniev! Pois diga adeus, desde já, á sua noiva, disse +com sequidão Nastassia Petrovna. + +--Como assim? + +--Assim mesmo. Suppõe que a tem segura? Isso sim! Vae, mas é casar com o +principe. + +--Com o principe. Que me diz, Nastassia Petrovna?! + +--Que me diz, quê?--Quer ver com os proprios olhos e ouvir com os +proprios ouvidos? Pendure para ahi a _chuba_, e venha commigo. + +Pavel Alexandrovitch, aturdido, atira para o lado a _chuba_ e deixa-se +levar para o quarto escuro, cuja porta dá para a sala. + +--Mas que quer isto dizer! Nastassia Petrovna, não percebo patavina. + +--Perceberá assim que ouvir. A comedia não tarda a principiar. + +--Qual comédia? + +--Chiton! Não fale tão alto! Qual comédia? E é o senhor que paga as +despêsas; andam a enganál-o; esta manhã, assim que o senhor saíu com o +principe, a Maria Alexandrovna pôz-se a apoquentar de dôr d'ilharga a +Zina, mais de uma hora, com o sentido em persuadil-a a aceitar para +marido aquelle jarreta d'engonços. Dizia ella que não havia nada mais +facil do que era o enredál-o. Propunha uns taes alvitres que a mim +propria me causavam asco. Ouvi-os d'aqui, a Zina annuiu. E que cama lhe +não fizeram ao senhor, ambas de duas! Tem-n'o na conta de um imbecil, e +a Zina declarou formalmente que não casava com o senhor por coisa +nenhuma d'este mundo. E eu, tão tola, que já me estava até enfeitando +para pôr ao pescoço uma gravata côr de rosa! + +Mas escute! escute! + +--Se assim é,... é uma infamia! murmurou Pavel Alexandrovitch, +esparvoado, fitando olho a olho a Nastassia Petrovna... + +--Mas escute! Vae ouvir o bom e o bonito!... + +--Escutar onde? + +--Debruce-se se ali n'aquella frincha da porta. + +--Mas... Nastassia Petrovna, eu sou lá homem que me ponha a escutar ás +portas?! + +--Emprega bem o seu tempo! Aqui, meu paezinho, é preciso metter a honra +na algibeira. Desde que cá veiu, escute... + +--Comtudo... + +--Se não quer, resigne-se a ficar a chuchar no dedo! E a mim que me +importa? Eu com dó do senhor, e o senhor com ceremonias! Será para mim +que eu ando a trabalhar? Eu, por mim, já nem cá fico esta noite. + +Pavel Alexandrovitch, muito contra sua vontade, encosta o ouvido á fisga +da porta. Referve-lhe o sangue nas arterias. Não percebe uma palavra de +quanto em volta de si se está dando. + + + + +VIII + + +--Com que, então, divertiu-se muito, principe, em casa da Natalia +Dmitrievna? indaga Maria Alexandrovna, deitando olhar soffrego para a +futura prêsa. + +(Enceta de proposito as hostilidades do modo mais innocente. De +commovida, tem o coração aos pulos.) + +Depois de jantar, transferiram o principe para a sala onde este havia +entrado pela manhã. O ginjinha, com lastro de seis copos de champanhe, +já não conserva equilibrio. Em compensação, não cessa de badalar. Maria +Alexandrovna percebe que é apenas uma excitação de momento e que o +hospede, d'alli a nada, ferra comsigo a dormir. Cumpre pois aproveitar a +occasião. Nota com jubilo que o voluptuario ginjinha dispara á Zina uns +olhares de gula. Rejubilam os seus maternaes sentimentos. + +--Ex-trê-ê-ma-mente! e, não sabe? é uma mulher incom-pa-ra-á-vel... +aquella Natalia Dmitrievna, uma incompa-ra-vel mulher! + +A despeito dos muitos cuidados, aquelles louvores tributados á rival +fazem sangrar o ciume a Maria Alexandrovna. + +--Ora vamos, principe! exclama com os olhos a ferir lume, se essa sua +Natalia Dmitrievna é uma mulher incomparavel, tapa-me a boca, mas é +preciso que o principe conheça muito mal esta nossa sociedade! Não passa +tudo de um alarde descarado de sentimentos ausentes, comédia, verniz, +oiro ao de cima. + +Erga uma pontinha ás apparencias, e encontrará um verdadeiro inferno +escondido por baixo das flores, uma ninhada de viboras promptas a +tragál-o. + +--De-vé-ras! Estou pa-a-asmado! + +--Sou eu que lh'o digo! Ah! meu principe! Ora escute, é a Zina! +Assiste-me o dever--e a tanto me vejo obrigada--de contar ao principe +uma aventura ridicula que se deu a semana passada, com aquella Natalia +Dmitrievna--lembras-te?--Sim, principe, com aquella Natalia a quem tanto +admira. + +Ah! meu caro principe, affirmo-lhe que não sou mexeriqueira, mas devo +contar-lhe isto unicamente para lhe dar uma amostra viva e irrisoria da +nossa sociedade. + +Haverá quinze dias veiu visitar-me essa tal Natalia Dmitrievna. Estavam +servindo o café, e eu tinha que sair. Lembro-me muito exactamente das +pedras de açucar que ficaram no meu açucareiro de prata: estava cheio. +Volto, e que hei de eu ver? Restavam apenas tres pedrinhas. Ora, a +Natalia Dmitrievna tinha ficado sósinha! Que me diz a isto? + +Tem casa, dinheiro, tudo que lhe apetece... É comico e pequenino, pois +não acha?--E por aqui já pode avaliar o que é esta nossa sociedade em +Mordassov. + +--De-ve-ras?--É uma gulodice... sobre-natural! Mas como é que ella pôde +engulir um açucareiro? + +--E ahi tem a sua mulher incomparavel, principe; se já se viu uma +vergonha assim? Eu por mim estou que antes queria morrer, do que +resolver-me a praticar um acto tão nojento! + +--Está c... claro!... está... claro!--Mas ainda assim--sempre lhe digo, +que é uma linda mulher! + +--Quem? A Natalia Dmitrievna! Ora vamos, principe, ella o que é é uma +pipa. Ah! principe, principe, que está dizendo? Sempre fiz outra opinião +do seu bom gosto! + +--Está--c... claro--uma pipa!--Mas ainda assim--sempre lhe digo que é +bem feita; e depois, aquella pequer... rucha que dansava... essa tambem +é... bem feita. + +--A Sónitchka? Ora! Uma pequena! Tem apenas quatorze annos. + +--Está... claro!--mas ainda assim,... é tão leve... e com umas +formas..., tão... geitozinhas!... E a outra que dan... sou com ella? + +--Ah! aquella serigaita d'aquella orphã, principe? + +--Está claro--orphã! É porquinha,--devia ao menos ter lavado as +mãos,--mas é sedu-u-ú-ctora. + +E o principe, emquanto vae falando, não despega, com crescente avidez, o +monóculo do semblante da Zina. + +--Mas... que... linda... me... nina! tartamudéa... meio estarrecido... + +--Zina, vê se tocas alguma coisa, ou antes... canta. Canta que é uma +delicia, principe; chega a ser uma virtuose, ouso affirmál-o, uma +verdadeira virtuose. E se soubesse, principe, prosegue a meia voz Maria +Alexandrovna emquanto Zina se approxima do piano, com aquelle seu andar, +lento e cadenciado, que põe num sobresalto o jarreta, e se soubesse a +que ponto é amoravel, como é carinhosa para commigo! Que coração! Que +sentimentos! + +--Está claro! Sentimentos! E se quer que lhe diga... ainda não conheci +senão uma mulher que se lhe possa comparar como formosura, responde o +principe a engulir a saliva, é a condessa Naniskara; que Deus tem. Já lá +vae ha trinta annos. Que mulher! Que maravilhosa formosura! Casou com o +cozinheiro. + +--Com o cozinheiro, principe!? + +--Está claro--o cozinheiro, um francez, no estrangeiro.--E arranjou-lhe +lá no estrangeiro um titulo de conde. Um homem muito instruido, com uns +bigodinhos. + +--E como é que viviam, e onde, principe? + +--Está claro--viviam muito bem! E d'ahi, não tardou muito que se não +apartassem.--Elle roubou-a e safou-se. Quer-me parecer que jogaram as +cristas lá por causa de um môlho. + +--Que queres que eu toque, mamã? + +--Por que não cantas, antes? Se soubesse como ella canta, principe! +Gosta de musica? + +--Está c... laro! Um encanto--um encanto! Gosto immenso de musica! +Co... onheci muito Beethoven, no estrangeiro. + +--Beethoven! Ora imagina, filha, o principe conheceu Beethoven! clamou +Maria Alexandrovna, maravilhada. Ah! principe, pois devéras, conheceu +Beethoven? + +--Está c... laro: Eramos intimos amigos. Tinha o nariz sempre atulhado de +rapé... Que sujeitinho tão ratão! + +--Quem, Beethoven? + +--Está c... laro,--Beethoven? E não seria talvez Beethoven... mas sim +outro qualquer. Ha muito allemão, por toda a parte... Que eu, afinal, +parece-me que estou equivocado. + +--E que hei de eu cantar, mamã? + +--Ah, Zina! Canta-me aquella romança, não te lembras? Aquella que tem um +accento tão cavalheiresco: a castellã e o seu trovador--Ah principe, sou +doida pelos assuntos cavalheirescos! Os castéllos! aquelle viver +mediéval! Trovadores, arautos! Festas e torneios!... Vou te fazer o +acompanhamento, Zina... Sente-se aqui, mais perto, principe! Ai! os +castéllos, os castéllos! + +--Está c... laro! os castéllos... tambem gosto de cas... tellos, repete o +principe assestando na Zina o olho solitario: Mas... santo Deus! que +romança!... Estou a conhecêl-a... Ha que tempos... que tempos que a +ouvi... recorda-me... ah! meu Deus!... + +Não me incumbo de dizer o que foi que succedeu ao principe, quando a +Zina entrou a cantar. Cantava uma romança francêsa, muito antiga e que +estivera em moda, nos seus tempos. A Zina cantou a primor. A voz pura de +contralto ia direita ao coração. O lindo rosto, os magnificos olhos, os +dedos fusiformes a voltarem as folhas, os bastos e negros cabellos, tão +lustrósos, o seio afflante, a sua pessoa féra e linda, toda ella, +concorria tudo a enfeitiçar o pobre do gêbo. Não despegou os olhos de +cima d'ella emquanto ella esteve a cantar. Suffocava de commovido. +Aquelle senil coração, esquentado pelo champanhe, pela musica e pelas +reminiscencias, palpitava cada vez com mais força, e como não havia +palpitado ha tanto tempo! Estava a ponto de chorar quando ella acabou. + +--Oh! minha linda menina! exclamava, a beijar-lhe os dedos, estou +encantado!--E só agora é que me lembro... mas... mas... Oh! minha linda +menina!... + +O principe nem foi senhor de concluir. + +Maria Alexandrovna sentiu haver chegado o momento psicologico. + +--Para que anda a dar cabo de si, principe?--encetou com solemnidade. +Quantos sentimentos, quantas forças vitaes, quanta riqueza moral lhe não +resta ainda? E com tudo isso, foi emparedar-se por toda a vida num +carcere! Fugir do mundo! Das amizades! É imperdoavel! Pense bem, +principe! Encare a vida, como se dissessemos, com uns olhos limpidos! +Lembre-se do passado, da sua aurea juventude, dos seus dias sem +cuidados. Resuscite esse passado, resuscite-se a si proprio! Volte a +viver entre a sociedade dos vivos: vá até ao estrangeiro... á Italia, á +Hespanha, principe, á Hespanha. Precisava de um guia, de um coração que +lhe tivesse amor, que o estimasse e que lhe fosse simpathico. + +Pois bem! O principe tem amigos, appelle para elles e virão em monte. Cá +estou eu que seria a primeira a dar de mão a tudo, e a deitar a correr +para acudir ao seu chamado! Não me esqueço da nossa antiga amizade, +principe! Deixaria, até, meu marido, se estivesse mais nova, e fosse tão +formosa como minha filha, fazia-me sua companheira, sua amiga, sua +mulher, até, se o desejasse. + +--Estou certo de que, nos seus tempos, deve de ter sido uma mulher +encantadora, disse o principe a assoar-se. + +Tinha os olhos arrazados de lagrimas. + +--A nós proprios sobrevivemos nos nossos filhos, principe, responde +effusiva Maria Alexandrovna. Tambem eu tenho o meu anjo da guarda, a +amiga dos meus pensamentos, do meu coração, principe! Rejeitou até agora +sete pedidos de casamento, por se não querer apartar de mim. + +--E por conseguinte, vae comsigo quando me ac... com... ompanhar ao +estrangeiro? Sendo assim, irei para o estrangeiro... está resolvido... +exclama o animadissimo principe.--Absolutamente!... E se eu pudesse +lison... jear-me com a es... pe... rança... Mas é uma menina po... +rtentosa, portentosa! Ah! minha linda menina! + +E o principe volta outra vez a beijar os dedos á Zina. Tentou até +ajoelhar-lhe aos pés, o pobre do homem. + +--Então!... então, principe, ia dizendo que se pudesse lisonjeál-o a +esperança?... agarrou no ar Maria Alexandrovna, sentindo brotar-lhe novo +accesso de eloquencia. Que homem tão singular é o principe!... Não se +considera então digno da attenção das mulheres! A formosura não consiste +apenas na mocidade! Lembre-se de que é uma reliquia da aristocracia +russa! É o representante dos mais refinados, dos mais cavalheirescos +sentimentos, e das mais requintadas maneiras! E a Maria não amou o +Mazeppa[10] porventura? Li algures que Lauzun, um marquêz seductor da +côrte de Luis... não sei quantos... já velho, conquistou uma das mais +supinas beldades do seu tempo!... E demais, quem foi que lhe metteu em +cabeça que já era velho? Quem se atreveu a afirmál-o? Homens como o +senhor envelhecerão jámais, porventura? O principe, tão opulentamente +dotado de sentimento, de alegria, de espirito, de força vital, de tão +delicadas maneiras! Fosse o principe para ahi a qualquer estação balnear +com uma mulher joven, com uma beldade como a Zina, para não irmos mais +longe,--e eu lhe diria que effeito colossal não havia de produzir, o +senhor, reliquia da nossa aristocracia; ella, uma belleza de rainha! +Ella, com aquelle seu pisar majestatico, de braço dado com o principe, a +cantar n'uma sociedade aristocratica; o principe, pela sua parte, a +fuzilar ditos de espirito! Era caso para acudirem os banhistas em pêso a +fazer-lhe côrte! Dava brado por toda essa Europa! Pois teria a seu favor +os jornaes, todos elles folhetins, e surgia um grito unanime: "Principe! +Principe!" + +E o senhor a dizer: "Pudesse eu lisonjear-me com a esperança?" + +--Os jornaes... está claro, está claro!... Os folhetins... balbucia o +principe, que não percebeu nem metade do aranzel de Maria Alexandrovna e +cada vez está mais lamecha... Mas... minha rica menina... se se não +sen... te fa... tigada, repita outra vez aquella romança que cantou +inda'gora... + +--Ah! principe, ella sabe outras ainda mais bonitas! Conhece a +_Andorinha_? Já a ouviu? + +--Está claro... mas já não me lembra... + +Não... não!... aquella que cantava ha pouco: não quero a _Andorinha_! +Quero aquella tal romança: disse o principe a pedinchar como um +pequerrucho. + +A Zina recommeça a alludida romança. O principe não pode ter mão em si e +ajoelha-lhe aos pés a chorar... + +--Oh! minha formosa castellã! (Treme-lhe a voz de senilidade e de +commoção). + +Oh! minha en... can... tadora castellã! Oh! minha querida menina! Quanta +coisa me não veiu recordar do passado!... E eu, então, vivia esperançado +em outro porvir. N'esse tempo cantava eu com a viscondessa... uns +duêtos... essa mesma romança... e agora... ah! Sei muito bem o que me +espera! + +O principe proferiu aquella discurso em voz entrecortada e offegante, +intoiriu-se-lhe a lingua... tornam-se inintelligiveis algumas palavras. +Apenas se vê que atingiu o acume da commoção. Maria Alexandrovna +apressa-se em lançar azeite no lume. + +--Principe! quer me parecer que se vae apaixonando pela Zina. + +A resposta do principe vae além de quanto ousaria esperar Maria +Alexandrovna. + +--Estou apaixonado por ella a ponto d'enlouquecer! exclama o velhito +muito exaltado e sempre de joelhos. + +Estou prompto a sacrificar-lhe a minha vida... pudesse eu ao menos ter +esperança... Mas levante-me, por quem é... sinto-me um tanto fraco... Se +eu... ao menos, pudesse nutrir a es... pe... perança offerecia-lhe o meu +coração... e então... eu... Havia de cantar-me todos os dias +ro--ro--man--manças, e eu a olhar para ella sempre... sempre... +sempre... ai, meu Deus! + +--Principe, principe! Está offerecendo a minha filha a sua mão, quer-m'a +roubar, a mim, a minha Zina! O meu enlevo, o meu anjo, Zina! Não te +deixarei nem por quanto ha! Zina! Venha alguem arrancál-a dos braços, +dos braços de sua mãe; se é capaz! + +Maria Alexandrovna atira-se á filha e estreita-a nos braços, comquanto +se sinta repellida com força. A mamã exaggera um tanto ou quanto a +comedia, e a Zina está em transes de asco. Mas não abre a bôca, é tudo +quanto deseja Maria Alexandrovna. + +--Já rejeitou nove partidos só para se não apartar da mãe! clama. Agora, +comtudo, o meu coração antevê o apartamento. Não ha ainda um instante, +reparei que olhava para o principe de modo particularissimo... A sua +aristocracia, a sua finura seduziram-n'a, principe!.. Oh! O principe +apartar-nos-ha... estou-o a sentir. + +--A... dó... óro-a! murmura o principe a tremelicar como uma folha. + +--Com que então desamparas a tua mãe! exclama Maria Alexandrovna +atirando-se outra vez ao pescoço da filha. + +A Zina, morrendo por pôr ponto a tão penosa scena, estende ao principe a +linda mão, e faz esforço para sorrir. O principe agarra respeitoso +n'aquella mão e por pouco a não come com beijos. + +--Agora, sim, agora é que eu principío a viver!... + +--Zina! diz com solemnidade Maria Alexandrovna: é o mais delicado, o +mais nobre dos homens! Um cavalleiro da edade média! Ella bem o sabe, +principe, e sabe-o até demais, por minha desgraça!... Ah!... Oxalá cá +não tivesse apparecido... Entrego nas suas mãos o meu thesouro... +Conserve-o, principe!... Escute os rógos de uma mãe! Qual será a mãe que +poderá levar-me a mal a minha magua?! + +--Basta! mamã! murmura a Zina. + +--Ha de defendêl-a, principe, a sua espada ha de fulgir se as calumnias +se atreverem a tocar-lhe! + +--Basta mamã, aliás... + +--Está c... claro... a minha espada!... murmura o principe. Quero que o +ca... casamento se realize, quanto antes... agora... é que eu devéras +prin... cipío a viver!... Tenciono mandar desde já a Dur-kha-khanovo... +Tenho lá uns brilhantes, quero pôl-os a seus pés. + +--Que ardor, que arrebatamentos, que nobreza de alma! E lembrar-me eu, +principe, de que se estava a perder n'aquelle ermo!... Não me canço em +repetir... Eu, quando me lembro d'aquella... infernal... toda eu me +horrorizo!... + +--Mas que queria que eu fizesse? + +Tinha tanto... mê... mêdo! choraminga o principe. Queriam pregar commigo +numa casa de saude... e tive... mê... mêdo! + +--N'uma casa de saude! Ah! que miseraveis! Que vileza, que crueldade!... +Já me constou isso mesmo, principe! Mas essa gente está doida! Mas por +quê... por quê?... + +--Se quer que... lhe diga, nem eu o sei, responde o ginjinha caindo +derrengado de cansaço na poltrona. Foi assim--estava eu n'um ba... baile, +e contei-lhe uma anecdóta.--Desagradou-lhes e ahi está... e resultou +d'ahi uma historia... uma histo... ria. + +--E foi esse apenas o motivo? + +--Não foi, eu tambem tinha jogado as cartas com o principe Pedro +Dmirititch, e perdido immenso... tinha dois reis e três... da... damas... +quero dizer, três da... da... mas e dois r... reis... Não é isto... um +r... r... rei e só... da... damas! + +--E foi só por isso!--por isso!--Infernalissima protervia! Não chore, +principe! Não lhe torna a acontecer! D'aqui em diante, encontra-me a seu +lado, meu principe!--Pois não me aparto da Zina, e veremos quem é que se +atreve a abrir bocca. Sabe o que lhe digo, principe? Que o seu casamento +vae deixál-os consternados; vae envergonhál-os! Hão de ver que ainda é +capaz... quero dizer... comprehenderão que tão peregrina beldade nunca +iria casar com um mentecapto!--E agora, pode olhar para elles rosto a +rosto, de cabeça erguida! + +--Está--claro... rosto a rosto!--murmura o principe fechando os olhos. + +--Está derreado de todo, diz comsigo Maria Alexandrovna; creio que +estarei a soltar palavras ao vento. + +--Está commovido, meu principe, precisa de ir descançar, diz debruçada +sobre elle com maternal sollicitude. + +--Está... c... claro... encostar-me um bocadinho. + +--É tal qual... Estes abalos!--Espere ahi, vou acompanhál-o. Eu propria +irei deitál-o, se for necessario... Por que é que está a olhar tanto +para aquelle retrato, principe? + +É o retrato de minha mãe, não era uma mulher, era um anjo! Oh! oxalá +ella ainda cá estivesse! Era uma santa, uma santa, sim, nem lhe posso +dar outro nome! + +--Uma s... anta, é bonito!... Eu tambem tive mãe, uma senhora +extrê... ê... ma... mente nut... trida... E d'ahi, não é isso que eu queria +dizer... Estou um tanto fatigado... Adeus... minha linda menina... +amanhã... em sum... ma... não importa... Até mais ver... até mais ver!... + +Tenta fazer um gesto gracioso, mas escorrega no pavimento encerado, e +por pouco se não desiquilibra. + +--Cuidado, principe. Encoste-se ao meu braço! grita Maria Alexandrovna. + +--Um encanto! um encanto! Agora sim, agora começo a viver! + +Ficou a sós a Zina. Sentia uma oppressão, um desprezo para comsigo +mesmo. Com as faces a escaldar, as mãos contraídas, os dentes +enclavinhados. Inérte, e a vergonha a arrazar-lhe os olhos de +lagrimas... + +N'este lance, eis se abre a porta e investe pela sala dentro o +Mozgliakov--fulvo de raiva! + + + + +IX + + +--Ouvi tudo, tudo! + +A Zina a fitar-lhe uns olhos espantados. + +--Ah! E são esses os seus sentimentos! exclama com a voz tomada. Até que +por fim aprendi a conhecêl-a! + +--A conhecer-me? repete a Zina (fulgem-lhes os olhos, de colera). +Atreve-se a falar-me assim? + +Dá um passo para o mancebo. + +--Tudo ouvi! insiste solemne o Mozgliakov, recuando porém um passo, mau +grado seu. + +--Ouviu?--Espionou, diga! emenda a Zina a mirál-o com desprezo. + +--Espionei, seja? É verdade, decidi-me a praticar semelhante vilania! +Mas, graças a ella... fiquei afinal sabendo que é a mais... nem sei como +qualificar a sua... tartamudeava o mancêbo, de mais em mais atrapalhado +sob o olhar da Zina. + +--E quando haja ouvido a tudo, que é que me poderá lançar em rosto? Quem +lhe deu o direito de me accusar, de me falar n'esse tom? + +--Com que direito!... Eu!? E ainda m'o pergunta!? Intenta casar com o +principe... e a mim não me assiste o direito...!... Pois não me deu a +sua palavra? + +--Quando? + +--Quando, essa é melhor! + +--Esta manhã, sem irmos mais longe, o senhor a apertar commigo e a minha +resposta formal foi que nada lhe podia afirmar de positivo. + +--Mas não me rejeitou em absoluto, e por conseguinte, guardava-me para o +não chega--poupava-me!... + +Contrahiu-se o semblante á Zina com dolorosa sensação, mas não se atenua +o desprezo que sente para comsigo. + +--Se o não escorraçei, responde em voz grave e compassada, mas algo +trémula, foi unicamente por compaixão. Supplicava-me que esperasse, que +lhe não dissesse que não. "Vá aprendendo a conhecer-me"--disse o senhor +um dia, "e quando se houver convencido de que sou um homem de caracter +digno, é possivel que me não rejeite." Foram estas as suas palavras, no +principio das nossas relações, não as poderá renegar: E agora atreve-se +a dizer, que o guardo para o não chega! Pois não percebeu, esta manhã, o +meu aborrecimento por ver como antecipava de quinze dias o seu regresso? +E todavia, não lhe encobri esse meu enfado, e o senhor foi o proprio a +notál-o, visto que me perguntou se me não agastava este seu regresso +permaturo. Chama então poupar um homem o não lhe poder encobrir o fastio +que alguem experimenta em ver esse homem? Ah! Eu então guardava-o para o +não chega!? Não! eu dizia commigo, a seu respeito: "Se não é demasiado +intelligente, é bondoso, quando menos"... agora, comtudo, fiquei +sabendo--a tempo, felizmente--que tem tanto de mau como de tolo, e só o +que me resta é desejar-lhe boa jornada! Adeus! + +A Zina volta-lhe as costas e caminha, de seu vagar, para a porta. +Mozgliakov comprehende que tudo está perdido; referve-lhe a raiva. + +--Ah! com que, eu, então, sou tolo! vociféra; tolo!--Muito bem! Adeus! +Mas, antes de me ir embora, saiba que a toda a gente ha de constar a +infame comédia que aqui estão representando... tanto a senhora como sua +mãe. Vou contar tudo a toda a gente, que embebedam o principe, que o +subornam! Ha de ouvir falar de Mozgliakov! + +Estremece a Zina, vae para reponder, mas, volvido um instante de +reflexão, encolhe os hombros, desdenhosa, e bate-lhe com a porta na +cara. N'este conflicto, assoma aos hombraes Maria Alexandrovna. Ouviu as +ultimas exclamações de Mozgliakov e adivinhou o restante. O Mozgliakov +sem, se ir ainda embora! O Mozgliakov á ilharga do principe! O caso +espalhado por toda a cidade pelo Mozgliakov! E todavia, é indispensável +guardar segredo... Maria Alexandrovna, n'um relance, tudo calculou, a +tudo preveniu, e urde um plano para aplacar o Mozgliakov. + +--Que tem, meu amigo? diz estendendo-lhe a mão, cordial. + +--Como _meu amigo_! exclama o outro furibundo. E depois de tudo isto; +meu amigo! _Morgen Früh_[11], minha senhora. Metteu-se-lhe então em +cabeça embaçar-me outra vez? + +--Sinto, devéras, acredite, sinto immenso vêl-o em um estado de espirito +tão estranho, Pavel Alexandrovitch. Que linguagem! Nem sequer méde as +palavras em presença de uma senhora! + +--Em presença de uma senhora!... Será quanto quiser... menos uma +senhora. + +(Ignoro o que é que elle queria dizer, mas, com certeza, devia de ser um +qualquer ultrage, de esmagar.) Maria Alexandrovna com os olhos n'elle e +um risinho de commiseração: + +--Sente-se, diz, com tristeza, apontando para a cadeira na qual, um +quarto de hora antes, estivéra sentado o principe. + +--Mas no fim de contas, não me dirá, Maria Alexandrovna?... exclama +Mozgliakov, desnorteado. Está-me tratando como se a senhora estivesse +innocente e fosse eu o culpado! Não pode ser!... Vae muito além dos +limites! É abusar da paciencia... de todo... digo-lh'isto! + +--Meu amigo... responde Maria Alexandrovna--e deixe-me dar-lhe ainda +este titulo, pois neste mundo não terá melhor amiga...--o senhor está +afflicto, excitado, ferido no coração, e devo pois relevar-lhe +semelhantes desmandos de linguagem. Pois bem, vou abrir-me com o senhor. +Tanto mais que eu, até certo ponto, não deixo de ter culpas para com o +senhor. Sente-se, pois, e conversemos. A voz de Maria Alexandrovna +assumiu o auge da meiguice, é compungida a sua expressão phisionomica. + +Senta-se Mozgliakov. + +--Esteve escutando á porta, diz ella com uns modos de exprobação e de +indulgencia, ao mesmo tempo. + +--Escutei, sim! E por que não? Nem que eu fôra um asno!... Se quer ao +menos fiquei sabendo o que andava a maquinar contra mim, responde +Mozgliakov, haurindo valôr da propria colera. + +--E resolver-se a senhora, com a sua educação, as suas maneiras, a +representar semelhante papel! Santo Deus! Mozgliakov está aos pulos na +cadeira. + +--Maria Alexandrovna, não posso ouvir-lhe uma palavra mais! Melhor será +que se lembre do que está fazendo, a despeito da sua educação e das suas +maneiras, e diga-me se lhe assiste o direito de accusar a outrem! + +--Ainda uma pergunta, prosegue ella sem responder. Quem foi que lhe +suggeriu a ideia de escutar á porta? Quem será que anda por aqui a +espiar-me os passos? É isso o que eu não se me dava de saber! + +--Lá quanto a isso, tenha paciencia, não serei eu quem lh'o diga. + +--Muito bem, eu tratarei de o saber... Dizia eu, pois, Pavel, que não +deixo de ter culpas para com o senhor, mas, se é que póde julgar-me com +conhecimento de causa, verá que se tenho alguma culpa é a de lhe querer +bem em demasia. + +--Com que então, quer-me bem?--Esta a caçoar commigo, e certifico-lhe +que não torna a enganar-me; serei muito creança mas nunca até esse +ponto! + +E elle, n'um sarilho na poltrona, e a poltrona a tremer. + +--Por quem é, meu amigo, socegue se é possivel, escute com attenção, e +verá que ha de concordar commigo. Eu, a principio, tencionava contar-lhe +tudo, pôl-o em dia com tudo sem que se lhe tornasse necessario +aviltar-se ao ponto de escutar ás portas. Se o não fiz, foi unicamente +porque o negocio se achava ainda em estado de projecto e podia +mallograr-se. Bem vê a franqueza de que uso para com o senhor. E, acima +de tudo mais, não se volte contra minha filha, que de nada tem culpa. É +doida pelo senhor, e custou-me os olhos da cara arrancar-lh'a ao senhor +e persuadil-a a acceitar o offerecimento do principe. + +--E eu, que com os meus proprios ouvidos, ouvi,--n'este instante, provas +d'esse tal louco affecto, replica ironico Mozgliakov. + +--Muito bem! Mas em que termos se lhe dirigiria o senhor? É assim que se +expressa um namorado? Será essa a linguagem propria de um homem de fino +trato? Offendeu-a, irritou-a. + +--Como se fosse questão de fino trato, Maria Alexandrovna! Esta manhã, +ambas me faziam boa cara, mas assim que eu saí e mais o principe, +puzéram-me pelas ruas da amargura.--Estou sciente de tudo... tudo. + +--Bebido da mesma fonte ignobil, provavelmente, observou Maria +Alexandrovna com risinho de desdem. É verdade, Pavel Alexandrovitch, +púl-o pelas ruas da amargura e, confesso, Deus sabe quanto me custou. +Quanto não tive eu que luctar com os proprios sentimentos! Mas bastará o +facto de eu me ver na necessidade de o calumniar para lhe provar a +difficuldade que eu encontraria em obter d'ella que desistisse do +senhor! É possivel que não veja um palmo adeante do nariz? Se ella lhe +não tivesse amor, eu teria alguma necessidade de appellar para +calumnias? E ainda o senhor não sabe o melhor! Tive que valer-me da +minha maternal auctoridade para lh'o arrancar a ella do coração! Em +conclusão, depois de esforços inauditos, consegui alcançar uns arremedos +de consentimento... E visto que esteve á escuta, não deixaria de notar +que ella não me ajudou em presença do principe com uma palavra, sequer, +ou com um gesto. Cantou para alli como um automato; em visiveis +afflições toda ella, e foi por ter dó d'ella, que eu carreguei com o +principe. Tenho a certeza, até, de que se pôz a chorar, assim que se +apanhou sósinha. O senhor bem viu, quando entrou... Mozgliakov +recorda-se de que effectivamente a Zina estava a chorar quando elle +entrou. + +--Mas a senhora, a senhora, por que é que está assim tão contra mim, +Maria Alexandrovna? Por que é que me foi calumniar segundo é a propria a +affirmál-o. + +--Ora, isso agora é outro negocio; e se o senhor m'o tivesse perguntado +em termos logo ao principio, ha muito tempo que lhe teria dado resposta. +Sim, tem razão, fui eu que fiz tudo, eu, sósinha: não esteja a accusar a +Zina. Por que foi que o fiz? E eu respondo-lhe: primeiramente, por +interesse da Zina. O principe é rico, representante de nobilississima +casa, tem relações, e casando com elle a Zina faz um optimo casamento. +Emfim, se elle morrer, o que não poderá tardar muito, pois todos nós, +mais ou menos, somos mortaes,--n'esse caso, a Zina, nova e viuva, +pertencendo á alta sociedade, fica riquissima e casa com quem quizer. +Ora, está claro que irá casar com o homem a quem ama, e que foi o +primeiro a quem teve amor, e cujo coração terá martirizado casando com o +principe. E bastará o arrependimento... O acto que terá mais a peito +será o de remediar a propria falta. + +--Hum! rosna Mozgliakov pensativo, a contemplar os bicos das botas. + +--Em segundo logar... mas serei breve a semelhante respeito, é possivel +que me não comprehendesse. O senhor só o que sabe é ler o tal seu +Shakspeare, fonte aonde exclusivamente vae beber os seus nobres +sentimentos; e d'ahi, o senhor está tão moço! Eu, comtudo, sou mãe, +Pavel Alexandrovitch. Caso a Zina com o principe um tanto por causa +d'elle tambem, visto que para elle o casamento pode representar a +salvação! Ha tanto tempo que voto amizade áquelle honradissimo ancião, +tão bondoso, cavalheiresco! Quero arrancál-o ás garras d'aquella +infernal creatura que ha de pregar com elle na cova!... Invoco a Deus +por testemunha em como foi patenteando á Zina todo o alcance do heroismo +da sua dedicação que eu pude convencêl-a. + +Arrastou-a o irresistivel prestigio da abnegação. Ella propria tem o que +quer que seja de cavalheiresco. Submetti-lhe o meu projecto sob colôr de +um acto christão. Vaes ser, lhe disse eu, o amparo, a consolação, a +amiga, a filha, a beldade, o idolo de um homem que talvez que nem um +anno tenha de vida. Mas sequer ao menos, extinguir-se-ha no dôce calôr +do amor. Estes seus ultimos dias parecer-lhe-hão um paraiso. Onde é que +vê n'isto egoismo, Pavel? Não! e não! É um acto de irmã de caridade. + +--A senhora, então, procede desse modo, por amizade para com o +principe... á laia de irmã de caridade? commenta o ironico Mozgliakov. + +--Comprehendo essa sua pergunta, Pavel Alexandrovitch, é clarissima. +Suppõe que estou fazendo uma confusão jesuitica dos interesses do +principe com os meus. Pois bem, é possivel que me tivesse atravessado +pela mente semelhante calculo, inconscientemente, porém, e sem +resquicios de jesuitismo. Espanta-o esta minha franqueza? Peço-lhe +apenas uma mercê, Pavel Alexandrovitch: não involva a Zina n'este +negocio! Está pura que nem uma pomba. Não calcula; sabe apenas amar, +pobre pequena! Se houve alguem que calculasse, esse alguem fui eu, e só +eu! Indague, porém, sinceramente da sua consciencia e diga-me quem seria +que no meu logar não haveria calculado? Calculamos os nossos interesses, +as nossas mais generosas acções, até, sem darmos por isso, +instinctivamente. Pois; se enganam, quantos alarmam que procedem movidos +por pura nobreza de alma. Eu, porém, não quero enganál-o. Confesso que +calculei. Mas, sempre quero que me diga, seria levando em vista o meu +interesse pessoal? A mim, Pavel Alexandrovitch, que mais me será +preciso? Vivi o meu seculo[12], calculei para bem d'ella, do meu anjo, +da minha filha: e qual será a mãe que m'o lance em rosto? + +As lagrimas inundavam o rosto de Maria Alexandrovna. + +Pavel Alexandrovitch tem escutado com pasmo semelhante confissão: +latejam-lhe as palpebras, esforça-se por comprehender. + +--Qual seria a mãe, sim! diga lá!... pergunta elle, em conclusão. + +Mas cae em si, acto continuo, e: + +--Canta lindamente, Maria Alexandrovna, mas tinha-me dado a sua palavra, +tinha-me alentado a esperança... Como posso eu supportar semelhante +coisa? Terei que engulir a propria vergonha! + +--E acredita talvez que não pensei no senhor, meu querido Pavel? Pelo +contrario, em todos os meus calculos, o senhor tinha a sua parte. Ouso +dizer, até, que foi por sua causa que eu emprehendi este negocio. + +--Por minha causa! exclama Mozgliakov, desnorteado, d'esta vez. Como +assim?! + +--Meu Deus! Como é que se pode ser tão simples, ter vistas tão +limitadas! exclama Maria Alexandrovna erguendo as mãos ao ceu. Esta +mocidade! O tal Shakspeare! E ahi tem o que elle lhe arranjou, aquelle +sonhador, aquelle phantasista! Viver da intelligencia e dos pensamentos +alheios! E o senhor a perguntar--_meu bom Pavel Alexandrovitch_, qual é +n'este caso o seu interesse. Para maior clareza, consinta-me uma leve +digressão. A Zina ama-o, é incontestavel Mas tenho notado que, a +despeito do seu manifesto amor, o caracter de Pavel Alexandrovitch, as +suas aspirações lhe tem incutido uma tal ou qual desconfiança. Por +vezes, e como que de caso pensado, contêm-se, é fria para com o senhor. +Eis o resultado das reflexões que a levaram a desconfiar. Pois não +reparou tambem n'isto que lhe estou dizendo, Pavel Alexandrovitch? + +--Reparei, sim, hoje ainda. Mas que quer dizer com isso, Maria +Alexandrovna? + +--Bem vê, o senhor foi o proprio a reparar n'isso: logo, não me enganei. +E acima de tudo, foi a estabilidade do seu caracter, a sua constancia o +que mais duvidas lhe incutiu. Sou mãe, e não havia de conhecer o coração +de minha filha! Ora imagine agora que, em vez de entrar aqui com +exprobações, e até com injurias, em vez de a irritar, de a offender, de +a melindrar, a ella tão bella, tão pura e soberba, e por esse facto, a +despeito ainda da sua vontade, ir tornar-lhe mais firme a desconfiança +com respeito ás suas inconstancias; supponha que acceitava com brandura +a noticia, com lagrimas de magua, com desespero, até, mas com +dignidade... + +--Hum! + +--Mau! Não me interrompa. Pavel Alexandrovitch. Quero expôr-lhe um +quadro que possa ferir-lhe a imaginação. Ora imagine que ia ter com ella +e lhe dizia: "Zina, amo-te mais que a propria vida, mas afastam-nos umas +razões de familia. Comprehendo essas razões: trata-se da tua ventura e +não me atrevo a insurgir-me contra ella. Perdôo-te, Zinaida; sê feliz se +puderes!" E dito isto, lhe lançava uns olhos, uns olhos de cordeiro nas +vascas da agonia, se me é licita a expressão. Ponha tudo isto na sua +ideia e calcule o effeito que haveria produzido uma scena assim no +coração della! + +--Pois sim, Maria Alexandrovna, supponhamos tudo isso--É certo que eu +podia ter me expressado d'esse modo... mas nem por isso deixaria de +voltar pelo mesmo caminho com um não pelas ventas. + +--Não, não, e não, meu amigo. Não me interrompa! Quero acabar de +pintar-lhe o quadro para que no animo lhe produza uma impressão nobre e +completa. Imagine, pois, que a vinha a encontrar; d'ahi a tempos, na +alta sociedade, num baile illuminado _à giorno_, ao som de uma musica +enebriante, no meio de um sem numero de beldades, e, no melhor da festa +tão deslumbrante, o senhor, para alli, sósinho e triste, a scismar, +pállido, encostado para alli, algures, a uma columna, mas de modo a dar +nas vistas; o senhor a seguil-a com os olhos na vertigem da dansa; ao pé +do senhor a vibrarem os divinos accordes de Strauss. Fuzila por todos os +lados nas conversas o espirito da alta sociedade; e o senhor sósinho, +enfiado, melancholico, immerso na propria paixão. + +Considere--em que estado ficará a Zina quando o vir! E com que olhos o +não ha de ella contemplar! "E eu," pensará ella, "que duvidei d'aquelle +homem! Tudo me sacrificou! Despedaçou o proprio coração por minha +causa!" Certamente, o seu amor de outr'óra resuscitar-lhe-hia lá dentro +com força irresistivel. + +Deteve-se Maria Alexandrovna para cobrar alento. Mozgliakov a barafustar +na cadeira, que por pouco não estoira de todo. Maria Alexandrovna +prosegue: + +--A Zina, por causa da saude do principe, parte para o estrangeiro, para +Italia ou para Hespanha, o paiz das murtas, dos limoeiros, do azulino céu +do Guadalquivir, o país do amor, o país onde se não pode viver sem amar, +onde as rosas e os beijos adejam por assim dizer no ar. E o senhor vae +atrás d'ella, compromette a sua situação, as suas relações, tudo!... E +principia então o seu romance de amor: amor, mocidade, Hespanha... Deus +meu!... É certo que será platonico o seu amor, puro... mas o senhor... em +summa, enlanguescem a contemplarem-se um ao outro... Espero que me haverá +comprehendido, meu amigo?--Não faltarão, por lá, entes soêzes, vis, +miseraveis para affirmar que não foi a lembrança do seu parentesco com o +velho que o arrastou ao estrangeiro. Muito de proposito me referi ao +platonismo do seu amor; não ignoro que haverá quem lhe atribua differente +significação. + +Mas sou mãe, Pavel Alexandrovitch e seria incapaz de o impellir para mau +caminho!... É claro que o principe os não poderá vigiar a ambos; isso +que importa, comtudo? Poder-se-ha fundar n'isso semelhante accusação? + +Até que por fim, morre o principe abençoando o proprio destino. Ora +diga-me quem é que depois ha de casar com a Zina, a não ser o senhor? É +parente tão afastado do principe que o parentesco nunca poderia +representar um impedimento ao consorcio. Acceita-a, joven, rica, +princêsa, e em que ensejo? Quando os mais nobres senhores se poderiam +ufanar da sua alliança! Por causa d'ella, entra na mais alta sociedade; +obtêm um posto de summa importancia, promoções. Diz o senhor que dispõe +de cento e cincoenta almas? Mas depois será rico. O principe não deixará +de fazer um testamento nos termos, por isso lhe respondo eu. E em +conclusão, o principal, é o ella estar segura dos seus sentimentos e o +senhor vir a ser para ella um heroe pela virtude e pela abnegação. E +ainda me pergunta, onde vae n'isto o seu interesse? Tem-n'o deante dos +olhos, a contemplál-o, a rir-se para o senhor, e a dizer-lhe: "Aqui me +tens!" Ora vamos, Pavel Alexandrovitch!... + +--Maria Alexandrovna! exclama Pavel Alexandrovitch, a tudo fiquei +percebendo, agora! Portei-me como homem grosseiro, vil, reles!... + +Levanta-se com vivacidade e puxa pelos cabellos ás mancheias. + +--E como homem inconsiderado, accrescenta Maria Alexandrovna, +inconsiderado, eis o que o senhor é! + +--Sou um asno, Maria Alexandrovna! exclamou com desespero o môço. E +agora, está tudo perdido! E eu que a amava com loucura! + +--É possivel que não esteja tudo perdido, declara Madame Moskalieva, +baixinho, como quem está reflectindo. + +--Ah! se fosse possivel! Ajude-me! aconselhe-me! Valha-me! E pôs-se a +chorar o Mozgliakov. + +--Meu amigo, diz em apiedada voz Maria Alexandrovna e estende-lhe a +mão,--praticou esse seu acto no ardor do seu affecto, estava exasperado, +nem sequer tinha consciencia do que fazia. E ella não deixará de o +avaliar. + +--Amo-a com loucura e estou prompto a sacrificar-lhe seja o que for! +clama o Mozgliakov. + +--Ora escute, justifica-lo-hei aos olhos d'ella. + +--Maria Alexandrovna! + +--Sim, fica tudo por minha conta: collocál-os-hei em presença um do +outro. E o senhor diz-lhe tudo tal qual eu acabo de lh'o dizer. + +--Ah! meu Deus! Que bondade a sua, Maria Alexandrovna!... Mas... não +seria possivel procedermos a isso desde já? + +--Deus nos defenda! Sempre é muito estouvado, meu amigo! Ella, então, +que é tão soberba! Ia tomar isso como uma nova insolencia, um ultraje, +até! Eu arranjarei tudo, e não ha de passar d'amanhã; agora, comtudo, vá +se embora, vá até casa do tal negociante, ou para onde lhe apetecer... +Ou, se, antes quer, volte esta noite, mas não serei eu que lh'o +aconselhe. + +--Vou m'embora! vou m'embora! + +Meu Deus! Resuscitou-me! Mas uma pergunta, ainda: e se o principe não +morre tão cedo? + +--Valha-nos Deus! Sempre é muito ingenuo, meu caro Pavel! O senhor o que +deve é rogar a Deus que conserve os dias d'aquelle vélhito, todo elle +bondade, carinho, cavalheirismo! Devemos desejar-lhe longa vida, de todo +o coração! E eu serei a primeira; noite e dia, com lagrimas, a rezar +pela ventura de minha filha! Mas, ai de mim! A saude do principe, +coitado, quer me parecer que está muito abalada! E demais, elle não +deixará de fazer a sua visita á capital, de levar a Zina aos bailes, e +receio muito, muito, acredite, que isso concorra a dar cabo d'elle! +Orêmos, porém, meu caro Pavel, e quanto ao mais, entreguêmo-nos nas mãos +de Deus! Espére, arme-se de paciencia, seja viril, e viril, acima de +tudo! Nunca puz em duvida a nobreza dos seus sentimentos... Aperta-lhe +com força as mãos, e o Mozgliakov sáe do aposento em bicos de pés. + +--Até que em fim! Vi-me livre de um imbecil! diz com ares de triumpho. E +agora vamos aos outros... Abre-se a porta e entra por ali dentro a Zina. +Vem mais pallida do usual; fulgem-lhe os olhos com febril clarão. + +--Mamã, veja se acaba com isto, que eu estou, que já nem posso mais; é +tão nojento tudo isto que me vem tentações de fugir por ahi fora. Não me +faça padecer por muito mais tempo, não me irrite! Este lodaçal causa-me +engulho, entendeu? + +--Zina, que tens tu, meu anjo?... Estiveste escutando á porta! exclama +Maria Alexandrovna olhando de fito para a filha. + +--Escutei, é verdade.--Veja se m'o quer lançar em rosto, como o fez +aquelle imbecil? Juro-lhe que se porfiar em obrigar-me a representar +semelhante papel em tão vergonhosa comedia, renuncío a tudo, e acabo com +tudo, com uma só palavra. Não ha duvida que me resolvi a prestar-me á +principal vilania, mas foi por me não conhecer a mim mesma; atabáfo com +semelhante vergonha! + +E sae atirando com a porta. + +Maria Alexandrovna segue-a com a vista e fica a scismar. + +"É andar ligeira, depressa! É de si que depende tudo, e em si que +consiste o maior perigo, e se esses miseraveis porfiarem em se colligar +contra nós, se principiam para ahi a dar á lingua, tudo está perdido! E +ella não poderá resistir contra tantas arrelias e acabará por +entregar-se mediante uma rejeição. Custe o que custar e sem demora, urge +carregar para o campo com o principe. Prego commigo lá, n'um pulo, e +carrégo com aquelle estafermo do senhor meu esposo para aqui. Sequer ao +menos sirva para alguma coisa! E assim que o outro accordar, +safamo-nos." + +Toca a campainha. + +--E então! a parêlha? pergunta ao creado que entra. + +--Está prompta, ha que tempos, responde o criado. + +(Maria Alexandrovna mandou pôr o trem no acto de acompanhar o principe +ao quarto d'este.) + +Veste-se á pressa e corre ao quarto da Zina para lhe transmitir o seu +plano e dar-lhe as devidas instrucções. A Zina, comtudo, nem lhe quer +dar ouvidos, debruçada no leito com o rosto enterrado no travesseiro +ensopado de lagrimas; a arrancar com as niveas mãos os compridos +cabellos; tem os braços nus até ao cotovêlo. Saccóde-a, a revézes, um +estremeção. A mãe dirige-lhe a palavra, sem que a Zina consinta em +erguer a cabeça. + +Maria Alexandrovna insiste por instantes, depois, sae, inquietissima. +Sobe para a carruagem e recommenda que espertem a parelha. + +"O peor de tudo", vae ruminando comsigo, "é a Zina ter ouvido a conversa +que eu tive com o Mozgliakov. Empreguei com ella e com elle quasi que os +mesmos argumentos; ella é orgulhosa e offender-se-hia, talvez... Hum! o +que a tudo sobreleva, é a necessidade de por mãos á obra, antes de que +conste seja o que fôr! Que desgraça! E se eu, para mais ajuda, não fosse +encontrar em casa aquelle meu imbecil?!" + +Ante esta hypothese, enraivece-se, toma-se de um rancor que nada +vaticina de bom para Aphanassi Matveich. E Maria Alexandrovna +impaciente, a esfervilhar! + +Os cavallos despedem a galope. + + + + +X + + +A carruagem não corre, vôa. + +Dissémos que, n'aquella mesma manhã, emquanto ella andava em procura do +principe, por todos os cantos da cidade, já havia accudido á mente de +Maria Alexandrovna um alvitre genial: era o confiscar por sua vez o +principe quanto antes, e pregar com elle no campo;--n'aquella aldeia +onde floria em paz o beatifico Aphanassi Matveich. Ia pois realizar +aquella sua inspiração. Mas não encubramos ao leitor que principiava a +sentir-se atribulada por uma inquietação inexplicavel. Aos proprios +heroes acontece outro tanto, e no ensejo, justamente, em que estão +prestes a atingir seus fins. Advertia-a um qualquer instincto de que +havia perigo na permanencia em Mordassov. + +"Uma vez no campo, vire-se tudo isto pés, com cabeça, que a mim tanto se +me dá!" + +É certo, que ainda no proprio campo, não ha tempo para perder: tudo +poderá acontecer, tudo... E n'essa conformidade, Maria Alexandrovna +acha-se resolvida a concluir immediatamente o consorcio. O cura da +aldeia procederá á ceremonia na propria residencia. D'alli a dois dias, +no outro dia, talvez, em caso de urgencia. Quantos casamentos se não tem +visto, aldravados para alli em duas horas! Quanto ao principe, é levál-o +a acceitar como necessidade de bom sizo uma tal precipitação, semelhante +ausencia de toda e qualquer festa. "Será mais decente e mais nobre"... +Poder-se-hia até seduzil-o pelo lado romanesco do negocio e fazer-lhe +vibrar assim a fibra sentimental do coração. Enebriál-o-ha, se tanto fôr +necessario, mantêl-o-ha n'aquelle estado de embriaguez, e a Zina ha de +ser princêsa. + +Se houver algum escandalo lá por Petersburgo ou por Moscou entre a +parentéla do principe, consolações não hão de faltar. Em primeiro logar, +são coisas que ainda estão para vir; em segundo, Maria Alexandrovna está +convencida de que, na alta sociedade, nada se faz sem escandalo, e muito +mais tratando-se de casamento: que é estilo. Mas os escandalos da alta +sociedade, a seu ver, tem uma côr mui particular de grandiosidade, no +genero do _Monte-Christo_ e das _Memorias do Diabo_. Finalmente, a Zina +bastar-lhe-ha mostrar-se, e a mãe ajudál-a com seus conselhos, e toda a +gente ficará desarmada, acto-continuo, entre todas aquellas condessas e +princêsas, não havendo uma só que seja capaz de resistir á mordassoviana +habilidade de Maria Alexandrovna, sósinha contra todas ellas juntas ou +contra cada uma em particular. + +E é animada por semelhante pensamento que Maria Alexandrovna vem ter com +Aphanassi Matveich o qual lhe é necessario, segundo seus planos. + +Effectivamente, levar o principe para o campo é levál-o para casa de +Aphanassi Matveich com quem o principe é possivel não se dar lá muito de +travar conhecimento: mas se Aphanassi Matveich fôr o proprio a +convidál-o, o caso muda de figura. E demais, a apparição de um chefe de +familia, de edade veneranda, de gravata branca, casaca, chapeu na mão, +acorrendo expressamente das suas propriedades, á noticia de que se acha +em Mordassov o principe K... é caso para produzir optimo effeito no amor +proprio d'aquelle ginjinha. + +Até que por fim, havendo tragádo três verstas a carruagem, o cocheiro +Safron pára junto ao patim de um comprido edificio com um unico andar, +casarão de madeira, com uma extensa fieira de janélas, e envolto n'umas +tilias venerandas. É a residencia estável de Maria Alexandrovna. + +Já se acham illuminadas as janélas. + +--Onde está o manequim? clama Maria Alexandrovna caíndo como uma +trovoada, no vestibulo. Que faz aqui esta toalha? Ah! estava aborrecido, +e ainda não saiu do banho! E sempre n'aquelle fadario do chá! E então! +Para que estarás tu para ahi a esbogalhar esses olhos, meu idiota +incuravel? Por que é que se não corta esse cabello?! + +Grichka! Grichka! Por que é que não cortaste o cabello ao _barine_ +conforme te dei ordem, a semana passada? + +Maria Alexandrovna premeditára operar em casa de Aphanassi Matveich uma +entrada menos violenta. Mas ao vêl-o entretido a sorver o seu cházinho, +com toda a sua pachorra, não foi senhora de sopitar a indignação. Para +ella, tamanhos cuidados, e para elle, para aquelle ente inutil, aquella +paz podre! Semelhante contraste chóca de modo cruel Maria Alexandrovna. +E todavia, o manequim, ou para nos expressarmos com mais urbanidade, +aquelle a quem applicam o ápodo, está sentado em frente do samovár; +inerte, bôcca e olhos escancarados, petrificado, quasi, pela apparição +da consorte. O adormecido vulto do Grichka assoma ao vestibulo. O +Grichka tosqueneja os olhos durante toda esta scena. + +--Se elle não deixa... E ahi esta porque é que o não fiz, profere em voz +encatarroada e socarrôna. Peguei na tesoira para ahi umas dez vezes, e a +dizer-lhe: A _barinia_ não tarda por ahi e apanhamos ambos a nossa +conta!--E vae elle e diz-me:--Não--espera ahi: quéro que me frizes no +domingo; e é preciso para isso que o cabello tenha comprimento. + +--Muito me contas: Com que então elle, friza-se? Inventaste então essa +obra dos frizados, assim que eu virei costas? + +Que termos são esses? Cuidas talvez que embellezas assim essa tua cabeça +de idiota? Santo Deus! Que desordem que por aqui vae! E que cheiro! Não +me dirás, miseravel, d'onde provém semelhante cheiro? vociféra a +consorte a crescer de mais em mais ameaçadora para o innocente e +assarapantado de todo Aphanassi Matveich. + +--Ah... mi-minha mãezinha, balbucía o esposo sem se erguer e desfechando +sobre o seu generalissimo uns olhos assustados e suplices, mi... mi... +minha mãezi... + +--Quantas vezes não tenho eu tentado encaixar-te n'essa cabeça de burro +que não sou tua mãezinha, pedaço de pygmeu? Como te atreves a tratar por +semelhante nome uma senhora nobre cujo logar é na alta sociedade, e não +ao pé de um aguadeiro da tua laia? + +--Mas, Maria Alexandrovna, tu com tudo isso não deixas de ser minha +mulher em face das leis! e eu... estou-te falando... na qualidade de +marido! Objecta Aphanassi Matveich, levando a um tempo a mão aos +cabellos para os defender. + +--Ah! Carranca! Cêpo! Se já se viu! Mulher d'elle em face das leis!... +Que quererá dizer uma mulher em face das leis? Haverá na alta sociedade +alguem que empregue semelhante termo de seminarista:--em face das +leis?--E quem te deu o atrevimento de me recordares que sou tua mulher, +a mim que faço quanto posso para o esquecer? E para que estavas tu a +tapar a cabeça com as mãos? + +Olhem para este cabello! Todo encharcado! Não está enxuto estas tres +horas mais chegadas! Como hei de eu carregar com elle? Haverá meio de o +arrancar d'aqui?--Que hei de eu fazer? Maria Alexandrovna péga ás +carreiras pela casa fóra, a estorcegar as mãos. A desgraça é nulla e +facil de remediar, não ha duvida, mas se ella não pode ter mão n'aquelle +seu genio imperial, impaciente em presença do minimo impecilho! Sente +que precisa de desabafar a colera na pessoa de Aphanassi Matveich, visto +como a sua habitual tirannia desandou para si em necessidade. E depois, +toda a gente sabe o acervo de inopinadas grosserias de que são capazes, +longe das vistas dos mirones, uns certos entes delicados e pechósos da +sociedade mais graúda. Aphanassi Matveich, estupido e tremelica, cança a +vista a seguir com os olhos as evoluções todas da consorte. + +--Grichka, exclama esta por fim, traze já, já, ao _barine_ tudo que é +preciso para se vestir de ceremonia, calça, casaca, gravata e colete, +brancos. Vá, despacha! + +Onde iria parar a escova do cabello? + +--Mas se eu acabo de sair do banho, minha mãezinha, vou apanhar algum +resfriamento... + +--Qual historia!... + +--Estou com a cabeça encharcada!... + +--Ênxuga-se. Grichka, escova o cabello ao _barine_, até que enxugue. Com +mais força... mais... ainda mais... Assim! + +O fiel e zeloso Grichka esfréga, com quanta força tem, o seu _barine_ a +quem, para mais commodidade, agarrou pelo cachaço, encostando-o para +trás no divan. + +Aphanassi Matveich por pouco não desata a chorar. + +--E agora, em pé!... Vê se o levantas, Grichka, dá cá a pomada... + +--Vá, abaixas-te ou não, miseravel! + +Abaixa-te, já te disse, meu papa jantares. + +Maria Alexandrovna com as proprias mãos besunta a grenha ao marido, +puxando sem dó nem consciencia pelos cabellos, bastos e grisalhos que +elle, por sua desgraça, não deixou cortar. Aphanassi Matveich põe-se a +gemer, a suspirar e aguenta, Deus sabe como, semelhante provação. + +--Miseravel! Foste tu que murchaste as flores da minha mocidade!... +Abaixa mais essa cabeça, não ouves! Abaixa-te! + +--Mas como é que eu murchei as tuas flores, minha mãezinha? regouga o +esposo de bruços no divan. + +--Manequim! Nem sequer percebeste a allegoria! Agora vê se te penteias. + +--Grichka, veste-o depressa, anda! + +A nossa heroina senta-se n'uma poltrona a vigiar com olhos de inquisidor +a ceremonia indumentaria. + +Aphanassi Matveich lá conseguiu tomar folego, e, quando se chegou ao +laço da gravata, afoita-se a ponto de emittir opiniões ácêrca do feitio +e da perfeição da laçada. Em conclusão, assim que envergou a casaca, a +distincta personagem tem reconquistado de todo o aprumo e pega a +rever-se ao espelho com manifesto desvanecimento. + +--Mas para onde é que tu me levas, Maria Alexandrovna? indága, a fazer +moquenquices á propria imagem. + +Maria Alexandrovna hesita em acreditar n'aquillo que ouviu. + +--Não ouvem isto? Ora o manequim! E como te atreves tu a perguntar-me +para onde é que eu te lévo? + +--Mas já se vê que o devo de saber, minha mãezinha. + +--Caluda! Torna-me tu a tratar de mãezinha, e muito mais no sitio aonde +vamos, e ficas sem chá um mês inteiro. + +O marido, espavorido, nem bole sequer. + +--Se já se viu? Nem sequer conseguiu apanhar a mais réles condecoração? + +Colherão de marmita!--exclama ao contemplar com desprezo a casaca do +marido, casaca virgem de toda e qualquer insignia. + +Até que por fim, Aphanassi Matveich sente-se melindrado. + +--Eu não sou colherão de marmita, sou conselheiro, minha mãezinha, +pondéra com assômo de nobre indignação. + +--Quê--quê--quê?--A raciocinar, por mais que me digam! Ora o mujik, o +ranhoso! Tenho pêna de me faltar tempo para te ensaboar esse bestunto, +quando não... Mas não as perdes, deixa estar!... Grichka, dá-lhe o +chapéu e a _chuba_[13]. Assim que eu saír, arruma estes três quartos e o +quarto aberto. Vá, pega n'essa vassoira! tira as capas aos espelhos, aos +relogios e quero tudo prompto em menos de uma hora! E tu, tambem, veste +a casaca, e dá luvas aos criados! Ouviste, Grichka? Ouviste? + +Sobem para a carruagem. Aphanassi Matveich está com uma cara espantada. +Maria Alexandrovna dá voltas ao miolo para lhe encasquetar na cabeça e +na memoria as recommendações mais essenciaes, elle, porém, +interrompe-lhe as suas cogitações. + +--Maria Alexandrovna, eu esta noite tive um sonho tão exquisito, diz, +após breve silencio. + +--Ápre! Manequim de uma figa! E eu que estava a pensar!... Como te +atreves tu a vir-me para cá com esses teus sonhos de mujik? Escuta, e +olha que t'o digo pela ultima vez, se te atreveres, hoje, a fazer a +minima allusão aos taes sonhos ou ao quer que seja,... toma sentido... +nem sei o que ha de ser de ti! Escuta bem: o principe K... está +hospedado em nossa casa. Lembras-te do principe K... + +--Se lembro! minha mãezinha, lembro-me muito bem! E por que é que elle +nos dispensou tamanha honra? + +--Cala-te, não é da tua conta! Tu, com a maxima amabilidade, e como dono +de casa, vaes convidál-o a vir comnosco para o campo. Partimos ainda +hoje. Mas se lhe disseres uma palavra só que seja, em toda a noite, ou +amanhã... ou no outro dia... ou em toda a roda do anno, mando-te guardar +gansos! Nem palavra! São essas as tuas funcções--e mais nada! +Intendeste? + +--Mas se me fizerem perguntas? + +--Não importa! Cálas-te. + +--Pois sim, mas uma pessoa nem sempre pode ficar calado, Maria +Alexandrovna! + +--Responde com monosylabos, um _hum!_... ou coisa que o valha, para que +fiquem na persuasão de que és homem espirituoso e que reflectes antes de +responder. + +--Hum!... + +--E atenta bem n'isto que te estou dizendo. Carrégo comtigo: ouviste +falar do principe, e acto-continuo, doido de contente, deste-te pressa +em vir apresentar-lhe os teus respeitos e convidál-o a ir para o campo. +Percebeste? + +--Hum! + +--Para que estás tu já a dizer: _hum!_ meu parvalhôco! Responde. + +--Está bom, minha mãezinha, tudo se fará á medida dos teus desejos. Mas, +não me dirás por que é que eu tenho que o convidar? + +--Quê, quê? pois ainda te mettes a raciocinar?! Que tens tu com isso? E +ainda te atreves a fazer-me perguntas? + +--Mas... é que eu, por mais que faça não posso perceber como é que eu o +hei de convidar sem dizer palavra! + +--Eu falarei por ti, e tu, fazes-lhe a tua cortesia, e mais nada, +percebeste?--De chapeu na mão... + +--Percebi..., minha mãe... Maria Alexandrovna. + +--O principe é espirituosissimo: diga elle o que disser, ainda quando se +não dirija á tua pessoa, responde-lhe a tudo com um sorriso bonacheirão +e alegre, percebeste? + +--Hum! + +--E elle a dar-lhe com o _hum!_ Vê se acabas com o tal _hum!_--a mim, +responde-me ao que eu te perguntar. Percebeste? + +--Percebi, Maria Alexandrovna, percebi muito bem. E como é que eu não +havia de perceber? Mas estou a dizer _hum!_ para me ir exercitando. O +que tu queres é que eu me ponha a olhar para o principe, com um ar de +riso... mas quando elle não me vir? + +--Forte espantalho! Forte idiota! Cala-te, cala-te, e cala-te! Olha e +sorri. + +--Mas se elle é capaz de suppor que sou surdo! + +--Olhem a desgraça! Sequer ao menos não ficará sabendo que és um +imbecil. + +--Hum! E se mais alguem me fizer perguntas? + +--Ninguem t'as faz, deixa estar! E demais, não estará lá ninguem. E se +por infelicidade, do que Deus nos defenda, apparecer alguem e te +perguntarem alguma coisa, responde desde logo com um sorriso sarcastico. +Sabes o que vem a ser um sorriso sarcastico? + +--Uma careta muito espirituosa, pois não é verdade, minha mãezinha? + +--Eu te darei o espirituoso, deixa estar, manequim! E quem é que te iria +suppor capaz de ter espirito, meu asneirão? Um risinho de escarneo, +percebeste? De escarneo e de desdem. + +--Hum! + +--Ai! Estou toda eu em suores frios por causa d'este estafermo! murmura +Maria Alexandrovna. Não ha mais que ver, acho que fez uma jura em como +me havia de murchar de todas as minhas flores! Teria sido muito melhor o +prescindir delle. + +A raciocinar por esta forma, Maria Alexandrovna tudo é olhar pela +vidraça do trem e atiçar o cocheiro. Voam os cavallos, e ella a achar +que se não mexem. Aphanassi Matveich, alapardado a um canto, a repetir +mentalmente a lição. Até que emfim a carruagem alcança a casa de Maria +Alexandrovna! Mas ainda bem a nossa heroina não tinha posto pé no patim, +eis que vê passar ao lado do seu proprio trem um trenél coberto, de dois +assentos, o trenél da Anna Nikolaievna Antipova.--Vinham n'elle duas +senhoras. Uma dellas é a propria Anna Nikolaievna Antipova, a outra a +Natalia Dmitrievna, duas amigas sinceras e recentes. Maria Alexandrovna +olha para ellas, e o coração dá-lhe um báque. Ainda bem não abrira a +bocca para exclamar, eis que chega outra carruagem, com outra visitante. +Ouvem-se alegres exclamações. + +--Maria Alexandrovna com o Aphanassi Matveich... ambos no mesmo trem! +Feliz coincidencia! E nós que vinhamos passar a noite em sua casa! +Agradabilissima surpreza! + +As visitantes galgam a escada a pipilarem que nem andorinhas, Maria +Alexandrovna contempla-as, estupefacta. + +--E não vos tragar o chão! diz, lá comsigo; cheira-me isto a conluio... +Pois sim!... vocês o que não tem é unhas para luctar commigo, minhas +amiguinhas!... Esperem um nadinha!... + + + + +XI + + +Mozgliakov saíu de casa de Maria Alexandrovna, consoladissimo. Não foi a +casa do Borodoniev, pois necessitava de estar sósinho. Sentia a cabeça +atravancada de romanescos devaneios. Phantaziava a explicação solemne +com a Zina, o generoso perdão, scena melancolica no baile, lá em +Petersburgo; Hespanha, o Guadalquivir, o principe no leito da agonia a +juntar nas proprias mãos as mãos dos dois amantes, e em conclusão, o +amor d'uma mulher tão formosa, vencido por tanto heroismo; por aqui e +por acolá, um ou outro favor de alguma baronêsa, ou condessa de alto +cothurno, n'aquella sociedade onde semelhante casamento lhe daria +certamente ingresso, um logar de vice-governador, dinheiro; n'uma +palavra, toda a eloquente descripção de Maria Alexandrovna. Mas, emfim, +como explicál-o?--Através de todos aquelles arrebatamentos eis lhe surge +o seguinte pensamento, algo desagradavel, que, em todo o caso, tudo +aquillo estava ainda em vêl-o-hemos, e no momento actual, elle, com o +que ficara, fôra com um nariz de palmo! De subito, nota que se alargou +demais pelo arrabalde menos central de Mordassov. Vem caíndo a noite. +Pelas ruas, ladeadas de pardieiros, ladram, como aliás succede em +toda e qualquer cidade provincial, aquelles innumeros cães que +infestam de preferencia os bairros em que nada ha que guardar ou +que roubar. Derrete-se a neve. De vez em quando, topa-se com algum +_mestchanine_ retardado, ou com qualquer _baba_[14] enfunicada n'uma +tulupa e a arrastar umas botifarras. Tudo aquillo principiava a irritar +a Pavel Alexandrovitch: mau signal, visto como, quando uma pessoa está +contente, a tudo acha risonho. Pavel Alexandrovitch lembra-se com +despeito de que, até aquelle dia, era elle quem dava o tom em Mordassov. +Era recebido por toda a parte como um noivo, uma situação tão +interessante, e felicitavam-n'o, e elle todo desvanecido. E eis que, de +subito, vinha a constar que se achava reformado; rir-se-hiam á sua custa +por toda a parte. E com tudo isso não é exequivel estar a iniciar toda a +gente ao segredo do tal baile de Petersburgo, da columna melancolica e +do Guadalquivir! + +Triste e pensativo, acaba por formular este pensamento que secretamente +lhe faz sangrar o coração desde alguns instantes: "Mas tudo isto será +verdade, realmente? Virá tudo a acontecer conforme m'o pintou Maria +Alexandrovna?" Occorre-lhe, n'aquelle ensejo, exactamente, que Maria +Alexandrovna é mulher arteira quanto possivel; que, apezar da estima +geral que disfructa, é uma enredadeira de respeito, que mente com o +maximo desplante, que é possivel que tivesse motivos particulares para o +afastar; que, emfim, o descrever um quadro seductor não compromete a +coisa nenhuma. Pensa na Zina, revóca aquelle seu olhar de despedida tão +pouco compativel com um desatinado amor. Lembra-se de que uma hora antes +foi tratado por ella na qualidade de asno--sem tirar nem pôr. Ante uma +tal recordação, Pavel Alexandrovitch estaca de vez, como que pregado ao +chão, e ruboriza-se a ponto de lhe virem as lagrimas aos olhos. E como +que de proposito, d'ali a instantes, acontece um desagradavel incidente: +escorrega e estatéla-se num montão de neve... Emquanto elle escabuja e +patinha, um bando de canzoada, que vinham atrás d'elle a ladrar, accodem +por todos os lados; um d'elles, o mais pequeno e mais atrevido, +aferra-se-lhe á aba da chuba. Pavel Alexandrovitch desenvencilha-se +dando ao diabo a cainçada e o destino e, com a aba do casacão +esfarrapada e uma indefinivel tristeza na alma, lá se vae arrastando até +á esquina da rua. Ali, percebe que vae perdido. + +É sabido que um homem, quando se acha perdido em um bairro que lhe é +extranho, e muito mais de noite, nunca se resolve a meter a direito por +uma rua larga. Impelle-o, mau grado seu, um poder misterioso para toda a +casta de betesgas que topa a geito. Em harmonia com este sistema, Pavel +Alexandrovitch perde-se de todo. "Diabos levem tanta chiméra!" exclama e +cospe com engulho. "Leve o diabo os sentimentos elevados e o tal +Guadalquivir!" + +Não me abalanço a afiançar, que Mozgliakov n'aquelle ensejo apresentasse +aspecto por demais seductor. Até que emfim, extenuado, fatigado, em +seguida a haver andado a êsmo para cima de duas horas, alcança a +escadaria de Maria Alexandrovna. Fica espantado ao dar com os olhos em +tanta carruagem: "Tem visitas? Alguma _soirée_? Com que intenção?" + +Informado por um lacaio de que Maria Alexandrovna tinha carregado com +Aphanassi Matveich do campo, de gravata branca, que o principe já está +acordado, mas que ainda não desceu do quarto, Pavel Alexandrovitch, sem +dizer palavra, vae lá acima ter com o tio. Acha-se n'aquella disposição +de animo em que um homem de caracter fraco se decide pela ideia de maior +malignidade, em favor da vingança, sem se lembrar de que virá talvez a +arrepender-se, durante toda a sua vida. + +Sobe. Dá com os olhos no principe, sentado n'uma poltrona em frente do +seu toucador de viagem, com a caréca á vela, mas com a cara já rebocada +e com as suissas e a pêra postiça já pegadas. O chinó está entre mãos do +edoso criado particular, Ivan Pakhomitch. Ivan Pakhomitch está a +penteál-o com modo absorto e respeitoso. O principe apresenta aspecto +lamentavel. Não se acha ainda restabelecido d'aquella sua temulencia. +Enterrado na poltrona, a tosquenejar as palpebras, todo elle engelhado, +amarrotado, e a olhar para o Mozgliakov como se o não conhecesse. + +--Como vae de saude, rico tiozinho? indaga Mozgliakov. + +--Como? Ah! És tu? acaba por dizer o tio. Pois eu, manozinho, dormi a +minha somnéca. Ai! meu Deus! exclama de subito, animadissimo. E eu que +estou sem o chi... chi... n... nó! + +--Não se assuste, tiozinho! Eu ajudo-o a pôl-o se quiser. + +--Ora esta! E ahi estás tu senhor do meu segredo! Eu bem dizia que era +pr... preciso fe... fe... char a po... rta! Pois então, meu amigo, vaes já, +já, dar-me a tua palavra de honra que... que, não has-de abu... sar do meu +segredo, e que não dizes, a nin... guem que é po... pos... tiça a minha +cab... be... leira! + +--Ora vamos, tiozinho, pois suppõe-me capaz de semelhante vilêza? +exclama Mozgliakov que deseja agradar ao ancião. + +--Está, claro... está... c... laro, e como eu sei que és cavalheiro... +vá... la... vaes fi... car espantado: vou te des... vendar de todo os meus +se... segredos--Que me dizes a estes bi... bigodes--m... meu caro? + +--Um portento, rico tio, espantosos! Como é que os pode conservar do +mesmo comprimento, por tanto tempo? + +--Socéga, meu amigo... s... são postiços, diz o principe a olhar muito +ufano para Pavel Alexandrovitch. + +--Postiços!?--É inacreditavel! E as suissas, então? Confesse que as +pinta, tiozinho! + +--Não só as pin... into, como são postiças e mais que... que pos... tiças! + +--Postiças! Isso agora, tenha paciencia, o tio está a caçoar commigo! + +--Pa... lavra de honra, amigo! exclama o principe desvanecido. Ora põe na +tua ideia, que toda a gente... sem excepção--anda ill... udida, como tu. A +propria Stepanida Matveina não quer acreditar que o sejam, e olha que é +ella quem m'as põe. Mas tenho a certeza, meu amigo, de que me has de +guardar segredo--Dá-me a tua pa... palavra de honra... + +--Conte desde já com ella, querido tio! Mas, insisto, suppõe-me então +capaz de semelhante vilania? + +--Ai! meu amigo! Que tombo que eu apanhei! Não fazes ideia! O Pamphili, +tornou-me a virar a car... a carruagem. + +--Pois elle tornou a pregar-lhe outro tombo? Mas quando? + +--Iamos nós quasi a chegar ao... mo... mos... teiro... + +--Já sabia, tiozinho! + +--Não, não é isso... se ainda não ha duas horas. Fui ao mo... mosteiro. +Foi elle que me levou... e pregou-me um tombo! Que susto que... que eu +apanhei! Ainda nem tenho o co... coração no seu logar. + +--Mas o tio estava a dormir? + +--Está... c... laro... estava a dormir... E vae... d'ahi fui... +vi... viajar... E d'ahi... d'ahi... talvez fosse... Ah! que coisa tão +exquisita!... + +--Afirmo-lhe que estava a dormir, tiozinho... que sonhou... Depois de +jantar ferrou-se a dormir muito socegado. + +--De... devéras?! + +O principe pós-se a scismar. + +--Sim... sim... effec... tivamente, talvez fôsse. E d'ahi, lembro-me +muito bem do sonho... todo. Primeiramente, sonhei com um toiro muito +bravo... com uns páus!... Depois com um pró... ó... curador... mas tambem +tinha p... páus! + +--Havia de ser o Nikolai Vassiliévitch Antipov, tiozinho. + +--Está... claro... era elle... era... E depois tambem sonhei com +Na... napoleão... Bo... bo... naparte. Não sabes, amigo, diz toda a gente +que n... nos parecêmos?... De perfil... pelos modos... faço lembrar um +papa... muito antigo: Tu, que dizes?... Achas que te... terei ares de +papa? + +--Acho que se parece mais a Napoleão. + +--Está... c... laro... é assim... mesmo... de... de... frente. E d'ahi, +tambem d'isso estou conven... cido, meu caro. Vi-o em sonho, sentado lá +na sua ilha... Não sabes? A fô... legar... muito contente... muito +lam... peiro!... Que graça que... eu lhe achei! + +--Refére-se a Napoleão, tiozinho? indaga Pavel Alexandrovitch, todo elle +absorto, a observál-o. + +Principiava a surgir-lhe na mente um estranho pensamento, sem que elle +pudesse formulál-o com clareza. + +--Está claro... Na... na... po... leão. Tivémos uma pa... palestra +filosó... fica... Não sabes? tenho pena de que os Inglezes lhe fizessem +aquillo que... que lhe fizeram... É verdade que se elles o não tivessem +en... gaiolado... atirava-se para ahi a to... toda a gente... aquelle +damnado! Mas com... apezar d'isso... foi pena!... Eu cá... por mim não +era capaz de o fazer! Prega... va com elle n'uma ilha deserta... + +--Deserta... então para quê? perguntou, distrahido, Mozgliakov. + +--Está... claro... De... deserta, não, mas habitada por gente com juizo. +E depois arranjava-lhe distracções... theatro, mu... musica... +ba... bailados e tu... tudo isso por conta do Estado. Dáva-lhe licença +para passear... vi... vigiado... já se vê... qu... quando não... +pi... pisgava-se... Elle gostava de uns certos bôlos... Pois bem! +faziam-se-lhe todos os dias... Tratava-o com pa... pater... nal carinho: +Elle... commigo... arre... pen... dia-se... di... digo... t'o eu. + +Mozgliakov escuta distrahido a garrulice do vegête, a roer as unhas, +impaciente. Elle a querer desviar a conversa para o assunto do +casamento, e nem sequer sabe o motivo, mas referve-lhe lá dentro uma +maldade, infame. De subito, eis que exclama o tio, muito espantado: + +--Ai! meu amigo! E eu que me esquecia de t'o par... parti... cipar... +Saberás que fiz ho... je o meu pe... pedido! + +--O seu pedido, tiozinho?... exclama Mozgliakov animando-se +acto-continuo. + +--Está... c... claro... o meu pedido! Já te vaes embora, Pakhomitch? Está +bem. É uma menina encanta... dora!... Mas confesso... amigo, que andei +com leviandade, estou-o per... cebendo agora... Ai! meu Deus! + +--Mas, se me dá licença, querido tio, quando é que fez esse tal pedido! + +--Confesso, que... não... sei ao certo, qu... ando foi, amiguinho!... +Querem ver que... seria sonho, tam... tam... bem?... Que co... isa t... tão +ex... quisita! + +Mozgliakov estremece de contentamento... Accode-lhe uma ideia luminosa. + +--Mas a quem, e quando é que fez o tal pedido? repete impaciente, já. + +--Á... á... fi... lha da casa, meu amigo... áquella... lin... da me... +nina! E d'ahi... esqué... ceu... me o nome. O peor, meu amiguinho... é +que não posso casar,... impos... sivel, meu amigo! Que hei de eu fazer? + +--Pois decerto... semelhante casamento iria deitál-o a perder! Mas, uma +pergunta: Tem a certeza de haver feito o pedido? + +--Está... claro... tenho a certeza... tenho... + +--E se fosse sonho, como aquella sua quéda da carruagem? + +--Valha-me Deus!... E o c... caso é que é possivel... no tal sonho... E +o... peor é que e... eu já nem tenho cara para lhe apparecer... E não... +achas que se poderia saber... indi... recta... mente, se eu faria ou não +o tal pedido? + +--Sabe o que lhe digo, querido tio? Que acho até escusado ir tirar +informações. + +--E... por-quê? + +--Por que tenho a certeza de que tudo foi sonho, tambem. + +--Tambem... me quer... parecer... m... meu ca... ro, e tanto... m... +mais que eu estou sempre a ter sonhos... assim. + +--Então já vê, tiozinho... Faça de conta que beberia mais um copito ao +almoço... ou ao jantar... e ahi tem... + +--Está... claro... amigo... foi isso foi,... é o que havia de ser. + +--Tanto mais, que o tio, por mais influido que estivesse, nunca se iria +arriscar a fazer um pedido tão disparatado. O tiozinho, desde que o +conheço, tive-o sempre na conta de um homem de muitissimo tino. + +--Está... c... laro. Está... c... laro. + +--Ora considére: ponha na sua ideia que os seus parentes, tão mal +dispostos já, para com o tio, vinham a ter conhecimento do caso, que +acontecia? + +--Ai! meu Deus! exclama o assustadissimo principe... que acontecia?... é +verdade! + +--Então, já vê! Punham-se a berrar todos á uma que estava doido, que era +preciso nomear-lhe tutôres, que o tinham embaçado, e catrafilavam-n'o +para ahi em qualquer parte, guardado á vista. + +O Mozgliakov estava farto de saber que o argumento éra de molde a deixar +espavorido o principe. + +--Ai! meu Deus! exclamou o jarrêta, todo elle a tremer... +engaiolavam-me?! + +--Ora considére, tiozinho, passar-lhe-ia nunca pela cabeça o ir fazer um +pedido tão disparatado? O tio avalia muito bem os seus interesses! +Affirmo-lhe que foi sonho. + +--So... nho, sim, é o que foi! So... nho... e mais nada! Ah! tu... é +que... que acertaste... com a coisa! E fico... te grato, muito grato... +por me teres con... vencido. + +--E eu, contentissimo, tiozinho, por termos vindo á fala. Se não fosse +eu, o tio ficava acreditando que estava noivo, e procederia n'esse +sentido. Veja lá do que se livrou! + +--Está c... laro... me... livrei... dizes bem! + +--Lembre-se de que está com vinte três annos essa menina! Não ha quem a +queira, e eis se não quando, apparece o tio, rico, nobre e vae pedil-a +em casamento! E ellas, já se vê, apanham a pélla no ar: affirmam a toda +a gente que o tio está noivo e impingem-lh'a em casamento. E em seguida, +põem-se á espera de que o tio se vá indo desta para melhor. + +--Que... me dizes! + +--E depois, tiozinho... é lá coisa que convenha a um homem da sua +jerarchia... + +--Está c... claro! Jerarchia... + +--Tão intelligente... tão amável... + +--Está... c... claro... intelligente... é is... so... é! + +--E em conclusão, é principe... Será partido que lhe convenha, +porventura? Se é que, por qualquer motivo insiste em querer casar. +Lembre-se do que diriam os seus parentes. + +--Ai, meu amigo, comiam-me em vida! Elles que já me não têm feito poucas +terrafi... as... aquelles des... almados! Ora imagina! Desconfio até +que... qué-rem pregar commigo n'uma casa... de... sa... saúde! Ora, +dize-me, achas que se... ja razoavel? Que é que eu havia de fa... zer +numa casa de saúde? + +--Pois certamente, rico tio, e ahi está o motivo porque eu já o não +largo quando o tio fôr lá para baixo. Estão lá visitas. + +--Vi... sitas! Ai! valha-me Deus! + +--Não se assuste, tiozinho, eu vou com o tio. + +--Sou-te m... muito obrigado... muito! Fô... ste a minha redempção! Mas, +qu... éres que te diga, eu antes queria ir-me embora! + +--Amanhã, tiozinho, amanhã, ás sete horas da manhã! Hoje, despede-se de +todos e declara que se vae embora. + +--Ab... so... lu... tamente!... safo... me... ab... solu... tamente!... +vou para casa do padre Missail... Mas... meu amiguinho, e se ella casar +commigo contra minha vontade?... + +--Não lhe dê cuidado, tiozinho, cá estou eu. E demais, digam o que +disserem, responda sempre que foi sonho... o que é verdade, aliás. + +--Es... tá... c... claro, sonhei!... Mas sempre te direi... meu a... +mi... miguinho, que foi um sonho delicioso!... Que for... mosura! É um +por... tento! E se... soubesses!... Com umas... fórmas! + +--Pois então, até logo, tiozinho, vou indo lá para baixo... E o tio... + +--Ora... essa!... Então para aqui me deixas?... exclama o principe, +assustado. + +--Não é isso, tiozinho, eu o que vou é indo adiante... não vamos juntos. +Primeiro eu, depois, o tio. É melhor assim. + +--Está-c... laro... melhor. E eu, demais a mais, tenho que tomar nota +d'um pensamento... capital. + +--Pois é o que deve fazer, tio, vá assentando o seu pensamento, e +depois, não se demore, appareça, e conte que, amanhã... + +--Amanhã, de manhã, para casa do-arci-préste... sem fa-lta,... casa... +do ar... ci... ci... Magnifico! Mas olha que... ella é um por... tento de +formosura! Que... fórmas! Se não houvesse outro remedio senão casar com +ella... eu... então... + +--Deus o livre de tal, querido tio! + +--Está claro!... livre... Está dito! até já, meu amigo! Eu não tardo lá. +É só tomar no... ta... A proposito,... e... ago... ra me lembra que te +queria perguntar... se... j... já tinhas lido as _memorias_ de Cásanova? + +--Já, tiozinho... Mas por quê? + +--Está... c... claro--Por quê?--Mas... deixa lá... já me não lembro do +que é que te queria dizer. + +--Depois se lembrará, tiozinho, até logo. + +--Até logo, amiguinho, até logo...--Mas que foi uma... delicia... o tal +sonho... lá isso foi! + + + + +XII + + +--Viémos vêl-a todas, todas! A Prakovia Ilinicha não tarda por ahi! A +Luisa Karbovna tambem queria vir, pipila a Anna Nikolaievna dando +entrada na sala e a inspeccionar tudo em redor com uns olhos de +bisbilhoteira. + +É uma mulherzinha, bonitinha, veste com riqueza, mas com umas côres +espalhafatosas, e com presunção na sua boniteza. Fareja-lhe que o +principe deve de estar alapardado n'um cantinho qualquer e mais a Zina. + +--E a Katerina Petrovna tambem não deixa de apparecer, accrescenta +Natalia Omstrievna, mulherão com proporções de colosso á qual tem +reduzido o pêso os jejuns e dando ares de um granadeiro. + +Traz um chapelinho, minusculo, côr de rosa, pespegado na nuca. Ella, vae +em três semanas, é a mais intima amiga da Anna Nikolaievna, de quem ella +anda atrás, ha muito tempo, e a quem se pudesse nem a pelle lhe deixava. + +--O alegrão que ambas me deram em vir passar a noite commigo, nem ha +palavras que o possam exprimir, cantaróla Maria Alexandrovna, um tanto +refeita já da instantanea surpreza. Mas não me dirão a que feliz acaso +devo o prazer?... Nem contava, já, com semelhante honra! + +--Valha-me Deus! Maria Alexandrovna, não seja má! diz muito açucarada a +Natalia Dmitrievna, com voz de pipía, e tregeitos, toda ella--o que +estabelecia curiosissimo contraste com o seu exterior. + +--Mas minha querida, pipila Anna Nikolaievna, precisamos concluir os +arranjos do tal theatro. Ainda hoje o Petre Mikailovitch disse ao Kalist +Stanislavitch que está contrariadissimo por não terem corrido bem as +coisas, e porque andassemos a jogar as cristas. E como succedesse +ajuntarmo-nos todas quatro, dissémos comnosco: "E se nós fossemos ter +com a Maria Alexandrovna a ver se levamos a cabo este negocio?" A +Natalia Dmitrievna passa palavra ás outras, e cáem aqui todas. D'este +modo poderiamos chegar a um accordo e as coisas entravam no seu curso +regular. É para que não digam que apenas sabemos andar á unhada, pois +não é assim, meu anjo? accrescentou dando um beijo a Maria Alexandrovna. + +Valha-me Deus! Zinaida Aphanassievna, está cada dia mais linda! + +Anna Nikolaievna atira-se á Zina e prega-lhe um beijo. + +--Mas se a menina não tem outra coisa que fazer a não ser o ir +embellezando dia a dia, affirma com affectada amabilidade Natalia +Dmitrievna a esfregar as mãos. + +--Demonios as levem! E eu que nem sequer já me lembrava do tal theatro! +Sim, senhor, estas pêgas tem apurado a malicia! murmura Maria +Alexandrovna fula de raiva. + +--E tanto mais, meu anjinho, accrescenta Maria Nikolaievna, que o nosso +querido principe se acha hospedado em sua casa. Bem sabe que não ha +_pomietok_ de Dukhanova, de paes a filhos, que não tenha tido um +theatro. Tomámos informações e viémos a apurar que existe algures um +armazem atulhado de scenario velho, e um panno, e fatos, até. O principe +esteve hoje em minha casa, mas se quer que lhe diga, fiquei tão +assarapantada com a visita, que de todo me esqueceu tocar-lhe em +semelhante coisa. Agora, comtudo, tencionamos conversar com elle a esse +respeito; ha de ajudar-nos, e o principe não deixará de dar as suas +ordens para que nos remetam toda essa cangalhada. Pois a quem haviamos +de encommendar por aqui coisa que se pareça com uma vista de theatro? E +d'ahi, queremos que o principe em pessoa participe da nossa empresa. É +necessario levál-o a subscrever: é para os pobres. Quem sabe se elle se +não encarregará, até, de qualquer papel; é tão condescendente, tão dado! +Correria tudo ás mil maravilhas. + +--Pois já se vê, que acceita um papel! Tanto mais que nada ha mais facil +do que induzil-o a desempenhar seja que papel fôr, accrescenta +significativamente Natalia Dmitrievna. + +Anna Nikolaievna não tinha enganado Maria Alexandrovna. Vão chegando de +instante para instante senhoras. Maria Alexandrovna quasi que nem tem +tempo de se levantar para recebêl-as e de proferir as exclamações da +praxe em semelhantes casos, exigidas pelas conveniencias. + +Não me afoitarei a descrever uma por uma as visitantes. Direi apenas que +cada uma d'ellas desfecha insidiosa olhadella para a dona da casa. Todas +ellas denunciando na fisionomia ávida impaciencia. Entre as nobres +damas, mais de uma, até, concorria ali na espectativa de presencear a +qualquer escandalozinho extraordinario: ficariam desconsoladissimas se +se não désse o dito escandalo. Exteriormente, desfaziam-se em +amabilidades, Maria Alexandrovna porém estava armada para a lucta. +Choviam perguntas a respeito do principe, naturalissimas todas ellas, na +apparencia, mas por detrás de todas lá estava uma allusão. + +Serve-se o chá. Sentam-se todas á mêsa. Apodera-se do piano um grupo, +Zina, ao convite de tocar ou de cantar, responde, muito sêca, que se +acha incommodada. A pallidez do rosto abona-lhe aliás a veracidade. +Segue-se um tiroteio de perguntas simpáticas, e isso mesmo dá motivo +para uma allusão. + +Indagam noticias á cêrca de Mozgliakov, é á Zina que são dirigidas. +Maria Alexandrovna não tem mãos de medir: acha-se presente a um tempo em +cada canto da sala, ouve tudo que dizem as visitantes, supposto sejam +mais de dez. Responde a quanta pergunta lhe dirigem sem ter necessidade +de remexer as algibeiras á procura de palavras. Está toda ella a tremer +com o sentido na Zina, e muito admirada por esta não sair da sala, +conforme é seu costume em taes occasiões. Notam tambem a presença de +Aphanassi Matveich. Por via de regra fazem escarneo d'elle para +melindrarem Maria Alexandrovna na pessoa do marido. Hoje, porém, tudo é +quererem sacar as palavras do bucho ao tão singelo e franco Aphanassi +Matveich. Maria Alexandrovna, inquieta, não tira os olhos do marido, +collocado em estado de sitio. + +Elle, responde a todas as perguntas: Hum! com uns modos tão entalados e +pouco naturaes que é de uma pessoa se derramar. + +--Maria Alexandrovna, não ha quem saque uma palavra a Aphanassi +Matveich! exclama uma caçapa de uma dama com uns olhos vivos e uns ares +de intrepidez, como quem não tem medo seja de quem fôr, e se não +atrapalha com coisa nenhuma. Veja se lhe diz que seja mais delicado com +as senhoras. + +--Ainda estou para saber o que é que elle terá hoje, responde Maria +Alexandrovna, toda ella sorrisos e interrompendo a sua palestra com a +Anna Nikolaievna e com a Natalia Dmitrievna. Não está nada expansivo; +aqui estou eu que ainda não fui capaz de lhe ouvir uma palavra. Por que +é que não respondes á Felissata Mikhailovna, Athanasio?--Que foi que lhe +perguntou, Felissata Mikhailovna? + +--Mas... mas... minha mãezinha... tu não me recommend... encéta Aphanassi +Matveich assarapantado, desnorteado. + +N'este ensejo, está espécado ao pé do fogão acêso, com o dedo pollegar +enfiado no bolso do collete, em atitude pinturesca e a chuchurrebiar o +seu cházinho. + +Atrapalham-n'o as perguntas das senhoras, põe-se córado qual candida +donzella. Porém, ainda bem não encetara a propria justificação, eis que +topa com uns olhos tão irritados da consorte furibunda que fica +petreficado de terror. Sem saber o que ha-de fazer e desejoso de +remediar a asneira, e reconquistar a estima de Maria Alexandrovna, +engole um golo de chá, mas o chá está a ferver, Aphanassi Matveich +escalda-se, engasga-se, toma-se de um froixo de tosse, e pisga-se da +sala para o quarto, deixando banzada toda a assembleia. Perceberam tudo, +e Maria Alexandrovna nem põe em duvida o estarem cabalmente informadas +as suas visitas, e o haverem-se congregado em sua casa com intuito +malevolo. + +É perigosa a situação. Podem muito bem obrigál-o a descoser-se, +enredál-o na propria presença da mulher. São capazes, até, de carregar +com o principe e de o malquistar com Maria Alexandrovna... Em summa, +cumpre contar com o peor. + +A sorte reserva á nossa heroina ainda outra prova. Abre-se a porta, e dá +entrada o Mozgliakov, a quem ella suppunha em casa de Borodoniev. A +previdente senhora estremece como se o que quer que fosse lhe houvera +trespassado o coração. Mozgliakov pára nos umbraes da porta, um tanto +intimidado, e põe-se a examinar a assembleia. Não consegue dominar o +sobresalto a ler-se-lhe no semblante. + +--Ai, meu Deus! Pavel Alexandrovitch! exclamam diversas vozes. + +--Ai, meu Deus! Mas é o Pavel Alexandrovitch! + +--E a senhora a dizer-nos, Maria Alexandrovna, que elle a estas horas +devia estar em casa do Borodoniev? + +E a dizerem que estava escondido, Pavel Alexandrovitch, lá em casa do +Borodoniev, ladra Natalia Dmitrievna. + +--Escondido? repete Mozgliakov com sorriso contrafeito. É um tanto +exquisita a expressão! Queira perdoar, Natalia Dmitrievna, eu não me +escondo nem tenho motivos para me esconder seja de quem fôr, accrescenta +vibrando significativo olhar a Maria Alexandrovna. + +Estremece Maria Alexandrovna. + +--"Ora esta! querem ver que se insurge tambem este bonifrate? diz +comsigo, a examinar Mozgliakov. Não faltava mais nada!" + +--Será verdade. Pavel Alexandrovitch, que está reformado... das suas +funcções?--arrisca a atrevida da Felissata Mikhailovna, a olhar para +elle, ironica. + +--Reformado? Reformado de quê? + +Fui apenas transferido; tenho o meu logar lá em Petersburgo, responde +com secura Mozgliakov. + +--Ainda bem! E desde já o felicito; continua a Felissata Mikhailovna. +Tivemos um susto por sua causa, quando nos disseram que andava a ver se +arranjava um logar em Mordassov. Que, logares, por aqui, são pouco +estaveis. Pavel Alexandrovitch, de um dia para o outro apanha-se uma +demissão. + +--A não ser que se trate de um logar de _utchitel_, para ahi em qualquer +escola communal... Esses têm ferias... observa a Natalia Dmitrievna. + +É tão transparente a allusão, tão grosseira, que á propria Anna +Nikolaievna assoma-lhe o rubor ás faces e pega ás cotoveladas á peste da +amiga. + +--Persuadem-se então que Pavel Alexandrovitch seria homem para marchar +nas piugadas de um reles _utchitel_? insiste a Felissata Mikhailovna. + +Pavel Alexandrovitch, sem saber o que ha de dizer, volta costas e dá de +rosto com Aphanassi Matveich de mão estendida para elle. Mozgliakov, +alvar, não acceita a mão do conselheiro e faz-lhe rasgada contumélia, +com pretenções a ironica. Acerca-se da Zina e, mirando-a a fito, +socina-lhe: + +--É a culpada de tudo isto... mas espere, e ainda esta noite, verá se eu +sou, ou não sou um asno! + +--Esperar, eu?--Como se já se não estivesse vendo o sufficiente! retruca +a Zina muito de rijo, a medir com uns olhos desdenhosos o +recem-rejeitado. + +Mozgliakov precipita a retirada, espavorido pela expansão vocal da +donzella. + +--Vem de casa do Borodoniev? resolve-se por fim a perguntar Maria +Alexandrovna. + +--Não; venho de estar com meu tio. + +--Com seu tio?--Esteve com o principe? + +--Ai meu Deus! Com que então o principe já está acordado? E a dizer-nos +que estava ainda recolhido, acode Natalia Dmitrievna a enterrar pelo +chão abaixo Maria Alexandrovna com uns olhos em que transluz odio e +triunfo. + +--Não lhe dê cuidado o principe, Natalia Dmitrievna, replica o +Mozgliakov; está acordado, e, graças a Deus, recuperou as suas +faculdades. Tinha bebido uns copitos a mais, hontem, em sua casa, e +acabaram aqui de o toldar de todo; de modo que se lhe tinha varrido +completamente o tino. Bem sabe, que está um tanto fraco de cabeça. +Agora, comtudo, eu e elle tivemos uma conversa, e está com o juizo no +seu logar. Não tarda por ahi, meia hora, Maria Alexandrovna, para lhe +dizer adeus, e lhe dar os agradecimentos pela sua franca hospitalidade. +Logo de madrugada vamos até á Charneca, tenciono acompanhál-o até +Dukhanovo, a vêr se lhe evito para ahi algum tombo, como aquelle que +hoje apanhou. Voltará a collocar-se ao abrigo do broquel da Stepanida +Matveiévna, que a estas horas já deve ter regressado de Moscou, e lhe +não tornará a consentir o expôr-se outra vez aos riscos de uma jornada, +isso lhe asseguro eu! + +E o Mozgliakov, maligno, a examinar Maria Alexandrovna, embatucada e +estupefacta. + +(Pêsa-me o ter de confessar que, pela primeira vez na sua vida, sente +medo a nossa heroina). + +--Retira-se ámanhã! Mas então... como assim? indaga de Maria +Alexandrovna a Natalia Dmitrievna. + +--Como assim? repete Anna Alexandrovna, pasmada. + +--Como assim? effectivamente, écoam outras vozes. E nós a julgarmos +que... É extraordinario, na verdade. + +A dona da casa nem atina sequer com o que ha de dizer. Eis que, de +subito, é attrahida a geral attenção por um episodio da mais +extraordinaria excentricidade. Ouve-se, na saleta contigua, um alarido +de vozes, de exclamações, e rompe por ali dentro a Sofia Petrovna +Karpukhina. + +A Sofia Petrovna é sem discussão possivel a mulher mais original em toda +Mordassov; é original a ponto que tiveram que a excluir da sociedade. E +cumpre advertir que ella, regularmente, ás sete horas, despacha a sua +merenda, e que depois de a despachar fica sempre n'uma disposição de +espirito... mais que muito emancipada... para não irmos mais longe. E é +n'esse estado, exactamente, que ella effectua em casa de Maria +Alexandrovna tão inesperada apparição. + +--E esta! Com a senhora é sempre assim, Maria Alexandrovna! berra ella +estrugindo a tudo: isto será modo de proceder para commigo?!... Não se +assuste, vim aqui de corrida, nem me sento, sequer. Vim de proposito +para saber se é verdade aquillo que me disseram. A senhora a dar bailes, +banquetes e n'este meio tempo, a Sofia Petrovna para ali a um canto, em +casa, a concertar as meias! A senhora a ajuntar em sua casa a cidade em +peso, menos a mim! Commigo, d'antes, tudo era: minha amiguinha, meu +anjo,--quando lhe conveio saber o enredo que a Natalia Dmitrievna a seu +respeito e do principe andava a tecer, e vae senão quando, a Natalia +Dmitrievna, de quem a senhora--hoje mesmo--como ella aliás diz da +senhora--disse cobras e lagartos--está para ahi amesendada na sua +_soirée_! Não se assuste, Natalia Dmitrievna, passo muito bem sem o tal +seu chocolate de dois kopeks cada pau. Eu, quando me appetece beber seja +o que fôr, lá em minha casa não falta, graças a Deus; tomára a senhora! + +--Bem se vê! observa a Natalia Dmitrievna. + +--Ora vamos, Sofia Petrovna, exclama Maria Alexandrovna, afogueada de +despeito, que é que tem? Socegue! + +--Não lhe dê cuidado a minha pessoa, Maria Alexandrovna, estou sciente +de tudo, de tudo! guincha com a voz de pipia a Sofia Petrovna, á qual +fazem cêrco as visitantes, que não cabem em si de contentes com o +escandolozinho. Estou informada de tudo e foi lá a sua Nastassia quem +m'o pespegou, tim-tim por tim-tim! A senhora pregou uma camoéca ao tal +principe e tanto apertou com elle, até que lhe pediu em casamento a sua +filha--que já nem tem quem a queira! E a senhora a ver-se já toda +emproada, a julgar-se uma duquêsa, com manto e tudo.--Pfu-u! Não cuide +que me mete mêdo! Tenho visto muitas duquêsas e aqui onde me vê sou +coronela! Ah! A senhora então nem sequer me convidou para a bôda!--Cá +por mim, escarro-lhe em cima!--Tenho muito com quem me dar, tomára a +senhora. O ponto está que eu queira! Vá ouvindo: Hontem jantei eu com a +princesa Zalikhvatskaia, e por signal que até o commissario principal, o +Kuropchkine, me pediu em casamento. Estou-me ninando para o tal seu +_salsifrê_. + +Pfu-u! Arreda! + +--Escute, Sofia Petrovna, responde Maria Alexandrovna fora de si, fique +sabendo que assim ninguem se atreve a pôr pé numa casa decente;... e +n'esse seu estado, de mais a mais!... Se me não favorece desde já com a +sua ausencia... obriga-me a appellar para... + +--Bem sei, chama os criados para me pôrem no olho da rua? Não lhe dê +cuidado, sei muito bem o caminho. Adeuzinho! Case lá a sua filha com +quem muito bem quiser. E a senhora, Natalia Dmitrievna, escusa de se rir +á minha custa: eu cá, ao tal seu chocolate, só se lhe cuspir dentro! +Ella convidava-me lá! Isso sim! Não, que lá em minha casa não ha quem +danse o _kazatchok_ diante de principes! E lá a senhora, tambem, Anna +Nikolaievna, de que é que se está a rir? O seu Suchilov partiu indagora +uma perna: e lá o levaram em charóla para casa--ha de-lhe fazer falta, +já se vê! Pfu-u! E a senhora, Felissata Mikhailovna, se não avisa +aquelle calcanhar rachado do seu Matvehka que, se torna a consentir que +a sua vacca esteja todo o santo dia aos bérros debaixo da minha janéla, +parto-lhe as pernas, ao tal seu Matevchka! Adeuzinho, Maria +Alexandrovna! A bom intendedor, o resto já se sabe! Saúde! + +Pfu-u! + +Some-se a Sofia Petrovna. Desata toda a gente á gargalhada. Maria +Alexandrovna ficou entupida de todo. + +--Estou em dizer que beberia a sua pinga, diz a Natalia Dmitrievna, +muito de mansinho. + +--Se já se viu semelhante desaforo; + +--Abominavel criatura! + +--Se quer ao menos fartámo-nos de rir! + +--Que chorrilho d'inconveniencias! + +--É ella abrir a bôca!--Passa fora! + +--Mas que queria ella dizer com as taes bôdas? indaga em ar de mofa a +Felissata Mikhailovna. + +--É temivel! exclama Maria Alexandrovna. E são uns monstros d'este +calibre que andam para ahi a desacreditar a toda a gente, com a estupida +linguarice! E sabe o que lhe digo, Felissata Mikhailovna, é que me não +admira, que umas fufias assim sejam recebidas na nossa sociedade, +quando, o que é ainda mais para admirar, ha gente que a ellas recorra, +que lhe dê ouvidos, e que lhes dê credito... cambada!... + +--O principe! O principe! gritam á uma. + +--Valha-me Deus! O principe! + +--Graças a Deus! Até que emfim vamos ficar sabendo a verdade. + + + + +XIII + + +Entra o principe, dilatados, os labios por aquelle seu meigo sorriso. A +inquietação insuflada pelo Mozgliakov n'aquelle descuidado coração +desapparece de todo, ao dar com os olhos nas damas: derrete-se desde +logo que nem um rebuçado.--Elle, em geral, entretem muitissimo o bello +sexo. A Felissata Mikhailovna affirmava, até, esta manhã, por +brincadeira, já se vê, que estava pronta a sentar se-lhe nos joelhos, se +elle quisesse, pois era "um encanto de um ginjinha, um encanto nunca +visto, até." E Maria Alexandrovna sem tirar d'elle os olhos, a +estudál-o, tentando prever-lhe no semblante o desfecho de tão critica +situação. É evidente haver o Mozgliakov comprometido gravemente o +negocio e o estar um tanto vacilante a emprêsa. E não obstante nada se +pode ler no rosto do principe... está, como sempre, insipido e +encantador. + +--Ai, meu Deus! Até que ahi vem o principe! E nós todos á sua espera! +exclamam diversas damas. + +--Com impaciencia, principe, com impaciencia, pipilam as restantes. + +--Li... son... son... jeia... me... sum... ma... mente, diz o principe +sentando-se á mêsa defronte do samovar a ferver. + +As damas atrigam-se em fazer-lhe cerco. A Anna Nikolaievna e a Natalia +Dmitrievna são as unicas que se deixam ficar ao pé de Maria +Alexandrovna. Aphanassi Matveich sorri, respeitozissimo. Mozgliakov +sorri tambem a olhar com uns ares de provocação para a Zina a qual, sem +fazer caso delle, se acerca do pae e se senta ao lado d'este n'uma +poltrona. + +Ah! principe--sempre é verdade que se retira? indaga a Felissata +Mikhailovna. + +--Está c... claro... minhas senhoras, retiro-me; vou... im... me... diata.. +mente para o estrangeiro. + +--Para o estrangeiro, principe! + +--Para o estrangeiro! clama toda a gente em côro. Que ideia! + +--Pa... ra o est... est... rangeiro, affirma o principe, a tomar atitudes, +e n... não sabem?--eu se vou é... é... por causa das taes... ideias novas. + +--Como assim? As ideias novas? + +--De que é que se trata? perguntam as damas a olhar umas para as outras. + +--Está... c... laro!... As ideias novas! insiste o principe com uns modos +de intima convicção; vae lá toda a gente, agora, por causa das ideias +novas, e eu se vou é... com... o sentido tambem de me sa... turar. + +--É capaz de estar com o sentido em ir filiar-se por lá em alguma loja +maçonica? intervem o Mozgliakov desejoso de fazer brilhar o seu espirito +na presença das damas. + +--Está... c... claro, meu amigo, não t'enganas. Eu, em tempos, pertenci, +effectivamente, a uma loja maçónica. Animavam-me, até, umas ideias, +muitissimo generosas... Propunha-me a fazer muita coisa... em... em +favor da... in... instrucção... mo... moderna. Queria dar carta... +de... al... fo... forria ao meu Si... do... dor, mas safou-se antes de +tempo, com grande es... panto da minha parte. Que lemb... rança tão +ra... tona! Depois, um dia, encontrei-o cara... a... cara... lá em Paris, +vestido como um dandy, com umas suissas,... a passear pelo +bou... levard... com uma "_menina_". Acenou-me com a cabeça... e mais +nada. E a tal _menina_, que levava p... pelo braço tinha uns ares tão +agai... atados... tão ape... titosa. + +--O tiozinho, então, d'esta vez, em se apanhando em Paris, dá a +liberdade aos servos todos, sem excepção? + +--Está..., c... claro... adivinháste-me o pensamento, meu c... caro. É +tal qual... quero dar liberdade a to... dos elles. + +--Ora vamos, principe, safam-se-lhe todos de casa, e depois, quem é que +lhe paga o dizimo? exclama a Felissata Mikhailovna. + +--Pois já se vê, que se safam, acode, inquieta, Anna Nikolaievna. + +--Ai, meu Deus! Que me diz? Então parece-lhe que o façam? + +--Safam-se, safam-se, pudera não... Tão certo! E o senhor, depois, vê-se +sósinho, confirma a Natalia Dmitrievna. + +--Ai! meu Deus! Visto isso... então n... não lhes dou... al... for... +ria! E d'ahi, eu dizia isto... por dizer. + +--Antes assim, tiozinho. + +Maria Alexandrovna, até agora, tem estado caláda a observar. Parece-lhe +que o principe se esqueceu d'ella, totalmente, e não acha isso natural. + +--Principe, enceta elevando a voz e com dignidade, peço-lhe licença para +lhe apresentar Aphanassi Matveich, meu marido. Veiu expressamente do +cantinho da sua aldeia, assim que soube que o principe se achava +hospedado em minha casa. + +Aphanassi, todo elle sorrisos e a fazer papo. Afigura-se-lhe que acabam +de lhe endereçar um cumprimento. + +--Ah! Fol... go im... menso... Apha-anassi Matveich. Dê me licença... +está-me a parecer que... me lembro... do que quer que seja... +Aphana-assi Matvei... tch? Ah! sim! sim! Aquelle que estava no campo?... +Encantado! encantado! Quanto esti... imo... Meu amigo, exclama o principe +dirigindo-se a Mozgliakov... mas foi elle que... que... como se intende, +então?... O marido lá por fóra... e a mulher... em... Sim, sim, lá n'uma +cidade... e a mulher... + +--Ah! principe,... isso pelos modos ha de ser: o _Marido lá por fóra_, e +a mulher _em Tvor_, o tal vaudeville, que uma companhia ambulante +representou lá em casa o anno passado? + +--Está c... claro, em _Tvor_, e... eu... sempre a esqué... quécer-me! +Encantado, encantado! Com que, então, é o senhor? Quanto estimo +conhecêl-o! diz o principe sem se erguer da cadeira, de mão estendida +para Aphanassi Matveich. E então, como vae? + +--Hum!... + +--Está optimo, optimo! acode Maria Alexandrovna. + +--Está... c... claro... bem se vê... Com que, então, vive sempre no +campo? Pois, senhor, estimo muito.--Mas que bochêchas tão corádas que +elle tem! E não faz senão rir!... + +Aphanassi Matveich sorri e faz-lhe a sua vénia, a arrastar o pé pelo +sobrado. E comtudo, assim que ouve a ultima observação do principe, não +se pode suster e desata uma gargalhada alvar. E imita-o toda a gente. As +damas soltam guinchos de alegria. A Zina, corrida, ruboriza-se e vibra +uns olhos coruscantes a Maria Alexandrovna, que se está comendo de +raiva. É tempo de desviar a conversação. + +--Dormiu bem, meu principe? indaga com voz tranquilla, intimando ao +mesmo tempo, com uma olhadella vivaz, Aphanassi Matveich a que volte +quanto antes para o seu logar. + +--Dormi op... ti... mamente... E, não sabem, tive um sô... ônho +deliciôso, deli... ciô... so! + +--Um sônho! Gósto tanto de que me contem sônhos! exclama a Felissata +Mikhailovna. + +--Tambem eu! accrescenta a Natalia Dmitrievna. + +--Um sô... nho... deliciôso... repete o principe com meigo sorriso; mas +é segredo o tal sônho. + +--Como assim, principe? Nem sequer se pode contar? observa Maria +Alexandrovna. + +--Um grande segredo! repete o principe. + +Recrudesce a curiosidade. + +--Mas, então, deve de ser interessante, interessantissimo, exclamam de +todos os lados. + +--Não se me dava de apostar que o principe, no tal seu sônho, estava de +joelhos aos pés de alguma beldade a fazer-lhe a sua declaração de amor! +exclama a Felissata Mikhailovna. Ora vamos, principe, confesse! +Confesse!... então, meu rico principezinho da minha alma! + +--Confesse, principe, confesse! exclamam por todos os lados. + +E o principe deliciado, a escutar aquella gralhada. Lisonjeia-o a +supposição, e lambe-se todo, até. + +--Comquanto seja um grande segredo, não tenho remedio senão confessar +que ma... madame, com grande espanto da minha parte, por pouco o não +adivinha de todo. + +--Adivinhei! exclama com arrebatamento Felissata Mikhailovna. E então, +principe, é preciso dizer-nos quem é essa tal belleza! + +--Tem obrigação de o dizer! + +--Achar-se-ha aqui? + +--Diga, diga, meu rico principezinho! + +--Principe... meu amorzinho! Diga! Morra depois, mas diga! + +--Mi... nhas... senhoras! Minhas se... senho... ras, se insistem em +absoluto por que lh'o diga, apenas lhes po... derei desvendar uma coisa: +era a mais seductora, a mais virtuosa menina, de quantas... tenho +conhecido em minha vi... vida! + +--A mais seductora... de quantas aqui estão? Quem será? indagam entre si +as damas a trocarem signaes de connivencia. + +--Com toda a certeza que deve de ser aquella que disputa a fama de ser a +primeira beldade de Mordassov, prorompe a Natalia Petrovna a bater as +palmas com aquellas manápolas côr de lagosta e sem tirar os olhos de +cima da Zina. + +E toda a gente com os olhos pregados na Zina. + +--Mas como é, então, que o principe, com uns sonhos assim, não se casa +por uma vez? indaga a Felissata Mikhailovna. + +--Soubessemol-o nós, e que noivazinha lhe não teriamos arranjado! +affirma, d'ali, outra dama. + +--Case-se! case-se, principezinho da minha alma--pipíla uma terceira. + +--Case! case-se!--guincham por todos os lados. Por que é que não ha de +casar? + +--Está... c... claro... por que é que eu me... n... não hei-de casar? +acóde o principe, atrapalhado. + +--Tiozinho! exclama o Mozgliakov. + +--Está... c... claro, meu amigo, já te percebi. O que eu queria +dizer-lhes, minhas senhoras, é que me não posso casar. Concluida esta +deliciosa _soirée_, em casa da nossa amabilissima hospeda, amanhã +tenciono ir até a charnéca, e d'ali, para o es-trangeiro, quero ir +estudar a ins-tru-cção euro-ro-pêa. + +A Zina está enfiada e vibra á mãe uns olhos rancorosos. Maria +Alexandrovna, comtudo, assentou n'uma resolução. Até agora, estava á +espera, a apalpar o terreno, supposto lhe parecesse achar-se +sufficientemente compromettido o negocio e haverem-se-lhe antecipado +seus inimigos. Percebe tudo, finalmente, e, de um golpe, quer acabar com +aquella hydra das cem cabeças. Ergue-se, majestatica, acerca-se da mêsa +a passo firme e com soberbo olhar enterra pelo chão abaixo aquelles +pygmeus que a rodeiam. Reluz-lhe nos olhos o fogo da inspiração. Vae +aniquilar aquella sucia de coscovilheiras peçonhentas, esmagar aquelle +sevandija do Mozgliakov como quem esmága uma barata, e com um golpe +decisivo, reconquistar de todo a influencia que perdeu sobre a pessoa +d'aquelle idiota d'aquelle principe. Claro está que para isso ha mister +de appellar para um atrevimento extraordinario, mas não será isso que +escasseie a Maria Alexandrovna. + +--Minhas senhoras, enceta com modo solemne (Maria Alexandrovna nutre +paixão pela solemnidade), minhas senhoras, tenho estado a ouvir calada +as suas gracinhas e acho que já vae sendo tempo de que eu, pela minha +vez, lhes dirija algumas. Bem sabem que nos achamos aqui juntas, +unicamente por mero acaso. Estimo isso muito... Nunca me haveria +resolvido a tornar publico um tão importante negocio de familia antes de +o exigirem os dictames do mais estricto decoro. E acima de tudo, pedirei +perdão ao nosso distinctissimo hospede. Mas quer me parecer que é elle o +proprio quem, mediante remotissimas allusões a semelhante circunstancia, +me suggere o pensamento de que a formal declaração d'este segredo lhe +será grata, mas que ella lhe inspira apprehensões. Não é verdade, meu +principe, que me não enganei? + +--Está claro... não se enganou... e estimo muito... muito... diz o +principe sem perceber palavra d'aquillo de que se está tratando. + +Maria Alexandrovna, no intuito de melhor dispôr o seu lance, toma o +folego e põe-se a examinar todo o auditorio, todos á uma a escutál-a com +ávida e inquieta curiosidade. O Mozgliakov, todo elle a tremer, a Zina, +muito afogueada, levanta-se... Aphanassi Matveich, n'estes assados, +assôa-se. + +--Sim, minhas senhoras, folgo immenso de as tornar participes d'este +segredo familial. Hoje, depois de jantar, o principe, seduzido pela +formosura de... pelas qualidades de minha filha... conferiu-lhe a honra +de lhe pedir a mão. Principe, conclue ella com um tremor na voz, querido +principe, não me deve querer mal por esta minha indiscreção. O auge do +contentamento, eis o que conseguiu arrancar-me do coração, um tanto +prematuramente, este segredo estremecido, e... qual será a mãe que m'o +leve a mal? Nem encontro sequer palavras que descrever possam o effeito +produzido pela inspirada saída de Maria Alexandrovna. Ficaram todos +varados de espanto. As visitantes, que suppunham assustar Maria +Alexandrovna, deixando-lhe antever o estarem senhoras do seu segredo, +matál-a com a divulgação do segredo, esfacelál-a com o poder unico das +allusões, ficam estupefactas perante uma tão denodada franqueza. Uma tal +valentia era um signal certo de bom exito. + +--Por conseguinte, é por sua propria vontade que o principe vae casar +com minha filha Zina. Ninguem o enganou, ninguem o embriagou... E por +tanto, não foi com esconderijos, á laia de ladrão, que o obrigaram a +tomar estado! Maria Alexandrovna, n'essa conformidade, não se arreceia +seja de quem fôr, e não ha ninguem que possa malograr este casamento. + +Paira um borborinho que desde logo se transforma em jubiloso alarido. A +Natalia Dmitrievna arremete de braços abertos para Maria Alexandrovna, +segue-lhe o exemplo a Anna Nikolaievna, e a Felissata Mikhailovna vem na +trazeira do rancho. Põem-se todos de pé, baralham-se. Das damas, algumas +ha que estão fulas de raiva. Pegam a dirigir parabens á Zina, +atrapalhada, e atiram-se, até, ao Aphanassi Matveich. Maria Alexandrovna +estende os braços com enfase, e á viva força, quasi, agarra-se á filha +aos abraços a ella. Tão sómente o principe, todo elle a rebulir, a +considerar esta scena, de olhos espantados. E d'ahi, agrada-lhe aquillo. +Ao ver a filha nos braços da mãe, saca, até, do lenço e limpa o canto do +olho onde bugalhou uma lagrima. Atiram-se a elle, tambem, para lhe dar +os parabens. + +--Parabens, principe, parabens! guincham por todos os lados. + +--Com que então é certo, sempre vae casar? + +--Sempre se casa, effectivamente? + +--Ora até que se casa, principezinho da minh'alma! + +--Está... c... claro... está... c... claro! responde o principe, encantado +de semelhante enthusiasmo. Confesso-lhe que a sua simpatia me tocou o +coração... Nunca me ha... de esquecer! Encan... tado! Encan... tado! +Fizeram... me, até, vir as lagrimas aos olhos. + +--Venha um beijo, principe! guincha mais que todas juntas a Felissata +Mikhailovna. + +--E confesso-lhe... prosegue o principe, que fiquei pasmado por ver que +a nossa digni... ssima hos... peda, adivinhasse... com tanta +pers... picacia, um sonho tão extraordi... nario, como se fosse ella... +que o sonhou... tal qual--Es... panto... sa pers... pica... cia. + +--Ora esta! E o principe ainda a insistir no tal sonho? + +--Então, vamos, principe, confesse! clama o côro das damas a fazer-lhe +cerco. + +--Deixe lá, principe, é escusado estar com esconderijos, é tempo de +patentear o seu coração, declara em tom categorico Maria Alexandrovna. +Não me escapou a fina alegoria, a delicadeza cavalheiresca, que se +revelam na forma discreta por que tornou publico o seu pedido. Sim, +minhas senhoras, é verdade, hoje ainda, o principe ajoelhou aos pés de +minha filha, e de modo real e verdadeiro, que não em sonho, formulou +solemnemente o seu pedido. + +--Quan... to... ha de mais real... e nas mê... mêsmas circunstancias, +appoiou o principe. Minha me... nina, proseguiu com summa delicadeza +dirigindo-se á Zina cada vez mais atrapalhada, juro-lhe que jamais me +atreveria a proferir o seu n... ôme, se acaso o não tivessem outros... +mencion... ado antes. Foi um sonho de... licioso... uma... de... licia de +um... sonho! E folgo immenso... em ter ensejo... de o manifestar Um +encanto!... Um encanto! + +--Mas, como se intende isto? Elle insiste em se referir ao tal sonho! +murmura a Anna Nikolaievna dirigindo-se a Maria Alexandrovna, inquieta e +um tanto enfiada. + +Mas, ai! O coração de Maria Alexandrovna está alanceado por tristissimos +presentimentos. + +--E então? murmuram as damas a olharem umas para as outras. + +--Ora vamos, principe, profere Maria Alexandrovna com um sorriso +amarello, confesso-lhe que me deixou pasmada.--Admira-me que esteja a +insistir n'essa sorna do tal sonho! Eu até agora, estava na fé, de que +fosse méro gracejo da sua parte... mas... se o é, ha de convir, que se +vae prolongando um tanto fora de proposito... Não posso nem devo admitir +que seja outra coisa além de uma distracção... + +--Deve de ser por distracção, efectivamente, assobia a Natalia +Dmitrievna. + +--E... stá... c... claro!... Di... distracção! repete o principe sem +perceber o que é que d'elle pretendem... Ora... ima... ginem, vou +contar-lhes uma anecdó... ta. Fui convidado pa... ra assistir a um +enterro, em Petersburgo, n'uma casa burguêsa, mas decente, e... e fiz +confusão... suppús que era para festejar o nas... cimento de uma creança, +(o tal dia... nata... licio já lá... ia, havia mais de uma semana)... e fui +comprar um lindo rama... lhete de camelias para a pessoa... fes... tejada. +Entro... e que hei de eu ver? Um su... jeito mui... to digno, de uma certa +edade, estendido em cima da mesa... Fiquei passádo, sem saber onde me +havia de meter e mais o meu ramo. + +--Pois sim, principe, não se trata agora de anecdótas! atalhou Maria +Alexandrovna despeitadissima. Minha filha, louvado Deus, não tem +necessidade de andar á pesca de noivos, mas inda agora, o senhor, em +pessoa, ali ao pé d'aquelle piano, a pediu em casamento. Ninguem o +obrigava... para mim propria foi uma surpreza... mas sou mãe, e ella, é +minha filha... Acaba de referir-se a um sonho; sempre estive na fé de +que fosse uma allusão aos seus esponsorios... Sei e mais que sei, que o +viraram de dentro para fora--desconfio quem fosse--tal qual uma luva, +mas...--queira explicar-se, principe, e queira fazêl-o quanto antes! +Semelhantes gracejos não tem cabimento n'uma casa respeitavel. + +--E... stá.. c... claro! Não são brin... cadeiras para... uma casa +respeitavel, concorda o principe... inconsciente, mas um tanto inquieto. + +--Então, não me responde, principe! Já lhe pedi que quisesse explicar-se +de modo peremptorio: confirme, confirme, desde já, diante de toda a +gente, o facto de haver pedido hoje minha filha em casamento. + +--Es... tá... c... claro... estou pronto a confirmar... Tanto mais, que já +lhes contei tudo, e Felissata Yako... kolevna adivinhou ca... balmente o +meu sonho. + +--Sonho! Qual sonho!? exclama rabiosa Maria Alexandrovna; não foi sonho. +Foi realidade, principe, intendeu? Realidade e mais que realidade! + +--Rea... li... dade... repete o principe erguendo-se da cadeira... Está-se +dando... tudo aquillo de que... tu me preveniste, accrescenta +dirigindo-se a Mozgliakov. Afirmo-lhe, Maria Alexandrovna... que ha +equi... voco da sua parte. Tenho toda a certeza em como foi sonho! + +--Meu Deus! geme Maria Alexandrovna. + +--Não se afflija, Maria Alexandrovna, intervem a Natalia Dmitrievna; ao +principe, varreu-se-lhe da memoria... elle se lembrará. + +--Isso nem parece seu, Natalia Dmitrievna! responde furibunda Maria +Alexandrovna. Isso são lá coisas que se esqueçam? Ora vamos, principe, +deixemo-nos de facecias! Dar-se-ha o caso de que esteja armando em +Lovelace? Mas, tenha a certeza, sem falarmos em que é pouco proprio da +sua edade, juro-lhe, que lhe não ha de valer! Minha filha não é para ahi +qualquer viscondessa francêsa! Não ha ainda muito tempo, lhe estava ella +a cantar uma romança e o senhor de joelhos a seus pés, a formular o seu +pedido de casamento.--Serei eu que estou a sonhar? Fale, principe... +Estarei a dormir, porventura? + +--Es... tá c... claro!... e d'ahi, talvez que não, responde o principe, +desnorteado de todo... Quero dizer... não creio... que estou a sonhar... +pre... sente... mente. Mas... não vê a senhora... que eu, indagora, +estava a sonhar... e depois vi... em sonhos, que eu, a sonhar... + +--É preciso paciencia, meu Deus!... Que quer dizer com isso? Em sonhos, +que eu, a sonhar! Nem o proprio demonio era capaz de o perceber!... O +principe estará a delirar? + +--Está c... claro!... Nem o proprio demonio... E d'ahi... eu é que não +percebo uma pa... palavra, declara o principe a olhar para todos os +lados, inquieto. + +--Mas como é que o principe póde ainda acreditar que é sonho, depois de +eu lhe ter contado os pormenores d'esse tal supposto sonho do qual o +senhor não tinha dado parte a ninguem? + +--Mas quem nos affirma que o não tivesse já contado a alguem, insinua +n'este ensejo a Natalia Dmitrievna. + +--Está... claro... a alguem, confirma o principe. + +--Que comedia! murmura a Felissata Mikhailovna á vizinha. + +--Ah! meu Deus! excede a humana paciencia! vocifera Maria Alexandrovna, +a estorcer as mãos, no auge do exaspero. Se ella até lhe estava a cantar +uma romança; uma romança! Tambem a veria no tal sonho? + +--Está... claro... effectivamente, uma romança, murmura, absorto, o +principe. + +De repente, vem ressuscitá-lo uma reminiscencia. + +--Meu amigo, exclama dirigindo-se a Mozgliakov, tinha-me esquecido +dizer-te, indagora, que ella me tinha cantado uma romança... em que +havia uns cas... tellos... muitos... com um tro... vador... Está... +claro... recordo-me... e por signal... que até chorei... e agora nem sei +já, se seria realidade ou se foi sonho. + +--Tiozinho, responde o Mozgliakov com a maxima tranquilidade que pôde +assumir (com quanto lhe trema a voz) não me parece lá muito grave a +dificuldade. Na realidade, não direi que não tenha ouvido uma romança, +canta tão bem a Zinaida Aphanassievna! Acordar-lhe-hia reminiscencia dos +seus bons tempos de outrora, dos instantes ditosos, talvez que da tal +viscondessa com quem o tio cantava tambem, algum dia, romanças e á qual +se referiu esta manhã. E depois, a dormir, sonharia talvez que estava +apaixonado e que tinha formulado o seu pedido de casamento. + +Maria Alexandrovna fica atordoada com semelhante insolencia. + +--Ai! meu amigo! effectivamente! Ha de ser isso! exclama o principe, +contentissimo. Sim, sim, a dor... dormir!... umas agrad... aveis +sensações... Lembro-me da romança, e eu a querer casar... Um sonho! E +tambem ali estava a viscondessa... Ah! como tu desen... vencilhaste bem +tu... do isso... meu caro! Muito bem! É eu agora estou convencido:--era +um sonho, Maria Vassilievna! Affirmo-lhe que está... equi... vocada: foi +sonho!... eu... nunca seria capaz de estar gracejando... com a sua... +respeita... bilidade. + +--Ah! agora, agora estou vendo quem foi o autor de tudo isto! exclama +fora de si Maria Alexandrovna com os olhos fitos em Mozgliakov. Foi o +senhor, o senhor! homem sem dignidade! Foi o senhor! Enganou este pobre +idiota para se vingar de ter apanhado um não pelas ventas! Mas tu m'as +pagarás, miseravel! Tu m'as pagarás, deixa estar! + +--Maria Alexandrovna, vociféra por sua vez Mozgliakov, vermelho que nem +uma lagosta cozida, são tão... as suas palavras... nem sei até que ponto +as suas palavras... uma senhora da sociedade jámais se permittiria... +Estou defendendo meu tio... e confesse que o querer seduzir de +semelhante modo... + +--Es-tá... c-claro--seduzir... seduzir... de semelhante... modo--mia o +principe, que se ergueu da cadeira e tudo é querer esconder-se por +detrás de Mozgliakov. + +--Aphanassi Matveich--despulmôa-se a berrar Maria Alexandrovna, não +ouves que estão para aqui a desacreditar-me? Perderias tu o sentimento +dos teus deveres, porventura? Não serás tu mais que um cêpo? Para que +estás tu para ahi a piscar os olhos? Outro qualquer no teu logar tinha +já lavado com sangue o ultraje que nos estão fazendo! + +--Minha esposa! enceta com solemnidade Aphanassi Matveich, lisonjeado +por ver que se lembram delle, minha esposa! não seria sonho, +effectivamente? E depois, tu, ao acordar, ficares suppondo que era +verdadeiro... + +Aphanassi Matveich, nem tempo tem de concluir a sua espirituosa +interpretação. As visitantes, até ali, contiveram-se mantendo uns módos +de cortês hypocrisia, mas d'esta vez a risota foi geral. + +Maria Alexandrovna, esquecendo de todo as conveniencias, atira-se ao +marido, para lhe arrancar os olhos, provavelmente; vêem-se na +necessidade de a segurar á força. + +A Natalia Dmitrievna aproveita a circunstancia para entornar uma doze +d'alcatrão no lume. + +--Ah! Maria Alexandrovna, quem nos diz que não foi sonho, +effectivamente? emitte em voz represada. + +--Um sonho? Um sonho o quê? clama Maria Alexandrovna sem perceber. + +--Então! Maria Alexandrovna, são coisas que acontecem. + +--Acontece? Mas que é que acontece? + +--Talvez que a senhora tenha visto tudo isso a sonhar! + +--A sonhar! Eu? A sonhar! E atreve-se a dizer-m'o na cara! + +--E d'ahi, é possivel, insiste a Felissata Mikhailovna. + +--Está... c-claro!... é po... pos-possivel, murmura por sua vez o +principe. + +--Pois tambem elle! Elle! Santo Deus! Maria Alexandrovna enclavinha as +mãos. + +--Não se desconsole, Maria Alexandrovna! Lembre-se de que os sonhos é +Deus que os manda! Não ha coisa nenhuma n'este mundo que possa ir ávante +contra a sua santa vontade... nem é motivo para que se altere. + +--Está... c-claro... não ha motivo... + +--Cuidam talvez que sou alguma doida? consegue apenas silvar Maria +Alexandrovna esganada de raiva. + +Encheu-lhe a medida ás forças semelhante scena. Procura á pressa uma +cadeira e deixa-se cair, exanime. + +Segue-se uma algazarra. + +--Acudiu a tempo o chelique! + +N'este conflicto, porém, eis que surge por entre a balburdia geral, a +intervir, uma personagem muda até então, e se transforma desde logo a +feição da scena. + + + + +XIV + + +Era sobremodo romanesco o caracter da Zinaida Aphanassievna. Não sabemos +se teria abusado da leitura daquelle "pateta do tal Shakspeare", lá, com +o tal seu _utchitelzinho_, mas até agora ainda não havia praticado um +tão heroico acto de loucura como o que praticou n'este conflicto. + +Enfiada, com os olhos a relampejarem-lhe de resoluta, toda ella n'um +tremor, um portento de formosura e de colera, avança, varre com a +provocação nos olhos toda aquella gente em redor de si, e por entre o +silencio geral, dirige-se á mãe a qual, assim que a Zina se levantou, +tornou a abrir os olhos. + +--Para que é estar com fingimentos, mamã? É já tão sujo, tudo isto a que +estamos assistindo! Basta de mentiras! Não vale a pêna estar a tapar +lama com a propria lama. + +--Mas que é isto, Zina! Tu não estás em ti! exclama Maria Alexandrovna, +erguendo-se de repellão. + +--Eu bem a tinha avisado, mamã, de que não podia supportar semelhante +vergonha! Não estejamos a sujar-nos mais do que o estamos já!... +Assumirei a responsabilidade de tudo. Fui, eu, visto que consenti, que +teci toda esta vilissima... intrigalha. A mamã estava na fé de que +trabalhava com o sentido em me tornar feliz, sequer ao menos tem +desculpa: eu, nenhuma! + +--Que vaes tu dizer, Zina! Bem me dizia o coração que me estava ainda +guardado mais este desgosto! + +--É assim mesmo, mamã! Vou declarar tudo! Nem sei como não morri de +vergonha... cobrimo-nos de opprobrio, tanto a mamã como eu... + +--Estás exagerando, Zina! Nem sabes o que estás dizendo! Contar tudo, +para quê?... Não ha a minima necessidade... Quem se cobriu de opprobrio +não fômos nós, e vou provál-o! + +--Deixe-me falar! Não quero estar calada por mais tempo na presença de +uma gente que desprézo e que vieram aqui unica e exclusivamente para se +rirem á nossa custa. Entre estas mulheres, sem excepção, não ha uma +unica a quem assista o direito de me condemnar! Todas ellas estão +prontas a fazer cem vezes peor do que fizemos, eu, e a mamã. Com que +direito poderiam ellas, com que direito se atreveriam a fazêl-o? + +--Então! Já viram? + +--Quem n'a ouve falar!... + +--Mas está nos offendendo!... + +--E ella, sim, que será? + +--Ella sabe lá o que está dizendo? remata a Natalia Dmitrievna. Seja +dito, entre parenteses, que a Natalia Dmitrievna não deixava de ter +razão. Se a Zina considerava aquellas damas indignas de julgar á mãe e a +si, por que era então que se ia confessar na sua presença? Em summa, a +Zina tinha procedido com excessiva precipitação. E mais tarde, era esta, +até, a opinião das pessoas mais sensatas em Mordassov. Tudo se poderia +haver conciliado. É certo que Maria Alexandrovna, pela sua parte, se +havia prejudicado pela sua precipitação e sua altivez. Ter-lhe-hia +bastado meter a ridiculo o idiotazito do ginja e pôl-o a andar. A Zina, +comtudo, de caso pensado e como que para arrostar com o bom senso e a +sisudez mordassovense, dirigiu-se ao principe. + +--Principe, diz a Zina ao velho que desde logo se põe de pé com +deferencia, a tal ponto o impressionou a fisionomia da Zina, queira +perdoar-nos, mas saiba que o enganámos! + +--Não te calarás por uma vez! desgraçada! vocifera Maria Alexandrovna. + +--Minha--menina,--minha... menina... minha... en... en... cantadora... +murmura o principe, pasmado. + +O caracter soberbo, fogoso e mistico da Zina leva-a a transpôr quaesquer +limites. Esquece-se dos transes por que estará passando a mãe ante esta +publica confissão; só vê a salvação, a redempção na franqueza, e vae até +ao fim. + +--Enganámol-o, sim, uma e outra, principe; a mamã resolvendo-me a +aceitar a sua mão, e eu em consentir. Embriagámo-nos, eu, puz-me a +cantar e a fazer tregeitos na sua presença com sentido em o saquear, +conforme se expressou ha pouco Pavel Alexandrovitch, para lhe roubar a +sua fortuna e o seu titulo. Era ignobil! E peço-lhe perdão! E comtudo, +juro-lhe, principe... que a minha intenção... O que eu queria era... mas +é duplicar a injuria o estar a procurar desculpas. E todavia, +declaro-lhe, principe, que se eu tivera casado com o senhor, se eu o +houvesse saqueado e roubado, em compensação, haver-me-hia tornado o seu +brinquedo, a sua criada, sua escrava... A mim propria m'o havia +prometido, e cumpriria o meu juramento... + +Veiu interrompêl-a um deliquio, as visitantes estão de pé, todas ellas, +com os olhos esgazeados. A tão imprevista quanto incomprehensivel +expansão (para ellas) da Zina desorientou-as. O principe, tão sómente, +tem os olhos arrazados de lagrimas, de commovido, supposto não perceba +metade sequer do que ella tem dito. + +--Mas... es... tá... claro... que hei de casar com a menina... com a +minha... l... linda menina, visto que tanto o... o deseja. E isso para +mim re... representa... até, subida hon... ra... Mas, não deixarei... de +insistir em que foi sonho!... Vejo tan... ta coisa, a so... sonhar! Por +que é que se hão-de estar a inquietar? Eu não percebi coisa nenhuma, meu +amigo, prosegue dirigindo-se a Mozgliakov; explica-m'o, se fazes favor! + +--E o senhor, Pavel Alexandrovitch, que se vingou de mim de modo tão +cruel, como é que pôde combinar-se com semelhante gente para me +esfacelar desacreditando-me? Allegava amar-me!... Mas para que estarei +eu para aqui a prégar-lhe moral!... Sou mais culpada que o senhor, +offendi-o; tambem para com o senhor me vali de hyprocrisia, de mentira! +Nunca lhe tive amor, e se eu um dia me resolvesse a desposál-o, seria +unicamente para me ver livre d'esta maldita cidade... Mas declaro-lhe, +que se tal houvesse succedido, teria em mim uma esposa fiel e carinhosa. + +--Zinaida Aphanassiévna! + +--E se ainda me conserva rancor... + +--Zinaida Aphanassiévna!! + +--Se é que, algum dia, prosegue a Zina a rebalsar as lagrimas, se é que +algum dia me teve amor... + +--Zinaida Aphanassievna!!! + +--Zina! Zina! Minha filha! + +--Sou um miseravel, Zinaida Aphanassievna, um miseravel, e nada mais!... + +Produz-se um reboliço estupendo, uma vozearia de espanto, de indignação, +de atroar a tudo. Mozgliakov ficou que nem que fôra de pedra, incapaz de +pensar, de falar. + +Sempre que um caracter fraco e ôco, afeito a constante submissão, se +decide a insurgir-se, pára sempre perante um certo limite. A principio, +a insurreição manifesta-se com summa energia, é a energia do desespero, +comtudo; arremete contra os obstaculos, de olhos vendados, e assumme +sempre fardos pesados demais para os seus hombros. Chega um momento em +que o desatinado se assusta de si mesmo, estaca, como que atordoado, e +diz comsigo: "Mas que estou eu fazendo?" E distende-se o arco, pede +perdão o insurrecto, supplíca, implora que as coisas "voltem a estar +como estavam", comtanto que isso se effectue quanto antes... Foi o que +se deu com o nosso Mozgliakov. Afflictissimo com o desastre de que fôra +autôr, a si proprio se abomina, despedaça-o o remorso, as ultimas +palavras da Zina anniquilaram-n'o de todo. O passar de um extremo a +outro extremo representa para si obra de momentos. + +--Sou um jumento, Zinaida Aphanassievna! Um jumento, nem mais nem menos! +Ou ainda peor! Mas hei de provar-lhe, Zinaida Aphanassievna, que hei de +saber tornar-me um homem de bem!... Saiba que o enganei--tiozinho! Fui +eu, fui eu que o enganei!--O tio não estava a sonhar, e pediu +effectivamente a mão de Zinaida Aphanassievna! Quando lhe disse que fora +sonho, enganei-o de meio a meio... + +--Mas que coisas tão espantosas que estão vindo a lume! assobia a +Natalia Dmitrievna. + +--Es... tá... cclaro... um sonho... responde o principe... Mas socéga, por +favor! Assustaste-me... pa... pa... lavra de honra! E que bella voz que tu +tens! Estou pronto a ca... sar, se fô... fôr... necessario... Mas tu foste +o pro... prio a af... firmar-me que... que foi sonho! + +--E como é que eu agora o hei de despersuadir? Que hei de eu fazer? +tiozinho, considére em que se trata de um negocio muito sério, de +familia! + +--Está... cclaro... Pen... sarei. Espera ahi! Deixa ver se me vou +recordando... por p... partes... Pri... meiramente, o Phio... philo, o meu +cocheiro. + +--Não se trata agora do Phiophilo, querido tio! + +--Está... cclaro!.. Não se trata... já se vê... que era de Napoleão... E +depois, tomámos chá... Appareceu uma se... senhora... e comeu-nos o +açucar... todo... + +--Não é nada d'isso, tiozinho, destampa para ali o Mozgliakov, fóra de +si, quem lhe contou essa historia foi a Maria Alexandrovna, a respeito +da Natalia Dmitrievna! Eu estava ali, escondido, atrás da porta; ouvi +tudo! + +--Ora esta, Maria Alexandrovna! agarra no ar a Natalia Dmitrievna, com +que então foi pespegar ao principe que eu lhe tinha furtado o açucar? +Eu, então, venho a sua casa para furtar açucar! + +--Passa fora! mal encontra forças para emitir Maria Alexandrovna. + +--Não, lá isso, tenha paciencia, Maria Alexandrovna, não lhe assiste o +direito de se negar a responder. Eu, então, furtei-lhe o açucar? Estou +farta de saber que não faz senão cortar-me na pelle, ha muito tempo!... +Sou eu, então quem lhe furto o açucar!... + +--Mas... mi... minha senhora... isso de açucar... era sonho... o tal +sonho... + +--Dorna d'uma figa! resmunga entre dentes Maria Alexandrovna. + +--Eu lhe direi quem é a dorna! ulula a Natalia Dmitrievna. E a senhora, +que será então? Ha muito tempo que me pôz essa linda alcunha! Mas, +sequer ao menos, tenho um marido, emquanto a senhora se contenta com um +cêpo. + +... Es... tá... cclaro... Tam... bem me lembro da Dorna... + +--Ah! elle é isso?... Tambem veiu meter a sua colherada?--Atreve-se a +injuriar uma senhora fidalga?! Com que, então, sou uma dorna; olha quem +fala, que nem sequer tem pernas! + +--Es... tá... cclaro... Sem pernas... + +... Como foi... que disse? + +--Pois está sabido--nem pernas--nem dentes--Ora apanha! + +--E um olho, só!... accrescenta Maria Alexandrovna. + +--Um espartilho a suprir as costellas! + +--Com a cara de mólas, toda ella! + +--E nem um pello nessa careca! + +--O proprio bigode, é postiço, pateta das duzias, agrava Maria +Alexandrovna. + +--Res... peitem--o meu na... nariz... sequer ao menos! É verdadei... ro! +exclama, o principe banzado de todo.--Fôs... te... tu que me +de... nunciaste, meu amigo! + +Para que fôste contar que o meu--cabêllo era--po... postiço? + +--Tiozinho! + +--Não, meu amigo, já aqui não posso ficar... leva-me para qu... alquer +parte... Que gente! + +Para onde tu me trouxeste!... Valha-me Deus! + +--Idiota! vocifera Maria Alexandrovna. + +--Ai! meu Deus! suspira o coitado do principe. Já nem sei porque seria +que aqui vim parar--mas vou ver se me lembro.--Leva-me d'aqui para +fora--mano! Faziam-me em bo... bocadinhos!--E depois, é urgente que eu vá +anotar um... uma ideia... ca... capital. + +--Venha d'ahi, querido tio, ainda estamos a tempo. Vem commigo ahi para +um hotel, qualquer, e não me aparto do tio... + +--Mas... está... cclaro, com o senhor... + +Adeus minha lin... da menina! + +... A menina... e só a menina é a unica... que é virtuosa. É uma.. +nobi... lis... sima donzella! + +Vamos lá... meu caro... + +Ai! meu Deus! + +Não me abalançarei a descrever o epilogo da tão desagradavel scena, que +se seguiu á retirada do principe. Os visitantes foram-se safando n'um +berreiro de estrugir a tudo. Maria Alexandrovna ficou sósinha, em meio +d'aquelle seu desastre. Já é infelicidade! Poderío, riqueza, gloria, +foi-se tudo no espaço de um dia! Percebia e mais que percebia que nunca +mais levantaria cabeça! A tirannia por ella exercida durante tão longo +prazo sobre Mordassov estava aniquilada de todo. Que lhe restava? Não +era filosofa, Maria Alexandrovna. Passou uma noite pavorosa. +Desacreditada a Zina, um nunca acabar de linguarice! _Hórror, hórror, +hórror!_ Na minha qualidade de historiografo sincero, cumpre-me +mencionar que Aphanassi Matveich esteve a tiritar toda a santa noite no +cubiculo, ás escuras, onde se fôra alapardar para conservação dos seus +olhos. + +O dia immediato não amanheceu fagueiro: isto de desgraças vem sempre aos +pares. + + + + +XV + + +Desde as oito horas da manhã que corria pela cidade um boato +inacreditavel. Repetia-o cada qual com maligno contentamento, conforme é +da praxe sempre que se trata d'algum escandalo do qual foi victima +qualquer pessoa d'amizade. + +--Perder áquelle ponto a vergonha! + +--Rebaixar-se daquella maneira! + +--Arrostar assim com todas as conveniencias! + +--Que costumes! + +Eis o que succedera: + +Logo de manhanzinha, ahi pelas sete horas, salvo erro, entrava em casa +de Maria Alexandrovna uma pobre vélhita, afflictissima, a supplicar da +aia que fosse quanto antes accordar a _barichina_[15], mas esta, tão +sómente, ás escondidas de Maria Alexandrovna. A Zina, assustada, +accudira desde logo. Cae-lhe de joelhos aos pés a velhota, aos beijos a +elles, a inundar-lh'os de lagrimas, a exorar-lhe que venha ver o Vassia. + +--Passou tão mal a noite! Suppõe-se até que não chega ao outro dia! +Accrescenta a velha que foi o proprio Vassia quem manifestou desejos de +tornar a ver a sua amada, antes de morrer; e supplica-lhe em nome do +passado, e que, se ella se negar, morrerá no auge do desespero! + +A Zina despede por ali fora, sem dizer nada á mãe. Vae de corrida até o +extremo de um dos arrabaldes mais pobres de Mordassov. Ali, n'uma baiuca +muito velha e escalavrada, á qual suprem as janelas umas como que ráchas +abertas nas paredes, n'um cochichólo muito baixo de tecto e fedorento, +meio atravancado com uma fornalha, jazia, em cima de uma camada de +taboas, cobertas com uma enxerga, delgada que nem uma folha de papel, um +môço, escondido debaixo de um capóte todo elle farrápos. Tinha livido e +refegado o semblante, os olhos, a luzir com o fôgo da fébre, as mãos, +seccas e transparentes. Quasi que nem respirar podia; era o estertor. +Comquanto o houvesse desfigurado a doença, conservava retraços de +formosura. Triste espectaculo, na verdade, aquelle rosto de tisico, do +moribundo. A edosa mãe que, ainda hontem, acreditava na cura percebe +finalmente que vae em breve ficar sósinha n'este mundo. Com os braços +cruzados, olhos sêcos, para ali está, sem comprehender, sem poder +desviar a vista de cima do enfermo, aniquilada, perseguida pela visão da +cova, na terra fria do velho cemiterio atascado de neve. + +Não olha para ella o Vassia, irradia-lhe no semblante a ventura: até que +por fim vê aquella a quem, vae n'um anno, durante aquellas suas eternas +noites de doente apenas viu em sonhos. Percebe que ella lhe perdoou, +visto que veiu, visto que lhe aperta as mãos, visto que o contempla com +aquelles seus lindos olhos, a chorar e a rir ao mesmo tempo. Resuscita +de todo na alma do enfermo o passado: desperta-lhe dentro d'alma a vida +como se quiséra tornar-lhe sensivel a que ponto é triste o ter que a +deixar. + +--Zina! Zinotchka! Não chores... não me estejas a lembrar que vou +morrer... deixa-me contemplar-te, pensar que me perdoáste. Vou morrer +sem pensar que morro, até, beijando-te as mãos... Estás tão magrinha, +Zinotchka! Anjo querido, a bondade com que tu estás a olhar para mim! +Lembras-te do gosto com que te rias, d'antes? Ai! Zina! Eu já nem sequer +te peço perdão!... Nem quero lembrar-me do que aconteceu... eu é que m'o +não perdôo, a mim proprio... E quanta noite sem poder dormir, Zina! +Quanta noite não levei eu a pensar, a recordar-me, a estalar, quasi, com +saudades!... É melhor que eu morra! Sou incapaz de viver, Zinotchka! + +E a Zina, lavada em lagrimas, muda, a apertar nas suas as mãos do seu +amado, como se quiséra arrancál-o á morte. + +--Então, não chores! insistia o enfermo. Eu morrerei hoje, porventura? +Se ha tanto tempo que está morta a felicidade! És mais intelligente e +vales mais do que eu... bem sabes que valho menos do que tu, por que +será que me tens amor? Bem sabes que te não mereço! Oh! quanto me não +tem feito padecer semelhante pensamento! Ah! querido amor, foi um sonho +a minha vida: não vivi, sonhei! E eu a desprezar a multidão: e que +razões tinha eu para ser tão soberbo? A purêza do meu coração? A nobreza +dos meus sentimentos? Mas se tudo isso tinha apenas a consistencia dos +meus sonhos, nada mais, Zina! + +--Basta! basta! Matas-me! + +--Não me interrompas, Zina!... Perdoáste-me, bem sei: e ha já muito +tempo, talvez, mas avaliáste-me e comprehendeste o que eu era, e é isso +que me atormenta. Sou indigno do teu amor, Zina! Fôste sempre leal e +generosa; fôste ter com tua mãe e declaraste-lhe o teu firme desejo de +casar commigo, ou com mais ninguem: e cumpriste a palavra dada, pois que +para ti, palavra e acção são uma e a mesma coisa! Ao passo que eu,... +eu! Não sabes, eu até hoje não tinha comprehendido, sequer, a extensão +toda do sacrificio que fazias em ser minha mulher. E lembrar-me eu de +que tu, commigo, te arriscavas a morrer de fome! Mas se a mim parecia-me +que nada ha n'este mundo que se compare á honra de ser esposa de um +grande poeta... sem nome,... é certo! Não quiz intender o motivo que +alegavas para retardar o nosso casamento. Tu a padeceres por minha +causa, eu a martirizar-te, a exprobar-te, a desprezar-te... até que por +fim te ameacei com aquella carta... Eu, n'esse instante, nem sequer +cheguei a ser um miseravel, mas sim um ente abjecto, e nada mais! Ah! +nem quero pensar até onde iria o teu desprezo! Não, não! É bom que eu +morra! Obrigado por não haveres querido pertencer-me! Iriam correndo os +annos, e quem sabe se eu afinal não viria a ver em ti um tropêço ao meu +porvir. Sim, antes assim! E agora, o amargor das minhas lagrimas, sequer +ao menos, purificou este meu coração. Ah! Zina! Concede-me um quinhão no +teu amor, tão sómente, no teu amor de algum dia!--N'esta hora +derradeira, sequer ao menos! Sou indigno do teu amor, bem o sei! mas... +mas... mas... ai meu anjo! + +E a Zina, desfeita em pranto, a escutar. Tentava interrompêl-o, elle +porém, ia proseguindo... supplice, a gesticular, e aquella sua voz +debil... abafada e sibilante,... fazia mal á Zina... + +--Não me tiveras tu encontrado, e não me terias amado, e não morrias... +disse a Zina. Ah! Oxalá nunca nos tivessemos encontrado! + +--Não, meu amor, não! Não te estejas arguindo da minha morte! A culpa +foi minha, e só minha! O amor proprio... o romantismo!... Nunca te +contaram, Zina, a minha estupida historia? Existiu aqui, ha três annos, +um prisioneiro, um miseravel, um ladrão. Mas no dia em que chegou o +castigo, faltou-lhe o animo. Sabendo que não levam a justiçar um +enfermo, alcançou uma garrafa de vinho, deitou-lhe de infusão tabaco e +enguliu-o. Tomaram-n'o uns vomitos que duraram tanto que principiou a +escarrar sangue e deu cabo dos pulmões. Levaram-n'o para o hospital e, +d'ali a dias, morreu tisico. Pois bem! Occorreu-me á memoria esse +ladrão, no dia em que se deu aquelle caso da carta... E resolvi acabar +commigo da mesma maneira. E por que foi que eu, de proposito, escolhi a +tisica? Por que foi que me não enforquei ou me não deitei a afogar? +Seria porque me assustasse uma morte tão abrupta? Talvez; mas a mim +quer-me parecer que concorreriam, e não pouco, para isso, as minhas +ideias romanescas. Não me largava este pensamento: Que morte tão bella +não será a minha, estirado como agora o estou, n'uma cama, com o +estertor da tisica!... E tu, ao pé de mim, a lamentar-me, e a padecer +com a ideia de que eras talvez a causa da minha doença! E eu a ver-te +entrar por ali dentro, arrependida, ajoelhar á beira do meu leito... E +eu a perdoar-te e a expirar nos teus braços!... Toleima, Zina, pois não +era? + +--Esquece-te de tudo isso, nem me tornes a falar das tuas culpas, que tu +estás a exaggerar; lembrêmo-nos dos momentos ditosos, dos dias de +ventura. + +--Não m'o perdôo, meu amor, e é por isso que falo a semelhante respeito. +Ha já dezoito mêses que te não via. Queria alliviar este meu coração! +Durante esse tempo todo, eu para aqui, sósinho, e não houve um só +instante, em que eu não pensasse em ti, meu amor. O que não desejaria eu +fazer para reconquistar a tua estima? Até ao derradeiro instante não +acreditei que morria; não me entreguei á cama desde logo, andei a pé, +por muito tempo, com o peito escangalhado. E que sonhos tão ridiculos! +Ás vezes suppunha ser um grande poeta e em vesperas de publicar um poema +como ainda não tinha apparecido outro egual n'este mundo, que ninguem +tivera genio para o escrever. E eu a pensar que me iriam n'elle todos os +meus sentimentos, a minha alma, toda inteira, e que, d'este modo, me +acharia sempre a teu lado, e que qualquer que fosse o sitio em que te +encontrasses, os meus versos ir-te-hiam recordar a minha existencia, e o +meu sonho unico era acreditar que tu em conclusão poderias dizer: "Não, +elle a final não é tão mau como eu o suppunha". Toleima, Zina, toleima, +pois não é? + +--Não, não, Vassia, exclamava a Zina. + +E debruçada sobre o peito d'elle, pôz-se-lhe aos beijos ás mãos. + +--E o ciume! Como me atormentava o ciume durante esse tempo, todo! Eu, +se tivesse ouvido falar no teu casamento, caía morto, redondamente!... E +eu a vigiar-te, a espreitar-te... Era ella quem lá ia (apontando para a +mãe). Tu nunca tiveste amor ao Mozgliakov, pois não é verdade? Ai! meu +anjo! Lembrar-te-has tu de mim quando eu já não fôr d'este mundo? +Lembras, sim, que eu bem sei! Mas os annos hão de ir passando, +arrefecer-te-ha esse teu coração, o inverno ir-te-ha tomando posse da +alma, e olvidar-me-has, Zina!... + +--Não, não, nunca! E nunca me hei-de casar, tem a certeza!... Foste o +meu primeiro amor e serás o derradeiro. + +--Tudo morre, Zinotchka, tudo, até a propria recordação, até os mais +nobres sentimentos. Dão logar a um certo raciocinio: frio, que acalma as +saudades. Insurgirmo-nos, para quê? Trata de aproveitar a vida, ama, sê +feliz. Ama um vivo! Para que serve o teu amor a um morto?--E comtudo, +não me esquéças de todo! Tivémos horas atribuladas, é certo, mas quantos +dias de tanta doçura? Ah!--Foram-se de uma vez para sempre!... Escuta,... +amei sempre o pôr do sol... Oh! não!... morrer, por quê?... Ah! +viver, viver! Lembra-te da primavera! Do sol! Tão lindo! Das flores! +Vivemos por uns tempos n'uma festa! E agora, olha! Olha! + +E o pobre enfermo a apontar com a mão diáfana o vidro empanado pela +giada. Depois agarrou-se ás mãos da Zina e entrou a chorar com amargor. +E os soluços a esfacelarem-lhe o já dilacerado peito. + +E assim se passou todo o dia: A Zina a dizer-lhe que jamais o olvidaria, +que a ninguem n'este mundo viria a dedicar amor egual áquelle que a elle +lhe dedicára. E elle a acreditál-a, a sorrir-lhe, a beijar-lhe as mãos. + +N'este meio tempo, Maria Alexandrovna, inquiéta, havia já mandado por +mais de dez vezes indagar o que seria feito da Zina, a supplicar-lhe que +voltasse para casa, que não acabasse de se desacreditar na publica +opinião. Até que por fim, ao lusco fusco, resolveu-se, esparvoada de +receio, a ir, em pessôa, em procura da filha. Exorou-lhe de joelhos; a +Zina a ouvil-a sem a intender. Maria Alexandrovna saíu desesperada. A +Zina estava decidida a passar a noite junto do moribundo. Não lhe largou +da cabeceira. O estado do infermo ia peorando a olhos vistos: quando +rompeu a madrugada, quasi que nem conservava sopro de vida. E não +obstante, viveu ainda um dia inteiro. Porém, no momento em que o sol no +occaso abrasáva as vidraças, exalou-se a alma com os ultimos raios. + +Deu-se então horrivel scena. A edosa mãe abraçou-se com o corpo do +filho, e, voltada para a Zina: + +--Fôste tu que o deitaste a perder, maldita! clamou. + +A Zina, porém, não ouvia coisa nenhuma; estava para ali, qual estatua +insensivel, como se, a ella, a alma a tivera deixado tambem. Até que por +fim, abaixou-se, fez sobre o defunto o signal da cruz, beijou-o na +testa, e saíu do quarto. + +Tão tremendas sensações, e aquellas duas noites de véla, quasi que a +haviam enlouquecido de todo... e depois, sentia-se prestes a entrar em +um novo viver, triste, ameaçador. + +Não teria ainda andado dois passos, eis lhe surge na frente o Mozgliakov +como se com elle se abrira o chão. + +--Zinaida Aphanassievna, disse com timidez, rodando a vista para todos +os lados, Zinaida Aphanassievna, sou um jumento; isto é, não é isto +que... Se me dá licença, não serei um jumento, visto que procedi +briozamente, apezar de todos os pezares... Mas lá que fui um jumento, +fui... e estou mais que arrependido... Está-me a parecer que estou a +meter os pés pelas mãos, Zinaida Aphanassievna. Perdoe-me, atendendo a +este concurso de circunstancias... + +E a Zinaida, inconsciente, a olhar para elle, e a seguir seu caminho, +sem tugir. Como no passeio não houvesse logar para dois, Mozgliakov +desceu para a calçada. + +--Zinaida Aphanassievna--proseguiu o mancebo, se m'o consente, estou +pronto a renovar o meu pedido, pronto a esquecer tudo, a +perdoar-lhe--com uma condição:--Ficará tudo sendo segredo por emquanto. +Ausenta-se d'esta terra o mais breve possivel, eu sigo atras, ás +escondidas, casamos para ahi seja onde fôr, sem que ninguem dê por isso, +e vamos para Petersburgo. E então! Que me diz? Consente, Zinaida +Aphanassievna? Responda, depressa, por quem é! Não posso esperar; +poderiamos ser vistos. + +A Zina não respondeu: olhou para o Mozgliakov, tão somente, mas fêl-o, +porém, de modo tal, que elle comprehendeu desde logo, cumprimentou-a e +sumiu-se por detrás da primeira esquina. + +"Ora esta! matutava; ella, ainda não haverá dois dias, a lançar em rosto +a si propria as culpas todas, e agora!..." + +N'este comenos, em Mordassov, precipitavam-se os acontecimentos. + +O principe, acarretado pelo Mozgliakov para o hotel, n'aquella mesma +noite caíu perigosamente enfermo. Os Mordassovenses só vieram a ser +informados do caso ao romper do dia. Kalist Stanislavitch não largava a +cabeceira do doente. Ao anoitecer, effectuou-se uma conferencia dos +medicos todos de Mordassov. Os convites para comparencia eram redigidos +em latim. E não obstante, a despeito do latim, o principe achava-se em +estado de delirio, e tudo era pedir ao Kalist Stanislavitch que lhe +cantasse uma certa romança, a fallar a respeito de chinó e bigode +postiço e, de vez em vez, muito assustado, soltava uns berros. +Concluiram os medicos que era uma inflammação do estomago, resultante do +excesso de hospitalidade mordassovense, e que d'ali tinha passado á +cabeça. Alegaram, tambem, não sei com que fundamentos, um tal qual abalo +nervoso. E d'ahi, não se esqueceram de notar que o principe havia muito +que manifestava predisposições para a morte e que, por conseguinte... +está claro!--e que por conseguinte, morria. Esta ultima hypothese +pareceu ter certo fundamento: o pobre do ginjinha expirou ao terceiro +dia, ahi pelo anoitecer. Obito a tal ponto inesperado consternou +Mordassov. Acudiram em chusmas ao hotel, discutiam, abanavam a cabeça, e +concluiram acusando directamente "os assassinos do principe, coitado!" +(aludindo assim a Maria Alexandrovna e á filha). + +Concordava toda a gente em que tão escandalosa historia não deixaria de +dar brado, e podia, até, "ir muito longe". + +Mozgliakov nem sabia já que fazer á sua vida. A situação, +effectivamente, antolhava-se perigosa. Não fôra elle quem accarretara +com o principe para casa de Maria Alexandrovna? Não fôra elle tambem que +carregara com elle para o hotel? Não sabia o que havia de fazer com o +cadaver, onde o enterrar, a quem informar. E de mais a mais, como +passava por ser sobrinho do principe, o seu medo todo era não se +lembrassem de o accusar de ter morto o veneravel ancião. + +Eis que de repente mudam as scenas. Uma bella manhã, chega á cidade um +viajante, desconhecido. E Mordassov, em peso, pespegado á janella, a +commentar o adventicio. + +--O tal viajante era nem mais nem menos que o celebre principe +Chtchepilov, parente do defunto, sujeito de seus trinta e cinco annos, +usando dragonas de coronel e as agulhetas de ajudante de ordens. Aquella +gran-cruz compenetrava de um respeitoso pavor a todos os +_tchinovnicks_[16] do logar. O prefeito de policia por pouco não +indoidece. + +Em breve se veiu a saber que o principe vinha de S. Petersburgo e já +havia passado por Dukhanovo. Não encontrando ali ninguem, viera +seguindo as piugadas do principe até Mordassov, onde o surprehendera a +fatal noticia. Tomou desde logo a tudo sobre si, e Mozgliakov retirou-se +muito encolhido em presença do lidimo sobrinho. + +O illustre defunto foi trasladado para o mosteiro. Ao outro dia, a +cidade em peso congregou-se a ouvir a missa funeraria. Entre as +senhoras, corria que Maria Alexandrovna compareceria em pessoa na +egreja, para pedir perdão alto e bom som perante o caixão, em +conformidade com as exigencias da lei. Escusado será dizer que tal Maria +Alexandrovna não appareceu. + +Fôra para o campo e levára a Zina, parecendo-lhe insustentavel a +situação na cidade. Lá da sua aldeia, ia recolhendo com inquietação as +atoardas e mandava tomar informações. + +Do mosteiro a Dukhanovo, o caminho passava a uma versta das janellas de +Maria Alexandrovna. Teve pois occasião de ver desfilar o prestito +funebre. Atrás do féretro seguia uma longa cauda de trens. E por largo +espaço, n'aquelle campo branco de neve, foi perfilando aquelle seu vulto +negro, lento e majestoso, o carro melancólico. + +D'ali a oito dias, Maria Alexandrovna, com a filha e Aphanassi Matveich, +transferiu-se para Moscou. A aldeia e a casa foram postas em leilão. + +E assim perdeu para sempre Mordassov uma senhora, o _mais comme il faut_ +possivel! + +O caso não escapou a commentarios; nem faltou quem affirmasse que o +Aphanassi Matveich se achava tambem á venda juntamente com a aldeia... + +Rodou um anno, outro ainda, e ninguem tornou a falar em Maria +Alexandrovna. + +E comtudo, correu que havia adquirido outra aldeia em outro governo, e +que outra capital de districto não tardaria em tremer entre as suas +potentissimas mãos. A Zina estaria ainda á espera de noivo. + +O Aphanassi Matveich... + +Mas não nos tornemos éco de boatos sem fundamento. É falso tudo isso. + + * * * * * + +Já lá vão três annos desde que eu escrevi as linhas que acabaes de ler. +Quem me diria que ainda havia de vir a folhear o manuscripto para lhe +accrescentar ainda mais uma lauda? + +Mas vamos ao facto: + +Principiarei por Pavel Alexandrovitch Mozgliakov. + +Ao ausentar-se de Mordassov, foi direitinho a Petersburgo, onde alcançou +o logar que lhe andava prometido havia muito tempo. Não tardou em se lhe +franquearem as portas da sociedade, infronhou-se n'umas intrigalhas, +guindou-se ás alturas de espirito do século, tornou a apaixonar-se, +renovou o seu pedido, voltou a apanhar um não pelas ventas, enguliu-o, e +não podendo digeril-o, sollicitou o ser incorporado a uma expedição +enviada a um dos cantos mais remotos d'este nosso paiz sem limites. + +O corpo expedicionario transpôz sem novidade de maior florestas e +desertos, alcançando a capital da longinqua região. + +Foi acolhido pelo general-governador. + +Era um homem magro e de semblante severo, um velho militar, ferido em +diversas campanhas, condecorado com dois cráchás e com uma cruz branca. +Convidou a todos os _tchinovniks_ para um baile effectuado aquella mesma +noite. + +Pavel Alexandrovitch estava encantado. Envergara a sua casaca +petersburguense, com a qual contava para produzir immenso effeito, e deu +entrada nas salas nobres com modo desassombrado. Não tardou porém a +perder o aprumo em presença de tanta dragona de cachos e de tanta farda +enfeitada de commendas. Cumpria-lhe ir fazer a sua venia á esposa do +governador, nóva, diziam, e formosissima. Aproxima-se, muito senhor de +si,--mas--de subito,--escancara a bôca, e fica pregado ao chão, de +assombrado. Com um sumptuoso vestido de baile, surge-lhe na frente a +Zina, feraz, soberba, linda, e resplandecente de joias, toda ella. Nem +conheceu o Pavel Alexandrovitch, os seus olhos nem se detiveram sequer +no semblante de mancebo. Mozgliakov recuou e foi perder-se entre a +turba-multa, e soube da bôca de um juvenil _tchinovnick_ coisas +interessantissimas. + +Soube que o governador era casado ia já em dois annos, desde uma viagem +que fizéra a Moscou. Desposara uma joven muito rica, de optima familia. +A generala era muito soberba e só dansava com generaes, (havia nove no +baile). A generala tem em sua companhia a mãe, senhora intelligentissima +da mais alta aristocracia, mas que se submete á vontade da filha. E +d'ahi, o general extasia-se tambem deante d'esta. Mozgliakov referia-se +ao Aphanassi Matveich, mas n'aquella região remota ninguem dava noticia +delle. + +Um tanto restabelecido d'aquelle seu sobresalto, Mozgliakov deu uma +volta pelas salas e lobrigou Maria Alexandrovna, vestida com singeleza +e, muito animada, a falar com uma personagem graúda. Faziam-lhe cerco +varias senhoras que lhe sollicitavam a boa sombra. Maria Alexandrovna +era amavel com toda a gente. + +Mozgliakov arriscou-se e foi-se-lhe apresentar. Maria Alexandrovna teve +assim a modos de um estremeção, mas sopitou-se, acto-continuo. Dignou-se +reconhecêl-o e pediu-lhe novas dos seus amigos de Petersburgo. A +respeito de Mordassov, nem palavra e foi como se tal coisa não +existisse, em conclusão, proferiu o nome de um qualquer principe +estranho ao Mozgliakov, voltou-lhe as costas sem affectação, +dirigindo-se a uma personagem graúda de cabello grisalho e aromatizado, +e d'ali a instantes, dir-se-hia haver-se esquecido de todo de Pavel +Alexandrovitch, que ficou para ali com cara de tolo, diante della. +Mozgliakov, engatilhando um sorriso sarcastico, e de chapeu na mão, +regressou para a sala nobre. Não sei dizer o motivo, mas considerava-se +offendido e não se prestou a dansar. Nunca mais lhe desampararam o +semblante quer uns ares tristes e de distracção quer um méfistofélico +sorriso! Recovado em pinturesca atitude a uma columna, (parecia que de +proposito, tinha columnas o salão), e toda a santa noite, horas a +seguir, para ali se deixou estar no mesmo posto, a seguir com os olhos a +Zina. Tempo perdido, infelizmente! Todas aquellas artimanhas, aquelles +tregeitos todos, aquelles ares romanticos e de nimia decepção... etc... +etc... nada lhe valeu... A Zina nem sequer deu fé da sua presença. Até +que por fim, estafado, exasperado, com os pés dormentes em resultado da +immobilidade, faminto, pois não tinha ceado a fim de melhor sustentar o +seu papel de amante dolorido, recolheu para sua casa, derreado, abatido. +E esteve a pé horas esquecidas, a matutar no passado... Logo no dia +immediato, pediu transferencia e alcançou uma missão que o reconduziu a +Petersburgo. Voltou a serenidade a entrar-lhe na alma assim que voltou +costas á cidade. Lá ao longe, o espaço, o infinito, o deserto, a +denegrida neve das florestas nos confins do horizonte. Ao som das patas +dos cavallos a chofrarem, e a acompanharem o retinir e o telintar das +campainhas. Pavel Alexandrovitch esteve pensativo, por instantes, mas +depois, adormeceu muito socegado da sua vida. + +Acordou na terceira muda, fresco, bem disposto, e a pensar noutra coisa. + + +FIM + + + + + [1] Mestre escola + + [2] Proprietario territorial. + + [3] Poeta russo. + + [4] Sacristão. + + [5] Diminuitivo offensivo de Natalia. + + [6] Diminuitivo offensivo de Sonia. + + [7] Diminuitivo offensivo de Maria. + + [8] Dansa nacional russa. + + [9] Mulher de mujik. + + [10] A filha do principe Kotchbey. + + [11] Até mais ver. (em allemão) + + [12] Modo de dizer russo--por: _a minha vida acabada_. + + [13] Pelissa. + + [14] (Camponêsa.) + + [15] A menina. + + [16] Funccionarios. + + + + +EXCERPTO DO NOSSO CATALOGO + + +Bibliotheca Moderna de Romances Nacionaes e Estrangeiros + +200 réis fortes o volume de 200 a 250 paginas + +Volumes publicados: + +*Os Ex-homens*--_Maximo Gorki_--1 volume. + +*Angustia*--_Maximo Gorki_--1 volume. + +*Na Prisão*--_Maximo Gorki_--1 volume. + +*Varenca Olessova*--_Maximo Gorki_--1 volume. + +*O que eu penso da guerra*--_Conde Leão Tolstoi_--1 volume. + +*O Calvario*--_Octave Mirbeau_--1 volume. + +*O Filho de Napoleão*--Carolus--1 volume. + +*O Cerco de Paris*--_Alphonse Daudet_--1 volume. + +*O Coronel Chabert*--_Honoré de Balzac_--1 volume. + +*Historia d'um Crime*--_Maximo Gorki_--1 volume. + +*Os Estranguladores de Bengala*--_L. Boussenard_--2 volumes. + +*A Cortezan de Sagunto*--_V. Blasco Ibañez_--2 volumes. + +*A Feira das Vaidades*--_W. Thackeray_--3 volumes. + +*Um club da má-lingua*--_Theodoro Dostoievsky_--1 vol. + + +Modern Style Bibliotheca + +*Rua da Paz (Mercados d'Amor)*--_V. du Saussay_--1 volume illustrado com +22 esplendidas gravuras de Ch. Atamian, *1$000 réis fortes*. + +*O Querido das Mulheres (Romance vehemente)*--_Jerôme Monti_--1 volume +illustrado com 26 bellas gravuras de Ch. Atamian, *1$000 réis fortes*. + + +*A Russia Vermelha*--_John Foster Fraser_--1 volume illustrado com 56 +gravuras, *1$000 réis fortes*. + +*A Cura Natural*--_Mich Larsen_--1 volume de 180 paginas, *400 réis +fortes*. + +*Manual da Sciencia da expressão do rosto*--_L. Kuhne_--*700 réis +fortes*. + +*Cathecismo d'Agricultura*--_A. de Sousa Figueiredo_--1 volume *200 réis +fortes*. + +*Duas mil leguas no Hindustão*--_Hypacio de Brion_--1 vol. formato +album, illustrado com 74 gravuras, *2$000 réis fortes*. + +*Jesus Christo*--_Luiz Veuillot_--1 volume illustrado com 180 gravuras, +ricamente encadernado, dourado por folhas, *13$500 réis fortes*. + +*O Melro Branco*--_Julio Barrili_--1 volume in-8.º grande, com +esplendidas illustrações de _Bonamore_, *1$800 réis fortes*. + +*Orlando Furioso*--_Ariosto_--3 volumes illustrados com 81 magnificas +illustrações, *12$000 réis fortes*. + +*Terra Illustrada*--_Onésime Reclus_--1 volume de 1.252 paginas com 600 +finissimas gravuras, *11$000 réis fortes*. + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Um club da Má-Lingua, by +Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UM CLUB DA MÁ-LINGUA *** + +***** This file should be named 31657-8.txt or 31657-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/1/6/5/31657/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/31657-8.zip b/31657-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..6995c47 --- /dev/null +++ b/31657-8.zip diff --git a/31657-h.zip b/31657-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..88bdea2 --- /dev/null +++ b/31657-h.zip diff --git a/31657-h/31657-h.htm b/31657-h/31657-h.htm new file mode 100644 index 0000000..8a67c20 --- /dev/null +++ b/31657-h/31657-h.htm @@ -0,0 +1,6127 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" + "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>Um Club da Má-Lingua, por Dostoyevsky</title> + <meta name="Author" content="Dostoyevsky"> + <meta name="Edition" content="Lisboa. 1908. «A Editora»"> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pn { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: smaller; + text-align: right; + color: silver; + } + #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1em;} + h1, h2 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em;} + #corpo p.sinopse {margin: 0; font-size: small; text-indent: 0;} + hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;} + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px;} + blockquote {margin-left: 20%; font-size: small;} + a {text-decoration: none;} + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + .direita {position: absolute; right: 10%;} + .typo {border-bottom: dotted 2px #aaaaaa;} + .fbox {border: solid black 1px; background-color: #FFFFCC; font-size: 0.8em; + margin-left: 10%; margin-right: 10%;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +Project Gutenberg's Um club da Má-Lingua, by Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Um club da Má-Lingua + +Author: Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky + +Translator: Manuel de Macedo + +Release Date: March 15, 2010 [EBook #31657] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UM CLUB DA MÁ-LINGUA *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net + + + + + + +</pre> + + +<p> </p> +<div class="fbox"><p><b>Notas de transcrição:</b></p> + +<p>O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1908.</p> + +<p>Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos alguns pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a leitura do texto, e que por isso não considerámos necessário assinalá-los. +Os nomes das personagens apareciam impressos de múltiplas formas, e foi feito um esforço de uniformização da grafia dos mesmos, tomando como referencia uma tradução em inglês da mesma obra. Sempre que ouve alteração do nome, usámos um marcador como <span class="typo" title="no original: este">este</span>.</p> +</div> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;"><img src="images/capa.jpg" border="0" alt="Capa do livro" width="80%"></p> + +<span class="pn">{1}</span> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + + +<hr width="40%"> + +<p style="text-align:center; font-size: 2em;">UM CLUB DA MÁ-LINGUA</p> + +<hr width="40%"> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + + +<p><span class="pn">{2}</span></p> + +<p> </p> + + +<p><span class="pn">{3}</span></p> + +<div style="text-align:center;"> +<p style="font-size: 1.2em;">FÉDOR (THEODORO) DOSTOIEVSKY</p> + +<hr style="width: 80%; border-bottom: double;" > + +<p style="font-size: 2.5em;">Um club da má-lingua</p> + +<p style="font-size: 1.2em;">TRADUCÇÃO</p> + +<p>DE</p> + +<p style="font-size: 1.8em;">MANUEL DE MACEDO</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p><span style="font-size: 1.2em;">1908</span><br> + +<span style="font-size: 1.8em;">"A EDITORA"</span><br> + +<em>Largo do Conde Barão, 50</em></p> + +<p>LISBOA</p> +</div> + +<p><span class="pn">{4}</span></p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<hr width="80%"> + +<p style="text-align:center; font-size: 0.8em;">Typographia "A Editora"—Largo do Conde +Barão, 50—Lisboa</p> + +<p><span class="pn">{5}</span></p> + +<p> </p> + + +<div id="corpo"> +<h1>O SONHO DO PRINCIPE GAVRILA</h1> + +<p> </p> + + +<h2>I</h2> + +<p>Maria Alexandrovna Moskalev é com toda a certeza a dama de mais subida +importancia em Mordassov, nem haverá quem o conteste. Ao contemplál-a, dirieis +que não precisa seja de quem fôr, e que, antes pelo contrario, toda a gente lhe +deve obrigações. Goza de poucas sympathias, na verdade, é cordialmente +detestada, até: mas temida tambem universalmente, e é isso que ella quer. E não +representará isto um rasgo de finura politica? Por que será que, por exemplo, +apezar de nutrir paixão por mexericos e de não poder dormir descansada no dia +em que não soube nada de novo, por que será, sim, que pela apparencia de Maria +Alexandrovna, tal é a sua majestade, não occorre á mente, seja de quem fôr, o +facto de ella ser a primeira coscovilheira d'este mundo, ou quando menos, de +Mordassov? Dir-se-ia antes que assim que apparece deveriam cessar, +acto-continuo, de todo os mexericos, as comadres tremerem como garotetes em +presença do prefeito, e as conversas guindarem-se desde logo aos assuntos mais +transcendentes. E todavia, ella, a respeito de uns certos Mordassovenses está +em dia com umas chronicas tão escandalosas<span class="pn">{6}</span> que, se +as dissesse a proposito e provando-lhes—como ella o sabe fazer—a +authenticidade, Mordassov em pêso tremeria tal qual tremeu Lisboa em tempos. +Mas se ella quanto a segredos é o proprio tumulo; é necessario dar-se um +concurso de circumstancias extraordinarias para que ella consinta em falar +n'umas certas coisas,—e isto ainda entre amigos da maxima intimidade. +Poderá arriscar uma allusão, dar a entender que "está em dia"; mas pella-se por +manter a qualquer individuo—homem ou mulher—na sugestão de um temor +perpetuo, em vez de o esmagar de um golpe. Isto é que é intelligencia, isto é +que é tactica! Maria Alexandrovna sempre se distinguiu mercê do seu +irreprehensivel <em>comme il faut</em>. É citada como modêlo. Lá quanto ao +<em>comme il faut</em> não tem rival em toda Mordassov.</p> + +<p>Poderá, com uma palavrinha, matar, esfacelar, anniquilar uma pessoa que lhe +haja cahido no desagrado,—mas sem lhe tocar, sem suspeitar, dir-se-hia, a +importancia da dita palavrinha. Semelhante traço de caracter assás trescala a +alta sociedade.</p> + +<p>Tem optimas relações. A Mordassov ainda não veiu pessoa que não ficasse +penhorada com as recepções de Maria Alexandrovna. O maximo numero até de taes +visitantes accidentaes ficaram-se carteando com ella. Houve até um poeta que +lhe dedicou versos: Maria Alexandrovna exhibe-os com desvanecimento. Um +litterato de arribação offereceu-lhe uma novélla da qual fizera leitura em casa +da nobre senhora, durante um sarau: produziu optimo effeito. Um sabio allemão, +vindo expressamente de Carlsruhe no intuito de estudar uma especie singular de +vermezinhos chavelhudos que se encontram no nosso governo (o dito<span +class="pn">{7}</span> sabio escreveu ácerca do alludido vermezinho quatro +volumes <em>in-quarto</em>) tão encantado ficou com a amabilidade de Maria +Alexandrovna, que ainda hoje, lá de Carlsruhe, lhe escreve cartas respeitosas e +moraes. Chegaram até a estabelecer parallelos entre Napoleão e Maria +Alexandrovna. Foi brincadeira, facecia de ciumentos, e comtudo, apontando a +estranheza de semelhante comparação, atrever-me-hei a fazer uma pergunta +ingenua; por que seria que a Napoleão, no acume da sua gloria, o tomaria uma +vertigem? Os legitimistas attribuem uma tal fraqueza á vilã extracção de +Bonaparte, que nem era de estirpe realenga nem sequer de nobreza limpa. Por +espirituosa que seja semelhante opinião,—pois tresanda á mais brilhante +épocha da antiga côrte franceza,—atrever-me-hei ainda a perguntar: mas +por que é que a Maria Alexandrovna não a tomaram nunca vertigens? Pois é um +facto; veiu a ser e depois ficou sendo sempre a dama de mais subida importancia +em Mordassov. Conheceu horas atribuladas, não ha duvida, e, em certas +circumstancias, houve até quem dissesse lá comsigo: «Mas que é que ha de agora +fazer Maria Alexandrovna?» E o obstaculo achava-se transposto como que por +encanto.</p> + +<p>Toda a gente estará lembrada da maneira porque o marido, o Aphanassi +Matveich, perdeu a posição. Deu-se isso em seguida a uma inspecção aos fiscaes +a quem esta achou tolos em demasia. E a cuidarem que Maria Alexandrovna não +deixaria de perder o sizo, humilhar-se, supplicar, n'uma palavra, "rebaixar a +sua linguarice." Longe d'isso! Percebendo que as supplicas nada adeantariam, +houve-se de modo que a sua influencia não soffreu a minima quebra, e que a sua +casa continuou a ser a primeira casa de Mordassov.<span class="pn">{8}</span> +Anna Nikolaievna Antipova, inimiga figadal de Maria Alexandrovna, a despeito +das exteriorizações de mundana amizade, já cantava victoria. Mas não tardaram +em perceber que era difficil atrapalhar Maria Alexandrovna, e que esta era mais +fina do que a suppunham.</p> + +<p>Aqui, vem ao pintar umas palavras a respeito de Aphanassi Matveich, marido +de Maria Alexandrovna. É um homem muito bem parecido, a correcção em pessoa. +Mas, nos casos criticos, assustava-se que nem um borrêgo que percebesse que lhe +mudaram o que quer que fosse ao cancêlo do redil. Circumstancia que lhe não +tolhia o ostentar ordinariamente uns ares de summa importancia, sobretudo nos +jantares de apparato, quando punha a gravata branca. A majestade de taes +sujeitos dura até ao momento de abrirem a bôca: mas então é tratar de metter +rolha nos ouvidos. Semelhante homem, com toda a certeza, é indigno de pertencer +a Maria Alexandrovna. É esta a opinião geral.</p> + +<p>E d'ahi, é unicamente devido á genialissima esposa o facto de elle se +conservar no seu posto. A meu ver, ha muito tempo que o deveriam ter espetado +na horta á laia de espantalho para os pardaes.</p> + +<p>Alli, e só alli, poderia ter sido de alguma utilidade. Maria Alexandrovna +fez, pois, muito bem em exilar Aphanassi Matveich para a aldeia de cento e +vinte almas que ella possuia a tres verstas de Mordassov. E de caminho, digamos +que a dita propriedade representava a totalidade dos bens facultando a Maria +Alexandrovna o custear tão bem, e com tamanho estadão, a sua casa. Facil foi +pois o perceberem que havia supportado Aphanassi Matveich unica e +exclusivamente por causa do seu cargo, dos respectivos ordenados<span +class="pn">{9}</span> e... e ainda de uns certos emolumentosinhos. Agora, que, +velho, já nem representava ordenados nem emolumentos, não seria de justiça +affastá-lo na qualidade de inutil trambolho?</p> + +<p>Aphanassi Matveich leva no campo uma vida agradabilissima. Fiz-lhe uma +visita e passei com elle uma hora encantadora. Ensaia ao espelho as gravatas +brancas, engraxa as proprias botas, não por necessidade, mas sim por amor da +arte, porque gosta de ver as botas a luzir muito. Toma chá tres vezes ao dia, +vae a miudo ao banho e não se rala com coisa nenhuma... </p> + +<p>Estão lembrados d'aquella nojenta historia, ha dezoito mêses, a proposito da +Zinaida Aphanassièvna, filha unica, de Maria Alexandrovna e de Aphanassi +Matveich? Zinaida é uma beldade, e uma menina muito bem educada, de mais a +mais; mas tem vinte e trez annos e ainda está solteira. Uma das principaes +causas a que atribuem o celibato da Zina, é o boato vago da estrambotica +ligação que dizem haver tido, ha exactamente dezoito mêses, com um réles +utchitel<a name="tex2html1" href="#foot57"><sup>[1]</sup></a>—boato que +ainda se não desvaneceu.—Citam uma missiva amorosa escrita pela Zina e +que dizem ter corrido Mordassov de um extremo ao outro. Mas, por favor, não me +dirão, leram a tal epistola? Não houve em Mordassov pessoa que a não visse. E +então! onde pára ella actualmente? Toda a gente ouviu falar nella, mas quem foi +que a viu? Eu, da minha parte, ainda não encontrei uma só pessoa que a tenha +visto com seus proprios olhos.<span class="pn">{10}</span></p> + +<p>Alluda alguem á tal epistola na presença de Maria Alexandrovna e aposto +desde já que ella não perceberá sequer esse alguem. Mas supponhamos que tenha +havido o que quer que fosse de verdade em semelhante atoarda, e que a Zina haja +escrito a decantada epistola, (effectivamente, estou convencido de que a +escreveu): admirem então a habilidade de Maria Alexandrovna.</p> + +<p>Como se havia de atabafar caso tão escandaloso?—Pois bem, procurem, +nem vestigios, prova, que é della? Maria Alexandrovna nem sequer se digna tomar +conhecimento de calumnia tão soez, e comtudo, Deus sabe o trabalho que lhe +custou conservar intacta a honra da filha unica! Que a Zina não tenha ainda +casado, isso percebe-se, de mais, até: onde iria ella por aqui encontrar noivo? +A Zina só pode casar com um principe reinante! Já alguem viu mais peregrina +formosura? É soberba, lá isso é... Dizem que Mozgliakov a pedira em casamento, +mas semelhante consorcio jámais se effectuará. Quem vem a ser esse tal +Mozgliakov? É môço, assás bem parecido, elegante, peterburguense, proprietario +de cento e cincoenta almas livres de hypotheca. Mas não fura paredes! Leviano, +tagarélla, apaixonado pelas novas ideias... E que representarão cento e +cincoenta almas com ideias novas? O casamento nunca se realizará.</p> + +<p>Quanto acaba de ler o amavel leitor foi escrito, ha cinco mêses, unicamente +por admiração. Devo convir em que nutro uma tal ou qual sympathia por Maria +Alexandrovna. Quizera escrever o panegyrico de tão magnifica dama sob a forma +de uma carta dirigida a um amigo, a exemplo d'aquellas que outrora publicavam +as revistas, n'esses bons<span class="pn">{11}</span> tempos que já lá vão, e +que, louvôres a Deus! não voltam cá outra vez!</p> + +<p>Mas se não tenho um unico amigo, e, graças á incuravel timidez que de mim se +apodera assim que se trata de litteratura, a minha obra ficou na gaveta na +qualidade de tentame sem seguimento.</p> + +<p>Cinco mezes eram pois decorridos, quando em Mordassov se deu um +acontecimento extraordinario.</p> + +<p>Um dia, de madrugada, eis que chega o principe K... e vae hospedar-se em +casa de Maria Alexandrovna.</p> + +<p>As consequencias d'este acontecimento são incalculaveis. O principe passou +apenas trez dias em Mordassov. Mas esses trez dias deixaram recordações fataes +e inexpungiveis. Direi mais: o principe foi causa de uma verdadeira revolução +n'esta nossa cidade. A narrativa da alludida revolução virá a ser, certamente, +a pagina mais importante da historia de Mordassov. E é essa pagina que eu, após +innumeras hesitações, me resolvi a offerecer, sob forma litteraria ao criterio +do respeitavel publico.</p> + +<p>A minha narrativa poder-se-ia intitular: "Grandeza e Decadencia de Maria +Alexandrovna." Grande e seductor assumpto para um poeta.<span +class="pn">{12}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>II</h2> + +<p>Direi desde já que o principe K... não era um ancião centenario.</p> + +<p>Á primeira vista, comtudo, ninguem podia deixar de pensar que ia reverter +outra vez aos elementos, a tal ponto se achava gasto! Corriam em Mordassov as +historias mais estranhas a respeito do dito principe. Affirmavam que estava um +tanto ou quanto tinôco.</p> + +<p>Effectivamente, parecia exquisito que um <em>pomiestchik</em><a +name="tex2html2" href="#foot63"><sup>[2]</sup></a> de uma das mais notaveis +familias, dono de quatro mil almas, em posição de obter consideravel influencia +na provincia, permanecesse enclausurado, tal qual um eremitão, na sua magnifica +propriedade. Muitos que o tinham visto, seis ou sete annos atraz, por occasião +da primeira vinda do principe a Mordassov, affirmavam que nesse tempo nem podia +supportar a solidão nem tinha ainda aquelles seus costumes de eremita.</p> + +<p>Eis os esclarecimentos que pude colher a seu respeito bebidos das mais +seguras fontes.</p> + +<p>Outrora—e onde irá isso!—o principe havia effectuado na +sociedade um ingresso de aurora... Durante os annos todos da juventude levara +vida airada, requestando as damas, esbanjando por vezes repetidas o seu +dinheiro em<span class="pn">{13}</span> viagens ao estrangeiro, cantando +romanzas, fazendo trocadilhos; mas não se distinguia mediante uma intelligencia +acima da marca. Em semelhante vida, não tardou em dar cabo do que tinha, e, +quando chegaram os dias da senéctude, ficou sem um kopek. Aconselhou-lhe alguem +que voltasse para a sua aldeia, que principiava já a ser vendida em hasta +publica.</p> + +<p>Aproveitou o conselho, e foi nessa occasião que veiu passar seis mêses em +Mordassov. Agradou-lhe immenso a vida de provincia, e pelo espaço de seis mêses +acabou de se "alimpar" em amorios com as mundanas provinciaes. Era aliás +excellente pessoa, de um fausto principesco (em Mordassov o fausto é o signal +caracteristico da mais alta aristocracia.)</p> + +<p>As damas sobretudo não cessavam de se alegrar com um hospede encantador a +tal ponto. Deixou entre nós curiosissimas recordações; entre outras +exquisitices, contavam que o principe gastava a maxima parte do dia ao +toucador. Parecia todo elle feito de pedacinhos enxertados. Scismavam onde e +como fôra que elle se haveria decomposto d'aquella maneira. Usava chinó, +bigode, suissas, e inclusivé uma pêra, tudo postiço até o minimo pellinho, e +tudo preto como o proprio azeviche—uma lindeza! Levava todo o santo dia a +pôr caio e carmim. Affirmavam que dispunha de um talento especialissimo em +disfarçar as rugas do rosto por meio de umas mólazinhas escondidas com o chinó. +Affirmavam ainda que trazia espartilho, havendo ficado sem uma costella ao +saltar desastradamente de uma janella abaixo durante uma aventura amorosa, na +Italia. Coxeava da perna esquerda, uma perna postiça de cortiça, +affirmavam,<span class="pn">{14}</span> havendo quebrado a verdadeira em Paris, +em outra aventura. É possivel que houvesse exaggêro, mas o que é certo, é que o +olho direito era de vidro: illudia completamente, aliás; ninguem diria que não +era natural. Os proprios dentes eram artificiaes. Passava dias inteiros a +lavar-se com aguas-garantidas, a perfumar-se, a encalamistrar-se. Ultimamente, +comtudo, principiava a fazer-se velho e a tresler. Parecia estar prestes a +terminar a sua carreira, e sabia toda a gente que se achava arruinado,—e +eis que de repente lhe morre uma sua parenta muito chegada, senhora de muita +edade, vivendo em Paris, e de quem não esperava herdar, em seguida a haver +enterrado um mez, exactamente, antes de fallecer, o unico herdeiro. Eram quatro +mil almas e uma soberba propriedade a sessenta verstas de Mordassov a +reverterem no principe sem a minima partilha. Abalou desde logo para +Petersburgo a fim de pôr em ordem seus negocios. Por occasião da partida, +offereceram-lhe as damas um sumptuoso banquete por subscripção. Ha quem se +lembre ainda de como, n'aquelle dia, o principe foi seductor e espirituoso! Era +um tiroteio de calemburgos, de anecdótas extraordinarias. Prometeu voltar o +mais breve possivel para a sua nova propriedade e jurou que na volta daria meza +franca e uma festa—bailes e luminarias—que nunca havia de ter fim. +Depois da sua partida, ficaram as senhoras um anno a falar da tal promettida +festa e impacientes á espera do encantador velhinho. Organizavam até excursões +a Dukhanovo, a aldeóla do principe, onde se admirava um antigo solar +acastellado, um parque adornado de acacias a imitar leões, colinas artificiaes, +lagos em que navegavam barquinhos tripulados<span class="pn">{15}</span> por +turcos de madeira, a tocar flauta, pavilhões de <em>Mon-Plaisir</em>, e +quejandos attractivos.</p> + +<p>Até que por fim veiu o principe, com grande espanto e não menor decepção de +toda a gente, nem sequer passou por Mordassov e foi encerrar-se em absoluto +isolamento em Dukhanovo. Correram boatos singularissimos. A datar d'esse +momento, torna-se obscura e phantastica a historia do principe. A principio +constou que lá por Petersburgo lhe não tinham corrido bem os negocios, que os +herdeiros, em vista do seu estado senil, queriam nomear-lhe um conselho +judicial receando que voltasse a esbanjar os seus bens. Ainda mais: +accrescentavam que aquelles ávidos caçadores de heranças tinham querido +internál-o n'uma casa de saude! Afortunadamente para o principe, um seu +parente, personagem de summa importancia, saiu em sua defêsa, provando á +evidencia que o pobre homem, semi-morto e todo elle artificial, não estava para +muita dura, certamente. E que n'essa conformidade os seus bens viriam a +reverter nos herdeiros sem que estes se vissem na necessidade de recorrer á +casa de saude. Eis o que se diz. São compridinhas as linguas lá em Mordassov. +Tudo isto havia assustado o principe, a tal ponto, que se lhe tinha demudado o +genio, descambando em eremitão. Por mera curiosidade, vieram felicitál-o varios +Mordassovenses: e ou não foram recebidos, ou se o foram foi de modo um tanto +exquisito. O principe nem mesmo reconheceu, ou antes, não quiz reconhecer os +seus amigos de outrora.</p> + +<p>O proprio governador o foi visitar, mas voltou pelo mesmo caminho dizendo +que o principe estava tinôco. D'alli em deante notaram que o governador punha +uma cara de palmo,<span class="pn">{16}</span> assim que lhe falavam na jornada +a Dukhanovo... Indignavam-se as senhoras. Até que por fim se veiu a saber uma +coisa capital; o principe vivia submettido á tutella de uma figurona por nome +Stepanida Matveiévna,—Deus sabe que casta de mulher!—que tinha +vindo lá de Petersburgo, velha, obêsa, usando constantemente o mesmo vestido de +cassa, e sempre com um mólho de chaves na mão. O principe obedece-lhe em tudo e +por tudo e não se atreve a dar um passo sem a consultar. Ella, lava-o com suas +proprias mãos, apaparica-o, passeia-o e entretem-n'o, como se fôra um néné; em +conclusão, é ella quem bate com a porta na cara aos parentes que principiam a +saber o caminho de Dukhanovo... Foi muito discutida, sobretudo entre as +senhoras, tão incomprehensivel ligação. Accrescentavam que Stepanida Matveiévna +regia com plenos poderes, e sem ter quem lhe fosse á mão, a totalidade dos bens +do principe. Substitue feitores, creados, arrecada os rendimentos; é aliás boa +a sua administração, e os camponêzes não vêem outra coisa. Com respeito ao +principe, este nem já arreda um passo do toucador, a ensaiar chinós, pêras +postiças, casacos. Uma vez por outra, joga ás cartas com Stepanida Matveiévna; +de vez em quando, dá o seu passeio n'uma egua inglêsa muito mansa: Stepanida +Matveiévna acompanha-o sempre em carruagem fechada, prompta á primeira voz, +visto como o principe só monta a cavallo por garridice e mal se pode ter em +cima do selim. Acontece-lhe tambem o sair a pé, embrulhado n'um sobretudo, com +um chapéu de palha enterrado na cabeça, um lenço de mulher ao pescoço, um +monoculo no olho e pendurado na mão esquerda um açafate para recolher cogumelos +e flôres campestres.<span class="pn">{17}</span> Stepanida Matveiévna, vae-lhe +seguindo as pisadas, levando á tréla dois latagões de dois lacaios; e um pouco +mais atráz, uma carruagem. Se calha encontrarem um mujik que pára e tira o +bonné para lhe fazer a sua contumélia dizendo: "Bom dia, paezinho principe. +Nossa Excellencia, nosso solzinho!" o principe assesta-lhe o monoculo, +acêna-lhe com a cabeça com bom modo e diz-lhe em francêz: "Bom dia, amigo, bom +dia!" Qual não foi porém o espanto de toda a gente quando, uma bella manhã, se +espalhou o boato de como o principe, aquelle eremitão, aquelle original, tinha +vindo em pessoa a Mordassov e se hospedara em casa de Maria Alexandrovna! Foi +um reboliço por ahi além! Estavam á espera de uma explicação, e perguntavam uns +aos outros: "Que quererá isto dizer?" Não faltou quem se estivesse enfeitando +para ir a casa de Maria Alexandrovna. Carteavam-se as senhoras, visitavam-se, +mandavam as creadas e os maridos colher informações. O que maior espectação +causava era a circunstancia de se ter ido o principe hospedar em casa de Maria +Alexandrovna, e não em qualquer outra parte. Anna Nikolaievna Antipova ficou +mais escandalizada do que outra qualquer pessoa, visto o principe ser ainda seu +parente, parente muito arredado, é verdade.<span class="pn">{18}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>III</h2> + +<p>São dez horas da manhã. Estamos em casa de Maria Alexandrovna, na Rua +Grande, no aposento que a dona da casa, nos dias duplices, enfeita com o titulo +de sala. (Maria Alexandrovna, dispõe tambem de um camarim.) O papel das paredes +é correctissimo. Os moveis, pouco commodos, arvoram com verdadeira predilecção +a côr vermelha. Ha um fogão, e em cima do fogão um espelho; deante do espelho +um relogio tendo por assunto um Cupido do mais execrando gosto. Nas paredes, no +intervallo das janéllas, dois espelhos a que já tiraram as capas. Adeante dos +espelhos, duas banquinhas, e ainda dois relogios. Toma a metade de um +apainelado um piano de cauda. (Mandaram vir o dito piano para a Zina: cultiva a +musica.) Ao pé do fogão, no qual arde uma bôa fogueira, estão dispostas umas +poltronas em desalinho pinturesco a mais não poder ser. Ao meio outra +banquinha. No outro extremo da casa, ainda outra mesa, tapada com uma toalha +immaculada e em cima, um samovar de prata, a ferver, no meio de um lindissimo +serviço para chá. Uma senhora, residente em casa de Maria Alexandrovna, a +titulo de parenta affastada, Nastassia Petrovna Ziablova, está especialmente +incumbida do chá.</p> + +<p>Duas palavras ácerca da alludida senhora. É viuva, frescalhona, com uns +olhos castanhos escuros muito vivos, assaz bem parecida; é alegre, velhaca, +até; linguareira, escusado<span class="pn">{19}</span> será dizê-lo, e sabendo +levar agua ao seu moinho; tem dois filhos no collegio, para ahi, algures. Não +se lhe daria de tornar a casar; vive com bastante independencia; o marido era +official.</p> + +<p>Maria Alexandrovna em pessoa está sentada ao pé do fogão: acha-se de boa +catadura. Traja um vestido verde claro, assentando-lhe a primor. Está +contentissima com a vinda do principe. N'este ensejo, o principe está lá em +cima, todo elle entregue á tarefa de se infunicar.</p> + +<p>Maria Alexandrovna nem sequer pensa em esconder o seu contentamento. Deante +d'ella, um rapaz a fazer boquinhas e a cantar, muito animado, seja o que fôr. +Percebe-se que se desvéla por agradar a quem o está escutando. Tem vinte e +cinco annos. Se não fossem as suas exuberancias, se não fossem tambem as suas +pretensões a engraçado, seria toleravel. Está bem vestido, é loiro e de +agradavel presença. Já a elle nos referimos, é o senhor Mozgliakov, môço sobre +quem se fundaram esperanças matrimoniaes. Maria Alexandrovna acha-lhe a cabeça +um tanto ôca, mas nem por isso deixa de o receber muito bem. Diz elle que está +loucamente apaixonado pela Zina. Dirige-se a esta continuamente, ancioso por +alcançar um ar de riso a poder de bons ditos e de azoamento. Ella, comtudo, +mantem-n'o a distancia, com extrema frialdade. A joven está de pé junto ao +piano, a folhear um almanaque. É uma dessas mulheres que produzem effeito geral +ao entrarem numa sala. É peregrinamente formosa: alta, morena, com uns immensos +olhos quasi pretos, esbelta, com um collo magnifico, uns pésinhos encantadores, +espaduas e mãos de molde classico, e um pisar de rainha. Está hoje um tanto +descoráda,<span class="pn">{20}</span> a pallidez, comtudo, torna-lhe mais +conspicuo o rubido fulgor dos labios por entre os quaes lhe luzem, tal qual +perolas em fio, uns dentinhos miudinhos e regulares. Era caso para qualquer de +nós sonhar com elles, três dias a fio, só de lhes ter posto a vista em cima. É +séria a sua expressão.</p> + +<p>O senhor Mozgliakov dir-se-hia arrecear-se do olhar fito da Zina, pelo menos +não ergue para esta os olhos sem um tal qual enleio.</p> + +<p>É singelissimo o vestido da joven, de gaze branca: Está-lhe bem o branco, +está-lhe lindamente o branco... E d'ahi, que haverá que lhe não fique bem? Traz +enfiado n'um dedo um annel de cabello entrançado. A julgar pela côr, aquelles +cabellos não são os da mamã. Mozgliakov nunca se afoitou a perguntar de quem +seriam aquelles cabellos. Está taciturna, esta manhã, triste, até, ou +preoccupada, pelo menos. Em compensação, Maria Alexandrovna acha-se em maré de +dar á lingua. De vez em quando, esguêlha uns olhos desconfiados para a Zina, e +olhos furtivos quanto possivel, como que não se arreceando menos da joven.</p> + +<p>—Estou tão contente, Pavel Alexandrovitch, (dir-se-hia pipilar) que +estou capaz de gritar da janella abaixo o meu contentamento a quem passa pela +rua. Sem falarmos da agradabilissima surpreza que nos proporcionou, a mim e á +Zina, com vir quinze dias mais cedo do que o esperavamos. É caso á parte. Mas o +que mais me penhorou foi a attenção que teve comnosco trazendo comsigo o +principe. Se soubesse como eu adoro aquelle encanto aquelle vélhinho! Não pode +comprehender-me! As pessoas da sua edade seriam incapazes de semelhante +affeição. Não sabe<span class="pn">{21}</span> as circumstancias que entre mim +e elle se deram, ha seis annos? Lembras-te, Zina? E eu sem me lembrar de que +n'esse tempo estavas em casa de tua tia. Estou que me não acreditaria, Pavel +Alexandrovitch, se eu lhe dissesse, que servi de guia ao principe, que fui para +elle, irmã, mãe? Havia lhaneza, carinho, nobreza n'aquella nossa ligação. +Era... pastoril!... Nem eu sei como a hei de definir. Eis o motivo porque elle +se lembrou da minha casa com tamanha gratidão, o pobre do principe! E se eu lhe +disser, Pavel Alexandrovitch, que é possivel até que o salvasse trazendo-o para +minha casa? Não podia evitar o confranger-se-me o coração, durante aquelles +seis annos, sempre que me punha a pensar n'elle!... Eu... quer acreditar?... +até sonhava com elle! Dizem que aquella creatura, a tal sua carcereira, o +enfeitiçou, que o deitou a perder... mas, emfim, o senhor arrancou-o das garras +d'aquella harpia! Urge aproveitar a occasião para o salvar completamente... Mas +conte-me, mais uma vez, como foi que o conseguiu? Descreva-me, muito por +miudos, o encontro de um e outro. Eu ainda agora fiquei tão sobresaltada! Não +vi senão os traços geraes, mas não ha pormenor que não seja precioso a meus +olhos. Se eu sou assim! Pello-me pelas minudencias, nos acontecimentos de maior +vulto, são os pormenores que primeiramente me chamam attenção... e... emquanto +elle se está arrebicando... </p> + +<p>—Mas se eu já lhe contei tudo, apressa-se em responder Mozgliakov, +prompto a recapitular a narrativa pela décima vez. Tinha viajado toda a +noite... não tinha pregado olho; estava com tanta pressa de chegar ao meu +destino! (Esta ultima phrase ia sobrescritada para a Zina.) Tive que +aturar<span class="pn">{22}</span> contendas, berreiros por occasião das mudas. +Eu proprio, confesso, não fiz tambem pouca algazarra. É um poema moderno, sem +tirar nem pôr. Mas vamos adeante. Ás seis horas da manhã, em ponto, eis que +chêgo á ultima muda, em Ignichévo. Tranzido, mas, isso sim! nem sequer tiro uns +minutos para me aquécer. Pégo a gritar: "Cavallos!" Estou em dizer, até, que +metti um susto á mulher do capataz das mudas: tinha ao collo um néné, de peito, +e estou com receio que se lhe talhasse o leite.—Era admiravel o despontar +do sol! Sabe, aquelle pó da geada escarlate e prateada? E eu, sem attentar em +coisa nenhuma, ia a vapor!</p> + +<p>Empalmo uns cavallos a um tal conselheiro de collegio,—com quem por um +triz que não tenho um duéllo. Afiançam-me que um quarto de hora antes tinha +abalado da dita muda um certo principe que viaja com cavallos proprios. Que +pernoitara na muda. Quasi que nem lhes dou ouvidos, salto para a carruagem, vôo +por ali fóra tal qual um prisioneiro escapulido.—Ha uma situação parecida +em uma elegia de Fet<a name="tex2html3" +href="#foot76"><sup>[3]</sup></a>.—Ora, a nove verstas da cidade, +justamente, em vista do retiro de Svietozerskaia, avisto o que quer que seja de +singular! Uma grande carruagem de jornada caída na estrada. O cocheiro e dois +latagões de dois lacaios, de pé, junto da mesma, e muito atrapalhados. Lá do +fundo da carruagem vinham uns bérros que me confrangiam a alma!... Eu podia +seguir por deante, não tinha nada com isso, mas levou a melhor a humanidade, +pois,<span class="pn">{23}</span> como diz Heine, mette o nariz em toda a +parte. Paro, pois. Eu, o meu yamstchik Semene, e uma outra alma russa, +accudimos a ajudar e entre nós seis pômos em pé a carruagem. Pômol-a de +pé,—quero dizer, sobre os patins.—Uns mujiks que levavam uma carga +de lenha para a cidade ajudaram-nos tambem, (apanharam bem boa gorgêta). E eu a +dizer commigo: É o tal principe que passou a noite na muda. Ólho: Santo Deus! É +o principe Gavrila! Que encontro este! "Principe! bradei: tiozinho!" Á primeira +vista, não me conheceu; nem sei se me reconheceria á segunda: e agora mesmo não +estou bem certo em que me reconhecesse. Creio que nem sequer já se lembra do +nosso parentesco. Vi-o pela primeira vez, em Petersburgo. N'esse tempo era eu +um garoto. Lembro-me muito bem, mas elle, podia-se lá lembrar de mim? +Apresento-me: fica encantado! Beija-me, e depois pega a tremer de susto e, em +conclusão, desata a soluçar. Por Deus! Vi-o com meus proprios olhos: até +chorou! Palavra puxa palavra e, em conclusão, acabei por lhe propôr que viesse +até Mordassov tomar um dia de descanso. Consentiu sem hesitações. Declarou-me +que ia para o retiro de Svietozerskaia, para casa do arcypreste Missail a quem +tem em grande conta; que a Stepanida Matvéina—qual de nós, parentes do +Principe, não terá ouvido falar de Stepanida Matveiévna? O anno passado, +escorraçou-me de <span class="typo" title="no original: Dukanovo">Dukhanovo</span> com o pau da vassoira!... Que a Stepanida Matveiévna +recebera pois uma carta exigindo a sua presença em Moscou pelo fallecimento de +alguem, o pae ou a filha, nem sei nem quero saber,—talvez que pae e filha +ao mesmo tempo, e ainda por cima para ahi qualquer segundo sobrinho empregado +na<span class="pn">{24}</span> fiscalização dos vinhos. N'uma palavra, tivera +que conformar-se, desamparar o seu principe por uns dez dias e levantar vôo, a +toda a pressa, para a capital.</p> + +<p>O principe demóra-se um dia; dois dias, sem se mexer, a experimentar chinós, +a encalamistrar-se, a pentear-se, a fazer paciencias: em conclusão, a solidão +acabou por lhe ser pesada. Foi então que mandou pôr o trem e metteu a caminho +do retiro de Svietozerskaia. Alguem do seu séquito, com medo do phantasma da +Stepanida Matveiévna, atrevera-se a ir-lhe á mão. Mas o principe é cabeçudo e +tinha abalado na vespera, depois de jantar, pernoitando em Ignichevo, largara +da muda de madrugada, e, justamente na volta do caminho que vae ter á +residencia do arcypreste, por pouco se não despenha com a carruagem n'uma +barroca. Salvei-o e persuadi-o a vir para casa da nossa amiga commum, a +dignissima Maria Alexandrovna. Diz elle que a senhora é a dama mais encantadora +que tem encontrado em toda a sua vida, e cá estamos. O principe está a pôr em +ordem os arrebiques com o criado particular de quem porfiou em não prescindir. +Mais depressa se deixaria morrer do que apresentar-se em casa de uma senhora +sem a roupa toda da ordem... E aqui tem a historia toda... é uma historia +deliciosa!</p> + +<p>—Que humorista, hein! Zina? exclama Maria Alexandrovna. Que captivante +narrador! Escute, Pavel, uma pergunta: explique-me bem o seu parentesco com o +principe. O senhor trata-o de tio.</p> + +<p>—Por Deus! Maria Alexandrovna, se eu sou o proprio a não saber, como é +que sou seu parente. Estou em dizer, até, que talvez seja preciso para ahi um +cento de gravêtos<span class="pn">{25}</span> para sermos do mesmo ramo. Mas eu +cá trato-o de tiozinho, e elle responde-me. E ahi tem, até hoje, todo o nosso +parentesco... </p> + +<p>—Foi Deus em pessoa que o inspirou em m'o trazer para aqui. Arrepio-me +só de pensar que poderia ter ido hospedar-se para outra qualquer parte. +Devoravam-n'o! Atiravam-se a elle como quem se atira a um thesouro, a uma +mina!... Eram capazes de lhe tirar a camisa! Não põe na sua ideia o que por ahi +vae de almas sofregas, vis e arteiras n'esta nossa Mordassov.</p> + +<p>—Ah! meu Deus! mas para onde queria que o levassem a não ser para sua +casa? Sempre tem cada uma, Maria Alexandrovna, interveiu Nastassia Petrovna, a +incumbida do chá. Talvez quisesse que carregassem com elle para casa da Anna +Nikolaievna!</p> + +<p>—Mas com tudo isso, por que se demorará elle tanto? É exquisito! disse +Maria Alexandrovna, erguendo-se, impaciente.</p> + +<p>—O tio? Aquillo ainda é negocio para cinco horas! E d'ahi, bem sabe +que está perdido da memoria; é capaz de se ter esquecido de que é seu hospede. +É um homem extraordinario, Maria Alexandrovna. Se soubesse!</p> + +<p>—Ora vamos! Que está a dizer?</p> + +<p>—A verdade, Maria Alexandrovna. É um homem <em>mecanico</em>. Não o vê +ha seis annos, mas sei o que ha a esse respeito. É a recordação de um homem, +esquéceram-se de o enterrar. Tem olhos de vidro, pernas de cortiça; todo elle +de <em>engonços</em>, a propria voz é artificial.</p> + +<p>—Valha-nos Deus, sempre é um tal esturdio! exclamou Maria Alexandrovna +com uns modos doridos. Não tem vergonha,<span class="pn">{26}</span> o senhor, +a falar assim de um veneravel ancião, que é seu parente? (A voz de Maria +Alexandrovna, n'esta altura assume entonação tocante.) Sequer ao menos, +lembre-se de que é uma reliquia da nossa aristocracia! Meu amigo, essas +leviandades provêm-lhe das taes novas ideias em que está sempre a falar. Meu +Deus! tambem eu participo dessas ideias; comprehendo que o principio que rege +as suas opiniões é nobre, honrado. Presinto n'essas ideias novas o que quer que +é de elevado, de sublime. Mas tudo isso não me impede de ver os lados praticos, +por assim dizer—da questão. Tenho vivido na sociedade, conheço melhor que +o senhor os homens e as coisas, pois que o senhor é apenas um rapaz. Este +vélhinho afigura-se-lhe ridiculo lá por causa da edade. O senhor, ha dias, +affirmava que queria dar alforria aos seus servos, que cada qual deve ir com o +seu século. Tudo isso, sem duvida, lá por que o leu para ahi algures no tal seu +Shakespeare! Acredite, Pavel Alexandrovitch, o seu Shakespeare já lá vae ha que +tempos. Se elle resuscitasse, apezar de ser um génio, não percebia uma palavra +do viver moderno. Se alguma coisa existe de majestoso, de cavalheiresco n'esta +nossa sociedade contemporanea, é com certeza a aristocracia. Um principe é +sempre um principe; faz um palacio ainda que seja de uma cabana. Ao passo que o +marido da Natalia Dmitrievna, que mandou construir um palacio, fica sendo o +marido da Natalia Dmitrievna, e mais nada,—e a Natalia Dmitrievna pode +pôr em cima de si meio cento de crinólines, que nunca passará de ser a Natalia +Dmitrievna como d'antes. Tambem o senhor, meu caro Pavel, é um representante da +aristocracia, de lá veiu. Aqui onde me vê, ouso<span class="pn">{27}</span> +tambem ter-me na conta de não ser alheia á aristocracia. Pois bem! Ai do filho +que chasqueia dos proprios antepassados! E d'ahi, não deixará de convir, d'aqui +a nada, meu amiguinho, que é preciso pôr de lado o seu Shakespeare, sou eu que +lh'o digo. Estou certa em que agora mesmo não é sincéro. Está armando ao +effeito!... Mas... eu para aqui a dar á lingua! Deixe-se estar, meu querido +Pavel; vou saber noticias do principe. Talvez precise de alguma coisa, e com +estes meus criados!... E saiu apressada Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—Maria Alexandrovna parece estar contentissima pelo facto de o +principe não se ter ido hospedar para casa da elegante Anna Nikolaievna; e +comtudo, a Anna Nikolaievna tem pretensões a ser parente do principe. É capaz +de estoirar de raiva!—observou Nastassia Petrovna.</p> + +<p>Mas, notando que lhe não respondem, Madame Ziablova, depois de haver +esguelhado uma olhadéla para a Zina e para Pavel Alexandrovitch, percebe que é +alli de mais e sae, tambem, como quem vae procurar qualquer coisa. E d'ahi, +desforra-se da propria discreção deixando-se ficar atráz da porta, de ouvido á +escuta.</p> + +<p>Pavel Alexandrovitch trata logo de se approximar da Zina; está +commovidissimo, com a voz a tremer:</p> + +<p>—Zinaida Aphanassievna! Não está zangada commigo? diz timidamente e +com modo supplice.</p> + +<p>—Com o senhor? Mas por quê? pergunta a Zina um tanto ruborizada, +erguendo sobre elle os esplendidos olhos.</p> + +<p>—Pela minha vinda prematura, Zinaida Aphanassievna, já não podia +supportar mais longo apartamento. Ainda mais quinze dias! E eu a vêl-a sempre +em sonhos!<span class="pn">{28}</span> Vim para saber a minha sorte... Mas por +que franze as sobrancelhas, está zangada? Com que então, ainda hoje não apanho +resposta decisiva?</p> + +<p>Á Zinaida, effectivamente, carregou-se-lhe o parecer.</p> + +<p>—E eu antevia que me havia de falar a esse respeito, encetou ella em +voz rispida com uns vislumbres de despeito. (Declina a vista.) E como +semelhante apprehensão me maguou em extremo, acho melhor cortar de vez toda e +qualquer indecisão... mais vale assim... O senhor exige, quero dizer, pede uma +resposta? Seja assim. A minha resposta será a mesma que já lhe dei: espere. +Repito-lhe, ainda não estou resolvida, não lhe posso prometter o ser sua +mulher... Não é coisa que se obtenha por exigencia, Pavel Alexandrovitch; mas, +para o tranquillizar accrescentarei que o não rejeito definitivamente. E +comtudo, note que, se o deixo esperar uma decisão favoravel, é por dó da sua +inquietação. Repito-lhe que quero tomar em plena liberdade a minha decisão, e +se eu em conclusão lhe declarar que o rejeito, nem por isso depois me deve +increpar por lhe ter dado esperanças. E fique isto assente por uma vez!</p> + +<p>—Mas então, então! exclamou Mozgliakov em voz de mais em mais +supplice, será isso uma esperança? Poderei fundar uma qualquer esperança +n'essas suas palavras, Zinaida Aphanassievna?</p> + +<p>—Lembre-se de tudo que lhe tenho dito e funde tudo que quiser: é +livre. E nada mais acrescentarei. Não o rejeito, digo-lhe, tão somente: Espere! +Reservo-me o direito de o rejeitar se assim o julgar necessario... Far-lhe-hei +ainda notar o seguinte, Pavel Alexandrovitch: se veiu<span +class="pn">{29}</span> mais cedo do que tinha dito com o sentido em operar por +meios indirectos, esperançado em fazer valer a sua influencia, a da mamã, por +exemplo, enganou-se nos seus calculos. Se assim fôra, rejeitál-o-hia de vez, +entendeu? E agora, basta, se me faz favor! Até que eu proprio lhe torne a falar +n'isso, nem palavra a semelhante respeito.</p> + +<p>Foi proferido em tom firme, sêcco, o conjuncto d'este discurso, sem +hesitações, como se fôra decorado de antemão. E Pavel sente o nariz a +crescer-lhe. N'este comenos eis que entra Maria Alexandrovna. Logo atráz d'esta +entra madame Ziablova.</p> + +<p>—Já ahi vem, Zina! Quer-me parecer que não tarda ahi! Nastassia +Petrovna, avie-se... o chá!</p> + +<p>E Maria Alexandrovna n'uma azafama, toda ella.</p> + +<p>—A Anna Nikolaievna já mandou saber noticias; a Aniutka, a creada, até +já veiu pedir informações á copa. Ha de estar como uma bicha! disse a Nastassia +Petrovna, investindo com o samovar.</p> + +<p>—E a mim que me importa? responde Maria Alexandrovna, a desfechar as +palavras por cima do hombro a madame Ziablova. Como se me interessasse o que +poderá pensar Anna Nikolaievna! Tenho a certeza em como não serei eu que mande +seja quem fôr á sua copa. E demais, fique sabendo, muito me admiro de que me +façam passar por inimiga da Anna Nikolaievna, coitada! Pois é opinião corrente +em Mordassov. Ora seja juiz, Pavel Alexandrovitch. Conhece-nos a ambas: por que +é que eu havia de ser sua inimiga? Para lhe disputar a supremacia? Sou +indifferente a essas coisas! Ella que seja a primeira, eu lhe irei dar os +parabens! Emfim, é injusto, e quero defendêl-a. É<span class="pn">{30}</span> +meu dever. Mas para que é que a calumniam, para que hão de andar a malhar assim +na pobre da creatura? É nova, gosta de se enfeitar: será por isso? Quanto a +mim, acho que vale mais gostar dos trapos do que um certo numero de coisas de +que tanto gosta a Natalia Dmitrievna, das taes coisas que nem sequer se podem +nomear. Será ainda lá porque a Anna Nikolaievna gosta de visitas e não pode +parar em casa? Mas, santo Deus! Se ella não tem instrucção de qualidade +nenhuma, e com certeza que lhe havia de ser difficil o abrir um livro e +entreter-se dez minutos a fio fosse com o que fosse. É garrida, dá de olho, da +janella abaixo, a todo e qualquer que passa pela rua. E d'ahi?... Mas para que +será que andam para ahi a apontál-a como uma beldade? É macilenta, que até mete +medo! Dansa que é um riso vê-la, chega a ser comica, convenho, mas por que será +que dizem que a polkar é um portento? Usa uns chapeus inconcebiveis! E d'ahi, +ella terá culpa de lhe faltar o gosto? Affirme-lhe que faz bem em pregar na +cabeça um papel de rebuçado, e verá que o faz. É linguareira, mas se por aqui +não haverá quem o não seja. O senhor Suchilov, com aquellas suas enormes +suissas, está pregado em casa della de manhã até á noite, e de noite até manhã, +tenho a certeza. E d'ahi, santo Deus! para que é que o marido joga as cartas +até ás cinco horas da madrugada? Se o que se vê por ahi são maus exemplos! E +demais, não deixará de ser <em>talvez</em> mais outra calumnia. N'uma palavra, +hei de sair sempre, sempre, sempre, sempre a defendêl-a... Mas! ai, Senhor! Ahi +vem o principe! É elle! é elle! conheci-lhe os passos! Era capaz de os +distinguir entre mil. Até que o vejo, afinal, meu principe!... <span +class="pn">{31}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>IV</h2> + +<p>Á primeira vista, ninguem confundiria o principe com um velho, mas examinado +de mais perto, ninguem deixaria de verificar que é um cadaver movido por mólas; +empregaram toda a casta de artificios para disfarçar n'um adolescente +semelhante mumia. Um chinó estupendo, suissas, bigodes postiços, mais pretos +que o proprio ébano, lhe tapam metade do rosto. As faces estão pintadas com +singular pericia; nem uma ruga: que é d'ellas?... Vestido no rigor da moda, +dir-se-hia saído de um figurino de alfaiate. Traz assim a modos de uma +<em>visite</em>, isto é, qualquer coisa elegantissima feita expressamente para +as visitas matutinas. Luvas, gravata, collete, tudo isso de brancura +deslumbrante e do mais requintado gosto. O principe manqueja um tudo-nada, mas +tão levemente! Dir-se-hia mais um tempêrozinho exigido pela móda.</p> + +<p>Um monoculo no olho,—n'aquelle, exactamente, que é de vidro,—vem +saturado de perfumes. Quando fala, arrasta umas certas palavras, talvez por +impotencia senil, ou por serem postiços os dentes, ou ainda por elegancia. +Pronuncia umas certas syllabas com doçura extraordinaria e accentua a letra +<em>e</em>. Tem uma pontinha de não se-me-dá que lhe ficou da sua vida de homem +feliz em amores. Se não perdeu de todo a transmontana, pelo menos está sem +memoria. Engana-se a cada instante, fica-se a mascar e a metter<span +class="pn">{32}</span> os pés pelas mãos. É necessario ter um certo dom de +opportunismo para sustentar com elle uma conversa. Maria Alexandrovna, todavia, +tem a consciencia dos proprios recursos, e a presença do principe léva-a ao +auge do enthusiasmo.</p> + +<p>—Mas não o acho nada mudado, nada, nada! exclama ella agarrando em +ambas as mãos ao hospede e amesendando-o n'uma commoda poltrona. Sente-se! +sente-se, principe! Seis annos! seis annos, inteirinhos e integrados sem nos +vermos, e nem uma carta, nem uma linha, durante todo o tempo! Oh! quantas +culpas não tem para commigo, principe! Se soubesse o quanto eu estava zangada +comsigo, meu caro principe! Mas, e esse chá! esse chá! Ah! meu Deus! Nastassia +Petrovna, o chá!</p> + +<p>—Obrigado... ô—ôbrigado!... sou cul... cul... pado... gaguejou o +principe. </p> + +<p>(Esqueceu-nos dizer que gaguejava um tanto; e d'ahi, é moda.)</p> + +<p>—Cul... culpado! Ora imagine que, o anno passado, quiz abs... +absolutamente vir aqui, acrescentou a mirar a casa através da luneta.</p> + +<p>Mas tinham-me mettido medo: disseram-me que por aqui andava a có... +cólera... </p> + +<p>—Não, principe, não a tivemos por cá, affirmou Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—Tinhamos a morrinha, meu tiozinho, interrompeu Mozgliakov, que se +quer tornar conspicuo.</p> + +<p>Maria Alexandrovna méde-o com olhar sevéro.</p> + +<p>—Ha de ser isso... a mo... mo... rrinha ou coisa que o valha. E vae, +eu então deixei-me ficar. E seu marido,<span class="pn">{33}</span> minha que.. +querida Maria Nikolaievna, ainda está na ma... a... gistratura?</p> + +<p>—Não, principe, diz Maria Alexandrovna, meu marido não está na ma... +a... gistratura.</p> + +<p>—Iá apostar que o tiozinho a está confundido com a Anna Nikolaievna +Antipova! exclama o perspicaz Mozgliakov.</p> + +<p>Acto continuo, porém, mordeu o beiço, percebendo que nem por isso está muito +á vontade Maria Alexandrovna:</p> + +<p>—Pois é isso, é... A Anna Nikolaievna, e... e... e eu sempre a +esquecer-me... e então! Antipovna, exactamente, An... ti... povna, confirma o +principe.</p> + +<p>—Não, principe, está equivocado! disse Maria Alexandrovna com um +rizinho azêdo. Eu não me chamo Anna Nikolaievna, e, confesso, nunca suppuz que +se esquecesse de mim. Estou espantada, principe, sou a sua velha amiga, a Maria +Alexandrovna Moskalieva. Não se recorda, principe, da Maria Alexandrovna?</p> + +<p>—Maria Ale... lexan... xandrovna! Ora vejam! E eu a confundi-la com a +Anna Vassiliévna... é delicioso!... Dizia eu, pois, que me não fui hospedar em +casa da... E eu, amigo, a cuidar que me levavas exactamente para casa da tal +Anna Matveina!</p> + +<p>É impagavel! E dahi, acontece-me isto tanta vez! Quanta vez não vou eu parar +onde não quizéra!... Em geral, fico sempre contente, sempre contente, aconteça +o que acontecer. Com que então não é a Nastassia Vassiliévna!</p> + +<p>É interessante!</p> + +<p>—Maria Alexandrovna, principe! Maria A—lex—androvna!<span +class="pn">{34}</span> Se é coisa que se faça! Esquecer-se assim da sua melhor +amiga!</p> + +<p>—Melhor amiga, sim, é verdade! Perdão, pe... er... dão! silva o +principe fixando a attenção na Zina.</p> + +<p>—A minha filha Zina! O principe ainda a não conhece! Não estava em +minha casa quando aqui veiu pela ultima vez; lembra-se?</p> + +<p>—Sua filha! É um encanto! um encanto! murmura o principe assestando +ávido a luneta na Zina.—Mas que belleza; disse com visivel sobresalto.</p> + +<p>—Serve-se de chá, principe? pergunta Maria Alexandrovna desviando a +attenção do jarreta para um <em>groom</em>, parado defronte d'elle com uma +bandeja.</p> + +<p>O principe serve-se de uma chavena de chá e contempla o <em>groom</em> de +bochechas rochonchudas e rosadas.</p> + +<p>—Ah! ah! ah! É seu filho? Perfeito, muito perfeito! e... e... e... bem +comportado, já se vê?</p> + +<p>—Perdão, principe... accode pressurosa Maria Alexandrovna. Ainda estou +toda a tremer... Com que, então, deu uma quéda? Não se magoaria? Não é prudente +arriscar a sua pessoa em semelhantes aventuras!... </p> + +<p>—Virou-se! virou-se! O cocheiro virou a carruagem commigo dentro! +exclama o principe com extraordinaria animação. E eu, a pensar que era o fim do +mundo ou coisa parecida. Os santos me perdoem: apanhei um susto... vi as +estrellas ao meio dia, eu esperava lá!... eu es... pera... va lá!... E tudo +aquillo, por culpa do meu cocheiro, do Pamphilio: entrego-te este negocio, meu +amigo, has de tratar do inquerito... Estou convencido de que attentou contra a +minha vida!<span class="pn">{35}</span></p> + +<p>—Muito bem! muito bem, tiosinho! responde Pavel Alexandrovitch, fica a +meu cuidado. Mas oiça lá; se lhe perdoasse por esta vez, hein, que lhe +parece?</p> + +<p>—Por caso nenhum! Tenho a certeza de que quiz dar cabo de mim, elle e +mais o Lavrenty, que eu deixei lá em casa. Ora imaginem, encasquetaram-se-lhe +as taes ideias novas, uma negação... que eu sei lá... e era um communista em +toda a extensão da palavra. Quando me vejo a sós com elle... fico logo em +suores frios.</p> + +<p>—Ah! que verdade, principe! Não pôe na sua ideia o que eu tambem tenho +aturado a esta sucia! Já despedi por duas vezes toda a creadagem. Que gente tão +estupida! Anda uma pessoa a ralhar com elles de manhã até á noite.</p> + +<p>—E... stá claro! Gosto de ver um lacaio que não fure paredes, observou +o principe, satisfeito, como aliás succede aos velhos, de que lhes escutem com +respeito a tagarelice,—é até a principal qualidade de qualquer lacaio,... +uma to... leima sincera... em certas occasiões. Incute-lhes uma certa +imponencia... solemnidade! N'uma palavra, é mais distincto, e eu, a primeira +qualidade que exijo a um serviçal é a distincção. É por isso, que conservo o +Tarenty, estás lembrado do Tarenty, meu amigo? Assim que o vi, percebi-lhe a +vocação: Has de ser porteiro. É phe... e-nome-nalmente es... tupido. Com +aquelles olhos de carneiro mal morto: Mas que boa presença! que solemnidade! Em +pondo a gravata branca, faz um figurão! Gosto d'elle deveras! Eu, ás vezes, +ponho-me a olhar para elle, e não me canço de o ver: ali onde o vêem, está +escrevendo um livro... É um verdadeiro philosopho a... al... lemão,<span +class="pn">{36}</span> o proprio Kant, ou antes, um, perú gordo e bem comido, +um ser incompleto, tal qual cumpre a todo e qualquer se... er... viçal.</p> + +<p>Maria Alexandrovna ri ás gargalhadas e bate palmas; Pavel Alexandrovitch faz +côro: acha immensa graça ao tio. A Nastassia Petrovna ri tambem; e a propria +Zina dá um ar de riso.</p> + +<p>—Mas que graça, principe! que alegria! exclama Maria Alexandrovna. Que +preciosa faculdade de observar ridiculos... E desappareceu o senhor da +sociedade! Privar assim de um talento o mundo durante cinco annos inteiros!... +Mas podia até escrever comedias, principe! Podia muito bem restituir-nos +Visine, Griboiedov, Gogol!</p> + +<p>—É verdade, é verdade!... confirma encantado o principe... eu podia +restituir... Quer crêr? Eu d'antes tinha muita graça, até escrevi para o +theatro um vô... ô... deville. Com umas coplas que eram uma delicia! Por signal +que nunca foi representado.</p> + +<p>—Que pena! Como havia de ser divertido? Sabes o que te digo, Zina, que +vinha mesmo a proposito. Nós, justamente, principe, andamos a combinar umas +récitas de amadores com um fim de beneficencia patriotica, em favor dos +feridos... Vinha mesmo ao pintar o seu vaudeville.</p> + +<p>—E... stá claro, estou prompto a escrevêl-o. De mais a mais, já nem me +lembra uma palavra, mas tenho de memoria um ou dois trocadilhos que... (O +principe beija as pontas dos dedos.) Eu, em geral, quando estava no +estrangeiro... fazia um verda... deiro <em>furor</em>... Lembro-me de mylord +Byron... fomos muito intimos... Dansava á maravilha a krakoviak no congresso de +Vienna... <span class="pn">{37}</span></p> + +<p>—Mylord Byron, meu tio? Ora vamos, que está para ahi a dizer!</p> + +<p>—Está claro!... Byron. E d'ahi, talvez fosse outro. Exactamente, era +um polaco, lembro-me agora muito bem; um grande original, o tal polaco! +Intitulava-se conde, e porfim, veiu-se a saber que era cozinheiro.</p> + +<p>Mas dansava lindamente a krakoviak. Quebrou uma perna. Foi n'essa occasião, +até, que lhe fiz estes versos:</p> + +<blockquote> + O nosso conde polaco<br> + Dansava a krakoviak</blockquote> + +<p>E d'ahi... já me esqueceu... ah!</p> + +<blockquote> + Desde que partiu a perna,<br> + Nunca mais pôde dansar.</blockquote> + +<p>—Sim, sim, deve de ser isso, rico tiozinho! exclama Mozgliakov, pôdre +de riso! </p> + +<p>—Está c-claro! Quer-me parecer que seria isto ou coisa que o valha. E +d'ahi é possivel que não seja. O que lhes sei dizer é que os versos me saíram +muito bons. Escapam-me certas coisas, tenho tanto que fazer!</p> + +<p>—Mas, não me dirá, principe, pergunta com muito interesse Maria +Alexandrovna, em que é que se occupa n'aquella sua solidão? Lembrava-me tanta +vez do principe! Estou a arder de impaciencia por saber tudo por miudos... </p> + +<p>—Em que é que me occupo! Ora essa... immensa coisa em que me +occupar... em geral. Umas vezes descanso, outras vezes dou o meu passeio... a +imaginar cá umas coisas... <span class="pn">{38}</span></p> + +<p>—Deve de ter muita imaginação, rico tiozinho.</p> + +<p>—Muita, meu caro. Ás vezes, acontece-me imaginar coisas de que eu +proprio fico pasmado. Quando eu estava em Kadnievo... A proposito, tu não foste +vice-governador em Kadnievo?</p> + +<p>—Eu, tiozinho? Que está dizendo! Pelo amor de Deus! exclama Pavel +Alexandrovitch.</p> + +<p>—E eu a confundir-te com elle... </p> + +<p>E dizia eu commigo: Por que será que elle está tão mudado?... Porque o outro +tinha uma phisionomia imponente, espirituosa... um homem extra-a-ordina... +ria... mente intelligente. Compunha sempre versos... a proposito... De perfil, +era tal qual um rei de copas.</p> + +<p>—Acredite, principe, interrompeu Maria Alexandrovna, essa vida ha de +deitál-o a perder, lhe juro eu! Encerrar-se durante cinco annos n'um ermo! Não +ver, não ouvir pessoa alguma!... Sabe o que lhe digo, o principe é um homem +perdido! Pergunte a algum dos seus amigos, que lhe sejam fieis, e todos lhe +dirão isto mesmo: é um homem perdido!</p> + +<p>—De... de... vé-éras? arrasta o principe.</p> + +<p>—Com certeza... Digo-lh'o como se fôra uma irmã, porque sou muito sua +amiga,—pois que as recordações do passado, para mim são sagradas. Que +interesse poderia eu ter em o enganar? Nada, nada, é preciso absolutamente +mudar de vida, aliás, não resiste?... </p> + +<p>—Valha-me Deus! pois eu hei de morrer, assim, tão depressa? exclama o +principe, assustadissimo. E caso é que adivinhou: as minhas humorroides dão +cabo de mim, e ha uns tempos para cá, principalmente... e quando me<span +class="pn">{39}</span> atacam as crises, tenho sin-tó-ó-mas es... espan... +tosos... Eu já lhe vou contar tudo... por miudos... </p> + +<p>—Deixe lá, tiozinho, contará isso tudo, para outra vez. Agora, não +será tempo de irmos dar o nosso passeio?</p> + +<p>—Pois, sim, vá lá, ficará para outra vez; e d'ahi talvez não +interésse... Mas com tudo isso... é uma doença... extrê-ê-mamente interessante. +Com uma tal variedade de episodios! Vê se me lembras, meu caro, contar esta +noite, com todos os pormenores, uma certa particularidade das humorroides.</p> + +<p>—Ora, escute, principe, atalhou ainda Maria Alexandrovna. Devia ir ao +estrangeiro, para ver se se curava.</p> + +<p>—É isso, é! Ao estrangeiro, absolutamente. Lembro-me de que, ahi por +1820, a gente divertia-se im-men-sa-mente no estrangeiro. Estive para casar com +uma viscondessa, e era francêsa. Eu estava apaixonado por ella, e queria +consagrar-lhe toda a minha vida. Que ella, aliás, casou com outro... Caso +exquisito!... Tinha estado em casa della não havia ainda duas horas, e foi +n'este meio tempo que um barão allemão a conquistou. Veiu a acabar n'um +hospital de doidos.</p> + +<p>—Mas, caro principe, estavamos falando na sua saúde, e dizia-lhe eu +que devia pensar n'isso muito a sério. Ha grandes medicos lá pelo estrangeiro. +De mais a mais a mudança de ar, já por si, é importantissima. Terá que +renunciar a Dukhanovo, por uns tempos, quando menos.</p> + +<p>—Abso-o-lu-tamente! Já me conformei, tenciono tratar-me pela hy-dro... +the... rapia.</p> + +<p>—Pela hydrotherapia?<span class="pn">{40}</span></p> + +<p>—Está claro! Foi isso mesmo que eu disse, pela hy... dro... the... +rapia. Já me tratei pela hy... drotherapia. Estava eu nas aguas. Tambem lá +estava uma senhora de Moscou, varreu-se-me o nome, uma mulher muito poetica, +com setenta annos, ou coisa assim; tinha uma filha com uns cincoenta annos, e +com uma belida n'um olho. Falavam ambas sempre em verso. Aconteceu-lhe um +desastre! N'um fogacho de genio, matou o criado. Teve seus da-res e to... mares +com a justiça. E como eu ia dizendo, puzeram-me no regimen da agua; que eu, +ainda assim, não estava doente: mas se não faziam senão dizer-me "Trate de si! +trate de si!" E eu, por delicadeza, puz-me a beber a agua e, effectivamente, +senti allivio. Bebi, bebi, e tornei a beber! Acho que bebi um lago inteiro... É +optima coisa a tal hy-dro-the-rapia. Dou-me muito bem. Eu, se não tivesse caído +de cama, tinha passado lindamente.</p> + +<p>—Lá isso é verdade, rico tio. Ora dize-me, rico tio, aprendeste +logica? </p> + +<p>—Valha-o Deus! Que pergunta? observa Maria Alexandrovna, +escandalizada.</p> + +<p>—Está c-claro, meu amigo... ha muito tempo, aqui para nós. Estudei +philosophia, na Allemanha. Frequentei os cursos todos mas d'ali a pouco +esqueceu-me tudo... Mas... confesso, metteu-me um tal susto no corpo com as +taes do... enças que... fiquei atarantado... Eu volto já. Dêem-me licença!</p> + +<p>—Aonde vae, principe? exclama, pasmada, Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—Não tardo aqui. Não me demoro... Vou apenas... assentar um +pensamento... Até já... <span class="pn">{41}</span></p> + +<p>—Que tal lhe pareceu? exclama Pavel Alexandrovitch, á gargalhada.</p> + +<p>Maria Alexandrovna perde de todo a paciencia.</p> + +<p>—Eu não o entendo, na verdade, não posso comprehender de que é que se +ri!—começa ella com animação. Rir de um ancião respeitavel, de um +parente! Rebentar a rir a cada palavra que elle solta da bôcca! Abusar +d'aquella bondade evangelica! Tenho até vergonha de o ouvir, Pavel +Alexandrovitch! Mas não me dirá o que é que lhe encontra de ridiculo? Ainda não +fui capaz de lhe notar o lado ridiculo.</p> + +<p>—Mas se nunca conhece ninguem, se não faz senão metter os pés pelas +mãos! </p> + +<p>—Ahi tem as consequencias do tal sequestro de cinco annos entregue á +guarda d'aquella megéra! Devemos antes ter dó d'elle, em vez de rirmos á sua +custa. Veja lá, nem a mim mesmo me conheceu, até! O senhor foi testemunha. Pois +não é terrivel! É preciso salvá-lo. Eu, se lhe propuz ir ao estrangeiro, foi na +esperança de que se resolva a largar de mão aquella... regateira.</p> + +<p>—Sabe o que lhe digo, é preciso casál-o, Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—E o senhor a dar-lhe! É incorrigivel, senhor Mozgliakov.</p> + +<p>—Não sou, acredite, Maria Alexandrovna, eu, d'esta vez, estou falando +até muito a sério. Por que é que o não havemos de casar? É uma ideia como outra +qualquer. Em que é que isso o pode prejudicar? No estado a que elle chegou, é +um expediente que o pode salvar, creio eu. A lei ainda lhe permitte casar. +D'esse modo, vê-se livre d'aquella desavergonhada,<span class="pn">{42}</span> +desculpe a expressão. Escolherá para ahi qualquer menina, ou qualquer viuva +honesta, intelligente, carinhosa e pobre, sobretudo, que não deixará de o +tratar como filha e que comprehenderá que lhe deve ser grata. Que coisa melhor +lhe poderia acontecer? Um coração terno e fiel, em vez d'aquella... moita! Está +claro que convem que seja bonita, pois o tio professa ainda o culto da belleza. +Não viu os olhos que elle deitava á Zinaida Aphanassievna?</p> + +<p>—E onde irá desencantar semelhante ideal? pergunta Nastassia Petrovna +toda ella ouvidos.</p> + +<p>—Não está má pergunta? A senhora, por exemplo, sem irmos mais longe... +se me dá licença, perguntar-lhe-hei por que é que não ha de casar com o +principe? Primeiro e segundo, porque é bonita, e viuva, ainda por cima. +Terceiro, por que é fidalga. Quarto, por que é honestissima. Ha de amá-lo, +amimá-lo, pôr na rua a tal carcereira, carregar com o principe para o +estrangeiro, dar-lhe papinha e goloseimas... tudo isto até que chegue o dia em +que elle diga adeus a este mundo de amarguras, o que tardará para ahi um anno, +quando muito, ou um mez ou dois, quem sabe; depois fica sendo princesa, viuva, +rica e, para compensar o trabalho, casa para ahi com um marquez qualquer, ou um +general. É bonito, pois não acha?</p> + +<p>—Ai! Deus meu! Que amor eu lhe havia de ter, por gratidão, quando por +mais não fosse, se elle pedisse a minha mão! exclama Madame Ziablova.</p> + +<p>Os olhos feriram-lhe lume, até.</p> + +<p>—Mas, isso sim!... são sonhos!... </p> + +<p>—Sonhos? Tem empenho em que se realisem? Experimente,<span +class="pn">{43}</span> peça-me que lhe alcance essa pechincha. E corto desde já +este dedo se hoje mesmo não fôr noiva do principe. Não ha nada mais facil do +que persuadir o meu tio. Diz sempre a tudo, que sim. A senhora bem o ouviu, ha +boccado. Casamol-o sem elle dar por isso. Enganamol-o, é verdade, mas se é para +seu bem, pois não acha? Em todo o caso, a senhora do que devia tratar era de ir +arranjando uma <em>toilette</em> á altura das circumstancias, Nastassia +Petrovna.</p> + +<p>A animação de Mozgliakov transforma-se em enthusiasmo. A Madame Ziablova, +com o seu tino todo, está-lhe a crescer até agua na bôcca.</p> + +<p>—Eu bem sei; nem é preciso que m'o lembre, que estou para aqui uma +trapalhona... Pareço até uma cozinheira, pois não pareço?</p> + +<p>Maria Alexandrovna está com um cara de palmo. Afoito-me a affirmar que ouviu +a proposta de Pavel Alexandrovitch com uma pontinha de terror. Quer sim quer +não, teve mão em si.</p> + +<p>—Tudo isso é muito bonito, mas é um chorrilho de futilidades sem pés +nem cabeça, e que não vem nada a proposito! disse, com sequidão, dirigindo-se +ao Mozgliakov.</p> + +<p>—Então por quê, minha querida Maria Alexandrovna? Por que é que diz +que são futilidades fóra de proposito?</p> + +<p>—O senhor está em minha casa, e o principe é meu hospede. Não consinto +que ninguem se esqueça do respeito que se deve á minha casa! Tomo as suas +palavras como mera brincadeira, Pavel Alexandrovitch; mas, ahi vem o principe, +graças a Deus!</p> + +<p>—Eu... c... cá... es... tou, guincha o principe ao entrar.<span +class="pn">{44}</span> É espantoso, querida amiga,... que fecundidade com que +acordou hoje este m... meu espirito! Ás vezes—talvez não +acredites—mas acontece-me estar um dia inteiro sem me accudir um +pensamento a esta cabeça... </p> + +<p>—Seria a tal queda d'inda agora que lhe abalou os nervos... </p> + +<p>—Tambem me quer parecer, meu amigo, ach... acho util, até, o tal +accidente, tanto assim que estou resolvido a perdoar ao meu Pheophilo. Queres +que te diga?—Palpita-me que não premeditará attentar contra os meus dias. +E demais... já está bem castigado, cortaram-lhe as barbas.</p> + +<p>—Cortaram-lhe as barbas!—Que me diz? Elle, que tinha umas barbas +mais compridas que um principado allemão.</p> + +<p>—Es... tá c-claro!... sim... um principado. Em geral, meu amigo, são +muito acertadas as tuas conclusões. Mas as barbas d'elle são postiças. Ora +imaginem: Mandaram-me um catalogo: acabam de chegar do estrangeiro umas optimas +barbas quer para cocheiros quer para gentlemen: suissas, barbas á hespanhola, +pêras á império, etc.; tudo de primeira qualidade, por preços muito mó-mó-di... +cos. E eu, então, encommendei umas barbas para cocheiro. Mandaram-m'as: Ma-a... +gnificas! Mas a do Pheophilo era duas vezes mais comprida. E eu muito +atrapalhado: que hei de eu fazer? Recambiar as barbas postiças, ou mandar rapar +as do Pheophilo? Reflecti maduramente e resolvi em favôr das barbas postiças. +</p> + +<p>—Prefere a arte á natureza, rico tiozinho?</p> + +<p>—Pois está claro!... E que desgosto que elle teve quando se viu de +cara rapada. Cada pêllo que lhe cortavam<span class="pn">{45}</span> era um dia +de vida que lhe tiravam. Mas não serão horas de sair, meu caro?</p> + +<p>—Estou ás suas ordens, tio.</p> + +<p>—Principe, ouso esperar que só irá a casa do governador! exclamou +Maria Alexandrovna, muito sobresaltada. O principe, <em>pertence-me</em>, faz +parte da minha familia, por todo o dia. Escusado é dizer, que não tenho nada +que ensinar-lhe, pelo que diz respeito a Mordassov. Talvez queira ir fazer a +sua visita á Anna Nikolaievna, e não tenho direito de o dissuadir de dar +semelhante passo. Tanto mais que estou persuadida de que a sua propria +experiencia lhe servirá de guia. Lembre-se de que, hoje, sou sua irmã, sua mãe +e sua aia por todo o dia... Ah! Estou toda a tremer por sua causa, principe!... +O principe não conhece esta gente, não conhece, digo-lho eu... Não, que elle é +preciso tempo para os conhecer.</p> + +<p>—Deixe o caso por minha conta, Maria Alexandrovna, disse Mozgliakov; +tudo se passará conforme lhe prometti.</p> + +<p>—Entregar-me nas suas mãos, eu?... O senhor é um estouvado? Cá o +espero para jantar, principe. Costumamos jantar cedo. Que pena que eu tenho de +que, n'esta occasião, meu marido esteja no campo! Havia de gostar tanto de o +ver! Estima-o tanto! Dedica-lhe tão sincera amizade!</p> + +<p>—Seu marido?—Com que então,... tem marido?—</p> + +<p>—Valha-me Deus! Que pessima memoria é a sua, principe? Pois esqueceu o +passado a esse ponto? E meu marido, o Aphanassi Matveich, querem ver que tambem +se não lembra d'elle? Está no campo, mas o principe, em tempos, viu-o, até, +muita vez. Veja lá se se lembra; o Aphanassi Matveich?<span +class="pn">{46}</span></p> + +<p>—Aphanassi Matveich! No campo? Ora vejam lá! Mas é delicioso! Tem +então marido! Que ratice! Existe um vô... ô... de ville versando sobre o mesmo +assunto: <em>O marido á porta e a mulher na</em>... Conceda-me licença!... já +me não lembro lá muito bem... a mulher safa-se para Tula... ou para +Yoroslav!... </p> + +<p><em>O marido á porta e a mulher em Tver</em>, rico tio, sopra-lhe o +Mozgliakov.</p> + +<p>—Está c-claro, sim, é isso! Obrigado, caro amigo, exa... cta... +mente... em Tver... É um encanto... um en... can... to... É assim,... é!... a +mulher em Koxtroma... quero dizer... em conclusão... safou-se... Um encanto! um +encanto! Mas já não sei o que é que eu ia dizendo!... Ah! sim! vamo-nos embora, +hein? Até á vista! minha rica senhora! Adeus... minha linda menina!</p> + +<p>O principe beija as pontas dos dedos á Zinaida.</p> + +<p>—O jantar! O jantar, principe!</p> + +<p>—Demore-se o menos que puder! brada Maria Alexandrovna deitando a +correr atráz d'elle.<span class="pn">{47}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>V</h2> + +<p>—Nastassia Petrovna, não seria mau ir deitar a sua rabisáca pela +cozinha, disse ella apóz de haver acompanhado o principe. Palpita-me que +aquelle traste do Nikitka é capaz de se tomar da pinga e deita-nos a perder o +jantar.</p> + +<p>Obedeceu Nastassia Petrovna. Á saída, olhou para Maria Alexandrovna e +percebeu que estava animadissima a digna senhora. Em vez de ir vigiar o +tratante do Nikitka, Nastassia Petrovna dirige-se a uma saleta contigua, +d'alli, enfiando pelo corredor, vae ao quarto, e esgueira-se para um cubiculo +de despejos, atulhado de bahús, de vestidos velhos e de roupa suja de toda a +familia. Nos bicos dos pés, acerca-se de uma porta fechada, sustendo a +respiração, e espreita pelo buraco da fechadura: Aquella porta é uma das três +que abrem para a sala (está condemnada). Maria Alexandrovna sabe que a +Nastassia Petrovna é velhaca, pouco delicada, de poucos escrupulos, e muito +capaz de escutar ás portas. N'este momento, comtudo, Madame Moskalieva está tão +preoccupada, que se descuida de toda e qualquer cautélla.</p> + +<p>Senta-se n'uma poltrona e despede significativa olhadela á Zina. E a Zina a +sentir o pêso d'aquelle olhar. Dá-lhe um pulo o coração!</p> + +<p>—Zina!</p> + +<p>A Zina volta com muito vagar para a mãe o descorado semblante e aquelles +olhos sonhadores.<span class="pn">{48}</span></p> + +<p>—Zina, tenho que te falar em negocio importante.</p> + +<p>Está de pé a Zina; cruza os braços e espera. Deslisa-lhe pelo semblante +expressão fugaz de despeito e de ironia.</p> + +<p>—Quero perguntar-te qual é a tua opinião a respeito d'este tal +Mozgliakov? </p> + +<p>—Está farta de saber a conta em que o tenho, responde a Zina com modo +constrangido.</p> + +<p>—Pois sim, filha, mas está-me parecendo que se vae tornando um tanto +ou quanto impertinente, atrevido; e em conclusão, aquella sua insistencia... +</p> + +<p>—Diz elle que me ama; se assim fôr, acho perdoavel a sua +insistencia.</p> + +<p>—Admiro-me de uma circumstancia: tu, d'antes, não o desculpavas, +assim, tanto;... antes pelo contrario, eras, até, muito rispida para com elle, +sempre que eu a elle me referia.</p> + +<p>—E a mim, o que me causa admiração é outra circumstancia: A mamã, +d'antes, estava sempre a defendêl-o, e é agora a propria a condemnál-o.</p> + +<p>—Confesso que me sorria este casamento. Custava-me vêr-te assim +sempre, tão triste.—Avaliava bem a tua tristeza,—pois sou capaz de +a comprehender, seja qual fôr o juizo que faças a meu respeito.—Chegou +até a tirar-me o somno! Em summa, estou convencida de que só uma mudança +radical na tua vida te poderia salvar, e essa mudança, ha de ser o casamento. +Não somos ricos, não podemos ir dar a nossa volta pelo estrangeiro. Os asnos +que povoam esta cidade espantam-se de te ver ainda solteira aos vinte e três +annos e inventam fabulas a tal respeito. Mas<span class="pn">{49}</span> +poderei eu dar-te por marido para ahi um conselheiro d'esta estupida cidade ou +o Ivan Ivanovitch, nosso procurador? Haverá por aqui marido á altura dos teus +merecimentos? É certo que o Mozgliakov é apenas um peralvilho, e com tudo isso, +de todos elles, é ainda o mais acceitavel. É de boa familia, dôno de cincoenta +mil almas: sempre valerá mais que um procurador que vive de propinas e á custa +Deus sabe de que tranquibernias. E eis o motivo porque me lembrei d'elle. Tanto +menos verdadeira simpathia me merecia, e tanto mais me convenço hoje de que era +o Suprêmo Senhor quem me enviava semelhante desconfiança como advertencia. +Pensa bem! Se porventura se offerecesse agora um partido mais vantajoso, não +serias tu a propria a louvar-me de não ter até hoje dado a tua palavra a +ninguem? Pois, ouso crer, Zina, que tu hoje, nada lhe terás dito de +positivo.—Pois não é verdade?</p> + +<p>—Para que servirão tantos rodeios, mamã? quando podia muito bem ter-me +dito tudo isso em duas palavras, replica a Zina com modo resoluto.</p> + +<p>—Rodeios, Zina! Serão coisas que se digam a tua mãe? Ah! Vejo que de +modo nenhum te mereço confiança! Consideras-me como inimiga muito mais do que +como mãe!</p> + +<p>—Acabemos com isto, minha mãe. Parece-lhe bonito ficarmos para aqui a +fazer questão de palavras? Não estaremos fartas de nos conhecermos uma á +outra?</p> + +<p>—Repara em que me estás offendendo, minha filha. Pois não vês que +estou resolvida a tudo, a tudo, comtanto que tu sejas feliz?</p> + +<p>A Zina põe-se a olhar para a mãe com aquella singularissima expressão de +despeito e ironia.<span class="pn">{50}</span></p> + +<p>—Não estará morrendo por que eu case com o principe para complemento +da minha ventura? pergunta a joven com extranho sorriso.</p> + +<p>—Nem sequer te disse uma palavra a semelhante respeito, mas visto que +isso veiu á teia, dir-te-hei que, se fosse possivel, representaria para ti a +felicidade, effectivamente.</p> + +<p>—Pois eu acho isso pueril, exclama a Zina toda assommada, pueril, +pueril e mais que pueril! e acho, ainda, que a mamã é dotada de excessiva +imaginação: é uma mulher poetica; e tanto mais que é assim que a classificam em +Mordassov. Está sempre a fazer planos. Nem lhe mettem medo impossibilidades. +Assim que vi o principe, tive um presentimento, de como não deixaria de lhe +accudir semelhante ideia. Quando o Mozgliakov mettia o caso a ridiculo e +pretendia que era urgente casál-o, li no semblante á mamã o pensamento. E +d'ahi, foi para me falar n'esse jarreta que a mamã principiou por se referir ao +Mozgliakov. Mas esses seus sonhos aborrecem-me de morte, não sei se sabe? E +peço-lhe que fiquêmos por aqui!... Nem mais uma palavra, entendeu, mamã? Nem +mais uma palavra! Peço-lhe que tome a serio isto que acaba de ouvir da minha +bocca.</p> + +<p>—És uma criança, Zina, uma criança doente, e com mau genio! responde +Maria Alexandrovna em voz meliflua; e estás-me faltando ao +respeito.—Offendes-me! Não ha mãe que aturasse o que eu te tenho aturado! +Mas padeces, e eu acima de tudo sou christã. Vou aturando, e perdôo-te. +Responde-me a uma pergunta, só e mais nada, Zina. Vamos que eu, effectivamente, +tivesse sonhado semelhante<span class="pn">{51}</span> alliança, onde é que +está a puerilidade?—Quanto a mim, nunca o Mozgliakov falou com tanto +acerto como ainda agora, quando tentava demonstrar que o casamento é uma +necessidade para o principe. O disparate era o ter-se lembrado d'aquella fufia +da Nastassia.</p> + +<p>—Mamã, declare-me com franqueza, se me está dizendo isso por méra +curiosidade ou com um fim qualquer.</p> + +<p>—Peço-te que me respondas: onde vês tu n'isto puerilidade?</p> + +<p>—Que aborrecimento! Triste sorte é a minha! exclama a Zina a bater o +pé. Vou dizer-lh'o, se é que ainda o não percebeu: aproveitar o ensejo d'esse +velho se achar caído em demencia para o enganar, para o desposar, assim, +enfermo e caduco, para lhe extorquir o dinheiro e andar todo o santo dia a +desejar-lhe a morte, representa, a meu vêr, não só uma puerilidade, mas uma +vilania, e não serei eu quem lhe dê os parabens por semelhante ideia, mamã.</p> + +<p>Silencio.</p> + +<p>—Zina, já te esqueceste d'aquillo que se passou ha dois annos? +pergunta de chofre Maria Alexandrovna.</p> + +<p>Estremece a Zina.</p> + +<p>—Mamã, profere com accentuada seriedade, lembre-se de que me prometteu +não me tornar a falar em semelhante coisa.</p> + +<p>—Pois bem, minha filha—que eu até hoje ainda não tornei a +dizer-te uma palavra—peço-te que por uma vez tão somente me desligues da +minha promessa. Zina! Soou a hora de uma franca explicação. Foram mortaes estes +dois annos de silencio! Isto assim não pode continuar!... Estou prompta a +supplicar-te de joelhos que me permittas<span class="pn">{52}</span> falar. +Entendes, Zina, é a tua propria mãe que cae de joelhos a teus pés! E +demais—dou-te a minha palavra solemne—a palavra de uma mãe +desgraçada que adora a propria filha—seja qual for o pretexto, em +circumstancia alguma d'este mundo, com risco até da propria vida, de nunca mais +abrir a bocca a tal respeito.</p> + +<p>—Fale! diz Zina, muito enfiada.</p> + +<p>Maria Alexandrovna calculou optimamente o lance.</p> + +<p>—Obrigada, Zina. Ha dois annos, pois, que frequentava esta casa, por +causa do teu irmãozinho, do Mitra, que Deus tem, um <em>utchitel</em>.</p> + +<p>—Mas para que foi que a mamã assumiu esses modos tão solemnes, para +que estará a desperdiçar toda essa eloquencia, esses pormenores tão escusados e +penosos que ambas estamos fartas de conhecer? interrompeu a Zina com enfado. +</p> + +<p>—Porque a mim, que sou tua mãe, Zina, me assiste o dever de me +justificar a teus olhos. E demais, quero apresentar-te este negocio, todo elle, +sob uma luz nova para ti e que é a unica verdadeira. Emfim, sem estas +promessas, não poderias comprehender a conclusão que d'ellas pretendo deduzir. +Não creias, minha filha, que intento fazer pouco dos teus sentimentos. Não +Zina, has de encontrar em mim uma verdadeira mãe, e quem sabe se não serás tu a +propria a cair-me aos pés, lavada em lagrimas, a supplicar-me que conclua essa +reconciliação á qual o teu orgulho se nega ha tanto tempo. Tenho pois que +recapitular as coisas desde o principio, ou calar-me.</p> + +<p>—Fale, repetiu a Zina, a maldizer de todo o coração a grandiloquencia +maternal.<span class="pn">{53}</span></p> + +<p>—Continúo, Zina. Esse tal <em>utchitel</em> da escóla communal, um +fedêlho, por assim dizer, produziu em ti inconcebivel impressão. Contei sempre +com que o teu sizo, a elevação dos teus sentimentos e tambem a indignidade do +individuo, (visto que é preciso dizer tudo) evitariam qualquer approximação +entre tu e elle. E de repente, vens ter commigo e declarar-me com firmeza que +tens tenção de casar com elle. Foi uma punhalada que me déste no coração, Zina! +Soltei um grito e caí sem sentidos, mas... não deixarás de te lembrar do +incidente. É certo que julguei necessario empregar n'aquella occorrencia toda a +minha auctoridade: e por signal que a acoimaste de tyrannia. Reflécte, pois: um +garotête, filho d'um <em>diatchok</em>,<a name="tex2html4" +href="#foot129"><sup>[4]</sup></a> com um salario de doze rublos mensaes, um +escrevinhador de máus versos que lhe imprimem por dó na <em>Bibliothéca de +Leitura</em>, que não sabe falar em outra coisa a não ser n'esse maldito +Shakspeare,—aquelle fedêlho, teu marido! marido da Zinaida Moskalieva! +São coisas que só acontecem nas novéllas pastorís de Florian. Perdão, Zina, mas +quando me lembro de tal, saio fóra de mim! Neguei-me a consentir. Não houve +influencia que conseguisse convencer-te. Teu pae, naturalmente, manteve-se na +neutralidade, incapaz de comprehender-me quando tentei expor-lhe o caso e sem +saber fazer outra coisa além de pestanejar. Mantens relações com esse garoto, +proporcionas-lhe até ensejo de te ver, e o que é ainda muito peor que tudo +isso, tens o arrojo de lhe escrever! E as más linguas desde logo a trabalhar! +Fazem<span class="pn">{54}</span> allusões offensivas na minha presença. Estão +a pular de contentes, a embocar as mil trombetas da calumnia. As minhas +antecipações a semelhante respeito vão se realizando uma por uma. Dá-se entre +ti e elle um desaguizado e elle manifesta-se indigno de ti. Ameaça-te de +mostrar as tuas cartas, e tu, num assômo de justa indignação, dás-lhe uma +bofetada!... Sim, Zina, conheço tambem essa circumstancia, estou inteirada de +tudo—de tudo, sim! Esse traste, n'esse mesmo dia, mostra uma das tuas +cartas áquelle miseravel do Zanchine, e, d'alli a uma hora a carta está em +poder da Natalia Dmitrievna, minha inimiga figadal! Á noite, aquelle, doido, +arrependido já de semelhante acção inqualificavel, por toleima tenta +envenenar-se! N'uma palavra, um escandalo medonho! Aquella pécora da Nastassia +accode toda assustada, a participar-me que ha uma hora que a Natalia Dmitrievna +se acha de posse da tua carta: não se passarão duas horas, sem que a cidade em +pêso apregôe para ahi a tua vergonha. E eu a esticar os nervos para não caír +para ali inanimada. Que lance, Zina! Aquella descarada, aquella +desavergonhada!</p> + +<p>A Nastassia exige duzentos rublos para inutilizar a carta. Eu propria, deito +a correr, com os sapatos de trazer por casa, até, atravéz da neve, para ir a +casa do judeu Bumschtein empenhar o meu abrochador, recordação da minha +virtuosa mãe! D'alli a duas horas tinha a carta em meu poder: roubou-a a +Nastassia: arrombou uma boceta e está salva a tua honra. Nem vestigios, sequer! +Mas que dia de angustias! Logo ao outro dia, encontrei entre os meus cabellos +immensos fios brancos,—os primeiros, Zina! Tu foste a propria a avaliar +até que ponto era indigno de ti<span class="pn">{55}</span> aquelle garoto, +pois concordas agora, não sem amargura, talvez, que teria sido uma loucura +entregar-lhe o teu destino. Depois, comtudo, pégas a atormentar-te, a soffrer, +não podes varrêl-o da lembrança,—não a elle,—foi sempre coisa tão +rasteira que a tua vista nem sequer podia deter-se n'elle,—mas ao teu +primeiro sonho de amor. Hoje, esse desgraçado está a expirar—nem sequer +já se levanta.—Dizem que morre tisico, e tu—anjo de +bondade,—não queres casar emquanto elle fôr vivo; para lhe poupar +soffrimento, visto que é ciumento... e não obstante, nunca te teve amor, tenho +a certeza, amor sincero, elevado! O que o não impede de espionar os passos do +Mozgliakov, de te rondar a casa, de tirar indagações...—Tens dó delle, +minha filha, adivinhou-te o meu coração, e Deus sabe as lagrimas amargas que me +tem encharcado o travesseiro.</p> + +<p>—Veja se acaba com tudo isso, mamã! atalhou Zina com enfado. O seu +travesseiro não vem cá fazer coisa nenhuma! Não poderá falar com singeleza?</p> + +<p>—Não me acreditas, Zina! Não me trates tão mal, minha filha! Já lá vão +dois annos, e não faço outra coisa senão chorar, mas tenho-te encoberto as +minhas lagrimas, Zina, durante esses dois annos mortaes!... Ha muito tempo que +conheço os teus sentimentos. Medi todo o alcance da tua magua. Poderá alguem +lançar-me em rosto, minha querida, o haver considerado semelhante ligação como +uma phantasia romanesca, nascida sob a influencia do tal maldito Shakspeare? +Qual seria a mãe que condemnasse os alvitres de que tenho lançado mão e achasse +rigoroso em demasia o modo por que avalio este caso? E comtudo, a mim propria +represento o teu longo padecer, comprehendo<span class="pn">{56}</span> e +apprecio a tua sensibilidade. Acredita: comprehendo-te melhor, talvez, do que +te comprehendes a ti propria. Estou certa de que o não amas, a esse garoto +ridiculo: a quem tu amas é ao teu sonho, á tua ventura mallograda, ao esvair +das tuas illusões. Eu tambem amei, não cuides que não, e com mais excesso de +paixão do que tu; tambem eu padeci; tinha tambem as minhas illusões!... Não +falo pois sem experiencia, e se affirmo que uma alliança com o principe +representaria para mim a salvação, mereço talvez que me dêem ouvidos.</p> + +<p>A Zina ouviu com espanto aquella estirada declaração, farta de saber que a +mamã nunca assume aquelle tom pathetico sem designio occulto. E comtudo, a +conclusão deixa confundida a joven.</p> + +<p>—É pois a sério, que fala em casar-me com o principe? exclama pasmada +a considerar a mãe que assumiu attitude majestatica; não é então uma hypothese, +como se dissessemos? É tenção firme e assente, pelo que vejo? Mas... como é que +poderia salvar-me semelhante casamento? E... e... que relação terá tudo isso +com o que acaba de expôr-me, com essa historia toda?... Declaro que a não +percebo, mamã.</p> + +<p>—E a mim, meu anjo, espanta-me que o não percebas! exclama Maria +Alexandrovna, com subita animação. Primeiramente, o facto só por si de teres de +transferir-te para outra sociedade, para um mundo differente; de teres de dizer +adeus de uma vez para sempre a esta nojenta cidade das duzias, semeada para ti +de tão temiveis recordações, á qual te não prende a minima affeição, onde te +assacaram calumnias, onde essa sucia de pêgas te detestam por<span +class="pn">{57}</span> causa da tua formosura, esse facto só por si, repito, é +já capital. E depois, podes, ainda esta primavera, ir para o estrangeiro, para +a Italia, para a Suissa, para a Hespanha,—Zina—para a Hespanha, +onde irás ver a Alhambra, o Guadalquivir! Não estarás farta d'este immundo +riacho de Mordassov, com aquelle seu nome inconveniente?</p> + +<p>—Mas se me dá licença, mamã! está falando como se eu já estivesse +casada, ou pelo menos como se o principe me tivesse já pedido em casamento... +</p> + +<p>—Lá quanto a isso não te dê cuidado, meu anjo, sei o que estou +dizendo. Deixa-me continuar. Eu disse <em>primeiramente</em>, e ahi vae o +segundo ponto: Comprehendo, minha filha, quanto te contraría o dares a mão de +esposa a este Mozgliakov... </p> + +<p>—Sei muito bem, nem preciso de que m'o digam—que nunca serei sua +mulher! interrompeu Zina com arrebatamento.</p> + +<p>—Se tu soubesses, meu amor, como eu avalio essa repugnancia! É +terrivel o ter que jurar perante o altar de Deus amor e fidelidade áquelle a +quem se não pode ter amor! É terrivel o pertencer a um homem a quem se não pode +respeitar. E todavia, exigir-te-hia amor; foi para te possuir que elle casou +comtigo: isso adivinha-se nos olhos que elle te deita quando não olhas para +elle. Mas como simular perpetuamente amor? Ah! minha filha, aqui estou eu que +ando a padecer ha vinte e cinco annos com esta comedia necessaria. Teu pae +deitou-me a perder. Posso afirmar, até, que envenenou de todo a minha mocidade, +e quantas vezes não terás visto correr as minhas lagrimas?<span +class="pn">{58}</span></p> + +<p>—O papá está no campo; não esteja a atacál-o, por quem é!</p> + +<p>—Sim, tu saes sempre em sua defêsa, bem o sei... Ah! Zina! +Confrangia-se-me o coração quando a prudencia me obrigava a desejar o teu +casamento com o Mozgliakov! Com respeito ao principe, com esse não tinhas tu +necessidade de representar nenhuma comedia. Escusado é dizer que lhe não +poderás dedicar o que se chama amor. E demais, elle proprio é <em>incapaz</em> +de exigir semelhante amor.</p> + +<p>—Que disparate, meu Deus! E eu affirmo-lhe que se engana de meio a +meio: não tenciono sacrificar-me,—ignoro aliás o fim com que o faria. +Fique sabendo que não quero casar. Não casarei seja com quem fôr; ficarei +solteira. Tem-se farto de me atormentar ha dois annos para cá, por causa de eu +ter rejeitado quantos noivos me tem apparecido, mas não tem remedio senão +conformar-se; não quero, já disse!</p> + +<p>—Zinotchka, não te alteres, pelo amor de Deus, sem me ouvires, meu +amorzinho! Que cabeça tão esturrada! Consente em que eu te exponha o caso em +conformidade com o meu modo de ver, e verás que has de vir a concordar commigo. +O principe poderá ainda viver um anno, dois, talvez, mas não vae além, com +certeza. Ora, mais vale ser viuva e nova do que velha solteirona, isto sem +falarmos em que depois de elle fechar o olho ficas sendo princêsa, rica e +livre. Minha querida, desprezas talvez estes meus calculos baseados na morte de +um homem, mas sou mãe, e quem haverá ahi que condemne a minha previdencia? Em +conclusão, se tu, anjo de bondade, ainda tens pena d'esse tal garoto, se tu, +conforme eu suspeito, não queres casar emquanto<span class="pn">{59}</span> +elle fôr vivo, considera que, se casares com o principe, vaes resuscitar +aquelle a quem amas! Se é que a elle lhe restam ainda uns vislumbres de bom +senso, comprehenderá, manifestamente, que o ter ciumes a respeito do principe, +seria coisa fora de proposito, ridiculo. Comprehenderá que não casas com este +velho a não ser por interesse, por necessidade. N'uma palavra, comprehenderá... +quero dizer—depois de fallecido o principe, já se vê,—que poderás +casar segunda vez, se fôr da tua vontade... </p> + +<p>—Casar com o principe, expoliá-lo, e estar á espera de que elle morra +para depois ir casar com o meu amante, não é assim? É muito habil; quer +seduzir-me propondo-me... Percebo-a á legua, minha mãe, percebo-a optimamente. +Só o lembrar-me eu de que não pode deixar de fazer alarde de nobres +sentimentos, até, n'um negocio tão pouco limpo? Seria muito mais estimavel o +dizer-me, singelamente: "É uma ignominia, Zina, mas é lucrativa; e portanto, +acceita." Sequer ao menos era mais franco.</p> + +<p>—Mas que teimosia será essa tua em encarar o negocio no ponto de vista +da trapaça, da arteirice, da cobiça? Consideras os meus calculos como uma soez +hypocrisia; mas, em nome de quanto venéras como mais sagrado, onde estará a +baixeza, onde a hypocrisia? Vê-te bem n'aquelle espelho: és formosa o +sufficiente para conquistares com esses teus olhos, sem mais nada, um reino! E +tu, tão formosa, sacrificas a um velho os teus melhores annos; tu, estrella +magnifica, vaes embellezar-lhe o occaso da vida; tal qual a hera viçosa, florir +na sua velhice! Está afeito á companhia de uma feiticeira que o sequestra lá +n'um canto do mundo, e d'essa feiticeira, és tu, tu, Zina, quem vaes ser +successora!<span class="pn">{60}</span> O dinheiro e o titulo d'elle podem lá +equiparar-se ao teu valor? Onde vês pois n'isto a baixeza, a hypocrisia?</p> + +<p>Nem sabes o que estou dizendo, Zina!</p> + +<p>—O dinheiro e o titulo d'elle valem mais do que eu, visto que para os +alcançar, teria que resignar-me a casar com um enfermo. Dêmos ás coisas os seus +nomes: é uma ignobil hypocrisia, mamã!</p> + +<p>—Pelo contrario, minha querida, pelo contrario! O caso pode até ser +encarado de um ponto de vista superior, christão. Declaraste-me, um dia, em um +assômo de enthusiasmo, que querias ser irmã da caridade: o teu coração +exaltara-se de amor ao pensares nos humanos soffrimentos, outro qualquer amor +parecia-te tibio e mesquinho. Pois bem! Se ainda queres acreditar no amor, +acredita na dedicação, com sinceridade, tal qual uma creança, com candura. +Dedica-te, e abençoar-te-ha Deus! Tem padecido este velho; é desditoso, +perseguem-n'o. Conheço-o ha muitos annos e sempre lhe dediquei incomprehensivel +simpathia, carinho, por assim dizer: presentia o futuro. Sê sua amiga, minha +filha, seu brinquedo, até, se é forçoso dizêl-o, mas aquenta-lhe o coração e +fál-o por amor de Deus! Admittamos que é ridiculo? Elle nem sequer d'isso tem +consciencia. Não chega a ser a metade de um homem. Tem dó d'elle, tu, que és +christã. Contrafaze-te; com força de vontade consegue-se domar a alma para +semelhantes façanhas. Quanto não custa o pensar as chagas nos hospitaes, com +que repugnancia se não respira o ar viciado dos lazaretos: mas não ha anjos que +desempenham sem asco essas repugnantissimas taréfas e que ainda dão graças a +Deus pela triste sorte que lhes coube? E ahi está o remedio de que<span +class="pn">{61}</span> tanto necessitava o teu magoado coração: uma tarefa +heroica! Onde vês tu n'isto egoismo? Baixeza? Não me acreditas, suppões que +estou representando uma comedia, não podes comprehender que uma mulher mundana, +n'este meio de viver leviano, possa ter uns sentimentos de tanta elevação? Pois +bem, não me acredites, minha filha! Desconfia do coração de tua mãe! mas sequer +ao menos concorda em que as minhas palavras são sensatas e salutares. Esquece +que sou eu quem te estou falando, fecha os olhos, volta-me as costas e põe na +tua ideia que é uma voz misteriosa que estás ouvindo... O que acima de tudo te +prende, é a questão de dinheiro, essa apparencia de compra e venda. Pois bem, +rejeita o dinheiro visto que lhe tens tamanha aversão, acceita apenas o +necessario, e o resto, dá-o aos pobres. Por exemplo, estende o teu braço +áquelle desgraçado que está ás portas da morte.</p> + +<p>—Elle nunca acceitaria, disse a Zina, baixinho, como se estivera +falando comsigo.</p> + +<p>—Dado o caso de que elle rejeite, lá está a mãe para o acceitar em +nome d'elle, responde Maria Alexandrovna sentindo que conseguiu acertar-lhe com +a corda sensivel. Acceitará sem que elle proprio o saiba. Já vendeste os teus +brincos (presente de tua tia) para lhe accudir, ha seis meses, que eu bem o +sei, e tambem sei que a mãe, a pobre da velha, anda a lavar roupa para +sustentar o filho.</p> + +<p>—Dentro em pouco deixará de precisar seja do que fôr.</p> + +<p>—Comprehendo-te! apanha de relance Maria Alexandrovna, (accode-lhe uma +inspiração, uma verdadeira inspiração.) Dizem que morre tisico: mas quem é que +o affirma? Indaguei a seu respeito, ha dias, do Kalist-Stanislavitch... <span +class="pn">{62}</span> Pois sou a primeira a interessar-me pelo pobre rapaz, +tambem tenho coração, Zina! E o Kalist-Stanislavitch respondeu-me que a doença +é grave, não ha duvida, mas que, até hoje, existe apenas uma forte affecção dos +bronchios,—tu mesmo lh'o podes perguntar. E accrescentou que a mudança de +clima, impressões fortes, podiam curar o doente. Contou-me elle que, em +Hespanha—e já não é a primeira vez que o oiço... li-o, até—ha uma +ilha extraordinaria, Malaga, creio eu... emfim, um nome que lembra o de um +qualquer vinho—onde não só os que padecem do peito, mas até os proprios +tisicos saram de todo, graças ao clima. Vão ali tratar-se fidalgos, e +commerciantes ricos. Que elle, effectivamente, a Alhambra—esse palacio +encantado—as murtas e os limoeiros, os hespanhoes a cavallo nas mulas, +não será o sufficiente a produzir impressão n'uma natureza de poeta? Suppões +que rejeitaria o teu dinheiro?... Enganas-te se tens dó d'elle! A mentira é +perdoavel, quando d'ella depende a vida. Alimenta-lhe a esperança, promette-lhe +o teu amor, dize-lhe que casarás com elle quando enviuvares,—tudo se pode +dizer com nobreza: tua mãe não era capaz de te dar maus conselhos, +Zina!—Has de fazer tudo isso para o salvar e o bastante para te +justificares. Recuperará alento assim que souber que está esperando por ti. +Tratar-se-ha, seguirá rigorosamente as recommendações do medico, ha de querer +resuscitar para a ventura. Se elle se curar, ainda quando não viesses a ser sua +mulher, sequer ao menos têl-o-has salvo! e se a desventura o tiver mudado, se o +houver tornado digno de ti, casarás com elle. Effectuada a cura, poderás +alcançar-lhe uma situação na sociedade, facultar-lhe<span +class="pn">{63}</span> uma carreira. O teu casamento, n'estas condições, +tornar-se-ha possivel. Hoje!... que é que os espera a ambos, se porfiassem em +perpetrar o acto de loucura de casarem. O desprezo de toda a gente e a +miseria.</p> + +<p>Pensas acaso que a leitura entre ambos do seu Shakspeare lhes havia de +compensar tudo isso? Ficariam a vegetar aqui em Mordassov até que elle +morresse, o que não tardaria, aliás. Mas se está na tua mão o incutir-lhe gosto +pelo trabalho e pela virtude!</p> + +<p>Perdoa-lhe e adorar-te-ha. O remorso d'aquelle seu acto vergonhoso +apavóra-o! O teu perdão tudo irá ápagar e reconciliál-o-ha comsigo mesmo.</p> + +<p>Passa ao serviço activo, sobe postos, e se morrer, sequer ao menos morrerá +feliz, nos teus braços (visto que poderás achar-te a seu lado), seguro do teu +amor, do teu perdão, á sombra das murtas e dos limoeiros, debaixo da cupula +azul de um ceu exotico. Ah! Zina! Tudo isto se acha nas tuas mãos; basta que +consintas em casar com o principe.</p> + +<p>Cala-se Maria Alexandrovna. Segue-se prolongado silencio. A Zina acha-se no +auge da afflicção.</p> + +<p>Não nos abalançaremos a descrever os seus sentimentos: não os conhecemos. +Mas, a julgar pelas apparencias, Maria Alexandrovna encontrou o verdadeiro +caminho para o coração da filha. Não ha duvida de que a excellente mãe andou um +tanto ás apalpadélas, até que por fim conseguiu pôr o dedo na ferida, +principiou por maguar sem precaução os pontos mais sensiveis das feridas ainda +abertas, a despeito de um desenvolvimento por ahi além de sentimentos.<span +class="pn">{64}</span></p> + +<p>Agora, comtudo, logrou introduzir na mente da Zina o pensamento que a si lhe +convinha: produzindo-se o effeito, alcançou-se o fim desejado. A Zina escuta +com soffreguidão, com as faces afogueadas, o seio a arfar.</p> + +<p>—Ora escute, mamã,... diz por fim, resoluta, comquanto a subita +pallidez manifeste claramente quanto lhe custa semelhante resolução.</p> + +<p>—Escute, mamã... </p> + +<p>N'este ensejo, comtudo, resôa no vestibulo um ruido: uma voz aguda a chamar +por Maria Alexandrovna.</p> + +<p>Maria Alexandrovna levanta-se com vivacidade.</p> + +<p>—Ah! meu Deus! demonios levem aquella pêga! É a coronela! E eu que +quasi que a despedi, ha quinze dias! accrescenta, desesperada... </p> + +<p>Mas é impossivel recebêl-a agora! De todo impossivel! E comtudo isso... quem +me diz que me não virá trazer noticias... aliás, nunca se atreveria. É caso +sério, Zina, é-me indispensavel sabêl-o, nada se póde desprezar... </p> + +<p>—Como lhe fico grata por esta sua visita... quanto estimo!... exclama +correndo ao encontro da coronela. A que feliz acaso serei eu devedora de se ter +lembrado de mim, minha preciosa Sofia Petrovna? Encantadora surpreza!</p> + +<p>A Zina deitou a fugir.<span class="pn">{65}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>VI</h2> + +<p>A coronela Sofia Petrovna Farpukhina apenas suggere moralmente o tipo da +pêga. Quanto ao phisico, participa antes do pardal. É uma mulherita cincoentona +com sardas entre ruivas e amareladas pela cara e uns olhos que nunca param. O +corpo ético, implantado sobre umas sólidas pernas de pardal, esconde-se por +debaixo das amplas pregas d'um vestido escuro, de seda, em continuo restralar, +visto como a coronela nunca póde estar quiéta. É uma linguareira ruim e +vingativa, perde o tino com a seguinte ideia: "Sou coronela." Ella e o marido, +coronel reformado, jogavam a unhada a toda a hora: elle ostentava no rosto os +signaes das garras da consorte. Ella, préga no bucho com quatro copinhos de +vodka, todas as manhãs, e outros tantos ao deitar. Vota um odio figadal a Anna +Nikolaievna Antipova e á Natalia <span class="typo" title="no original: Dmitorévna">Dmitrievna</span> Padknvina, que a sacudiram das suas +salas, ha oito dias.</p> + +<p>—Demoro-me apenas um instantinho, meu anjo, pia a dama; nem sequer me +quero sentar. Traz-me aqui unicamente o desejo de lhe contar os singularissimos +acontecimentos que se estão dando. O tal principe faz andar n'uma roda viva +esta nossa Mordassov. Os nossos espertalhões—comprehende—não lhe +largam o rastro, a farejál-o por todos os cantos, a puxál-o para todos os +lados, obrigam-n'o a beber champanhe. Eu se o não visse não o acreditava.<span +class="pn">{66}</span> Como é que o deixou saír? Não sei se sabe que, n'este +instante, está em casa da Natalia Dmitrievna?</p> + +<p>—Em casa de Natalia Dmitrievna? exclama Maria Alexandrovna dando um +pulo na cadeira. Mas se elle ia apenas fazer a sua visita ao governador e a +casa de Anna Nikolaievna, e sem tenção de se demorar.</p> + +<p>—Para se não demorar, isso sim! E agora, corra atrás d'elle!</p> + +<p>Não encontrou em casa o governador, foi visitar a Anna Nikolaievna, e +prometteu-lhe jantar com ella, e a Natachka<a name="tex2html5" +href="#foot147"><sup>[5]</sup></a>, bem sabe, que nunca sáe de casa, lá estava +pespegada; carregou com elle para almoçar. E ahi tem o seu principe!</p> + +<p>—Que me diz! E o Mozgliakov a prometter-me... </p> + +<p>—Pois sim! O tal seu Mozgliakov a quem a senhora não se farta de pôr +nas nuvens!... Está em casa delles! Olho n'elle! Veja lá se o obrigam a jogar +as cartas e principia para ahi a perder como succedeu o anno passado. E o +principe é capaz de se deixar limpar que nem um prato. E que calumnias que ella +inventa, aquella Natachka! A atordoar os ouvidos a toda a gente com a galga de +como a senhora faz a côrte ao principe com o sentido em... com um certo +sentido, não sei se m'entende? E pespega-lh'o a elle na cara, até; e elle sem +perceber patavina, sentado para ali como um gato encharcado e a responder, a +cada palavra: "Ah! Está claro, está claro!" E sabidas as contas é ella a +propria que... Mandou saír a Sonka<a name="tex2html6" +href="#foot148"><sup>[6]</sup></a>. Ora imagine! Com<span +class="pn">{67}</span> quinze annos e anda ainda de vestido curto que mal lhe +chega ao joelho; tambem mandou vir aquella orfã, a Machka,<a name="tex2html7" +href="#foot150"><sup>[7]</sup></a> com um vestido ainda mais curto. Impingiram +a ambas uns casquêtesinhos encarnados cheios de plumas, não sei para quê, e ao +som do piano põem-se a dansar, aquelles dois espinafres, deante do principe, a +Kozatchok.<a name="tex2html8" href="#foot151"><sup>[8]</sup></a> Ora a minha +amiga está farta de conhecer o fraco ao principe! A babar-se todo: "Que... e... +fó... órmas!" diz elle "... Que... e... fó... ó... órmas!" E a mirál-as pelo +monóculo, e ellas com uns módinhos, as duas perúas! Todas afogueadas á força de +levantarem a perna! E toda a gente a rir, faça ideia como e porquê!... Que +nojo! E chamam áquillo dansar! Aqui estou eu que dansei de chale, quando saí do +collegio aristocratico de Madame Jarmé: fiz sensação, acredite... pela +nobreza!</p> + +<p>Fartaram-se até de dar palmas uns senadores. Estavam a educar nesse mesmo +collegio filhas de principes e de condes.—Mas a tal Kozatchok, aqui para +nós, é tal qual o Cancan! E eu com a cara a arder, de envergonhada! Não me pude +conter... </p> + +<p>—Mas, então... tambem estava em casa da Natalia Dmitrievna? A senhora? +Cuidei que... </p> + +<p>—Então que quer! Ella offendeu-me, a semana passada, e não me ensaiei +para o pespegar a toda a gente. Mas que quer, minha amiguinha, se eu estava +morta por ver o principe, ainda que fosse por uma greta da porta, e ahi tem por +que é que lá fui, apezar de tudo, a casa da Natalia Dmitrievna;<span +class="pn">{68}</span> a não ser o principe, não era eu que lá tornava a pôr os +pés! Ora imagine; servem chocolate a toda a gente, e a mim, nem raça, nem +sequer abrem a bocca para me pedir desculpa! Ha de ter noticias minhas! Mas +adeus, meu anjo, vou-me embora, estou com muita pressa... é-me indispensavel +encontrar em casa a Apulina Panfilovna para lhe contar o caso. Ah! Pode-se +desde já considerar viuva da lindeza do tal principe, não é elle que volta para +sua casa. Está perdido da memoria, bem sabe, e a Anna Nikolaievna terá cuidado +em o não deixar saír.</p> + +<p>Estão com medo de que a minha amiga... todas ellas... não sei se percebe? a +proposito da Zina... </p> + +<p>—Que horror!</p> + +<p>—É como lhe digo; já corre até por essa cidade. A Anna Nikolaievna não +o deixa saír sem jantar e depois não o larga. Os planos d'ella são todos elles +armados contra a senhora, meu anjo! Fui deitando o olho para o pateo: que +reboliço! Prepararam um jantar com trinta entradas, mandaram vir champanhe. +Quer um conselho? Veja se trata de lhe deitar a mão antes de que elle vá a casa +d'ella. Não, que elle, pertence-lhe, é seu hospede! Não se deixe engazupar por +aquella espertalhona, por aquella ranhosa! Não vale a sola de um sapato, lá com +ser mulher de um procurador. E eu, aqui onde me vê, sou coronela, fui educada +no collegio aristocratico de Madame Jarmé... Forte nojo! Adeus, meu anjinho, +tenho o trenó á espera, se não fosse isso, fazia-lhe companhia.</p> + +<p>E abalou a gazeta viva.</p> + +<p>Maria Alexandrovna, desesperada, toda ella n'um tremor. Não padece duvida +que o conselho da coronela é seguro e<span class="pn">{69}</span> pratico; não +ha tempo para perder, mas subsiste ainda a grande difficuldade.</p> + +<p>Maria Alexandrovna investe para o quarto da Zina. A Zina andava ás voltas +pela casa, de mãos no peito, muito enfiada, cabisbaixa, no auge da afflicção. +Borbotavam-lhe nos olhos as lagrimas. Fulge-lhe porém no semblante uma +expressão de decisão, assim que põe os olhos na mãe. Engole as lagrimas e +refega-lhe os labios um risinho sarcastico.</p> + +<p>—Mamã, diz ella, antecipando-se a Maria Alexandrovna, desperdiçou +thesouros de eloquencia em minha honra, de mais, até, visto que me não +conseguiu cegar a vista, e eu não ser nenhuma creança. Querer persuadir-me de +que, eu, casando com o principe, ia praticar um acto de irmã de +caridade,—profissão para que não sinto a minima vocação,—justificar +mediante um nobre fim baixezas egoistas, tudo isso representa apenas o mais +grosseiro egoismo, entendeu?</p> + +<p>—Porém, meu anjo... </p> + +<p>—Cale-se, mamã, tenha paciencia, e oiça-me até ao fim. Saiba, pois, +que tenho a consciencia da sua hypocrisia. Estou pois plenamente convencida de +que o verdadeiro fim de tudo isto é vil; e comtudo, acceito a sua proposta, +completamente, mas <em>completamente</em>, entendeu? Estou prompta a casar com +o tal principe, prompta a ajudar os seus esforços no sentido de o convencer a +casar commigo. O motivo d'esta minha resolução, não é da conta da mamã, +baste-lhe saber que me prontifico a tudo: ajudál-o-hei a enfiar as botas, serei +sua creada, hei de dansar para que elle se não arrependa de ter casado commigo. +Mas, em troca, peço-lhe<span class="pn">{70}</span> que me diga, o modo por que +pretende alcançar semelhante resultado. Não ponho em duvida, visto que se +empenha n'este negocio, o facto da mamã ter já urdido o seu plano. +Transmita-m'o, seja franca uma vez na sua vida, eis as minhas condições.</p> + +<p>Maria Alexandrovna ficou tão embatucada, que emudeceu sem bulir com um dedo, +com os olhos espipados. Contara com a lucta contra as ideias romanescas da +filha, e ficou estupefacta ao vêl-a decidida a agir contra as proprias +convicções. O negocio toma verdadeira consistencia. Maria Alexandrovna, lá por +dentro, não cabe em si de contente.</p> + +<p>—Zinotchka! exclama enthusiasmada, és a carne da minha carne e o osso +dos meus óssos!</p> + +<p>Nem uma palavra mais pode accrescentar, lança-se nos braços da filha.</p> + +<p>—Ah! meu Deus! Dispense-me dos seus abraços, mamã! respondeu, +enfadada, a Zina. É absolutamente deslocado esse seu enthusiasmo. Exijo uma +resposta á minha pergunta, e nada mais!</p> + +<p>—Mas, Zina, eu amo-te, adoro-te, e tu a repelires-me! É para te ver +feliz que eu ando a trabalhar. E, dos olhos de Maria Alexandrovna borbotavam +lagrimas <em>sincéras</em>. Effectivamente, ama a seu modo a Zina, e d'ahi, a +commoção do triumpho torna-a tão sentimental como qualquer <em>baba</em>,<a +name="tex2html9" href="#foot158"><sup>[9]</sup></a> áquelle general de saias. A +Zina sente bem, a despeito de tudo, que a mãe é sua amiga; mas pésa-lhe +semelhante amor, preferir-lhe-hia o odio.<span class="pn">{71}</span></p> + +<p>—Pois bem! Não se zangue, mamã; sei muito bem o que vou fazer, se eu +estou tão afflicta!... disse para tranquillizál-a.</p> + +<p>—Eu não me zango, não me zango, meu anjinho, cacarêja Maria +Alexandrovna recuperando animo. Não deixo de avaliar a tua agitação. Mas não +vês tu, querida amiguinha... tu pediste-me franqueza... Seja assim, serei +franca, mas acredita-me. Lá quanto a um plano inteiramente definido, é coisa +que ainda não tenho, nem o posso ter: tudo depende das circumstancias. Antevejo +até algumas difficuldades.</p> + +<p>... Se aquella pêga, aindagora, esteve-me para ahi a grasnar um chorrilho de +pessimas noticias. (Ah! meu Deus! não tenho tempo para perder!) Serei pois +franca: juro-te que hei de conseguir o meu fim. Não vás acreditar n'uma miragem +qualquer, n'uma illusão; o meu plano assenta todo elle na toleima do principe, +e representa isso uma talagarça em que se pode bordar tudo que se quiser. O +mais importante é que nos deixem operar. E demais, essas fufias nada podem +contra mim! exclama Maria Alexandrovna assentando um murro na mêsa. Tem +confiança, mas cumpre operar depressa! Hoje ainda façamos o principal, se for +possivel.</p> + +<p>—Está bem, mamã; escute ainda... uma franqueza. Sabe o motivo porque +tanto me interessa esse seu plano? É porque não estou segura de mim propria. +Disse-lhe que me achava decidida a praticar semelhante baixeza. Mas se os +pormenores d'esse seu plano forem repugnantes em demasia, desde já lhe declaro +que me verei obrigada a desistir. Sei que será mais uma baixeza, o resignar-me +a entrar<span class="pn">{72}</span> no lodaçal e não ter animo de lá ficar. +Mas que se lhe ha de fazer? Se não pode deixar de ser assim!</p> + +<p>—Mas, Zina, meu anjo, onde é que tu vês n'isto baixeza? replica, +timida, Maria Alexandrovna. Trata-se de um bom casamento, de uma coisa normal; +encara as coisas d'este ponto de vista e verás que te ha de parecer muitissimo +razoavel.</p> + +<p>—Ah! mamã, pelo amor de Deus, nada de dissimulações para commigo! +Estou prompta para tudo, bem vê; que mais quer? Não se escandalize, peço-lh'o +eu, por eu dar ás coisas o nome que lhes compete: será, talvez, actualmente, +essa a minha unica consolação.</p> + +<p>E sorriu com tristeza.</p> + +<p>—Ora vamos! Vamos! Está bom, meu anjinho; pode haver estima reciproca sem +identidade de convicções. Quanto ao meu plano, tem a certeza em como te não irá +salpicar de lama, isso te juro eu! Quererás talvez comprometter-me? Tudo ha de +correr bem, com muita dignidade, até. Não ha de haver escandalo. E ainda quando +o houvesse, n'esse caso, d'este ou d'aquelle modo... já nós estariamos d'aqui +muito longe... diziamos adeus a Mordassov. E depois, essas gralhas que piassem +para ahi até rebentar, já nos não fazia mossa. Merecem que façamos caso +d'ellas, porventura? E como é que tu, Zina, tão soberba, podes arrecear-te de +semelhante gente?</p> + +<p>—Ah! mamã, a mim não me mettem medo, acredite! Não me entende! +respondeu a Zina, irritadissima.</p> + +<p>—Está bom, está bom, minha joia, não te zangues! Onde eu queria chegar +era a que essa gentalha praticam vilanias a cada instante, e que tu... por uma +só vez... Mas,<span class="pn">{73}</span> que digo eu... sempre sou muita +tola! Trata-se até de uma nobre acção! Depende tudo do ponto de vista... </p> + +<p>—Basta, mamã, basta! exclama a Zina.</p> + +<p>E bate o pé.</p> + +<p>Deixa lá! meu anjo, não torno mais!</p> + +<p>Silencio. Maria Alexandrovna fica a olhar pelas costas para a Zina, que +seguiu por a casa fora com uma expressão de cachorro a olhar para a chibata. +</p> + +<p>—Nem sequer chego a perceber como é que tenciona dar-lhe volta, +prosegue com enfado a Zina. Tenho a certeza de que o resultado que tirará será +uma affronta. Pela parte que me toca, tanto se me dá, mas vae ter desgosto, +creia. </p> + +<p>—Ora! Se é só isso que te dá cuidado, vae descançada, meu anjo!</p> + +<p>Comtanto que estejamos de accordo, quanto ao mais, pouco importa! Se tu +soubesses os transes de que eu tenho escapado, sã e a salvo! Em summa, +permitte-me fazer uma tentativa. É urgente que eu tenha quanto antes uma +conferencia com o principe. Já estou adivinhando o que d'aqui sairá. De quem eu +tenho medo é do tal Mozgliakov.</p> + +<p>—Do Mozgliakov? perguntou a Zina com desdem.</p> + +<p>—Do Mozgliakov, sim, pois que cuidas? Mas não te assustes, ainda +assim, Zina, hei-de induzil-o a auxiliar-me, até. Nem tu sabes ainda quem aqui +está, Zina! Ah! tão certa tenha eu a salvação, mas assim que ouvi falar no +principe, accudiu-me logo semelhante ideia! Foi uma revelação. Quem havia de +dizer que elle havia de vir parar a nossa casa! Bem podiamos estar cem annos á +espera d'uma occasião d'estas! Ah! és tão linda, minha Zina! Que<span +class="pn">{74}</span> belleza! Olha, eu, se fosse homem, atirar-te-hia aos pés +um reino! Sucia de asnos! Quem não ha de estar morrendo por beijar esta +mãozinha? (Maria Alexandrovna, effusiva, beija a mão da filha.) É a carne da +minha carne!... É preciso casál-o dê por onde der, áquelle imbecil! E que bem +viveriamos depois, Zina! Pois nunca nos havemos de apartar, não é verdade? Não +pões na rua tua mãe, quando te vires feliz? Tivemos os nossos desaguizados, mas +aonde irás tu encontrar outra amiga como eu? Eu, apezar de tudo... </p> + +<p>—Mamã, se está resolvida, é tempo de fazer alguma coisa. Está perdendo +minutos preciosos! disse a Zina, com impaciencia.</p> + +<p>—E já vae apertando. Vae, sim, effectivamente. E eu aqui a dar á +lingua! Querem açambarcar o principe! Vou já a correr. É já; mando chamar o +Mozgliakov e carrégo com o principe, á força, se fôr preciso. Adeus, Zinotchka! +Adeus, meu amor, minha pomba! Não te desconsoles, não desanimes, não estejas +triste. Então!... Tudo ha de correr com dignidade, com muita, até. Tudo está no +modo de encarar as coisas. Emfim! adeus, adeus!</p> + +<p>Maria Alexandrovna faz o signal da cruz á Zina e sae. Investe para o quarto, +detem-se um momento em frente do espelho e, d'alli a dez minutos, lá vae +rodando por essas ruas de Mordassov, na carruagem de patins (já dissemos que +Maria Alexandrovna vivia á larga.)</p> + +<p>—Não, não são vocês que podem luctar de esperteza commigo! A Zina +annue, e já é meio caminho andado! Não ser bem succedida! Que asneira! Ah! +Zina, com que então, ha calculos que influem no teu animo? Commovi-a +fazendo-lhe luzir deante dos olhos um risonho porvir... Como<span +class="pn">{75}</span> ella estava linda, hoje! Ora, tivera eu sido tão +formosa, e haveria revolvido, até, meia Europa. Em summa, paciencia, esperemos. +O tal Shakspeare ha-de-lhe passar assim que ella se vir princêsa... E que +princêsa não ha de ser!... Gosto de a ver assim; tão soberba, tão senhora de +si!... Tem uns olhos de rainha!... Como é que ella poderia deixar de conhecer +que ia n'isso o seu interesse?—Até que emfim percebeu-o! Ficarei vivendo +em sua companhia, e ha de consentir em tudo que eu quiser. É princêsa? pois +tambem eu! Hão-de falar de mim, em Petersburgo, até... E adeus... cidadezinha +da asneira! O principe e o garoto hão-de ir marchando d'esta para melhor, e eu, +caso-a com uma testa coroada! Ha só uma coisa que me mette medo: não terei +usado para com ella excesso de franqueza? Assusta-me! Assusta-me deveras!</p> + +<p>E engolfa-se em suas cogitações Maria Alexandrovna.</p> + +<p>Assim que se viu entre quatro paredes, a Zina poz-se ás voltas no quarto, de +mãos atráz das costas, a pensar. E não lhe faltava em quê, com certeza! E a +revezes e quasi inconscia repetia: "é urgente, é urgente, ha já muito tempo que +devia estar feito!" Que quereria dizer aquella exclamação? Por mais de uma vez +as lagrimas lhe refulgiram n'aquellas pestanas tão longas e sedeúdas. Nem +pensava, sequer, em as enxugar. A mãe fazia mal em estar-se inquietando! A Zina +achava-se disposta para tudo... </p> + +<p>"Eu te direi, deixa estar! pensou a Nastassia Petrovna ao saír do seu cadoz +da farrapada depois de se haver retirado a coronela. E eu com tenções de pôr +uma gravata côr de rosa por causa do tal principe! Sempre sou bem<span +class="pn">{76}</span> tola! A enfeitar-me para casar com elle! Ora, uma +gravata depressa se põe! Deixa tu estar, minha Maria Alexandrovna! Com que +então, eu, sou uma pécora, uma miseravel? Acceito duzentos rublos para arrombar +uma bocêta! Pois já se vê, não deixar escapar a occasião!... E demais... eu se +o fiz foi por ser generosa, pois ainda tive que fazer despêsa... Eu te direi! +Hei-de-lhes fazer ver a ambas se sou uma pécora ou se o não sou! Hão de +aprender a lidar com a Nastassia Petrovna!<span class="pn">{77}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>VII</h2> + +<p>Maria Alexandrovna, comtudo, deixava-se arrastar pelo proprio talento. +Concebeu um plano grandioso quanto audaz. Casar a filha com um ricaço, com um +principe e um moribundo; casál-a sem que ninguem o soubesse, aproveitando a +senilidade do seu hospede, era não só ousadia, mas imprudencia, até. Não havia +duvida, o projecto era seductor, porém, em caso de malogro, poderia vir a +reverter para o autor n'uma confusão sem antecedentes. Maria Alexandrovna bem o +sabia, mas não era mulher para recuar.</p> + +<p>—Tenho-me visto em peores lances, dissera ella á Zina, e era verdade. +E seria uma heroina, se assim não fôra?</p> + +<p>Certamente, o projecto tinha seus visos de bandoleirismo á mão armada; Maria +Alexandrovna não era, porém, mulher para se prender com taes ninharias. Resumia +o caso n'um dito muito acertado: "uma pessoa não fica para sempre casada." Era +simplicissima semelhante ideia, mas apresentava á imaginação tamanhas +vantagens, que Maria Alexandrovna era a propria a assustar-se.</p> + +<p>Como mulher de recursos, dotada de legitima faculdade creadora, urdiu o seu +plano n'um revez de mão. É certo que apenas se lhe pintiparava na mente a +largos traços, um tanto vagos, até. Escasseavam pormenores e havia que contar +com circumstancias imprevistas. Maria Alexandrovna tinha porém confiança em si +mesmo. Não era<span class="pn">{78}</span> o malogro que lhe mettia medo, lá +isso, não; o que a sobresaltava, era a impaciencia em encetar a lucta. A +impaciencia, a nobre impaciencia minava-a, ao pensar nos possiveis obstaculos. +</p> + +<p>As mais sérias difficuldades, antecipava-as Maria Alexandrovna por parte dos +seus nobres concidadãos de Mordassov, e acima de tudo, da nobre sociedade das +damas Mordassovenses: Conhecia, por experiencia propria, até onde ia o odio de +semelhante gente. Nem sequer punha em duvida, já se vê, que n'aquelle ensejo +toda a gente lhe avaliava as intenções, supposto que ninguem houvesse dito +ainda uma palavra fosse a quem fosse. Sabia, á força de triste experiencia, que +não havia um unico acontecimento, por mais secreto que fosse, referente á sua +vida, que, dando-se pela manhã, não andasse á noite na lingua de todas as +mexeriqueiras. Maria Alexandrovna, pois, antevia apenas o perigo, esta casta de +presentimentos, porém, que jamais a haviam enganado, não a enganariam ainda +d'esta vez.</p> + +<p>Eis, effectivamente, o que succedera, e de que ella ainda não tinha +conhecimento. Pela volta do meio dia, isto é, tres horas, minuto por minuto, +depois de haver chegado o principe a Mordassov, corriam pela cidade uns boatos +algo singulares. Qual teria sido o ponto de partida? Ninguem o sabia, mas caso +é que se espalharam acto continuo.</p> + +<p>Afiançava toda a gente que Maria Alexandrovna já tinha promettido a mão da +filha, da sua Zina, com vinte e tres annos e sem um kopek de dote, ao principe: +que o Mozgliakov tinha sido posto a andar e que estava tudo resolvido e +assignado.<span class="pn">{79}</span></p> + +<p>Qual era a causa de semelhantes boatos? Tão bem conheciam Maria Alexandrovna +que lhe tivessem adivinhado, com tão perfeita unidade, os mais intimos +pensamentos? Nem a inverosemelhança de um tal boato, visto como um projecto +d'aquelle genero se não leva a effeito no espaço de uma hora, nem a falta +evidente de todo e qualquer fundamento, pois ninguem sabia d'onde partira a +noticia, puderam dissuadir os Mordassovenses. O mais surprehendente, era o +haver-se principiado a espalhar o boato no proprio ensejo em que Maria +Alexandrovna encetava aquella sua conversa com a Zina a semelhante respeito. +Tal é o faro dos provincianos! O instincto dos novelleiros das cidadécas +attinge por vezes as raias do maravilhoso. E todavia, o caso explica-se. +Baseia-se no estudo intimo e perseverante do proximo. Todo o provinciano vive +debaixo de uma redoma de vidro, como se disséssemos. É-lhe absolutamente +impossivel esconder seja o que fôr aos seus honrados concidadãos. Sabem a seu +respeito aquillo que elle é o proprio a ignorar. O provinciano, de sua +natureza, devia de ser um psicologo profundissimo. E eis o motivo porque eu ás +vezes pasmava sincéramente d'encontrar na provincia tão poucos psicólogos e +tanto imbecil! Mas ponhamos isso de banda.</p> + +<p>Estoirou a noticia tal qual o raio. O casamento com o principe antolhava-se +tão vantajoso a toda a gente, tão brilhante, que a face extranha d'aquelle +negocio a todos escapou. Dava-se ainda uma circumstancia: A Zina era tão odiada +ou mais ainda que a propria Maria Alexandrovna; e por quê? Ninguem o sabia. +Entraria talvez em linha de conta a formosura da Zina, talvez pelo facto +de<span class="pn">{80}</span> Maria Alexandrovna, apezar de todos os pezares, +ser, muito mais do que a filha, da mesma massa das outras Mordassovenses. +Ausentasse-se ella da cidade, e quem sabe, é possivel que deixasse saudades. +Dava animação á sociedade mediante incidentes variados. Sem ella +aborrecer-se-hiam. Por outro lado, a Zina, pela sua attitude, parecia pairar +nas nuvens e não em Mordassov. Não era da mesma raça, e talvez, inconsciamente, +até, tivesse uns modos demasiado altivos. E eis que esta mesma Zina, ácerca de +quem corria tanta historia escandalosa, aquella soberbona, apparecia +millionaria, princêsa e entrava no rol da aristocracia. Dentro de um ou dois +annos, talvez, vem a enviuvar e casa para ahi com algum duque, ou algum +general, e quem sabe, com o governador, e coincide exactamente o estar viuvo e +o ser grande admirador da formosura o governador de Mordassov. Desde então virá +a ser a primeira senhora da provincia, e um tal pensamento, só por si, era +intoleravel, nem haveria noticia capaz de provocar tanta indignação em +Mordassov.</p> + +<p>Estrugiam por todos os lados clamores de raiva. Diziam que era indigno; que +o jarreta não tinha o juizo todo; que o tinham enganado, embaído; que urgia +livrál-o da soffreguidão d'aquellas garras; que, apuradas as contas, era +immoral,—uma ladroeira! Que não faltavam meninas valendo tanto como a +Zina e em condições de casar com o principe.</p> + +<p>Todas estas exclamações e estas linguarices eram apenas supposições da parte +de Maria Alexandrovna, e já era demais. Estava farta de saber que toda a gente +se achava prompta a praticar o possivel e o impossivel, até, para se<span +class="pn">{81}</span> oppôr a seus projectos. Pois não haviam confiscado o +principe e não tinha agora que o reconquistar a unhas e dentes? E d'ahi, dado +ainda o caso de que ella lograsse tornál-o a agarrar e trazêl-o outra vez para +sua casa, não poderá comtudo têl-o preso a toda a hora. Em summa, quem é que +lhe podia affiançar que hoje, ainda, dentro em duas horas, o côro solemne em +peso das damas de Mordassov se não terá congregado na sua sala, e a pretexto de +ordem tal que se torne impossivel recebêl-as? Se ella lhes fechar a porta, +entram-lhe pela janella. Em conclusão, não se podia perder um instante, e +todavia, nada estava feito ainda.</p> + +<p>De subito, eis que brota na mente de Maria Alexandrovna, e amadurece do +mesmo jacto, uma ideia genial. Referir-nos-hemos á dita ideia em logar +competente: n'este ensejo, a nossa heroina lá ia rodando a toda a pressa +através das ruas de Mordassov, tremenda e inspirada, decidida a dar batalha +para reconquistar o principe. Nem sequer sabia o alvitre que esposaria nem onde +o iria encontrar; mas sabia com certeza que mais depressa devia afundar-se +Mordassov do que falhar-lhe um unico de seus projectos.</p> + +<p>Do seu primeiro passo não podia saír-se melhor. Encontrou o principe na rua +e carregou com elle para jantar.</p> + +<p>Se me perguntarem o modo porquê, cercada por tantas ciladas armadas contra +si, conseguiu pôr o nariz a uma banda á Anna Nikolaievna, declaro que considero +esta pergunta offensiva para Maria Alexandrovna. Deteve o principe no acto +d'este estar á porta da casa da sua rival, e a despeito de tudo, a despeito até +das objecções do proprio Mozgliakov, receoso de um escandalo, atirou com o<span +class="pn">{82}</span> ginjinha para dentro do trem. Era n'isto exactamente que +Maria Alexandrovna levava as lampas ás suas rivaes. Nos lances decisivos, não +se detinha em presença de um escandalo, tendo como axioma que o exito a tudo +justifica. Escusado será dizer que o principe não oppôz resistencia de maior, e +como sempre esqueceu-se de tudo e ficou muito contente da sua vida.</p> + +<p>Ao jantar, não fez senão dar á lingua, muito alegre, a fazer trocadilhos, a +contar anecdótas que nunca concluia e passando de uma para outra sem dar por +isso. Tinha bebido tres copos de champanhe em casa de Natalia Dmitrievna. Ao +jantar, bebeu mais alguns e ficou alegrinho. Maria Alexandrovna era a propria a +lhe não deixar nunca o copo vazio.</p> + +<p>Eram irreprehensiveis as iguarias, aquelle ladrão do Nitichka esquecera-se +de as chamuscar. A dona da casa desvelava-se em electrizar os seus hospedes com +os enlevos da sua amabilidade. A Zina, comtudo, mantinha gélido silencio, e o +Mozgliakov nem por isso estava nos seus dias. Comia pouco, estava muito +preoccupado, a pensar; e, coisa que raras vezes lhe succedia, Maria +Alexandrovna estava inquieta. A Nastassia Petrovna, mazomba, fazia ás escondidas +signaes ao Mozgliakov e este sem dar por tal. A não serem Maria Alexandrovna e o +principe, haveria descambado em jantar de enterro.</p> + +<p>E comtudo, Maria Alexandrovna encobre intima afflicção: assusta-a a Zina, +com aquelles seus modos tristonhos, de olhos vermelhos. E demais, o tempo não +sobeja, e Mozgliakov, esse obstaculo material, está para alli como um marco de +pedra. Ergue-se da mêsa Maria Alexandrovna,<span class="pn">{83}</span> minada +por funda inquietação. Mas qual não é o seu espanto, deixem-me assim dizer, +quando vem ter com ella o Mozgliakov e lhe declara, que sente muito, mas que se +vae retirar immediatamente!</p> + +<p>—Aonde é que vae, então? indaga ella, com simpatia.</p> + +<p>—Eu lhe digo, Maria Alexandrovna, enceta o Mozgliakov atrapalhado, +aconteceu-me um caso um tanto esquisito... Nem sei até como lh'o diga... Mas, +pelo amor de Deus, dê-me um conselho.</p> + +<p>—Que é, diga lá?</p> + +<p>—Meu padrinho, o Borodoniev... conhece, aquelle commerciante... +encontrei-o hoje... está irritadissimo, dirigiu-me exprobações, diz que sou um +soberbo. Com esta é a terceira vez que venho a Mordassov sem ir para sua casa. +"Vem hoje, me disse elle, tomar uma chavena de chá commigo". São quatro horas +em ponto, e elle toma o chá, á antiga, ahi pelas cinco horas, depois da sésta. +Que quer que lhe eu faça... Eu avalio, Maria Alexandrovna... Mas colloque-se no +meu logar! Foi elle que teve mão em meu pae que se queria enforcar, quando +perdeu aquelle dinheiro do Estado!... Foi n'essa occasião, por signal, que elle +insistiu em ser meu padrinho. Se fôr a effeito o meu casamento com Zina +Aphanassievna, bem sabe que disponho apenas de cento e cincoenta almas, ao +passo que elle é millionario, e mais que isso, até, segundo affirmam. Não tem +filhos. Se eu estiver a bem com elle, pode deixar-me cem mil rublos. Ora elle +está com setenta annos, lembre-se d'isto!</p> + +<p>—Ah! meu Deus! Mas então que é que o prende? Por que está para ahi a +marralhar? exclama Maria Alexandrovna,<span class="pn">{84}</span> disfarçando +a custo o contentamento. Vá-se embora, vá! Com essas coisas não se brinca! E +era por isso então que estava tão absorto durante o jantar? Vá, meu amigo, não +se demore! Mas devia de ter ido vêl-o esta manhã para lhe provar que aprecia a +sua benevolencia. Ai! esta mocidade!</p> + +<p>—Mas, se Maria Alexandrovna tem sido a propria a arguir-me de +semelhantes relações! Tudo era dizer-me que era um mujik, parente de +taberneiros e agentes de negocio!</p> + +<p>—Ah! meu amigo, quanta coisa se diz sem pensar! Tambem sou sujeita a +enganar-me.—Não me tenho na conta de infallivel. E d'ahi... não me +recordo... mas... é possivel que eu me achasse numa tal disposição de +espirito... em summa, o senhor não tinha ainda formulado o seu pedido. +Certamente, que houve da minha parte egoismo maternal, mas agora devo encarar +as coisas de um ponto de vista novo. Qual seria a mãe que m'o levasse a mal? Vá +e não perca um instante. Passe a noite com elle... e oiça lá! Fale-lhe a meu +respeito, diga-lhe que o tenho em muita conta, que sou muito sua amiga... +Proceda com habilidade. Ah! meu Deus! Tinha-se-me varrido de todo. E era eu que +lh'o devia ter lembrado.</p> + +<p>—Resuscitou-me, Maria Alexandrovna! exclama Mozgliakov encantado. E +agora obedecer-lhe-hei em tudo e por tudo. E eu sem me atrever a falar-lhe +n'isso! Pois bem, adeus! vou-me embora. Desculpe-me para com a Zinaida +Aphanassievna. E d'ahi, hei de voltar.</p> + +<p>—Receba a minha benção, meu amigo. E não se esqueça de falar a meu +respeito. Effectivamente, é um velho estimabilissimo.<span +class="pn">{85}</span> Ha muito tempo que mudei de opinião a seu respeito. E +demais, eu sempre o estimei na qualidade de Russo dos bons tempos, tão despido +de artificios. Até mais ver, meu amigo, até mais ver!</p> + +<p>"Foi uma fortuna carregar com elle o demonio! Que estou dizendo, foi o +proprio Deus que veiu em meu auxilio."</p> + +<p>Pavel Alexandrovitch estava já no vestibulo a enfiar a <em>chuba</em>, eis +que rompe por alli dentro, saída não se sabe d'onde, a Nastassia Petrovna.</p> + +<p>—Aonde vae? diz, agarrando-o pela mão.</p> + +<p>—A casa do Borodoniev, Nastassia Petrovna, a casa do meu padrinho. +Coube-lhe a honra de me baptizar. Um velho rico, um padrinho de quem se herda, +um homem que se deve amimar.</p> + +<p>—A casa do Borodoniev! Pois diga adeus, desde já, á sua noiva, disse +com sequidão Nastassia Petrovna.</p> + +<p>—Como assim?</p> + +<p>—Assim mesmo. Suppõe que a tem segura? Isso sim! Vae, mas é casar com +o principe.</p> + +<p>—Com o principe. Que me diz, Nastassia Petrovna?!</p> + +<p>—Que me diz, quê?—Quer ver com os proprios olhos e ouvir com os +proprios ouvidos? Pendure para ahi a <em>chuba</em>, e venha commigo.</p> + +<p>Pavel Alexandrovitch, aturdido, atira para o lado a <em>chuba</em> e +deixa-se levar para o quarto escuro, cuja porta dá para a sala.</p> + +<p>—Mas que quer isto dizer! Nastassia Petrovna, não percebo patavina.</p> + +<p>—Perceberá assim que ouvir. A comedia não tarda a principiar.<span +class="pn">{86}</span></p> + +<p>—Qual comédia?</p> + +<p>—Chiton! Não fale tão alto! Qual comédia? E é o senhor que paga as +despêsas; andam a enganál-o; esta manhã, assim que o senhor saíu com o +principe, a Maria Alexandrovna pôz-se a apoquentar de dôr d'ilharga a Zina, +mais de uma hora, com o sentido em persuadil-a a aceitar para marido aquelle +jarreta d'engonços. Dizia ella que não havia nada mais facil do que era o +enredál-o. Propunha uns taes alvitres que a mim propria me causavam asco. +Ouvi-os d'aqui, a Zina annuiu. E que cama lhe não fizeram ao senhor, ambas de +duas! Tem-n'o na conta de um imbecil, e a Zina declarou formalmente que não +casava com o senhor por coisa nenhuma d'este mundo. E eu, tão tola, que já me +estava até enfeitando para pôr ao pescoço uma gravata côr de rosa!</p> + +<p>Mas escute! escute!</p> + +<p>—Se assim é,... é uma infamia! murmurou Pavel Alexandrovitch, +esparvoado, fitando olho a olho a Nastassia Petrovna... </p> + +<p>—Mas escute! Vae ouvir o bom e o bonito!... </p> + +<p>—Escutar onde?</p> + +<p>—Debruce-se se ali n'aquella frincha da porta.</p> + +<p>—Mas... Nastassia Petrovna, eu sou lá homem que me ponha a escutar ás +portas?!</p> + +<p>—Emprega bem o seu tempo! Aqui, meu paezinho, é preciso metter a honra +na algibeira. Desde que cá veiu, escute... </p> + +<p>—Comtudo... </p> + +<p>—Se não quer, resigne-se a ficar a chuchar no dedo! E a mim que me +importa? Eu com dó do senhor, e o senhor<span class="pn">{87}</span> com +ceremonias! Será para mim que eu ando a trabalhar? Eu, por mim, já nem cá fico +esta noite. </p> + +<p>Pavel Alexandrovitch, muito contra sua vontade, encosta o ouvido á fisga da +porta. Referve-lhe o sangue nas arterias. Não percebe uma palavra de quanto em +volta de si se está dando.<span class="pn">{88}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>VIII</h2> + +<p>—Com que, então, divertiu-se muito, principe, em casa da Natalia +Dmitrievna? indaga Maria Alexandrovna, deitando olhar soffrego para a futura +prêsa.</p> + +<p>(Enceta de proposito as hostilidades do modo mais innocente. De commovida, +tem o coração aos pulos.)</p> + +<p>Depois de jantar, transferiram o principe para a sala onde este havia +entrado pela manhã. O ginjinha, com lastro de seis copos de champanhe, já não +conserva equilibrio. Em compensação, não cessa de badalar. Maria Alexandrovna +percebe que é apenas uma excitação de momento e que o hospede, d'alli a nada, +ferra comsigo a dormir. Cumpre pois aproveitar a occasião. Nota com jubilo que +o voluptuario ginjinha dispara á Zina uns olhares de gula. Rejubilam os seus +maternaes sentimentos.</p> + +<p>—Ex-trê-ê-ma-mente! e, não sabe? é uma mulher incom-pa-ra-á-vel... +aquella Natalia Dmitrievna, uma incompa-ra-vel mulher!</p> + +<p>A despeito dos muitos cuidados, aquelles louvores tributados á rival fazem +sangrar o ciume a Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—Ora vamos, principe! exclama com os olhos a ferir lume, se essa sua +Natalia Dmitrievna é uma mulher incomparavel, tapa-me a boca, mas é preciso que +o principe conheça muito mal esta nossa sociedade! Não passa tudo de um alarde +descarado de sentimentos ausentes, comédia, verniz, oiro ao de cima.<span +class="pn">{89}</span></p> + +<p>Erga uma pontinha ás apparencias, e encontrará um verdadeiro inferno +escondido por baixo das flores, uma ninhada de viboras promptas a tragál-o.</p> + +<p>—De-vé-ras! Estou pa-a-asmado!</p> + +<p>—Sou eu que lh'o digo! Ah! meu principe! Ora escute, é a Zina! +Assiste-me o dever—e a tanto me vejo obrigada—de contar ao principe +uma aventura ridicula que se deu a semana passada, com aquella Natalia +Dmitrievna—lembras-te?—Sim, principe, com aquella Natalia a quem +tanto admira.</p> + +<p>Ah! meu caro principe, affirmo-lhe que não sou mexeriqueira, mas devo +contar-lhe isto unicamente para lhe dar uma amostra viva e irrisoria da nossa +sociedade.</p> + +<p>Haverá quinze dias veiu visitar-me essa tal Natalia Dmitrievna. Estavam +servindo o café, e eu tinha que sair. Lembro-me muito exactamente das pedras de +açucar que ficaram no meu açucareiro de prata: estava cheio. Volto, e que hei +de eu ver? Restavam apenas tres pedrinhas. Ora, a Natalia Dmitrievna tinha +ficado sósinha! Que me diz a isto?</p> + +<p>Tem casa, dinheiro, tudo que lhe apetece... É comico e pequenino, pois não +acha?—E por aqui já pode avaliar o que é esta nossa sociedade em +Mordassov. </p> + +<p>—De-ve-ras?—É uma gulodice... sobre-natural! Mas como é que ella +pôde engulir um açucareiro?</p> + +<p>—E ahi tem a sua mulher incomparavel, principe; se já se viu uma +vergonha assim? Eu por mim estou que antes queria morrer, do que resolver-me a +praticar um acto tão nojento!</p> + +<p>—Está c... claro!... está... claro!—Mas ainda assim—sempre +lhe digo, que é uma linda mulher!<span class="pn">{90}</span></p> + +<p>—Quem? A Natalia Dmitrievna! Ora vamos, principe, ella o que é é uma +pipa. Ah! principe, principe, que está dizendo? Sempre fiz outra opinião do seu +bom gosto!</p> + +<p>—Está—c... claro—uma pipa!—Mas ainda +assim—sempre lhe digo que é bem feita; e depois, aquella pequer... rucha +que dansava... essa tambem é... bem feita.</p> + +<p>—A Sónitchka? Ora! Uma pequena! Tem apenas quatorze annos.</p> + +<p>—Está... claro!—mas ainda assim,... é tão leve... e com umas +formas..., tão... geitozinhas!... E a outra que dan... sou com ella?</p> + +<p>—Ah! aquella serigaita d'aquella orphã, principe?</p> + +<p>—Está claro—orphã! É porquinha,—devia ao menos ter lavado +as mãos,—mas é sedu-u-ú-ctora.</p> + +<p>E o principe, emquanto vae falando, não despega, com crescente avidez, o +monóculo do semblante da Zina.</p> + +<p>—Mas... que... linda... me... nina! tartamudéa... meio estarrecido... +</p> + +<p>—Zina, vê se tocas alguma coisa, ou antes... canta. Canta que é uma +delicia, principe; chega a ser uma virtuose, ouso affirmál-o, uma verdadeira +virtuose. E se soubesse, principe, prosegue a meia voz Maria Alexandrovna +emquanto Zina se approxima do piano, com aquelle seu andar, lento e cadenciado, +que põe num sobresalto o jarreta, e se soubesse a que ponto é amoravel, como é +carinhosa para commigo! Que coração! Que sentimentos!</p> + +<p>—Está claro! Sentimentos! E se quer que lhe diga... ainda não conheci +senão uma mulher que se lhe possa comparar como formosura, responde o principe +a engulir a saliva, é a condessa Naniskara; que Deus tem. Já lá vae<span +class="pn">{91}</span> ha trinta annos. Que mulher! Que maravilhosa formosura! +Casou com o cozinheiro.</p> + +<p>—Com o cozinheiro, principe!?</p> + +<p>—Está claro—o cozinheiro, um francez, no estrangeiro.—E +arranjou-lhe lá no estrangeiro um titulo de conde. Um homem muito instruido, +com uns bigodinhos.</p> + +<p>—E como é que viviam, e onde, principe?</p> + +<p>—Está claro—viviam muito bem! E d'ahi, não tardou muito que se +não apartassem.—Elle roubou-a e safou-se. Quer-me parecer que jogaram as +cristas lá por causa de um môlho.</p> + +<p>—Que queres que eu toque, mamã?</p> + +<p>—Por que não cantas, antes? Se soubesse como ella canta, principe! +Gosta de musica?</p> + +<p>—Está c... laro! Um encanto—um encanto! Gosto immenso de musica! +Co... onheci muito Beethoven, no estrangeiro.</p> + +<p>—Beethoven! Ora imagina, filha, o principe conheceu Beethoven! clamou +Maria <span class="typo" title="no original: Alexandrowna">Alexandrovna</span>, maravilhada. Ah! principe, pois devéras, conheceu +Beethoven?</p> + +<p>—Está c... laro: Eramos intimos amigos. Tinha o nariz sempre atulhado +de rapé... Que sujeitinho tão ratão!</p> + +<p>—Quem, Beethoven?</p> + +<p>—Está c... laro,—Beethoven? E não seria talvez Beethoven... mas +sim outro qualquer. Ha muito allemão, por toda a parte... Que eu, afinal, +parece-me que estou equivocado.</p> + +<p>—E que hei de eu cantar, mamã?</p> + +<p>—Ah, Zina! Canta-me aquella romança, não te lembras? Aquella que tem +um accento tão cavalheiresco: a castellã<span class="pn">{92}</span> e o seu +trovador—Ah principe, sou doida pelos assuntos cavalheirescos! Os +castéllos! aquelle viver mediéval! Trovadores, arautos! Festas e torneios!... +Vou te fazer o acompanhamento, Zina... Sente-se aqui, mais perto, principe! Ai! +os castéllos, os castéllos!</p> + +<p>—Está c... laro! os castéllos... tambem gosto de cas... tellos, repete +o principe assestando na Zina o olho solitario: Mas... santo Deus! que +romança!... Estou a conhecêl-a... Ha que tempos... que tempos que a ouvi... +recorda-me... ah! meu Deus!... </p> + +<p>Não me incumbo de dizer o que foi que succedeu ao principe, quando a Zina +entrou a cantar. Cantava uma romança francêsa, muito antiga e que estivera em +moda, nos seus tempos. A Zina cantou a primor. A voz pura de contralto ia +direita ao coração. O lindo rosto, os magnificos olhos, os dedos fusiformes a +voltarem as folhas, os bastos e negros cabellos, tão lustrósos, o seio +afflante, a sua pessoa féra e linda, toda ella, concorria tudo a enfeitiçar o +pobre do gêbo. Não despegou os olhos de cima d'ella emquanto ella esteve a +cantar. Suffocava de commovido. Aquelle senil coração, esquentado pelo +champanhe, pela musica e pelas reminiscencias, palpitava cada vez com mais +força, e como não havia palpitado ha tanto tempo! Estava a ponto de chorar +quando ella acabou.</p> + +<p>—Oh! minha linda menina! exclamava, a beijar-lhe os dedos, estou +encantado!—E só agora é que me lembro... mas... mas... Oh! minha linda +menina!... </p> + +<p>O principe nem foi senhor de concluir.</p> + +<p>Maria Alexandrovna sentiu haver chegado o momento psicologico.<span +class="pn">{93}</span></p> + +<p>—Para que anda a dar cabo de si, principe?—encetou com +solemnidade. Quantos sentimentos, quantas forças vitaes, quanta riqueza moral +lhe não resta ainda? E com tudo isso, foi emparedar-se por toda a vida num +carcere! Fugir do mundo! Das amizades! É imperdoavel! Pense bem, principe! +Encare a vida, como se dissessemos, com uns olhos limpidos! Lembre-se do +passado, da sua aurea juventude, dos seus dias sem cuidados. Resuscite esse +passado, resuscite-se a si proprio! Volte a viver entre a sociedade dos vivos: +vá até ao estrangeiro... á Italia, á Hespanha, principe, á Hespanha. Precisava +de um guia, de um coração que lhe tivesse amor, que o estimasse e que lhe fosse +simpathico.</p> + +<p>Pois bem! O principe tem amigos, appelle para elles e virão em monte. Cá +estou eu que seria a primeira a dar de mão a tudo, e a deitar a correr para +acudir ao seu chamado! Não me esqueço da nossa antiga amizade, principe! +Deixaria, até, meu marido, se estivesse mais nova, e fosse tão formosa como +minha filha, fazia-me sua companheira, sua amiga, sua mulher, até, se o +desejasse.</p> + +<p>—Estou certo de que, nos seus tempos, deve de ter sido uma mulher +encantadora, disse o principe a assoar-se.</p> + +<p>Tinha os olhos arrazados de lagrimas.</p> + +<p>—A nós proprios sobrevivemos nos nossos filhos, principe, responde +effusiva Maria Alexandrovna. Tambem eu tenho o meu anjo da guarda, a amiga dos +meus pensamentos, do meu coração, principe! Rejeitou até agora sete pedidos de +casamento, por se não querer apartar de mim.</p> + +<p>—E por conseguinte, vae comsigo quando me ac... com... ompanhar ao +estrangeiro? Sendo assim, irei para o estrangeiro... <span +class="pn">{94}</span> está resolvido... exclama o animadissimo +principe.—Absolutamente!... E se eu pudesse lison... jear-me com a es... +pe... rança... Mas é uma menina po... rtentosa, portentosa! Ah! minha linda +menina!</p> + +<p>E o principe volta outra vez a beijar os dedos á Zina. Tentou até +ajoelhar-lhe aos pés, o pobre do homem.</p> + +<p>—Então!... então, principe, ia dizendo que se pudesse lisonjeál-o a +esperança?... agarrou no ar Maria Alexandrovna, sentindo brotar-lhe novo +accesso de eloquencia. Que homem tão singular é o principe!... Não se considera +então digno da attenção das mulheres! A formosura não consiste apenas na +mocidade! Lembre-se de que é uma reliquia da aristocracia russa! É o +representante dos mais refinados, dos mais cavalheirescos sentimentos, e das +mais requintadas maneiras! E a Maria não amou o Mazeppa<a name="tex2html10" +href="#foot188"><sup>[10]</sup></a> porventura? Li algures que Lauzun, um +marquêz seductor da côrte de Luis... não sei quantos... já velho, conquistou +uma das mais supinas beldades do seu tempo!... E demais, quem foi que lhe +metteu em cabeça que já era velho? Quem se atreveu a afirmál-o? Homens como o +senhor envelhecerão jámais, porventura? O principe, tão opulentamente dotado de +sentimento, de alegria, de espirito, de força vital, de tão delicadas maneiras! +Fosse o principe para ahi a qualquer estação balnear com uma mulher joven, com +uma beldade como a Zina, para não irmos mais longe,—e eu lhe diria que +effeito colossal não havia de produzir, o senhor, reliquia da nossa +aristocracia;<span class="pn">{95}</span> ella, uma belleza de rainha! Ella, +com aquelle seu pisar majestatico, de braço dado com o principe, a cantar n'uma +sociedade aristocratica; o principe, pela sua parte, a fuzilar ditos de +espirito! Era caso para acudirem os banhistas em pêso a fazer-lhe côrte! Dava +brado por toda essa Europa! Pois teria a seu favor os jornaes, todos elles +folhetins, e surgia um grito unanime: "Principe! Principe!"</p> + +<p>E o senhor a dizer: "Pudesse eu lisonjear-me com a esperança?"</p> + +<p>—Os jornaes... está claro, está claro!... Os folhetins... balbucia o +principe, que não percebeu nem metade do aranzel de Maria Alexandrovna e cada +vez está mais lamecha... Mas... minha rica menina... se se não sen... te fa... +tigada, repita outra vez aquella romança que cantou inda'gora... </p> + +<p>—Ah! principe, ella sabe outras ainda mais bonitas! Conhece a +<em>Andorinha</em>? Já a ouviu?</p> + +<p>—Está claro... mas já não me lembra... </p> + +<p>Não... não!... aquella que cantava ha pouco: não quero a <em>Andorinha</em>! +Quero aquella tal romança: disse o principe a pedinchar como um pequerrucho. +</p> + +<p>A Zina recommeça a alludida romança. O principe não pode ter mão em si e +ajoelha-lhe aos pés a chorar... </p> + +<p>—Oh! minha formosa castellã! (Treme-lhe a voz de senilidade e de +commoção). </p> + +<p>Oh! minha en... can... tadora castellã! Oh! minha querida menina! Quanta +coisa me não veiu recordar do passado!... E eu, então, vivia esperançado em +outro porvir. N'esse tempo cantava eu com a viscondessa... uns duêtos... <span +class="pn">{96}</span> essa mesma romança... e agora... ah! Sei muito bem o que +me espera!</p> + +<p>O principe proferiu aquella discurso em voz entrecortada e offegante, +intoiriu-se-lhe a lingua... tornam-se inintelligiveis algumas palavras. Apenas +se vê que atingiu o acume da commoção. Maria Alexandrovna apressa-se em lançar +azeite no lume.</p> + +<p>—Principe! quer me parecer que se vae apaixonando pela Zina.</p> + +<p>A resposta do principe vae além de quanto ousaria esperar Maria +Alexandrovna.</p> + +<p>—Estou apaixonado por ella a ponto d'enlouquecer! exclama o velhito +muito exaltado e sempre de joelhos.</p> + +<p>Estou prompto a sacrificar-lhe a minha vida... pudesse eu ao menos ter +esperança... Mas levante-me, por quem é... sinto-me um tanto fraco... Se eu... +ao menos, pudesse nutrir a es... pe... perança offerecia-lhe o meu coração... e +então... eu... Havia de cantar-me todos os dias +ro—ro—man—manças, e eu a olhar para ella sempre... sempre... +sempre... ai, meu Deus!</p> + +<p>—Principe, principe! Está offerecendo a minha filha a sua mão, +quer-m'a roubar, a mim, a minha Zina! O meu enlevo, o meu anjo, Zina! Não te +deixarei nem por quanto ha! Zina! Venha alguem arrancál-a dos braços, dos +braços de sua mãe; se é capaz!</p> + +<p>Maria Alexandrovna atira-se á filha e estreita-a nos braços, comquanto se +sinta repellida com força. A mamã exaggera um tanto ou quanto a comedia, e a +Zina está em transes de asco. Mas não abre a bôca, é tudo quanto deseja Maria +Alexandrovna.<span class="pn">{97}</span></p> + +<p>—Já rejeitou nove partidos só para se não apartar da mãe! clama. +Agora, comtudo, o meu coração antevê o apartamento. Não ha ainda um instante, +reparei que olhava para o principe de modo particularissimo... A sua +aristocracia, a sua finura seduziram-n'a, principe!.. Oh! O principe +apartar-nos-ha... estou-o a sentir.</p> + +<p>—A... dó... óro-a! murmura o principe a tremelicar como uma folha.</p> + +<p>—Com que então desamparas a tua mãe! exclama Maria Alexandrovna +atirando-se outra vez ao pescoço da filha.</p> + +<p>A Zina, morrendo por pôr ponto a tão penosa scena, estende ao principe a +linda mão, e faz esforço para sorrir. O principe agarra respeitoso n'aquella +mão e por pouco a não come com beijos.</p> + +<p>—Agora, sim, agora é que eu principío a viver!... </p> + +<p>—Zina! diz com solemnidade Maria Alexandrovna: é o mais delicado, o +mais nobre dos homens! Um cavalleiro da edade média! Ella bem o sabe, principe, +e sabe-o até demais, por minha desgraça!... Ah!... Oxalá cá não tivesse +apparecido... Entrego nas suas mãos o meu thesouro... Conserve-o, principe!... +Escute os rógos de uma mãe! Qual será a mãe que poderá levar-me a mal a minha +magua?!</p> + +<p>—Basta! mamã! murmura a Zina.</p> + +<p>—Ha de defendêl-a, principe, a sua espada ha de fulgir se as calumnias +se atreverem a tocar-lhe!</p> + +<p>—Basta mamã, aliás... </p> + +<p>—Está c... claro... a minha espada!... murmura o principe. Quero que o +ca... casamento se realize, quanto antes... agora... é que eu devéras prin... +cipío a viver!... <span class="pn">{98}</span> Tenciono mandar desde já a +Dur-kha-khanovo... Tenho lá uns brilhantes, quero pôl-os a seus pés.</p> + +<p>—Que ardor, que arrebatamentos, que nobreza de alma! E lembrar-me eu, +principe, de que se estava a perder n'aquelle ermo!... Não me canço em +repetir... Eu, quando me lembro d'aquella... infernal... toda eu me +horrorizo!... </p> + +<p>—Mas que queria que eu fizesse?</p> + +<p>Tinha tanto... mê... mêdo! choraminga o principe. Queriam pregar commigo +numa casa de saude... e tive... mê... mêdo!</p> + +<p>—N'uma casa de saude! Ah! que miseraveis! Que vileza, que +crueldade!... Já me constou isso mesmo, principe! Mas essa gente está doida! +Mas por quê... por quê?... </p> + +<p>—Se quer que... lhe diga, nem eu o sei, responde o ginjinha caindo +derrengado de cansaço na poltrona. Foi assim—estava eu n'um ba... baile, +e contei-lhe uma anecdóta.—Desagradou-lhes e ahi está... e resultou d'ahi +uma historia... uma histo... ria.</p> + +<p>—E foi esse apenas o motivo?</p> + +<p>—Não foi, eu tambem tinha jogado as cartas com o principe Pedro +Dmirititch, e perdido immenso... tinha dois reis e três... da... damas... quero +dizer, três da... da... mas e dois r... reis... Não é isto... um r... r... rei +e só... da... damas!</p> + +<p>—E foi só por isso!—por isso!—Infernalissima protervia! +Não chore, principe! Não lhe torna a acontecer! D'aqui em diante, encontra-me a +seu lado, meu principe!—Pois não me aparto da Zina, e veremos quem é que +se atreve a abrir bocca. Sabe o que lhe digo, principe? Que o<span +class="pn">{99}</span> seu casamento vae deixál-os consternados; vae +envergonhál-os! Hão de ver que ainda é capaz... quero dizer... comprehenderão +que tão peregrina beldade nunca iria casar com um mentecapto!—E agora, +pode olhar para elles rosto a rosto, de cabeça erguida!</p> + +<p>—Está—claro... rosto a rosto!—murmura o principe fechando +os olhos.</p> + +<p>—Está derreado de todo, diz comsigo Maria Alexandrovna; creio que +estarei a soltar palavras ao vento.</p> + +<p>—Está commovido, meu principe, precisa de ir descançar, diz debruçada +sobre elle com maternal sollicitude.</p> + +<p>—Está... c... claro... encostar-me um bocadinho.</p> + +<p>—É tal qual... Estes abalos!—Espere ahi, vou acompanhál-o. Eu +propria irei deitál-o, se for necessario... Por que é que está a olhar tanto +para aquelle retrato, principe?</p> + +<p>É o retrato de minha mãe, não era uma mulher, era um anjo! Oh! oxalá ella +ainda cá estivesse! Era uma santa, uma santa, sim, nem lhe posso dar outro +nome!</p> + +<p>—Uma s... anta, é bonito!... Eu tambem tive mãe, uma senhora extrê... +ê... ma... mente nut... trida... E d'ahi, não é isso que eu queria dizer... +Estou um tanto fatigado... Adeus... minha linda menina... amanhã... em sum... +ma... não importa... Até mais ver... até mais ver!... </p> + +<p>Tenta fazer um gesto gracioso, mas escorrega no pavimento encerado, e por +pouco se não desiquilibra.</p> + +<p>—Cuidado, principe. Encoste-se ao meu braço! grita Maria +Alexandrovna.</p> + +<p>—Um encanto! um encanto! Agora sim, agora começo a viver!<span +class="pn">{100}</span></p> + +<p>Ficou a sós a Zina. Sentia uma oppressão, um desprezo para comsigo mesmo. +Com as faces a escaldar, as mãos contraídas, os dentes enclavinhados. Inérte, e +a vergonha a arrazar-lhe os olhos de lagrimas... </p> + +<p>N'este lance, eis se abre a porta e investe pela sala dentro o +Mozgliakov—fulvo de raiva!<span class="pn">{101}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>IX</h2> + +<p>—Ouvi tudo, tudo!</p> + +<p>A Zina a fitar-lhe uns olhos espantados.</p> + +<p>—Ah! E são esses os seus sentimentos! exclama com a voz tomada. Até +que por fim aprendi a conhecêl-a!</p> + +<p>—A conhecer-me? repete a Zina (fulgem-lhes os olhos, de colera). +Atreve-se a falar-me assim?</p> + +<p>Dá um passo para o mancebo.</p> + +<p>—Tudo ouvi! insiste solemne o Mozgliakov, recuando porém um passo, mau +grado seu.</p> + +<p>—Ouviu?—Espionou, diga! emenda a Zina a mirál-o com desprezo.</p> + +<p>—Espionei, seja? É verdade, decidi-me a praticar semelhante vilania! +Mas, graças a ella... fiquei afinal sabendo que é a mais... nem sei como +qualificar a sua... tartamudeava o mancêbo, de mais em mais atrapalhado sob o +olhar da Zina.</p> + +<p>—E quando haja ouvido a tudo, que é que me poderá lançar em rosto? +Quem lhe deu o direito de me accusar, de me falar n'esse tom?</p> + +<p>—Com que direito!... Eu!? E ainda m'o pergunta!? Intenta casar com o +principe... e a mim não me assiste o direito...!... Pois não me deu a sua +palavra?</p> + +<p>—Quando?</p> + +<p>—Quando, essa é melhor!</p> + +<p>—Esta manhã, sem irmos mais longe, o senhor a apertar<span +class="pn">{102}</span> commigo e a minha resposta formal foi que nada lhe +podia afirmar de positivo.</p> + +<p>—Mas não me rejeitou em absoluto, e por conseguinte, guardava-me para +o não chega—poupava-me!... </p> + +<p>Contrahiu-se o semblante á Zina com dolorosa sensação, mas não se atenua o +desprezo que sente para comsigo.</p> + +<p>—Se o não escorraçei, responde em voz grave e compassada, mas algo +trémula, foi unicamente por compaixão. Supplicava-me que esperasse, que lhe não +dissesse que não. "Vá aprendendo a conhecer-me"—disse o senhor um dia, "e +quando se houver convencido de que sou um homem de caracter digno, é possivel +que me não rejeite." Foram estas as suas palavras, no principio das nossas +relações, não as poderá renegar: E agora atreve-se a dizer, que o guardo para o +não chega! Pois não percebeu, esta manhã, o meu aborrecimento por ver como +antecipava de quinze dias o seu regresso? E todavia, não lhe encobri esse meu +enfado, e o senhor foi o proprio a notál-o, visto que me perguntou se me não +agastava este seu regresso permaturo. Chama então poupar um homem o não lhe +poder encobrir o fastio que alguem experimenta em ver esse homem? Ah! Eu então +guardava-o para o não chega!? Não! eu dizia commigo, a seu respeito: "Se não é +demasiado intelligente, é bondoso, quando menos"... agora, comtudo, fiquei +sabendo—a tempo, felizmente—que tem tanto de mau como de tolo, e só +o que me resta é desejar-lhe boa jornada! Adeus!</p> + +<p>A Zina volta-lhe as costas e caminha, de seu vagar, para a porta. Mozgliakov +comprehende que tudo está perdido; referve-lhe a raiva.<span +class="pn">{103}</span></p> + +<p>—Ah! com que, eu, então, sou tolo! vociféra; tolo!—Muito bem! +Adeus! Mas, antes de me ir embora, saiba que a toda a gente ha de constar a +infame comédia que aqui estão representando... tanto a senhora como sua mãe. +Vou contar tudo a toda a gente, que embebedam o principe, que o subornam! Ha de +ouvir falar de Mozgliakov!</p> + +<p>Estremece a Zina, vae para reponder, mas, volvido um instante de reflexão, +encolhe os hombros, desdenhosa, e bate-lhe com a porta na cara. N'este +conflicto, assoma aos hombraes Maria Alexandrovna. Ouviu as ultimas exclamações +de Mozgliakov e adivinhou o restante. O Mozgliakov sem, se ir ainda embora! O +Mozgliakov á ilharga do principe! O caso espalhado por toda a cidade pelo +Mozgliakov! E todavia, é indispensável guardar segredo... Maria Alexandrovna, +n'um relance, tudo calculou, a tudo preveniu, e urde um plano para aplacar o +Mozgliakov.</p> + +<p>—Que tem, meu amigo? diz estendendo-lhe a mão, cordial.</p> + +<p>—Como <em>meu amigo</em>! exclama o outro furibundo. E depois de tudo +isto; meu amigo! <em>Morgen Früh</em><a name="tex2html11" +href="#foot203"><sup>[11]</sup></a>, minha senhora. Metteu-se-lhe então em +cabeça embaçar-me outra vez?</p> + +<p>—Sinto, devéras, acredite, sinto immenso vêl-o em um estado de +espirito tão estranho, Pavel Alexandrovitch. Que linguagem! Nem sequer méde as +palavras em presença de uma senhora!</p> + +<p>—Em presença de uma senhora!... Será quanto quiser... menos uma +senhora. </p> + +<p>(Ignoro o que é que elle queria dizer, mas, com certeza, devia de ser um +qualquer ultrage, de esmagar.) Maria<span class="pn">{104}</span> Alexandrovna +com os olhos n'elle e um risinho de commiseração:</p> + +<p>—Sente-se, diz, com tristeza, apontando para a cadeira na qual, um +quarto de hora antes, estivéra sentado o principe.</p> + +<p>—Mas no fim de contas, não me dirá, Maria Alexandrovna?... exclama +Mozgliakov, desnorteado. Está-me tratando como se a senhora estivesse innocente +e fosse eu o culpado! Não pode ser!... Vae muito além dos limites! É abusar da +paciencia... de todo... digo-lh'isto!</p> + +<p>—Meu amigo... responde Maria Alexandrovna—e deixe-me dar-lhe +ainda este titulo, pois neste mundo não terá melhor amiga...—o senhor +está afflicto, excitado, ferido no coração, e devo pois relevar-lhe semelhantes +desmandos de linguagem. Pois bem, vou abrir-me com o senhor. Tanto mais que eu, +até certo ponto, não deixo de ter culpas para com o senhor. Sente-se, pois, e +conversemos. A voz de Maria Alexandrovna assumiu o auge da meiguice, é +compungida a sua expressão phisionomica.</p> + +<p>Senta-se Mozgliakov.</p> + +<p>—Esteve escutando á porta, diz ella com uns modos de exprobação e de +indulgencia, ao mesmo tempo.</p> + +<p>—Escutei, sim! E por que não? Nem que eu fôra um asno!... Se quer ao +menos fiquei sabendo o que andava a maquinar contra mim, responde Mozgliakov, +haurindo valôr da propria colera.</p> + +<p>—E resolver-se a senhora, com a sua educação, as suas maneiras, a +representar semelhante papel! Santo Deus! Mozgliakov está aos pulos na cadeira. +</p> + +<p>—Maria Alexandrovna, não posso ouvir-lhe uma palavra<span +class="pn">{105}</span> mais! Melhor será que se lembre do que está fazendo, a +despeito da sua educação e das suas maneiras, e diga-me se lhe assiste o +direito de accusar a outrem!</p> + +<p>—Ainda uma pergunta, prosegue ella sem responder. Quem foi que lhe +suggeriu a ideia de escutar á porta? Quem será que anda por aqui a espiar-me os +passos? É isso o que eu não se me dava de saber!</p> + +<p>—Lá quanto a isso, tenha paciencia, não serei eu quem lh'o diga.</p> + +<p>—Muito bem, eu tratarei de o saber... Dizia eu, pois, Pavel, que não +deixo de ter culpas para com o senhor, mas, se é que póde julgar-me com +conhecimento de causa, verá que se tenho alguma culpa é a de lhe querer bem em +demasia.</p> + +<p>—Com que então, quer-me bem?—Esta a caçoar commigo, e +certifico-lhe que não torna a enganar-me; serei muito creança mas nunca até +esse ponto!</p> + +<p>E elle, n'um sarilho na poltrona, e a poltrona a tremer.</p> + +<p>—Por quem é, meu amigo, socegue se é possivel, escute com attenção, e +verá que ha de concordar commigo. Eu, a principio, tencionava contar-lhe tudo, +pôl-o em dia com tudo sem que se lhe tornasse necessario aviltar-se ao ponto de +escutar ás portas. Se o não fiz, foi unicamente porque o negocio se achava +ainda em estado de projecto e podia mallograr-se. Bem vê a franqueza de que uso +para com o senhor. E, acima de tudo mais, não se volte contra minha filha, que +de nada tem culpa. É doida pelo senhor, e custou-me os olhos da cara +arrancar-lh'a ao senhor e persuadil-a a acceitar o offerecimento do principe. +</p> + +<p>—E eu, que com os meus proprios ouvidos, ouvi,—n'este<span +class="pn">{106}</span> instante, provas d'esse tal louco affecto, replica +ironico Mozgliakov.</p> + +<p>—Muito bem! Mas em que termos se lhe dirigiria o senhor? É assim que +se expressa um namorado? Será essa a linguagem propria de um homem de fino +trato? Offendeu-a, irritou-a.</p> + +<p>—Como se fosse questão de fino trato, Maria Alexandrovna! Esta manhã, +ambas me faziam boa cara, mas assim que eu saí e mais o principe, puzéram-me +pelas ruas da amargura.—Estou sciente de tudo... tudo.</p> + +<p>—Bebido da mesma fonte ignobil, provavelmente, observou Maria +Alexandrovna com risinho de desdem. É verdade, Pavel Alexandrovitch, púl-o +pelas ruas da amargura e, confesso, Deus sabe quanto me custou. Quanto não tive +eu que luctar com os proprios sentimentos! Mas bastará o facto de eu me ver na +necessidade de o calumniar para lhe provar a difficuldade que eu encontraria em +obter d'ella que desistisse do senhor! É possivel que não veja um palmo adeante +do nariz? Se ella lhe não tivesse amor, eu teria alguma necessidade de appellar +para calumnias? E ainda o senhor não sabe o melhor! Tive que valer-me da minha +maternal auctoridade para lh'o arrancar a ella do coração! Em conclusão, depois +de esforços inauditos, consegui alcançar uns arremedos de consentimento... E +visto que esteve á escuta, não deixaria de notar que ella não me ajudou em +presença do principe com uma palavra, sequer, ou com um gesto. Cantou para alli +como um automato; em visiveis afflições toda ella, e foi por ter dó d'ella, que +eu carreguei com o principe. Tenho a certeza, até, de que se pôz a chorar, +assim que se apanhou sósinha.<span class="pn">{107}</span> O senhor bem viu, +quando entrou... Mozgliakov recorda-se de que effectivamente a Zina estava a +chorar quando elle entrou.</p> + +<p>—Mas a senhora, a senhora, por que é que está assim tão contra mim, +Maria Alexandrovna? Por que é que me foi calumniar segundo é a propria a +affirmál-o. </p> + +<p>—Ora, isso agora é outro negocio; e se o senhor m'o tivesse perguntado +em termos logo ao principio, ha muito tempo que lhe teria dado resposta. Sim, +tem razão, fui eu que fiz tudo, eu, sósinha: não esteja a accusar a Zina. Por +que foi que o fiz? E eu respondo-lhe: primeiramente, por interesse da Zina. O +principe é rico, representante de nobilississima casa, tem relações, e casando +com elle a Zina faz um optimo casamento. Emfim, se elle morrer, o que não +poderá tardar muito, pois todos nós, mais ou menos, somos mortaes,—n'esse +caso, a Zina, nova e viuva, pertencendo á alta sociedade, fica riquissima e +casa com quem quizer. Ora, está claro que irá casar com o homem a quem ama, e +que foi o primeiro a quem teve amor, e cujo coração terá martirizado casando +com o principe. E bastará o arrependimento... O acto que terá mais a peito será +o de remediar a propria falta.</p> + +<p>—Hum! rosna Mozgliakov pensativo, a contemplar os bicos das botas.</p> + +<p>—Em segundo logar... mas serei breve a semelhante respeito, é possivel +que me não comprehendesse. O senhor só o que sabe é ler o tal seu Shakspeare, +fonte aonde exclusivamente vae beber os seus nobres sentimentos; e d'ahi, o +senhor está tão moço! Eu, comtudo, sou mãe, Pavel Alexandrovitch. Caso a Zina +com o principe um tanto por<span class="pn">{108}</span> causa d'elle tambem, +visto que para elle o casamento pode representar a salvação! Ha tanto tempo que +voto amizade áquelle honradissimo ancião, tão bondoso, cavalheiresco! Quero +arrancál-o ás garras d'aquella infernal creatura que ha de pregar com elle na +cova!... Invoco a Deus por testemunha em como foi patenteando á Zina todo o +alcance do heroismo da sua dedicação que eu pude convencêl-a.</p> + +<p>Arrastou-a o irresistivel prestigio da abnegação. Ella propria tem o que +quer que seja de cavalheiresco. Submetti-lhe o meu projecto sob colôr de um +acto christão. Vaes ser, lhe disse eu, o amparo, a consolação, a amiga, a +filha, a beldade, o idolo de um homem que talvez que nem um anno tenha de vida. +Mas sequer ao menos, extinguir-se-ha no dôce calôr do amor. Estes seus ultimos +dias parecer-lhe-hão um paraiso. Onde é que vê n'isto egoismo, Pavel? Não! e +não! É um acto de irmã de caridade.</p> + +<p>—A senhora, então, procede desse modo, por amizade para com o +principe... á laia de irmã de caridade? commenta o ironico Mozgliakov.</p> + +<p>—Comprehendo essa sua pergunta, Pavel Alexandrovitch, é clarissima. +Suppõe que estou fazendo uma confusão jesuitica dos interesses do principe com +os meus. Pois bem, é possivel que me tivesse atravessado pela mente semelhante +calculo, inconscientemente, porém, e sem resquicios de jesuitismo. Espanta-o +esta minha franqueza? Peço-lhe apenas uma mercê, Pavel Alexandrovitch: não +involva a Zina n'este negocio! Está pura que nem uma pomba. Não calcula; sabe +apenas amar, pobre pequena! Se houve alguem que calculasse, esse alguem fui eu, +e só eu! Indague, porém, sinceramente da sua consciencia e diga-me<span +class="pn">{109}</span> quem seria que no meu logar não haveria calculado? +Calculamos os nossos interesses, as nossas mais generosas acções, até, sem +darmos por isso, instinctivamente. Pois; se enganam, quantos alarmam que +procedem movidos por pura nobreza de alma. Eu, porém, não quero enganál-o. +Confesso que calculei. Mas, sempre quero que me diga, seria levando em vista o +meu interesse pessoal? A mim, Pavel Alexandrovitch, que mais me será preciso? +Vivi o meu seculo<a name="tex2html12" href="#foot413"><sup>[12]</sup></a>, +calculei para bem d'ella, do meu anjo, da minha filha: e qual será a mãe que +m'o lance em rosto?</p> + +<p>As lagrimas inundavam o rosto de Maria Alexandrovna.</p> + +<p>Pavel Alexandrovitch tem escutado com pasmo semelhante confissão: +latejam-lhe as palpebras, esforça-se por comprehender.</p> + +<p>—Qual seria a mãe, sim! diga lá!... pergunta elle, em conclusão.</p> + +<p>Mas cae em si, acto continuo, e:</p> + +<p>—Canta lindamente, Maria Alexandrovna, mas tinha-me dado a sua +palavra, tinha-me alentado a esperança... Como posso eu supportar semelhante +coisa? Terei que engulir a propria vergonha!</p> + +<p>—E acredita talvez que não pensei no senhor, meu querido Pavel? Pelo +contrario, em todos os meus calculos, o senhor tinha a sua parte. Ouso dizer, +até, que foi por sua causa que eu emprehendi este negocio.</p> + +<p>—Por minha causa! exclama Mozgliakov, desnorteado, d'esta vez. Como +assim?! </p> + +<p>—Meu Deus! Como é que se pode ser tão simples, ter<span +class="pn">{110}</span> vistas tão limitadas! exclama Maria Alexandrovna +erguendo as mãos ao ceu. Esta mocidade! O tal Shakspeare! E ahi tem o que elle +lhe arranjou, aquelle sonhador, aquelle phantasista! Viver da intelligencia e +dos pensamentos alheios! E o senhor a perguntar—<em>meu bom Pavel +Alexandrovitch</em>, qual é n'este caso o seu interesse. Para maior clareza, +consinta-me uma leve digressão. A Zina ama-o, é incontestavel Mas tenho notado +que, a despeito do seu manifesto amor, o caracter de Pavel Alexandrovitch, as +suas aspirações lhe tem incutido uma tal ou qual desconfiança. Por vezes, e +como que de caso pensado, contêm-se, é fria para com o senhor. Eis o resultado +das reflexões que a levaram a desconfiar. Pois não reparou tambem n'isto que +lhe estou dizendo, Pavel Alexandrovitch?</p> + +<p>—Reparei, sim, hoje ainda. Mas que quer dizer com isso, Maria +Alexandrovna? </p> + +<p>—Bem vê, o senhor foi o proprio a reparar n'isso: logo, não me +enganei. E acima de tudo, foi a estabilidade do seu caracter, a sua constancia +o que mais duvidas lhe incutiu. Sou mãe, e não havia de conhecer o coração de +minha filha! Ora imagine agora que, em vez de entrar aqui com exprobações, e +até com injurias, em vez de a irritar, de a offender, de a melindrar, a ella +tão bella, tão pura e soberba, e por esse facto, a despeito ainda da sua +vontade, ir tornar-lhe mais firme a desconfiança com respeito ás suas +inconstancias; supponha que acceitava com brandura a noticia, com lagrimas de +magua, com desespero, até, mas com dignidade... </p> + +<p>—Hum!</p> + +<p>—Mau! Não me interrompa. Pavel Alexandrovitch. Quero<span +class="pn">{111}</span> expôr-lhe um quadro que possa ferir-lhe a imaginação. +Ora imagine que ia ter com ella e lhe dizia: "Zina, amo-te mais que a propria +vida, mas afastam-nos umas razões de familia. Comprehendo essas razões: +trata-se da tua ventura e não me atrevo a insurgir-me contra ella. Perdôo-te, +Zinaida; sê feliz se puderes!" E dito isto, lhe lançava uns olhos, uns olhos de +cordeiro nas vascas da agonia, se me é licita a expressão. Ponha tudo isto na +sua ideia e calcule o effeito que haveria produzido uma scena assim no coração +della!</p> + +<p>—Pois sim, Maria Alexandrovna, supponhamos tudo isso—É certo que +eu podia ter me expressado d'esse modo... mas nem por isso deixaria de voltar +pelo mesmo caminho com um não pelas ventas.</p> + +<p>—Não, não, e não, meu amigo. Não me interrompa! Quero acabar de +pintar-lhe o quadro para que no animo lhe produza uma impressão nobre e +completa. Imagine, pois, que a vinha a encontrar; d'ahi a tempos, na alta +sociedade, num baile illuminado <em>à giorno</em>, ao som de uma musica +enebriante, no meio de um sem numero de beldades, e, no melhor da festa tão +deslumbrante, o senhor, para alli, sósinho e triste, a scismar, pállido, +encostado para alli, algures, a uma columna, mas de modo a dar nas vistas; o +senhor a seguil-a com os olhos na vertigem da dansa; ao pé do senhor a vibrarem +os divinos accordes de Strauss. Fuzila por todos os lados nas conversas o +espirito da alta sociedade; e o senhor sósinho, enfiado, melancholico, immerso +na propria paixão.</p> + +<p>Considere—em que estado ficará a Zina quando o vir! E com que olhos o +não ha de ella contemplar! "E eu," pensará<span class="pn">{112}</span> ella, +"que duvidei d'aquelle homem! Tudo me sacrificou! Despedaçou o proprio coração +por minha causa!" Certamente, o seu amor de outr'óra resuscitar-lhe-hia lá +dentro com força irresistivel.</p> + +<p>Deteve-se Maria Alexandrovna para cobrar alento. Mozgliakov a barafustar na +cadeira, que por pouco não estoira de todo. Maria Alexandrovna prosegue:</p> + +<p>—A Zina, por causa da saude do principe, parte para o estrangeiro, +para Italia ou para Hespanha, o paiz das murtas, dos limoeiros, do azulino céu +do Guadalquivir, o país do amor, o país onde se não pode viver sem amar, onde +as rosas e os beijos adejam por assim dizer no ar. E o senhor vae atrás d'ella, +compromette a sua situação, as suas relações, tudo!... E principia então o seu +romance de amor: amor, mocidade, Hespanha... Deus meu!... É certo que será +platonico o seu amor, puro... mas o senhor... em summa, enlanguescem a +contemplarem-se um ao outro... Espero que me haverá comprehendido, meu amigo?—Não +faltarão, por lá, entes soêzes, vis, miseraveis para affirmar que +não foi a lembrança do seu parentesco com o velho que o arrastou ao +estrangeiro. Muito de proposito me referi ao platonismo do seu amor; não ignoro +que haverá quem lhe atribua differente significação.</p> + +<p>Mas sou mãe, Pavel Alexandrovitch e seria incapaz de o impellir para mau +caminho!... É claro que o principe os não poderá vigiar a ambos; isso que +importa, comtudo? Poder-se-ha fundar n'isso semelhante accusação?</p> + +<p>Até que por fim, morre o principe abençoando o proprio destino. Ora diga-me +quem é que depois ha de casar com a Zina, a não ser o senhor? É parente tão +afastado do<span class="pn">{113}</span> principe que o parentesco nunca +poderia representar um impedimento ao consorcio. Acceita-a, joven, rica, +princêsa, e em que ensejo? Quando os mais nobres senhores se poderiam ufanar da +sua alliança! Por causa d'ella, entra na mais alta sociedade; obtêm um posto de +summa importancia, promoções. Diz o senhor que dispõe de cento e cincoenta +almas? Mas depois será rico. O principe não deixará de fazer um testamento nos +termos, por isso lhe respondo eu. E em conclusão, o principal, é o ella estar +segura dos seus sentimentos e o senhor vir a ser para ella um heroe pela +virtude e pela abnegação. E ainda me pergunta, onde vae n'isto o seu interesse? +Tem-n'o deante dos olhos, a contemplál-o, a rir-se para o senhor, e a +dizer-lhe: "Aqui me tens!" Ora vamos, Pavel Alexandrovitch!... </p> + +<p>—Maria Alexandrovna! exclama Pavel Alexandrovitch, a tudo fiquei +percebendo, agora! Portei-me como homem grosseiro, vil, reles!... </p> + +<p>Levanta-se com vivacidade e puxa pelos cabellos ás mancheias.</p> + +<p>—E como homem inconsiderado, accrescenta Maria Alexandrovna, +inconsiderado, eis o que o senhor é!</p> + +<p>—Sou um asno, Maria Alexandrovna! exclamou com desespero o môço. E +agora, está tudo perdido! E eu que a amava com loucura!</p> + +<p>—É possivel que não esteja tudo perdido, declara Madame Moskalieva, +baixinho, como quem está reflectindo.</p> + +<p>—Ah! se fosse possivel! Ajude-me! aconselhe-me! Valha-me! E pôs-se a +chorar o Mozgliakov.</p> + +<p>—Meu amigo, diz em apiedada voz Maria Alexandrovna e estende-lhe a +mão,—praticou esse seu acto no ardor do<span class="pn">{114}</span> seu +affecto, estava exasperado, nem sequer tinha consciencia do que fazia. E ella +não deixará de o avaliar.</p> + +<p>—Amo-a com loucura e estou prompto a sacrificar-lhe seja o que for! +clama o Mozgliakov.</p> + +<p>—Ora escute, justifica-lo-hei aos olhos d'ella.</p> + +<p>—Maria Alexandrovna!</p> + +<p>—Sim, fica tudo por minha conta: collocál-os-hei em presença um do +outro. E o senhor diz-lhe tudo tal qual eu acabo de lh'o dizer.</p> + +<p>—Ah! meu Deus! Que bondade a sua, Maria Alexandrovna!... Mas... não +seria possivel procedermos a isso desde já?</p> + +<p>—Deus nos defenda! Sempre é muito estouvado, meu amigo! Ella, então, +que é tão soberba! Ia tomar isso como uma nova insolencia, um ultraje, até! Eu +arranjarei tudo, e não ha de passar d'amanhã; agora, comtudo, vá se embora, vá +até casa do tal negociante, ou para onde lhe apetecer... Ou, se, antes quer, +volte esta noite, mas não serei eu que lh'o aconselhe.</p> + +<p>—Vou m'embora! vou m'embora!</p> + +<p>Meu Deus! Resuscitou-me! Mas uma pergunta, ainda: e se o principe não morre +tão cedo?</p> + +<p>—Valha-nos Deus! Sempre é muito ingenuo, meu caro Pavel! O senhor o +que deve é rogar a Deus que conserve os dias d'aquelle vélhito, todo elle +bondade, carinho, cavalheirismo! Devemos desejar-lhe longa vida, de todo o +coração! E eu serei a primeira; noite e dia, com lagrimas, a rezar pela ventura +de minha filha! Mas, ai de mim! A saude do principe, coitado, quer me parecer +que está muito abalada! E demais, elle não deixará de fazer a sua<span +class="pn">{115}</span> visita á capital, de levar a Zina aos bailes, e receio +muito, muito, acredite, que isso concorra a dar cabo d'elle! Orêmos, porém, meu +caro Pavel, e quanto ao mais, entreguêmo-nos nas mãos de Deus! Espére, arme-se +de paciencia, seja viril, e viril, acima de tudo! Nunca puz em duvida a nobreza +dos seus sentimentos... Aperta-lhe com força as mãos, e o Mozgliakov sáe do +aposento em bicos de pés.</p> + +<p>—Até que em fim! Vi-me livre de um imbecil! diz com ares de triumpho. +E agora vamos aos outros... Abre-se a porta e entra por ali dentro a Zina. Vem +mais pallida do usual; fulgem-lhe os olhos com febril clarão.</p> + +<p>—Mamã, veja se acaba com isto, que eu estou, que já nem posso mais; é +tão nojento tudo isto que me vem tentações de fugir por ahi fora. Não me faça +padecer por muito mais tempo, não me irrite! Este lodaçal causa-me <span class="typo" title="no original: orgulho">engulho</span>, +entendeu?</p> + +<p>—Zina, que tens tu, meu anjo?... Estiveste escutando á porta! exclama +Maria Alexandrovna olhando de fito para a filha.</p> + +<p>—Escutei, é verdade.—Veja se m'o quer lançar em rosto, como o +fez aquelle imbecil? Juro-lhe que se porfiar em obrigar-me a representar +semelhante papel em tão vergonhosa comedia, renuncío a tudo, e acabo com tudo, +com uma só palavra. Não ha duvida que me resolvi a prestar-me á principal +vilania, mas foi por me não conhecer a mim mesma; atabáfo com semelhante +vergonha!</p> + +<p>E sae atirando com a porta.</p> + +<p>Maria Alexandrovna segue-a com a vista e fica a scismar.</p> + +<p>"É andar ligeira, depressa! É de si que depende tudo,<span +class="pn">{116}</span> e em si que consiste o maior perigo, e se esses +miseraveis porfiarem em se colligar contra nós, se principiam para ahi a dar á +lingua, tudo está perdido! E ella não poderá resistir contra tantas arrelias e +acabará por entregar-se mediante uma rejeição. Custe o que custar e sem demora, +urge carregar para o campo com o principe. Prego commigo lá, n'um pulo, e +carrégo com aquelle estafermo do senhor meu esposo para aqui. Sequer ao menos +sirva para alguma coisa! E assim que o outro accordar, safamo-nos."</p> + +<p>Toca a campainha.</p> + +<p>—E então! a parêlha? pergunta ao creado que entra.</p> + +<p>—Está prompta, ha que tempos, responde o criado.</p> + +<p>(Maria Alexandrovna mandou pôr o trem no acto de acompanhar o principe ao +quarto d'este.)</p> + +<p>Veste-se á pressa e corre ao quarto da Zina para lhe transmitir o seu plano +e dar-lhe as devidas instrucções. A Zina, comtudo, nem lhe quer dar ouvidos, +debruçada no leito com o rosto enterrado no travesseiro ensopado de lagrimas; a +arrancar com as niveas mãos os compridos cabellos; tem os braços nus até ao +cotovêlo. Saccóde-a, a revézes, um estremeção. A mãe dirige-lhe a palavra, sem +que a Zina consinta em erguer a cabeça.</p> + +<p>Maria Alexandrovna insiste por instantes, depois, sae, inquietissima. Sobe +para a carruagem e recommenda que espertem a parelha.</p> + +<p>"O peor de tudo", vae ruminando comsigo, "é a Zina ter ouvido a conversa que +eu tive com o Mozgliakov. Empreguei com ella e com elle quasi que os mesmos +argumentos; ella é orgulhosa e offender-se-hia, talvez... Hum! o que a tudo +sobreleva, é a necessidade de por mãos á obra,<span class="pn">{117}</span> +antes de que conste seja o que fôr! Que desgraça! E se eu, para mais ajuda, não +fosse encontrar em casa aquelle meu imbecil?!"</p> + +<p>Ante esta hypothese, enraivece-se, toma-se de um rancor que nada vaticina de +bom para Aphanassi Matveich. E Maria Alexandrovna impaciente, a esfervilhar! +</p> + +<p>Os cavallos despedem a galope.<span class="pn">{118}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>X</h2> + +<p>A carruagem não corre, vôa.</p> + +<p>Dissémos que, n'aquella mesma manhã, emquanto ella andava em procura do +principe, por todos os cantos da cidade, já havia accudido á mente de Maria +Alexandrovna um alvitre genial: era o confiscar por sua vez o principe quanto +antes, e pregar com elle no campo;—n'aquella aldeia onde floria em paz o +beatifico Aphanassi Matveich. Ia pois realizar aquella sua inspiração. Mas não +encubramos ao leitor que principiava a sentir-se atribulada por uma inquietação +inexplicavel. Aos proprios heroes acontece outro tanto, e no ensejo, +justamente, em que estão prestes a atingir seus fins. Advertia-a um qualquer +instincto de que havia perigo na permanencia em Mordassov.</p> + +<p>"Uma vez no campo, vire-se tudo isto pés, com cabeça, que a mim tanto se me +dá!"</p> + +<p>É certo, que ainda no proprio campo, não ha tempo para perder: tudo poderá +acontecer, tudo... E n'essa conformidade, Maria Alexandrovna acha-se resolvida +a concluir immediatamente o consorcio. O cura da aldeia procederá á ceremonia +na propria residencia. D'alli a dois dias, no outro dia, talvez, em caso de +urgencia. Quantos casamentos se não tem visto, aldravados para alli em duas +horas! Quanto ao principe, é levál-o a acceitar como necessidade de bom sizo +uma tal precipitação, semelhante ausencia de toda e qualquer festa. "Será mais +decente e mais<span class="pn">{119}</span> nobre"... Poder-se-hia até +seduzil-o pelo lado romanesco do negocio e fazer-lhe vibrar assim a fibra +sentimental do coração. Enebriál-o-ha, se tanto fôr necessario, mantêl-o-ha +n'aquelle estado de embriaguez, e a Zina ha de ser princêsa.</p> + +<p>Se houver algum escandalo lá por Petersburgo ou por Moscou entre a parentéla +do principe, consolações não hão de faltar. Em primeiro logar, são coisas que +ainda estão para vir; em segundo, Maria Alexandrovna está convencida de que, na +alta sociedade, nada se faz sem escandalo, e muito mais tratando-se de +casamento: que é estilo. Mas os escandalos da alta sociedade, a seu ver, tem +uma côr mui particular de grandiosidade, no genero do <em>Monte-Christo</em> e +das <em>Memorias do Diabo</em>. Finalmente, a Zina bastar-lhe-ha mostrar-se, e +a mãe ajudál-a com seus conselhos, e toda a gente ficará desarmada, +acto-continuo, entre todas aquellas condessas e princêsas, não havendo uma só +que seja capaz de resistir á mordassoviana habilidade de Maria Alexandrovna, +sósinha contra todas ellas juntas ou contra cada uma em particular.</p> + +<p>E é animada por semelhante pensamento que Maria Alexandrovna vem ter com +Aphanassi Matveich o qual lhe é necessario, segundo seus planos.</p> + +<p>Effectivamente, levar o principe para o campo é levál-o para casa de +Aphanassi Matveich com quem o principe é possivel não se dar lá muito de travar +conhecimento: mas se Aphanassi Matveich fôr o proprio a convidál-o, o caso muda +de figura. E demais, a apparição de um chefe de familia, de edade veneranda, de +gravata branca, casaca, chapeu na mão, acorrendo expressamente das suas +propriedades, á noticia de que se acha em Mordassov o principe<span +class="pn">{120}</span> K... é caso para produzir optimo effeito no amor +proprio d'aquelle ginjinha.</p> + +<p>Até que por fim, havendo tragádo três verstas a carruagem, o cocheiro Safron +pára junto ao patim de um comprido edificio com um unico andar, casarão de +madeira, com uma extensa fieira de janélas, e envolto n'umas tilias venerandas. +É a residencia estável de Maria Alexandrovna.</p> + +<p>Já se acham illuminadas as janélas.</p> + +<p>—Onde está o manequim? clama Maria Alexandrovna caíndo como uma +trovoada, no vestibulo. Que faz aqui esta toalha? Ah! estava aborrecido, e +ainda não saiu do banho! E sempre n'aquelle fadario do chá! E então! Para que +estarás tu para ahi a esbogalhar esses olhos, meu idiota incuravel? Por que é +que se não corta esse cabello?!</p> + +<p>Grichka! Grichka! Por que é que não cortaste o cabello ao <em>barine</em> +conforme te dei ordem, a semana passada?</p> + +<p>Maria Alexandrovna premeditára operar em casa de Aphanassi Matveich uma +entrada menos violenta. Mas ao vêl-o entretido a sorver o seu cházinho, com +toda a sua pachorra, não foi senhora de sopitar a indignação. Para ella, +tamanhos cuidados, e para elle, para aquelle ente inutil, aquella paz podre! +Semelhante contraste chóca de modo cruel Maria Alexandrovna. E todavia, o +manequim, ou para nos expressarmos com mais urbanidade, aquelle a quem applicam +o ápodo, está sentado em frente do samovár; inerte, bôcca e olhos escancarados, +petrificado, quasi, pela apparição da consorte. O adormecido vulto do Grichka +assoma ao vestibulo. O Grichka tosqueneja os olhos durante toda esta scena.</p> + +<p>—Se elle não deixa... E ahi esta porque é que o não<span +class="pn">{121}</span> fiz, profere em voz encatarroada e socarrôna. Peguei na +tesoira para ahi umas dez vezes, e a dizer-lhe: A <em>barinia</em> não tarda +por ahi e apanhamos ambos a nossa conta!—E vae elle e +diz-me:—Não—espera ahi: quéro que me frizes no domingo; e é preciso +para isso que o cabello tenha comprimento.</p> + +<p>—Muito me contas: Com que então elle, friza-se? Inventaste então essa +obra dos frizados, assim que eu virei costas?</p> + +<p>Que termos são esses? Cuidas talvez que embellezas assim essa tua cabeça de +idiota? Santo Deus! Que desordem que por aqui vae! E que cheiro! Não me dirás, +miseravel, d'onde provém semelhante cheiro? vociféra a consorte a crescer de +mais em mais ameaçadora para o innocente e assarapantado de todo Aphanassi +Matveich.</p> + +<p>—Ah... mi-minha mãezinha, balbucía o esposo sem se erguer e +desfechando sobre o seu generalissimo uns olhos assustados e suplices, mi... +mi... minha mãezi... </p> + +<p>—Quantas vezes não tenho eu tentado encaixar-te n'essa cabeça de burro +que não sou tua mãezinha, pedaço de pygmeu? Como te atreves a tratar por +semelhante nome uma senhora nobre cujo logar é na alta sociedade, e não ao pé +de um aguadeiro da tua laia?</p> + +<p>—Mas, Maria Alexandrovna, tu com tudo isso não deixas de ser minha +mulher em face das leis! e eu... estou-te falando... na qualidade de marido! +Objecta Aphanassi Matveich, levando a um tempo a mão aos cabellos para os +defender.</p> + +<p>—Ah! Carranca! Cêpo! Se já se viu! Mulher d'elle em face das leis!... +Que quererá dizer uma mulher em face<span class="pn">{122}</span> das leis? +Haverá na alta sociedade alguem que empregue semelhante termo de +seminarista:—em face das leis?—E quem te deu o atrevimento de me +recordares que sou tua mulher, a mim que faço quanto posso para o esquecer? E +para que estavas tu a tapar a cabeça com as mãos?</p> + +<p>Olhem para este cabello! Todo encharcado! Não está enxuto estas tres horas +mais chegadas! Como hei de eu carregar com elle? Haverá meio de o arrancar +d'aqui?—Que hei de eu fazer? Maria Alexandrovna péga ás carreiras pela +casa fóra, a estorcegar as mãos. A desgraça é nulla e facil de remediar, não ha +duvida, mas se ella não pode ter mão n'aquelle seu genio imperial, impaciente +em presença do minimo impecilho! Sente que precisa de desabafar a colera na +pessoa de Aphanassi Matveich, visto como a sua habitual tirannia desandou para +si em necessidade. E depois, toda a gente sabe o acervo de inopinadas +grosserias de que são capazes, longe das vistas dos mirones, uns certos entes +delicados e pechósos da sociedade mais graúda. Aphanassi Matveich, estupido e +tremelica, cança a vista a seguir com os olhos as evoluções todas da consorte. +</p> + +<p>—Grichka, exclama esta por fim, traze já, já, ao <em>barine</em> tudo +que é preciso para se vestir de ceremonia, calça, casaca, gravata e colete, +brancos. Vá, despacha!</p> + +<p>Onde iria parar a escova do cabello?</p> + +<p>—Mas se eu acabo de sair do banho, minha mãezinha, vou apanhar algum +resfriamento... </p> + +<p>—Qual historia!... </p> + +<p>—Estou com a cabeça encharcada!... </p> + +<p>—Ênxuga-se. Grichka, escova o cabello ao <em>barine</em>, até<span +class="pn">{123}</span> que enxugue. Com mais força... mais... ainda mais... +Assim!</p> + +<p>O fiel e zeloso Grichka esfréga, com quanta força tem, o seu <em>barine</em> +a quem, para mais commodidade, agarrou pelo cachaço, encostando-o para trás no +divan.</p> + +<p>Aphanassi Matveich por pouco não desata a chorar.</p> + +<p>—E agora, em pé!... Vê se o levantas, Grichka, dá cá a pomada... </p> + +<p>—Vá, abaixas-te ou não, miseravel!</p> + +<p>Abaixa-te, já te disse, meu papa jantares.</p> + +<p>Maria Alexandrovna com as proprias mãos besunta a grenha ao marido, puxando +sem dó nem consciencia pelos cabellos, bastos e grisalhos que elle, por sua +desgraça, não deixou cortar. Aphanassi Matveich põe-se a gemer, a suspirar e +aguenta, Deus sabe como, semelhante provação.</p> + +<p>—Miseravel! Foste tu que murchaste as flores da minha mocidade!... +Abaixa mais essa cabeça, não ouves! Abaixa-te!</p> + +<p>—Mas como é que eu murchei as tuas flores, minha mãezinha? regouga o +esposo de bruços no divan.</p> + +<p>—Manequim! Nem sequer percebeste a allegoria! Agora vê se te +penteias.</p> + +<p>—Grichka, veste-o depressa, anda!</p> + +<p>A nossa heroina senta-se n'uma poltrona a vigiar com olhos de inquisidor a +ceremonia indumentaria.</p> + +<p>Aphanassi Matveich lá conseguiu tomar folego, e, quando se chegou ao laço da +gravata, afoita-se a ponto de emittir opiniões ácêrca do feitio e da perfeição +da laçada. Em conclusão, assim que envergou a casaca, a distincta +personagem<span class="pn">{124}</span> tem reconquistado de todo o aprumo e +pega a rever-se ao espelho com manifesto desvanecimento.</p> + +<p>—Mas para onde é que tu me levas, Maria Alexandrovna? indága, a fazer +moquenquices á propria imagem.</p> + +<p>Maria Alexandrovna hesita em acreditar n'aquillo que ouviu.</p> + +<p>—Não ouvem isto? Ora o manequim! E como te atreves tu a perguntar-me +para onde é que eu te lévo?</p> + +<p>—Mas já se vê que o devo de saber, minha mãezinha.</p> + +<p>—Caluda! Torna-me tu a tratar de mãezinha, e muito mais no sitio aonde +vamos, e ficas sem chá um mês inteiro.</p> + +<p>O marido, espavorido, nem bole sequer.</p> + +<p>—Se já se viu? Nem sequer conseguiu apanhar a mais réles +condecoração?</p> + +<p>Colherão de marmita!—exclama ao contemplar com desprezo a casaca do +marido, casaca virgem de toda e qualquer insignia.</p> + +<p>Até que por fim, Aphanassi Matveich sente-se melindrado.</p> + +<p>—Eu não sou colherão de marmita, sou conselheiro, minha mãezinha, +pondéra com assômo de nobre indignação.</p> + +<p>—Quê—quê—quê?—A raciocinar, por mais que me digam! +Ora o mujik, o ranhoso! Tenho pêna de me faltar tempo para te ensaboar esse +bestunto, quando não... Mas não as perdes, deixa estar!... Grichka, dá-lhe o +chapéu e a <em>chuba</em><a name="tex2html13" +href="#foot237"><sup>[13]</sup></a>. Assim que eu saír, arruma estes três +quartos e o quarto aberto. Vá, pega n'essa vassoira! tira as capas aos +espelhos, aos relogios e quero tudo prompto em menos de<span +class="pn">{125}</span> uma hora! E tu, tambem, veste a casaca, e dá luvas aos +criados! Ouviste, Grichka? Ouviste?</p> + +<p>Sobem para a carruagem. Aphanassi Matveich está com uma cara espantada. +Maria Alexandrovna dá voltas ao miolo para lhe encasquetar na cabeça e na +memoria as recommendações mais essenciaes, elle, porém, interrompe-lhe as suas +cogitações.</p> + +<p>—Maria Alexandrovna, eu esta noite tive um sonho tão exquisito, diz, +após breve silencio.</p> + +<p>—Ápre! Manequim de uma figa! E eu que estava a pensar!... Como te +atreves tu a vir-me para cá com esses teus sonhos de mujik? Escuta, e olha que +t'o digo pela ultima vez, se te atreveres, hoje, a fazer a minima allusão aos +taes sonhos ou ao quer que seja,... toma sentido... nem sei o que ha de ser de +ti! Escuta bem: o principe K... está hospedado em nossa casa. Lembras-te do +principe K... </p> + +<p>—Se lembro! minha mãezinha, lembro-me muito bem! E por que é que elle +nos dispensou tamanha honra?</p> + +<p>—Cala-te, não é da tua conta! Tu, com a maxima amabilidade, e como +dono de casa, vaes convidál-o a vir comnosco para o campo. Partimos ainda hoje. +Mas se lhe disseres uma palavra só que seja, em toda a noite, ou amanhã... ou +no outro dia... ou em toda a roda do anno, mando-te guardar gansos! Nem +palavra! São essas as tuas funcções—e mais nada! Intendeste?</p> + +<p>—Mas se me fizerem perguntas?</p> + +<p>—Não importa! Cálas-te.</p> + +<p>—Pois sim, mas uma pessoa nem sempre pode ficar calado, Maria +Alexandrovna!<span class="pn">{126}</span></p> + +<p>—Responde com monosylabos, um <em>hum!</em>... ou coisa que o valha, +para que fiquem na persuasão de que és homem espirituoso e que reflectes antes +de responder.</p> + +<p>—Hum!... </p> + +<p>—E atenta bem n'isto que te estou dizendo. Carrégo comtigo: ouviste +falar do principe, e acto-continuo, doido de contente, deste-te pressa em vir +apresentar-lhe os teus respeitos e convidál-o a ir para o campo. Percebeste? +</p> + +<p>—Hum!</p> + +<p>—Para que estás tu já a dizer: <em>hum!</em> meu parvalhôco! +Responde.</p> + +<p>—Está bom, minha mãezinha, tudo se fará á medida dos teus desejos. +Mas, não me dirás por que é que eu tenho que o convidar?</p> + +<p>—Quê, quê? pois ainda te mettes a raciocinar?! Que tens tu com isso? E +ainda te atreves a fazer-me perguntas?</p> + +<p>—Mas... é que eu, por mais que faça não posso perceber como é que eu o +hei de convidar sem dizer palavra!</p> + +<p>—Eu falarei por ti, e tu, fazes-lhe a tua cortesia, e mais nada, +percebeste?—De chapeu na mão... </p> + +<p>—Percebi..., minha mãe... Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—O principe é espirituosissimo: diga elle o que disser, ainda quando +se não dirija á tua pessoa, responde-lhe a tudo com um sorriso bonacheirão e +alegre, percebeste?</p> + +<p>—Hum!</p> + +<p>—E elle a dar-lhe com o <em>hum!</em> Vê se acabas com o tal +<em>hum!</em>—a mim, responde-me ao que eu te perguntar. Percebeste?</p> + +<p>—Percebi, Maria Alexandrovna, percebi muito bem. E como é que eu não +havia de perceber? Mas estou a dizer<span class="pn">{127}</span> <em>hum!</em> +para me ir exercitando. O que tu queres é que eu me ponha a olhar para o +principe, com um ar de riso... mas quando elle não me vir?</p> + +<p>—Forte espantalho! Forte idiota! Cala-te, cala-te, e cala-te! Olha e +sorri. </p> + +<p>—Mas se elle é capaz de suppor que sou surdo!</p> + +<p>—Olhem a desgraça! Sequer ao menos não ficará sabendo que és um +imbecil. </p> + +<p>—Hum! E se mais alguem me fizer perguntas?</p> + +<p>—Ninguem t'as faz, deixa estar! E demais, não estará lá ninguem. E se +por infelicidade, do que Deus nos defenda, apparecer alguem e te perguntarem +alguma coisa, responde desde logo com um sorriso sarcastico. Sabes o que vem a +ser um sorriso sarcastico?</p> + +<p>—Uma careta muito espirituosa, pois não é verdade, minha mãezinha?</p> + +<p>—Eu te darei o espirituoso, deixa estar, manequim! E quem é que te +iria suppor capaz de ter espirito, meu asneirão? Um risinho de escarneo, +percebeste? De escarneo e de desdem.</p> + +<p>—Hum!</p> + +<p>—Ai! Estou toda eu em suores frios por causa d'este estafermo! murmura +Maria Alexandrovna. Não ha mais que ver, acho que fez uma jura em como me havia +de murchar de todas as minhas flores! Teria sido muito melhor o prescindir +delle.</p> + +<p>A raciocinar por esta forma, Maria Alexandrovna tudo é olhar pela vidraça do +trem e atiçar o cocheiro. Voam os cavallos, e ella a achar que se não mexem. +Aphanassi <span class="typo" title="no original: Matveick">Matveich</span>, alapardado a um canto, a repetir mentalmente a<span +class="pn">{128}</span> lição. Até que emfim a carruagem alcança a casa de +Maria Alexandrovna! Mas ainda bem a nossa heroina não tinha posto pé no patim, +eis que vê passar ao lado do seu proprio trem um trenél coberto, de dois +assentos, o trenél da Anna Nikolaievna Antipova.—Vinham n'elle duas +senhoras. Uma dellas é a propria Anna Nikolaievna Antipova, a outra a Natalia +Dmitrievna, duas amigas sinceras e recentes. Maria Alexandrovna olha para +ellas, e o coração dá-lhe um báque. Ainda bem não abrira a bocca para exclamar, +eis que chega outra carruagem, com outra visitante. Ouvem-se alegres +exclamações.</p> + +<p>—Maria Alexandrovna com o Aphanassi Matveich... ambos no mesmo trem! +Feliz coincidencia! E nós que vinhamos passar a noite em sua casa! +Agradabilissima surpreza!</p> + +<p>As visitantes galgam a escada a pipilarem que nem andorinhas, Maria +Alexandrovna contempla-as, estupefacta.</p> + +<p>—E não vos tragar o chão! diz, lá comsigo; cheira-me isto a conluio... +Pois sim!... vocês o que não tem é unhas para luctar commigo, minhas +amiguinhas!... Esperem um nadinha!... <span class="pn">{129}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>XI</h2> + +<p>Mozgliakov saíu de casa de Maria Alexandrovna, consoladissimo. Não foi a +casa do Borodoniev, pois necessitava de estar sósinho. Sentia a cabeça +atravancada de romanescos devaneios. Phantaziava a explicação solemne com a +Zina, o generoso perdão, scena melancolica no baile, lá em Petersburgo; +Hespanha, o Guadalquivir, o principe no leito da agonia a juntar nas proprias +mãos as mãos dos dois amantes, e em conclusão, o amor d'uma mulher tão formosa, +vencido por tanto heroismo; por aqui e por acolá, um ou outro favor de alguma +baronêsa, ou condessa de alto cothurno, n'aquella sociedade onde semelhante +casamento lhe daria certamente ingresso, um logar de vice-governador, dinheiro; +n'uma palavra, toda a eloquente descripção de Maria Alexandrovna. Mas, emfim, +como explicál-o?—Através de todos aquelles arrebatamentos eis lhe surge o +seguinte pensamento, algo desagradavel, que, em todo o caso, tudo aquillo +estava ainda em vêl-o-hemos, e no momento actual, elle, com o que ficara, fôra +com um nariz de palmo! De subito, nota que se alargou demais pelo arrabalde +menos central de Mordassov. Vem caíndo a noite. Pelas ruas, ladeadas de +pardieiros, ladram, como aliás succede em toda e qualquer cidade provincial, +aquelles innumeros cães que infestam de preferencia os bairros em que nada ha +que guardar ou que roubar. Derrete-se a neve. De vez em quando, topa-se com +algum <em>mestchanine</em> retardado,<span class="pn">{130}</span> ou com +qualquer <em>baba</em><a name="tex2html14" href="#foot252"><sup>[14]</sup></a> +enfunicada n'uma tulupa e a arrastar umas botifarras. Tudo aquillo principiava +a irritar a Pavel Alexandrovitch: mau signal, visto como, quando uma pessoa +está contente, a tudo acha risonho. Pavel Alexandrovitch lembra-se com despeito +de que, até aquelle dia, era elle quem dava o tom em Mordassov. Era recebido +por toda a parte como um noivo, uma situação tão interessante, e +felicitavam-n'o, e elle todo desvanecido. E eis que, de subito, vinha a constar +que se achava reformado; rir-se-hiam á sua custa por toda a parte. E com tudo +isso não é exequivel estar a iniciar toda a gente ao segredo do tal baile de +Petersburgo, da columna melancolica e do Guadalquivir!</p> + +<p>Triste e pensativo, acaba por formular este pensamento que secretamente lhe +faz sangrar o coração desde alguns instantes: "Mas tudo isto será verdade, +realmente? Virá tudo a acontecer conforme m'o pintou Maria Alexandrovna?" +Occorre-lhe, n'aquelle ensejo, exactamente, que Maria Alexandrovna é mulher +arteira quanto possivel; que, apezar da estima geral que disfructa, é uma +enredadeira de respeito, que mente com o maximo desplante, que é possivel que +tivesse motivos particulares para o afastar; que, emfim, o descrever um quadro +seductor não compromete a coisa nenhuma. Pensa na Zina, revóca aquelle seu +olhar de despedida tão pouco compativel com um desatinado amor. Lembra-se de +que uma hora antes foi tratado por ella na qualidade de asno—sem tirar +nem pôr. Ante uma<span class="pn">{131}</span> tal recordação, Pavel +Alexandrovitch estaca de vez, como que pregado ao chão, e ruboriza-se a ponto +de lhe virem as lagrimas aos olhos. E como que de proposito, d'ali a instantes, +acontece um desagradavel incidente: escorrega e estatéla-se num montão de +neve... Emquanto elle escabuja e patinha, um bando de canzoada, que vinham +atrás d'elle a ladrar, accodem por todos os lados; um d'elles, o mais pequeno e +mais atrevido, aferra-se-lhe á aba da chuba. Pavel Alexandrovitch +desenvencilha-se dando ao diabo a cainçada e o destino e, com a aba do casacão +esfarrapada e uma indefinivel tristeza na alma, lá se vae arrastando até á +esquina da rua. Ali, percebe que vae perdido.</p> + +<p>É sabido que um homem, quando se acha perdido em um bairro que lhe é +extranho, e muito mais de noite, nunca se resolve a meter a direito por uma rua +larga. Impelle-o, mau grado seu, um poder misterioso para toda a casta de +betesgas que topa a geito. Em harmonia com este sistema, Pavel Alexandrovitch +perde-se de todo. "Diabos levem tanta chiméra!" exclama e cospe com engulho. +"Leve o diabo os sentimentos elevados e o tal Guadalquivir!"</p> + +<p>Não me abalanço a afiançar, que Mozgliakov n'aquelle ensejo apresentasse +aspecto por demais seductor. Até que emfim, extenuado, fatigado, em seguida a +haver andado a êsmo para cima de duas horas, alcança a escadaria de Maria +Alexandrovna. Fica espantado ao dar com os olhos em tanta carruagem: "Tem +visitas? Alguma <em>soirée</em>? Com que intenção?"</p> + +<p>Informado por um lacaio de que Maria Alexandrovna tinha carregado com +Aphanassi Matveich do campo, de gravata branca, que o principe já está +acordado, mas que<span class="pn">{132}</span> ainda não desceu do quarto, +Pavel Alexandrovitch, sem dizer palavra, vae lá acima ter com o tio. Acha-se +n'aquella disposição de animo em que um homem de caracter fraco se decide pela +ideia de maior malignidade, em favor da vingança, sem se lembrar de que virá +talvez a arrepender-se, durante toda a sua vida.</p> + +<p>Sobe. Dá com os olhos no principe, sentado n'uma poltrona em frente do seu +toucador de viagem, com a caréca á vela, mas com a cara já rebocada e com as +suissas e a pêra postiça já pegadas. O chinó está entre mãos do edoso criado +particular, Ivan Pakhomitch. Ivan Pakhomitch está a penteál-o com modo absorto +e respeitoso. O principe apresenta aspecto lamentavel. Não se acha ainda +restabelecido d'aquella sua temulencia. Enterrado na poltrona, a tosquenejar as +palpebras, todo elle engelhado, amarrotado, e a olhar para o Mozgliakov como se +o não conhecesse.</p> + +<p>—Como vae de saude, rico tiozinho? indaga Mozgliakov.</p> + +<p>—Como? Ah! És tu? acaba por dizer o tio. Pois eu, manozinho, dormi a +minha somnéca. Ai! meu Deus! exclama de subito, animadissimo. E eu que estou +sem o chi... chi... n... nó!</p> + +<p>—Não se assuste, tiozinho! Eu ajudo-o a pôl-o se quiser.</p> + +<p>—Ora esta! E ahi estás tu senhor do meu segredo! Eu bem dizia que era +pr... preciso fe... fe... char a po... rta! Pois então, meu amigo, vaes já, já, +dar-me a tua palavra de honra que... que, não has-de abu... sar do meu segredo, +e que não dizes, a nin... guem que é po... pos... tiça a minha cab... be... +leira!</p> + +<p>—Ora vamos, tiozinho, pois suppõe-me capaz de semelhante<span +class="pn">{133}</span> vilêza? exclama Mozgliakov que deseja agradar ao +ancião.</p> + +<p>—Está, claro... está... c... laro, e como eu sei que és cavalheiro... +vá... la... vaes fi... car espantado: vou te des... vendar de todo os meus +se... segredos—Que me dizes a estes bi... bigodes—m... meu caro?</p> + +<p>—Um portento, rico tio, espantosos! Como é que os pode conservar do +mesmo comprimento, por tanto tempo?</p> + +<p>—Socéga, meu amigo... s... são postiços, diz o principe a olhar muito +ufano para <span class="typo" title="no original: Paulo">Pavel</span> Alexandrovitch.</p> + +<p>—Postiços!?—É inacreditavel! E as suissas, então? Confesse que +as pinta, tiozinho!</p> + +<p>—Não só as pin... into, como são postiças e mais que... que pos... +tiças!</p> + +<p>—Postiças! Isso agora, tenha paciencia, o tio está a caçoar +commigo!</p> + +<p>—Pa... lavra de honra, amigo! exclama o principe desvanecido. Ora põe +na tua ideia, que toda a gente... sem excepção—anda ill... udida, como +tu. A propria Stepanida Matveina não quer acreditar que o sejam, e olha que é +ella quem m'as põe. Mas tenho a certeza, meu amigo, de que me has de guardar +segredo—Dá-me a tua pa... palavra de honra... </p> + +<p>—Conte desde já com ella, querido tio! Mas, insisto, suppõe-me então +capaz de semelhante vilania?</p> + +<p>—Ai! meu amigo! Que tombo que eu apanhei! Não fazes ideia! O Pamphili, +tornou-me a virar a car... a carruagem.</p> + +<p>—Pois elle tornou a pregar-lhe outro tombo? Mas quando?</p> + +<p>—Iamos nós quasi a chegar ao... mo... mos... teiro... <span +class="pn">{134}</span></p> + +<p>—Já sabia, tiozinho!</p> + +<p>—Não, não é isso... se ainda não ha duas horas. Fui ao mo... mosteiro. +Foi elle que me levou... e pregou-me um tombo! Que susto que... que eu apanhei! +Ainda nem tenho o co... coração no seu logar.</p> + +<p>—Mas o tio estava a dormir?</p> + +<p>—Está... c... laro... estava a dormir... E vae... d'ahi fui... vi... +viajar... E d'ahi... d'ahi... talvez fosse... Ah! que coisa tão exquisita!... +</p> + +<p>—Afirmo-lhe que estava a dormir, tiozinho... que sonhou... Depois de +jantar ferrou-se a dormir muito socegado.</p> + +<p>—De... devéras?!</p> + +<p>O principe pós-se a scismar.</p> + +<p>—Sim... sim... effec... tivamente, talvez fôsse. E d'ahi, lembro-me +muito bem do sonho... todo. Primeiramente, sonhei com um toiro muito bravo... +com uns páus!... Depois com um pró... ó... curador... mas tambem tinha p... +páus!</p> + +<p>—Havia de ser o Nikolai Vassiliévitch Antipov, tiozinho.</p> + +<p>—Está... claro... era elle... era... E depois tambem sonhei com Na... +napoleão... Bo... bo... naparte. Não sabes, amigo, diz toda a gente que n... +nos parecêmos?... De perfil... pelos modos... faço lembrar um papa... muito +antigo: Tu, que dizes?... Achas que te... terei ares de papa?</p> + +<p>—Acho que se parece mais a Napoleão.</p> + +<p>—Está... c... laro... é assim... mesmo... de... de... frente. E d'ahi, +tambem d'isso estou conven... cido, meu<span class="pn">{135}</span> caro. Vi-o +em sonho, sentado lá na sua ilha... Não sabes? A fô... legar... muito +contente... muito lam... peiro!... Que graça que... eu lhe achei!</p> + +<p>—Refére-se a Napoleão, tiozinho? indaga Pavel Alexandrovitch, todo +elle absorto, a observál-o.</p> + +<p>Principiava a surgir-lhe na mente um estranho pensamento, sem que elle +pudesse formulál-o com clareza.</p> + +<p>—Está claro... Na... na... po... leão. Tivémos uma pa... palestra +filosó... fica... Não sabes? tenho pena de que os Inglezes lhe fizessem aquillo +que... que lhe fizeram... É verdade que se elles o não tivessem en... +gaiolado... atirava-se para ahi a to... toda a gente... aquelle damnado! Mas +com... apezar d'isso... foi pena!... Eu cá... por mim não era capaz de o fazer! +Prega... va com elle n'uma ilha deserta... </p> + +<p>—Deserta... então para quê? perguntou, distrahido, Mozgliakov.</p> + +<p>—Está... claro... De... deserta, não, mas habitada por gente com +juizo. E depois arranjava-lhe distracções... theatro, mu... musica... ba... +bailados e tu... tudo isso por conta do Estado. Dáva-lhe licença para +passear... vi... vigiado... já se vê... qu... quando não... pi... pisgava-se... +Elle gostava de uns certos bôlos... Pois bem! faziam-se-lhe todos os dias... +Tratava-o com pa... pater... nal carinho: Elle... commigo... arre... pen... +dia-se... di... digo... t'o eu.</p> + +<p>Mozgliakov escuta distrahido a garrulice do vegête, a roer as unhas, +impaciente. Elle a querer desviar a conversa para o assunto do casamento, e nem +sequer sabe o motivo, mas referve-lhe lá dentro uma maldade,<span +class="pn">{136}</span> infame. De subito, eis que exclama o tio, muito +espantado:</p> + +<p>—Ai! meu amigo! E eu que me esquecia de t'o par... parti... cipar... +Saberás que fiz ho... je o meu pe... pedido!</p> + +<p>—O seu pedido, tiozinho?... exclama Mozgliakov animando-se +acto-continuo. </p> + +<p>—Está... c... claro... o meu pedido! Já te vaes embora, Pakhomitch? +Está bem. É uma menina encanta... dora!... Mas confesso... amigo, que andei com +leviandade, estou-o per... cebendo agora... Ai! meu Deus!</p> + +<p>—Mas, se me dá licença, querido tio, quando é que fez esse tal +pedido!</p> + +<p>—Confesso, que... não... sei ao certo, qu... ando foi, amiguinho!... +Querem ver que... seria sonho, tam... tam... bem?... Que co... isa t... tão +ex... quisita! </p> + +<p>Mozgliakov estremece de contentamento... Accode-lhe uma ideia luminosa.</p> + +<p>—Mas a quem, e quando é que fez o tal pedido? repete impaciente, +já.</p> + +<p>—Á... á... fi... lha da casa, meu amigo... áquella... lin... da me... +nina! E d'ahi... esqué... ceu... me o nome. O peor, meu amiguinho... é que não +posso casar,... impos... sivel, meu amigo! Que hei de eu fazer?</p> + +<p>—Pois decerto... semelhante casamento iria deitál-o a perder! Mas, uma +pergunta: Tem a certeza de haver feito o pedido?</p> + +<p>—Está... claro... tenho a certeza... tenho... </p> + +<p>—E se fosse sonho, como aquella sua quéda da carruagem?<span +class="pn">{137}</span></p> + +<p>—Valha-me Deus!... E o c... caso é que é possivel... no tal sonho... E +o... peor é que e... eu já nem tenho cara para lhe apparecer... E não... achas +que se poderia saber... indi... recta... mente, se eu faria ou não o tal +pedido? </p> + +<p>—Sabe o que lhe digo, querido tio? Que acho até escusado ir tirar +informações.</p> + +<p>—E... por-quê?</p> + +<p>—Por que tenho a certeza de que tudo foi sonho, tambem.</p> + +<p>—Tambem... me quer... parecer... m... meu ca... ro, e tanto... m... +mais que eu estou sempre a ter sonhos... assim.</p> + +<p>—Então já vê, tiozinho... Faça de conta que beberia mais um copito ao +almoço... ou ao jantar... e ahi tem... </p> + +<p>—Está... claro... amigo... foi isso foi,... é o que havia de ser.</p> + +<p>—Tanto mais, que o tio, por mais influido que estivesse, nunca se iria +arriscar a fazer um pedido tão disparatado. O tiozinho, desde que o conheço, +tive-o sempre na conta de um homem de muitissimo tino.</p> + +<p>—Está... c... laro. Está... c... laro.</p> + +<p>—Ora considére: ponha na sua ideia que os seus parentes, tão mal +dispostos já, para com o tio, vinham a ter conhecimento do caso, que +acontecia?</p> + +<p>—Ai! meu Deus! exclama o assustadissimo principe... que acontecia?... +é verdade!</p> + +<p>—Então, já vê! Punham-se a berrar todos á uma que estava doido, que +era preciso nomear-lhe tutôres, que o<span class="pn">{138}</span> tinham +embaçado, e catrafilavam-n'o para ahi em qualquer parte, guardado á vista.</p> + +<p>O Mozgliakov estava farto de saber que o argumento éra de molde a deixar +espavorido o principe.</p> + +<p>—Ai! meu Deus! exclamou o jarrêta, todo elle a tremer... +engaiolavam-me?! </p> + +<p>—Ora considére, tiozinho, passar-lhe-ia nunca pela cabeça o ir fazer +um pedido tão disparatado? O tio avalia muito bem os seus interesses! +Affirmo-lhe que foi sonho.</p> + +<p>—So... nho, sim, é o que foi! So... nho... e mais nada! Ah! tu... é +que... que acertaste... com a coisa! E fico... te grato, muito grato... por me +teres con... vencido.</p> + +<p>—E eu, contentissimo, tiozinho, por termos vindo á fala. Se não fosse +eu, o tio ficava acreditando que estava noivo, e procederia n'esse sentido. +Veja lá do que se livrou!</p> + +<p>—Está c... laro... me... livrei... dizes bem!</p> + +<p>—Lembre-se de que está com vinte três annos essa menina! Não ha quem a +queira, e eis se não quando, apparece o tio, rico, nobre e vae pedil-a em +casamento! E ellas, já se vê, apanham a pélla no ar: affirmam a toda a gente +que o tio está noivo e impingem-lh'a em casamento. E em seguida, põem-se á +espera de que o tio se vá indo desta para melhor.</p> + +<p>—Que... me dizes!</p> + +<p>—E depois, tiozinho... é lá coisa que convenha a um homem da sua +jerarchia... </p> + +<p>—Está c... claro! Jerarchia... </p> + +<p>—Tão intelligente... tão amável... </p> + +<p>—Está... c... claro... intelligente... é is... so... é!<span +class="pn">{139}</span></p> + +<p>—E em conclusão, é principe... Será partido que lhe convenha, +porventura? Se é que, por qualquer motivo insiste em querer casar. Lembre-se do +que diriam os seus parentes.</p> + +<p>—Ai, meu amigo, comiam-me em vida! Elles que já me não têm feito +poucas terrafi... as... aquelles des... almados! Ora imagina! Desconfio até +que... qué-rem pregar commigo n'uma casa... de... sa... saúde! Ora, dize-me, +achas que se... ja razoavel? Que é que eu havia de fa... zer numa casa de +saúde?</p> + +<p>—Pois certamente, rico tio, e ahi está o motivo porque eu já o não +largo quando o tio fôr lá para baixo. Estão lá visitas.</p> + +<p>—Vi... sitas! Ai! valha-me Deus!</p> + +<p>—Não se assuste, tiozinho, eu vou com o tio.</p> + +<p>—Sou-te m... muito obrigado... muito! Fô... ste a minha redempção! +Mas, qu... éres que te diga, eu antes queria ir-me embora!</p> + +<p>—Amanhã, tiozinho, amanhã, ás sete horas da manhã! Hoje, despede-se de +todos e declara que se vae embora.</p> + +<p>—Ab... so... lu... tamente!... safo... me... ab... solu... tamente!... +vou para casa do padre Missail... Mas... meu amiguinho, e se ella casar commigo +contra minha vontade?... </p> + +<p>—Não lhe dê cuidado, tiozinho, cá estou eu. E demais, digam o que +disserem, responda sempre que foi sonho... o que é verdade, aliás.</p> + +<p>—Es... tá... c... claro, sonhei!... Mas sempre te direi... meu a... +mi... miguinho, que foi um sonho delicioso!... <span class="pn">{140}</span> +Que for... mosura! É um por... tento! E se... soubesses!... Com umas... +fórmas!</p> + +<p>—Pois então, até logo, tiozinho, vou indo lá para baixo... E o tio... +</p> + +<p>—Ora... essa!... Então para aqui me deixas?... exclama o principe, +assustado.</p> + +<p>—Não é isso, tiozinho, eu o que vou é indo adiante... não vamos +juntos. Primeiro eu, depois, o tio. É melhor assim.</p> + +<p>—Está-c... laro... melhor. E eu, demais a mais, tenho que tomar nota +d'um pensamento... capital.</p> + +<p>—Pois é o que deve fazer, tio, vá assentando o seu pensamento, e +depois, não se demore, appareça, e conte que, amanhã... </p> + +<p>—Amanhã, de manhã, para casa do-arci-préste... sem fa-lta,... casa... +do ar... ci... ci... Magnifico! Mas olha que... ella é um por... tento de +formosura! Que... fórmas! Se não houvesse outro remedio senão casar com ella... +eu... então... </p> + +<p>—Deus o livre de tal, querido tio!</p> + +<p>—Está claro!... livre... Está dito! até já, meu amigo! Eu não tardo +lá. É só tomar no... ta... A proposito,... e... ago... ra me lembra que te +queria perguntar... se... j... já tinhas lido as <em>memorias</em> de +Cásanova?</p> + +<p>—Já, tiozinho... Mas por quê?</p> + +<p>—Está... c... claro—Por quê?—Mas... deixa lá... já me não +lembro do que é que te queria dizer.</p> + +<p>—Depois se lembrará, tiozinho, até logo.</p> + +<p>—Até logo, amiguinho, até logo...—Mas que foi uma... delicia... +o tal sonho... lá isso foi!<span class="pn">{141}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>XII</h2> + +<p>—Viémos vêl-a todas, todas! A Prakovia Ilinicha não tarda por ahi! A +Luisa Karbovna tambem queria vir, pipila a Anna Nikolaievna dando entrada na +sala e a inspeccionar tudo em redor com uns olhos de bisbilhoteira.</p> + +<p>É uma mulherzinha, bonitinha, veste com riqueza, mas com umas côres +espalhafatosas, e com presunção na sua boniteza. Fareja-lhe que o principe deve +de estar alapardado n'um cantinho qualquer e mais a Zina.</p> + +<p>—E a Katerina Petrovna tambem não deixa de apparecer, accrescenta +Natalia Omstrievna, mulherão com proporções de colosso á qual tem reduzido o +pêso os jejuns e dando ares de um granadeiro.</p> + +<p>Traz um chapelinho, minusculo, côr de rosa, pespegado na nuca. Ella, vae em +três semanas, é a mais intima amiga da Anna Nikolaievna, de quem ella anda +atrás, ha muito tempo, e a quem se pudesse nem a pelle lhe deixava.</p> + +<p>—O alegrão que ambas me deram em vir passar a noite commigo, nem ha +palavras que o possam exprimir, cantaróla Maria Alexandrovna, um tanto refeita +já da instantanea surpreza. Mas não me dirão a que feliz acaso devo o +prazer?... Nem contava, já, com semelhante honra!</p> + +<p>—Valha-me Deus! Maria Alexandrovna, não seja má! diz muito açucarada a +Natalia Dmitrievna, com voz de pipía, e tregeitos, toda ella—o que +estabelecia curiosissimo contraste com o seu exterior.<span +class="pn">{142}</span></p> + +<p>—Mas minha querida, pipila Anna Nikolaievna, precisamos concluir os +arranjos do tal theatro. Ainda hoje o Petre Mikailovitch disse ao Kalist +Stanislavitch que está contrariadissimo por não terem corrido bem as coisas, e +porque andassemos a jogar as cristas. E como succedesse ajuntarmo-nos todas +quatro, dissémos comnosco: "E se nós fossemos ter com a Maria Alexandrovna a +ver se levamos a cabo este negocio?" A Natalia Dmitrievna passa palavra ás +outras, e cáem aqui todas. D'este modo poderiamos chegar a um accordo e as +coisas entravam no seu curso regular. É para que não digam que apenas sabemos +andar á unhada, pois não é assim, meu anjo? accrescentou dando um beijo a Maria +Alexandrovna.</p> + +<p>Valha-me Deus! Zinaida Aphanassievna, está cada dia mais linda!</p> + +<p>Anna Nikolaievna atira-se á Zina e prega-lhe um beijo.</p> + +<p>—Mas se a menina não tem outra coisa que fazer a não ser o ir +embellezando dia a dia, affirma com affectada amabilidade Natalia Dmitrievna a +esfregar as mãos.</p> + +<p>—Demonios as levem! E eu que nem sequer já me lembrava do tal theatro! +Sim, senhor, estas pêgas tem apurado a malicia! murmura Maria Alexandrovna fula +de raiva.</p> + +<p>—E tanto mais, meu anjinho, accrescenta Maria Nikolaievna, que o nosso +querido principe se acha hospedado em sua casa. Bem sabe que não ha +<em>pomietok</em> de <span class="typo" title="no original: Duckhanova">Dukhanova</span>, de paes a filhos, que não tenha tido um +theatro. Tomámos informações e viémos a apurar que existe algures um armazem +atulhado de scenario velho, e um panno, e fatos, até. O principe esteve hoje em +minha casa, mas se quer que lhe diga, fiquei tão assarapantada com a visita, +que de<span class="pn">{143}</span> todo me esqueceu tocar-lhe em semelhante +coisa. Agora, comtudo, tencionamos conversar com elle a esse respeito; ha de +ajudar-nos, e o principe não deixará de dar as suas ordens para que nos remetam +toda essa cangalhada. Pois a quem haviamos de encommendar por aqui coisa que se +pareça com uma vista de theatro? E d'ahi, queremos que o principe em pessoa +participe da nossa empresa. É necessario levál-o a subscrever: é para os +pobres. Quem sabe se elle se não encarregará, até, de qualquer papel; é tão +condescendente, tão dado! Correria tudo ás mil maravilhas.</p> + +<p>—Pois já se vê, que acceita um papel! Tanto mais que nada ha mais +facil do que induzil-o a desempenhar seja que papel fôr, accrescenta +significativamente Natalia Dmitrievna.</p> + +<p>Anna Nikolaievna não tinha enganado Maria Alexandrovna. Vão chegando de +instante para instante senhoras. Maria Alexandrovna quasi que nem tem tempo de +se levantar para recebêl-as e de proferir as exclamações da praxe em +semelhantes casos, exigidas pelas conveniencias.</p> + +<p>Não me afoitarei a descrever uma por uma as visitantes. Direi apenas que +cada uma d'ellas desfecha insidiosa olhadella para a dona da casa. Todas ellas +denunciando na fisionomia ávida impaciencia. Entre as nobres damas, mais de +uma, até, concorria ali na espectativa de presencear a qualquer escandalozinho +extraordinario: ficariam desconsoladissimas se se não désse o dito escandalo. +Exteriormente, desfaziam-se em amabilidades, Maria Alexandrovna porém estava +armada para a lucta. Choviam perguntas a respeito do principe, naturalissimas +todas ellas, na apparencia, mas por detrás de todas lá estava uma allusão.<span +class="pn">{144}</span></p> + +<p>Serve-se o chá. Sentam-se todas á mêsa. Apodera-se do piano um grupo, Zina, +ao convite de tocar ou de cantar, responde, muito sêca, que se acha +incommodada. A pallidez do rosto abona-lhe aliás a veracidade. Segue-se um +tiroteio de perguntas simpáticas, e isso mesmo dá motivo para uma allusão.</p> + +<p>Indagam noticias á cêrca de Mozgliakov, é á Zina que são dirigidas. Maria +Alexandrovna não tem mãos de medir: acha-se presente a um tempo em cada canto +da sala, ouve tudo que dizem as visitantes, supposto sejam mais de dez. +Responde a quanta pergunta lhe dirigem sem ter necessidade de remexer as +algibeiras á procura de palavras. Está toda ella a tremer com o sentido na +Zina, e muito admirada por esta não sair da sala, conforme é seu costume em +taes occasiões. Notam tambem a presença de Aphanassi Matveich. Por via de regra +fazem escarneo d'elle para melindrarem Maria Alexandrovna na pessoa do marido. +Hoje, porém, tudo é quererem sacar as palavras do bucho ao tão singelo e franco +Aphanassi Matveich. Maria Alexandrovna, inquieta, não tira os olhos do marido, +collocado em estado de sitio.</p> + +<p>Elle, responde a todas as perguntas: Hum! com uns modos tão entalados e +pouco naturaes que é de uma pessoa se derramar.</p> + +<p>—Maria Alexandrovna, não ha quem saque uma palavra a Aphanassi +Matveich! exclama uma caçapa de uma dama com uns olhos vivos e uns ares de +intrepidez, como quem não tem medo seja de quem fôr, e se não atrapalha com +coisa nenhuma. Veja se lhe diz que seja mais delicado com as senhoras.<span +class="pn">{145}</span></p> + +<p>—Ainda estou para saber o que é que elle terá hoje, responde Maria +Alexandrovna, toda ella sorrisos e interrompendo a sua palestra com a Anna +Nikolaievna e com a Natalia Dmitrievna. Não está nada expansivo; aqui estou eu +que ainda não fui capaz de lhe ouvir uma palavra. Por que é que não respondes á +Felissata Mikhailovna, Athanasio?—Que foi que lhe perguntou, Felissata +Mikhailovna?</p> + +<p>—Mas... mas... minha mãezinha... tu não me recommend... encéta +Aphanassi Matveich assarapantado, desnorteado.</p> + +<p>N'este ensejo, está espécado ao pé do fogão acêso, com o dedo pollegar +enfiado no bolso do collete, em atitude pinturesca e a chuchurrebiar o seu +cházinho.</p> + +<p>Atrapalham-n'o as perguntas das senhoras, põe-se córado qual candida +donzella. Porém, ainda bem não encetara a propria justificação, eis que topa +com uns olhos tão irritados da consorte furibunda que fica petreficado de +terror. Sem saber o que ha-de fazer e desejoso de remediar a asneira, e +reconquistar a estima de Maria Alexandrovna, engole um golo de chá, mas o chá +está a ferver, Aphanassi Matveich escalda-se, engasga-se, toma-se de um froixo +de tosse, e pisga-se da sala para o quarto, deixando banzada toda a assembleia. +Perceberam tudo, e Maria Alexandrovna nem põe em duvida o estarem cabalmente +informadas as suas visitas, e o haverem-se congregado em sua casa com intuito +malevolo.</p> + +<p>É perigosa a situação. Podem muito bem obrigál-o a descoser-se, enredál-o na +propria presença da mulher. São capazes, até, de carregar com o principe e de o +malquistar<span class="pn">{146}</span> com Maria Alexandrovna... Em summa, +cumpre contar com o peor.</p> + +<p>A sorte reserva á nossa heroina ainda outra prova. Abre-se a porta, e dá +entrada o Mozgliakov, a quem ella suppunha em casa de Borodoniev. A previdente +senhora estremece como se o que quer que fosse lhe houvera trespassado o +coração. Mozgliakov pára nos umbraes da porta, um tanto intimidado, e põe-se a +examinar a assembleia. Não consegue dominar o sobresalto a ler-se-lhe no +semblante.</p> + +<p>—Ai, meu Deus! Pavel Alexandrovitch! exclamam diversas vozes.</p> + +<p>—Ai, meu Deus! Mas é o Pavel Alexandrovitch!</p> + +<p>—E a senhora a dizer-nos, Maria Alexandrovna, que elle a estas horas +devia estar em casa do Borodoniev?</p> + +<p>E a dizerem que estava escondido, Pavel Alexandrovitch, lá em casa do +Borodoniev, ladra Natalia Dmitrievna.</p> + +<p>—Escondido? repete Mozgliakov com sorriso contrafeito. É um tanto +exquisita a expressão! Queira perdoar, Natalia Dmitrievna, eu não me escondo +nem tenho motivos para me esconder seja de quem fôr, accrescenta vibrando +significativo olhar a Maria Alexandrovna.</p> + +<p>Estremece Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—"Ora esta! querem ver que se insurge tambem este bonifrate? diz +comsigo, a examinar Mozgliakov. Não faltava mais nada!"</p> + +<p>—Será verdade. Pavel Alexandrovitch, que está reformado... das suas +funcções?—arrisca a atrevida da Felissata Mikhailovna, a olhar para elle, +ironica.</p> + +<p>—Reformado? Reformado de quê?<span class="pn">{147}</span></p> + +<p>Fui apenas transferido; tenho o meu logar lá em Petersburgo, responde com +secura Mozgliakov.</p> + +<p>—Ainda bem! E desde já o felicito; continua a Felissata Mikhailovna. +Tivemos um susto por sua causa, quando nos disseram que andava a ver se +arranjava um logar em Mordassov. Que, logares, por aqui, são pouco estaveis. +Pavel Alexandrovitch, de um dia para o outro apanha-se uma demissão.</p> + +<p>—A não ser que se trate de um logar de <em>utchitel</em>, para ahi em +qualquer escola communal... Esses têm ferias... observa a Natalia Dmitrievna. +</p> + +<p>É tão transparente a allusão, tão grosseira, que á propria Anna Nikolaievna +assoma-lhe o rubor ás faces e pega ás cotoveladas á peste da amiga.</p> + +<p>—Persuadem-se então que Pavel Alexandrovitch seria homem para marchar +nas piugadas de um reles <em>utchitel</em>? insiste a Felissata Mikhailovna.</p> + +<p>Pavel Alexandrovitch, sem saber o que ha de dizer, volta costas e dá de +rosto com Aphanassi Matveich de mão estendida para elle. Mozgliakov, alvar, não +acceita a mão do conselheiro e faz-lhe rasgada contumélia, com pretenções a +ironica. Acerca-se da Zina e, mirando-a a fito, socina-lhe:</p> + +<p>—É a culpada de tudo isto... mas espere, e ainda esta noite, verá se +eu sou, ou não sou um asno!</p> + +<p>—Esperar, eu?—Como se já se não estivesse vendo o sufficiente! +retruca a Zina muito de rijo, a medir com uns olhos desdenhosos o +recem-rejeitado.</p> + +<p>Mozgliakov precipita a retirada, espavorido pela expansão vocal da +donzella.<span class="pn">{148}</span></p> + +<p>—Vem de casa do Borodoniev? resolve-se por fim a perguntar Maria +Alexandrovna.</p> + +<p>—Não; venho de estar com meu tio.</p> + +<p>—Com seu tio?—Esteve com o principe?</p> + +<p>—Ai meu Deus! Com que então o principe já está acordado? E a dizer-nos +que estava ainda recolhido, acode Natalia Dmitrievna a enterrar pelo chão +abaixo Maria Alexandrovna com uns olhos em que transluz odio e triunfo.</p> + +<p>—Não lhe dê cuidado o principe, Natalia Dmitrievna, replica o +Mozgliakov; está acordado, e, graças a Deus, recuperou as suas faculdades. +Tinha bebido uns copitos a mais, hontem, em sua casa, e acabaram aqui de o +toldar de todo; de modo que se lhe tinha varrido completamente o tino. Bem +sabe, que está um tanto fraco de cabeça. Agora, comtudo, eu e elle tivemos uma +conversa, e está com o juizo no seu logar. Não tarda por ahi, meia hora, Maria +Alexandrovna, para lhe dizer adeus, e lhe dar os agradecimentos pela sua franca +hospitalidade. Logo de madrugada vamos até á Charneca, tenciono acompanhál-o +até Dukhanovo, a vêr se lhe evito para ahi algum tombo, como aquelle que hoje +apanhou. Voltará a collocar-se ao abrigo do broquel da Stepanida Matveiévna, que +a estas horas já deve ter regressado de Moscou, e lhe não tornará a consentir o +expôr-se outra vez aos riscos de uma jornada, isso lhe asseguro eu!</p> + +<p>E o Mozgliakov, maligno, a examinar Maria Alexandrovna, embatucada e +estupefacta.</p> + +<p>(Pêsa-me o ter de confessar que, pela primeira vez na sua vida, sente medo a +nossa heroina).<span class="pn">{149}</span></p> + +<p>—Retira-se ámanhã! Mas então... como assim? indaga de Maria +Alexandrovna a Natalia Dmitrievna.</p> + +<p>—Como assim? repete Anna Alexandrovna, pasmada.</p> + +<p>—Como assim? effectivamente, écoam outras vozes. E nós a julgarmos +que... É extraordinario, na verdade.</p> + +<p>A dona da casa nem atina sequer com o que ha de dizer. Eis que, de subito, é +attrahida a geral attenção por um episodio da mais extraordinaria +excentricidade. Ouve-se, na saleta contigua, um alarido de vozes, de +exclamações, e rompe por ali dentro a Sofia Petrovna Karpukhina.</p> + +<p>A Sofia Petrovna é sem discussão possivel a mulher mais original em toda +Mordassov; é original a ponto que tiveram que a excluir da sociedade. E cumpre +advertir que ella, regularmente, ás sete horas, despacha a sua merenda, e que +depois de a despachar fica sempre n'uma disposição de espirito... mais que +muito emancipada... para não irmos mais longe. E é n'esse estado, exactamente, +que ella effectua em casa de Maria Alexandrovna tão inesperada apparição.</p> + +<p>—E esta! Com a senhora é sempre assim, Maria Alexandrovna! berra ella +estrugindo a tudo: isto será modo de proceder para commigo?!... Não se assuste, +vim aqui de corrida, nem me sento, sequer. Vim de proposito para saber se é +verdade aquillo que me disseram. A senhora a dar bailes, banquetes e n'este +meio tempo, a Sofia Petrovna para ali a um canto, em casa, a concertar as +meias! A senhora a ajuntar em sua casa a cidade em peso, menos a mim! Commigo, +d'antes, tudo era: minha amiguinha, meu anjo,—quando lhe conveio saber o +enredo que a Natalia Dmitrievna a seu respeito e do principe andava a +tecer,<span class="pn">{150}</span> e vae senão quando, a Natalia Dmitrievna, +de quem a senhora—hoje mesmo—como ella aliás diz da +senhora—disse cobras e lagartos—está para ahi amesendada na sua +<em>soirée</em>! Não se assuste, Natalia Dmitrievna, passo muito bem sem o tal +seu chocolate de dois kopeks cada pau. Eu, quando me appetece beber seja o que +fôr, lá em minha casa não falta, graças a Deus; tomára a senhora!</p> + +<p>—Bem se vê! observa a Natalia Dmitrievna.</p> + +<p>—Ora vamos, Sofia Petrovna, exclama Maria Alexandrovna, afogueada de +despeito, que é que tem? Socegue!</p> + +<p>—Não lhe dê cuidado a minha pessoa, Maria Alexandrovna, estou sciente +de tudo, de tudo! guincha com a voz de pipia a Sofia Petrovna, á qual fazem +cêrco as visitantes, que não cabem em si de contentes com o escandolozinho. +Estou informada de tudo e foi lá a sua Nastassia quem m'o pespegou, tim-tim por +tim-tim! A senhora pregou uma camoéca ao tal principe e tanto apertou com elle, +até que lhe pediu em casamento a sua filha—que já nem tem quem a queira! +E a senhora a ver-se já toda emproada, a julgar-se uma duquêsa, com manto e +tudo.—Pfu-u! Não cuide que me mete mêdo! Tenho visto muitas duquêsas e +aqui onde me vê sou coronela! Ah! A senhora então nem sequer me convidou para a +bôda!—Cá por mim, escarro-lhe em cima!—Tenho muito com quem me dar, +tomára a senhora. O ponto está que eu queira! Vá ouvindo: Hontem jantei eu com +a princesa Zalikhvatskaia, e por signal que até o commissario principal, o +Kuropchkine, me pediu em casamento. Estou-me ninando para o tal seu +<em>salsifrê</em>.</p> + +<p>Pfu-u! Arreda!</p> + +<p>—Escute, Sofia Petrovna, responde Maria Alexandrovna<span +class="pn">{151}</span> fora de si, fique sabendo que assim ninguem se atreve a +pôr pé numa casa decente;... e n'esse seu estado, de mais a mais!... Se me não +favorece desde já com a sua ausencia... obriga-me a appellar para... </p> + +<p>—Bem sei, chama os criados para me pôrem no olho da rua? Não lhe dê +cuidado, sei muito bem o caminho. Adeuzinho! Case lá a sua filha com quem muito +bem quiser. E a senhora, Natalia Dmitrievna, escusa de se rir á minha custa: eu +cá, ao tal seu chocolate, só se lhe cuspir dentro! Ella convidava-me lá! Isso +sim! Não, que lá em minha casa não ha quem danse o <em>kazatchok</em> diante de +principes! E lá a senhora, tambem, Anna Nikolaievna, de que é que se está a +rir? O seu Suchilov partiu indagora uma perna: e lá o levaram em charóla para +casa—ha de-lhe fazer falta, já se vê! Pfu-u! E a senhora, Felissata +Mikhailovna, se não avisa aquelle calcanhar rachado do seu Matvehka que, se +torna a consentir que a sua vacca esteja todo o santo dia aos bérros debaixo da +minha janéla, parto-lhe as pernas, ao tal seu Matevchka! Adeuzinho, Maria +Alexandrovna! A bom intendedor, o resto já se sabe! Saúde!</p> + +<p>Pfu-u!</p> + +<p>Some-se a Sofia Petrovna. Desata toda a gente á gargalhada. Maria +Alexandrovna ficou entupida de todo.</p> + +<p>—Estou em dizer que beberia a sua pinga, diz a Natalia Dmitrievna, +muito de mansinho.</p> + +<p>—Se já se viu semelhante desaforo;</p> + +<p>—Abominavel criatura!</p> + +<p>—Se quer ao menos fartámo-nos de rir!</p> + +<p>—Que chorrilho d'inconveniencias!</p> + +<p>—É ella abrir a bôca!—Passa fora!<span +class="pn">{152}</span></p> + +<p>—Mas que queria ella dizer com as taes bôdas? indaga em ar de mofa a +Felissata Mikhailovna.</p> + +<p>—É temivel! exclama Maria Alexandrovna. E são uns monstros d'este +calibre que andam para ahi a desacreditar a toda a gente, com a estupida +linguarice! E sabe o que lhe digo, Felissata Mikhailovna, é que me não admira, +que umas fufias assim sejam recebidas na nossa sociedade, quando, o que é ainda +mais para admirar, ha gente que a ellas recorra, que lhe dê ouvidos, e que lhes +dê credito... cambada!... </p> + +<p>—O principe! O principe! gritam á uma.</p> + +<p>—Valha-me Deus! O principe!</p> + +<p>—Graças a Deus! Até que emfim vamos ficar sabendo a verdade.<span +class="pn">{153}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>XIII</h2> + +<p>Entra o principe, dilatados, os labios por aquelle seu meigo sorriso. A +inquietação insuflada pelo Mozgliakov n'aquelle descuidado coração desapparece +de todo, ao dar com os olhos nas damas: derrete-se desde logo que nem um +rebuçado.—Elle, em geral, entretem muitissimo o bello sexo. A Felissata +Mikhailovna affirmava, até, esta manhã, por brincadeira, já se vê, que estava +pronta a sentar se-lhe nos joelhos, se elle quisesse, pois era "um encanto de +um ginjinha, um encanto nunca visto, até." E Maria Alexandrovna sem tirar +d'elle os olhos, a estudál-o, tentando prever-lhe no semblante o desfecho de +tão critica situação. É evidente haver o Mozgliakov comprometido gravemente o +negocio e o estar um tanto vacilante a emprêsa. E não obstante nada se pode ler +no rosto do principe... está, como sempre, insipido e encantador.</p> + +<p>—Ai, meu Deus! Até que ahi vem o principe! E nós todos á sua espera! +exclamam diversas damas.</p> + +<p>—Com impaciencia, principe, com impaciencia, pipilam as restantes.</p> + +<p>—Li... son... son... jeia... me... sum... ma... mente, diz o principe +sentando-se á mêsa defronte do samovar a ferver.</p> + +<p>As damas atrigam-se em fazer-lhe cerco. A Anna Nikolaievna e a Natalia +Dmitrievna são as unicas que se deixam ficar ao pé de Maria Alexandrovna. +Aphanassi Matveich<span class="pn">{154}</span> sorri, respeitozissimo. +Mozgliakov sorri tambem a olhar com uns ares de provocação para a Zina a qual, +sem fazer caso delle, se acerca do pae e se senta ao lado d'este n'uma +poltrona.</p> + +<p>Ah! principe—sempre é verdade que se retira? indaga a Felissata +Mikhailovna.</p> + +<p>—Está c... claro... minhas senhoras, retiro-me; vou... im... me... +diata.. mente para o estrangeiro.</p> + +<p>—Para o estrangeiro, principe!</p> + +<p>—Para o estrangeiro! clama toda a gente em côro. Que ideia!</p> + +<p>—Pa... ra o est... est... rangeiro, affirma o principe, a tomar +atitudes, e n... não sabem?—eu se vou é... é... por causa das taes... +ideias novas.</p> + +<p>—Como assim? As ideias novas?</p> + +<p>—De que é que se trata? perguntam as damas a olhar umas para as +outras.</p> + +<p>—Está... c... laro!... As ideias novas! insiste o principe com uns +modos de intima convicção; vae lá toda a gente, agora, por causa das ideias +novas, e eu se vou é... com... o sentido tambem de me sa... turar.</p> + +<p>—É capaz de estar com o sentido em ir filiar-se por lá em alguma loja +maçonica? intervem o Mozgliakov desejoso de fazer brilhar o seu espirito na +presença das damas.</p> + +<p>—Está... c... claro, meu amigo, não t'enganas. Eu, em tempos, +pertenci, effectivamente, a uma loja maçónica. Animavam-me, até, umas ideias, +muitissimo generosas... Propunha-me a fazer muita coisa... em... em favor da... +in... instrucção... mo... moderna. Queria dar carta... de... al... fo... forria +ao meu Si... do... dor, mas safou-se<span class="pn">{155}</span> antes de +tempo, com grande es... panto da minha parte. Que lemb... rança tão ra... tona! +Depois, um dia, encontrei-o cara... a... cara... lá em Paris, vestido como um +dandy, com umas suissas,... a passear pelo bou... levard... com uma +"<em>menina</em>". Acenou-me com a cabeça... e mais nada. E a tal +<em>menina</em>, que levava p... pelo braço tinha uns ares tão agai... +atados... tão ape... titosa.</p> + +<p>—O tiozinho, então, d'esta vez, em se apanhando em Paris, dá a +liberdade aos servos todos, sem excepção?</p> + +<p>—Está..., c... claro... adivinháste-me o pensamento, meu c... caro. É +tal qual... quero dar liberdade a to... dos elles.</p> + +<p>—Ora vamos, principe, safam-se-lhe todos de casa, e depois, quem é que +lhe paga o dizimo? exclama a Felissata Mikhailovna.</p> + +<p>—Pois já se vê, que se safam, acode, inquieta, Anna Nikolaievna.</p> + +<p>—Ai, meu Deus! Que me diz? Então parece-lhe que o façam?</p> + +<p>—Safam-se, safam-se, pudera não... Tão certo! E o senhor, depois, +vê-se sósinho, confirma a Natalia Dmitrievna.</p> + +<p>—Ai! meu Deus! Visto isso... então n... não lhes dou... al... for... +ria! E d'ahi, eu dizia isto... por dizer.</p> + +<p>—Antes assim, tiozinho.</p> + +<p>Maria Alexandrovna, até agora, tem estado caláda a observar. Parece-lhe que +o principe se esqueceu d'ella, totalmente, e não acha isso natural.</p> + +<p>—Principe, enceta elevando a voz e com dignidade, peço-lhe licença +para lhe apresentar Aphanassi Matveich,<span class="pn">{156}</span> meu +marido. Veiu expressamente do cantinho da sua aldeia, assim que soube que o +principe se achava hospedado em minha casa.</p> + +<p>Aphanassi, todo elle sorrisos e a fazer papo. Afigura-se-lhe que acabam de +lhe endereçar um cumprimento.</p> + +<p>—Ah! Fol... go im... menso... Apha-anassi Matveich. Dê me licença... +está-me a parecer que... me lembro... do que quer que seja... Aphana-assi +Matvei... tch? Ah! sim! sim! Aquelle que estava no campo?... Encantado! +encantado! Quanto esti... imo... Meu amigo, exclama o principe dirigindo-se a +Mozgliakov... mas foi elle que... que... como se intende, então?... O marido lá +por fóra... e a mulher... em... Sim, sim, lá n'uma cidade... e a mulher... </p> + +<p>—Ah! principe,... isso pelos modos ha de ser: o <em>Marido lá por +fóra</em>, e a mulher <em>em Tvor</em>, o tal vaudeville, que uma companhia +ambulante representou lá em casa o anno passado?</p> + +<p>—Está c... claro, em <em>Tvor</em>, e... eu... sempre a esqué... +quécer-me! Encantado, encantado! Com que, então, é o senhor? Quanto estimo +conhecêl-o! diz o principe sem se erguer da cadeira, de mão estendida para +Aphanassi Matveich. E então, como vae?</p> + +<p>—Hum!... </p> + +<p>—Está optimo, optimo! acode Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—Está... c... claro... bem se vê... Com que, então, vive sempre no +campo? Pois, senhor, estimo muito.—Mas que bochêchas tão corádas que elle +tem! E não faz senão rir!... </p> + +<p>Aphanassi Matveich sorri e faz-lhe a sua vénia, a arrastar<span +class="pn">{157}</span> o pé pelo sobrado. E comtudo, assim que ouve a ultima +observação do principe, não se pode suster e desata uma gargalhada alvar. E +imita-o toda a gente. As damas soltam guinchos de alegria. A Zina, corrida, +ruboriza-se e vibra uns olhos coruscantes a Maria Alexandrovna, que se está +comendo de raiva. É tempo de desviar a conversação.</p> + +<p>—Dormiu bem, meu principe? indaga com voz tranquilla, intimando ao +mesmo tempo, com uma olhadella vivaz, Aphanassi Matveich a que volte quanto +antes para o seu logar.</p> + +<p>—Dormi op... ti... mamente... E, não sabem, tive um sô... ônho +deliciôso, deli... ciô... so!</p> + +<p>—Um sônho! Gósto tanto de que me contem sônhos! exclama a Felissata +Mikhailovna.</p> + +<p>—Tambem eu! accrescenta a Natalia Dmitrievna.</p> + +<p>—Um sô... nho... deliciôso... repete o principe com meigo sorriso; mas +é segredo o tal sônho.</p> + +<p>—Como assim, principe? Nem sequer se pode contar? observa Maria +Alexandrovna.</p> + +<p>—Um grande segredo! repete o principe.</p> + +<p>Recrudesce a curiosidade.</p> + +<p>—Mas, então, deve de ser interessante, interessantissimo, exclamam de +todos os lados.</p> + +<p>—Não se me dava de apostar que o principe, no tal seu sônho, estava de +joelhos aos pés de alguma beldade a fazer-lhe a sua declaração de amor! exclama +a Felissata Mikhailovna. Ora vamos, principe, confesse! Confesse!... então, meu +rico principezinho da minha alma!</p> + +<p>—Confesse, principe, confesse! exclamam por todos os lados.<span +class="pn">{158}</span></p> + +<p>E o principe deliciado, a escutar aquella gralhada. Lisonjeia-o a +supposição, e lambe-se todo, até.</p> + +<p>—Comquanto seja um grande segredo, não tenho remedio senão confessar +que ma... madame, com grande espanto da minha parte, por pouco o não adivinha +de todo.</p> + +<p>—Adivinhei! exclama com arrebatamento Felissata Mikhailovna. E então, +principe, é preciso dizer-nos quem é essa tal belleza!</p> + +<p>—Tem obrigação de o dizer!</p> + +<p>—Achar-se-ha aqui?</p> + +<p>—Diga, diga, meu rico principezinho!</p> + +<p>—Principe... meu amorzinho! Diga! Morra depois, mas diga!</p> + +<p>—Mi... nhas... senhoras! Minhas se... senho... ras, se insistem em +absoluto por que lh'o diga, apenas lhes po... derei desvendar uma coisa: era a +mais seductora, a mais virtuosa menina, de quantas... tenho conhecido em minha +vi... vida!</p> + +<p>—A mais seductora... de quantas aqui estão? Quem será? indagam entre +si as damas a trocarem signaes de connivencia.</p> + +<p>—Com toda a certeza que deve de ser aquella que disputa a fama de ser +a primeira beldade de Mordassov, prorompe a Natalia Petrovna a bater as palmas +com aquellas manápolas côr de lagosta e sem tirar os olhos de cima da Zina.</p> + +<p>E toda a gente com os olhos pregados na Zina.</p> + +<p>—Mas como é, então, que o principe, com uns sonhos assim, não se casa +por uma vez? indaga a Felissata Mikhailovna.<span class="pn">{159}</span></p> + +<p>—Soubessemol-o nós, e que noivazinha lhe não teriamos arranjado! +affirma, d'ali, outra dama.</p> + +<p>—Case-se! case-se, principezinho da minha alma—pipíla uma +terceira.</p> + +<p>—Case! case-se!—guincham por todos os lados. Por que é que não +ha de casar?</p> + +<p>—Está... c... claro... por que é que eu me... n... não hei-de casar? +acóde o principe, atrapalhado.</p> + +<p>—Tiozinho! exclama o Mozgliakov.</p> + +<p>—Está... c... claro, meu amigo, já te percebi. O que eu queria +dizer-lhes, minhas senhoras, é que me não posso casar. Concluida esta deliciosa +<em>soirée</em>, em casa da nossa amabilissima hospeda, amanhã tenciono ir até +a charnéca, e d'ali, para o es-trangeiro, quero ir estudar a ins-tru-cção +euro-ro-pêa.</p> + +<p>A Zina está enfiada e vibra á mãe uns olhos rancorosos. Maria Alexandrovna, +comtudo, assentou n'uma resolução. Até agora, estava á espera, a apalpar o +terreno, supposto lhe parecesse achar-se sufficientemente compromettido o +negocio e haverem-se-lhe antecipado seus inimigos. Percebe tudo, finalmente, e, +de um golpe, quer acabar com aquella hydra das cem cabeças. Ergue-se, +majestatica, acerca-se da mêsa a passo firme e com soberbo olhar enterra pelo +chão abaixo aquelles pygmeus que a rodeiam. Reluz-lhe nos olhos o fogo da +inspiração. Vae aniquilar aquella sucia de coscovilheiras peçonhentas, esmagar +aquelle sevandija do Mozgliakov como quem esmága uma barata, e com um golpe +decisivo, reconquistar de todo a influencia que perdeu sobre a pessoa d'aquelle +idiota d'aquelle principe. Claro está que para isso ha mister de appellar<span +class="pn">{160}</span> para um atrevimento extraordinario, mas não será isso +que escasseie a Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—Minhas senhoras, enceta com modo solemne (Maria Alexandrovna nutre +paixão pela solemnidade), minhas senhoras, tenho estado a ouvir calada as suas +gracinhas e acho que já vae sendo tempo de que eu, pela minha vez, lhes dirija +algumas. Bem sabem que nos achamos aqui juntas, unicamente por mero acaso. +Estimo isso muito... Nunca me haveria resolvido a tornar publico um tão +importante negocio de familia antes de o exigirem os dictames do mais estricto +decoro. E acima de tudo, pedirei perdão ao nosso distinctissimo hospede. Mas +quer me parecer que é elle o proprio quem, mediante remotissimas allusões a +semelhante circunstancia, me suggere o pensamento de que a formal declaração +d'este segredo lhe será grata, mas que ella lhe inspira apprehensões. Não é +verdade, meu principe, que me não enganei?</p> + +<p>—Está claro... não se enganou... e estimo muito... muito... diz o +principe sem perceber palavra d'aquillo de que se está tratando.</p> + +<p>Maria Alexandrovna, no intuito de melhor dispôr o seu lance, toma o folego e +põe-se a examinar todo o auditorio, todos á uma a escutál-a com ávida e +inquieta curiosidade. O Mozgliakov, todo elle a tremer, a Zina, muito +afogueada, levanta-se... Aphanassi Matveich, n'estes assados, assôa-se.</p> + +<p>—Sim, minhas senhoras, folgo immenso de as tornar participes d'este +segredo familial. Hoje, depois de jantar, o principe, seduzido pela formosura +de... pelas qualidades de minha filha... conferiu-lhe a honra de lhe pedir a +mão. Principe, conclue ella com um tremor na voz, querido<span +class="pn">{161}</span> principe, não me deve querer mal por esta minha +indiscreção. O auge do contentamento, eis o que conseguiu arrancar-me do +coração, um tanto prematuramente, este segredo estremecido, e... qual será a +mãe que m'o leve a mal? Nem encontro sequer palavras que descrever possam o +effeito produzido pela inspirada saída de Maria Alexandrovna. Ficaram todos +varados de espanto. As visitantes, que suppunham assustar Maria Alexandrovna, +deixando-lhe antever o estarem senhoras do seu segredo, matál-a com a +divulgação do segredo, esfacelál-a com o poder unico das allusões, ficam +estupefactas perante uma tão denodada franqueza. Uma tal valentia era um signal +certo de bom exito.</p> + +<p>—Por conseguinte, é por sua propria vontade que o principe vae casar +com minha filha Zina. Ninguem o enganou, ninguem o embriagou... E por tanto, +não foi com esconderijos, á laia de ladrão, que o obrigaram a tomar estado! +Maria Alexandrovna, n'essa conformidade, não se arreceia seja de quem fôr, e +não ha ninguem que possa malograr este casamento.</p> + +<p>Paira um borborinho que desde logo se transforma em jubiloso alarido. A +Natalia Dmitrievna arremete de braços abertos para Maria Alexandrovna, +segue-lhe o exemplo a Anna Nikolaievna, e a Felissata Mikhailovna vem na +trazeira do rancho. Põem-se todos de pé, baralham-se. Das damas, algumas ha que +estão fulas de raiva. Pegam a dirigir parabens á Zina, atrapalhada, e +atiram-se, até, ao Aphanassi Matveich. Maria Alexandrovna estende os braços com +enfase, e á viva força, quasi, agarra-se á filha aos abraços a ella. Tão +sómente o principe, todo elle a rebulir, a considerar<span +class="pn">{162}</span> esta scena, de olhos espantados. E d'ahi, agrada-lhe +aquillo. Ao ver a filha nos braços da mãe, saca, até, do lenço e limpa o canto +do olho onde bugalhou uma lagrima. Atiram-se a elle, tambem, para lhe dar os +parabens.</p> + +<p>—Parabens, principe, parabens! guincham por todos os lados.</p> + +<p>—Com que então é certo, sempre vae casar?</p> + +<p>—Sempre se casa, effectivamente?</p> + +<p>—Ora até que se casa, principezinho da minh'alma!</p> + +<p>—Está... c... claro... está... c... claro! responde o principe, +encantado de semelhante enthusiasmo. Confesso-lhe que a sua simpatia me tocou o +coração... Nunca me ha... de esquecer! Encan... tado! Encan... tado! Fizeram... +me, até, vir as lagrimas aos olhos.</p> + +<p>—Venha um beijo, principe! guincha mais que todas juntas a Felissata +Mikhailovna.</p> + +<p>—E confesso-lhe... prosegue o principe, que fiquei pasmado por ver que +a nossa digni... ssima hos... peda, adivinhasse... com tanta pers... picacia, +um sonho tão extraordi... nario, como se fosse ella... que o sonhou... tal +qual—Es... panto... sa pers... pica... cia.</p> + +<p>—Ora esta! E o principe ainda a insistir no tal sonho?</p> + +<p>—Então, vamos, principe, confesse! clama o côro das damas a fazer-lhe +cerco.</p> + +<p>—Deixe lá, principe, é escusado estar com esconderijos, é tempo de +patentear o seu coração, declara em tom categorico Maria Alexandrovna. Não me +escapou a fina alegoria, a delicadeza cavalheiresca, que se revelam na forma +discreta por que tornou publico o seu pedido. Sim, minhas senhoras, é verdade, +hoje ainda, o principe ajoelhou aos<span class="pn">{163}</span> pés de minha +filha, e de modo real e verdadeiro, que não em sonho, formulou solemnemente o +seu pedido.</p> + +<p>—Quan... to... ha de mais real... e nas mê... mêsmas circunstancias, +appoiou o principe. Minha me... nina, proseguiu com summa delicadeza +dirigindo-se á Zina cada vez mais atrapalhada, juro-lhe que jamais me atreveria +a proferir o seu n... ôme, se acaso o não tivessem outros... mencion... ado +antes. Foi um sonho de... licioso... uma... de... licia de um... sonho! E folgo +immenso... em ter ensejo... de o manifestar Um encanto!... Um encanto!</p> + +<p>—Mas, como se intende isto? Elle insiste em se referir ao tal sonho! +murmura a Anna Nikolaievna dirigindo-se a Maria Alexandrovna, inquieta e um +tanto enfiada.</p> + +<p>Mas, ai! O coração de Maria Alexandrovna está alanceado por tristissimos +presentimentos.</p> + +<p>—E então? murmuram as damas a olharem umas para as outras.</p> + +<p>—Ora vamos, principe, profere Maria Alexandrovna com um sorriso +amarello, confesso-lhe que me deixou pasmada.—Admira-me que esteja a +insistir n'essa sorna do tal sonho! Eu até agora, estava na fé, de que fosse +méro gracejo da sua parte... mas... se o é, ha de convir, que se vae +prolongando um tanto fora de proposito... Não posso nem devo admitir que seja +outra coisa além de uma distracção... </p> + +<p>—Deve de ser por distracção, efectivamente, assobia a Natalia +Dmitrievna. </p> + +<p>—E... stá... c... claro!... Di... distracção! repete o principe sem +perceber o que é que d'elle pretendem... Ora... ima... ginem, vou contar-lhes +uma anecdó... ta. Fui convidado<span class="pn">{164}</span> pa... ra assistir +a um enterro, em Petersburgo, n'uma casa burguêsa, mas decente, e... e fiz +confusão... suppús que era para festejar o nas... cimento de uma creança, (o +tal dia... nata... licio já lá... ia, havia mais de uma semana)... e fui +comprar um lindo rama... lhete de camelias para a pessoa... fes... tejada. +Entro... e que hei de eu ver? Um su... jeito mui... to digno, de uma certa +edade, estendido em cima da mesa... Fiquei passádo, sem saber onde me havia de +meter e mais o meu ramo.</p> + +<p>—Pois sim, principe, não se trata agora de anecdótas! atalhou Maria +Alexandrovna despeitadissima. Minha filha, louvado Deus, não tem necessidade de +andar á pesca de noivos, mas inda agora, o senhor, em pessoa, ali ao pé +d'aquelle piano, a pediu em casamento. Ninguem o obrigava... para mim propria +foi uma surpreza... mas sou mãe, e ella, é minha filha... Acaba de referir-se a +um sonho; sempre estive na fé de que fosse uma allusão aos seus esponsorios... +Sei e mais que sei, que o viraram de dentro para fora—desconfio quem +fosse—tal qual uma luva, mas...—queira explicar-se, principe, e +queira fazêl-o quanto antes! Semelhantes gracejos não tem cabimento n'uma casa +respeitavel.</p> + +<p>—E... stá.. c... claro! Não são brin... cadeiras para... uma casa +respeitavel, concorda o principe... inconsciente, mas um tanto inquieto.</p> + +<p>—Então, não me responde, principe! Já lhe pedi que quisesse +explicar-se de modo peremptorio: confirme, confirme, desde já, diante de toda a +gente, o facto de haver pedido hoje minha filha em casamento.</p> + +<p>—Es... tá... c... claro... estou pronto a confirmar... <span +class="pn">{165}</span> Tanto mais, que já lhes contei tudo, e Felissata +Yako... kolevna adivinhou ca... balmente o meu sonho.</p> + +<p>—Sonho! Qual sonho!? exclama rabiosa Maria Alexandrovna; não foi +sonho. Foi realidade, principe, intendeu? Realidade e mais que realidade!</p> + +<p>—Rea... li... dade... repete o principe erguendo-se da cadeira... +Está-se dando... tudo aquillo de que... tu me preveniste, accrescenta +dirigindo-se a Mozgliakov. Afirmo-lhe, Maria Alexandrovna... que ha equi... +voco da sua parte. Tenho toda a certeza em como foi sonho!</p> + +<p>—Meu Deus! geme Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—Não se afflija, Maria Alexandrovna, intervem a Natalia Dmitrievna; ao +principe, varreu-se-lhe da memoria... elle se lembrará.</p> + +<p>—Isso nem parece seu, Natalia Dmitrievna! responde furibunda Maria +Alexandrovna. Isso são lá coisas que se esqueçam? Ora vamos, principe, +deixemo-nos de facecias! Dar-se-ha o caso de que esteja armando em Lovelace? +Mas, tenha a certeza, sem falarmos em que é pouco proprio da sua edade, +juro-lhe, que lhe não ha de valer! Minha filha não é para ahi qualquer +viscondessa francêsa! Não ha ainda muito tempo, lhe estava ella a cantar uma +romança e o senhor de joelhos a seus pés, a formular o seu pedido de +casamento.—Serei eu que estou a sonhar? Fale, principe... Estarei a +dormir, porventura?</p> + +<p>—Es... tá c... claro!... e d'ahi, talvez que não, responde o principe, +desnorteado de todo... Quero dizer... não creio... que estou a sonhar... pre... +sente... mente. Mas... não vê a senhora... que eu, indagora, estava a sonhar... +e depois vi... em sonhos, que eu, a sonhar... <span class="pn">{166}</span></p> + +<p>—É preciso paciencia, meu Deus!... Que quer dizer com isso? Em sonhos, +que eu, a sonhar! Nem o proprio demonio era capaz de o perceber!... O principe +estará a delirar?</p> + +<p>—Está c... claro!... Nem o proprio demonio... E d'ahi... eu é que não +percebo uma pa... palavra, declara o principe a olhar para todos os lados, +inquieto.</p> + +<p>—Mas como é que o principe póde ainda acreditar que é sonho, depois de +eu lhe ter contado os pormenores d'esse tal supposto sonho do qual o senhor não +tinha dado parte a ninguem?</p> + +<p>—Mas quem nos affirma que o não tivesse já contado a alguem, insinua +n'este ensejo a Natalia Dmitrievna.</p> + +<p>—Está... claro... a alguem, confirma o principe.</p> + +<p>—Que comedia! murmura a Felissata Mikhailovna á vizinha.</p> + +<p>—Ah! meu Deus! excede a humana paciencia! vocifera Maria Alexandrovna, +a estorcer as mãos, no auge do exaspero. Se ella até lhe estava a cantar uma +romança; uma romança! Tambem a veria no tal sonho?</p> + +<p>—Está... claro... effectivamente, uma romança, murmura, absorto, o +principe.</p> + +<p>De repente, vem ressuscitá-lo uma reminiscencia.</p> + +<p>—Meu amigo, exclama dirigindo-se a Mozgliakov, tinha-me esquecido +dizer-te, indagora, que ella me tinha cantado uma romança... em que havia uns +cas... tellos... muitos... com um tro... vador... Está... claro... +recordo-me... e por signal... que até chorei... e agora nem sei já, se seria +realidade ou se foi sonho.</p> + +<p>—Tiozinho, responde o Mozgliakov com a maxima<span +class="pn">{167}</span> tranquilidade que pôde assumir (com quanto lhe trema a +voz) não me parece lá muito grave a dificuldade. Na realidade, não direi que +não tenha ouvido uma romança, canta tão bem a Zinaida Aphanassievna! +Acordar-lhe-hia reminiscencia dos seus bons tempos de outrora, dos instantes +ditosos, talvez que da tal viscondessa com quem o tio cantava tambem, algum +dia, romanças e á qual se referiu esta manhã. E depois, a dormir, sonharia +talvez que estava apaixonado e que tinha formulado o seu pedido de +casamento.</p> + +<p>Maria Alexandrovna fica atordoada com semelhante insolencia.</p> + +<p>—Ai! meu amigo! effectivamente! Ha de ser isso! exclama o principe, +contentissimo. Sim, sim, a dor... dormir!... umas agrad... aveis sensações... +Lembro-me da romança, e eu a querer casar... Um sonho! E tambem ali estava a +viscondessa... Ah! como tu desen... vencilhaste bem tu... do isso... meu caro! +Muito bem! É eu agora estou convencido:—era um sonho, Maria Vassilievna! +Affirmo-lhe que está... equi... vocada: foi sonho!... eu... nunca seria capaz +de estar gracejando... com a sua... respeita... bilidade.</p> + +<p>—Ah! agora, agora estou vendo quem foi o autor de tudo isto! exclama +fora de si Maria Alexandrovna com os olhos fitos em Mozgliakov. Foi o senhor, o +senhor! homem sem dignidade! Foi o senhor! Enganou este pobre idiota para se +vingar de ter apanhado um não pelas ventas! Mas tu m'as pagarás, miseravel! Tu +m'as pagarás, deixa estar!</p> + +<p>—Maria Alexandrovna, vociféra por sua vez Mozgliakov,<span +class="pn">{168}</span> vermelho que nem uma lagosta cozida, são tão... as suas +palavras... nem sei até que ponto as suas palavras... uma senhora da sociedade +jámais se permittiria... Estou defendendo meu tio... e confesse que o querer +seduzir de semelhante modo... </p> + +<p>—Es-tá... c-claro—seduzir... seduzir... de semelhante... +modo—mia o principe, que se ergueu da cadeira e tudo é querer esconder-se +por detrás de Mozgliakov.</p> + +<p>—Aphanassi Matveich—despulmôa-se a berrar Maria Alexandrovna, +não ouves que estão para aqui a desacreditar-me? Perderias tu o sentimento dos +teus deveres, porventura? Não serás tu mais que um cêpo? Para que estás tu para +ahi a piscar os olhos? Outro qualquer no teu logar tinha já lavado com sangue o +ultraje que nos estão fazendo!</p> + +<p>—Minha esposa! enceta com solemnidade Aphanassi Matveich, lisonjeado +por ver que se lembram delle, minha esposa! não seria sonho, effectivamente? E +depois, tu, ao acordar, ficares suppondo que era verdadeiro... </p> + +<p>Aphanassi Matveich, nem tempo tem de concluir a sua espirituosa +interpretação. As visitantes, até ali, contiveram-se mantendo uns módos de +cortês hypocrisia, mas d'esta vez a risota foi geral.</p> + +<p>Maria Alexandrovna, esquecendo de todo as conveniencias, atira-se ao marido, +para lhe arrancar os olhos, provavelmente; vêem-se na necessidade de a segurar +á força.</p> + +<p>A Natalia Dmitrievna aproveita a circunstancia para entornar uma doze +d'alcatrão no lume.</p> + +<p>—Ah! Maria Alexandrovna, quem nos diz que não foi sonho, +effectivamente? emitte em voz represada.<span class="pn">{169}</span></p> + +<p>—Um sonho? Um sonho o quê? clama Maria Alexandrovna sem perceber.</p> + +<p>—Então! Maria Alexandrovna, são coisas que acontecem.</p> + +<p>—Acontece? Mas que é que acontece?</p> + +<p>—Talvez que a senhora tenha visto tudo isso a sonhar!</p> + +<p>—A sonhar! Eu? A sonhar! E atreve-se a dizer-m'o na cara!</p> + +<p>—E d'ahi, é possivel, insiste a Felissata Mikhailovna.</p> + +<p>—Está... c-claro!... é po... pos-possivel, murmura por sua vez o +principe. </p> + +<p>—Pois tambem elle! Elle! Santo Deus! Maria Alexandrovna enclavinha as +mãos. </p> + +<p>—Não se desconsole, Maria Alexandrovna! Lembre-se de que os sonhos é +Deus que os manda! Não ha coisa nenhuma n'este mundo que possa ir ávante contra +a sua santa vontade... nem é motivo para que se altere.</p> + +<p>—Está... c-claro... não ha motivo... </p> + +<p>—Cuidam talvez que sou alguma doida? consegue apenas silvar Maria +Alexandrovna esganada de raiva.</p> + +<p>Encheu-lhe a medida ás forças semelhante scena. Procura á pressa uma cadeira +e deixa-se cair, exanime.</p> + +<p>Segue-se uma algazarra.</p> + +<p>—Acudiu a tempo o chelique!</p> + +<p>N'este conflicto, porém, eis que surge por entre a balburdia geral, a +intervir, uma personagem muda até então, e se transforma desde logo a feição da +scena.<span class="pn">{170}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>XIV</h2> + +<p>Era sobremodo romanesco o caracter da Zinaida Aphanassievna. Não sabemos se +teria abusado da leitura daquelle "pateta do tal Shakspeare", lá, com o tal seu +<em>utchitelzinho</em>, mas até agora ainda não havia praticado um tão heroico +acto de loucura como o que praticou n'este conflicto.</p> + +<p>Enfiada, com os olhos a relampejarem-lhe de resoluta, toda ella n'um tremor, +um portento de formosura e de colera, avança, varre com a provocação nos olhos +toda aquella gente em redor de si, e por entre o silencio geral, dirige-se á +mãe a qual, assim que a Zina se levantou, tornou a abrir os olhos.</p> + +<p>—Para que é estar com fingimentos, mamã? É já tão sujo, tudo isto a +que estamos assistindo! Basta de mentiras! Não vale a pêna estar a tapar lama +com a propria lama.</p> + +<p>—Mas que é isto, Zina! Tu não estás em ti! exclama Maria Alexandrovna, +erguendo-se de repellão.</p> + +<p>—Eu bem a tinha avisado, mamã, de que não podia supportar semelhante +vergonha! Não estejamos a sujar-nos mais do que o estamos já!... Assumirei a +responsabilidade de tudo. Fui, eu, visto que consenti, que teci toda esta +vilissima... intrigalha. A mamã estava na fé de que trabalhava com o sentido em +me tornar feliz, sequer ao menos tem desculpa: eu, nenhuma!<span +class="pn">{171}</span></p> + +<p>—Que vaes tu dizer, Zina! Bem me dizia o coração que me estava ainda +guardado mais este desgosto!</p> + +<p>—É assim mesmo, mamã! Vou declarar tudo! Nem sei como não morri de +vergonha... cobrimo-nos de opprobrio, tanto a mamã como eu... </p> + +<p>—Estás exagerando, Zina! Nem sabes o que estás dizendo! Contar tudo, +para quê?... Não ha a minima necessidade... Quem se cobriu de opprobrio não +fômos nós, e vou provál-o!</p> + +<p>—Deixe-me falar! Não quero estar calada por mais tempo na presença de +uma gente que desprézo e que vieram aqui unica e exclusivamente para se rirem á +nossa custa. Entre estas mulheres, sem excepção, não ha uma unica a quem +assista o direito de me condemnar! Todas ellas estão prontas a fazer cem vezes +peor do que fizemos, eu, e a mamã. Com que direito poderiam ellas, com que +direito se atreveriam a fazêl-o?</p> + +<p>—Então! Já viram?</p> + +<p>—Quem n'a ouve falar!... </p> + +<p>—Mas está nos offendendo!... </p> + +<p>—E ella, sim, que será?</p> + +<p>—Ella sabe lá o que está dizendo? remata a Natalia Dmitrievna. Seja +dito, entre parenteses, que a Natalia Dmitrievna não deixava de ter razão. Se a +Zina considerava aquellas damas indignas de julgar á mãe e a si, por que era +então que se ia confessar na sua presença? Em summa, a Zina tinha procedido com +excessiva precipitação. E mais tarde, era esta, até, a opinião das pessoas mais +sensatas em Mordassov. Tudo se poderia haver conciliado. É certo que Maria +Alexandrovna, pela sua parte, se havia<span class="pn">{172}</span> prejudicado +pela sua precipitação e sua altivez. Ter-lhe-hia bastado meter a ridiculo o +idiotazito do ginja e pôl-o a andar. A Zina, comtudo, de caso pensado e como +que para arrostar com o bom senso e a sisudez mordassovense, dirigiu-se ao +principe.</p> + +<p>—Principe, diz a Zina ao velho que desde logo se põe de pé com +deferencia, a tal ponto o impressionou a fisionomia da Zina, queira +perdoar-nos, mas saiba que o enganámos!</p> + +<p>—Não te calarás por uma vez! desgraçada! vocifera Maria +Alexandrovna.</p> + +<p>—Minha—menina,—minha... menina... minha... en... en... +cantadora... murmura o principe, pasmado.</p> + +<p>O caracter soberbo, fogoso e mistico da Zina leva-a a transpôr quaesquer +limites. Esquece-se dos transes por que estará passando a mãe ante esta publica +confissão; só vê a salvação, a redempção na franqueza, e vae até ao fim.</p> + +<p>—Enganámol-o, sim, uma e outra, principe; a mamã resolvendo-me a +aceitar a sua mão, e eu em consentir. Embriagámo-nos, eu, puz-me a cantar e a +fazer tregeitos na sua presença com sentido em o saquear, conforme se expressou +ha pouco Pavel Alexandrovitch, para lhe roubar a sua fortuna e o seu titulo. +Era ignobil! E peço-lhe perdão! E comtudo, juro-lhe, principe... que a minha +intenção... O que eu queria era... mas é duplicar a injuria o estar a procurar +desculpas. E todavia, declaro-lhe, principe, que se eu tivera casado com o +senhor, se eu o houvesse saqueado e roubado, em compensação, haver-me-hia +tornado o seu brinquedo, a sua criada, sua escrava... A<span +class="pn">{173}</span> mim propria m'o havia prometido, e cumpriria o meu +juramento... </p> + +<p>Veiu interrompêl-a um deliquio, as visitantes estão de pé, todas ellas, com +os olhos esgazeados. A tão imprevista quanto incomprehensivel expansão (para +ellas) da Zina desorientou-as. O principe, tão sómente, tem os olhos arrazados +de lagrimas, de commovido, supposto não perceba metade sequer do que ella tem +dito.</p> + +<p>—Mas... es... tá... claro... que hei de casar com a menina... com a +minha... l... linda menina, visto que tanto o... o deseja. E isso para mim +re... representa... até, subida hon... ra... Mas, não deixarei... de insistir +em que foi sonho!... Vejo tan... ta coisa, a so... sonhar! Por que é que se +hão-de estar a inquietar? Eu não percebi coisa nenhuma, meu amigo, prosegue +dirigindo-se a Mozgliakov; explica-m'o, se fazes favor!</p> + +<p>—E o senhor, Pavel Alexandrovitch, que se vingou de mim de modo tão +cruel, como é que pôde combinar-se com semelhante gente para me esfacelar +desacreditando-me? Allegava amar-me!... Mas para que estarei eu para aqui a +prégar-lhe moral!... Sou mais culpada que o senhor, offendi-o; tambem para com +o senhor me vali de hyprocrisia, de mentira! Nunca lhe tive amor, e se eu um +dia me resolvesse a desposál-o, seria unicamente para me ver livre d'esta +maldita cidade... Mas declaro-lhe, que se tal houvesse succedido, teria em mim +uma esposa fiel e carinhosa.</p> + +<p>—Zinaida Aphanassiévna!</p> + +<p>—E se ainda me conserva rancor... </p> + +<p>—Zinaida Aphanassiévna!!<span class="pn">{174}</span></p> + +<p>—Se é que, algum dia, prosegue a Zina a rebalsar as lagrimas, se é que +algum dia me teve amor... </p> + +<p>—Zinaida Aphanassievna!!!</p> + +<p>—Zina! Zina! Minha filha!</p> + +<p>—Sou um miseravel, Zinaida Aphanassievna, um miseravel, e nada +mais!... </p> + +<p>Produz-se um reboliço estupendo, uma vozearia de espanto, de indignação, de +atroar a tudo. Mozgliakov ficou que nem que fôra de pedra, incapaz de pensar, +de falar.</p> + +<p>Sempre que um caracter fraco e ôco, afeito a constante submissão, se decide +a insurgir-se, pára sempre perante um certo limite. A principio, a insurreição +manifesta-se com summa energia, é a energia do desespero, comtudo; arremete +contra os obstaculos, de olhos vendados, e assumme sempre fardos pesados demais +para os seus hombros. Chega um momento em que o desatinado se assusta de si +mesmo, estaca, como que atordoado, e diz comsigo: "Mas que estou eu fazendo?" E +distende-se o arco, pede perdão o insurrecto, supplíca, implora que as coisas +"voltem a estar como estavam", comtanto que isso se effectue quanto antes... +Foi o que se deu com o nosso Mozgliakov. Afflictissimo com o desastre de que +fôra autôr, a si proprio se abomina, despedaça-o o remorso, as ultimas palavras +da Zina anniquilaram-n'o de todo. O passar de um extremo a outro extremo +representa para si obra de momentos.</p> + +<p>—Sou um jumento, Zinaida Aphanassievna! Um jumento, nem mais nem +menos! Ou ainda peor! Mas hei de provar-lhe, Zinaida Aphanassievna, que hei de +saber tornar-me um homem de bem!... Saiba que o enganei—tiozinho! Fui eu, +fui eu que o enganei!—O tio não estava a sonhar, e<span +class="pn">{175}</span> pediu effectivamente a mão de Zinaida Aphanassievna! +Quando lhe disse que fora sonho, enganei-o de meio a meio... </p> + +<p>—Mas que coisas tão espantosas que estão vindo a lume! assobia a +Natalia Dmitrievna.</p> + +<p>—Es... tá... cclaro... um sonho... responde o principe... Mas socéga, +por favor! Assustaste-me... pa... pa... lavra de honra! E que bella voz que tu +tens! Estou pronto a ca... sar, se fô... fôr... necessario... Mas tu foste o +pro... prio a af... firmar-me que... que foi sonho!</p> + +<p>—E como é que eu agora o hei de despersuadir? Que hei de eu fazer? +tiozinho, considére em que se trata de um negocio muito sério, de familia!</p> + +<p>—Está... cclaro... Pen... sarei. Espera ahi! Deixa ver se me vou +recordando... por p... partes... Pri... meiramente, o Phio... philo, o meu +cocheiro.</p> + +<p>—Não se trata agora do Phiophilo, querido tio!</p> + +<p>—Está... cclaro!.. Não se trata... já se vê... que era de Napoleão... +E depois, tomámos chá... Appareceu uma se... senhora... e comeu-nos o açucar... +todo... </p> + +<p>—Não é nada d'isso, tiozinho, destampa para ali o Mozgliakov, fóra de +si, quem lhe contou essa historia foi a Maria Alexandrovna, a respeito da +Natalia Dmitrievna! Eu estava ali, escondido, atrás da porta; ouvi tudo!</p> + +<p>—Ora esta, Maria Alexandrovna! agarra no ar a Natalia Dmitrievna, com +que então foi pespegar ao principe que eu lhe tinha furtado o açucar? Eu, +então, venho a sua casa para furtar açucar!</p> + +<p>—Passa fora! mal encontra forças para emitir Maria Alexandrovna.<span +class="pn">{176}</span></p> + +<p>—Não, lá isso, tenha paciencia, Maria Alexandrovna, não lhe assiste o +direito de se negar a responder. Eu, então, furtei-lhe o açucar? Estou farta de +saber que não faz senão cortar-me na pelle, ha muito tempo!... Sou eu, então +quem lhe furto o açucar!... </p> + +<p>—Mas... mi... minha senhora... isso de açucar... era sonho... o tal +sonho... </p> + +<p>—Dorna d'uma figa! resmunga entre dentes Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—Eu lhe direi quem é a dorna! ulula a Natalia Dmitrievna. E a senhora, +que será então? Ha muito tempo que me pôz essa linda alcunha! Mas, sequer ao +menos, tenho um marido, emquanto a senhora se contenta com um cêpo.</p> + +<p>... Es... tá... cclaro... Tam... bem me lembro da Dorna... </p> + +<p>—Ah! elle é isso?... Tambem veiu meter a sua +colherada?—Atreve-se a injuriar uma senhora fidalga?! Com que, então, sou +uma dorna; olha quem fala, que nem sequer tem pernas!</p> + +<p>—Es... tá... cclaro... Sem pernas... </p> + +<p>... Como foi... que disse?</p> + +<p>—Pois está sabido—nem pernas—nem dentes—Ora +apanha!</p> + +<p>—E um olho, só!... accrescenta Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—Um espartilho a suprir as costellas!</p> + +<p>—Com a cara de mólas, toda ella!</p> + +<p>—E nem um pello nessa careca!</p> + +<p>—O proprio bigode, é postiço, pateta das duzias, agrava Maria +Alexandrovna. </p> + +<p>—Res... peitem—o meu na... nariz... sequer ao menos!<span +class="pn">{177}</span> É verdadei... ro! exclama, o principe banzado de +todo.—Fôs... te... tu que me de... nunciaste, meu amigo!</p> + +<p>Para que fôste contar que o meu—cabêllo era—po... postiço?</p> + +<p>—Tiozinho!</p> + +<p>—Não, meu amigo, já aqui não posso ficar... leva-me para qu... alquer +parte... Que gente!</p> + +<p>Para onde tu me trouxeste!... Valha-me Deus!</p> + +<p>—Idiota! vocifera Maria Alexandrovna.</p> + +<p>—Ai! meu Deus! suspira o coitado do principe. Já nem sei porque seria +que aqui vim parar—mas vou ver se me lembro.—Leva-me d'aqui para +fora—mano! Faziam-me em bo... bocadinhos!—E depois, é urgente que +eu vá anotar um... uma ideia... ca... capital.</p> + +<p>—Venha d'ahi, querido tio, ainda estamos a tempo. Vem commigo ahi para +um hotel, qualquer, e não me aparto do tio... </p> + +<p>—Mas... está... cclaro, com o senhor... </p> + +<p>Adeus minha lin... da menina!</p> + +<p>... A menina... e só a menina é a unica... que é virtuosa. É uma.. nobi... +lis... sima donzella!</p> + +<p>Vamos lá... meu caro... </p> + +<p>Ai! meu Deus!</p> + +<p>Não me abalançarei a descrever o epilogo da tão desagradavel scena, que se +seguiu á retirada do principe. Os visitantes foram-se safando n'um berreiro de +estrugir a tudo. Maria Alexandrovna ficou sósinha, em meio d'aquelle seu +desastre. Já é infelicidade! Poderío, riqueza, gloria, foi-se tudo no espaço de +um dia! Percebia e mais que percebia que nunca mais levantaria cabeça! A +tirannia<span class="pn">{178}</span> por ella exercida durante tão longo prazo +sobre Mordassov estava aniquilada de todo. Que lhe restava? Não era filosofa, +Maria Alexandrovna. Passou uma noite pavorosa. Desacreditada a Zina, um nunca +acabar de linguarice! <em>Hórror, hórror, hórror!</em> Na minha qualidade de +historiografo sincero, cumpre-me mencionar que Aphanassi Matveich esteve a +tiritar toda a santa noite no cubiculo, ás escuras, onde se fôra alapardar para +conservação dos seus olhos.</p> + +<p>O dia immediato não amanheceu fagueiro: isto de desgraças vem sempre aos +pares.<span class="pn">{179}</span></p> + +<p> </p> + + +<h2>XV</h2> + +<p>Desde as oito horas da manhã que corria pela cidade um boato inacreditavel. +Repetia-o cada qual com maligno contentamento, conforme é da praxe sempre que +se trata d'algum escandalo do qual foi victima qualquer pessoa d'amizade.</p> + +<p>—Perder áquelle ponto a vergonha!</p> + +<p>—Rebaixar-se daquella maneira!</p> + +<p>—Arrostar assim com todas as conveniencias!</p> + +<p>—Que costumes!</p> + +<p>Eis o que succedera:</p> + +<p>Logo de manhanzinha, ahi pelas sete horas, salvo erro, entrava em casa de +Maria Alexandrovna uma pobre vélhita, afflictissima, a supplicar da aia que +fosse quanto antes accordar a <em>barichina</em><a name="tex2html15" +href="#foot323"><sup>[15]</sup></a>, mas esta, tão sómente, ás escondidas de +Maria Alexandrovna. A Zina, assustada, accudira desde logo. Cae-lhe de joelhos +aos pés a velhota, aos beijos a elles, a inundar-lh'os de lagrimas, a +exorar-lhe que venha ver o Vassia.</p> + +<p>—Passou tão mal a noite! Suppõe-se até que não chega ao outro dia! +Accrescenta a velha que foi o proprio Vassia quem manifestou desejos de tornar +a ver a sua amada,<span class="pn">{180}</span> antes de morrer; e supplica-lhe +em nome do passado, e que, se ella se negar, morrerá no auge do desespero!</p> + +<p>A Zina despede por ali fora, sem dizer nada á mãe. Vae de corrida até o +extremo de um dos arrabaldes mais pobres de Mordassov. Ali, n'uma baiuca muito +velha e escalavrada, á qual suprem as janelas umas como que ráchas abertas nas +paredes, n'um cochichólo muito baixo de tecto e fedorento, meio atravancado com +uma fornalha, jazia, em cima de uma camada de taboas, cobertas com uma enxerga, +delgada que nem uma folha de papel, um môço, escondido debaixo de um capóte +todo elle farrápos. Tinha livido e refegado o semblante, os olhos, a luzir com +o fôgo da fébre, as mãos, seccas e transparentes. Quasi que nem respirar podia; +era o estertor. Comquanto o houvesse desfigurado a doença, conservava retraços +de formosura. Triste espectaculo, na verdade, aquelle rosto de tisico, do +moribundo. A edosa mãe que, ainda hontem, acreditava na cura percebe finalmente +que vae em breve ficar sósinha n'este mundo. Com os braços cruzados, olhos +sêcos, para ali está, sem comprehender, sem poder desviar a vista de cima do +enfermo, aniquilada, perseguida pela visão da cova, na terra fria do velho +cemiterio atascado de neve.</p> + +<p>Não olha para ella o Vassia, irradia-lhe no semblante a ventura: até que por +fim vê aquella a quem, vae n'um anno, durante aquellas suas eternas noites de +doente apenas viu em sonhos. Percebe que ella lhe perdoou, visto que veiu, +visto que lhe aperta as mãos, visto que o contempla com aquelles seus lindos +olhos, a chorar e a rir ao mesmo tempo. Resuscita de todo na alma do enfermo o +passado:<span class="pn">{181}</span> desperta-lhe dentro d'alma a vida como se +quiséra tornar-lhe sensivel a que ponto é triste o ter que a deixar.</p> + +<p>—Zina! Zinotchka! Não chores... não me estejas a lembrar que vou +morrer... deixa-me contemplar-te, pensar que me perdoáste. Vou morrer sem +pensar que morro, até, beijando-te as mãos... Estás tão magrinha, Zinotchka! +Anjo querido, a bondade com que tu estás a olhar para mim! Lembras-te do gosto +com que te rias, d'antes? Ai! Zina! Eu já nem sequer te peço perdão!... Nem +quero lembrar-me do que aconteceu... eu é que m'o não perdôo, a mim proprio... +E quanta noite sem poder dormir, Zina! Quanta noite não levei eu a pensar, a +recordar-me, a estalar, quasi, com saudades!... É melhor que eu morra! Sou +incapaz de viver, Zinotchka!</p> + +<p>E a Zina, lavada em lagrimas, muda, a apertar nas suas as mãos do seu amado, +como se quiséra arrancál-o á morte.</p> + +<p>—Então, não chores! insistia o enfermo. Eu morrerei hoje, porventura? +Se ha tanto tempo que está morta a felicidade! És mais intelligente e vales +mais do que eu... bem sabes que valho menos do que tu, por que será que me tens +amor? Bem sabes que te não mereço! Oh! quanto me não tem feito padecer +semelhante pensamento! Ah! querido amor, foi um sonho a minha vida: não vivi, +sonhei! E eu a desprezar a multidão: e que razões tinha eu para ser tão +soberbo? A purêza do meu coração? A nobreza dos meus sentimentos? Mas se tudo +isso tinha apenas a consistencia dos meus sonhos, nada mais, Zina!</p> + +<p>—Basta! basta! Matas-me!</p> + +<p>—Não me interrompas, Zina!... Perdoáste-me, bem sei:<span +class="pn">{182}</span> e ha já muito tempo, talvez, mas avaliáste-me e +comprehendeste o que eu era, e é isso que me atormenta. Sou indigno do teu +amor, Zina! Fôste sempre leal e generosa; fôste ter com tua mãe e +declaraste-lhe o teu firme desejo de casar commigo, ou com mais ninguem: e +cumpriste a palavra dada, pois que para ti, palavra e acção são uma e a mesma +coisa! Ao passo que eu,... eu! Não sabes, eu até hoje não tinha comprehendido, +sequer, a extensão toda do sacrificio que fazias em ser minha mulher. E +lembrar-me eu de que tu, commigo, te arriscavas a morrer de fome! Mas se a mim +parecia-me que nada ha n'este mundo que se compare á honra de ser esposa de um +grande poeta... sem nome,... é certo! Não quiz intender o motivo que alegavas +para retardar o nosso casamento. Tu a padeceres por minha causa, eu a +martirizar-te, a exprobar-te, a desprezar-te... até que por fim te ameacei com +aquella carta... Eu, n'esse instante, nem sequer cheguei a ser um miseravel, +mas sim um ente abjecto, e nada mais! Ah! nem quero pensar até onde iria o teu +desprezo! Não, não! É bom que eu morra! Obrigado por não haveres querido +pertencer-me! Iriam correndo os annos, e quem sabe se eu afinal não viria a ver +em ti um tropêço ao meu porvir. Sim, antes assim! E agora, o amargor das minhas +lagrimas, sequer ao menos, purificou este meu coração. Ah! Zina! Concede-me um +quinhão no teu amor, tão sómente, no teu amor de algum dia!—N'esta hora +derradeira, sequer ao menos! Sou indigno do teu amor, bem o sei! mas... mas... +mas... ai meu anjo!</p> + +<p>E a Zina, desfeita em pranto, a escutar. Tentava interrompêl-o, elle porém, +ia proseguindo... supplice, a gesticular,<span class="pn">{183}</span> e +aquella sua voz debil... abafada e sibilante,... fazia mal á Zina... </p> + +<p>—Não me tiveras tu encontrado, e não me terias amado, e não morrias... +disse a Zina. Ah! Oxalá nunca nos tivessemos encontrado!</p> + +<p>—Não, meu amor, não! Não te estejas arguindo da minha morte! A culpa +foi minha, e só minha! O amor proprio... o romantismo!... Nunca te contaram, +Zina, a minha estupida historia? Existiu aqui, ha três annos, um prisioneiro, +um miseravel, um ladrão. Mas no dia em que chegou o castigo, faltou-lhe o +animo. Sabendo que não levam a justiçar um enfermo, alcançou uma garrafa de +vinho, deitou-lhe de infusão tabaco e enguliu-o. Tomaram-n'o uns vomitos que +duraram tanto que principiou a escarrar sangue e deu cabo dos pulmões. +Levaram-n'o para o hospital e, d'ali a dias, morreu tisico. Pois bem! +Occorreu-me á memoria esse ladrão, no dia em que se deu aquelle caso da +carta... E resolvi acabar commigo da mesma maneira. E por que foi que eu, de +proposito, escolhi a tisica? Por que foi que me não enforquei ou me não deitei +a afogar? Seria porque me assustasse uma morte tão abrupta? Talvez; mas a mim +quer-me parecer que concorreriam, e não pouco, para isso, as minhas ideias +romanescas. Não me largava este pensamento: Que morte tão bella não será a +minha, estirado como agora o estou, n'uma cama, com o estertor da tisica!... E +tu, ao pé de mim, a lamentar-me, e a padecer com a ideia de que eras talvez a +causa da minha doença! E eu a ver-te entrar por ali dentro, arrependida, +ajoelhar á beira do meu leito... E eu a perdoar-te e a expirar nos teus +braços!... Toleima, Zina, pois não era?<span class="pn">{184}</span></p> + +<p>—Esquece-te de tudo isso, nem me tornes a falar das tuas culpas, que +tu estás a exaggerar; lembrêmo-nos dos momentos ditosos, dos dias de +ventura.</p> + +<p>—Não m'o perdôo, meu amor, e é por isso que falo a semelhante +respeito. Ha já dezoito mêses que te não via. Queria alliviar este meu coração! +Durante esse tempo todo, eu para aqui, sósinho, e não houve um só instante, em +que eu não pensasse em ti, meu amor. O que não desejaria eu fazer para +reconquistar a tua estima? Até ao derradeiro instante não acreditei que morria; +não me entreguei á cama desde logo, andei a pé, por muito tempo, com o peito +escangalhado. E que sonhos tão ridiculos! Ás vezes suppunha ser um grande poeta +e em vesperas de publicar um poema como ainda não tinha apparecido outro egual +n'este mundo, que ninguem tivera genio para o escrever. E eu a pensar que me +iriam n'elle todos os meus sentimentos, a minha alma, toda inteira, e que, +d'este modo, me acharia sempre a teu lado, e que qualquer que fosse o sitio em +que te encontrasses, os meus versos ir-te-hiam recordar a minha existencia, e o +meu sonho unico era acreditar que tu em conclusão poderias dizer: "Não, elle a +final não é tão mau como eu o suppunha". Toleima, Zina, toleima, pois não é?</p> + +<p>—Não, não, Vassia, exclamava a Zina.</p> + +<p>E debruçada sobre o peito d'elle, pôz-se-lhe aos beijos ás mãos.</p> + +<p>—E o ciume! Como me atormentava o ciume durante esse tempo, todo! Eu, +se tivesse ouvido falar no teu casamento, caía morto, redondamente!... E eu a +vigiar-te, a espreitar-te... Era ella quem lá ia (apontando para a mãe).<span +class="pn">{185}</span> Tu nunca tiveste amor ao Mozgliakov, pois não é +verdade? Ai! meu anjo! Lembrar-te-has tu de mim quando eu já não fôr d'este +mundo? Lembras, sim, que eu bem sei! Mas os annos hão de ir passando, +arrefecer-te-ha esse teu coração, o inverno ir-te-ha tomando posse da alma, e +olvidar-me-has, Zina!... </p> + +<p>—Não, não, nunca! E nunca me hei-de casar, tem a certeza!... Foste o +meu primeiro amor e serás o derradeiro.</p> + +<p>—Tudo morre, Zinotchka, tudo, até a propria recordação, até os mais +nobres sentimentos. Dão logar a um certo raciocinio: frio, que acalma as +saudades. Insurgirmo-nos, para quê? Trata de aproveitar a vida, ama, sê feliz. +Ama um vivo! Para que serve o teu amor a um morto?—E comtudo, não me +esquéças de todo! Tivémos horas atribuladas, é certo, mas quantos dias de tanta +doçura? Ah!—Foram-se de uma vez para sempre!... Escuta,... amei sempre o +pôr do sol... Oh! não!... morrer, por quê?... Ah! viver, viver! Lembra-te da +primavera! Do sol! Tão lindo! Das flores! Vivemos por uns tempos n'uma festa! E +agora, olha! Olha!</p> + +<p>E o pobre enfermo a apontar com a mão diáfana o vidro empanado pela giada. +Depois agarrou-se ás mãos da Zina e entrou a chorar com amargor. E os soluços a +esfacelarem-lhe o já dilacerado peito.</p> + +<p>E assim se passou todo o dia: A Zina a dizer-lhe que jamais o olvidaria, que +a ninguem n'este mundo viria a dedicar amor egual áquelle que a elle lhe +dedicára. E elle a acreditál-a, a sorrir-lhe, a beijar-lhe as mãos.</p> + +<p>N'este meio tempo, Maria Alexandrovna, inquiéta, havia já mandado por mais +de dez vezes indagar o que seria<span class="pn">{186}</span> feito da Zina, a +supplicar-lhe que voltasse para casa, que não acabasse de se desacreditar na +publica opinião. Até que por fim, ao lusco fusco, resolveu-se, esparvoada de +receio, a ir, em pessôa, em procura da filha. Exorou-lhe de joelhos; a Zina a +ouvil-a sem a intender. Maria Alexandrovna saíu desesperada. A Zina estava +decidida a passar a noite junto do moribundo. Não lhe largou da cabeceira. O +estado do infermo ia peorando a olhos vistos: quando rompeu a madrugada, quasi +que nem conservava sopro de vida. E não obstante, viveu ainda um dia inteiro. +Porém, no momento em que o sol no occaso abrasáva as vidraças, exalou-se a alma +com os ultimos raios.</p> + +<p>Deu-se então horrivel scena. A edosa mãe abraçou-se com o corpo do filho, e, +voltada para a Zina:</p> + +<p>—Fôste tu que o deitaste a perder, maldita! clamou.</p> + +<p>A Zina, porém, não ouvia coisa nenhuma; estava para ali, qual estatua +insensivel, como se, a ella, a alma a tivera deixado tambem. Até que por fim, +abaixou-se, fez sobre o defunto o signal da cruz, beijou-o na testa, e saíu do +quarto.</p> + +<p>Tão tremendas sensações, e aquellas duas noites de véla, quasi que a haviam +enlouquecido de todo... e depois, sentia-se prestes a entrar em um novo viver, +triste, ameaçador.</p> + +<p>Não teria ainda andado dois passos, eis lhe surge na frente o Mozgliakov +como se com elle se abrira o chão.</p> + +<p>—Zinaida Aphanassievna, disse com timidez, rodando a vista para todos +os lados, Zinaida Aphanassievna, sou um jumento; isto é, não é isto que... Se +me dá licença, não serei um jumento, visto que procedi briozamente,<span +class="pn">{187}</span> apezar de todos os pezares... Mas lá que fui um +jumento, fui... e estou mais que arrependido... Está-me a parecer que estou a +meter os pés pelas mãos, Zinaida Aphanassievna. Perdoe-me, atendendo a este +concurso de circunstancias... </p> + +<p>E a Zinaida, inconsciente, a olhar para elle, e a seguir seu caminho, sem +tugir. Como no passeio não houvesse logar para dois, Mozgliakov desceu para a +calçada.</p> + +<p>—Zinaida Aphanassievna—proseguiu o mancebo, se m'o consente, +estou pronto a renovar o meu pedido, pronto a esquecer tudo, a +perdoar-lhe—com uma condição:—Ficará tudo sendo segredo por +emquanto. Ausenta-se d'esta terra o mais breve possivel, eu sigo atras, ás +escondidas, casamos para ahi seja onde fôr, sem que ninguem dê por isso, e +vamos para Petersburgo. E então! Que me diz? Consente, Zinaida Aphanassievna? +Responda, depressa, por quem é! Não posso esperar; poderiamos ser vistos.</p> + +<p>A Zina não respondeu: olhou para o Mozgliakov, tão somente, mas fêl-o, +porém, de modo tal, que elle comprehendeu desde logo, cumprimentou-a e sumiu-se +por detrás da primeira esquina.</p> + +<p>"Ora esta! matutava; ella, ainda não haverá dois dias, a lançar em rosto a +si propria as culpas todas, e agora!..."</p> + +<p>N'este comenos, em Mordassov, precipitavam-se os acontecimentos.</p> + +<p>O principe, acarretado pelo Mozgliakov para o hotel, n'aquella mesma noite +caíu perigosamente enfermo. Os Mordassovenses só vieram a ser informados do +caso ao romper do dia. Kalist Stanislavitch não largava a cabeceira do doente. +Ao anoitecer, effectuou-se uma conferencia<span class="pn">{188}</span> dos +medicos todos de Mordassov. Os convites para comparencia eram redigidos em +latim. E não obstante, a despeito do latim, o principe achava-se em estado de +delirio, e tudo era pedir ao Kalist Stanislavitch que lhe cantasse uma certa +romança, a fallar a respeito de chinó e bigode postiço e, de vez em vez, muito +assustado, soltava uns berros. Concluiram os medicos que era uma inflammação do +estomago, resultante do excesso de hospitalidade mordassovense, e que d'ali +tinha passado á cabeça. Alegaram, tambem, não sei com que fundamentos, um tal +qual abalo nervoso. E d'ahi, não se esqueceram de notar que o principe havia +muito que manifestava predisposições para a morte e que, por conseguinte... +está claro!—e que por conseguinte, morria. Esta ultima hypothese pareceu +ter certo fundamento: o pobre do ginjinha expirou ao terceiro dia, ahi pelo +anoitecer. Obito a tal ponto inesperado consternou Mordassov. Acudiram em +chusmas ao hotel, discutiam, abanavam a cabeça, e concluiram acusando +directamente "os assassinos do principe, coitado!" (aludindo assim a Maria +Alexandrovna e á filha).</p> + +<p>Concordava toda a gente em que tão escandalosa historia não deixaria de dar +brado, e podia, até, "ir muito longe".</p> + +<p>Mozgliakov nem sabia já que fazer á sua vida. A situação, effectivamente, +antolhava-se perigosa. Não fôra elle quem accarretara com o principe para casa +de Maria Alexandrovna? Não fôra elle tambem que carregara com elle para o +hotel? Não sabia o que havia de fazer com o cadaver, onde o enterrar, a quem +informar. E de mais a mais, como passava por ser sobrinho do principe, o seu +medo todo<span class="pn">{189}</span> era não se lembrassem de o accusar de +ter morto o veneravel ancião.</p> + +<p>Eis que de repente mudam as scenas. Uma bella manhã, chega á cidade um +viajante, desconhecido. E Mordassov, em peso, pespegado á janella, a commentar +o adventicio.</p> + +<p>—O tal viajante era nem mais nem menos que o celebre principe +Chtchepilov, parente do defunto, sujeito de seus trinta e cinco annos, usando +dragonas de coronel e as agulhetas de ajudante de ordens. Aquella gran-cruz +compenetrava de um respeitoso pavor a todos os <em>tchinovnicks</em><a +name="tex2html16" href="#foot335"><sup>[16]</sup></a> do logar. O prefeito de +policia por pouco não indoidece.</p> + +<p>Em breve se veiu a saber que o principe vinha de S. Petersburgo e já havia +passado por <span class="typo" title="no original: Duchkanovo">Dukhanovo</span>. Não encontrando ali ninguem, viera seguindo as piugadas +do principe até Mordassov, onde o surprehendera a fatal noticia. Tomou desde +logo a tudo sobre si, e Mozgliakov retirou-se muito encolhido em presença do +lidimo sobrinho.</p> + +<p>O illustre defunto foi trasladado para o mosteiro. Ao outro dia, a cidade em +peso congregou-se a ouvir a missa funeraria. Entre as senhoras, corria que +Maria Alexandrovna compareceria em pessoa na egreja, para pedir perdão alto e +bom som perante o caixão, em conformidade com as exigencias da lei. Escusado +será dizer que tal Maria Alexandrovna não appareceu.</p> + +<p>Fôra para o campo e levára a Zina, parecendo-lhe insustentavel a situação na +cidade. Lá da sua aldeia, ia recolhendo com inquietação as atoardas e mandava +tomar informações.<span class="pn">{190}</span></p> + +<p>Do mosteiro a <span class="typo" title="no original: Duchkanovo">Dukhanovo</span>, o caminho passava a uma versta das janellas de +Maria Alexandrovna. Teve pois occasião de ver desfilar o prestito funebre. +Atrás do féretro seguia uma longa cauda de trens. E por largo espaço, n'aquelle +campo branco de neve, foi perfilando aquelle seu vulto negro, lento e +majestoso, o carro melancólico.</p> + +<p>D'ali a oito dias, Maria Alexandrovna, com a filha e Aphanassi Matveich, +transferiu-se para Moscou. A aldeia e a casa foram postas em leilão.</p> + +<p>E assim perdeu para sempre Mordassov uma senhora, o <em>mais comme il +faut</em> possivel!</p> + +<p>O caso não escapou a commentarios; nem faltou quem affirmasse que o +Aphanassi Matveich se achava tambem á venda juntamente com a aldeia... </p> + +<p>Rodou um anno, outro ainda, e ninguem tornou a falar em Maria Alexandrovna. +</p> + +<p>E comtudo, correu que havia adquirido outra aldeia em outro governo, e que +outra capital de districto não tardaria em tremer entre as suas potentissimas +mãos. A Zina estaria ainda á espera de noivo.</p> + +<p>O Aphanassi Matveich... </p> + +<p>Mas não nos tornemos éco de boatos sem fundamento. É falso tudo isso.</p> + +<p> </p> + + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p> </p> + + +<p>Já lá vão três annos desde que eu escrevi as linhas que acabaes de ler. Quem +me diria que ainda havia de vir a folhear o manuscripto para lhe accrescentar +ainda mais uma lauda?<span class="pn">{191}</span></p> + +<p>Mas vamos ao facto:</p> + +<p>Principiarei por Pavel Alexandrovitch Mozgliakov.</p> + +<p>Ao ausentar-se de Mordassov, foi direitinho a Petersburgo, onde alcançou o +logar que lhe andava prometido havia muito tempo. Não tardou em se lhe +franquearem as portas da sociedade, infronhou-se n'umas intrigalhas, guindou-se +ás alturas de espirito do século, tornou a apaixonar-se, renovou o seu pedido, +voltou a apanhar um não pelas ventas, enguliu-o, e não podendo digeril-o, +sollicitou o ser incorporado a uma expedição enviada a um dos cantos mais +remotos d'este nosso paiz sem limites.</p> + +<p>O corpo expedicionario transpôz sem novidade de maior florestas e desertos, +alcançando a capital da longinqua região.</p> + +<p>Foi acolhido pelo general-governador.</p> + +<p>Era um homem magro e de semblante severo, um velho militar, ferido em +diversas campanhas, condecorado com dois cráchás e com uma cruz branca. +Convidou a todos os <em>tchinovniks</em> para um baile effectuado aquella mesma +noite.</p> + +<p>Pavel Alexandrovitch estava encantado. Envergara a sua casaca +petersburguense, com a qual contava para produzir immenso effeito, e deu +entrada nas salas nobres com modo desassombrado. Não tardou porém a perder o +aprumo em presença de tanta dragona de cachos e de tanta farda enfeitada de +commendas. Cumpria-lhe ir fazer a sua venia á esposa do governador, nóva, +diziam, e formosissima. Aproxima-se, muito senhor de si,—mas—de +subito,—escancara a bôca, e fica pregado ao chão, de assombrado. Com um +sumptuoso vestido de baile, surge-lhe na frente a Zina, feraz, soberba, linda, +e resplandecente<span class="pn">{192}</span> de joias, toda ella. Nem conheceu +o Pavel Alexandrovitch, os seus olhos nem se detiveram sequer no semblante de +mancebo. Mozgliakov recuou e foi perder-se entre a turba-multa, e soube da bôca +de um juvenil <em>tchinovnick</em> coisas interessantissimas.</p> + +<p>Soube que o governador era casado ia já em dois annos, desde uma viagem que +fizéra a Moscou. Desposara uma joven muito rica, de optima familia. A generala +era muito soberba e só dansava com generaes, (havia nove no baile). A generala +tem em sua companhia a mãe, senhora intelligentissima da mais alta +aristocracia, mas que se submete á vontade da filha. E d'ahi, o general +extasia-se tambem deante d'esta. Mozgliakov referia-se ao Aphanassi Matveich, +mas n'aquella região remota ninguem dava noticia delle.</p> + +<p>Um tanto restabelecido d'aquelle seu sobresalto, Mozgliakov deu uma volta +pelas salas e lobrigou Maria Alexandrovna, vestida com singeleza e, muito +animada, a falar com uma personagem graúda. Faziam-lhe cerco varias senhoras +que lhe sollicitavam a boa sombra. Maria Alexandrovna era amavel com toda a +gente.</p> + +<p>Mozgliakov arriscou-se e foi-se-lhe apresentar. Maria Alexandrovna teve +assim a modos de um estremeção, mas sopitou-se, acto-continuo. Dignou-se +reconhecêl-o e pediu-lhe novas dos seus amigos de Petersburgo. A respeito de +Mordassov, nem palavra e foi como se tal coisa não existisse, em conclusão, +proferiu o nome de um qualquer principe estranho ao Mozgliakov, voltou-lhe as +costas sem affectação, dirigindo-se a uma personagem graúda de cabello grisalho +e aromatizado, e d'ali a instantes, dir-se-hia haver-se esquecido de todo de +Pavel Alexandrovitch, que ficou<span class="pn">{193}</span> para ali com cara +de tolo, diante della. Mozgliakov, engatilhando um sorriso sarcastico, e de +chapeu na mão, regressou para a sala nobre. Não sei dizer o motivo, mas +considerava-se offendido e não se prestou a dansar. Nunca mais lhe desampararam +o semblante quer uns ares tristes e de distracção quer um méfistofélico +sorriso! Recovado em pinturesca atitude a uma columna, (parecia que de +proposito, tinha columnas o salão), e toda a santa noite, horas a seguir, para +ali se deixou estar no mesmo posto, a seguir com os olhos a Zina. Tempo +perdido, infelizmente! Todas aquellas artimanhas, aquelles tregeitos todos, +aquelles ares romanticos e de nimia decepção... etc... etc... nada lhe valeu... +A Zina nem sequer deu fé da sua presença. Até que por fim, estafado, +exasperado, com os pés dormentes em resultado da immobilidade, faminto, pois +não tinha ceado a fim de melhor sustentar o seu papel de amante dolorido, +recolheu para sua casa, derreado, abatido. E esteve a pé horas esquecidas, a +matutar no passado... Logo no dia immediato, pediu transferencia e alcançou uma +missão que o reconduziu a Petersburgo. Voltou a serenidade a entrar-lhe na alma +assim que voltou costas á cidade. Lá ao longe, o espaço, o infinito, o deserto, +a denegrida neve das florestas nos confins do horizonte. Ao som das patas dos +cavallos a chofrarem, e a acompanharem o retinir e o telintar das campainhas. +Pavel Alexandrovitch esteve pensativo, por instantes, mas depois, adormeceu +muito socegado da sua vida.</p> + +<p>Acordou na terceira muda, fresco, bem disposto, e a pensar noutra coisa.</p> + +<p> </p> + + +<p style="text-align:center;">FIM</p> + +<p><span class="pn">{194}</span></p> +</div> + +<p> </p> + + +<div align="center"> +</div> + +<div class="rodape"> +<p><a name="foot57" href="#tex2html1"><sup>[1]</sup></a> Mestre escola</p> + +<p><a name="foot63" href="#tex2html2"><sup>[2]</sup></a> Proprietario +territorial.</p> + +<p><a name="foot76" href="#tex2html3"><sup>[3]</sup></a> Poeta russo.</p> + +<p><a name="foot129" href="#tex2html4"><sup>[4]</sup></a> Sacristão.</p> + +<p><a name="foot147" href="#tex2html5"><sup>[5]</sup></a> Diminuitivo offensivo +de Natalia.</p> + +<p><a name="foot148" href="#tex2html6"><sup>[6]</sup></a> Diminuitivo offensivo +de Sonia.</p> + +<p><a name="foot150" href="#tex2html7"><sup>[7]</sup></a> Diminuitivo offensivo +de Maria.</p> + +<p><a name="foot151" href="#tex2html8"><sup>[8]</sup></a> Dansa nacional russa. +</p> + +<p><a name="foot158" href="#tex2html9"><sup>[9]</sup></a> Mulher de mujik.</p> + +<p><a name="foot188" href="#tex2html10"><sup>[10]</sup></a> A filha do principe +Kotchbey.</p> + +<p><a name="foot203" href="#tex2html11"><sup>[11]</sup></a> Até mais ver. (em +allemão)</p> + +<p><a name="foot413" href="#tex2html12"><sup>[12]</sup></a> Modo de dizer +russo—por: <em>a minha vida acabada</em>.</p> + +<p><a name="foot237" href="#tex2html13"><sup>[13]</sup></a> Pelissa.</p> + +<p><a name="foot252" href="#tex2html14"><sup>[14]</sup></a> (Camponêsa.)</p> + +<p><a name="foot323" href="#tex2html15"><sup>[15]</sup></a> A menina.</p> + +<p><a name="foot335" href="#tex2html16"><sup>[16]</sup></a> Funccionarios.</p> +</div> + +<p> </p> + + +<p> </p> + + +<p> </p> + + +<div style="margin: 10%;"> +<h2 style="text-align:center;">EXCERPTO DO NOSSO CATALOGO</h2> + +<h3 style="text-align:center;">Bibliotheca Moderna de Romances Nacionaes e +Estrangeiros</h3> + +<p style="text-align:center;">200 réis fortes o volume de 200 a 250 paginas</p> + +<p style="text-align:center;">Volumes publicados:</p> + +<p><strong>Os Ex-homens</strong>—<em>Maximo Gorki</em>—1 volume.</p> + +<p><strong>Angustia</strong>—<em>Maximo Gorki</em>—1 volume.</p> + +<p><strong>Na Prisão</strong>—<em>Maximo Gorki</em>—1 volume.</p> + +<p><strong>Varenca Olessova</strong>—<em>Maximo Gorki</em>—1 +volume.</p> + +<p><strong>O que eu penso da guerra</strong>—<em>Conde Leão +Tolstoi</em>—1 volume.</p> + +<p><strong>O Calvario</strong>—<em>Octave Mirbeau</em>—1 volume.</p> + +<p><strong>O Filho de Napoleão</strong>—<em>Carolus</em>—1 volume.</p> + +<p><strong>O Cerco de Paris</strong>—<em>Alphonse Daudet</em>—1 +volume.</p> + +<p><strong>O Coronel Chabert</strong>—<em>Honoré de Balzac</em>—1 +volume.</p> + +<p><strong>Historia d'um Crime</strong>—<em>Maximo Gorki</em>—1 +volume.</p> + +<p><strong>Os Estranguladores de Bengala</strong>—<em>L. +Boussenard</em>—2 volumes.</p> + +<p><strong>A Cortezan de Sagunto</strong>—<em>V. Blasco +Ibañez</em>—2 volumes.</p> + +<p><strong>A Feira das Vaidades</strong>—<em>W. Thackeray</em>—3 +volumes.</p> + +<p><strong>Um club da má-lingua</strong>—<em>Theodoro +Dostoievsky</em>—1 vol. </p> + +<hr width="15%"> + +<h3 style="text-align:center;">Modern Style Bibliotheca</h3> + +<p><strong>Rua da Paz (Mercados d'Amor)</strong>—<em>V. du +Saussay</em>—1 volume illustrado com 22 esplendidas gravuras de Ch. +Atamian, <strong>1$000 réis fortes</strong>.</p> + +<p><strong>O Querido das Mulheres (Romance vehemente)</strong>—<em>Jerôme +Monti</em>—1 volume illustrado com 26 bellas gravuras de Ch. Atamian, +<strong>1$000 réis fortes</strong>.</p> + +<hr width="15%"> + +<p><strong>A Russia Vermelha</strong>—<em>John Foster Fraser</em>—1 +volume illustrado com 56 gravuras, <strong>1$000 réis fortes</strong>.</p> + +<p><strong>A Cura Natural</strong>—<em>Mich Larsen</em>—1 volume de +180 paginas, <strong>400 réis fortes</strong>.</p> + +<p><strong>Manual da Sciencia da expressão do rosto</strong>—<em>L. +Kuhne</em>—<strong>700 réis fortes</strong>.</p> + +<p><strong>Cathecismo d'Agricultura</strong>—<em>A. de Sousa +Figueiredo</em>—1 volume <strong>200 réis fortes</strong>.</p> + +<p><strong>Duas mil leguas no Hindustão</strong>—<em>Hypacio de +Brion</em>—1 vol. formato album, illustrado com 74 gravuras, +<strong>2$000 réis fortes</strong>.</p> + +<p><strong>Jesus Christo</strong>—<em>Luiz Veuillot</em>—1 volume +illustrado com 180 gravuras, ricamente encadernado, dourado por folhas, +<strong>13$500 réis fortes</strong>.</p> + +<p><strong>O Melro Branco</strong>—<em>Julio Barrili</em>—1 volume +in-8.º grande, com esplendidas illustrações de <em>Bonamore</em>, <strong>1$800 +réis fortes</strong>.</p> + +<p><strong>Orlando Furioso</strong>—<em>Ariosto</em>—3 volumes +illustrados com 81 magnificas illustrações, <strong>12$000 réis +fortes</strong>.</p> + +<p><strong>Terra Illustrada</strong>—<em>Onésime Reclus</em>—1 +volume de 1.252 paginas com 600 finissimas gravuras, <strong>11$000 réis +fortes</strong>.</p> +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Um club da Má-Lingua, by +Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UM CLUB DA MÁ-LINGUA *** + +***** This file should be named 31657-h.htm or 31657-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/1/6/5/31657/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/31657-h/images/capa.jpg b/31657-h/images/capa.jpg Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..3de01eb --- /dev/null +++ b/31657-h/images/capa.jpg diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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