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+Project Gutenberg's Um club da Má-Lingua, by Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Um club da Má-Lingua
+
+Author: Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky
+
+Translator: Manuel de Macedo
+
+Release Date: March 15, 2010 [EBook #31657]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UM CLUB DA MÁ-LINGUA ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net
+
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+
+ Notas de transcrição:
+
+ O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em
+ 1908.
+
+ Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos
+ alguns pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a
+ leitura do texto, e que por isso não considerámos necessário
+ assinalá-los. Os nomes das personagens apareciam impressos de
+ múltiplas formas, e foi feito um esforço de uniformização da grafia
+ dos mesmos, tomando como referencia uma tradução em inglês da mesma
+ obra. Na versão htm deste texto estão assinaladas as correcções.
+
+
+UM CLUB DA MÁ-LINGUA
+
+
+
+
+
+FÉDOR (THEODORO) DOSTOIEVSKY
+
+Um club da má-lingua
+
+TRADUCÇÃO DE MANUEL DE MACEDO
+
+
+
+1908
+
+"A EDITORA"
+
+_Largo do Conde Barão, 50_
+
+LISBOA
+
+
+
+Typographia "A Editora"--Largo do Conde Barão, 50--Lisboa
+
+
+
+
+O SONHO DO PRINCIPE GAVRILA
+
+
+
+
+I
+
+
+Maria Alexandrovna Moskalev é com toda a certeza a dama de mais subida
+importancia em Mordassov, nem haverá quem o conteste. Ao contemplál-a,
+dirieis que não precisa seja de quem fôr, e que, antes pelo contrario,
+toda a gente lhe deve obrigações. Goza de poucas sympathias, na verdade,
+é cordialmente detestada, até: mas temida tambem universalmente, e é
+isso que ella quer. E não representará isto um rasgo de finura politica?
+Por que será que, por exemplo, apezar de nutrir paixão por mexericos e
+de não poder dormir descansada no dia em que não soube nada de novo, por
+que será, sim, que pela apparencia de Maria Alexandrovna, tal é a sua
+majestade, não occorre á mente, seja de quem fôr, o facto de ella ser a
+primeira coscovilheira d'este mundo, ou quando menos, de Mordassov?
+Dir-se-ia antes que assim que apparece deveriam cessar, acto-continuo,
+de todo os mexericos, as comadres tremerem como garotetes em presença do
+prefeito, e as conversas guindarem-se desde logo aos assuntos mais
+transcendentes. E todavia, ella, a respeito de uns certos Mordassovenses
+está em dia com umas chronicas tão escandalosas que, se as dissesse a
+proposito e provando-lhes--como ella o sabe fazer--a authenticidade,
+Mordassov em pêso tremeria tal qual tremeu Lisboa em tempos. Mas se ella
+quanto a segredos é o proprio tumulo; é necessario dar-se um concurso de
+circumstancias extraordinarias para que ella consinta em falar n'umas
+certas coisas,--e isto ainda entre amigos da maxima intimidade. Poderá
+arriscar uma allusão, dar a entender que "está em dia"; mas pella-se por
+manter a qualquer individuo--homem ou mulher--na sugestão de um temor
+perpetuo, em vez de o esmagar de um golpe. Isto é que é intelligencia,
+isto é que é tactica! Maria Alexandrovna sempre se distinguiu mercê do
+seu irreprehensivel _comme il faut_. É citada como modêlo. Lá quanto ao
+_comme il faut_ não tem rival em toda Mordassov.
+
+Poderá, com uma palavrinha, matar, esfacelar, anniquilar uma pessoa que
+lhe haja cahido no desagrado,--mas sem lhe tocar, sem suspeitar,
+dir-se-hia, a importancia da dita palavrinha. Semelhante traço de
+caracter assás trescala a alta sociedade.
+
+Tem optimas relações. A Mordassov ainda não veiu pessoa que não ficasse
+penhorada com as recepções de Maria Alexandrovna. O maximo numero até de
+taes visitantes accidentaes ficaram-se carteando com ella. Houve até um
+poeta que lhe dedicou versos: Maria Alexandrovna exhibe-os com
+desvanecimento. Um litterato de arribação offereceu-lhe uma novélla da
+qual fizera leitura em casa da nobre senhora, durante um sarau: produziu
+optimo effeito. Um sabio allemão, vindo expressamente de Carlsruhe no
+intuito de estudar uma especie singular de vermezinhos chavelhudos que
+se encontram no nosso governo (o dito sabio escreveu ácerca do alludido
+vermezinho quatro volumes _in-quarto_) tão encantado ficou com a
+amabilidade de Maria Alexandrovna, que ainda hoje, lá de Carlsruhe, lhe
+escreve cartas respeitosas e moraes. Chegaram até a estabelecer
+parallelos entre Napoleão e Maria Alexandrovna. Foi brincadeira, facecia
+de ciumentos, e comtudo, apontando a estranheza de semelhante
+comparação, atrever-me-hei a fazer uma pergunta ingenua; por que seria
+que a Napoleão, no acume da sua gloria, o tomaria uma vertigem? Os
+legitimistas attribuem uma tal fraqueza á vilã extracção de Bonaparte,
+que nem era de estirpe realenga nem sequer de nobreza limpa. Por
+espirituosa que seja semelhante opinião,--pois tresanda á mais brilhante
+épocha da antiga côrte franceza,--atrever-me-hei ainda a perguntar: mas
+por que é que a Maria Alexandrovna não a tomaram nunca vertigens? Pois é
+um facto; veiu a ser e depois ficou sendo sempre a dama de mais subida
+importancia em Mordassov. Conheceu horas atribuladas, não ha duvida, e,
+em certas circumstancias, houve até quem dissesse lá comsigo: «Mas que é
+que ha de agora fazer Maria Alexandrovna?» E o obstaculo achava-se
+transposto como que por encanto.
+
+Toda a gente estará lembrada da maneira porque o marido, o Aphanassi
+Matveich, perdeu a posição. Deu-se isso em seguida a uma inspecção aos
+fiscaes a quem esta achou tolos em demasia. E a cuidarem que Maria
+Alexandrovna não deixaria de perder o sizo, humilhar-se, supplicar,
+n'uma palavra, "rebaixar a sua linguarice." Longe d'isso! Percebendo que
+as supplicas nada adeantariam, houve-se de modo que a sua influencia não
+soffreu a minima quebra, e que a sua casa continuou a ser a primeira
+casa de Mordassov. Anna Nikolaievna Antipova, inimiga figadal de Maria
+Alexandrovna, a despeito das exteriorizações de mundana amizade, já
+cantava victoria. Mas não tardaram em perceber que era difficil
+atrapalhar Maria Alexandrovna, e que esta era mais fina do que a
+suppunham.
+
+Aqui, vem ao pintar umas palavras a respeito de Aphanassi Matveich,
+marido de Maria Alexandrovna. É um homem muito bem parecido, a correcção
+em pessoa. Mas, nos casos criticos, assustava-se que nem um borrêgo que
+percebesse que lhe mudaram o que quer que fosse ao cancêlo do redil.
+Circumstancia que lhe não tolhia o ostentar ordinariamente uns ares de
+summa importancia, sobretudo nos jantares de apparato, quando punha a
+gravata branca. A majestade de taes sujeitos dura até ao momento de
+abrirem a bôca: mas então é tratar de metter rolha nos ouvidos.
+Semelhante homem, com toda a certeza, é indigno de pertencer a Maria
+Alexandrovna. É esta a opinião geral.
+
+E d'ahi, é unicamente devido á genialissima esposa o facto de elle se
+conservar no seu posto. A meu ver, ha muito tempo que o deveriam ter
+espetado na horta á laia de espantalho para os pardaes.
+
+Alli, e só alli, poderia ter sido de alguma utilidade. Maria
+Alexandrovna fez, pois, muito bem em exilar Aphanassi Matveich para a
+aldeia de cento e vinte almas que ella possuia a tres verstas de
+Mordassov. E de caminho, digamos que a dita propriedade representava a
+totalidade dos bens facultando a Maria Alexandrovna o custear tão bem, e
+com tamanho estadão, a sua casa. Facil foi pois o perceberem que havia
+supportado Aphanassi Matveich unica e exclusivamente por causa do seu
+cargo, dos respectivos ordenados e... e ainda de uns certos
+emolumentosinhos. Agora, que, velho, já nem representava ordenados nem
+emolumentos, não seria de justiça affastá-lo na qualidade de inutil
+trambolho?
+
+Aphanassi Matveich leva no campo uma vida agradabilissima. Fiz-lhe uma
+visita e passei com elle uma hora encantadora. Ensaia ao espelho as
+gravatas brancas, engraxa as proprias botas, não por necessidade, mas
+sim por amor da arte, porque gosta de ver as botas a luzir muito. Toma
+chá tres vezes ao dia, vae a miudo ao banho e não se rala com coisa
+nenhuma...
+
+Estão lembrados d'aquella nojenta historia, ha dezoito mêses, a
+proposito da Zinaida Aphanassièvna, filha unica, de Maria Alexandrovna e
+de Aphanassi Matveich? Zinaida é uma beldade, e uma menina muito bem
+educada, de mais a mais; mas tem vinte e trez annos e ainda está
+solteira. Uma das principaes causas a que atribuem o celibato da Zina, é
+o boato vago da estrambotica ligação que dizem haver tido, ha
+exactamente dezoito mêses, com um réles utchitel[1]--boato que ainda se
+não desvaneceu.--Citam uma missiva amorosa escrita pela Zina e que dizem
+ter corrido Mordassov de um extremo ao outro. Mas, por favor, não me
+dirão, leram a tal epistola? Não houve em Mordassov pessoa que a não
+visse. E então! onde pára ella actualmente? Toda a gente ouviu falar
+nella, mas quem foi que a viu? Eu, da minha parte, ainda não encontrei
+uma só pessoa que a tenha visto com seus proprios olhos.
+
+Alluda alguem á tal epistola na presença de Maria Alexandrovna e aposto
+desde já que ella não perceberá sequer esse alguem. Mas supponhamos que
+tenha havido o que quer que fosse de verdade em semelhante atoarda, e
+que a Zina haja escrito a decantada epistola, (effectivamente, estou
+convencido de que a escreveu): admirem então a habilidade de Maria
+Alexandrovna.
+
+Como se havia de atabafar caso tão escandaloso?--Pois bem, procurem, nem
+vestigios, prova, que é della? Maria Alexandrovna nem sequer se digna
+tomar conhecimento de calumnia tão soez, e comtudo, Deus sabe o trabalho
+que lhe custou conservar intacta a honra da filha unica! Que a Zina não
+tenha ainda casado, isso percebe-se, de mais, até: onde iria ella por
+aqui encontrar noivo? A Zina só pode casar com um principe reinante! Já
+alguem viu mais peregrina formosura? É soberba, lá isso é... Dizem que
+Mozgliakov a pedira em casamento, mas semelhante consorcio jámais se
+effectuará. Quem vem a ser esse tal Mozgliakov? É môço, assás bem
+parecido, elegante, peterburguense, proprietario de cento e cincoenta
+almas livres de hypotheca. Mas não fura paredes! Leviano, tagarélla,
+apaixonado pelas novas ideias... E que representarão cento e cincoenta
+almas com ideias novas? O casamento nunca se realizará.
+
+Quanto acaba de ler o amavel leitor foi escrito, ha cinco mêses,
+unicamente por admiração. Devo convir em que nutro uma tal ou qual
+sympathia por Maria Alexandrovna. Quizera escrever o panegyrico de tão
+magnifica dama sob a forma de uma carta dirigida a um amigo, a exemplo
+d'aquellas que outrora publicavam as revistas, n'esses bons tempos que
+já lá vão, e que, louvôres a Deus! não voltam cá outra vez!
+
+Mas se não tenho um unico amigo, e, graças á incuravel timidez que de
+mim se apodera assim que se trata de litteratura, a minha obra ficou na
+gaveta na qualidade de tentame sem seguimento.
+
+Cinco mezes eram pois decorridos, quando em Mordassov se deu um
+acontecimento extraordinario.
+
+Um dia, de madrugada, eis que chega o principe K... e vae hospedar-se em
+casa de Maria Alexandrovna.
+
+As consequencias d'este acontecimento são incalculaveis. O principe
+passou apenas trez dias em Mordassov. Mas esses trez dias deixaram
+recordações fataes e inexpungiveis. Direi mais: o principe foi causa de
+uma verdadeira revolução n'esta nossa cidade. A narrativa da alludida
+revolução virá a ser, certamente, a pagina mais importante da historia
+de Mordassov. E é essa pagina que eu, após innumeras hesitações, me
+resolvi a offerecer, sob forma litteraria ao criterio do respeitavel
+publico.
+
+A minha narrativa poder-se-ia intitular: "Grandeza e Decadencia de Maria
+Alexandrovna." Grande e seductor assumpto para um poeta.
+
+
+
+
+II
+
+
+Direi desde já que o principe K... não era um ancião centenario.
+
+Á primeira vista, comtudo, ninguem podia deixar de pensar que ia
+reverter outra vez aos elementos, a tal ponto se achava gasto! Corriam
+em Mordassov as historias mais estranhas a respeito do dito principe.
+Affirmavam que estava um tanto ou quanto tinôco.
+
+Effectivamente, parecia exquisito que um _pomiestchik_[2] de uma das
+mais notaveis familias, dono de quatro mil almas, em posição de obter
+consideravel influencia na provincia, permanecesse enclausurado, tal
+qual um eremitão, na sua magnifica propriedade. Muitos que o tinham
+visto, seis ou sete annos atraz, por occasião da primeira vinda do
+principe a Mordassov, affirmavam que nesse tempo nem podia supportar a
+solidão nem tinha ainda aquelles seus costumes de eremita.
+
+Eis os esclarecimentos que pude colher a seu respeito bebidos das mais
+seguras fontes.
+
+Outrora--e onde irá isso!--o principe havia effectuado na sociedade um
+ingresso de aurora... Durante os annos todos da juventude levara vida
+airada, requestando as damas, esbanjando por vezes repetidas o seu
+dinheiro em viagens ao estrangeiro, cantando romanzas, fazendo
+trocadilhos; mas não se distinguia mediante uma intelligencia acima da
+marca. Em semelhante vida, não tardou em dar cabo do que tinha, e,
+quando chegaram os dias da senéctude, ficou sem um kopek. Aconselhou-lhe
+alguem que voltasse para a sua aldeia, que principiava já a ser vendida
+em hasta publica.
+
+Aproveitou o conselho, e foi nessa occasião que veiu passar seis mêses
+em Mordassov. Agradou-lhe immenso a vida de provincia, e pelo espaço de
+seis mêses acabou de se "alimpar" em amorios com as mundanas
+provinciaes. Era aliás excellente pessoa, de um fausto principesco (em
+Mordassov o fausto é o signal caracteristico da mais alta aristocracia.)
+
+As damas sobretudo não cessavam de se alegrar com um hospede encantador
+a tal ponto. Deixou entre nós curiosissimas recordações; entre outras
+exquisitices, contavam que o principe gastava a maxima parte do dia ao
+toucador. Parecia todo elle feito de pedacinhos enxertados. Scismavam
+onde e como fôra que elle se haveria decomposto d'aquella maneira. Usava
+chinó, bigode, suissas, e inclusivé uma pêra, tudo postiço até o minimo
+pellinho, e tudo preto como o proprio azeviche--uma lindeza! Levava todo
+o santo dia a pôr caio e carmim. Affirmavam que dispunha de um talento
+especialissimo em disfarçar as rugas do rosto por meio de umas
+mólazinhas escondidas com o chinó. Affirmavam ainda que trazia
+espartilho, havendo ficado sem uma costella ao saltar desastradamente de
+uma janella abaixo durante uma aventura amorosa, na Italia. Coxeava da
+perna esquerda, uma perna postiça de cortiça, affirmavam, havendo
+quebrado a verdadeira em Paris, em outra aventura. É possivel que
+houvesse exaggêro, mas o que é certo, é que o olho direito era de vidro:
+illudia completamente, aliás; ninguem diria que não era natural. Os
+proprios dentes eram artificiaes. Passava dias inteiros a lavar-se com
+aguas-garantidas, a perfumar-se, a encalamistrar-se. Ultimamente,
+comtudo, principiava a fazer-se velho e a tresler. Parecia estar prestes
+a terminar a sua carreira, e sabia toda a gente que se achava
+arruinado,--e eis que de repente lhe morre uma sua parenta muito
+chegada, senhora de muita edade, vivendo em Paris, e de quem não
+esperava herdar, em seguida a haver enterrado um mez, exactamente, antes
+de fallecer, o unico herdeiro. Eram quatro mil almas e uma soberba
+propriedade a sessenta verstas de Mordassov a reverterem no principe sem
+a minima partilha. Abalou desde logo para Petersburgo a fim de pôr em
+ordem seus negocios. Por occasião da partida, offereceram-lhe as damas
+um sumptuoso banquete por subscripção. Ha quem se lembre ainda de como,
+n'aquelle dia, o principe foi seductor e espirituoso! Era um tiroteio de
+calemburgos, de anecdótas extraordinarias. Prometeu voltar o mais breve
+possivel para a sua nova propriedade e jurou que na volta daria meza
+franca e uma festa--bailes e luminarias--que nunca havia de ter fim.
+Depois da sua partida, ficaram as senhoras um anno a falar da tal
+promettida festa e impacientes á espera do encantador velhinho.
+Organizavam até excursões a Dukhanovo, a aldeóla do principe, onde se
+admirava um antigo solar acastellado, um parque adornado de acacias a
+imitar leões, colinas artificiaes, lagos em que navegavam barquinhos
+tripulados por turcos de madeira, a tocar flauta, pavilhões de
+_Mon-Plaisir_, e quejandos attractivos.
+
+Até que por fim veiu o principe, com grande espanto e não menor decepção
+de toda a gente, nem sequer passou por Mordassov e foi encerrar-se em
+absoluto isolamento em Dukhanovo. Correram boatos singularissimos. A
+datar d'esse momento, torna-se obscura e phantastica a historia do
+principe. A principio constou que lá por Petersburgo lhe não tinham
+corrido bem os negocios, que os herdeiros, em vista do seu estado senil,
+queriam nomear-lhe um conselho judicial receando que voltasse a esbanjar
+os seus bens. Ainda mais: accrescentavam que aquelles ávidos caçadores
+de heranças tinham querido internál-o n'uma casa de saude!
+Afortunadamente para o principe, um seu parente, personagem de summa
+importancia, saiu em sua defêsa, provando á evidencia que o pobre homem,
+semi-morto e todo elle artificial, não estava para muita dura,
+certamente. E que n'essa conformidade os seus bens viriam a reverter nos
+herdeiros sem que estes se vissem na necessidade de recorrer á casa de
+saude. Eis o que se diz. São compridinhas as linguas lá em Mordassov.
+Tudo isto havia assustado o principe, a tal ponto, que se lhe tinha
+demudado o genio, descambando em eremitão. Por mera curiosidade, vieram
+felicitál-o varios Mordassovenses: e ou não foram recebidos, ou se o
+foram foi de modo um tanto exquisito. O principe nem mesmo reconheceu,
+ou antes, não quiz reconhecer os seus amigos de outrora.
+
+O proprio governador o foi visitar, mas voltou pelo mesmo caminho
+dizendo que o principe estava tinôco. D'alli em deante notaram que o
+governador punha uma cara de palmo, assim que lhe falavam na jornada a
+Dukhanovo... Indignavam-se as senhoras. Até que por fim se veiu a saber
+uma coisa capital; o principe vivia submettido á tutella de uma figurona
+por nome Stepanida Matveiévna,--Deus sabe que casta de mulher!--que
+tinha vindo lá de Petersburgo, velha, obêsa, usando constantemente o
+mesmo vestido de cassa, e sempre com um mólho de chaves na mão. O
+principe obedece-lhe em tudo e por tudo e não se atreve a dar um passo
+sem a consultar. Ella, lava-o com suas proprias mãos, apaparica-o,
+passeia-o e entretem-n'o, como se fôra um néné; em conclusão, é ella
+quem bate com a porta na cara aos parentes que principiam a saber o
+caminho de Dukhanovo... Foi muito discutida, sobretudo entre as
+senhoras, tão incomprehensivel ligação. Accrescentavam que Stepanida
+Matveiévna regia com plenos poderes, e sem ter quem lhe fosse á mão, a
+totalidade dos bens do principe. Substitue feitores, creados, arrecada
+os rendimentos; é aliás boa a sua administração, e os camponêzes não
+vêem outra coisa. Com respeito ao principe, este nem já arreda um passo
+do toucador, a ensaiar chinós, pêras postiças, casacos. Uma vez por
+outra, joga ás cartas com Stepanida Matveiévna; de vez em quando, dá o
+seu passeio n'uma egua inglêsa muito mansa: Stepanida Matveiévna
+acompanha-o sempre em carruagem fechada, prompta á primeira voz, visto
+como o principe só monta a cavallo por garridice e mal se pode ter em
+cima do selim. Acontece-lhe tambem o sair a pé, embrulhado n'um
+sobretudo, com um chapéu de palha enterrado na cabeça, um lenço de
+mulher ao pescoço, um monoculo no olho e pendurado na mão esquerda um
+açafate para recolher cogumelos e flôres campestres. Stepanida
+Matveiévna, vae-lhe seguindo as pisadas, levando á tréla dois latagões
+de dois lacaios; e um pouco mais atráz, uma carruagem. Se calha
+encontrarem um mujik que pára e tira o bonné para lhe fazer a sua
+contumélia dizendo: "Bom dia, paezinho principe. Nossa Excellencia,
+nosso solzinho!" o principe assesta-lhe o monoculo, acêna-lhe com a
+cabeça com bom modo e diz-lhe em francêz: "Bom dia, amigo, bom dia!"
+Qual não foi porém o espanto de toda a gente quando, uma bella manhã, se
+espalhou o boato de como o principe, aquelle eremitão, aquelle original,
+tinha vindo em pessoa a Mordassov e se hospedara em casa de Maria
+Alexandrovna! Foi um reboliço por ahi além! Estavam á espera de uma
+explicação, e perguntavam uns aos outros: "Que quererá isto dizer?" Não
+faltou quem se estivesse enfeitando para ir a casa de Maria
+Alexandrovna. Carteavam-se as senhoras, visitavam-se, mandavam as
+creadas e os maridos colher informações. O que maior espectação causava
+era a circunstancia de se ter ido o principe hospedar em casa de Maria
+Alexandrovna, e não em qualquer outra parte. Anna Nikolaievna Antipova
+ficou mais escandalizada do que outra qualquer pessoa, visto o principe
+ser ainda seu parente, parente muito arredado, é verdade.
+
+
+
+
+III
+
+
+São dez horas da manhã. Estamos em casa de Maria Alexandrovna, na Rua
+Grande, no aposento que a dona da casa, nos dias duplices, enfeita com o
+titulo de sala. (Maria Alexandrovna, dispõe tambem de um camarim.) O
+papel das paredes é correctissimo. Os moveis, pouco commodos, arvoram
+com verdadeira predilecção a côr vermelha. Ha um fogão, e em cima do
+fogão um espelho; deante do espelho um relogio tendo por assunto um
+Cupido do mais execrando gosto. Nas paredes, no intervallo das janéllas,
+dois espelhos a que já tiraram as capas. Adeante dos espelhos, duas
+banquinhas, e ainda dois relogios. Toma a metade de um apainelado um
+piano de cauda. (Mandaram vir o dito piano para a Zina: cultiva a
+musica.) Ao pé do fogão, no qual arde uma bôa fogueira, estão dispostas
+umas poltronas em desalinho pinturesco a mais não poder ser. Ao meio
+outra banquinha. No outro extremo da casa, ainda outra mesa, tapada com
+uma toalha immaculada e em cima, um samovar de prata, a ferver, no meio
+de um lindissimo serviço para chá. Uma senhora, residente em casa de
+Maria Alexandrovna, a titulo de parenta affastada, Nastassia Petrovna
+Ziablova, está especialmente incumbida do chá.
+
+Duas palavras ácerca da alludida senhora. É viuva, frescalhona, com uns
+olhos castanhos escuros muito vivos, assaz bem parecida; é alegre,
+velhaca, até; linguareira, escusado será dizê-lo, e sabendo levar agua
+ao seu moinho; tem dois filhos no collegio, para ahi, algures. Não se
+lhe daria de tornar a casar; vive com bastante independencia; o marido
+era official.
+
+Maria Alexandrovna em pessoa está sentada ao pé do fogão: acha-se de boa
+catadura. Traja um vestido verde claro, assentando-lhe a primor. Está
+contentissima com a vinda do principe. N'este ensejo, o principe está lá
+em cima, todo elle entregue á tarefa de se infunicar.
+
+Maria Alexandrovna nem sequer pensa em esconder o seu contentamento.
+Deante d'ella, um rapaz a fazer boquinhas e a cantar, muito animado,
+seja o que fôr. Percebe-se que se desvéla por agradar a quem o está
+escutando. Tem vinte e cinco annos. Se não fossem as suas exuberancias,
+se não fossem tambem as suas pretensões a engraçado, seria toleravel.
+Está bem vestido, é loiro e de agradavel presença. Já a elle nos
+referimos, é o senhor Mozgliakov, môço sobre quem se fundaram esperanças
+matrimoniaes. Maria Alexandrovna acha-lhe a cabeça um tanto ôca, mas nem
+por isso deixa de o receber muito bem. Diz elle que está loucamente
+apaixonado pela Zina. Dirige-se a esta continuamente, ancioso por
+alcançar um ar de riso a poder de bons ditos e de azoamento. Ella,
+comtudo, mantem-n'o a distancia, com extrema frialdade. A joven está de
+pé junto ao piano, a folhear um almanaque. É uma dessas mulheres que
+produzem effeito geral ao entrarem numa sala. É peregrinamente formosa:
+alta, morena, com uns immensos olhos quasi pretos, esbelta, com um collo
+magnifico, uns pésinhos encantadores, espaduas e mãos de molde classico,
+e um pisar de rainha. Está hoje um tanto descoráda, a pallidez, comtudo,
+torna-lhe mais conspicuo o rubido fulgor dos labios por entre os quaes
+lhe luzem, tal qual perolas em fio, uns dentinhos miudinhos e regulares.
+Era caso para qualquer de nós sonhar com elles, três dias a fio, só de
+lhes ter posto a vista em cima. É séria a sua expressão.
+
+O senhor Mozgliakov dir-se-hia arrecear-se do olhar fito da Zina, pelo
+menos não ergue para esta os olhos sem um tal qual enleio.
+
+É singelissimo o vestido da joven, de gaze branca: Está-lhe bem o
+branco, está-lhe lindamente o branco... E d'ahi, que haverá que lhe não
+fique bem? Traz enfiado n'um dedo um annel de cabello entrançado. A
+julgar pela côr, aquelles cabellos não são os da mamã. Mozgliakov nunca
+se afoitou a perguntar de quem seriam aquelles cabellos. Está taciturna,
+esta manhã, triste, até, ou preoccupada, pelo menos. Em compensação,
+Maria Alexandrovna acha-se em maré de dar á lingua. De vez em quando,
+esguêlha uns olhos desconfiados para a Zina, e olhos furtivos quanto
+possivel, como que não se arreceando menos da joven.
+
+--Estou tão contente, Pavel Alexandrovitch, (dir-se-hia pipilar) que
+estou capaz de gritar da janella abaixo o meu contentamento a quem passa
+pela rua. Sem falarmos da agradabilissima surpreza que nos proporcionou,
+a mim e á Zina, com vir quinze dias mais cedo do que o esperavamos. É
+caso á parte. Mas o que mais me penhorou foi a attenção que teve
+comnosco trazendo comsigo o principe. Se soubesse como eu adoro aquelle
+encanto aquelle vélhinho! Não pode comprehender-me! As pessoas da sua
+edade seriam incapazes de semelhante affeição. Não sabe as
+circumstancias que entre mim e elle se deram, ha seis annos? Lembras-te,
+Zina? E eu sem me lembrar de que n'esse tempo estavas em casa de tua
+tia. Estou que me não acreditaria, Pavel Alexandrovitch, se eu lhe
+dissesse, que servi de guia ao principe, que fui para elle, irmã, mãe?
+Havia lhaneza, carinho, nobreza n'aquella nossa ligação. Era...
+pastoril!... Nem eu sei como a hei de definir. Eis o motivo porque elle
+se lembrou da minha casa com tamanha gratidão, o pobre do principe! E se
+eu lhe disser, Pavel Alexandrovitch, que é possivel até que o salvasse
+trazendo-o para minha casa? Não podia evitar o confranger-se-me o
+coração, durante aquelles seis annos, sempre que me punha a pensar
+n'elle!... Eu... quer acreditar?... até sonhava com elle! Dizem que
+aquella creatura, a tal sua carcereira, o enfeitiçou, que o deitou a
+perder... mas, emfim, o senhor arrancou-o das garras d'aquella harpia!
+Urge aproveitar a occasião para o salvar completamente... Mas conte-me,
+mais uma vez, como foi que o conseguiu? Descreva-me, muito por miudos, o
+encontro de um e outro. Eu ainda agora fiquei tão sobresaltada! Não vi
+senão os traços geraes, mas não ha pormenor que não seja precioso a meus
+olhos. Se eu sou assim! Pello-me pelas minudencias, nos acontecimentos
+de maior vulto, são os pormenores que primeiramente me chamam
+attenção... e... emquanto elle se está arrebicando...
+
+--Mas se eu já lhe contei tudo, apressa-se em responder Mozgliakov,
+prompto a recapitular a narrativa pela décima vez. Tinha viajado toda a
+noite... não tinha pregado olho; estava com tanta pressa de chegar ao
+meu destino! (Esta ultima phrase ia sobrescritada para a Zina.) Tive que
+aturar contendas, berreiros por occasião das mudas. Eu proprio,
+confesso, não fiz tambem pouca algazarra. É um poema moderno, sem tirar
+nem pôr. Mas vamos adeante. Ás seis horas da manhã, em ponto, eis que
+chêgo á ultima muda, em Ignichévo. Tranzido, mas, isso sim! nem sequer
+tiro uns minutos para me aquécer. Pégo a gritar: "Cavallos!" Estou em
+dizer, até, que metti um susto á mulher do capataz das mudas: tinha ao
+collo um néné, de peito, e estou com receio que se lhe talhasse o
+leite.--Era admiravel o despontar do sol! Sabe, aquelle pó da geada
+escarlate e prateada? E eu, sem attentar em coisa nenhuma, ia a vapor!
+
+Empalmo uns cavallos a um tal conselheiro de collegio,--com quem por um
+triz que não tenho um duéllo. Afiançam-me que um quarto de hora antes
+tinha abalado da dita muda um certo principe que viaja com cavallos
+proprios. Que pernoitara na muda. Quasi que nem lhes dou ouvidos, salto
+para a carruagem, vôo por ali fóra tal qual um prisioneiro
+escapulido.--Ha uma situação parecida em uma elegia de Fet[3].--Ora, a
+nove verstas da cidade, justamente, em vista do retiro de
+Svietozerskaia, avisto o que quer que seja de singular! Uma grande
+carruagem de jornada caída na estrada. O cocheiro e dois latagões de
+dois lacaios, de pé, junto da mesma, e muito atrapalhados. Lá do fundo
+da carruagem vinham uns bérros que me confrangiam a alma!... Eu podia
+seguir por deante, não tinha nada com isso, mas levou a melhor a
+humanidade, pois, como diz Heine, mette o nariz em toda a parte. Paro,
+pois. Eu, o meu yamstchik Semene, e uma outra alma russa, accudimos a
+ajudar e entre nós seis pômos em pé a carruagem. Pômol-a de pé,--quero
+dizer, sobre os patins.--Uns mujiks que levavam uma carga de lenha para
+a cidade ajudaram-nos tambem, (apanharam bem boa gorgêta). E eu a dizer
+commigo: É o tal principe que passou a noite na muda. Ólho: Santo Deus!
+É o principe Gavrila! Que encontro este! "Principe! bradei: tiozinho!" Á
+primeira vista, não me conheceu; nem sei se me reconheceria á segunda: e
+agora mesmo não estou bem certo em que me reconhecesse. Creio que nem
+sequer já se lembra do nosso parentesco. Vi-o pela primeira vez, em
+Petersburgo. N'esse tempo era eu um garoto. Lembro-me muito bem, mas
+elle, podia-se lá lembrar de mim? Apresento-me: fica encantado!
+Beija-me, e depois pega a tremer de susto e, em conclusão, desata a
+soluçar. Por Deus! Vi-o com meus proprios olhos: até chorou! Palavra
+puxa palavra e, em conclusão, acabei por lhe propôr que viesse até
+Mordassov tomar um dia de descanso. Consentiu sem hesitações.
+Declarou-me que ia para o retiro de Svietozerskaia, para casa do
+arcypreste Missail a quem tem em grande conta; que a Stepanida
+Matvéina--qual de nós, parentes do Principe, não terá ouvido falar de
+Stepanida Matveiévna? O anno passado, escorraçou-me de Dukhanovo com o
+pau da vassoira!... Que a Stepanida Matveiévna recebera pois uma carta
+exigindo a sua presença em Moscou pelo fallecimento de alguem, o pae ou
+a filha, nem sei nem quero saber,--talvez que pae e filha ao mesmo
+tempo, e ainda por cima para ahi qualquer segundo sobrinho empregado na
+fiscalização dos vinhos. N'uma palavra, tivera que conformar-se,
+desamparar o seu principe por uns dez dias e levantar vôo, a toda a
+pressa, para a capital.
+
+O principe demóra-se um dia; dois dias, sem se mexer, a experimentar
+chinós, a encalamistrar-se, a pentear-se, a fazer paciencias: em
+conclusão, a solidão acabou por lhe ser pesada. Foi então que mandou pôr
+o trem e metteu a caminho do retiro de Svietozerskaia. Alguem do seu
+séquito, com medo do phantasma da Stepanida Matveiévna, atrevera-se a
+ir-lhe á mão. Mas o principe é cabeçudo e tinha abalado na vespera,
+depois de jantar, pernoitando em Ignichevo, largara da muda de
+madrugada, e, justamente na volta do caminho que vae ter á residencia do
+arcypreste, por pouco se não despenha com a carruagem n'uma barroca.
+Salvei-o e persuadi-o a vir para casa da nossa amiga commum, a
+dignissima Maria Alexandrovna. Diz elle que a senhora é a dama mais
+encantadora que tem encontrado em toda a sua vida, e cá estamos. O
+principe está a pôr em ordem os arrebiques com o criado particular de
+quem porfiou em não prescindir. Mais depressa se deixaria morrer do que
+apresentar-se em casa de uma senhora sem a roupa toda da ordem... E aqui
+tem a historia toda... é uma historia deliciosa!
+
+--Que humorista, hein! Zina? exclama Maria Alexandrovna. Que captivante
+narrador! Escute, Pavel, uma pergunta: explique-me bem o seu parentesco
+com o principe. O senhor trata-o de tio.
+
+--Por Deus! Maria Alexandrovna, se eu sou o proprio a não saber, como é
+que sou seu parente. Estou em dizer, até, que talvez seja preciso para
+ahi um cento de gravêtos para sermos do mesmo ramo. Mas eu cá trato-o de
+tiozinho, e elle responde-me. E ahi tem, até hoje, todo o nosso
+parentesco...
+
+--Foi Deus em pessoa que o inspirou em m'o trazer para aqui. Arrepio-me
+só de pensar que poderia ter ido hospedar-se para outra qualquer parte.
+Devoravam-n'o! Atiravam-se a elle como quem se atira a um thesouro, a
+uma mina!... Eram capazes de lhe tirar a camisa! Não põe na sua ideia o
+que por ahi vae de almas sofregas, vis e arteiras n'esta nossa
+Mordassov.
+
+--Ah! meu Deus! mas para onde queria que o levassem a não ser para sua
+casa? Sempre tem cada uma, Maria Alexandrovna, interveiu Nastassia
+Petrovna, a incumbida do chá. Talvez quisesse que carregassem com elle
+para casa da Anna Nikolaievna!
+
+--Mas com tudo isso, por que se demorará elle tanto? É exquisito! disse
+Maria Alexandrovna, erguendo-se, impaciente.
+
+--O tio? Aquillo ainda é negocio para cinco horas! E d'ahi, bem sabe que
+está perdido da memoria; é capaz de se ter esquecido de que é seu
+hospede. É um homem extraordinario, Maria Alexandrovna. Se soubesse!
+
+--Ora vamos! Que está a dizer?
+
+--A verdade, Maria Alexandrovna. É um homem _mecanico_. Não o vê ha seis
+annos, mas sei o que ha a esse respeito. É a recordação de um homem,
+esquéceram-se de o enterrar. Tem olhos de vidro, pernas de cortiça; todo
+elle de _engonços_, a propria voz é artificial.
+
+--Valha-nos Deus, sempre é um tal esturdio! exclamou Maria Alexandrovna
+com uns modos doridos. Não tem vergonha, o senhor, a falar assim de um
+veneravel ancião, que é seu parente? (A voz de Maria Alexandrovna,
+n'esta altura assume entonação tocante.) Sequer ao menos, lembre-se de
+que é uma reliquia da nossa aristocracia! Meu amigo, essas leviandades
+provêm-lhe das taes novas ideias em que está sempre a falar. Meu Deus!
+tambem eu participo dessas ideias; comprehendo que o principio que rege
+as suas opiniões é nobre, honrado. Presinto n'essas ideias novas o que
+quer que é de elevado, de sublime. Mas tudo isso não me impede de ver os
+lados praticos, por assim dizer--da questão. Tenho vivido na sociedade,
+conheço melhor que o senhor os homens e as coisas, pois que o senhor é
+apenas um rapaz. Este vélhinho afigura-se-lhe ridiculo lá por causa da
+edade. O senhor, ha dias, affirmava que queria dar alforria aos seus
+servos, que cada qual deve ir com o seu século. Tudo isso, sem duvida,
+lá por que o leu para ahi algures no tal seu Shakespeare! Acredite,
+Pavel Alexandrovitch, o seu Shakespeare já lá vae ha que tempos. Se elle
+resuscitasse, apezar de ser um génio, não percebia uma palavra do viver
+moderno. Se alguma coisa existe de majestoso, de cavalheiresco n'esta
+nossa sociedade contemporanea, é com certeza a aristocracia. Um principe
+é sempre um principe; faz um palacio ainda que seja de uma cabana. Ao
+passo que o marido da Natalia Dmitrievna, que mandou construir um
+palacio, fica sendo o marido da Natalia Dmitrievna, e mais nada,--e a
+Natalia Dmitrievna pode pôr em cima de si meio cento de crinólines, que
+nunca passará de ser a Natalia Dmitrievna como d'antes. Tambem o senhor,
+meu caro Pavel, é um representante da aristocracia, de lá veiu. Aqui
+onde me vê, ouso tambem ter-me na conta de não ser alheia á
+aristocracia. Pois bem! Ai do filho que chasqueia dos proprios
+antepassados! E d'ahi, não deixará de convir, d'aqui a nada, meu
+amiguinho, que é preciso pôr de lado o seu Shakespeare, sou eu que lh'o
+digo. Estou certa em que agora mesmo não é sincéro. Está armando ao
+effeito!... Mas... eu para aqui a dar á lingua! Deixe-se estar, meu
+querido Pavel; vou saber noticias do principe. Talvez precise de alguma
+coisa, e com estes meus criados!... E saiu apressada Maria Alexandrovna.
+
+--Maria Alexandrovna parece estar contentissima pelo facto de o principe
+não se ter ido hospedar para casa da elegante Anna Nikolaievna; e
+comtudo, a Anna Nikolaievna tem pretensões a ser parente do principe. É
+capaz de estoirar de raiva!--observou Nastassia Petrovna.
+
+Mas, notando que lhe não respondem, Madame Ziablova, depois de haver
+esguelhado uma olhadéla para a Zina e para Pavel Alexandrovitch, percebe
+que é alli de mais e sae, tambem, como quem vae procurar qualquer coisa.
+E d'ahi, desforra-se da propria discreção deixando-se ficar atráz da
+porta, de ouvido á escuta.
+
+Pavel Alexandrovitch trata logo de se approximar da Zina; está
+commovidissimo, com a voz a tremer:
+
+--Zinaida Aphanassievna! Não está zangada commigo? diz timidamente e com
+modo supplice.
+
+--Com o senhor? Mas por quê? pergunta a Zina um tanto ruborizada,
+erguendo sobre elle os esplendidos olhos.
+
+--Pela minha vinda prematura, Zinaida Aphanassievna, já não podia
+supportar mais longo apartamento. Ainda mais quinze dias! E eu a vêl-a
+sempre em sonhos! Vim para saber a minha sorte... Mas por que franze as
+sobrancelhas, está zangada? Com que então, ainda hoje não apanho
+resposta decisiva?
+
+Á Zinaida, effectivamente, carregou-se-lhe o parecer.
+
+--E eu antevia que me havia de falar a esse respeito, encetou ella em
+voz rispida com uns vislumbres de despeito. (Declina a vista.) E como
+semelhante apprehensão me maguou em extremo, acho melhor cortar de vez
+toda e qualquer indecisão... mais vale assim... O senhor exige, quero
+dizer, pede uma resposta? Seja assim. A minha resposta será a mesma que
+já lhe dei: espere. Repito-lhe, ainda não estou resolvida, não lhe posso
+prometter o ser sua mulher... Não é coisa que se obtenha por exigencia,
+Pavel Alexandrovitch; mas, para o tranquillizar accrescentarei que o não
+rejeito definitivamente. E comtudo, note que, se o deixo esperar uma
+decisão favoravel, é por dó da sua inquietação. Repito-lhe que quero
+tomar em plena liberdade a minha decisão, e se eu em conclusão lhe
+declarar que o rejeito, nem por isso depois me deve increpar por lhe ter
+dado esperanças. E fique isto assente por uma vez!
+
+--Mas então, então! exclamou Mozgliakov em voz de mais em mais supplice,
+será isso uma esperança? Poderei fundar uma qualquer esperança n'essas
+suas palavras, Zinaida Aphanassievna?
+
+--Lembre-se de tudo que lhe tenho dito e funde tudo que quiser: é livre.
+E nada mais acrescentarei. Não o rejeito, digo-lhe, tão somente: Espere!
+Reservo-me o direito de o rejeitar se assim o julgar necessario...
+Far-lhe-hei ainda notar o seguinte, Pavel Alexandrovitch: se veiu mais
+cedo do que tinha dito com o sentido em operar por meios indirectos,
+esperançado em fazer valer a sua influencia, a da mamã, por exemplo,
+enganou-se nos seus calculos. Se assim fôra, rejeitál-o-hia de vez,
+entendeu? E agora, basta, se me faz favor! Até que eu proprio lhe torne
+a falar n'isso, nem palavra a semelhante respeito.
+
+Foi proferido em tom firme, sêcco, o conjuncto d'este discurso, sem
+hesitações, como se fôra decorado de antemão. E Pavel sente o nariz a
+crescer-lhe. N'este comenos eis que entra Maria Alexandrovna. Logo atráz
+d'esta entra madame Ziablova.
+
+--Já ahi vem, Zina! Quer-me parecer que não tarda ahi! Nastassia
+Petrovna, avie-se... o chá!
+
+E Maria Alexandrovna n'uma azafama, toda ella.
+
+--A Anna Nikolaievna já mandou saber noticias; a Aniutka, a creada, até
+já veiu pedir informações á copa. Ha de estar como uma bicha! disse a
+Nastassia Petrovna, investindo com o samovar.
+
+--E a mim que me importa? responde Maria Alexandrovna, a desfechar as
+palavras por cima do hombro a madame Ziablova. Como se me interessasse o
+que poderá pensar Anna Nikolaievna! Tenho a certeza em como não serei eu
+que mande seja quem fôr á sua copa. E demais, fique sabendo, muito me
+admiro de que me façam passar por inimiga da Anna Nikolaievna, coitada!
+Pois é opinião corrente em Mordassov. Ora seja juiz, Pavel
+Alexandrovitch. Conhece-nos a ambas: por que é que eu havia de ser sua
+inimiga? Para lhe disputar a supremacia? Sou indifferente a essas
+coisas! Ella que seja a primeira, eu lhe irei dar os parabens! Emfim, é
+injusto, e quero defendêl-a. É meu dever. Mas para que é que a
+calumniam, para que hão de andar a malhar assim na pobre da creatura? É
+nova, gosta de se enfeitar: será por isso? Quanto a mim, acho que vale
+mais gostar dos trapos do que um certo numero de coisas de que tanto
+gosta a Natalia Dmitrievna, das taes coisas que nem sequer se podem
+nomear. Será ainda lá porque a Anna Nikolaievna gosta de visitas e não
+pode parar em casa? Mas, santo Deus! Se ella não tem instrucção de
+qualidade nenhuma, e com certeza que lhe havia de ser difficil o abrir
+um livro e entreter-se dez minutos a fio fosse com o que fosse. É
+garrida, dá de olho, da janella abaixo, a todo e qualquer que passa pela
+rua. E d'ahi?... Mas para que será que andam para ahi a apontál-a como
+uma beldade? É macilenta, que até mete medo! Dansa que é um riso vê-la,
+chega a ser comica, convenho, mas por que será que dizem que a polkar é
+um portento? Usa uns chapeus inconcebiveis! E d'ahi, ella terá culpa de
+lhe faltar o gosto? Affirme-lhe que faz bem em pregar na cabeça um papel
+de rebuçado, e verá que o faz. É linguareira, mas se por aqui não haverá
+quem o não seja. O senhor Suchilov, com aquellas suas enormes suissas,
+está pregado em casa della de manhã até á noite, e de noite até manhã,
+tenho a certeza. E d'ahi, santo Deus! para que é que o marido joga as
+cartas até ás cinco horas da madrugada? Se o que se vê por ahi são maus
+exemplos! E demais, não deixará de ser _talvez_ mais outra calumnia.
+N'uma palavra, hei de sair sempre, sempre, sempre, sempre a
+defendêl-a... Mas! ai, Senhor! Ahi vem o principe! É elle! é elle!
+conheci-lhe os passos! Era capaz de os distinguir entre mil. Até que o
+vejo, afinal, meu principe!...
+
+
+
+
+IV
+
+
+Á primeira vista, ninguem confundiria o principe com um velho, mas
+examinado de mais perto, ninguem deixaria de verificar que é um cadaver
+movido por mólas; empregaram toda a casta de artificios para disfarçar
+n'um adolescente semelhante mumia. Um chinó estupendo, suissas, bigodes
+postiços, mais pretos que o proprio ébano, lhe tapam metade do rosto. As
+faces estão pintadas com singular pericia; nem uma ruga: que é
+d'ellas?... Vestido no rigor da moda, dir-se-hia saído de um figurino de
+alfaiate. Traz assim a modos de uma _visite_, isto é, qualquer coisa
+elegantissima feita expressamente para as visitas matutinas. Luvas,
+gravata, collete, tudo isso de brancura deslumbrante e do mais
+requintado gosto. O principe manqueja um tudo-nada, mas tão levemente!
+Dir-se-hia mais um tempêrozinho exigido pela móda.
+
+Um monoculo no olho,--n'aquelle, exactamente, que é de vidro,--vem
+saturado de perfumes. Quando fala, arrasta umas certas palavras, talvez
+por impotencia senil, ou por serem postiços os dentes, ou ainda por
+elegancia. Pronuncia umas certas syllabas com doçura extraordinaria e
+accentua a letra _e_. Tem uma pontinha de não se-me-dá que lhe ficou da
+sua vida de homem feliz em amores. Se não perdeu de todo a transmontana,
+pelo menos está sem memoria. Engana-se a cada instante, fica-se a mascar
+e a metter os pés pelas mãos. É necessario ter um certo dom de
+opportunismo para sustentar com elle uma conversa. Maria Alexandrovna,
+todavia, tem a consciencia dos proprios recursos, e a presença do
+principe léva-a ao auge do enthusiasmo.
+
+--Mas não o acho nada mudado, nada, nada! exclama ella agarrando em
+ambas as mãos ao hospede e amesendando-o n'uma commoda poltrona.
+Sente-se! sente-se, principe! Seis annos! seis annos, inteirinhos e
+integrados sem nos vermos, e nem uma carta, nem uma linha, durante todo
+o tempo! Oh! quantas culpas não tem para commigo, principe! Se soubesse
+o quanto eu estava zangada comsigo, meu caro principe! Mas, e esse chá!
+esse chá! Ah! meu Deus! Nastassia Petrovna, o chá!
+
+--Obrigado... ô--ôbrigado!... sou cul... cul... pado... gaguejou o
+principe.
+
+(Esqueceu-nos dizer que gaguejava um tanto; e d'ahi, é moda.)
+
+--Cul... culpado! Ora imagine que, o anno passado, quiz abs...
+absolutamente vir aqui, acrescentou a mirar a casa através da luneta.
+
+Mas tinham-me mettido medo: disseram-me que por aqui andava a có...
+cólera...
+
+--Não, principe, não a tivemos por cá, affirmou Maria Alexandrovna.
+
+--Tinhamos a morrinha, meu tiozinho, interrompeu Mozgliakov, que se quer
+tornar conspicuo.
+
+Maria Alexandrovna méde-o com olhar sevéro.
+
+--Ha de ser isso... a mo... mo... rrinha ou coisa que o valha. E vae, eu
+então deixei-me ficar. E seu marido, minha que... querida Maria
+Nikolaievna, ainda está na ma... a... gistratura?
+
+--Não, principe, diz Maria Alexandrovna, meu marido não está na ma...
+a... gistratura.
+
+--Iá apostar que o tiozinho a está confundido com a Anna Nikolaievna
+Antipova! exclama o perspicaz Mozgliakov.
+
+Acto continuo, porém, mordeu o beiço, percebendo que nem por isso está
+muito á vontade Maria Alexandrovna:
+
+--Pois é isso, é... A Anna Nikolaievna, e... e... e eu sempre a
+esquecer-me... e então! Antipovna, exactamente, An... ti... povna,
+confirma o principe.
+
+--Não, principe, está equivocado! disse Maria Alexandrovna com um
+rizinho azêdo. Eu não me chamo Anna Nikolaievna, e, confesso, nunca
+suppuz que se esquecesse de mim. Estou espantada, principe, sou a sua
+velha amiga, a Maria Alexandrovna Moskalieva. Não se recorda, principe,
+da Maria Alexandrovna?
+
+--Maria Ale... lexan... xandrovna! Ora vejam! E eu a confundi-la com a
+Anna Vassiliévna... é delicioso!... Dizia eu, pois, que me não fui
+hospedar em casa da... E eu, amigo, a cuidar que me levavas exactamente
+para casa da tal Anna Matveina!
+
+É impagavel! E dahi, acontece-me isto tanta vez! Quanta vez não vou eu
+parar onde não quizéra!... Em geral, fico sempre contente, sempre
+contente, aconteça o que acontecer. Com que então não é a Nastassia
+Vassiliévna!
+
+É interessante!
+
+--Maria Alexandrovna, principe! Maria A--lex--androvna! Se é coisa que
+se faça! Esquecer-se assim da sua melhor amiga!
+
+--Melhor amiga, sim, é verdade! Perdão, pe... er... dão! silva o
+principe fixando a attenção na Zina.
+
+--A minha filha Zina! O principe ainda a não conhece! Não estava em
+minha casa quando aqui veiu pela ultima vez; lembra-se?
+
+--Sua filha! É um encanto! um encanto! murmura o principe assestando
+ávido a luneta na Zina.--Mas que belleza; disse com visivel sobresalto.
+
+--Serve-se de chá, principe? pergunta Maria Alexandrovna desviando a
+attenção do jarreta para um _groom_, parado defronte d'elle com uma
+bandeja.
+
+O principe serve-se de uma chavena de chá e contempla o _groom_ de
+bochechas rochonchudas e rosadas.
+
+--Ah! ah! ah! É seu filho? Perfeito, muito perfeito! e... e... e... bem
+comportado, já se vê?
+
+--Perdão, principe... accode pressurosa Maria Alexandrovna. Ainda estou
+toda a tremer... Com que, então, deu uma quéda? Não se magoaria? Não é
+prudente arriscar a sua pessoa em semelhantes aventuras!...
+
+--Virou-se! virou-se! O cocheiro virou a carruagem commigo dentro!
+exclama o principe com extraordinaria animação. E eu, a pensar que era o
+fim do mundo ou coisa parecida. Os santos me perdoem: apanhei um
+susto... vi as estrellas ao meio dia, eu esperava lá!... eu es...
+pera... va lá!... E tudo aquillo, por culpa do meu cocheiro, do
+Pamphilio: entrego-te este negocio, meu amigo, has de tratar do
+inquerito... Estou convencido de que attentou contra a minha vida!
+
+--Muito bem! muito bem, tiosinho! responde Pavel Alexandrovitch, fica a
+meu cuidado. Mas oiça lá; se lhe perdoasse por esta vez, hein, que lhe
+parece?
+
+--Por caso nenhum! Tenho a certeza de que quiz dar cabo de mim, elle e
+mais o Lavrenty, que eu deixei lá em casa. Ora imaginem,
+encasquetaram-se-lhe as taes ideias novas, uma negação... que eu sei
+lá... e era um communista em toda a extensão da palavra. Quando me vejo
+a sós com elle... fico logo em suores frios.
+
+--Ah! que verdade, principe! Não pôe na sua ideia o que eu tambem tenho
+aturado a esta sucia! Já despedi por duas vezes toda a creadagem. Que
+gente tão estupida! Anda uma pessoa a ralhar com elles de manhã até á
+noite.
+
+--E... stá claro! Gosto de ver um lacaio que não fure paredes, observou
+o principe, satisfeito, como aliás succede aos velhos, de que lhes
+escutem com respeito a tagarelice,--é até a principal qualidade de
+qualquer lacaio,... uma to... leima sincera... em certas occasiões.
+Incute-lhes uma certa imponencia... solemnidade! N'uma palavra, é mais
+distincto, e eu, a primeira qualidade que exijo a um serviçal é a
+distincção. É por isso, que conservo o Tarenty, estás lembrado do
+Tarenty, meu amigo? Assim que o vi, percebi-lhe a vocação: Has de ser
+porteiro. É phe... e-nome-nalmente es... tupido. Com aquelles olhos de
+carneiro mal morto: Mas que boa presença! que solemnidade! Em pondo a
+gravata branca, faz um figurão! Gosto d'elle deveras! Eu, ás vezes,
+ponho-me a olhar para elle, e não me canço de o ver: ali onde o vêem,
+está escrevendo um livro... É um verdadeiro philosopho a... al... lemão, o
+proprio Kant, ou antes, um, perú gordo e bem comido, um ser incompleto,
+tal qual cumpre a todo e qualquer se... er... viçal.
+
+Maria Alexandrovna ri ás gargalhadas e bate palmas; Pavel Alexandrovitch
+faz côro: acha immensa graça ao tio. A Nastassia Petrovna ri tambem; e a
+propria Zina dá um ar de riso.
+
+--Mas que graça, principe! que alegria! exclama Maria Alexandrovna. Que
+preciosa faculdade de observar ridiculos... E desappareceu o senhor da
+sociedade! Privar assim de um talento o mundo durante cinco annos
+inteiros!... Mas podia até escrever comedias, principe! Podia muito bem
+restituir-nos Visine, Griboiedov, Gogol!
+
+--É verdade, é verdade!... confirma encantado o principe... eu podia
+restituir... Quer crêr? Eu d'antes tinha muita graça, até escrevi para o
+theatro um vô... ô... deville. Com umas coplas que eram uma delicia! Por
+signal que nunca foi representado.
+
+--Que pena! Como havia de ser divertido? Sabes o que te digo, Zina, que
+vinha mesmo a proposito. Nós, justamente, principe, andamos a combinar
+umas récitas de amadores com um fim de beneficencia patriotica, em favor
+dos feridos... Vinha mesmo ao pintar o seu vaudeville.
+
+--E... stá claro, estou prompto a escrevêl-o. De mais a mais, já nem me
+lembra uma palavra, mas tenho de memoria um ou dois trocadilhos que...
+(O principe beija as pontas dos dedos.) Eu, em geral, quando estava no
+estrangeiro... fazia um verda... deiro _furor_... Lembro-me de mylord
+Byron... fomos muito intimos... Dansava á maravilha a krakoviak no
+congresso de Vienna...
+
+--Mylord Byron, meu tio? Ora vamos, que está para ahi a dizer!
+
+--Está claro!... Byron. E d'ahi, talvez fosse outro. Exactamente, era um
+polaco, lembro-me agora muito bem; um grande original, o tal polaco!
+Intitulava-se conde, e porfim, veiu-se a saber que era cozinheiro.
+
+Mas dansava lindamente a krakoviak. Quebrou uma perna. Foi n'essa
+occasião, até, que lhe fiz estes versos:
+
+ O nosso conde polaco
+ Dansava a krakoviak
+
+E d'ahi... já me esqueceu... ah!
+
+ Desde que partiu a perna,
+ Nunca mais pôde dansar.
+
+--Sim, sim, deve de ser isso, rico tiozinho! exclama Mozgliakov, pôdre de
+riso!
+
+--Está c-claro! Quer-me parecer que seria isto ou coisa que o valha. E
+d'ahi é possivel que não seja. O que lhes sei dizer é que os versos me
+saíram muito bons. Escapam-me certas coisas, tenho tanto que fazer!
+
+--Mas, não me dirá, principe, pergunta com muito interesse Maria
+Alexandrovna, em que é que se occupa n'aquella sua solidão? Lembrava-me
+tanta vez do principe! Estou a arder de impaciencia por saber tudo por
+miudos...
+
+--Em que é que me occupo! Ora essa... immensa coisa em que me occupar...
+em geral. Umas vezes descanso, outras vezes dou o meu passeio... a
+imaginar cá umas coisas...
+
+--Deve de ter muita imaginação, rico tiozinho.
+
+--Muita, meu caro. Ás vezes, acontece-me imaginar coisas de que eu
+proprio fico pasmado. Quando eu estava em Kadnievo... A proposito, tu
+não foste vice-governador em Kadnievo?
+
+--Eu, tiozinho? Que está dizendo! Pelo amor de Deus! exclama Pavel
+Alexandrovitch.
+
+--E eu a confundir-te com elle...
+
+E dizia eu commigo: Por que será que elle está tão mudado?... Porque o
+outro tinha uma phisionomia imponente, espirituosa... um homem
+extra-a-ordina... ria... mente intelligente. Compunha sempre versos... a
+proposito... De perfil, era tal qual um rei de copas.
+
+--Acredite, principe, interrompeu Maria Alexandrovna, essa vida ha de
+deitál-o a perder, lhe juro eu! Encerrar-se durante cinco annos n'um
+ermo! Não ver, não ouvir pessoa alguma!... Sabe o que lhe digo, o
+principe é um homem perdido! Pergunte a algum dos seus amigos, que lhe
+sejam fieis, e todos lhe dirão isto mesmo: é um homem perdido!
+
+--De... de... vé-éras? arrasta o principe.
+
+--Com certeza... Digo-lh'o como se fôra uma irmã, porque sou muito sua
+amiga,--pois que as recordações do passado, para mim são sagradas. Que
+interesse poderia eu ter em o enganar? Nada, nada, é preciso
+absolutamente mudar de vida, aliás, não resiste?...
+
+--Valha-me Deus! pois eu hei de morrer, assim, tão depressa? exclama o
+principe, assustadissimo. E caso é que adivinhou: as minhas humorroides
+dão cabo de mim, e ha uns tempos para cá, principalmente... e quando me
+atacam as crises, tenho sin-tó-ó-mas es... espan... tosos... Eu já lhe
+vou contar tudo... por miudos...
+
+--Deixe lá, tiozinho, contará isso tudo, para outra vez. Agora, não será
+tempo de irmos dar o nosso passeio?
+
+--Pois, sim, vá lá, ficará para outra vez; e d'ahi talvez não
+interésse... Mas com tudo isso... é uma doença... extrê-ê-mamente
+interessante. Com uma tal variedade de episodios! Vê se me lembras, meu
+caro, contar esta noite, com todos os pormenores, uma certa
+particularidade das humorroides.
+
+--Ora, escute, principe, atalhou ainda Maria Alexandrovna. Devia ir ao
+estrangeiro, para ver se se curava.
+
+--É isso, é! Ao estrangeiro, absolutamente. Lembro-me de que, ahi por
+1820, a gente divertia-se im-men-sa-mente no estrangeiro. Estive para
+casar com uma viscondessa, e era francêsa. Eu estava apaixonado por
+ella, e queria consagrar-lhe toda a minha vida. Que ella, aliás, casou
+com outro... Caso exquisito!... Tinha estado em casa della não havia
+ainda duas horas, e foi n'este meio tempo que um barão allemão a
+conquistou. Veiu a acabar n'um hospital de doidos.
+
+--Mas, caro principe, estavamos falando na sua saúde, e dizia-lhe eu que
+devia pensar n'isso muito a sério. Ha grandes medicos lá pelo
+estrangeiro. De mais a mais a mudança de ar, já por si, é
+importantissima. Terá que renunciar a Dukhanovo, por uns tempos, quando
+menos.
+
+--Abso-o-lu-tamente! Já me conformei, tenciono tratar-me pela
+hy-dro... the... rapia.
+
+--Pela hydrotherapia?
+
+--Está claro! Foi isso mesmo que eu disse, pela hy... dro... the... rapia.
+Já me tratei pela hy... drotherapia. Estava eu nas aguas. Tambem lá
+estava uma senhora de Moscou, varreu-se-me o nome, uma mulher muito
+poetica, com setenta annos, ou coisa assim; tinha uma filha com uns
+cincoenta annos, e com uma belida n'um olho. Falavam ambas sempre em
+verso. Aconteceu-lhe um desastre! N'um fogacho de genio, matou o criado.
+Teve seus da-res e to... mares com a justiça. E como eu ia dizendo,
+puzeram-me no regimen da agua; que eu, ainda assim, não estava doente:
+mas se não faziam senão dizer-me "Trate de si! trate de si!" E eu, por
+delicadeza, puz-me a beber a agua e, effectivamente, senti allivio.
+Bebi, bebi, e tornei a beber! Acho que bebi um lago inteiro... É optima
+coisa a tal hy-dro-the-rapia. Dou-me muito bem. Eu, se não tivesse caído
+de cama, tinha passado lindamente.
+
+--Lá isso é verdade, rico tio. Ora dize-me, rico tio, aprendeste
+logica?
+
+--Valha-o Deus! Que pergunta? observa Maria Alexandrovna, escandalizada.
+
+--Está c-claro, meu amigo... ha muito tempo, aqui para nós. Estudei
+philosophia, na Allemanha. Frequentei os cursos todos mas d'ali a pouco
+esqueceu-me tudo... Mas... confesso, metteu-me um tal susto no corpo com
+as taes do... enças que... fiquei atarantado... Eu volto já. Dêem-me
+licença!
+
+--Aonde vae, principe? exclama, pasmada, Maria Alexandrovna.
+
+--Não tardo aqui. Não me demoro... Vou apenas... assentar um
+pensamento... Até já...
+
+--Que tal lhe pareceu? exclama Pavel Alexandrovitch, á gargalhada.
+
+Maria Alexandrovna perde de todo a paciencia.
+
+--Eu não o entendo, na verdade, não posso comprehender de que é que se
+ri!--começa ella com animação. Rir de um ancião respeitavel, de um
+parente! Rebentar a rir a cada palavra que elle solta da bôcca! Abusar
+d'aquella bondade evangelica! Tenho até vergonha de o ouvir, Pavel
+Alexandrovitch! Mas não me dirá o que é que lhe encontra de ridiculo?
+Ainda não fui capaz de lhe notar o lado ridiculo.
+
+--Mas se nunca conhece ninguem, se não faz senão metter os pés pelas
+mãos!
+
+--Ahi tem as consequencias do tal sequestro de cinco annos entregue á
+guarda d'aquella megéra! Devemos antes ter dó d'elle, em vez de rirmos á
+sua custa. Veja lá, nem a mim mesmo me conheceu, até! O senhor foi
+testemunha. Pois não é terrivel! É preciso salvá-lo. Eu, se lhe propuz
+ir ao estrangeiro, foi na esperança de que se resolva a largar de mão
+aquella... regateira.
+
+--Sabe o que lhe digo, é preciso casál-o, Maria Alexandrovna.
+
+--E o senhor a dar-lhe! É incorrigivel, senhor Mozgliakov.
+
+--Não sou, acredite, Maria Alexandrovna, eu, d'esta vez, estou falando
+até muito a sério. Por que é que o não havemos de casar? É uma ideia
+como outra qualquer. Em que é que isso o pode prejudicar? No estado a
+que elle chegou, é um expediente que o pode salvar, creio eu. A lei
+ainda lhe permitte casar. D'esse modo, vê-se livre d'aquella
+desavergonhada, desculpe a expressão. Escolherá para ahi qualquer
+menina, ou qualquer viuva honesta, intelligente, carinhosa e pobre,
+sobretudo, que não deixará de o tratar como filha e que comprehenderá
+que lhe deve ser grata. Que coisa melhor lhe poderia acontecer? Um
+coração terno e fiel, em vez d'aquella... moita! Está claro que convem
+que seja bonita, pois o tio professa ainda o culto da belleza. Não viu
+os olhos que elle deitava á Zinaida Aphanassievna?
+
+--E onde irá desencantar semelhante ideal? pergunta Nastassia Petrovna
+toda ella ouvidos.
+
+--Não está má pergunta? A senhora, por exemplo, sem irmos mais longe...
+se me dá licença, perguntar-lhe-hei por que é que não ha de casar com o
+principe? Primeiro e segundo, porque é bonita, e viuva, ainda por cima.
+Terceiro, por que é fidalga. Quarto, por que é honestissima. Ha de
+amá-lo, amimá-lo, pôr na rua a tal carcereira, carregar com o principe
+para o estrangeiro, dar-lhe papinha e goloseimas... tudo isto até que
+chegue o dia em que elle diga adeus a este mundo de amarguras, o que
+tardará para ahi um anno, quando muito, ou um mez ou dois, quem sabe;
+depois fica sendo princesa, viuva, rica e, para compensar o trabalho,
+casa para ahi com um marquez qualquer, ou um general. É bonito, pois não
+acha?
+
+--Ai! Deus meu! Que amor eu lhe havia de ter, por gratidão, quando por
+mais não fosse, se elle pedisse a minha mão! exclama Madame Ziablova.
+
+Os olhos feriram-lhe lume, até.
+
+--Mas, isso sim!... são sonhos!...
+
+--Sonhos? Tem empenho em que se realisem? Experimente, peça-me que lhe
+alcance essa pechincha. E corto desde já este dedo se hoje mesmo não fôr
+noiva do principe. Não ha nada mais facil do que persuadir o meu tio.
+Diz sempre a tudo, que sim. A senhora bem o ouviu, ha boccado. Casamol-o
+sem elle dar por isso. Enganamol-o, é verdade, mas se é para seu bem,
+pois não acha? Em todo o caso, a senhora do que devia tratar era de ir
+arranjando uma _toilette_ á altura das circumstancias, Nastassia
+Petrovna.
+
+A animação de Mozgliakov transforma-se em enthusiasmo. A Madame
+Ziablova, com o seu tino todo, está-lhe a crescer até agua na bôcca.
+
+--Eu bem sei; nem é preciso que m'o lembre, que estou para aqui uma
+trapalhona... Pareço até uma cozinheira, pois não pareço?
+
+Maria Alexandrovna está com um cara de palmo. Afoito-me a affirmar que
+ouviu a proposta de Pavel Alexandrovitch com uma pontinha de terror.
+Quer sim quer não, teve mão em si.
+
+--Tudo isso é muito bonito, mas é um chorrilho de futilidades sem pés
+nem cabeça, e que não vem nada a proposito! disse, com sequidão,
+dirigindo-se ao Mozgliakov.
+
+--Então por quê, minha querida Maria Alexandrovna? Por que é que diz que
+são futilidades fóra de proposito?
+
+--O senhor está em minha casa, e o principe é meu hospede. Não consinto
+que ninguem se esqueça do respeito que se deve á minha casa! Tomo as
+suas palavras como mera brincadeira, Pavel Alexandrovitch; mas, ahi vem
+o principe, graças a Deus!
+
+--Eu... c... cá... es... tou, guincha o principe ao entrar. É espantoso,
+querida amiga,... que fecundidade com que acordou hoje este m... meu
+espirito! Ás vezes--talvez não acredites--mas acontece-me estar um dia
+inteiro sem me accudir um pensamento a esta cabeça...
+
+--Seria a tal queda d'inda agora que lhe abalou os nervos...
+
+--Tambem me quer parecer, meu amigo, ach... acho util, até, o tal
+accidente, tanto assim que estou resolvido a perdoar ao meu Pheophilo.
+Queres que te diga?--Palpita-me que não premeditará attentar contra os
+meus dias. E demais... já está bem castigado, cortaram-lhe as barbas.
+
+--Cortaram-lhe as barbas!--Que me diz? Elle, que tinha umas barbas mais
+compridas que um principado allemão.
+
+--Es... tá c-claro!... sim... um principado. Em geral, meu amigo, são
+muito acertadas as tuas conclusões. Mas as barbas d'elle são postiças.
+Ora imaginem: Mandaram-me um catalogo: acabam de chegar do estrangeiro
+umas optimas barbas quer para cocheiros quer para gentlemen: suissas,
+barbas á hespanhola, pêras á império, etc.; tudo de primeira qualidade,
+por preços muito mó-mó-di... cos. E eu, então, encommendei umas barbas
+para cocheiro. Mandaram-m'as: Ma-a... gnificas! Mas a do Pheophilo era
+duas vezes mais comprida. E eu muito atrapalhado: que hei de eu fazer?
+Recambiar as barbas postiças, ou mandar rapar as do Pheophilo? Reflecti
+maduramente e resolvi em favôr das barbas postiças.
+
+--Prefere a arte á natureza, rico tiozinho?
+
+--Pois está claro!... E que desgosto que elle teve quando se viu de cara
+rapada. Cada pêllo que lhe cortavam era um dia de vida que lhe tiravam.
+Mas não serão horas de sair, meu caro?
+
+--Estou ás suas ordens, tio.
+
+--Principe, ouso esperar que só irá a casa do governador! exclamou Maria
+Alexandrovna, muito sobresaltada. O principe, _pertence-me_, faz parte
+da minha familia, por todo o dia. Escusado é dizer, que não tenho nada
+que ensinar-lhe, pelo que diz respeito a Mordassov. Talvez queira ir
+fazer a sua visita á Anna Nikolaievna, e não tenho direito de o
+dissuadir de dar semelhante passo. Tanto mais que estou persuadida de
+que a sua propria experiencia lhe servirá de guia. Lembre-se de que,
+hoje, sou sua irmã, sua mãe e sua aia por todo o dia... Ah! Estou toda a
+tremer por sua causa, principe!... O principe não conhece esta gente,
+não conhece, digo-lho eu... Não, que elle é preciso tempo para os
+conhecer.
+
+--Deixe o caso por minha conta, Maria Alexandrovna, disse Mozgliakov;
+tudo se passará conforme lhe prometti.
+
+--Entregar-me nas suas mãos, eu?... O senhor é um estouvado? Cá o espero
+para jantar, principe. Costumamos jantar cedo. Que pena que eu tenho de
+que, n'esta occasião, meu marido esteja no campo! Havia de gostar tanto
+de o ver! Estima-o tanto! Dedica-lhe tão sincera amizade!
+
+--Seu marido?--Com que então,... tem marido?--
+
+--Valha-me Deus! Que pessima memoria é a sua, principe? Pois esqueceu o
+passado a esse ponto? E meu marido, o Aphanassi Matveich, querem ver que
+tambem se não lembra d'elle? Está no campo, mas o principe, em tempos,
+viu-o, até, muita vez. Veja lá se se lembra; o Aphanassi Matveich?
+
+--Aphanassi Matveich! No campo? Ora vejam lá! Mas é delicioso! Tem então
+marido! Que ratice! Existe um vô... ô... de ville versando sobre o mesmo
+assunto: _O marido á porta e a mulher na_... Conceda-me licença!... já
+me não lembro lá muito bem... a mulher safa-se para Tula... ou para
+Yoroslav!...
+
+_O marido á porta e a mulher em Tver_, rico tio, sopra-lhe o Mozgliakov.
+
+--Está c-claro, sim, é isso! Obrigado, caro amigo, exa... cta...
+mente... em Tver... É um encanto... um en... can... to... É assim,...
+é!... a mulher em Koxtroma... quero dizer... em conclusão... safou-se...
+Um encanto! um encanto! Mas já não sei o que é que eu ia dizendo!... Ah!
+sim! vamo-nos embora, hein? Até á vista! minha rica senhora! Adeus...
+minha linda menina!
+
+O principe beija as pontas dos dedos á Zinaida.
+
+--O jantar! O jantar, principe!
+
+--Demore-se o menos que puder! brada Maria Alexandrovna deitando a
+correr atráz d'elle.
+
+
+
+
+V
+
+
+--Nastassia Petrovna, não seria mau ir deitar a sua rabisáca pela
+cozinha, disse ella apóz de haver acompanhado o principe. Palpita-me que
+aquelle traste do Nikitka é capaz de se tomar da pinga e deita-nos a
+perder o jantar.
+
+Obedeceu Nastassia Petrovna. Á saída, olhou para Maria Alexandrovna e
+percebeu que estava animadissima a digna senhora. Em vez de ir vigiar o
+tratante do Nikitka, Nastassia Petrovna dirige-se a uma saleta contigua,
+d'alli, enfiando pelo corredor, vae ao quarto, e esgueira-se para um
+cubiculo de despejos, atulhado de bahús, de vestidos velhos e de roupa
+suja de toda a familia. Nos bicos dos pés, acerca-se de uma porta
+fechada, sustendo a respiração, e espreita pelo buraco da fechadura:
+Aquella porta é uma das três que abrem para a sala (está condemnada).
+Maria Alexandrovna sabe que a Nastassia Petrovna é velhaca, pouco
+delicada, de poucos escrupulos, e muito capaz de escutar ás portas.
+N'este momento, comtudo, Madame Moskalieva está tão preoccupada, que se
+descuida de toda e qualquer cautélla.
+
+Senta-se n'uma poltrona e despede significativa olhadela á Zina. E a
+Zina a sentir o pêso d'aquelle olhar. Dá-lhe um pulo o coração!
+
+--Zina!
+
+A Zina volta com muito vagar para a mãe o descorado semblante e aquelles
+olhos sonhadores.
+
+--Zina, tenho que te falar em negocio importante.
+
+Está de pé a Zina; cruza os braços e espera. Deslisa-lhe pelo semblante
+expressão fugaz de despeito e de ironia.
+
+--Quero perguntar-te qual é a tua opinião a respeito d'este tal
+Mozgliakov?
+
+--Está farta de saber a conta em que o tenho, responde a Zina com modo
+constrangido.
+
+--Pois sim, filha, mas está-me parecendo que se vae tornando um tanto ou
+quanto impertinente, atrevido; e em conclusão, aquella sua
+insistencia...
+
+--Diz elle que me ama; se assim fôr, acho perdoavel a sua insistencia.
+
+--Admiro-me de uma circumstancia: tu, d'antes, não o desculpavas, assim,
+tanto;... antes pelo contrario, eras, até, muito rispida para com elle,
+sempre que eu a elle me referia.
+
+--E a mim, o que me causa admiração é outra circumstancia: A mamã,
+d'antes, estava sempre a defendêl-o, e é agora a propria a condemnál-o.
+
+--Confesso que me sorria este casamento. Custava-me vêr-te assim sempre,
+tão triste.--Avaliava bem a tua tristeza,--pois sou capaz de a
+comprehender, seja qual fôr o juizo que faças a meu respeito.--Chegou
+até a tirar-me o somno! Em summa, estou convencida de que só uma mudança
+radical na tua vida te poderia salvar, e essa mudança, ha de ser o
+casamento. Não somos ricos, não podemos ir dar a nossa volta pelo
+estrangeiro. Os asnos que povoam esta cidade espantam-se de te ver ainda
+solteira aos vinte e três annos e inventam fabulas a tal respeito. Mas
+poderei eu dar-te por marido para ahi um conselheiro d'esta estupida
+cidade ou o Ivan Ivanovitch, nosso procurador? Haverá por aqui marido á
+altura dos teus merecimentos? É certo que o Mozgliakov é apenas um
+peralvilho, e com tudo isso, de todos elles, é ainda o mais acceitavel.
+É de boa familia, dôno de cincoenta mil almas: sempre valerá mais que um
+procurador que vive de propinas e á custa Deus sabe de que
+tranquibernias. E eis o motivo porque me lembrei d'elle. Tanto menos
+verdadeira simpathia me merecia, e tanto mais me convenço hoje de que
+era o Suprêmo Senhor quem me enviava semelhante desconfiança como
+advertencia. Pensa bem! Se porventura se offerecesse agora um partido
+mais vantajoso, não serias tu a propria a louvar-me de não ter até hoje
+dado a tua palavra a ninguem? Pois, ouso crer, Zina, que tu hoje, nada
+lhe terás dito de positivo.--Pois não é verdade?
+
+--Para que servirão tantos rodeios, mamã? quando podia muito bem ter-me
+dito tudo isso em duas palavras, replica a Zina com modo resoluto.
+
+--Rodeios, Zina! Serão coisas que se digam a tua mãe? Ah! Vejo que de
+modo nenhum te mereço confiança! Consideras-me como inimiga muito mais
+do que como mãe!
+
+--Acabemos com isto, minha mãe. Parece-lhe bonito ficarmos para aqui a
+fazer questão de palavras? Não estaremos fartas de nos conhecermos uma á
+outra?
+
+--Repara em que me estás offendendo, minha filha. Pois não vês que estou
+resolvida a tudo, a tudo, comtanto que tu sejas feliz?
+
+A Zina põe-se a olhar para a mãe com aquella singularissima expressão de
+despeito e ironia.
+
+--Não estará morrendo por que eu case com o principe para complemento da
+minha ventura? pergunta a joven com extranho sorriso.
+
+--Nem sequer te disse uma palavra a semelhante respeito, mas visto que
+isso veiu á teia, dir-te-hei que, se fosse possivel, representaria para
+ti a felicidade, effectivamente.
+
+--Pois eu acho isso pueril, exclama a Zina toda assommada, pueril,
+pueril e mais que pueril! e acho, ainda, que a mamã é dotada de
+excessiva imaginação: é uma mulher poetica; e tanto mais que é assim que
+a classificam em Mordassov. Está sempre a fazer planos. Nem lhe mettem
+medo impossibilidades. Assim que vi o principe, tive um presentimento,
+de como não deixaria de lhe accudir semelhante ideia. Quando o
+Mozgliakov mettia o caso a ridiculo e pretendia que era urgente casál-o,
+li no semblante á mamã o pensamento. E d'ahi, foi para me falar n'esse
+jarreta que a mamã principiou por se referir ao Mozgliakov. Mas esses
+seus sonhos aborrecem-me de morte, não sei se sabe? E peço-lhe que
+fiquêmos por aqui!... Nem mais uma palavra, entendeu, mamã? Nem mais uma
+palavra! Peço-lhe que tome a serio isto que acaba de ouvir da minha
+bocca.
+
+--És uma criança, Zina, uma criança doente, e com mau genio! responde
+Maria Alexandrovna em voz meliflua; e estás-me faltando ao
+respeito.--Offendes-me! Não ha mãe que aturasse o que eu te tenho
+aturado! Mas padeces, e eu acima de tudo sou christã. Vou aturando, e
+perdôo-te. Responde-me a uma pergunta, só e mais nada, Zina. Vamos que
+eu, effectivamente, tivesse sonhado semelhante alliança, onde é que está
+a puerilidade?--Quanto a mim, nunca o Mozgliakov falou com tanto acerto
+como ainda agora, quando tentava demonstrar que o casamento é uma
+necessidade para o principe. O disparate era o ter-se lembrado d'aquella
+fufia da Nastassia.
+
+--Mamã, declare-me com franqueza, se me está dizendo isso por méra
+curiosidade ou com um fim qualquer.
+
+--Peço-te que me respondas: onde vês tu n'isto puerilidade?
+
+--Que aborrecimento! Triste sorte é a minha! exclama a Zina a bater o
+pé. Vou dizer-lh'o, se é que ainda o não percebeu: aproveitar o ensejo
+d'esse velho se achar caído em demencia para o enganar, para o desposar,
+assim, enfermo e caduco, para lhe extorquir o dinheiro e andar todo o
+santo dia a desejar-lhe a morte, representa, a meu vêr, não só uma
+puerilidade, mas uma vilania, e não serei eu quem lhe dê os parabens por
+semelhante ideia, mamã.
+
+Silencio.
+
+--Zina, já te esqueceste d'aquillo que se passou ha dois annos? pergunta
+de chofre Maria Alexandrovna.
+
+Estremece a Zina.
+
+--Mamã, profere com accentuada seriedade, lembre-se de que me prometteu
+não me tornar a falar em semelhante coisa.
+
+--Pois bem, minha filha--que eu até hoje ainda não tornei a dizer-te uma
+palavra--peço-te que por uma vez tão somente me desligues da minha
+promessa. Zina! Soou a hora de uma franca explicação. Foram mortaes
+estes dois annos de silencio! Isto assim não pode continuar!... Estou
+prompta a supplicar-te de joelhos que me permittas falar. Entendes,
+Zina, é a tua propria mãe que cae de joelhos a teus pés! E
+demais--dou-te a minha palavra solemne--a palavra de uma mãe desgraçada
+que adora a propria filha--seja qual for o pretexto, em circumstancia
+alguma d'este mundo, com risco até da propria vida, de nunca mais abrir
+a bocca a tal respeito.
+
+--Fale! diz Zina, muito enfiada.
+
+Maria Alexandrovna calculou optimamente o lance.
+
+--Obrigada, Zina. Ha dois annos, pois, que frequentava esta casa, por
+causa do teu irmãozinho, do Mitra, que Deus tem, um _utchitel_.
+
+--Mas para que foi que a mamã assumiu esses modos tão solemnes, para que
+estará a desperdiçar toda essa eloquencia, esses pormenores tão
+escusados e penosos que ambas estamos fartas de conhecer? interrompeu a
+Zina com enfado.
+
+--Porque a mim, que sou tua mãe, Zina, me assiste o dever de me
+justificar a teus olhos. E demais, quero apresentar-te este negocio,
+todo elle, sob uma luz nova para ti e que é a unica verdadeira. Emfim,
+sem estas promessas, não poderias comprehender a conclusão que d'ellas
+pretendo deduzir. Não creias, minha filha, que intento fazer pouco dos
+teus sentimentos. Não Zina, has de encontrar em mim uma verdadeira mãe,
+e quem sabe se não serás tu a propria a cair-me aos pés, lavada em
+lagrimas, a supplicar-me que conclua essa reconciliação á qual o teu
+orgulho se nega ha tanto tempo. Tenho pois que recapitular as coisas
+desde o principio, ou calar-me.
+
+--Fale, repetiu a Zina, a maldizer de todo o coração a grandiloquencia
+maternal.
+
+--Continúo, Zina. Esse tal _utchitel_ da escóla communal, um fedêlho,
+por assim dizer, produziu em ti inconcebivel impressão. Contei sempre
+com que o teu sizo, a elevação dos teus sentimentos e tambem a
+indignidade do individuo, (visto que é preciso dizer tudo) evitariam
+qualquer approximação entre tu e elle. E de repente, vens ter commigo e
+declarar-me com firmeza que tens tenção de casar com elle. Foi uma
+punhalada que me déste no coração, Zina! Soltei um grito e caí sem
+sentidos, mas... não deixarás de te lembrar do incidente. É certo que
+julguei necessario empregar n'aquella occorrencia toda a minha
+auctoridade: e por signal que a acoimaste de tyrannia. Reflécte, pois:
+um garotête, filho d'um _diatchok_,[4] com um salario de doze rublos
+mensaes, um escrevinhador de máus versos que lhe imprimem por dó na
+_Bibliothéca de Leitura_, que não sabe falar em outra coisa a não ser
+n'esse maldito Shakspeare,--aquelle fedêlho, teu marido! marido da
+Zinaida Moskalieva! São coisas que só acontecem nas novéllas pastorís de
+Florian. Perdão, Zina, mas quando me lembro de tal, saio fóra de mim!
+Neguei-me a consentir. Não houve influencia que conseguisse
+convencer-te. Teu pae, naturalmente, manteve-se na neutralidade, incapaz
+de comprehender-me quando tentei expor-lhe o caso e sem saber fazer
+outra coisa além de pestanejar. Mantens relações com esse garoto,
+proporcionas-lhe até ensejo de te ver, e o que é ainda muito peor que
+tudo isso, tens o arrojo de lhe escrever! E as más linguas desde logo a
+trabalhar! Fazem allusões offensivas na minha presença. Estão a pular de
+contentes, a embocar as mil trombetas da calumnia. As minhas
+antecipações a semelhante respeito vão se realizando uma por uma. Dá-se
+entre ti e elle um desaguizado e elle manifesta-se indigno de ti.
+Ameaça-te de mostrar as tuas cartas, e tu, num assômo de justa
+indignação, dás-lhe uma bofetada!... Sim, Zina, conheço tambem essa
+circumstancia, estou inteirada de tudo--de tudo, sim! Esse traste,
+n'esse mesmo dia, mostra uma das tuas cartas áquelle miseravel do
+Zanchine, e, d'alli a uma hora a carta está em poder da Natalia
+Dmitrievna, minha inimiga figadal! Á noite, aquelle, doido, arrependido
+já de semelhante acção inqualificavel, por toleima tenta envenenar-se!
+N'uma palavra, um escandalo medonho! Aquella pécora da Nastassia accode
+toda assustada, a participar-me que ha uma hora que a Natalia Dmitrievna
+se acha de posse da tua carta: não se passarão duas horas, sem que a
+cidade em pêso apregôe para ahi a tua vergonha. E eu a esticar os nervos
+para não caír para ali inanimada. Que lance, Zina! Aquella descarada,
+aquella desavergonhada!
+
+A Nastassia exige duzentos rublos para inutilizar a carta. Eu propria,
+deito a correr, com os sapatos de trazer por casa, até, atravéz da neve,
+para ir a casa do judeu Bumschtein empenhar o meu abrochador, recordação
+da minha virtuosa mãe! D'alli a duas horas tinha a carta em meu poder:
+roubou-a a Nastassia: arrombou uma boceta e está salva a tua honra. Nem
+vestigios, sequer! Mas que dia de angustias! Logo ao outro dia,
+encontrei entre os meus cabellos immensos fios brancos,--os primeiros,
+Zina! Tu foste a propria a avaliar até que ponto era indigno de ti
+aquelle garoto, pois concordas agora, não sem amargura, talvez, que
+teria sido uma loucura entregar-lhe o teu destino. Depois, comtudo,
+pégas a atormentar-te, a soffrer, não podes varrêl-o da lembrança,--não
+a elle,--foi sempre coisa tão rasteira que a tua vista nem sequer podia
+deter-se n'elle,--mas ao teu primeiro sonho de amor. Hoje, esse
+desgraçado está a expirar--nem sequer já se levanta.--Dizem que morre
+tisico, e tu--anjo de bondade,--não queres casar emquanto elle fôr vivo;
+para lhe poupar soffrimento, visto que é ciumento... e não obstante,
+nunca te teve amor, tenho a certeza, amor sincero, elevado! O que o não
+impede de espionar os passos do Mozgliakov, de te rondar a casa, de
+tirar indagações...--Tens dó delle, minha filha, adivinhou-te o meu
+coração, e Deus sabe as lagrimas amargas que me tem encharcado o
+travesseiro.
+
+--Veja se acaba com tudo isso, mamã! atalhou Zina com enfado. O seu
+travesseiro não vem cá fazer coisa nenhuma! Não poderá falar com
+singeleza?
+
+--Não me acreditas, Zina! Não me trates tão mal, minha filha! Já lá vão
+dois annos, e não faço outra coisa senão chorar, mas tenho-te encoberto
+as minhas lagrimas, Zina, durante esses dois annos mortaes!... Ha muito
+tempo que conheço os teus sentimentos. Medi todo o alcance da tua magua.
+Poderá alguem lançar-me em rosto, minha querida, o haver considerado
+semelhante ligação como uma phantasia romanesca, nascida sob a
+influencia do tal maldito Shakspeare? Qual seria a mãe que condemnasse
+os alvitres de que tenho lançado mão e achasse rigoroso em demasia o
+modo por que avalio este caso? E comtudo, a mim propria represento o teu
+longo padecer, comprehendo e apprecio a tua sensibilidade. Acredita:
+comprehendo-te melhor, talvez, do que te comprehendes a ti propria.
+Estou certa de que o não amas, a esse garoto ridiculo: a quem tu amas é
+ao teu sonho, á tua ventura mallograda, ao esvair das tuas illusões. Eu
+tambem amei, não cuides que não, e com mais excesso de paixão do que tu;
+tambem eu padeci; tinha tambem as minhas illusões!... Não falo pois sem
+experiencia, e se affirmo que uma alliança com o principe representaria
+para mim a salvação, mereço talvez que me dêem ouvidos.
+
+A Zina ouviu com espanto aquella estirada declaração, farta de saber que
+a mamã nunca assume aquelle tom pathetico sem designio occulto. E
+comtudo, a conclusão deixa confundida a joven.
+
+--É pois a sério, que fala em casar-me com o principe? exclama pasmada a
+considerar a mãe que assumiu attitude majestatica; não é então uma
+hypothese, como se dissessemos? É tenção firme e assente, pelo que vejo?
+Mas... como é que poderia salvar-me semelhante casamento? E... e... que
+relação terá tudo isso com o que acaba de expôr-me, com essa historia
+toda?... Declaro que a não percebo, mamã.
+
+--E a mim, meu anjo, espanta-me que o não percebas! exclama Maria
+Alexandrovna, com subita animação. Primeiramente, o facto só por si de
+teres de transferir-te para outra sociedade, para um mundo differente;
+de teres de dizer adeus de uma vez para sempre a esta nojenta cidade das
+duzias, semeada para ti de tão temiveis recordações, á qual te não
+prende a minima affeição, onde te assacaram calumnias, onde essa sucia
+de pêgas te detestam por causa da tua formosura, esse facto só por si,
+repito, é já capital. E depois, podes, ainda esta primavera, ir para o
+estrangeiro, para a Italia, para a Suissa, para a Hespanha,--Zina--para
+a Hespanha, onde irás ver a Alhambra, o Guadalquivir! Não estarás farta
+d'este immundo riacho de Mordassov, com aquelle seu nome inconveniente?
+
+--Mas se me dá licença, mamã! está falando como se eu já estivesse
+casada, ou pelo menos como se o principe me tivesse já pedido em
+casamento...
+
+--Lá quanto a isso não te dê cuidado, meu anjo, sei o que estou dizendo.
+Deixa-me continuar. Eu disse _primeiramente_, e ahi vae o segundo ponto:
+Comprehendo, minha filha, quanto te contraría o dares a mão de esposa a
+este Mozgliakov...
+
+--Sei muito bem, nem preciso de que m'o digam--que nunca serei sua
+mulher! interrompeu Zina com arrebatamento.
+
+--Se tu soubesses, meu amor, como eu avalio essa repugnancia! É terrivel
+o ter que jurar perante o altar de Deus amor e fidelidade áquelle a quem
+se não pode ter amor! É terrivel o pertencer a um homem a quem se não
+pode respeitar. E todavia, exigir-te-hia amor; foi para te possuir que
+elle casou comtigo: isso adivinha-se nos olhos que elle te deita quando
+não olhas para elle. Mas como simular perpetuamente amor? Ah! minha
+filha, aqui estou eu que ando a padecer ha vinte e cinco annos com esta
+comedia necessaria. Teu pae deitou-me a perder. Posso afirmar, até, que
+envenenou de todo a minha mocidade, e quantas vezes não terás visto
+correr as minhas lagrimas?
+
+--O papá está no campo; não esteja a atacál-o, por quem é!
+
+--Sim, tu saes sempre em sua defêsa, bem o sei... Ah! Zina!
+Confrangia-se-me o coração quando a prudencia me obrigava a desejar o
+teu casamento com o Mozgliakov! Com respeito ao principe, com esse não
+tinhas tu necessidade de representar nenhuma comedia. Escusado é dizer
+que lhe não poderás dedicar o que se chama amor. E demais, elle proprio
+é _incapaz_ de exigir semelhante amor.
+
+--Que disparate, meu Deus! E eu affirmo-lhe que se engana de meio a
+meio: não tenciono sacrificar-me,--ignoro aliás o fim com que o faria.
+Fique sabendo que não quero casar. Não casarei seja com quem fôr;
+ficarei solteira. Tem-se farto de me atormentar ha dois annos para cá,
+por causa de eu ter rejeitado quantos noivos me tem apparecido, mas não
+tem remedio senão conformar-se; não quero, já disse!
+
+--Zinotchka, não te alteres, pelo amor de Deus, sem me ouvires, meu
+amorzinho! Que cabeça tão esturrada! Consente em que eu te exponha o
+caso em conformidade com o meu modo de ver, e verás que has de vir a
+concordar commigo. O principe poderá ainda viver um anno, dois, talvez,
+mas não vae além, com certeza. Ora, mais vale ser viuva e nova do que
+velha solteirona, isto sem falarmos em que depois de elle fechar o olho
+ficas sendo princêsa, rica e livre. Minha querida, desprezas talvez
+estes meus calculos baseados na morte de um homem, mas sou mãe, e quem
+haverá ahi que condemne a minha previdencia? Em conclusão, se tu, anjo
+de bondade, ainda tens pena d'esse tal garoto, se tu, conforme eu
+suspeito, não queres casar emquanto elle fôr vivo, considera que, se
+casares com o principe, vaes resuscitar aquelle a quem amas! Se é que a
+elle lhe restam ainda uns vislumbres de bom senso, comprehenderá,
+manifestamente, que o ter ciumes a respeito do principe, seria coisa
+fora de proposito, ridiculo. Comprehenderá que não casas com este velho
+a não ser por interesse, por necessidade. N'uma palavra,
+comprehenderá... quero dizer--depois de fallecido o principe, já se
+vê,--que poderás casar segunda vez, se fôr da tua vontade...
+
+--Casar com o principe, expoliá-lo, e estar á espera de que elle morra
+para depois ir casar com o meu amante, não é assim? É muito habil; quer
+seduzir-me propondo-me... Percebo-a á legua, minha mãe, percebo-a
+optimamente. Só o lembrar-me eu de que não pode deixar de fazer alarde
+de nobres sentimentos, até, n'um negocio tão pouco limpo? Seria muito
+mais estimavel o dizer-me, singelamente: "É uma ignominia, Zina, mas é
+lucrativa; e portanto, acceita." Sequer ao menos era mais franco.
+
+--Mas que teimosia será essa tua em encarar o negocio no ponto de vista
+da trapaça, da arteirice, da cobiça? Consideras os meus calculos como
+uma soez hypocrisia; mas, em nome de quanto venéras como mais sagrado,
+onde estará a baixeza, onde a hypocrisia? Vê-te bem n'aquelle espelho:
+és formosa o sufficiente para conquistares com esses teus olhos, sem
+mais nada, um reino! E tu, tão formosa, sacrificas a um velho os teus
+melhores annos; tu, estrella magnifica, vaes embellezar-lhe o occaso da
+vida; tal qual a hera viçosa, florir na sua velhice! Está afeito á
+companhia de uma feiticeira que o sequestra lá n'um canto do mundo, e
+d'essa feiticeira, és tu, tu, Zina, quem vaes ser successora! O dinheiro
+e o titulo d'elle podem lá equiparar-se ao teu valor? Onde vês pois
+n'isto a baixeza, a hypocrisia?
+
+Nem sabes o que estou dizendo, Zina!
+
+--O dinheiro e o titulo d'elle valem mais do que eu, visto que para os
+alcançar, teria que resignar-me a casar com um enfermo. Dêmos ás coisas
+os seus nomes: é uma ignobil hypocrisia, mamã!
+
+--Pelo contrario, minha querida, pelo contrario! O caso pode até ser
+encarado de um ponto de vista superior, christão. Declaraste-me, um dia,
+em um assômo de enthusiasmo, que querias ser irmã da caridade: o teu
+coração exaltara-se de amor ao pensares nos humanos soffrimentos, outro
+qualquer amor parecia-te tibio e mesquinho. Pois bem! Se ainda queres
+acreditar no amor, acredita na dedicação, com sinceridade, tal qual uma
+creança, com candura. Dedica-te, e abençoar-te-ha Deus! Tem padecido
+este velho; é desditoso, perseguem-n'o. Conheço-o ha muitos annos e
+sempre lhe dediquei incomprehensivel simpathia, carinho, por assim
+dizer: presentia o futuro. Sê sua amiga, minha filha, seu brinquedo,
+até, se é forçoso dizêl-o, mas aquenta-lhe o coração e fál-o por amor de
+Deus! Admittamos que é ridiculo? Elle nem sequer d'isso tem consciencia.
+Não chega a ser a metade de um homem. Tem dó d'elle, tu, que és christã.
+Contrafaze-te; com força de vontade consegue-se domar a alma para
+semelhantes façanhas. Quanto não custa o pensar as chagas nos hospitaes,
+com que repugnancia se não respira o ar viciado dos lazaretos: mas não
+ha anjos que desempenham sem asco essas repugnantissimas taréfas e que
+ainda dão graças a Deus pela triste sorte que lhes coube? E ahi está o
+remedio de que tanto necessitava o teu magoado coração: uma tarefa
+heroica! Onde vês tu n'isto egoismo? Baixeza? Não me acreditas, suppões
+que estou representando uma comedia, não podes comprehender que uma
+mulher mundana, n'este meio de viver leviano, possa ter uns sentimentos
+de tanta elevação? Pois bem, não me acredites, minha filha! Desconfia do
+coração de tua mãe! mas sequer ao menos concorda em que as minhas
+palavras são sensatas e salutares. Esquece que sou eu quem te estou
+falando, fecha os olhos, volta-me as costas e põe na tua ideia que é uma
+voz misteriosa que estás ouvindo... O que acima de tudo te prende, é a
+questão de dinheiro, essa apparencia de compra e venda. Pois bem,
+rejeita o dinheiro visto que lhe tens tamanha aversão, acceita apenas o
+necessario, e o resto, dá-o aos pobres. Por exemplo, estende o teu braço
+áquelle desgraçado que está ás portas da morte.
+
+--Elle nunca acceitaria, disse a Zina, baixinho, como se estivera
+falando comsigo.
+
+--Dado o caso de que elle rejeite, lá está a mãe para o acceitar em nome
+d'elle, responde Maria Alexandrovna sentindo que conseguiu acertar-lhe
+com a corda sensivel. Acceitará sem que elle proprio o saiba. Já
+vendeste os teus brincos (presente de tua tia) para lhe accudir, ha seis
+meses, que eu bem o sei, e tambem sei que a mãe, a pobre da velha, anda
+a lavar roupa para sustentar o filho.
+
+--Dentro em pouco deixará de precisar seja do que fôr.
+
+--Comprehendo-te! apanha de relance Maria Alexandrovna, (accode-lhe
+uma inspiração, uma verdadeira inspiração.) Dizem que morre tisico:
+mas quem é que o affirma? Indaguei a seu respeito, ha dias, do
+Kalist-Stanislavitch... Pois sou a primeira a interessar-me pelo pobre
+rapaz, tambem tenho coração, Zina! E o Kalist-Stanislavitch respondeu-me
+que a doença é grave, não ha duvida, mas que, até hoje, existe apenas
+uma forte affecção dos bronchios,--tu mesmo lh'o podes perguntar. E
+accrescentou que a mudança de clima, impressões fortes, podiam curar o
+doente. Contou-me elle que, em Hespanha--e já não é a primeira vez que o
+oiço... li-o, até--ha uma ilha extraordinaria, Malaga, creio eu...
+emfim, um nome que lembra o de um qualquer vinho--onde não só os que
+padecem do peito, mas até os proprios tisicos saram de todo, graças ao
+clima. Vão ali tratar-se fidalgos, e commerciantes ricos. Que elle,
+effectivamente, a Alhambra--esse palacio encantado--as murtas e os
+limoeiros, os hespanhoes a cavallo nas mulas, não será o sufficiente a
+produzir impressão n'uma natureza de poeta? Suppões que rejeitaria o teu
+dinheiro?... Enganas-te se tens dó d'elle! A mentira é perdoavel, quando
+d'ella depende a vida. Alimenta-lhe a esperança, promette-lhe o teu
+amor, dize-lhe que casarás com elle quando enviuvares,--tudo se pode
+dizer com nobreza: tua mãe não era capaz de te dar maus conselhos,
+Zina!--Has de fazer tudo isso para o salvar e o bastante para te
+justificares. Recuperará alento assim que souber que está esperando por
+ti. Tratar-se-ha, seguirá rigorosamente as recommendações do medico, ha
+de querer resuscitar para a ventura. Se elle se curar, ainda quando não
+viesses a ser sua mulher, sequer ao menos têl-o-has salvo! e se a
+desventura o tiver mudado, se o houver tornado digno de ti, casarás com
+elle. Effectuada a cura, poderás alcançar-lhe uma situação na sociedade,
+facultar-lhe uma carreira. O teu casamento, n'estas condições,
+tornar-se-ha possivel. Hoje!... que é que os espera a ambos, se
+porfiassem em perpetrar o acto de loucura de casarem. O desprezo de toda
+a gente e a miseria.
+
+Pensas acaso que a leitura entre ambos do seu Shakspeare lhes havia de
+compensar tudo isso? Ficariam a vegetar aqui em Mordassov até que elle
+morresse, o que não tardaria, aliás. Mas se está na tua mão o
+incutir-lhe gosto pelo trabalho e pela virtude!
+
+Perdoa-lhe e adorar-te-ha. O remorso d'aquelle seu acto vergonhoso
+apavóra-o! O teu perdão tudo irá ápagar e reconciliál-o-ha comsigo
+mesmo.
+
+Passa ao serviço activo, sobe postos, e se morrer, sequer ao menos
+morrerá feliz, nos teus braços (visto que poderás achar-te a seu lado),
+seguro do teu amor, do teu perdão, á sombra das murtas e dos limoeiros,
+debaixo da cupula azul de um ceu exotico. Ah! Zina! Tudo isto se acha
+nas tuas mãos; basta que consintas em casar com o principe.
+
+Cala-se Maria Alexandrovna. Segue-se prolongado silencio. A Zina acha-se
+no auge da afflicção.
+
+Não nos abalançaremos a descrever os seus sentimentos: não os
+conhecemos. Mas, a julgar pelas apparencias, Maria Alexandrovna
+encontrou o verdadeiro caminho para o coração da filha. Não ha duvida de
+que a excellente mãe andou um tanto ás apalpadélas, até que por fim
+conseguiu pôr o dedo na ferida, principiou por maguar sem precaução os
+pontos mais sensiveis das feridas ainda abertas, a despeito de um
+desenvolvimento por ahi além de sentimentos.
+
+Agora, comtudo, logrou introduzir na mente da Zina o pensamento que a si
+lhe convinha: produzindo-se o effeito, alcançou-se o fim desejado. A
+Zina escuta com soffreguidão, com as faces afogueadas, o seio a arfar.
+
+--Ora escute, mamã,... diz por fim, resoluta, comquanto a subita
+pallidez manifeste claramente quanto lhe custa semelhante resolução.
+
+--Escute, mamã...
+
+N'este ensejo, comtudo, resôa no vestibulo um ruido: uma voz aguda a
+chamar por Maria Alexandrovna.
+
+Maria Alexandrovna levanta-se com vivacidade.
+
+--Ah! meu Deus! demonios levem aquella pêga! É a coronela! E eu que
+quasi que a despedi, ha quinze dias! accrescenta, desesperada...
+
+Mas é impossivel recebêl-a agora! De todo impossivel! E comtudo isso...
+quem me diz que me não virá trazer noticias... aliás, nunca se
+atreveria. É caso sério, Zina, é-me indispensavel sabêl-o, nada se póde
+desprezar...
+
+--Como lhe fico grata por esta sua visita... quanto estimo!... exclama
+correndo ao encontro da coronela. A que feliz acaso serei eu devedora de
+se ter lembrado de mim, minha preciosa Sofia Petrovna? Encantadora
+surpreza!
+
+A Zina deitou a fugir.
+
+
+
+
+VI
+
+
+A coronela Sofia Petrovna Farpukhina apenas suggere moralmente o tipo da
+pêga. Quanto ao phisico, participa antes do pardal. É uma mulherita
+cincoentona com sardas entre ruivas e amareladas pela cara e uns olhos
+que nunca param. O corpo ético, implantado sobre umas sólidas pernas de
+pardal, esconde-se por debaixo das amplas pregas d'um vestido escuro, de
+seda, em continuo restralar, visto como a coronela nunca póde estar
+quiéta. É uma linguareira ruim e vingativa, perde o tino com a seguinte
+ideia: "Sou coronela." Ella e o marido, coronel reformado, jogavam a
+unhada a toda a hora: elle ostentava no rosto os signaes das garras da
+consorte. Ella, préga no bucho com quatro copinhos de vodka, todas as
+manhãs, e outros tantos ao deitar. Vota um odio figadal a Anna
+Nikolaievna Antipova e á Natalia Dmitrievna Padknvina, que a sacudiram
+das suas salas, ha oito dias.
+
+--Demoro-me apenas um instantinho, meu anjo, pia a dama; nem
+sequer me quero sentar. Traz-me aqui unicamente o desejo de lhe
+contar os singularissimos acontecimentos que se estão dando. O tal
+principe faz andar n'uma roda viva esta nossa Mordassov. Os nossos
+espertalhões--comprehende--não lhe largam o rastro, a farejál-o por
+todos os cantos, a puxál-o para todos os lados, obrigam-n'o a beber
+champanhe. Eu se o não visse não o acreditava. Como é que o deixou saír?
+Não sei se sabe que, n'este instante, está em casa da Natalia
+Dmitrievna?
+
+--Em casa de Natalia Dmitrievna? exclama Maria Alexandrovna dando um
+pulo na cadeira. Mas se elle ia apenas fazer a sua visita ao governador
+e a casa de Anna Nikolaievna, e sem tenção de se demorar.
+
+--Para se não demorar, isso sim! E agora, corra atrás d'elle!
+
+Não encontrou em casa o governador, foi visitar a Anna Nikolaievna, e
+prometteu-lhe jantar com ella, e a Natachka[5], bem sabe, que nunca sáe
+de casa, lá estava pespegada; carregou com elle para almoçar. E ahi tem
+o seu principe!
+
+--Que me diz! E o Mozgliakov a prometter-me...
+
+--Pois sim! O tal seu Mozgliakov a quem a senhora não se farta de pôr
+nas nuvens!... Está em casa delles! Olho n'elle! Veja lá se o obrigam a
+jogar as cartas e principia para ahi a perder como succedeu o anno
+passado. E o principe é capaz de se deixar limpar que nem um prato. E
+que calumnias que ella inventa, aquella Natachka! A atordoar os ouvidos
+a toda a gente com a galga de como a senhora faz a côrte ao principe com
+o sentido em... com um certo sentido, não sei se m'entende? E
+pespega-lh'o a elle na cara, até; e elle sem perceber patavina, sentado
+para ali como um gato encharcado e a responder, a cada palavra: "Ah!
+Está claro, está claro!" E sabidas as contas é ella a propria que...
+Mandou saír a Sonka[6]. Ora imagine! Com quinze annos e anda ainda de
+vestido curto que mal lhe chega ao joelho; tambem mandou vir aquella
+orfã, a Machka,[7] com um vestido ainda mais curto. Impingiram a ambas
+uns casquêtesinhos encarnados cheios de plumas, não sei para quê, e ao
+som do piano põem-se a dansar, aquelles dois espinafres, deante do
+principe, a Kozatchok.[8] Ora a minha amiga está farta de conhecer o
+fraco ao principe! A babar-se todo: "Que... e... fó... órmas!" diz elle
+"... Que... e... fó... ó... órmas!" E a mirál-as pelo monóculo, e ellas com
+uns módinhos, as duas perúas! Todas afogueadas á força de levantarem a
+perna! E toda a gente a rir, faça ideia como e porquê!... Que nojo! E
+chamam áquillo dansar! Aqui estou eu que dansei de chale, quando saí do
+collegio aristocratico de Madame Jarmé: fiz sensação, acredite... pela
+nobreza!
+
+Fartaram-se até de dar palmas uns senadores. Estavam a educar nesse
+mesmo collegio filhas de principes e de condes.--Mas a tal Kozatchok,
+aqui para nós, é tal qual o Cancan! E eu com a cara a arder, de
+envergonhada! Não me pude conter...
+
+--Mas, então... tambem estava em casa da Natalia Dmitrievna? A senhora?
+Cuidei que...
+
+--Então que quer! Ella offendeu-me, a semana passada, e não me ensaiei
+para o pespegar a toda a gente. Mas que quer, minha amiguinha, se eu
+estava morta por ver o principe, ainda que fosse por uma greta da porta,
+e ahi tem por que é que lá fui, apezar de tudo, a casa da Natalia
+Dmitrievna; a não ser o principe, não era eu que lá tornava a pôr os
+pés! Ora imagine; servem chocolate a toda a gente, e a mim, nem raça,
+nem sequer abrem a bocca para me pedir desculpa! Ha de ter noticias
+minhas! Mas adeus, meu anjo, vou-me embora, estou com muita pressa...
+é-me indispensavel encontrar em casa a Apulina Panfilovna para lhe
+contar o caso. Ah! Pode-se desde já considerar viuva da lindeza do tal
+principe, não é elle que volta para sua casa. Está perdido da memoria,
+bem sabe, e a Anna Nikolaievna terá cuidado em o não deixar saír.
+
+Estão com medo de que a minha amiga... todas ellas... não sei se
+percebe? a proposito da Zina...
+
+--Que horror!
+
+--É como lhe digo; já corre até por essa cidade. A Anna Nikolaievna não
+o deixa saír sem jantar e depois não o larga. Os planos d'ella são todos
+elles armados contra a senhora, meu anjo! Fui deitando o olho para o
+pateo: que reboliço! Prepararam um jantar com trinta entradas, mandaram
+vir champanhe. Quer um conselho? Veja se trata de lhe deitar a mão antes
+de que elle vá a casa d'ella. Não, que elle, pertence-lhe, é seu
+hospede! Não se deixe engazupar por aquella espertalhona, por aquella
+ranhosa! Não vale a sola de um sapato, lá com ser mulher de um
+procurador. E eu, aqui onde me vê, sou coronela, fui educada no collegio
+aristocratico de Madame Jarmé... Forte nojo! Adeus, meu anjinho, tenho o
+trenó á espera, se não fosse isso, fazia-lhe companhia.
+
+E abalou a gazeta viva.
+
+Maria Alexandrovna, desesperada, toda ella n'um tremor. Não padece
+duvida que o conselho da coronela é seguro e pratico; não ha tempo para
+perder, mas subsiste ainda a grande difficuldade.
+
+Maria Alexandrovna investe para o quarto da Zina. A Zina andava ás
+voltas pela casa, de mãos no peito, muito enfiada, cabisbaixa, no auge
+da afflicção. Borbotavam-lhe nos olhos as lagrimas. Fulge-lhe porém no
+semblante uma expressão de decisão, assim que põe os olhos na mãe.
+Engole as lagrimas e refega-lhe os labios um risinho sarcastico.
+
+--Mamã, diz ella, antecipando-se a Maria Alexandrovna, desperdiçou
+thesouros de eloquencia em minha honra, de mais, até, visto que me não
+conseguiu cegar a vista, e eu não ser nenhuma creança. Querer
+persuadir-me de que, eu, casando com o principe, ia praticar um acto de
+irmã de caridade,--profissão para que não sinto a minima
+vocação,--justificar mediante um nobre fim baixezas egoistas, tudo isso
+representa apenas o mais grosseiro egoismo, entendeu?
+
+--Porém, meu anjo...
+
+--Cale-se, mamã, tenha paciencia, e oiça-me até ao fim. Saiba, pois, que
+tenho a consciencia da sua hypocrisia. Estou pois plenamente convencida
+de que o verdadeiro fim de tudo isto é vil; e comtudo, acceito a sua
+proposta, completamente, mas _completamente_, entendeu? Estou prompta a
+casar com o tal principe, prompta a ajudar os seus esforços no sentido
+de o convencer a casar commigo. O motivo d'esta minha resolução, não é
+da conta da mamã, baste-lhe saber que me prontifico a tudo: ajudál-o-hei
+a enfiar as botas, serei sua creada, hei de dansar para que elle se não
+arrependa de ter casado commigo. Mas, em troca, peço-lhe que me diga, o
+modo por que pretende alcançar semelhante resultado. Não ponho em
+duvida, visto que se empenha n'este negocio, o facto da mamã ter já
+urdido o seu plano. Transmita-m'o, seja franca uma vez na sua vida, eis
+as minhas condições.
+
+Maria Alexandrovna ficou tão embatucada, que emudeceu sem bulir com um
+dedo, com os olhos espipados. Contara com a lucta contra as ideias
+romanescas da filha, e ficou estupefacta ao vêl-a decidida a agir contra
+as proprias convicções. O negocio toma verdadeira consistencia. Maria
+Alexandrovna, lá por dentro, não cabe em si de contente.
+
+--Zinotchka! exclama enthusiasmada, és a carne da minha carne e o osso
+dos meus óssos!
+
+Nem uma palavra mais pode accrescentar, lança-se nos braços da filha.
+
+--Ah! meu Deus! Dispense-me dos seus abraços, mamã! respondeu, enfadada,
+a Zina. É absolutamente deslocado esse seu enthusiasmo. Exijo uma
+resposta á minha pergunta, e nada mais!
+
+--Mas, Zina, eu amo-te, adoro-te, e tu a repelires-me! É para te ver
+feliz que eu ando a trabalhar. E, dos olhos de Maria Alexandrovna
+borbotavam lagrimas _sincéras_. Effectivamente, ama a seu modo a Zina, e
+d'ahi, a commoção do triumpho torna-a tão sentimental como qualquer
+_baba_,[9] áquelle general de saias. A Zina sente bem, a despeito de
+tudo, que a mãe é sua amiga; mas pésa-lhe semelhante amor,
+preferir-lhe-hia o odio.
+
+--Pois bem! Não se zangue, mamã; sei muito bem o que vou fazer, se eu
+estou tão afflicta!... disse para tranquillizál-a.
+
+--Eu não me zango, não me zango, meu anjinho, cacarêja Maria
+Alexandrovna recuperando animo. Não deixo de avaliar a tua agitação. Mas
+não vês tu, querida amiguinha... tu pediste-me franqueza... Seja assim,
+serei franca, mas acredita-me. Lá quanto a um plano inteiramente
+definido, é coisa que ainda não tenho, nem o posso ter: tudo depende das
+circumstancias. Antevejo até algumas difficuldades.
+
+... Se aquella pêga, aindagora, esteve-me para ahi a grasnar um
+chorrilho de pessimas noticias. (Ah! meu Deus! não tenho tempo para
+perder!) Serei pois franca: juro-te que hei de conseguir o meu fim. Não
+vás acreditar n'uma miragem qualquer, n'uma illusão; o meu plano assenta
+todo elle na toleima do principe, e representa isso uma talagarça em que
+se pode bordar tudo que se quiser. O mais importante é que nos deixem
+operar. E demais, essas fufias nada podem contra mim! exclama Maria
+Alexandrovna assentando um murro na mêsa. Tem confiança, mas cumpre
+operar depressa! Hoje ainda façamos o principal, se for possivel.
+
+--Está bem, mamã; escute ainda... uma franqueza. Sabe o motivo porque
+tanto me interessa esse seu plano? É porque não estou segura de mim
+propria. Disse-lhe que me achava decidida a praticar semelhante baixeza.
+Mas se os pormenores d'esse seu plano forem repugnantes em demasia,
+desde já lhe declaro que me verei obrigada a desistir. Sei que será mais
+uma baixeza, o resignar-me a entrar no lodaçal e não ter animo de lá
+ficar. Mas que se lhe ha de fazer? Se não pode deixar de ser assim!
+
+--Mas, Zina, meu anjo, onde é que tu vês n'isto baixeza? replica,
+timida, Maria Alexandrovna. Trata-se de um bom casamento, de uma coisa
+normal; encara as coisas d'este ponto de vista e verás que te ha de
+parecer muitissimo razoavel.
+
+--Ah! mamã, pelo amor de Deus, nada de dissimulações para commigo! Estou
+prompta para tudo, bem vê; que mais quer? Não se escandalize, peço-lh'o
+eu, por eu dar ás coisas o nome que lhes compete: será, talvez,
+actualmente, essa a minha unica consolação.
+
+E sorriu com tristeza.
+
+--Ora vamos! Vamos! Está bom, meu anjinho; pode haver estima reciproca sem
+identidade de convicções. Quanto ao meu plano, tem a certeza em como te
+não irá salpicar de lama, isso te juro eu! Quererás talvez
+comprometter-me? Tudo ha de correr bem, com muita dignidade, até. Não ha
+de haver escandalo. E ainda quando o houvesse, n'esse caso, d'este ou
+d'aquelle modo... já nós estariamos d'aqui muito longe... diziamos adeus
+a Mordassov. E depois, essas gralhas que piassem para ahi até rebentar,
+já nos não fazia mossa. Merecem que façamos caso d'ellas, porventura? E
+como é que tu, Zina, tão soberba, podes arrecear-te de semelhante gente?
+
+--Ah! mamã, a mim não me mettem medo, acredite! Não me entende!
+respondeu a Zina, irritadissima.
+
+--Está bom, está bom, minha joia, não te zangues! Onde eu queria chegar
+era a que essa gentalha praticam vilanias a cada instante, e que tu...
+por uma só vez... Mas, que digo eu... sempre sou muita tola! Trata-se
+até de uma nobre acção! Depende tudo do ponto de vista...
+
+--Basta, mamã, basta! exclama a Zina.
+
+E bate o pé.
+
+Deixa lá! meu anjo, não torno mais!
+
+Silencio. Maria Alexandrovna fica a olhar pelas costas para a Zina, que
+seguiu por a casa fora com uma expressão de cachorro a olhar para a
+chibata.
+
+--Nem sequer chego a perceber como é que tenciona dar-lhe volta,
+prosegue com enfado a Zina. Tenho a certeza de que o resultado que
+tirará será uma affronta. Pela parte que me toca, tanto se me dá, mas
+vae ter desgosto, creia.
+
+--Ora! Se é só isso que te dá cuidado, vae descançada, meu anjo!
+
+Comtanto que estejamos de accordo, quanto ao mais, pouco importa! Se tu
+soubesses os transes de que eu tenho escapado, sã e a salvo! Em summa,
+permitte-me fazer uma tentativa. É urgente que eu tenha quanto antes uma
+conferencia com o principe. Já estou adivinhando o que d'aqui sairá. De
+quem eu tenho medo é do tal Mozgliakov.
+
+--Do Mozgliakov? perguntou a Zina com desdem.
+
+--Do Mozgliakov, sim, pois que cuidas? Mas não te assustes, ainda assim,
+Zina, hei-de induzil-o a auxiliar-me, até. Nem tu sabes ainda quem aqui
+está, Zina! Ah! tão certa tenha eu a salvação, mas assim que ouvi falar
+no principe, accudiu-me logo semelhante ideia! Foi uma revelação. Quem
+havia de dizer que elle havia de vir parar a nossa casa! Bem podiamos
+estar cem annos á espera d'uma occasião d'estas! Ah! és tão linda, minha
+Zina! Que belleza! Olha, eu, se fosse homem, atirar-te-hia aos pés um
+reino! Sucia de asnos! Quem não ha de estar morrendo por beijar esta
+mãozinha? (Maria Alexandrovna, effusiva, beija a mão da filha.) É a
+carne da minha carne!... É preciso casál-o dê por onde der, áquelle
+imbecil! E que bem viveriamos depois, Zina! Pois nunca nos havemos de
+apartar, não é verdade? Não pões na rua tua mãe, quando te vires feliz?
+Tivemos os nossos desaguizados, mas aonde irás tu encontrar outra amiga
+como eu? Eu, apezar de tudo...
+
+--Mamã, se está resolvida, é tempo de fazer alguma coisa. Está perdendo
+minutos preciosos! disse a Zina, com impaciencia.
+
+--E já vae apertando. Vae, sim, effectivamente. E eu aqui a dar á
+lingua! Querem açambarcar o principe! Vou já a correr. É já; mando
+chamar o Mozgliakov e carrégo com o principe, á força, se fôr preciso.
+Adeus, Zinotchka! Adeus, meu amor, minha pomba! Não te desconsoles, não
+desanimes, não estejas triste. Então!... Tudo ha de correr com
+dignidade, com muita, até. Tudo está no modo de encarar as coisas.
+Emfim! adeus, adeus!
+
+Maria Alexandrovna faz o signal da cruz á Zina e sae. Investe para o
+quarto, detem-se um momento em frente do espelho e, d'alli a dez
+minutos, lá vae rodando por essas ruas de Mordassov, na carruagem de
+patins (já dissemos que Maria Alexandrovna vivia á larga.)
+
+--Não, não são vocês que podem luctar de esperteza commigo! A Zina
+annue, e já é meio caminho andado! Não ser bem succedida! Que asneira!
+Ah! Zina, com que então, ha calculos que influem no teu animo? Commovi-a
+fazendo-lhe luzir deante dos olhos um risonho porvir... Como ella estava
+linda, hoje! Ora, tivera eu sido tão formosa, e haveria revolvido, até,
+meia Europa. Em summa, paciencia, esperemos. O tal Shakspeare ha-de-lhe
+passar assim que ella se vir princêsa... E que princêsa não ha de
+ser!... Gosto de a ver assim; tão soberba, tão senhora de si!... Tem uns
+olhos de rainha!... Como é que ella poderia deixar de conhecer que ia
+n'isso o seu interesse?--Até que emfim percebeu-o! Ficarei vivendo em
+sua companhia, e ha de consentir em tudo que eu quiser. É princêsa? pois
+tambem eu! Hão-de falar de mim, em Petersburgo, até... E adeus...
+cidadezinha da asneira! O principe e o garoto hão-de ir marchando d'esta
+para melhor, e eu, caso-a com uma testa coroada! Ha só uma coisa que me
+mette medo: não terei usado para com ella excesso de franqueza?
+Assusta-me! Assusta-me deveras!
+
+E engolfa-se em suas cogitações Maria Alexandrovna.
+
+Assim que se viu entre quatro paredes, a Zina poz-se ás voltas no
+quarto, de mãos atráz das costas, a pensar. E não lhe faltava em quê,
+com certeza! E a revezes e quasi inconscia repetia: "é urgente, é
+urgente, ha já muito tempo que devia estar feito!" Que quereria dizer
+aquella exclamação? Por mais de uma vez as lagrimas lhe refulgiram
+n'aquellas pestanas tão longas e sedeúdas. Nem pensava, sequer, em as
+enxugar. A mãe fazia mal em estar-se inquietando! A Zina achava-se
+disposta para tudo...
+
+"Eu te direi, deixa estar! pensou a Nastassia Petrovna ao saír do seu
+cadoz da farrapada depois de se haver retirado a coronela. E eu com
+tenções de pôr uma gravata côr de rosa por causa do tal principe! Sempre
+sou bem tola! A enfeitar-me para casar com elle! Ora, uma gravata
+depressa se põe! Deixa tu estar, minha Maria Alexandrovna! Com que
+então, eu, sou uma pécora, uma miseravel? Acceito duzentos rublos para
+arrombar uma bocêta! Pois já se vê, não deixar escapar a occasião!... E
+demais... eu se o fiz foi por ser generosa, pois ainda tive que fazer
+despêsa... Eu te direi! Hei-de-lhes fazer ver a ambas se sou uma pécora
+ou se o não sou! Hão de aprender a lidar com a Nastassia Petrovna!"
+
+
+
+
+VII
+
+
+Maria Alexandrovna, comtudo, deixava-se arrastar pelo proprio talento.
+Concebeu um plano grandioso quanto audaz. Casar a filha com um ricaço,
+com um principe e um moribundo; casál-a sem que ninguem o soubesse,
+aproveitando a senilidade do seu hospede, era não só ousadia, mas
+imprudencia, até. Não havia duvida, o projecto era seductor, porém, em
+caso de malogro, poderia vir a reverter para o autor n'uma confusão sem
+antecedentes. Maria Alexandrovna bem o sabia, mas não era mulher para
+recuar.
+
+--Tenho-me visto em peores lances, dissera ella á Zina, e era verdade. E
+seria uma heroina, se assim não fôra?
+
+Certamente, o projecto tinha seus visos de bandoleirismo á mão armada;
+Maria Alexandrovna não era, porém, mulher para se prender com taes
+ninharias. Resumia o caso n'um dito muito acertado: "uma pessoa não fica
+para sempre casada." Era simplicissima semelhante ideia, mas apresentava
+á imaginação tamanhas vantagens, que Maria Alexandrovna era a propria a
+assustar-se.
+
+Como mulher de recursos, dotada de legitima faculdade creadora, urdiu o
+seu plano n'um revez de mão. É certo que apenas se lhe pintiparava na
+mente a largos traços, um tanto vagos, até. Escasseavam pormenores e
+havia que contar com circumstancias imprevistas. Maria Alexandrovna
+tinha porém confiança em si mesmo. Não era o malogro que lhe mettia
+medo, lá isso, não; o que a sobresaltava, era a impaciencia em encetar a
+lucta. A impaciencia, a nobre impaciencia minava-a, ao pensar nos
+possiveis obstaculos.
+
+As mais sérias difficuldades, antecipava-as Maria Alexandrovna por parte
+dos seus nobres concidadãos de Mordassov, e acima de tudo, da nobre
+sociedade das damas Mordassovenses: Conhecia, por experiencia propria,
+até onde ia o odio de semelhante gente. Nem sequer punha em duvida, já
+se vê, que n'aquelle ensejo toda a gente lhe avaliava as intenções,
+supposto que ninguem houvesse dito ainda uma palavra fosse a quem fosse.
+Sabia, á força de triste experiencia, que não havia um unico
+acontecimento, por mais secreto que fosse, referente á sua vida, que,
+dando-se pela manhã, não andasse á noite na lingua de todas as
+mexeriqueiras. Maria Alexandrovna, pois, antevia apenas o perigo, esta
+casta de presentimentos, porém, que jamais a haviam enganado, não a
+enganariam ainda d'esta vez.
+
+Eis, effectivamente, o que succedera, e de que ella ainda não tinha
+conhecimento. Pela volta do meio dia, isto é, tres horas, minuto por
+minuto, depois de haver chegado o principe a Mordassov, corriam pela
+cidade uns boatos algo singulares. Qual teria sido o ponto de partida?
+Ninguem o sabia, mas caso é que se espalharam acto continuo.
+
+Afiançava toda a gente que Maria Alexandrovna já tinha promettido a mão
+da filha, da sua Zina, com vinte e tres annos e sem um kopek de dote, ao
+principe: que o Mozgliakov tinha sido posto a andar e que estava tudo
+resolvido e assignado.
+
+Qual era a causa de semelhantes boatos? Tão bem conheciam Maria
+Alexandrovna que lhe tivessem adivinhado, com tão perfeita unidade, os
+mais intimos pensamentos? Nem a inverosemelhança de um tal boato, visto
+como um projecto d'aquelle genero se não leva a effeito no espaço de uma
+hora, nem a falta evidente de todo e qualquer fundamento, pois ninguem
+sabia d'onde partira a noticia, puderam dissuadir os Mordassovenses. O
+mais surprehendente, era o haver-se principiado a espalhar o boato no
+proprio ensejo em que Maria Alexandrovna encetava aquella sua conversa
+com a Zina a semelhante respeito. Tal é o faro dos provincianos! O
+instincto dos novelleiros das cidadécas attinge por vezes as raias do
+maravilhoso. E todavia, o caso explica-se. Baseia-se no estudo intimo e
+perseverante do proximo. Todo o provinciano vive debaixo de uma redoma
+de vidro, como se disséssemos. É-lhe absolutamente impossivel esconder
+seja o que fôr aos seus honrados concidadãos. Sabem a seu respeito
+aquillo que elle é o proprio a ignorar. O provinciano, de sua natureza,
+devia de ser um psicologo profundissimo. E eis o motivo porque eu ás
+vezes pasmava sincéramente d'encontrar na provincia tão poucos
+psicólogos e tanto imbecil! Mas ponhamos isso de banda.
+
+Estoirou a noticia tal qual o raio. O casamento com o principe
+antolhava-se tão vantajoso a toda a gente, tão brilhante, que a face
+extranha d'aquelle negocio a todos escapou. Dava-se ainda uma
+circumstancia: A Zina era tão odiada ou mais ainda que a propria Maria
+Alexandrovna; e por quê? Ninguem o sabia. Entraria talvez em linha de
+conta a formosura da Zina, talvez pelo facto de Maria Alexandrovna,
+apezar de todos os pezares, ser, muito mais do que a filha, da mesma
+massa das outras Mordassovenses. Ausentasse-se ella da cidade, e quem
+sabe, é possivel que deixasse saudades. Dava animação á sociedade
+mediante incidentes variados. Sem ella aborrecer-se-hiam. Por outro
+lado, a Zina, pela sua attitude, parecia pairar nas nuvens e não em
+Mordassov. Não era da mesma raça, e talvez, inconsciamente, até, tivesse
+uns modos demasiado altivos. E eis que esta mesma Zina, ácerca de quem
+corria tanta historia escandalosa, aquella soberbona, apparecia
+millionaria, princêsa e entrava no rol da aristocracia. Dentro de um ou
+dois annos, talvez, vem a enviuvar e casa para ahi com algum duque, ou
+algum general, e quem sabe, com o governador, e coincide exactamente o
+estar viuvo e o ser grande admirador da formosura o governador de
+Mordassov. Desde então virá a ser a primeira senhora da provincia, e um
+tal pensamento, só por si, era intoleravel, nem haveria noticia capaz de
+provocar tanta indignação em Mordassov.
+
+Estrugiam por todos os lados clamores de raiva. Diziam que era indigno;
+que o jarreta não tinha o juizo todo; que o tinham enganado, embaído;
+que urgia livrál-o da soffreguidão d'aquellas garras; que, apuradas as
+contas, era immoral,--uma ladroeira! Que não faltavam meninas valendo
+tanto como a Zina e em condições de casar com o principe.
+
+Todas estas exclamações e estas linguarices eram apenas supposições da
+parte de Maria Alexandrovna, e já era demais. Estava farta de saber que
+toda a gente se achava prompta a praticar o possivel e o impossivel,
+até, para se oppôr a seus projectos. Pois não haviam confiscado o
+principe e não tinha agora que o reconquistar a unhas e dentes? E d'ahi,
+dado ainda o caso de que ella lograsse tornál-o a agarrar e trazêl-o
+outra vez para sua casa, não poderá comtudo têl-o preso a toda a hora.
+Em summa, quem é que lhe podia affiançar que hoje, ainda, dentro em duas
+horas, o côro solemne em peso das damas de Mordassov se não terá
+congregado na sua sala, e a pretexto de ordem tal que se torne
+impossivel recebêl-as? Se ella lhes fechar a porta, entram-lhe pela
+janella. Em conclusão, não se podia perder um instante, e todavia, nada
+estava feito ainda.
+
+De subito, eis que brota na mente de Maria Alexandrovna, e amadurece do
+mesmo jacto, uma ideia genial. Referir-nos-hemos á dita ideia em logar
+competente: n'este ensejo, a nossa heroina lá ia rodando a toda a pressa
+através das ruas de Mordassov, tremenda e inspirada, decidida a dar
+batalha para reconquistar o principe. Nem sequer sabia o alvitre que
+esposaria nem onde o iria encontrar; mas sabia com certeza que mais
+depressa devia afundar-se Mordassov do que falhar-lhe um unico de seus
+projectos.
+
+Do seu primeiro passo não podia saír-se melhor. Encontrou o principe na
+rua e carregou com elle para jantar.
+
+Se me perguntarem o modo porquê, cercada por tantas ciladas armadas
+contra si, conseguiu pôr o nariz a uma banda á Anna Nikolaievna, declaro
+que considero esta pergunta offensiva para Maria Alexandrovna. Deteve o
+principe no acto d'este estar á porta da casa da sua rival, e a despeito
+de tudo, a despeito até das objecções do proprio Mozgliakov, receoso de
+um escandalo, atirou com o ginjinha para dentro do trem. Era n'isto
+exactamente que Maria Alexandrovna levava as lampas ás suas rivaes. Nos
+lances decisivos, não se detinha em presença de um escandalo, tendo como
+axioma que o exito a tudo justifica. Escusado será dizer que o principe
+não oppôz resistencia de maior, e como sempre esqueceu-se de tudo e
+ficou muito contente da sua vida.
+
+Ao jantar, não fez senão dar á lingua, muito alegre, a fazer
+trocadilhos, a contar anecdótas que nunca concluia e passando de uma
+para outra sem dar por isso. Tinha bebido tres copos de champanhe em
+casa de Natalia Dmitrievna. Ao jantar, bebeu mais alguns e ficou
+alegrinho. Maria Alexandrovna era a propria a lhe não deixar nunca o
+copo vazio.
+
+Eram irreprehensiveis as iguarias, aquelle ladrão do Nitichka
+esquecera-se de as chamuscar. A dona da casa desvelava-se em electrizar
+os seus hospedes com os enlevos da sua amabilidade. A Zina, comtudo,
+mantinha gélido silencio, e o Mozgliakov nem por isso estava nos seus
+dias. Comia pouco, estava muito preoccupado, a pensar; e, coisa que
+raras vezes lhe succedia, Maria Alexandrovna estava inquieta. A Nastassia
+Petrovna, mazomba, fazia ás escondidas signaes ao Mozgliakov e este sem
+dar por tal. A não serem Maria Alexandrovna e o principe, haveria
+descambado em jantar de enterro.
+
+E comtudo, Maria Alexandrovna encobre intima afflicção: assusta-a a
+Zina, com aquelles seus modos tristonhos, de olhos vermelhos. E demais,
+o tempo não sobeja, e Mozgliakov, esse obstaculo material, está para
+alli como um marco de pedra. Ergue-se da mêsa Maria Alexandrovna, minada
+por funda inquietação. Mas qual não é o seu espanto, deixem-me assim
+dizer, quando vem ter com ella o Mozgliakov e lhe declara, que sente
+muito, mas que se vae retirar immediatamente!
+
+--Aonde é que vae, então? indaga ella, com simpatia.
+
+--Eu lhe digo, Maria Alexandrovna, enceta o Mozgliakov atrapalhado,
+aconteceu-me um caso um tanto esquisito... Nem sei até como lh'o diga...
+Mas, pelo amor de Deus, dê-me um conselho.
+
+--Que é, diga lá?
+
+--Meu padrinho, o Borodoniev... conhece, aquelle commerciante...
+encontrei-o hoje... está irritadissimo, dirigiu-me exprobações, diz que
+sou um soberbo. Com esta é a terceira vez que venho a Mordassov sem ir
+para sua casa. "Vem hoje, me disse elle, tomar uma chavena de chá
+commigo". São quatro horas em ponto, e elle toma o chá, á antiga, ahi
+pelas cinco horas, depois da sésta. Que quer que lhe eu faça... Eu
+avalio, Maria Alexandrovna... Mas colloque-se no meu logar! Foi elle que
+teve mão em meu pae que se queria enforcar, quando perdeu aquelle
+dinheiro do Estado!... Foi n'essa occasião, por signal, que elle
+insistiu em ser meu padrinho. Se fôr a effeito o meu casamento com Zina
+Aphanassievna, bem sabe que disponho apenas de cento e cincoenta almas,
+ao passo que elle é millionario, e mais que isso, até, segundo affirmam.
+Não tem filhos. Se eu estiver a bem com elle, pode deixar-me cem mil
+rublos. Ora elle está com setenta annos, lembre-se d'isto!
+
+--Ah! meu Deus! Mas então que é que o prende? Por que está para ahi a
+marralhar? exclama Maria Alexandrovna, disfarçando a custo o
+contentamento. Vá-se embora, vá! Com essas coisas não se brinca! E era
+por isso então que estava tão absorto durante o jantar? Vá, meu amigo,
+não se demore! Mas devia de ter ido vêl-o esta manhã para lhe provar que
+aprecia a sua benevolencia. Ai! esta mocidade!
+
+--Mas, se Maria Alexandrovna tem sido a propria a arguir-me de
+semelhantes relações! Tudo era dizer-me que era um mujik, parente de
+taberneiros e agentes de negocio!
+
+--Ah! meu amigo, quanta coisa se diz sem pensar! Tambem sou sujeita a
+enganar-me.--Não me tenho na conta de infallivel. E d'ahi... não me
+recordo... mas... é possivel que eu me achasse numa tal disposição de
+espirito... em summa, o senhor não tinha ainda formulado o seu pedido.
+Certamente, que houve da minha parte egoismo maternal, mas agora devo
+encarar as coisas de um ponto de vista novo. Qual seria a mãe que m'o
+levasse a mal? Vá e não perca um instante. Passe a noite com elle... e
+oiça lá! Fale-lhe a meu respeito, diga-lhe que o tenho em muita conta,
+que sou muito sua amiga... Proceda com habilidade. Ah! meu Deus!
+Tinha-se-me varrido de todo. E era eu que lh'o devia ter lembrado.
+
+--Resuscitou-me, Maria Alexandrovna! exclama Mozgliakov encantado. E
+agora obedecer-lhe-hei em tudo e por tudo. E eu sem me atrever a
+falar-lhe n'isso! Pois bem, adeus! vou-me embora. Desculpe-me para com a
+Zinaida Aphanassievna. E d'ahi, hei de voltar.
+
+--Receba a minha benção, meu amigo. E não se esqueça de falar a meu
+respeito. Effectivamente, é um velho estimabilissimo. Ha muito tempo que
+mudei de opinião a seu respeito. E demais, eu sempre o estimei na
+qualidade de Russo dos bons tempos, tão despido de artificios. Até mais
+ver, meu amigo, até mais ver!
+
+"Foi uma fortuna carregar com elle o demonio! Que estou dizendo, foi o
+proprio Deus que veiu em meu auxilio."
+
+Pavel Alexandrovitch estava já no vestibulo a enfiar a _chuba_, eis que
+rompe por alli dentro, saída não se sabe d'onde, a Nastassia Petrovna.
+
+--Aonde vae? diz, agarrando-o pela mão.
+
+--A casa do Borodoniev, Nastassia Petrovna, a casa do meu padrinho.
+Coube-lhe a honra de me baptizar. Um velho rico, um padrinho de quem se
+herda, um homem que se deve amimar.
+
+--A casa do Borodoniev! Pois diga adeus, desde já, á sua noiva, disse
+com sequidão Nastassia Petrovna.
+
+--Como assim?
+
+--Assim mesmo. Suppõe que a tem segura? Isso sim! Vae, mas é casar com o
+principe.
+
+--Com o principe. Que me diz, Nastassia Petrovna?!
+
+--Que me diz, quê?--Quer ver com os proprios olhos e ouvir com os
+proprios ouvidos? Pendure para ahi a _chuba_, e venha commigo.
+
+Pavel Alexandrovitch, aturdido, atira para o lado a _chuba_ e deixa-se
+levar para o quarto escuro, cuja porta dá para a sala.
+
+--Mas que quer isto dizer! Nastassia Petrovna, não percebo patavina.
+
+--Perceberá assim que ouvir. A comedia não tarda a principiar.
+
+--Qual comédia?
+
+--Chiton! Não fale tão alto! Qual comédia? E é o senhor que paga as
+despêsas; andam a enganál-o; esta manhã, assim que o senhor saíu com o
+principe, a Maria Alexandrovna pôz-se a apoquentar de dôr d'ilharga a
+Zina, mais de uma hora, com o sentido em persuadil-a a aceitar para
+marido aquelle jarreta d'engonços. Dizia ella que não havia nada mais
+facil do que era o enredál-o. Propunha uns taes alvitres que a mim
+propria me causavam asco. Ouvi-os d'aqui, a Zina annuiu. E que cama lhe
+não fizeram ao senhor, ambas de duas! Tem-n'o na conta de um imbecil, e
+a Zina declarou formalmente que não casava com o senhor por coisa
+nenhuma d'este mundo. E eu, tão tola, que já me estava até enfeitando
+para pôr ao pescoço uma gravata côr de rosa!
+
+Mas escute! escute!
+
+--Se assim é,... é uma infamia! murmurou Pavel Alexandrovitch,
+esparvoado, fitando olho a olho a Nastassia Petrovna...
+
+--Mas escute! Vae ouvir o bom e o bonito!...
+
+--Escutar onde?
+
+--Debruce-se se ali n'aquella frincha da porta.
+
+--Mas... Nastassia Petrovna, eu sou lá homem que me ponha a escutar ás
+portas?!
+
+--Emprega bem o seu tempo! Aqui, meu paezinho, é preciso metter a honra
+na algibeira. Desde que cá veiu, escute...
+
+--Comtudo...
+
+--Se não quer, resigne-se a ficar a chuchar no dedo! E a mim que me
+importa? Eu com dó do senhor, e o senhor com ceremonias! Será para mim
+que eu ando a trabalhar? Eu, por mim, já nem cá fico esta noite.
+
+Pavel Alexandrovitch, muito contra sua vontade, encosta o ouvido á fisga
+da porta. Referve-lhe o sangue nas arterias. Não percebe uma palavra de
+quanto em volta de si se está dando.
+
+
+
+
+VIII
+
+
+--Com que, então, divertiu-se muito, principe, em casa da Natalia
+Dmitrievna? indaga Maria Alexandrovna, deitando olhar soffrego para a
+futura prêsa.
+
+(Enceta de proposito as hostilidades do modo mais innocente. De
+commovida, tem o coração aos pulos.)
+
+Depois de jantar, transferiram o principe para a sala onde este havia
+entrado pela manhã. O ginjinha, com lastro de seis copos de champanhe,
+já não conserva equilibrio. Em compensação, não cessa de badalar. Maria
+Alexandrovna percebe que é apenas uma excitação de momento e que o
+hospede, d'alli a nada, ferra comsigo a dormir. Cumpre pois aproveitar a
+occasião. Nota com jubilo que o voluptuario ginjinha dispara á Zina uns
+olhares de gula. Rejubilam os seus maternaes sentimentos.
+
+--Ex-trê-ê-ma-mente! e, não sabe? é uma mulher incom-pa-ra-á-vel...
+aquella Natalia Dmitrievna, uma incompa-ra-vel mulher!
+
+A despeito dos muitos cuidados, aquelles louvores tributados á rival
+fazem sangrar o ciume a Maria Alexandrovna.
+
+--Ora vamos, principe! exclama com os olhos a ferir lume, se essa sua
+Natalia Dmitrievna é uma mulher incomparavel, tapa-me a boca, mas é
+preciso que o principe conheça muito mal esta nossa sociedade! Não passa
+tudo de um alarde descarado de sentimentos ausentes, comédia, verniz,
+oiro ao de cima.
+
+Erga uma pontinha ás apparencias, e encontrará um verdadeiro inferno
+escondido por baixo das flores, uma ninhada de viboras promptas a
+tragál-o.
+
+--De-vé-ras! Estou pa-a-asmado!
+
+--Sou eu que lh'o digo! Ah! meu principe! Ora escute, é a Zina!
+Assiste-me o dever--e a tanto me vejo obrigada--de contar ao principe
+uma aventura ridicula que se deu a semana passada, com aquella Natalia
+Dmitrievna--lembras-te?--Sim, principe, com aquella Natalia a quem tanto
+admira.
+
+Ah! meu caro principe, affirmo-lhe que não sou mexeriqueira, mas devo
+contar-lhe isto unicamente para lhe dar uma amostra viva e irrisoria da
+nossa sociedade.
+
+Haverá quinze dias veiu visitar-me essa tal Natalia Dmitrievna. Estavam
+servindo o café, e eu tinha que sair. Lembro-me muito exactamente das
+pedras de açucar que ficaram no meu açucareiro de prata: estava cheio.
+Volto, e que hei de eu ver? Restavam apenas tres pedrinhas. Ora, a
+Natalia Dmitrievna tinha ficado sósinha! Que me diz a isto?
+
+Tem casa, dinheiro, tudo que lhe apetece... É comico e pequenino, pois
+não acha?--E por aqui já pode avaliar o que é esta nossa sociedade em
+Mordassov.
+
+--De-ve-ras?--É uma gulodice... sobre-natural! Mas como é que ella pôde
+engulir um açucareiro?
+
+--E ahi tem a sua mulher incomparavel, principe; se já se viu uma
+vergonha assim? Eu por mim estou que antes queria morrer, do que
+resolver-me a praticar um acto tão nojento!
+
+--Está c... claro!... está... claro!--Mas ainda assim--sempre lhe digo,
+que é uma linda mulher!
+
+--Quem? A Natalia Dmitrievna! Ora vamos, principe, ella o que é é uma
+pipa. Ah! principe, principe, que está dizendo? Sempre fiz outra opinião
+do seu bom gosto!
+
+--Está--c... claro--uma pipa!--Mas ainda assim--sempre lhe digo que é
+bem feita; e depois, aquella pequer... rucha que dansava... essa tambem
+é... bem feita.
+
+--A Sónitchka? Ora! Uma pequena! Tem apenas quatorze annos.
+
+--Está... claro!--mas ainda assim,... é tão leve... e com umas
+formas..., tão... geitozinhas!... E a outra que dan... sou com ella?
+
+--Ah! aquella serigaita d'aquella orphã, principe?
+
+--Está claro--orphã! É porquinha,--devia ao menos ter lavado as
+mãos,--mas é sedu-u-ú-ctora.
+
+E o principe, emquanto vae falando, não despega, com crescente avidez, o
+monóculo do semblante da Zina.
+
+--Mas... que... linda... me... nina! tartamudéa... meio estarrecido...
+
+--Zina, vê se tocas alguma coisa, ou antes... canta. Canta que é uma
+delicia, principe; chega a ser uma virtuose, ouso affirmál-o, uma
+verdadeira virtuose. E se soubesse, principe, prosegue a meia voz Maria
+Alexandrovna emquanto Zina se approxima do piano, com aquelle seu andar,
+lento e cadenciado, que põe num sobresalto o jarreta, e se soubesse a
+que ponto é amoravel, como é carinhosa para commigo! Que coração! Que
+sentimentos!
+
+--Está claro! Sentimentos! E se quer que lhe diga... ainda não conheci
+senão uma mulher que se lhe possa comparar como formosura, responde o
+principe a engulir a saliva, é a condessa Naniskara; que Deus tem. Já lá
+vae ha trinta annos. Que mulher! Que maravilhosa formosura! Casou com o
+cozinheiro.
+
+--Com o cozinheiro, principe!?
+
+--Está claro--o cozinheiro, um francez, no estrangeiro.--E arranjou-lhe
+lá no estrangeiro um titulo de conde. Um homem muito instruido, com uns
+bigodinhos.
+
+--E como é que viviam, e onde, principe?
+
+--Está claro--viviam muito bem! E d'ahi, não tardou muito que se não
+apartassem.--Elle roubou-a e safou-se. Quer-me parecer que jogaram as
+cristas lá por causa de um môlho.
+
+--Que queres que eu toque, mamã?
+
+--Por que não cantas, antes? Se soubesse como ella canta, principe!
+Gosta de musica?
+
+--Está c... laro! Um encanto--um encanto! Gosto immenso de musica!
+Co... onheci muito Beethoven, no estrangeiro.
+
+--Beethoven! Ora imagina, filha, o principe conheceu Beethoven! clamou
+Maria Alexandrovna, maravilhada. Ah! principe, pois devéras, conheceu
+Beethoven?
+
+--Está c... laro: Eramos intimos amigos. Tinha o nariz sempre atulhado de
+rapé... Que sujeitinho tão ratão!
+
+--Quem, Beethoven?
+
+--Está c... laro,--Beethoven? E não seria talvez Beethoven... mas sim
+outro qualquer. Ha muito allemão, por toda a parte... Que eu, afinal,
+parece-me que estou equivocado.
+
+--E que hei de eu cantar, mamã?
+
+--Ah, Zina! Canta-me aquella romança, não te lembras? Aquella que tem um
+accento tão cavalheiresco: a castellã e o seu trovador--Ah principe, sou
+doida pelos assuntos cavalheirescos! Os castéllos! aquelle viver
+mediéval! Trovadores, arautos! Festas e torneios!... Vou te fazer o
+acompanhamento, Zina... Sente-se aqui, mais perto, principe! Ai! os
+castéllos, os castéllos!
+
+--Está c... laro! os castéllos... tambem gosto de cas... tellos, repete o
+principe assestando na Zina o olho solitario: Mas... santo Deus! que
+romança!... Estou a conhecêl-a... Ha que tempos... que tempos que a
+ouvi... recorda-me... ah! meu Deus!...
+
+Não me incumbo de dizer o que foi que succedeu ao principe, quando a
+Zina entrou a cantar. Cantava uma romança francêsa, muito antiga e que
+estivera em moda, nos seus tempos. A Zina cantou a primor. A voz pura de
+contralto ia direita ao coração. O lindo rosto, os magnificos olhos, os
+dedos fusiformes a voltarem as folhas, os bastos e negros cabellos, tão
+lustrósos, o seio afflante, a sua pessoa féra e linda, toda ella,
+concorria tudo a enfeitiçar o pobre do gêbo. Não despegou os olhos de
+cima d'ella emquanto ella esteve a cantar. Suffocava de commovido.
+Aquelle senil coração, esquentado pelo champanhe, pela musica e pelas
+reminiscencias, palpitava cada vez com mais força, e como não havia
+palpitado ha tanto tempo! Estava a ponto de chorar quando ella acabou.
+
+--Oh! minha linda menina! exclamava, a beijar-lhe os dedos, estou
+encantado!--E só agora é que me lembro... mas... mas... Oh! minha linda
+menina!...
+
+O principe nem foi senhor de concluir.
+
+Maria Alexandrovna sentiu haver chegado o momento psicologico.
+
+--Para que anda a dar cabo de si, principe?--encetou com solemnidade.
+Quantos sentimentos, quantas forças vitaes, quanta riqueza moral lhe não
+resta ainda? E com tudo isso, foi emparedar-se por toda a vida num
+carcere! Fugir do mundo! Das amizades! É imperdoavel! Pense bem,
+principe! Encare a vida, como se dissessemos, com uns olhos limpidos!
+Lembre-se do passado, da sua aurea juventude, dos seus dias sem
+cuidados. Resuscite esse passado, resuscite-se a si proprio! Volte a
+viver entre a sociedade dos vivos: vá até ao estrangeiro... á Italia, á
+Hespanha, principe, á Hespanha. Precisava de um guia, de um coração que
+lhe tivesse amor, que o estimasse e que lhe fosse simpathico.
+
+Pois bem! O principe tem amigos, appelle para elles e virão em monte. Cá
+estou eu que seria a primeira a dar de mão a tudo, e a deitar a correr
+para acudir ao seu chamado! Não me esqueço da nossa antiga amizade,
+principe! Deixaria, até, meu marido, se estivesse mais nova, e fosse tão
+formosa como minha filha, fazia-me sua companheira, sua amiga, sua
+mulher, até, se o desejasse.
+
+--Estou certo de que, nos seus tempos, deve de ter sido uma mulher
+encantadora, disse o principe a assoar-se.
+
+Tinha os olhos arrazados de lagrimas.
+
+--A nós proprios sobrevivemos nos nossos filhos, principe, responde
+effusiva Maria Alexandrovna. Tambem eu tenho o meu anjo da guarda, a
+amiga dos meus pensamentos, do meu coração, principe! Rejeitou até agora
+sete pedidos de casamento, por se não querer apartar de mim.
+
+--E por conseguinte, vae comsigo quando me ac... com... ompanhar ao
+estrangeiro? Sendo assim, irei para o estrangeiro... está resolvido...
+exclama o animadissimo principe.--Absolutamente!... E se eu pudesse
+lison... jear-me com a es... pe... rança... Mas é uma menina po...
+rtentosa, portentosa! Ah! minha linda menina!
+
+E o principe volta outra vez a beijar os dedos á Zina. Tentou até
+ajoelhar-lhe aos pés, o pobre do homem.
+
+--Então!... então, principe, ia dizendo que se pudesse lisonjeál-o a
+esperança?... agarrou no ar Maria Alexandrovna, sentindo brotar-lhe novo
+accesso de eloquencia. Que homem tão singular é o principe!... Não se
+considera então digno da attenção das mulheres! A formosura não consiste
+apenas na mocidade! Lembre-se de que é uma reliquia da aristocracia
+russa! É o representante dos mais refinados, dos mais cavalheirescos
+sentimentos, e das mais requintadas maneiras! E a Maria não amou o
+Mazeppa[10] porventura? Li algures que Lauzun, um marquêz seductor da
+côrte de Luis... não sei quantos... já velho, conquistou uma das mais
+supinas beldades do seu tempo!... E demais, quem foi que lhe metteu em
+cabeça que já era velho? Quem se atreveu a afirmál-o? Homens como o
+senhor envelhecerão jámais, porventura? O principe, tão opulentamente
+dotado de sentimento, de alegria, de espirito, de força vital, de tão
+delicadas maneiras! Fosse o principe para ahi a qualquer estação balnear
+com uma mulher joven, com uma beldade como a Zina, para não irmos mais
+longe,--e eu lhe diria que effeito colossal não havia de produzir, o
+senhor, reliquia da nossa aristocracia; ella, uma belleza de rainha!
+Ella, com aquelle seu pisar majestatico, de braço dado com o principe, a
+cantar n'uma sociedade aristocratica; o principe, pela sua parte, a
+fuzilar ditos de espirito! Era caso para acudirem os banhistas em pêso a
+fazer-lhe côrte! Dava brado por toda essa Europa! Pois teria a seu favor
+os jornaes, todos elles folhetins, e surgia um grito unanime: "Principe!
+Principe!"
+
+E o senhor a dizer: "Pudesse eu lisonjear-me com a esperança?"
+
+--Os jornaes... está claro, está claro!... Os folhetins... balbucia o
+principe, que não percebeu nem metade do aranzel de Maria Alexandrovna e
+cada vez está mais lamecha... Mas... minha rica menina... se se não
+sen... te fa... tigada, repita outra vez aquella romança que cantou
+inda'gora...
+
+--Ah! principe, ella sabe outras ainda mais bonitas! Conhece a
+_Andorinha_? Já a ouviu?
+
+--Está claro... mas já não me lembra...
+
+Não... não!... aquella que cantava ha pouco: não quero a _Andorinha_!
+Quero aquella tal romança: disse o principe a pedinchar como um
+pequerrucho.
+
+A Zina recommeça a alludida romança. O principe não pode ter mão em si e
+ajoelha-lhe aos pés a chorar...
+
+--Oh! minha formosa castellã! (Treme-lhe a voz de senilidade e de
+commoção).
+
+Oh! minha en... can... tadora castellã! Oh! minha querida menina! Quanta
+coisa me não veiu recordar do passado!... E eu, então, vivia esperançado
+em outro porvir. N'esse tempo cantava eu com a viscondessa... uns
+duêtos... essa mesma romança... e agora... ah! Sei muito bem o que me
+espera!
+
+O principe proferiu aquella discurso em voz entrecortada e offegante,
+intoiriu-se-lhe a lingua... tornam-se inintelligiveis algumas palavras.
+Apenas se vê que atingiu o acume da commoção. Maria Alexandrovna
+apressa-se em lançar azeite no lume.
+
+--Principe! quer me parecer que se vae apaixonando pela Zina.
+
+A resposta do principe vae além de quanto ousaria esperar Maria
+Alexandrovna.
+
+--Estou apaixonado por ella a ponto d'enlouquecer! exclama o velhito
+muito exaltado e sempre de joelhos.
+
+Estou prompto a sacrificar-lhe a minha vida... pudesse eu ao menos ter
+esperança... Mas levante-me, por quem é... sinto-me um tanto fraco... Se
+eu... ao menos, pudesse nutrir a es... pe... perança offerecia-lhe o meu
+coração... e então... eu... Havia de cantar-me todos os dias
+ro--ro--man--manças, e eu a olhar para ella sempre... sempre...
+sempre... ai, meu Deus!
+
+--Principe, principe! Está offerecendo a minha filha a sua mão, quer-m'a
+roubar, a mim, a minha Zina! O meu enlevo, o meu anjo, Zina! Não te
+deixarei nem por quanto ha! Zina! Venha alguem arrancál-a dos braços,
+dos braços de sua mãe; se é capaz!
+
+Maria Alexandrovna atira-se á filha e estreita-a nos braços, comquanto
+se sinta repellida com força. A mamã exaggera um tanto ou quanto a
+comedia, e a Zina está em transes de asco. Mas não abre a bôca, é tudo
+quanto deseja Maria Alexandrovna.
+
+--Já rejeitou nove partidos só para se não apartar da mãe! clama. Agora,
+comtudo, o meu coração antevê o apartamento. Não ha ainda um instante,
+reparei que olhava para o principe de modo particularissimo... A sua
+aristocracia, a sua finura seduziram-n'a, principe!.. Oh! O principe
+apartar-nos-ha... estou-o a sentir.
+
+--A... dó... óro-a! murmura o principe a tremelicar como uma folha.
+
+--Com que então desamparas a tua mãe! exclama Maria Alexandrovna
+atirando-se outra vez ao pescoço da filha.
+
+A Zina, morrendo por pôr ponto a tão penosa scena, estende ao principe a
+linda mão, e faz esforço para sorrir. O principe agarra respeitoso
+n'aquella mão e por pouco a não come com beijos.
+
+--Agora, sim, agora é que eu principío a viver!...
+
+--Zina! diz com solemnidade Maria Alexandrovna: é o mais delicado, o
+mais nobre dos homens! Um cavalleiro da edade média! Ella bem o sabe,
+principe, e sabe-o até demais, por minha desgraça!... Ah!... Oxalá cá
+não tivesse apparecido... Entrego nas suas mãos o meu thesouro...
+Conserve-o, principe!... Escute os rógos de uma mãe! Qual será a mãe que
+poderá levar-me a mal a minha magua?!
+
+--Basta! mamã! murmura a Zina.
+
+--Ha de defendêl-a, principe, a sua espada ha de fulgir se as calumnias
+se atreverem a tocar-lhe!
+
+--Basta mamã, aliás...
+
+--Está c... claro... a minha espada!... murmura o principe. Quero que o
+ca... casamento se realize, quanto antes... agora... é que eu devéras
+prin... cipío a viver!... Tenciono mandar desde já a Dur-kha-khanovo...
+Tenho lá uns brilhantes, quero pôl-os a seus pés.
+
+--Que ardor, que arrebatamentos, que nobreza de alma! E lembrar-me eu,
+principe, de que se estava a perder n'aquelle ermo!... Não me canço em
+repetir... Eu, quando me lembro d'aquella... infernal... toda eu me
+horrorizo!...
+
+--Mas que queria que eu fizesse?
+
+Tinha tanto... mê... mêdo! choraminga o principe. Queriam pregar commigo
+numa casa de saude... e tive... mê... mêdo!
+
+--N'uma casa de saude! Ah! que miseraveis! Que vileza, que crueldade!...
+Já me constou isso mesmo, principe! Mas essa gente está doida! Mas por
+quê... por quê?...
+
+--Se quer que... lhe diga, nem eu o sei, responde o ginjinha caindo
+derrengado de cansaço na poltrona. Foi assim--estava eu n'um ba... baile,
+e contei-lhe uma anecdóta.--Desagradou-lhes e ahi está... e resultou
+d'ahi uma historia... uma histo... ria.
+
+--E foi esse apenas o motivo?
+
+--Não foi, eu tambem tinha jogado as cartas com o principe Pedro
+Dmirititch, e perdido immenso... tinha dois reis e três... da... damas...
+quero dizer, três da... da... mas e dois r... reis... Não é isto... um
+r... r... rei e só... da... damas!
+
+--E foi só por isso!--por isso!--Infernalissima protervia! Não chore,
+principe! Não lhe torna a acontecer! D'aqui em diante, encontra-me a seu
+lado, meu principe!--Pois não me aparto da Zina, e veremos quem é que se
+atreve a abrir bocca. Sabe o que lhe digo, principe? Que o seu casamento
+vae deixál-os consternados; vae envergonhál-os! Hão de ver que ainda é
+capaz... quero dizer... comprehenderão que tão peregrina beldade nunca
+iria casar com um mentecapto!--E agora, pode olhar para elles rosto a
+rosto, de cabeça erguida!
+
+--Está--claro... rosto a rosto!--murmura o principe fechando os olhos.
+
+--Está derreado de todo, diz comsigo Maria Alexandrovna; creio que
+estarei a soltar palavras ao vento.
+
+--Está commovido, meu principe, precisa de ir descançar, diz debruçada
+sobre elle com maternal sollicitude.
+
+--Está... c... claro... encostar-me um bocadinho.
+
+--É tal qual... Estes abalos!--Espere ahi, vou acompanhál-o. Eu propria
+irei deitál-o, se for necessario... Por que é que está a olhar tanto
+para aquelle retrato, principe?
+
+É o retrato de minha mãe, não era uma mulher, era um anjo! Oh! oxalá
+ella ainda cá estivesse! Era uma santa, uma santa, sim, nem lhe posso
+dar outro nome!
+
+--Uma s... anta, é bonito!... Eu tambem tive mãe, uma senhora
+extrê... ê... ma... mente nut... trida... E d'ahi, não é isso que eu queria
+dizer... Estou um tanto fatigado... Adeus... minha linda menina...
+amanhã... em sum... ma... não importa... Até mais ver... até mais ver!...
+
+Tenta fazer um gesto gracioso, mas escorrega no pavimento encerado, e
+por pouco se não desiquilibra.
+
+--Cuidado, principe. Encoste-se ao meu braço! grita Maria Alexandrovna.
+
+--Um encanto! um encanto! Agora sim, agora começo a viver!
+
+Ficou a sós a Zina. Sentia uma oppressão, um desprezo para comsigo
+mesmo. Com as faces a escaldar, as mãos contraídas, os dentes
+enclavinhados. Inérte, e a vergonha a arrazar-lhe os olhos de
+lagrimas...
+
+N'este lance, eis se abre a porta e investe pela sala dentro o
+Mozgliakov--fulvo de raiva!
+
+
+
+
+IX
+
+
+--Ouvi tudo, tudo!
+
+A Zina a fitar-lhe uns olhos espantados.
+
+--Ah! E são esses os seus sentimentos! exclama com a voz tomada. Até que
+por fim aprendi a conhecêl-a!
+
+--A conhecer-me? repete a Zina (fulgem-lhes os olhos, de colera).
+Atreve-se a falar-me assim?
+
+Dá um passo para o mancebo.
+
+--Tudo ouvi! insiste solemne o Mozgliakov, recuando porém um passo, mau
+grado seu.
+
+--Ouviu?--Espionou, diga! emenda a Zina a mirál-o com desprezo.
+
+--Espionei, seja? É verdade, decidi-me a praticar semelhante vilania!
+Mas, graças a ella... fiquei afinal sabendo que é a mais... nem sei como
+qualificar a sua... tartamudeava o mancêbo, de mais em mais atrapalhado
+sob o olhar da Zina.
+
+--E quando haja ouvido a tudo, que é que me poderá lançar em rosto? Quem
+lhe deu o direito de me accusar, de me falar n'esse tom?
+
+--Com que direito!... Eu!? E ainda m'o pergunta!? Intenta casar com o
+principe... e a mim não me assiste o direito...!... Pois não me deu a
+sua palavra?
+
+--Quando?
+
+--Quando, essa é melhor!
+
+--Esta manhã, sem irmos mais longe, o senhor a apertar commigo e a minha
+resposta formal foi que nada lhe podia afirmar de positivo.
+
+--Mas não me rejeitou em absoluto, e por conseguinte, guardava-me para o
+não chega--poupava-me!...
+
+Contrahiu-se o semblante á Zina com dolorosa sensação, mas não se atenua
+o desprezo que sente para comsigo.
+
+--Se o não escorraçei, responde em voz grave e compassada, mas algo
+trémula, foi unicamente por compaixão. Supplicava-me que esperasse, que
+lhe não dissesse que não. "Vá aprendendo a conhecer-me"--disse o senhor
+um dia, "e quando se houver convencido de que sou um homem de caracter
+digno, é possivel que me não rejeite." Foram estas as suas palavras, no
+principio das nossas relações, não as poderá renegar: E agora atreve-se
+a dizer, que o guardo para o não chega! Pois não percebeu, esta manhã, o
+meu aborrecimento por ver como antecipava de quinze dias o seu regresso?
+E todavia, não lhe encobri esse meu enfado, e o senhor foi o proprio a
+notál-o, visto que me perguntou se me não agastava este seu regresso
+permaturo. Chama então poupar um homem o não lhe poder encobrir o fastio
+que alguem experimenta em ver esse homem? Ah! Eu então guardava-o para o
+não chega!? Não! eu dizia commigo, a seu respeito: "Se não é demasiado
+intelligente, é bondoso, quando menos"... agora, comtudo, fiquei
+sabendo--a tempo, felizmente--que tem tanto de mau como de tolo, e só o
+que me resta é desejar-lhe boa jornada! Adeus!
+
+A Zina volta-lhe as costas e caminha, de seu vagar, para a porta.
+Mozgliakov comprehende que tudo está perdido; referve-lhe a raiva.
+
+--Ah! com que, eu, então, sou tolo! vociféra; tolo!--Muito bem! Adeus!
+Mas, antes de me ir embora, saiba que a toda a gente ha de constar a
+infame comédia que aqui estão representando... tanto a senhora como sua
+mãe. Vou contar tudo a toda a gente, que embebedam o principe, que o
+subornam! Ha de ouvir falar de Mozgliakov!
+
+Estremece a Zina, vae para reponder, mas, volvido um instante de
+reflexão, encolhe os hombros, desdenhosa, e bate-lhe com a porta na
+cara. N'este conflicto, assoma aos hombraes Maria Alexandrovna. Ouviu as
+ultimas exclamações de Mozgliakov e adivinhou o restante. O Mozgliakov
+sem, se ir ainda embora! O Mozgliakov á ilharga do principe! O caso
+espalhado por toda a cidade pelo Mozgliakov! E todavia, é indispensável
+guardar segredo... Maria Alexandrovna, n'um relance, tudo calculou, a
+tudo preveniu, e urde um plano para aplacar o Mozgliakov.
+
+--Que tem, meu amigo? diz estendendo-lhe a mão, cordial.
+
+--Como _meu amigo_! exclama o outro furibundo. E depois de tudo isto;
+meu amigo! _Morgen Früh_[11], minha senhora. Metteu-se-lhe então em
+cabeça embaçar-me outra vez?
+
+--Sinto, devéras, acredite, sinto immenso vêl-o em um estado de espirito
+tão estranho, Pavel Alexandrovitch. Que linguagem! Nem sequer méde as
+palavras em presença de uma senhora!
+
+--Em presença de uma senhora!... Será quanto quiser... menos uma
+senhora.
+
+(Ignoro o que é que elle queria dizer, mas, com certeza, devia de ser um
+qualquer ultrage, de esmagar.) Maria Alexandrovna com os olhos n'elle e
+um risinho de commiseração:
+
+--Sente-se, diz, com tristeza, apontando para a cadeira na qual, um
+quarto de hora antes, estivéra sentado o principe.
+
+--Mas no fim de contas, não me dirá, Maria Alexandrovna?... exclama
+Mozgliakov, desnorteado. Está-me tratando como se a senhora estivesse
+innocente e fosse eu o culpado! Não pode ser!... Vae muito além dos
+limites! É abusar da paciencia... de todo... digo-lh'isto!
+
+--Meu amigo... responde Maria Alexandrovna--e deixe-me dar-lhe ainda
+este titulo, pois neste mundo não terá melhor amiga...--o senhor está
+afflicto, excitado, ferido no coração, e devo pois relevar-lhe
+semelhantes desmandos de linguagem. Pois bem, vou abrir-me com o senhor.
+Tanto mais que eu, até certo ponto, não deixo de ter culpas para com o
+senhor. Sente-se, pois, e conversemos. A voz de Maria Alexandrovna
+assumiu o auge da meiguice, é compungida a sua expressão phisionomica.
+
+Senta-se Mozgliakov.
+
+--Esteve escutando á porta, diz ella com uns modos de exprobação e de
+indulgencia, ao mesmo tempo.
+
+--Escutei, sim! E por que não? Nem que eu fôra um asno!... Se quer ao
+menos fiquei sabendo o que andava a maquinar contra mim, responde
+Mozgliakov, haurindo valôr da propria colera.
+
+--E resolver-se a senhora, com a sua educação, as suas maneiras, a
+representar semelhante papel! Santo Deus! Mozgliakov está aos pulos na
+cadeira.
+
+--Maria Alexandrovna, não posso ouvir-lhe uma palavra mais! Melhor será
+que se lembre do que está fazendo, a despeito da sua educação e das suas
+maneiras, e diga-me se lhe assiste o direito de accusar a outrem!
+
+--Ainda uma pergunta, prosegue ella sem responder. Quem foi que lhe
+suggeriu a ideia de escutar á porta? Quem será que anda por aqui a
+espiar-me os passos? É isso o que eu não se me dava de saber!
+
+--Lá quanto a isso, tenha paciencia, não serei eu quem lh'o diga.
+
+--Muito bem, eu tratarei de o saber... Dizia eu, pois, Pavel, que não
+deixo de ter culpas para com o senhor, mas, se é que póde julgar-me com
+conhecimento de causa, verá que se tenho alguma culpa é a de lhe querer
+bem em demasia.
+
+--Com que então, quer-me bem?--Esta a caçoar commigo, e certifico-lhe
+que não torna a enganar-me; serei muito creança mas nunca até esse
+ponto!
+
+E elle, n'um sarilho na poltrona, e a poltrona a tremer.
+
+--Por quem é, meu amigo, socegue se é possivel, escute com attenção, e
+verá que ha de concordar commigo. Eu, a principio, tencionava contar-lhe
+tudo, pôl-o em dia com tudo sem que se lhe tornasse necessario
+aviltar-se ao ponto de escutar ás portas. Se o não fiz, foi unicamente
+porque o negocio se achava ainda em estado de projecto e podia
+mallograr-se. Bem vê a franqueza de que uso para com o senhor. E, acima
+de tudo mais, não se volte contra minha filha, que de nada tem culpa. É
+doida pelo senhor, e custou-me os olhos da cara arrancar-lh'a ao senhor
+e persuadil-a a acceitar o offerecimento do principe.
+
+--E eu, que com os meus proprios ouvidos, ouvi,--n'este instante, provas
+d'esse tal louco affecto, replica ironico Mozgliakov.
+
+--Muito bem! Mas em que termos se lhe dirigiria o senhor? É assim que se
+expressa um namorado? Será essa a linguagem propria de um homem de fino
+trato? Offendeu-a, irritou-a.
+
+--Como se fosse questão de fino trato, Maria Alexandrovna! Esta manhã,
+ambas me faziam boa cara, mas assim que eu saí e mais o principe,
+puzéram-me pelas ruas da amargura.--Estou sciente de tudo... tudo.
+
+--Bebido da mesma fonte ignobil, provavelmente, observou Maria
+Alexandrovna com risinho de desdem. É verdade, Pavel Alexandrovitch,
+púl-o pelas ruas da amargura e, confesso, Deus sabe quanto me custou.
+Quanto não tive eu que luctar com os proprios sentimentos! Mas bastará o
+facto de eu me ver na necessidade de o calumniar para lhe provar a
+difficuldade que eu encontraria em obter d'ella que desistisse do
+senhor! É possivel que não veja um palmo adeante do nariz? Se ella lhe
+não tivesse amor, eu teria alguma necessidade de appellar para
+calumnias? E ainda o senhor não sabe o melhor! Tive que valer-me da
+minha maternal auctoridade para lh'o arrancar a ella do coração! Em
+conclusão, depois de esforços inauditos, consegui alcançar uns arremedos
+de consentimento... E visto que esteve á escuta, não deixaria de notar
+que ella não me ajudou em presença do principe com uma palavra, sequer,
+ou com um gesto. Cantou para alli como um automato; em visiveis
+afflições toda ella, e foi por ter dó d'ella, que eu carreguei com o
+principe. Tenho a certeza, até, de que se pôz a chorar, assim que se
+apanhou sósinha. O senhor bem viu, quando entrou... Mozgliakov
+recorda-se de que effectivamente a Zina estava a chorar quando elle
+entrou.
+
+--Mas a senhora, a senhora, por que é que está assim tão contra mim,
+Maria Alexandrovna? Por que é que me foi calumniar segundo é a propria a
+affirmál-o.
+
+--Ora, isso agora é outro negocio; e se o senhor m'o tivesse perguntado
+em termos logo ao principio, ha muito tempo que lhe teria dado resposta.
+Sim, tem razão, fui eu que fiz tudo, eu, sósinha: não esteja a accusar a
+Zina. Por que foi que o fiz? E eu respondo-lhe: primeiramente, por
+interesse da Zina. O principe é rico, representante de nobilississima
+casa, tem relações, e casando com elle a Zina faz um optimo casamento.
+Emfim, se elle morrer, o que não poderá tardar muito, pois todos nós,
+mais ou menos, somos mortaes,--n'esse caso, a Zina, nova e viuva,
+pertencendo á alta sociedade, fica riquissima e casa com quem quizer.
+Ora, está claro que irá casar com o homem a quem ama, e que foi o
+primeiro a quem teve amor, e cujo coração terá martirizado casando com o
+principe. E bastará o arrependimento... O acto que terá mais a peito
+será o de remediar a propria falta.
+
+--Hum! rosna Mozgliakov pensativo, a contemplar os bicos das botas.
+
+--Em segundo logar... mas serei breve a semelhante respeito, é possivel
+que me não comprehendesse. O senhor só o que sabe é ler o tal seu
+Shakspeare, fonte aonde exclusivamente vae beber os seus nobres
+sentimentos; e d'ahi, o senhor está tão moço! Eu, comtudo, sou mãe,
+Pavel Alexandrovitch. Caso a Zina com o principe um tanto por causa
+d'elle tambem, visto que para elle o casamento pode representar a
+salvação! Ha tanto tempo que voto amizade áquelle honradissimo ancião,
+tão bondoso, cavalheiresco! Quero arrancál-o ás garras d'aquella
+infernal creatura que ha de pregar com elle na cova!... Invoco a Deus
+por testemunha em como foi patenteando á Zina todo o alcance do heroismo
+da sua dedicação que eu pude convencêl-a.
+
+Arrastou-a o irresistivel prestigio da abnegação. Ella propria tem o que
+quer que seja de cavalheiresco. Submetti-lhe o meu projecto sob colôr de
+um acto christão. Vaes ser, lhe disse eu, o amparo, a consolação, a
+amiga, a filha, a beldade, o idolo de um homem que talvez que nem um
+anno tenha de vida. Mas sequer ao menos, extinguir-se-ha no dôce calôr
+do amor. Estes seus ultimos dias parecer-lhe-hão um paraiso. Onde é que
+vê n'isto egoismo, Pavel? Não! e não! É um acto de irmã de caridade.
+
+--A senhora, então, procede desse modo, por amizade para com o
+principe... á laia de irmã de caridade? commenta o ironico Mozgliakov.
+
+--Comprehendo essa sua pergunta, Pavel Alexandrovitch, é clarissima.
+Suppõe que estou fazendo uma confusão jesuitica dos interesses do
+principe com os meus. Pois bem, é possivel que me tivesse atravessado
+pela mente semelhante calculo, inconscientemente, porém, e sem
+resquicios de jesuitismo. Espanta-o esta minha franqueza? Peço-lhe
+apenas uma mercê, Pavel Alexandrovitch: não involva a Zina n'este
+negocio! Está pura que nem uma pomba. Não calcula; sabe apenas amar,
+pobre pequena! Se houve alguem que calculasse, esse alguem fui eu, e só
+eu! Indague, porém, sinceramente da sua consciencia e diga-me quem seria
+que no meu logar não haveria calculado? Calculamos os nossos interesses,
+as nossas mais generosas acções, até, sem darmos por isso,
+instinctivamente. Pois; se enganam, quantos alarmam que procedem movidos
+por pura nobreza de alma. Eu, porém, não quero enganál-o. Confesso que
+calculei. Mas, sempre quero que me diga, seria levando em vista o meu
+interesse pessoal? A mim, Pavel Alexandrovitch, que mais me será
+preciso? Vivi o meu seculo[12], calculei para bem d'ella, do meu anjo,
+da minha filha: e qual será a mãe que m'o lance em rosto?
+
+As lagrimas inundavam o rosto de Maria Alexandrovna.
+
+Pavel Alexandrovitch tem escutado com pasmo semelhante confissão:
+latejam-lhe as palpebras, esforça-se por comprehender.
+
+--Qual seria a mãe, sim! diga lá!... pergunta elle, em conclusão.
+
+Mas cae em si, acto continuo, e:
+
+--Canta lindamente, Maria Alexandrovna, mas tinha-me dado a sua palavra,
+tinha-me alentado a esperança... Como posso eu supportar semelhante
+coisa? Terei que engulir a propria vergonha!
+
+--E acredita talvez que não pensei no senhor, meu querido Pavel? Pelo
+contrario, em todos os meus calculos, o senhor tinha a sua parte. Ouso
+dizer, até, que foi por sua causa que eu emprehendi este negocio.
+
+--Por minha causa! exclama Mozgliakov, desnorteado, d'esta vez. Como
+assim?!
+
+--Meu Deus! Como é que se pode ser tão simples, ter vistas tão
+limitadas! exclama Maria Alexandrovna erguendo as mãos ao ceu. Esta
+mocidade! O tal Shakspeare! E ahi tem o que elle lhe arranjou, aquelle
+sonhador, aquelle phantasista! Viver da intelligencia e dos pensamentos
+alheios! E o senhor a perguntar--_meu bom Pavel Alexandrovitch_, qual é
+n'este caso o seu interesse. Para maior clareza, consinta-me uma leve
+digressão. A Zina ama-o, é incontestavel Mas tenho notado que, a
+despeito do seu manifesto amor, o caracter de Pavel Alexandrovitch, as
+suas aspirações lhe tem incutido uma tal ou qual desconfiança. Por
+vezes, e como que de caso pensado, contêm-se, é fria para com o senhor.
+Eis o resultado das reflexões que a levaram a desconfiar. Pois não
+reparou tambem n'isto que lhe estou dizendo, Pavel Alexandrovitch?
+
+--Reparei, sim, hoje ainda. Mas que quer dizer com isso, Maria
+Alexandrovna?
+
+--Bem vê, o senhor foi o proprio a reparar n'isso: logo, não me enganei.
+E acima de tudo, foi a estabilidade do seu caracter, a sua constancia o
+que mais duvidas lhe incutiu. Sou mãe, e não havia de conhecer o coração
+de minha filha! Ora imagine agora que, em vez de entrar aqui com
+exprobações, e até com injurias, em vez de a irritar, de a offender, de
+a melindrar, a ella tão bella, tão pura e soberba, e por esse facto, a
+despeito ainda da sua vontade, ir tornar-lhe mais firme a desconfiança
+com respeito ás suas inconstancias; supponha que acceitava com brandura
+a noticia, com lagrimas de magua, com desespero, até, mas com
+dignidade...
+
+--Hum!
+
+--Mau! Não me interrompa. Pavel Alexandrovitch. Quero expôr-lhe um
+quadro que possa ferir-lhe a imaginação. Ora imagine que ia ter com ella
+e lhe dizia: "Zina, amo-te mais que a propria vida, mas afastam-nos umas
+razões de familia. Comprehendo essas razões: trata-se da tua ventura e
+não me atrevo a insurgir-me contra ella. Perdôo-te, Zinaida; sê feliz se
+puderes!" E dito isto, lhe lançava uns olhos, uns olhos de cordeiro nas
+vascas da agonia, se me é licita a expressão. Ponha tudo isto na sua
+ideia e calcule o effeito que haveria produzido uma scena assim no
+coração della!
+
+--Pois sim, Maria Alexandrovna, supponhamos tudo isso--É certo que eu
+podia ter me expressado d'esse modo... mas nem por isso deixaria de
+voltar pelo mesmo caminho com um não pelas ventas.
+
+--Não, não, e não, meu amigo. Não me interrompa! Quero acabar de
+pintar-lhe o quadro para que no animo lhe produza uma impressão nobre e
+completa. Imagine, pois, que a vinha a encontrar; d'ahi a tempos, na
+alta sociedade, num baile illuminado _à giorno_, ao som de uma musica
+enebriante, no meio de um sem numero de beldades, e, no melhor da festa
+tão deslumbrante, o senhor, para alli, sósinho e triste, a scismar,
+pállido, encostado para alli, algures, a uma columna, mas de modo a dar
+nas vistas; o senhor a seguil-a com os olhos na vertigem da dansa; ao pé
+do senhor a vibrarem os divinos accordes de Strauss. Fuzila por todos os
+lados nas conversas o espirito da alta sociedade; e o senhor sósinho,
+enfiado, melancholico, immerso na propria paixão.
+
+Considere--em que estado ficará a Zina quando o vir! E com que olhos o
+não ha de ella contemplar! "E eu," pensará ella, "que duvidei d'aquelle
+homem! Tudo me sacrificou! Despedaçou o proprio coração por minha
+causa!" Certamente, o seu amor de outr'óra resuscitar-lhe-hia lá dentro
+com força irresistivel.
+
+Deteve-se Maria Alexandrovna para cobrar alento. Mozgliakov a barafustar
+na cadeira, que por pouco não estoira de todo. Maria Alexandrovna
+prosegue:
+
+--A Zina, por causa da saude do principe, parte para o estrangeiro, para
+Italia ou para Hespanha, o paiz das murtas, dos limoeiros, do azulino céu
+do Guadalquivir, o país do amor, o país onde se não pode viver sem amar,
+onde as rosas e os beijos adejam por assim dizer no ar. E o senhor vae
+atrás d'ella, compromette a sua situação, as suas relações, tudo!... E
+principia então o seu romance de amor: amor, mocidade, Hespanha... Deus
+meu!... É certo que será platonico o seu amor, puro... mas o senhor... em
+summa, enlanguescem a contemplarem-se um ao outro... Espero que me haverá
+comprehendido, meu amigo?--Não faltarão, por lá, entes soêzes, vis,
+miseraveis para affirmar que não foi a lembrança do seu parentesco com o
+velho que o arrastou ao estrangeiro. Muito de proposito me referi ao
+platonismo do seu amor; não ignoro que haverá quem lhe atribua differente
+significação.
+
+Mas sou mãe, Pavel Alexandrovitch e seria incapaz de o impellir para mau
+caminho!... É claro que o principe os não poderá vigiar a ambos; isso
+que importa, comtudo? Poder-se-ha fundar n'isso semelhante accusação?
+
+Até que por fim, morre o principe abençoando o proprio destino. Ora
+diga-me quem é que depois ha de casar com a Zina, a não ser o senhor? É
+parente tão afastado do principe que o parentesco nunca poderia
+representar um impedimento ao consorcio. Acceita-a, joven, rica,
+princêsa, e em que ensejo? Quando os mais nobres senhores se poderiam
+ufanar da sua alliança! Por causa d'ella, entra na mais alta sociedade;
+obtêm um posto de summa importancia, promoções. Diz o senhor que dispõe
+de cento e cincoenta almas? Mas depois será rico. O principe não deixará
+de fazer um testamento nos termos, por isso lhe respondo eu. E em
+conclusão, o principal, é o ella estar segura dos seus sentimentos e o
+senhor vir a ser para ella um heroe pela virtude e pela abnegação. E
+ainda me pergunta, onde vae n'isto o seu interesse? Tem-n'o deante dos
+olhos, a contemplál-o, a rir-se para o senhor, e a dizer-lhe: "Aqui me
+tens!" Ora vamos, Pavel Alexandrovitch!...
+
+--Maria Alexandrovna! exclama Pavel Alexandrovitch, a tudo fiquei
+percebendo, agora! Portei-me como homem grosseiro, vil, reles!...
+
+Levanta-se com vivacidade e puxa pelos cabellos ás mancheias.
+
+--E como homem inconsiderado, accrescenta Maria Alexandrovna,
+inconsiderado, eis o que o senhor é!
+
+--Sou um asno, Maria Alexandrovna! exclamou com desespero o môço. E
+agora, está tudo perdido! E eu que a amava com loucura!
+
+--É possivel que não esteja tudo perdido, declara Madame Moskalieva,
+baixinho, como quem está reflectindo.
+
+--Ah! se fosse possivel! Ajude-me! aconselhe-me! Valha-me! E pôs-se a
+chorar o Mozgliakov.
+
+--Meu amigo, diz em apiedada voz Maria Alexandrovna e estende-lhe a
+mão,--praticou esse seu acto no ardor do seu affecto, estava exasperado,
+nem sequer tinha consciencia do que fazia. E ella não deixará de o
+avaliar.
+
+--Amo-a com loucura e estou prompto a sacrificar-lhe seja o que for!
+clama o Mozgliakov.
+
+--Ora escute, justifica-lo-hei aos olhos d'ella.
+
+--Maria Alexandrovna!
+
+--Sim, fica tudo por minha conta: collocál-os-hei em presença um do
+outro. E o senhor diz-lhe tudo tal qual eu acabo de lh'o dizer.
+
+--Ah! meu Deus! Que bondade a sua, Maria Alexandrovna!... Mas... não
+seria possivel procedermos a isso desde já?
+
+--Deus nos defenda! Sempre é muito estouvado, meu amigo! Ella, então,
+que é tão soberba! Ia tomar isso como uma nova insolencia, um ultraje,
+até! Eu arranjarei tudo, e não ha de passar d'amanhã; agora, comtudo, vá
+se embora, vá até casa do tal negociante, ou para onde lhe apetecer...
+Ou, se, antes quer, volte esta noite, mas não serei eu que lh'o
+aconselhe.
+
+--Vou m'embora! vou m'embora!
+
+Meu Deus! Resuscitou-me! Mas uma pergunta, ainda: e se o principe não
+morre tão cedo?
+
+--Valha-nos Deus! Sempre é muito ingenuo, meu caro Pavel! O senhor o que
+deve é rogar a Deus que conserve os dias d'aquelle vélhito, todo elle
+bondade, carinho, cavalheirismo! Devemos desejar-lhe longa vida, de todo
+o coração! E eu serei a primeira; noite e dia, com lagrimas, a rezar
+pela ventura de minha filha! Mas, ai de mim! A saude do principe,
+coitado, quer me parecer que está muito abalada! E demais, elle não
+deixará de fazer a sua visita á capital, de levar a Zina aos bailes, e
+receio muito, muito, acredite, que isso concorra a dar cabo d'elle!
+Orêmos, porém, meu caro Pavel, e quanto ao mais, entreguêmo-nos nas mãos
+de Deus! Espére, arme-se de paciencia, seja viril, e viril, acima de
+tudo! Nunca puz em duvida a nobreza dos seus sentimentos... Aperta-lhe
+com força as mãos, e o Mozgliakov sáe do aposento em bicos de pés.
+
+--Até que em fim! Vi-me livre de um imbecil! diz com ares de triumpho. E
+agora vamos aos outros... Abre-se a porta e entra por ali dentro a Zina.
+Vem mais pallida do usual; fulgem-lhe os olhos com febril clarão.
+
+--Mamã, veja se acaba com isto, que eu estou, que já nem posso mais; é
+tão nojento tudo isto que me vem tentações de fugir por ahi fora. Não me
+faça padecer por muito mais tempo, não me irrite! Este lodaçal causa-me
+engulho, entendeu?
+
+--Zina, que tens tu, meu anjo?... Estiveste escutando á porta! exclama
+Maria Alexandrovna olhando de fito para a filha.
+
+--Escutei, é verdade.--Veja se m'o quer lançar em rosto, como o fez
+aquelle imbecil? Juro-lhe que se porfiar em obrigar-me a representar
+semelhante papel em tão vergonhosa comedia, renuncío a tudo, e acabo com
+tudo, com uma só palavra. Não ha duvida que me resolvi a prestar-me á
+principal vilania, mas foi por me não conhecer a mim mesma; atabáfo com
+semelhante vergonha!
+
+E sae atirando com a porta.
+
+Maria Alexandrovna segue-a com a vista e fica a scismar.
+
+"É andar ligeira, depressa! É de si que depende tudo, e em si que
+consiste o maior perigo, e se esses miseraveis porfiarem em se colligar
+contra nós, se principiam para ahi a dar á lingua, tudo está perdido! E
+ella não poderá resistir contra tantas arrelias e acabará por
+entregar-se mediante uma rejeição. Custe o que custar e sem demora, urge
+carregar para o campo com o principe. Prego commigo lá, n'um pulo, e
+carrégo com aquelle estafermo do senhor meu esposo para aqui. Sequer ao
+menos sirva para alguma coisa! E assim que o outro accordar,
+safamo-nos."
+
+Toca a campainha.
+
+--E então! a parêlha? pergunta ao creado que entra.
+
+--Está prompta, ha que tempos, responde o criado.
+
+(Maria Alexandrovna mandou pôr o trem no acto de acompanhar o principe
+ao quarto d'este.)
+
+Veste-se á pressa e corre ao quarto da Zina para lhe transmitir o seu
+plano e dar-lhe as devidas instrucções. A Zina, comtudo, nem lhe quer
+dar ouvidos, debruçada no leito com o rosto enterrado no travesseiro
+ensopado de lagrimas; a arrancar com as niveas mãos os compridos
+cabellos; tem os braços nus até ao cotovêlo. Saccóde-a, a revézes, um
+estremeção. A mãe dirige-lhe a palavra, sem que a Zina consinta em
+erguer a cabeça.
+
+Maria Alexandrovna insiste por instantes, depois, sae, inquietissima.
+Sobe para a carruagem e recommenda que espertem a parelha.
+
+"O peor de tudo", vae ruminando comsigo, "é a Zina ter ouvido a conversa
+que eu tive com o Mozgliakov. Empreguei com ella e com elle quasi que os
+mesmos argumentos; ella é orgulhosa e offender-se-hia, talvez... Hum! o
+que a tudo sobreleva, é a necessidade de por mãos á obra, antes de que
+conste seja o que fôr! Que desgraça! E se eu, para mais ajuda, não fosse
+encontrar em casa aquelle meu imbecil?!"
+
+Ante esta hypothese, enraivece-se, toma-se de um rancor que nada
+vaticina de bom para Aphanassi Matveich. E Maria Alexandrovna
+impaciente, a esfervilhar!
+
+Os cavallos despedem a galope.
+
+
+
+
+X
+
+
+A carruagem não corre, vôa.
+
+Dissémos que, n'aquella mesma manhã, emquanto ella andava em procura do
+principe, por todos os cantos da cidade, já havia accudido á mente de
+Maria Alexandrovna um alvitre genial: era o confiscar por sua vez o
+principe quanto antes, e pregar com elle no campo;--n'aquella aldeia
+onde floria em paz o beatifico Aphanassi Matveich. Ia pois realizar
+aquella sua inspiração. Mas não encubramos ao leitor que principiava a
+sentir-se atribulada por uma inquietação inexplicavel. Aos proprios
+heroes acontece outro tanto, e no ensejo, justamente, em que estão
+prestes a atingir seus fins. Advertia-a um qualquer instincto de que
+havia perigo na permanencia em Mordassov.
+
+"Uma vez no campo, vire-se tudo isto pés, com cabeça, que a mim tanto se
+me dá!"
+
+É certo, que ainda no proprio campo, não ha tempo para perder: tudo
+poderá acontecer, tudo... E n'essa conformidade, Maria Alexandrovna
+acha-se resolvida a concluir immediatamente o consorcio. O cura da
+aldeia procederá á ceremonia na propria residencia. D'alli a dois dias,
+no outro dia, talvez, em caso de urgencia. Quantos casamentos se não tem
+visto, aldravados para alli em duas horas! Quanto ao principe, é levál-o
+a acceitar como necessidade de bom sizo uma tal precipitação, semelhante
+ausencia de toda e qualquer festa. "Será mais decente e mais nobre"...
+Poder-se-hia até seduzil-o pelo lado romanesco do negocio e fazer-lhe
+vibrar assim a fibra sentimental do coração. Enebriál-o-ha, se tanto fôr
+necessario, mantêl-o-ha n'aquelle estado de embriaguez, e a Zina ha de
+ser princêsa.
+
+Se houver algum escandalo lá por Petersburgo ou por Moscou entre a
+parentéla do principe, consolações não hão de faltar. Em primeiro logar,
+são coisas que ainda estão para vir; em segundo, Maria Alexandrovna está
+convencida de que, na alta sociedade, nada se faz sem escandalo, e muito
+mais tratando-se de casamento: que é estilo. Mas os escandalos da alta
+sociedade, a seu ver, tem uma côr mui particular de grandiosidade, no
+genero do _Monte-Christo_ e das _Memorias do Diabo_. Finalmente, a Zina
+bastar-lhe-ha mostrar-se, e a mãe ajudál-a com seus conselhos, e toda a
+gente ficará desarmada, acto-continuo, entre todas aquellas condessas e
+princêsas, não havendo uma só que seja capaz de resistir á mordassoviana
+habilidade de Maria Alexandrovna, sósinha contra todas ellas juntas ou
+contra cada uma em particular.
+
+E é animada por semelhante pensamento que Maria Alexandrovna vem ter com
+Aphanassi Matveich o qual lhe é necessario, segundo seus planos.
+
+Effectivamente, levar o principe para o campo é levál-o para casa de
+Aphanassi Matveich com quem o principe é possivel não se dar lá muito de
+travar conhecimento: mas se Aphanassi Matveich fôr o proprio a
+convidál-o, o caso muda de figura. E demais, a apparição de um chefe de
+familia, de edade veneranda, de gravata branca, casaca, chapeu na mão,
+acorrendo expressamente das suas propriedades, á noticia de que se acha
+em Mordassov o principe K... é caso para produzir optimo effeito no amor
+proprio d'aquelle ginjinha.
+
+Até que por fim, havendo tragádo três verstas a carruagem, o cocheiro
+Safron pára junto ao patim de um comprido edificio com um unico andar,
+casarão de madeira, com uma extensa fieira de janélas, e envolto n'umas
+tilias venerandas. É a residencia estável de Maria Alexandrovna.
+
+Já se acham illuminadas as janélas.
+
+--Onde está o manequim? clama Maria Alexandrovna caíndo como uma
+trovoada, no vestibulo. Que faz aqui esta toalha? Ah! estava aborrecido,
+e ainda não saiu do banho! E sempre n'aquelle fadario do chá! E então!
+Para que estarás tu para ahi a esbogalhar esses olhos, meu idiota
+incuravel? Por que é que se não corta esse cabello?!
+
+Grichka! Grichka! Por que é que não cortaste o cabello ao _barine_
+conforme te dei ordem, a semana passada?
+
+Maria Alexandrovna premeditára operar em casa de Aphanassi Matveich uma
+entrada menos violenta. Mas ao vêl-o entretido a sorver o seu cházinho,
+com toda a sua pachorra, não foi senhora de sopitar a indignação. Para
+ella, tamanhos cuidados, e para elle, para aquelle ente inutil, aquella
+paz podre! Semelhante contraste chóca de modo cruel Maria Alexandrovna.
+E todavia, o manequim, ou para nos expressarmos com mais urbanidade,
+aquelle a quem applicam o ápodo, está sentado em frente do samovár;
+inerte, bôcca e olhos escancarados, petrificado, quasi, pela apparição
+da consorte. O adormecido vulto do Grichka assoma ao vestibulo. O
+Grichka tosqueneja os olhos durante toda esta scena.
+
+--Se elle não deixa... E ahi esta porque é que o não fiz, profere em voz
+encatarroada e socarrôna. Peguei na tesoira para ahi umas dez vezes, e a
+dizer-lhe: A _barinia_ não tarda por ahi e apanhamos ambos a nossa
+conta!--E vae elle e diz-me:--Não--espera ahi: quéro que me frizes no
+domingo; e é preciso para isso que o cabello tenha comprimento.
+
+--Muito me contas: Com que então elle, friza-se? Inventaste então essa
+obra dos frizados, assim que eu virei costas?
+
+Que termos são esses? Cuidas talvez que embellezas assim essa tua cabeça
+de idiota? Santo Deus! Que desordem que por aqui vae! E que cheiro! Não
+me dirás, miseravel, d'onde provém semelhante cheiro? vociféra a
+consorte a crescer de mais em mais ameaçadora para o innocente e
+assarapantado de todo Aphanassi Matveich.
+
+--Ah... mi-minha mãezinha, balbucía o esposo sem se erguer e desfechando
+sobre o seu generalissimo uns olhos assustados e suplices, mi... mi...
+minha mãezi...
+
+--Quantas vezes não tenho eu tentado encaixar-te n'essa cabeça de burro
+que não sou tua mãezinha, pedaço de pygmeu? Como te atreves a tratar por
+semelhante nome uma senhora nobre cujo logar é na alta sociedade, e não
+ao pé de um aguadeiro da tua laia?
+
+--Mas, Maria Alexandrovna, tu com tudo isso não deixas de ser minha
+mulher em face das leis! e eu... estou-te falando... na qualidade de
+marido! Objecta Aphanassi Matveich, levando a um tempo a mão aos
+cabellos para os defender.
+
+--Ah! Carranca! Cêpo! Se já se viu! Mulher d'elle em face das leis!...
+Que quererá dizer uma mulher em face das leis? Haverá na alta sociedade
+alguem que empregue semelhante termo de seminarista:--em face das
+leis?--E quem te deu o atrevimento de me recordares que sou tua mulher,
+a mim que faço quanto posso para o esquecer? E para que estavas tu a
+tapar a cabeça com as mãos?
+
+Olhem para este cabello! Todo encharcado! Não está enxuto estas tres
+horas mais chegadas! Como hei de eu carregar com elle? Haverá meio de o
+arrancar d'aqui?--Que hei de eu fazer? Maria Alexandrovna péga ás
+carreiras pela casa fóra, a estorcegar as mãos. A desgraça é nulla e
+facil de remediar, não ha duvida, mas se ella não pode ter mão n'aquelle
+seu genio imperial, impaciente em presença do minimo impecilho! Sente
+que precisa de desabafar a colera na pessoa de Aphanassi Matveich, visto
+como a sua habitual tirannia desandou para si em necessidade. E depois,
+toda a gente sabe o acervo de inopinadas grosserias de que são capazes,
+longe das vistas dos mirones, uns certos entes delicados e pechósos da
+sociedade mais graúda. Aphanassi Matveich, estupido e tremelica, cança a
+vista a seguir com os olhos as evoluções todas da consorte.
+
+--Grichka, exclama esta por fim, traze já, já, ao _barine_ tudo que é
+preciso para se vestir de ceremonia, calça, casaca, gravata e colete,
+brancos. Vá, despacha!
+
+Onde iria parar a escova do cabello?
+
+--Mas se eu acabo de sair do banho, minha mãezinha, vou apanhar algum
+resfriamento...
+
+--Qual historia!...
+
+--Estou com a cabeça encharcada!...
+
+--Ênxuga-se. Grichka, escova o cabello ao _barine_, até que enxugue. Com
+mais força... mais... ainda mais... Assim!
+
+O fiel e zeloso Grichka esfréga, com quanta força tem, o seu _barine_ a
+quem, para mais commodidade, agarrou pelo cachaço, encostando-o para
+trás no divan.
+
+Aphanassi Matveich por pouco não desata a chorar.
+
+--E agora, em pé!... Vê se o levantas, Grichka, dá cá a pomada...
+
+--Vá, abaixas-te ou não, miseravel!
+
+Abaixa-te, já te disse, meu papa jantares.
+
+Maria Alexandrovna com as proprias mãos besunta a grenha ao marido,
+puxando sem dó nem consciencia pelos cabellos, bastos e grisalhos que
+elle, por sua desgraça, não deixou cortar. Aphanassi Matveich põe-se a
+gemer, a suspirar e aguenta, Deus sabe como, semelhante provação.
+
+--Miseravel! Foste tu que murchaste as flores da minha mocidade!...
+Abaixa mais essa cabeça, não ouves! Abaixa-te!
+
+--Mas como é que eu murchei as tuas flores, minha mãezinha? regouga o
+esposo de bruços no divan.
+
+--Manequim! Nem sequer percebeste a allegoria! Agora vê se te penteias.
+
+--Grichka, veste-o depressa, anda!
+
+A nossa heroina senta-se n'uma poltrona a vigiar com olhos de inquisidor
+a ceremonia indumentaria.
+
+Aphanassi Matveich lá conseguiu tomar folego, e, quando se chegou ao
+laço da gravata, afoita-se a ponto de emittir opiniões ácêrca do feitio
+e da perfeição da laçada. Em conclusão, assim que envergou a casaca, a
+distincta personagem tem reconquistado de todo o aprumo e pega a
+rever-se ao espelho com manifesto desvanecimento.
+
+--Mas para onde é que tu me levas, Maria Alexandrovna? indága, a fazer
+moquenquices á propria imagem.
+
+Maria Alexandrovna hesita em acreditar n'aquillo que ouviu.
+
+--Não ouvem isto? Ora o manequim! E como te atreves tu a perguntar-me
+para onde é que eu te lévo?
+
+--Mas já se vê que o devo de saber, minha mãezinha.
+
+--Caluda! Torna-me tu a tratar de mãezinha, e muito mais no sitio aonde
+vamos, e ficas sem chá um mês inteiro.
+
+O marido, espavorido, nem bole sequer.
+
+--Se já se viu? Nem sequer conseguiu apanhar a mais réles condecoração?
+
+Colherão de marmita!--exclama ao contemplar com desprezo a casaca do
+marido, casaca virgem de toda e qualquer insignia.
+
+Até que por fim, Aphanassi Matveich sente-se melindrado.
+
+--Eu não sou colherão de marmita, sou conselheiro, minha mãezinha,
+pondéra com assômo de nobre indignação.
+
+--Quê--quê--quê?--A raciocinar, por mais que me digam! Ora o mujik, o
+ranhoso! Tenho pêna de me faltar tempo para te ensaboar esse bestunto,
+quando não... Mas não as perdes, deixa estar!... Grichka, dá-lhe o
+chapéu e a _chuba_[13]. Assim que eu saír, arruma estes três quartos e o
+quarto aberto. Vá, pega n'essa vassoira! tira as capas aos espelhos, aos
+relogios e quero tudo prompto em menos de uma hora! E tu, tambem, veste
+a casaca, e dá luvas aos criados! Ouviste, Grichka? Ouviste?
+
+Sobem para a carruagem. Aphanassi Matveich está com uma cara espantada.
+Maria Alexandrovna dá voltas ao miolo para lhe encasquetar na cabeça e
+na memoria as recommendações mais essenciaes, elle, porém,
+interrompe-lhe as suas cogitações.
+
+--Maria Alexandrovna, eu esta noite tive um sonho tão exquisito, diz,
+após breve silencio.
+
+--Ápre! Manequim de uma figa! E eu que estava a pensar!... Como te
+atreves tu a vir-me para cá com esses teus sonhos de mujik? Escuta, e
+olha que t'o digo pela ultima vez, se te atreveres, hoje, a fazer a
+minima allusão aos taes sonhos ou ao quer que seja,... toma sentido...
+nem sei o que ha de ser de ti! Escuta bem: o principe K... está
+hospedado em nossa casa. Lembras-te do principe K...
+
+--Se lembro! minha mãezinha, lembro-me muito bem! E por que é que elle
+nos dispensou tamanha honra?
+
+--Cala-te, não é da tua conta! Tu, com a maxima amabilidade, e como dono
+de casa, vaes convidál-o a vir comnosco para o campo. Partimos ainda
+hoje. Mas se lhe disseres uma palavra só que seja, em toda a noite, ou
+amanhã... ou no outro dia... ou em toda a roda do anno, mando-te guardar
+gansos! Nem palavra! São essas as tuas funcções--e mais nada!
+Intendeste?
+
+--Mas se me fizerem perguntas?
+
+--Não importa! Cálas-te.
+
+--Pois sim, mas uma pessoa nem sempre pode ficar calado, Maria
+Alexandrovna!
+
+--Responde com monosylabos, um _hum!_... ou coisa que o valha, para que
+fiquem na persuasão de que és homem espirituoso e que reflectes antes de
+responder.
+
+--Hum!...
+
+--E atenta bem n'isto que te estou dizendo. Carrégo comtigo: ouviste
+falar do principe, e acto-continuo, doido de contente, deste-te pressa
+em vir apresentar-lhe os teus respeitos e convidál-o a ir para o campo.
+Percebeste?
+
+--Hum!
+
+--Para que estás tu já a dizer: _hum!_ meu parvalhôco! Responde.
+
+--Está bom, minha mãezinha, tudo se fará á medida dos teus desejos. Mas,
+não me dirás por que é que eu tenho que o convidar?
+
+--Quê, quê? pois ainda te mettes a raciocinar?! Que tens tu com isso? E
+ainda te atreves a fazer-me perguntas?
+
+--Mas... é que eu, por mais que faça não posso perceber como é que eu o
+hei de convidar sem dizer palavra!
+
+--Eu falarei por ti, e tu, fazes-lhe a tua cortesia, e mais nada,
+percebeste?--De chapeu na mão...
+
+--Percebi..., minha mãe... Maria Alexandrovna.
+
+--O principe é espirituosissimo: diga elle o que disser, ainda quando se
+não dirija á tua pessoa, responde-lhe a tudo com um sorriso bonacheirão
+e alegre, percebeste?
+
+--Hum!
+
+--E elle a dar-lhe com o _hum!_ Vê se acabas com o tal _hum!_--a mim,
+responde-me ao que eu te perguntar. Percebeste?
+
+--Percebi, Maria Alexandrovna, percebi muito bem. E como é que eu não
+havia de perceber? Mas estou a dizer _hum!_ para me ir exercitando. O
+que tu queres é que eu me ponha a olhar para o principe, com um ar de
+riso... mas quando elle não me vir?
+
+--Forte espantalho! Forte idiota! Cala-te, cala-te, e cala-te! Olha e
+sorri.
+
+--Mas se elle é capaz de suppor que sou surdo!
+
+--Olhem a desgraça! Sequer ao menos não ficará sabendo que és um
+imbecil.
+
+--Hum! E se mais alguem me fizer perguntas?
+
+--Ninguem t'as faz, deixa estar! E demais, não estará lá ninguem. E se
+por infelicidade, do que Deus nos defenda, apparecer alguem e te
+perguntarem alguma coisa, responde desde logo com um sorriso sarcastico.
+Sabes o que vem a ser um sorriso sarcastico?
+
+--Uma careta muito espirituosa, pois não é verdade, minha mãezinha?
+
+--Eu te darei o espirituoso, deixa estar, manequim! E quem é que te iria
+suppor capaz de ter espirito, meu asneirão? Um risinho de escarneo,
+percebeste? De escarneo e de desdem.
+
+--Hum!
+
+--Ai! Estou toda eu em suores frios por causa d'este estafermo! murmura
+Maria Alexandrovna. Não ha mais que ver, acho que fez uma jura em como
+me havia de murchar de todas as minhas flores! Teria sido muito melhor o
+prescindir delle.
+
+A raciocinar por esta forma, Maria Alexandrovna tudo é olhar pela
+vidraça do trem e atiçar o cocheiro. Voam os cavallos, e ella a achar
+que se não mexem. Aphanassi Matveich, alapardado a um canto, a repetir
+mentalmente a lição. Até que emfim a carruagem alcança a casa de Maria
+Alexandrovna! Mas ainda bem a nossa heroina não tinha posto pé no patim,
+eis que vê passar ao lado do seu proprio trem um trenél coberto, de dois
+assentos, o trenél da Anna Nikolaievna Antipova.--Vinham n'elle duas
+senhoras. Uma dellas é a propria Anna Nikolaievna Antipova, a outra a
+Natalia Dmitrievna, duas amigas sinceras e recentes. Maria Alexandrovna
+olha para ellas, e o coração dá-lhe um báque. Ainda bem não abrira a
+bocca para exclamar, eis que chega outra carruagem, com outra visitante.
+Ouvem-se alegres exclamações.
+
+--Maria Alexandrovna com o Aphanassi Matveich... ambos no mesmo trem!
+Feliz coincidencia! E nós que vinhamos passar a noite em sua casa!
+Agradabilissima surpreza!
+
+As visitantes galgam a escada a pipilarem que nem andorinhas, Maria
+Alexandrovna contempla-as, estupefacta.
+
+--E não vos tragar o chão! diz, lá comsigo; cheira-me isto a conluio...
+Pois sim!... vocês o que não tem é unhas para luctar commigo, minhas
+amiguinhas!... Esperem um nadinha!...
+
+
+
+
+XI
+
+
+Mozgliakov saíu de casa de Maria Alexandrovna, consoladissimo. Não foi a
+casa do Borodoniev, pois necessitava de estar sósinho. Sentia a cabeça
+atravancada de romanescos devaneios. Phantaziava a explicação solemne
+com a Zina, o generoso perdão, scena melancolica no baile, lá em
+Petersburgo; Hespanha, o Guadalquivir, o principe no leito da agonia a
+juntar nas proprias mãos as mãos dos dois amantes, e em conclusão, o
+amor d'uma mulher tão formosa, vencido por tanto heroismo; por aqui e
+por acolá, um ou outro favor de alguma baronêsa, ou condessa de alto
+cothurno, n'aquella sociedade onde semelhante casamento lhe daria
+certamente ingresso, um logar de vice-governador, dinheiro; n'uma
+palavra, toda a eloquente descripção de Maria Alexandrovna. Mas, emfim,
+como explicál-o?--Através de todos aquelles arrebatamentos eis lhe surge
+o seguinte pensamento, algo desagradavel, que, em todo o caso, tudo
+aquillo estava ainda em vêl-o-hemos, e no momento actual, elle, com o
+que ficara, fôra com um nariz de palmo! De subito, nota que se alargou
+demais pelo arrabalde menos central de Mordassov. Vem caíndo a noite.
+Pelas ruas, ladeadas de pardieiros, ladram, como aliás succede em
+toda e qualquer cidade provincial, aquelles innumeros cães que
+infestam de preferencia os bairros em que nada ha que guardar ou
+que roubar. Derrete-se a neve. De vez em quando, topa-se com algum
+_mestchanine_ retardado, ou com qualquer _baba_[14] enfunicada n'uma
+tulupa e a arrastar umas botifarras. Tudo aquillo principiava a irritar
+a Pavel Alexandrovitch: mau signal, visto como, quando uma pessoa está
+contente, a tudo acha risonho. Pavel Alexandrovitch lembra-se com
+despeito de que, até aquelle dia, era elle quem dava o tom em Mordassov.
+Era recebido por toda a parte como um noivo, uma situação tão
+interessante, e felicitavam-n'o, e elle todo desvanecido. E eis que, de
+subito, vinha a constar que se achava reformado; rir-se-hiam á sua custa
+por toda a parte. E com tudo isso não é exequivel estar a iniciar toda a
+gente ao segredo do tal baile de Petersburgo, da columna melancolica e
+do Guadalquivir!
+
+Triste e pensativo, acaba por formular este pensamento que secretamente
+lhe faz sangrar o coração desde alguns instantes: "Mas tudo isto será
+verdade, realmente? Virá tudo a acontecer conforme m'o pintou Maria
+Alexandrovna?" Occorre-lhe, n'aquelle ensejo, exactamente, que Maria
+Alexandrovna é mulher arteira quanto possivel; que, apezar da estima
+geral que disfructa, é uma enredadeira de respeito, que mente com o
+maximo desplante, que é possivel que tivesse motivos particulares para o
+afastar; que, emfim, o descrever um quadro seductor não compromete a
+coisa nenhuma. Pensa na Zina, revóca aquelle seu olhar de despedida tão
+pouco compativel com um desatinado amor. Lembra-se de que uma hora antes
+foi tratado por ella na qualidade de asno--sem tirar nem pôr. Ante uma
+tal recordação, Pavel Alexandrovitch estaca de vez, como que pregado ao
+chão, e ruboriza-se a ponto de lhe virem as lagrimas aos olhos. E como
+que de proposito, d'ali a instantes, acontece um desagradavel incidente:
+escorrega e estatéla-se num montão de neve... Emquanto elle escabuja e
+patinha, um bando de canzoada, que vinham atrás d'elle a ladrar, accodem
+por todos os lados; um d'elles, o mais pequeno e mais atrevido,
+aferra-se-lhe á aba da chuba. Pavel Alexandrovitch desenvencilha-se
+dando ao diabo a cainçada e o destino e, com a aba do casacão
+esfarrapada e uma indefinivel tristeza na alma, lá se vae arrastando até
+á esquina da rua. Ali, percebe que vae perdido.
+
+É sabido que um homem, quando se acha perdido em um bairro que lhe é
+extranho, e muito mais de noite, nunca se resolve a meter a direito por
+uma rua larga. Impelle-o, mau grado seu, um poder misterioso para toda a
+casta de betesgas que topa a geito. Em harmonia com este sistema, Pavel
+Alexandrovitch perde-se de todo. "Diabos levem tanta chiméra!" exclama e
+cospe com engulho. "Leve o diabo os sentimentos elevados e o tal
+Guadalquivir!"
+
+Não me abalanço a afiançar, que Mozgliakov n'aquelle ensejo apresentasse
+aspecto por demais seductor. Até que emfim, extenuado, fatigado, em
+seguida a haver andado a êsmo para cima de duas horas, alcança a
+escadaria de Maria Alexandrovna. Fica espantado ao dar com os olhos em
+tanta carruagem: "Tem visitas? Alguma _soirée_? Com que intenção?"
+
+Informado por um lacaio de que Maria Alexandrovna tinha carregado com
+Aphanassi Matveich do campo, de gravata branca, que o principe já está
+acordado, mas que ainda não desceu do quarto, Pavel Alexandrovitch, sem
+dizer palavra, vae lá acima ter com o tio. Acha-se n'aquella disposição
+de animo em que um homem de caracter fraco se decide pela ideia de maior
+malignidade, em favor da vingança, sem se lembrar de que virá talvez a
+arrepender-se, durante toda a sua vida.
+
+Sobe. Dá com os olhos no principe, sentado n'uma poltrona em frente do
+seu toucador de viagem, com a caréca á vela, mas com a cara já rebocada
+e com as suissas e a pêra postiça já pegadas. O chinó está entre mãos do
+edoso criado particular, Ivan Pakhomitch. Ivan Pakhomitch está a
+penteál-o com modo absorto e respeitoso. O principe apresenta aspecto
+lamentavel. Não se acha ainda restabelecido d'aquella sua temulencia.
+Enterrado na poltrona, a tosquenejar as palpebras, todo elle engelhado,
+amarrotado, e a olhar para o Mozgliakov como se o não conhecesse.
+
+--Como vae de saude, rico tiozinho? indaga Mozgliakov.
+
+--Como? Ah! És tu? acaba por dizer o tio. Pois eu, manozinho, dormi a
+minha somnéca. Ai! meu Deus! exclama de subito, animadissimo. E eu que
+estou sem o chi... chi... n... nó!
+
+--Não se assuste, tiozinho! Eu ajudo-o a pôl-o se quiser.
+
+--Ora esta! E ahi estás tu senhor do meu segredo! Eu bem dizia que era
+pr... preciso fe... fe... char a po... rta! Pois então, meu amigo, vaes já,
+já, dar-me a tua palavra de honra que... que, não has-de abu... sar do meu
+segredo, e que não dizes, a nin... guem que é po... pos... tiça a minha
+cab... be... leira!
+
+--Ora vamos, tiozinho, pois suppõe-me capaz de semelhante vilêza?
+exclama Mozgliakov que deseja agradar ao ancião.
+
+--Está, claro... está... c... laro, e como eu sei que és cavalheiro...
+vá... la... vaes fi... car espantado: vou te des... vendar de todo os meus
+se... segredos--Que me dizes a estes bi... bigodes--m... meu caro?
+
+--Um portento, rico tio, espantosos! Como é que os pode conservar do
+mesmo comprimento, por tanto tempo?
+
+--Socéga, meu amigo... s... são postiços, diz o principe a olhar muito
+ufano para Pavel Alexandrovitch.
+
+--Postiços!?--É inacreditavel! E as suissas, então? Confesse que as
+pinta, tiozinho!
+
+--Não só as pin... into, como são postiças e mais que... que pos... tiças!
+
+--Postiças! Isso agora, tenha paciencia, o tio está a caçoar commigo!
+
+--Pa... lavra de honra, amigo! exclama o principe desvanecido. Ora põe na
+tua ideia, que toda a gente... sem excepção--anda ill... udida, como tu. A
+propria Stepanida Matveina não quer acreditar que o sejam, e olha que é
+ella quem m'as põe. Mas tenho a certeza, meu amigo, de que me has de
+guardar segredo--Dá-me a tua pa... palavra de honra...
+
+--Conte desde já com ella, querido tio! Mas, insisto, suppõe-me então
+capaz de semelhante vilania?
+
+--Ai! meu amigo! Que tombo que eu apanhei! Não fazes ideia! O Pamphili,
+tornou-me a virar a car... a carruagem.
+
+--Pois elle tornou a pregar-lhe outro tombo? Mas quando?
+
+--Iamos nós quasi a chegar ao... mo... mos... teiro...
+
+--Já sabia, tiozinho!
+
+--Não, não é isso... se ainda não ha duas horas. Fui ao mo... mosteiro.
+Foi elle que me levou... e pregou-me um tombo! Que susto que... que eu
+apanhei! Ainda nem tenho o co... coração no seu logar.
+
+--Mas o tio estava a dormir?
+
+--Está... c... laro... estava a dormir... E vae... d'ahi fui...
+vi... viajar... E d'ahi... d'ahi... talvez fosse... Ah! que coisa tão
+exquisita!...
+
+--Afirmo-lhe que estava a dormir, tiozinho... que sonhou... Depois de
+jantar ferrou-se a dormir muito socegado.
+
+--De... devéras?!
+
+O principe pós-se a scismar.
+
+--Sim... sim... effec... tivamente, talvez fôsse. E d'ahi, lembro-me
+muito bem do sonho... todo. Primeiramente, sonhei com um toiro muito
+bravo... com uns páus!... Depois com um pró... ó... curador... mas tambem
+tinha p... páus!
+
+--Havia de ser o Nikolai Vassiliévitch Antipov, tiozinho.
+
+--Está... claro... era elle... era... E depois tambem sonhei com
+Na... napoleão... Bo... bo... naparte. Não sabes, amigo, diz toda a gente
+que n... nos parecêmos?... De perfil... pelos modos... faço lembrar um
+papa... muito antigo: Tu, que dizes?... Achas que te... terei ares de
+papa?
+
+--Acho que se parece mais a Napoleão.
+
+--Está... c... laro... é assim... mesmo... de... de... frente. E d'ahi,
+tambem d'isso estou conven... cido, meu caro. Vi-o em sonho, sentado lá
+na sua ilha... Não sabes? A fô... legar... muito contente... muito
+lam... peiro!... Que graça que... eu lhe achei!
+
+--Refére-se a Napoleão, tiozinho? indaga Pavel Alexandrovitch, todo elle
+absorto, a observál-o.
+
+Principiava a surgir-lhe na mente um estranho pensamento, sem que elle
+pudesse formulál-o com clareza.
+
+--Está claro... Na... na... po... leão. Tivémos uma pa... palestra
+filosó... fica... Não sabes? tenho pena de que os Inglezes lhe fizessem
+aquillo que... que lhe fizeram... É verdade que se elles o não tivessem
+en... gaiolado... atirava-se para ahi a to... toda a gente... aquelle
+damnado! Mas com... apezar d'isso... foi pena!... Eu cá... por mim não
+era capaz de o fazer! Prega... va com elle n'uma ilha deserta...
+
+--Deserta... então para quê? perguntou, distrahido, Mozgliakov.
+
+--Está... claro... De... deserta, não, mas habitada por gente com juizo.
+E depois arranjava-lhe distracções... theatro, mu... musica...
+ba... bailados e tu... tudo isso por conta do Estado. Dáva-lhe licença
+para passear... vi... vigiado... já se vê... qu... quando não...
+pi... pisgava-se... Elle gostava de uns certos bôlos... Pois bem!
+faziam-se-lhe todos os dias... Tratava-o com pa... pater... nal carinho:
+Elle... commigo... arre... pen... dia-se... di... digo... t'o eu.
+
+Mozgliakov escuta distrahido a garrulice do vegête, a roer as unhas,
+impaciente. Elle a querer desviar a conversa para o assunto do
+casamento, e nem sequer sabe o motivo, mas referve-lhe lá dentro uma
+maldade, infame. De subito, eis que exclama o tio, muito espantado:
+
+--Ai! meu amigo! E eu que me esquecia de t'o par... parti... cipar...
+Saberás que fiz ho... je o meu pe... pedido!
+
+--O seu pedido, tiozinho?... exclama Mozgliakov animando-se
+acto-continuo.
+
+--Está... c... claro... o meu pedido! Já te vaes embora, Pakhomitch? Está
+bem. É uma menina encanta... dora!... Mas confesso... amigo, que andei
+com leviandade, estou-o per... cebendo agora... Ai! meu Deus!
+
+--Mas, se me dá licença, querido tio, quando é que fez esse tal pedido!
+
+--Confesso, que... não... sei ao certo, qu... ando foi, amiguinho!...
+Querem ver que... seria sonho, tam... tam... bem?... Que co... isa t... tão
+ex... quisita!
+
+Mozgliakov estremece de contentamento... Accode-lhe uma ideia luminosa.
+
+--Mas a quem, e quando é que fez o tal pedido? repete impaciente, já.
+
+--Á... á... fi... lha da casa, meu amigo... áquella... lin... da me...
+nina! E d'ahi... esqué... ceu... me o nome. O peor, meu amiguinho... é
+que não posso casar,... impos... sivel, meu amigo! Que hei de eu fazer?
+
+--Pois decerto... semelhante casamento iria deitál-o a perder! Mas, uma
+pergunta: Tem a certeza de haver feito o pedido?
+
+--Está... claro... tenho a certeza... tenho...
+
+--E se fosse sonho, como aquella sua quéda da carruagem?
+
+--Valha-me Deus!... E o c... caso é que é possivel... no tal sonho... E
+o... peor é que e... eu já nem tenho cara para lhe apparecer... E não...
+achas que se poderia saber... indi... recta... mente, se eu faria ou não
+o tal pedido?
+
+--Sabe o que lhe digo, querido tio? Que acho até escusado ir tirar
+informações.
+
+--E... por-quê?
+
+--Por que tenho a certeza de que tudo foi sonho, tambem.
+
+--Tambem... me quer... parecer... m... meu ca... ro, e tanto... m...
+mais que eu estou sempre a ter sonhos... assim.
+
+--Então já vê, tiozinho... Faça de conta que beberia mais um copito ao
+almoço... ou ao jantar... e ahi tem...
+
+--Está... claro... amigo... foi isso foi,... é o que havia de ser.
+
+--Tanto mais, que o tio, por mais influido que estivesse, nunca se iria
+arriscar a fazer um pedido tão disparatado. O tiozinho, desde que o
+conheço, tive-o sempre na conta de um homem de muitissimo tino.
+
+--Está... c... laro. Está... c... laro.
+
+--Ora considére: ponha na sua ideia que os seus parentes, tão mal
+dispostos já, para com o tio, vinham a ter conhecimento do caso, que
+acontecia?
+
+--Ai! meu Deus! exclama o assustadissimo principe... que acontecia?... é
+verdade!
+
+--Então, já vê! Punham-se a berrar todos á uma que estava doido, que era
+preciso nomear-lhe tutôres, que o tinham embaçado, e catrafilavam-n'o
+para ahi em qualquer parte, guardado á vista.
+
+O Mozgliakov estava farto de saber que o argumento éra de molde a deixar
+espavorido o principe.
+
+--Ai! meu Deus! exclamou o jarrêta, todo elle a tremer...
+engaiolavam-me?!
+
+--Ora considére, tiozinho, passar-lhe-ia nunca pela cabeça o ir fazer um
+pedido tão disparatado? O tio avalia muito bem os seus interesses!
+Affirmo-lhe que foi sonho.
+
+--So... nho, sim, é o que foi! So... nho... e mais nada! Ah! tu... é
+que... que acertaste... com a coisa! E fico... te grato, muito grato...
+por me teres con... vencido.
+
+--E eu, contentissimo, tiozinho, por termos vindo á fala. Se não fosse
+eu, o tio ficava acreditando que estava noivo, e procederia n'esse
+sentido. Veja lá do que se livrou!
+
+--Está c... laro... me... livrei... dizes bem!
+
+--Lembre-se de que está com vinte três annos essa menina! Não ha quem a
+queira, e eis se não quando, apparece o tio, rico, nobre e vae pedil-a
+em casamento! E ellas, já se vê, apanham a pélla no ar: affirmam a toda
+a gente que o tio está noivo e impingem-lh'a em casamento. E em seguida,
+põem-se á espera de que o tio se vá indo desta para melhor.
+
+--Que... me dizes!
+
+--E depois, tiozinho... é lá coisa que convenha a um homem da sua
+jerarchia...
+
+--Está c... claro! Jerarchia...
+
+--Tão intelligente... tão amável...
+
+--Está... c... claro... intelligente... é is... so... é!
+
+--E em conclusão, é principe... Será partido que lhe convenha,
+porventura? Se é que, por qualquer motivo insiste em querer casar.
+Lembre-se do que diriam os seus parentes.
+
+--Ai, meu amigo, comiam-me em vida! Elles que já me não têm feito poucas
+terrafi... as... aquelles des... almados! Ora imagina! Desconfio até
+que... qué-rem pregar commigo n'uma casa... de... sa... saúde! Ora,
+dize-me, achas que se... ja razoavel? Que é que eu havia de fa... zer
+numa casa de saúde?
+
+--Pois certamente, rico tio, e ahi está o motivo porque eu já o não
+largo quando o tio fôr lá para baixo. Estão lá visitas.
+
+--Vi... sitas! Ai! valha-me Deus!
+
+--Não se assuste, tiozinho, eu vou com o tio.
+
+--Sou-te m... muito obrigado... muito! Fô... ste a minha redempção! Mas,
+qu... éres que te diga, eu antes queria ir-me embora!
+
+--Amanhã, tiozinho, amanhã, ás sete horas da manhã! Hoje, despede-se de
+todos e declara que se vae embora.
+
+--Ab... so... lu... tamente!... safo... me... ab... solu... tamente!...
+vou para casa do padre Missail... Mas... meu amiguinho, e se ella casar
+commigo contra minha vontade?...
+
+--Não lhe dê cuidado, tiozinho, cá estou eu. E demais, digam o que
+disserem, responda sempre que foi sonho... o que é verdade, aliás.
+
+--Es... tá... c... claro, sonhei!... Mas sempre te direi... meu a...
+mi... miguinho, que foi um sonho delicioso!... Que for... mosura! É um
+por... tento! E se... soubesses!... Com umas... fórmas!
+
+--Pois então, até logo, tiozinho, vou indo lá para baixo... E o tio...
+
+--Ora... essa!... Então para aqui me deixas?... exclama o principe,
+assustado.
+
+--Não é isso, tiozinho, eu o que vou é indo adiante... não vamos juntos.
+Primeiro eu, depois, o tio. É melhor assim.
+
+--Está-c... laro... melhor. E eu, demais a mais, tenho que tomar nota
+d'um pensamento... capital.
+
+--Pois é o que deve fazer, tio, vá assentando o seu pensamento, e
+depois, não se demore, appareça, e conte que, amanhã...
+
+--Amanhã, de manhã, para casa do-arci-préste... sem fa-lta,... casa...
+do ar... ci... ci... Magnifico! Mas olha que... ella é um por... tento de
+formosura! Que... fórmas! Se não houvesse outro remedio senão casar com
+ella... eu... então...
+
+--Deus o livre de tal, querido tio!
+
+--Está claro!... livre... Está dito! até já, meu amigo! Eu não tardo lá.
+É só tomar no... ta... A proposito,... e... ago... ra me lembra que te
+queria perguntar... se... j... já tinhas lido as _memorias_ de Cásanova?
+
+--Já, tiozinho... Mas por quê?
+
+--Está... c... claro--Por quê?--Mas... deixa lá... já me não lembro do
+que é que te queria dizer.
+
+--Depois se lembrará, tiozinho, até logo.
+
+--Até logo, amiguinho, até logo...--Mas que foi uma... delicia... o tal
+sonho... lá isso foi!
+
+
+
+
+XII
+
+
+--Viémos vêl-a todas, todas! A Prakovia Ilinicha não tarda por ahi! A
+Luisa Karbovna tambem queria vir, pipila a Anna Nikolaievna dando
+entrada na sala e a inspeccionar tudo em redor com uns olhos de
+bisbilhoteira.
+
+É uma mulherzinha, bonitinha, veste com riqueza, mas com umas côres
+espalhafatosas, e com presunção na sua boniteza. Fareja-lhe que o
+principe deve de estar alapardado n'um cantinho qualquer e mais a Zina.
+
+--E a Katerina Petrovna tambem não deixa de apparecer, accrescenta
+Natalia Omstrievna, mulherão com proporções de colosso á qual tem
+reduzido o pêso os jejuns e dando ares de um granadeiro.
+
+Traz um chapelinho, minusculo, côr de rosa, pespegado na nuca. Ella, vae
+em três semanas, é a mais intima amiga da Anna Nikolaievna, de quem ella
+anda atrás, ha muito tempo, e a quem se pudesse nem a pelle lhe deixava.
+
+--O alegrão que ambas me deram em vir passar a noite commigo, nem ha
+palavras que o possam exprimir, cantaróla Maria Alexandrovna, um tanto
+refeita já da instantanea surpreza. Mas não me dirão a que feliz acaso
+devo o prazer?... Nem contava, já, com semelhante honra!
+
+--Valha-me Deus! Maria Alexandrovna, não seja má! diz muito açucarada a
+Natalia Dmitrievna, com voz de pipía, e tregeitos, toda ella--o que
+estabelecia curiosissimo contraste com o seu exterior.
+
+--Mas minha querida, pipila Anna Nikolaievna, precisamos concluir os
+arranjos do tal theatro. Ainda hoje o Petre Mikailovitch disse ao Kalist
+Stanislavitch que está contrariadissimo por não terem corrido bem as
+coisas, e porque andassemos a jogar as cristas. E como succedesse
+ajuntarmo-nos todas quatro, dissémos comnosco: "E se nós fossemos ter
+com a Maria Alexandrovna a ver se levamos a cabo este negocio?" A
+Natalia Dmitrievna passa palavra ás outras, e cáem aqui todas. D'este
+modo poderiamos chegar a um accordo e as coisas entravam no seu curso
+regular. É para que não digam que apenas sabemos andar á unhada, pois
+não é assim, meu anjo? accrescentou dando um beijo a Maria Alexandrovna.
+
+Valha-me Deus! Zinaida Aphanassievna, está cada dia mais linda!
+
+Anna Nikolaievna atira-se á Zina e prega-lhe um beijo.
+
+--Mas se a menina não tem outra coisa que fazer a não ser o ir
+embellezando dia a dia, affirma com affectada amabilidade Natalia
+Dmitrievna a esfregar as mãos.
+
+--Demonios as levem! E eu que nem sequer já me lembrava do tal theatro!
+Sim, senhor, estas pêgas tem apurado a malicia! murmura Maria
+Alexandrovna fula de raiva.
+
+--E tanto mais, meu anjinho, accrescenta Maria Nikolaievna, que o nosso
+querido principe se acha hospedado em sua casa. Bem sabe que não ha
+_pomietok_ de Dukhanova, de paes a filhos, que não tenha tido um
+theatro. Tomámos informações e viémos a apurar que existe algures um
+armazem atulhado de scenario velho, e um panno, e fatos, até. O principe
+esteve hoje em minha casa, mas se quer que lhe diga, fiquei tão
+assarapantada com a visita, que de todo me esqueceu tocar-lhe em
+semelhante coisa. Agora, comtudo, tencionamos conversar com elle a esse
+respeito; ha de ajudar-nos, e o principe não deixará de dar as suas
+ordens para que nos remetam toda essa cangalhada. Pois a quem haviamos
+de encommendar por aqui coisa que se pareça com uma vista de theatro? E
+d'ahi, queremos que o principe em pessoa participe da nossa empresa. É
+necessario levál-o a subscrever: é para os pobres. Quem sabe se elle se
+não encarregará, até, de qualquer papel; é tão condescendente, tão dado!
+Correria tudo ás mil maravilhas.
+
+--Pois já se vê, que acceita um papel! Tanto mais que nada ha mais facil
+do que induzil-o a desempenhar seja que papel fôr, accrescenta
+significativamente Natalia Dmitrievna.
+
+Anna Nikolaievna não tinha enganado Maria Alexandrovna. Vão chegando de
+instante para instante senhoras. Maria Alexandrovna quasi que nem tem
+tempo de se levantar para recebêl-as e de proferir as exclamações da
+praxe em semelhantes casos, exigidas pelas conveniencias.
+
+Não me afoitarei a descrever uma por uma as visitantes. Direi apenas que
+cada uma d'ellas desfecha insidiosa olhadella para a dona da casa. Todas
+ellas denunciando na fisionomia ávida impaciencia. Entre as nobres
+damas, mais de uma, até, concorria ali na espectativa de presencear a
+qualquer escandalozinho extraordinario: ficariam desconsoladissimas se
+se não désse o dito escandalo. Exteriormente, desfaziam-se em
+amabilidades, Maria Alexandrovna porém estava armada para a lucta.
+Choviam perguntas a respeito do principe, naturalissimas todas ellas, na
+apparencia, mas por detrás de todas lá estava uma allusão.
+
+Serve-se o chá. Sentam-se todas á mêsa. Apodera-se do piano um grupo,
+Zina, ao convite de tocar ou de cantar, responde, muito sêca, que se
+acha incommodada. A pallidez do rosto abona-lhe aliás a veracidade.
+Segue-se um tiroteio de perguntas simpáticas, e isso mesmo dá motivo
+para uma allusão.
+
+Indagam noticias á cêrca de Mozgliakov, é á Zina que são dirigidas.
+Maria Alexandrovna não tem mãos de medir: acha-se presente a um tempo em
+cada canto da sala, ouve tudo que dizem as visitantes, supposto sejam
+mais de dez. Responde a quanta pergunta lhe dirigem sem ter necessidade
+de remexer as algibeiras á procura de palavras. Está toda ella a tremer
+com o sentido na Zina, e muito admirada por esta não sair da sala,
+conforme é seu costume em taes occasiões. Notam tambem a presença de
+Aphanassi Matveich. Por via de regra fazem escarneo d'elle para
+melindrarem Maria Alexandrovna na pessoa do marido. Hoje, porém, tudo é
+quererem sacar as palavras do bucho ao tão singelo e franco Aphanassi
+Matveich. Maria Alexandrovna, inquieta, não tira os olhos do marido,
+collocado em estado de sitio.
+
+Elle, responde a todas as perguntas: Hum! com uns modos tão entalados e
+pouco naturaes que é de uma pessoa se derramar.
+
+--Maria Alexandrovna, não ha quem saque uma palavra a Aphanassi
+Matveich! exclama uma caçapa de uma dama com uns olhos vivos e uns ares
+de intrepidez, como quem não tem medo seja de quem fôr, e se não
+atrapalha com coisa nenhuma. Veja se lhe diz que seja mais delicado com
+as senhoras.
+
+--Ainda estou para saber o que é que elle terá hoje, responde Maria
+Alexandrovna, toda ella sorrisos e interrompendo a sua palestra com a
+Anna Nikolaievna e com a Natalia Dmitrievna. Não está nada expansivo;
+aqui estou eu que ainda não fui capaz de lhe ouvir uma palavra. Por que
+é que não respondes á Felissata Mikhailovna, Athanasio?--Que foi que lhe
+perguntou, Felissata Mikhailovna?
+
+--Mas... mas... minha mãezinha... tu não me recommend... encéta Aphanassi
+Matveich assarapantado, desnorteado.
+
+N'este ensejo, está espécado ao pé do fogão acêso, com o dedo pollegar
+enfiado no bolso do collete, em atitude pinturesca e a chuchurrebiar o
+seu cházinho.
+
+Atrapalham-n'o as perguntas das senhoras, põe-se córado qual candida
+donzella. Porém, ainda bem não encetara a propria justificação, eis que
+topa com uns olhos tão irritados da consorte furibunda que fica
+petreficado de terror. Sem saber o que ha-de fazer e desejoso de
+remediar a asneira, e reconquistar a estima de Maria Alexandrovna,
+engole um golo de chá, mas o chá está a ferver, Aphanassi Matveich
+escalda-se, engasga-se, toma-se de um froixo de tosse, e pisga-se da
+sala para o quarto, deixando banzada toda a assembleia. Perceberam tudo,
+e Maria Alexandrovna nem põe em duvida o estarem cabalmente informadas
+as suas visitas, e o haverem-se congregado em sua casa com intuito
+malevolo.
+
+É perigosa a situação. Podem muito bem obrigál-o a descoser-se,
+enredál-o na propria presença da mulher. São capazes, até, de carregar
+com o principe e de o malquistar com Maria Alexandrovna... Em summa,
+cumpre contar com o peor.
+
+A sorte reserva á nossa heroina ainda outra prova. Abre-se a porta, e dá
+entrada o Mozgliakov, a quem ella suppunha em casa de Borodoniev. A
+previdente senhora estremece como se o que quer que fosse lhe houvera
+trespassado o coração. Mozgliakov pára nos umbraes da porta, um tanto
+intimidado, e põe-se a examinar a assembleia. Não consegue dominar o
+sobresalto a ler-se-lhe no semblante.
+
+--Ai, meu Deus! Pavel Alexandrovitch! exclamam diversas vozes.
+
+--Ai, meu Deus! Mas é o Pavel Alexandrovitch!
+
+--E a senhora a dizer-nos, Maria Alexandrovna, que elle a estas horas
+devia estar em casa do Borodoniev?
+
+E a dizerem que estava escondido, Pavel Alexandrovitch, lá em casa do
+Borodoniev, ladra Natalia Dmitrievna.
+
+--Escondido? repete Mozgliakov com sorriso contrafeito. É um tanto
+exquisita a expressão! Queira perdoar, Natalia Dmitrievna, eu não me
+escondo nem tenho motivos para me esconder seja de quem fôr, accrescenta
+vibrando significativo olhar a Maria Alexandrovna.
+
+Estremece Maria Alexandrovna.
+
+--"Ora esta! querem ver que se insurge tambem este bonifrate? diz
+comsigo, a examinar Mozgliakov. Não faltava mais nada!"
+
+--Será verdade. Pavel Alexandrovitch, que está reformado... das suas
+funcções?--arrisca a atrevida da Felissata Mikhailovna, a olhar para
+elle, ironica.
+
+--Reformado? Reformado de quê?
+
+Fui apenas transferido; tenho o meu logar lá em Petersburgo, responde
+com secura Mozgliakov.
+
+--Ainda bem! E desde já o felicito; continua a Felissata Mikhailovna.
+Tivemos um susto por sua causa, quando nos disseram que andava a ver se
+arranjava um logar em Mordassov. Que, logares, por aqui, são pouco
+estaveis. Pavel Alexandrovitch, de um dia para o outro apanha-se uma
+demissão.
+
+--A não ser que se trate de um logar de _utchitel_, para ahi em qualquer
+escola communal... Esses têm ferias... observa a Natalia Dmitrievna.
+
+É tão transparente a allusão, tão grosseira, que á propria Anna
+Nikolaievna assoma-lhe o rubor ás faces e pega ás cotoveladas á peste da
+amiga.
+
+--Persuadem-se então que Pavel Alexandrovitch seria homem para marchar
+nas piugadas de um reles _utchitel_? insiste a Felissata Mikhailovna.
+
+Pavel Alexandrovitch, sem saber o que ha de dizer, volta costas e dá de
+rosto com Aphanassi Matveich de mão estendida para elle. Mozgliakov,
+alvar, não acceita a mão do conselheiro e faz-lhe rasgada contumélia,
+com pretenções a ironica. Acerca-se da Zina e, mirando-a a fito,
+socina-lhe:
+
+--É a culpada de tudo isto... mas espere, e ainda esta noite, verá se eu
+sou, ou não sou um asno!
+
+--Esperar, eu?--Como se já se não estivesse vendo o sufficiente! retruca
+a Zina muito de rijo, a medir com uns olhos desdenhosos o
+recem-rejeitado.
+
+Mozgliakov precipita a retirada, espavorido pela expansão vocal da
+donzella.
+
+--Vem de casa do Borodoniev? resolve-se por fim a perguntar Maria
+Alexandrovna.
+
+--Não; venho de estar com meu tio.
+
+--Com seu tio?--Esteve com o principe?
+
+--Ai meu Deus! Com que então o principe já está acordado? E a dizer-nos
+que estava ainda recolhido, acode Natalia Dmitrievna a enterrar pelo
+chão abaixo Maria Alexandrovna com uns olhos em que transluz odio e
+triunfo.
+
+--Não lhe dê cuidado o principe, Natalia Dmitrievna, replica o
+Mozgliakov; está acordado, e, graças a Deus, recuperou as suas
+faculdades. Tinha bebido uns copitos a mais, hontem, em sua casa, e
+acabaram aqui de o toldar de todo; de modo que se lhe tinha varrido
+completamente o tino. Bem sabe, que está um tanto fraco de cabeça.
+Agora, comtudo, eu e elle tivemos uma conversa, e está com o juizo no
+seu logar. Não tarda por ahi, meia hora, Maria Alexandrovna, para lhe
+dizer adeus, e lhe dar os agradecimentos pela sua franca hospitalidade.
+Logo de madrugada vamos até á Charneca, tenciono acompanhál-o até
+Dukhanovo, a vêr se lhe evito para ahi algum tombo, como aquelle que
+hoje apanhou. Voltará a collocar-se ao abrigo do broquel da Stepanida
+Matveiévna, que a estas horas já deve ter regressado de Moscou, e lhe
+não tornará a consentir o expôr-se outra vez aos riscos de uma jornada,
+isso lhe asseguro eu!
+
+E o Mozgliakov, maligno, a examinar Maria Alexandrovna, embatucada e
+estupefacta.
+
+(Pêsa-me o ter de confessar que, pela primeira vez na sua vida, sente
+medo a nossa heroina).
+
+--Retira-se ámanhã! Mas então... como assim? indaga de Maria
+Alexandrovna a Natalia Dmitrievna.
+
+--Como assim? repete Anna Alexandrovna, pasmada.
+
+--Como assim? effectivamente, écoam outras vozes. E nós a julgarmos
+que... É extraordinario, na verdade.
+
+A dona da casa nem atina sequer com o que ha de dizer. Eis que, de
+subito, é attrahida a geral attenção por um episodio da mais
+extraordinaria excentricidade. Ouve-se, na saleta contigua, um alarido
+de vozes, de exclamações, e rompe por ali dentro a Sofia Petrovna
+Karpukhina.
+
+A Sofia Petrovna é sem discussão possivel a mulher mais original em toda
+Mordassov; é original a ponto que tiveram que a excluir da sociedade. E
+cumpre advertir que ella, regularmente, ás sete horas, despacha a sua
+merenda, e que depois de a despachar fica sempre n'uma disposição de
+espirito... mais que muito emancipada... para não irmos mais longe. E é
+n'esse estado, exactamente, que ella effectua em casa de Maria
+Alexandrovna tão inesperada apparição.
+
+--E esta! Com a senhora é sempre assim, Maria Alexandrovna! berra ella
+estrugindo a tudo: isto será modo de proceder para commigo?!... Não se
+assuste, vim aqui de corrida, nem me sento, sequer. Vim de proposito
+para saber se é verdade aquillo que me disseram. A senhora a dar bailes,
+banquetes e n'este meio tempo, a Sofia Petrovna para ali a um canto, em
+casa, a concertar as meias! A senhora a ajuntar em sua casa a cidade em
+peso, menos a mim! Commigo, d'antes, tudo era: minha amiguinha, meu
+anjo,--quando lhe conveio saber o enredo que a Natalia Dmitrievna a seu
+respeito e do principe andava a tecer, e vae senão quando, a Natalia
+Dmitrievna, de quem a senhora--hoje mesmo--como ella aliás diz da
+senhora--disse cobras e lagartos--está para ahi amesendada na sua
+_soirée_! Não se assuste, Natalia Dmitrievna, passo muito bem sem o tal
+seu chocolate de dois kopeks cada pau. Eu, quando me appetece beber seja
+o que fôr, lá em minha casa não falta, graças a Deus; tomára a senhora!
+
+--Bem se vê! observa a Natalia Dmitrievna.
+
+--Ora vamos, Sofia Petrovna, exclama Maria Alexandrovna, afogueada de
+despeito, que é que tem? Socegue!
+
+--Não lhe dê cuidado a minha pessoa, Maria Alexandrovna, estou sciente
+de tudo, de tudo! guincha com a voz de pipia a Sofia Petrovna, á qual
+fazem cêrco as visitantes, que não cabem em si de contentes com o
+escandolozinho. Estou informada de tudo e foi lá a sua Nastassia quem
+m'o pespegou, tim-tim por tim-tim! A senhora pregou uma camoéca ao tal
+principe e tanto apertou com elle, até que lhe pediu em casamento a sua
+filha--que já nem tem quem a queira! E a senhora a ver-se já toda
+emproada, a julgar-se uma duquêsa, com manto e tudo.--Pfu-u! Não cuide
+que me mete mêdo! Tenho visto muitas duquêsas e aqui onde me vê sou
+coronela! Ah! A senhora então nem sequer me convidou para a bôda!--Cá
+por mim, escarro-lhe em cima!--Tenho muito com quem me dar, tomára a
+senhora. O ponto está que eu queira! Vá ouvindo: Hontem jantei eu com a
+princesa Zalikhvatskaia, e por signal que até o commissario principal, o
+Kuropchkine, me pediu em casamento. Estou-me ninando para o tal seu
+_salsifrê_.
+
+Pfu-u! Arreda!
+
+--Escute, Sofia Petrovna, responde Maria Alexandrovna fora de si, fique
+sabendo que assim ninguem se atreve a pôr pé numa casa decente;... e
+n'esse seu estado, de mais a mais!... Se me não favorece desde já com a
+sua ausencia... obriga-me a appellar para...
+
+--Bem sei, chama os criados para me pôrem no olho da rua? Não lhe dê
+cuidado, sei muito bem o caminho. Adeuzinho! Case lá a sua filha com
+quem muito bem quiser. E a senhora, Natalia Dmitrievna, escusa de se rir
+á minha custa: eu cá, ao tal seu chocolate, só se lhe cuspir dentro!
+Ella convidava-me lá! Isso sim! Não, que lá em minha casa não ha quem
+danse o _kazatchok_ diante de principes! E lá a senhora, tambem, Anna
+Nikolaievna, de que é que se está a rir? O seu Suchilov partiu indagora
+uma perna: e lá o levaram em charóla para casa--ha de-lhe fazer falta,
+já se vê! Pfu-u! E a senhora, Felissata Mikhailovna, se não avisa
+aquelle calcanhar rachado do seu Matvehka que, se torna a consentir que
+a sua vacca esteja todo o santo dia aos bérros debaixo da minha janéla,
+parto-lhe as pernas, ao tal seu Matevchka! Adeuzinho, Maria
+Alexandrovna! A bom intendedor, o resto já se sabe! Saúde!
+
+Pfu-u!
+
+Some-se a Sofia Petrovna. Desata toda a gente á gargalhada. Maria
+Alexandrovna ficou entupida de todo.
+
+--Estou em dizer que beberia a sua pinga, diz a Natalia Dmitrievna,
+muito de mansinho.
+
+--Se já se viu semelhante desaforo;
+
+--Abominavel criatura!
+
+--Se quer ao menos fartámo-nos de rir!
+
+--Que chorrilho d'inconveniencias!
+
+--É ella abrir a bôca!--Passa fora!
+
+--Mas que queria ella dizer com as taes bôdas? indaga em ar de mofa a
+Felissata Mikhailovna.
+
+--É temivel! exclama Maria Alexandrovna. E são uns monstros d'este
+calibre que andam para ahi a desacreditar a toda a gente, com a estupida
+linguarice! E sabe o que lhe digo, Felissata Mikhailovna, é que me não
+admira, que umas fufias assim sejam recebidas na nossa sociedade,
+quando, o que é ainda mais para admirar, ha gente que a ellas recorra,
+que lhe dê ouvidos, e que lhes dê credito... cambada!...
+
+--O principe! O principe! gritam á uma.
+
+--Valha-me Deus! O principe!
+
+--Graças a Deus! Até que emfim vamos ficar sabendo a verdade.
+
+
+
+
+XIII
+
+
+Entra o principe, dilatados, os labios por aquelle seu meigo sorriso. A
+inquietação insuflada pelo Mozgliakov n'aquelle descuidado coração
+desapparece de todo, ao dar com os olhos nas damas: derrete-se desde
+logo que nem um rebuçado.--Elle, em geral, entretem muitissimo o bello
+sexo. A Felissata Mikhailovna affirmava, até, esta manhã, por
+brincadeira, já se vê, que estava pronta a sentar se-lhe nos joelhos, se
+elle quisesse, pois era "um encanto de um ginjinha, um encanto nunca
+visto, até." E Maria Alexandrovna sem tirar d'elle os olhos, a
+estudál-o, tentando prever-lhe no semblante o desfecho de tão critica
+situação. É evidente haver o Mozgliakov comprometido gravemente o
+negocio e o estar um tanto vacilante a emprêsa. E não obstante nada se
+pode ler no rosto do principe... está, como sempre, insipido e
+encantador.
+
+--Ai, meu Deus! Até que ahi vem o principe! E nós todos á sua espera!
+exclamam diversas damas.
+
+--Com impaciencia, principe, com impaciencia, pipilam as restantes.
+
+--Li... son... son... jeia... me... sum... ma... mente, diz o principe
+sentando-se á mêsa defronte do samovar a ferver.
+
+As damas atrigam-se em fazer-lhe cerco. A Anna Nikolaievna e a Natalia
+Dmitrievna são as unicas que se deixam ficar ao pé de Maria
+Alexandrovna. Aphanassi Matveich sorri, respeitozissimo. Mozgliakov
+sorri tambem a olhar com uns ares de provocação para a Zina a qual, sem
+fazer caso delle, se acerca do pae e se senta ao lado d'este n'uma
+poltrona.
+
+Ah! principe--sempre é verdade que se retira? indaga a Felissata
+Mikhailovna.
+
+--Está c... claro... minhas senhoras, retiro-me; vou... im... me... diata..
+mente para o estrangeiro.
+
+--Para o estrangeiro, principe!
+
+--Para o estrangeiro! clama toda a gente em côro. Que ideia!
+
+--Pa... ra o est... est... rangeiro, affirma o principe, a tomar atitudes,
+e n... não sabem?--eu se vou é... é... por causa das taes... ideias novas.
+
+--Como assim? As ideias novas?
+
+--De que é que se trata? perguntam as damas a olhar umas para as outras.
+
+--Está... c... laro!... As ideias novas! insiste o principe com uns modos
+de intima convicção; vae lá toda a gente, agora, por causa das ideias
+novas, e eu se vou é... com... o sentido tambem de me sa... turar.
+
+--É capaz de estar com o sentido em ir filiar-se por lá em alguma loja
+maçonica? intervem o Mozgliakov desejoso de fazer brilhar o seu espirito
+na presença das damas.
+
+--Está... c... claro, meu amigo, não t'enganas. Eu, em tempos, pertenci,
+effectivamente, a uma loja maçónica. Animavam-me, até, umas ideias,
+muitissimo generosas... Propunha-me a fazer muita coisa... em... em
+favor da... in... instrucção... mo... moderna. Queria dar carta...
+de... al... fo... forria ao meu Si... do... dor, mas safou-se antes de
+tempo, com grande es... panto da minha parte. Que lemb... rança tão
+ra... tona! Depois, um dia, encontrei-o cara... a... cara... lá em Paris,
+vestido como um dandy, com umas suissas,... a passear pelo
+bou... levard... com uma "_menina_". Acenou-me com a cabeça... e mais
+nada. E a tal _menina_, que levava p... pelo braço tinha uns ares tão
+agai... atados... tão ape... titosa.
+
+--O tiozinho, então, d'esta vez, em se apanhando em Paris, dá a
+liberdade aos servos todos, sem excepção?
+
+--Está..., c... claro... adivinháste-me o pensamento, meu c... caro. É
+tal qual... quero dar liberdade a to... dos elles.
+
+--Ora vamos, principe, safam-se-lhe todos de casa, e depois, quem é que
+lhe paga o dizimo? exclama a Felissata Mikhailovna.
+
+--Pois já se vê, que se safam, acode, inquieta, Anna Nikolaievna.
+
+--Ai, meu Deus! Que me diz? Então parece-lhe que o façam?
+
+--Safam-se, safam-se, pudera não... Tão certo! E o senhor, depois, vê-se
+sósinho, confirma a Natalia Dmitrievna.
+
+--Ai! meu Deus! Visto isso... então n... não lhes dou... al... for...
+ria! E d'ahi, eu dizia isto... por dizer.
+
+--Antes assim, tiozinho.
+
+Maria Alexandrovna, até agora, tem estado caláda a observar. Parece-lhe
+que o principe se esqueceu d'ella, totalmente, e não acha isso natural.
+
+--Principe, enceta elevando a voz e com dignidade, peço-lhe licença para
+lhe apresentar Aphanassi Matveich, meu marido. Veiu expressamente do
+cantinho da sua aldeia, assim que soube que o principe se achava
+hospedado em minha casa.
+
+Aphanassi, todo elle sorrisos e a fazer papo. Afigura-se-lhe que acabam
+de lhe endereçar um cumprimento.
+
+--Ah! Fol... go im... menso... Apha-anassi Matveich. Dê me licença...
+está-me a parecer que... me lembro... do que quer que seja...
+Aphana-assi Matvei... tch? Ah! sim! sim! Aquelle que estava no campo?...
+Encantado! encantado! Quanto esti... imo... Meu amigo, exclama o principe
+dirigindo-se a Mozgliakov... mas foi elle que... que... como se intende,
+então?... O marido lá por fóra... e a mulher... em... Sim, sim, lá n'uma
+cidade... e a mulher...
+
+--Ah! principe,... isso pelos modos ha de ser: o _Marido lá por fóra_, e
+a mulher _em Tvor_, o tal vaudeville, que uma companhia ambulante
+representou lá em casa o anno passado?
+
+--Está c... claro, em _Tvor_, e... eu... sempre a esqué... quécer-me!
+Encantado, encantado! Com que, então, é o senhor? Quanto estimo
+conhecêl-o! diz o principe sem se erguer da cadeira, de mão estendida
+para Aphanassi Matveich. E então, como vae?
+
+--Hum!...
+
+--Está optimo, optimo! acode Maria Alexandrovna.
+
+--Está... c... claro... bem se vê... Com que, então, vive sempre no
+campo? Pois, senhor, estimo muito.--Mas que bochêchas tão corádas que
+elle tem! E não faz senão rir!...
+
+Aphanassi Matveich sorri e faz-lhe a sua vénia, a arrastar o pé pelo
+sobrado. E comtudo, assim que ouve a ultima observação do principe, não
+se pode suster e desata uma gargalhada alvar. E imita-o toda a gente. As
+damas soltam guinchos de alegria. A Zina, corrida, ruboriza-se e vibra
+uns olhos coruscantes a Maria Alexandrovna, que se está comendo de
+raiva. É tempo de desviar a conversação.
+
+--Dormiu bem, meu principe? indaga com voz tranquilla, intimando ao
+mesmo tempo, com uma olhadella vivaz, Aphanassi Matveich a que volte
+quanto antes para o seu logar.
+
+--Dormi op... ti... mamente... E, não sabem, tive um sô... ônho
+deliciôso, deli... ciô... so!
+
+--Um sônho! Gósto tanto de que me contem sônhos! exclama a Felissata
+Mikhailovna.
+
+--Tambem eu! accrescenta a Natalia Dmitrievna.
+
+--Um sô... nho... deliciôso... repete o principe com meigo sorriso; mas
+é segredo o tal sônho.
+
+--Como assim, principe? Nem sequer se pode contar? observa Maria
+Alexandrovna.
+
+--Um grande segredo! repete o principe.
+
+Recrudesce a curiosidade.
+
+--Mas, então, deve de ser interessante, interessantissimo, exclamam de
+todos os lados.
+
+--Não se me dava de apostar que o principe, no tal seu sônho, estava de
+joelhos aos pés de alguma beldade a fazer-lhe a sua declaração de amor!
+exclama a Felissata Mikhailovna. Ora vamos, principe, confesse!
+Confesse!... então, meu rico principezinho da minha alma!
+
+--Confesse, principe, confesse! exclamam por todos os lados.
+
+E o principe deliciado, a escutar aquella gralhada. Lisonjeia-o a
+supposição, e lambe-se todo, até.
+
+--Comquanto seja um grande segredo, não tenho remedio senão confessar
+que ma... madame, com grande espanto da minha parte, por pouco o não
+adivinha de todo.
+
+--Adivinhei! exclama com arrebatamento Felissata Mikhailovna. E então,
+principe, é preciso dizer-nos quem é essa tal belleza!
+
+--Tem obrigação de o dizer!
+
+--Achar-se-ha aqui?
+
+--Diga, diga, meu rico principezinho!
+
+--Principe... meu amorzinho! Diga! Morra depois, mas diga!
+
+--Mi... nhas... senhoras! Minhas se... senho... ras, se insistem em
+absoluto por que lh'o diga, apenas lhes po... derei desvendar uma coisa:
+era a mais seductora, a mais virtuosa menina, de quantas... tenho
+conhecido em minha vi... vida!
+
+--A mais seductora... de quantas aqui estão? Quem será? indagam entre si
+as damas a trocarem signaes de connivencia.
+
+--Com toda a certeza que deve de ser aquella que disputa a fama de ser a
+primeira beldade de Mordassov, prorompe a Natalia Petrovna a bater as
+palmas com aquellas manápolas côr de lagosta e sem tirar os olhos de
+cima da Zina.
+
+E toda a gente com os olhos pregados na Zina.
+
+--Mas como é, então, que o principe, com uns sonhos assim, não se casa
+por uma vez? indaga a Felissata Mikhailovna.
+
+--Soubessemol-o nós, e que noivazinha lhe não teriamos arranjado!
+affirma, d'ali, outra dama.
+
+--Case-se! case-se, principezinho da minha alma--pipíla uma terceira.
+
+--Case! case-se!--guincham por todos os lados. Por que é que não ha de
+casar?
+
+--Está... c... claro... por que é que eu me... n... não hei-de casar?
+acóde o principe, atrapalhado.
+
+--Tiozinho! exclama o Mozgliakov.
+
+--Está... c... claro, meu amigo, já te percebi. O que eu queria
+dizer-lhes, minhas senhoras, é que me não posso casar. Concluida esta
+deliciosa _soirée_, em casa da nossa amabilissima hospeda, amanhã
+tenciono ir até a charnéca, e d'ali, para o es-trangeiro, quero ir
+estudar a ins-tru-cção euro-ro-pêa.
+
+A Zina está enfiada e vibra á mãe uns olhos rancorosos. Maria
+Alexandrovna, comtudo, assentou n'uma resolução. Até agora, estava á
+espera, a apalpar o terreno, supposto lhe parecesse achar-se
+sufficientemente compromettido o negocio e haverem-se-lhe antecipado
+seus inimigos. Percebe tudo, finalmente, e, de um golpe, quer acabar com
+aquella hydra das cem cabeças. Ergue-se, majestatica, acerca-se da mêsa
+a passo firme e com soberbo olhar enterra pelo chão abaixo aquelles
+pygmeus que a rodeiam. Reluz-lhe nos olhos o fogo da inspiração. Vae
+aniquilar aquella sucia de coscovilheiras peçonhentas, esmagar aquelle
+sevandija do Mozgliakov como quem esmága uma barata, e com um golpe
+decisivo, reconquistar de todo a influencia que perdeu sobre a pessoa
+d'aquelle idiota d'aquelle principe. Claro está que para isso ha mister
+de appellar para um atrevimento extraordinario, mas não será isso que
+escasseie a Maria Alexandrovna.
+
+--Minhas senhoras, enceta com modo solemne (Maria Alexandrovna nutre
+paixão pela solemnidade), minhas senhoras, tenho estado a ouvir calada
+as suas gracinhas e acho que já vae sendo tempo de que eu, pela minha
+vez, lhes dirija algumas. Bem sabem que nos achamos aqui juntas,
+unicamente por mero acaso. Estimo isso muito... Nunca me haveria
+resolvido a tornar publico um tão importante negocio de familia antes de
+o exigirem os dictames do mais estricto decoro. E acima de tudo, pedirei
+perdão ao nosso distinctissimo hospede. Mas quer me parecer que é elle o
+proprio quem, mediante remotissimas allusões a semelhante circunstancia,
+me suggere o pensamento de que a formal declaração d'este segredo lhe
+será grata, mas que ella lhe inspira apprehensões. Não é verdade, meu
+principe, que me não enganei?
+
+--Está claro... não se enganou... e estimo muito... muito... diz o
+principe sem perceber palavra d'aquillo de que se está tratando.
+
+Maria Alexandrovna, no intuito de melhor dispôr o seu lance, toma o
+folego e põe-se a examinar todo o auditorio, todos á uma a escutál-a com
+ávida e inquieta curiosidade. O Mozgliakov, todo elle a tremer, a Zina,
+muito afogueada, levanta-se... Aphanassi Matveich, n'estes assados,
+assôa-se.
+
+--Sim, minhas senhoras, folgo immenso de as tornar participes d'este
+segredo familial. Hoje, depois de jantar, o principe, seduzido pela
+formosura de... pelas qualidades de minha filha... conferiu-lhe a honra
+de lhe pedir a mão. Principe, conclue ella com um tremor na voz, querido
+principe, não me deve querer mal por esta minha indiscreção. O auge do
+contentamento, eis o que conseguiu arrancar-me do coração, um tanto
+prematuramente, este segredo estremecido, e... qual será a mãe que m'o
+leve a mal? Nem encontro sequer palavras que descrever possam o effeito
+produzido pela inspirada saída de Maria Alexandrovna. Ficaram todos
+varados de espanto. As visitantes, que suppunham assustar Maria
+Alexandrovna, deixando-lhe antever o estarem senhoras do seu segredo,
+matál-a com a divulgação do segredo, esfacelál-a com o poder unico das
+allusões, ficam estupefactas perante uma tão denodada franqueza. Uma tal
+valentia era um signal certo de bom exito.
+
+--Por conseguinte, é por sua propria vontade que o principe vae casar
+com minha filha Zina. Ninguem o enganou, ninguem o embriagou... E por
+tanto, não foi com esconderijos, á laia de ladrão, que o obrigaram a
+tomar estado! Maria Alexandrovna, n'essa conformidade, não se arreceia
+seja de quem fôr, e não ha ninguem que possa malograr este casamento.
+
+Paira um borborinho que desde logo se transforma em jubiloso alarido. A
+Natalia Dmitrievna arremete de braços abertos para Maria Alexandrovna,
+segue-lhe o exemplo a Anna Nikolaievna, e a Felissata Mikhailovna vem na
+trazeira do rancho. Põem-se todos de pé, baralham-se. Das damas, algumas
+ha que estão fulas de raiva. Pegam a dirigir parabens á Zina,
+atrapalhada, e atiram-se, até, ao Aphanassi Matveich. Maria Alexandrovna
+estende os braços com enfase, e á viva força, quasi, agarra-se á filha
+aos abraços a ella. Tão sómente o principe, todo elle a rebulir, a
+considerar esta scena, de olhos espantados. E d'ahi, agrada-lhe aquillo.
+Ao ver a filha nos braços da mãe, saca, até, do lenço e limpa o canto do
+olho onde bugalhou uma lagrima. Atiram-se a elle, tambem, para lhe dar
+os parabens.
+
+--Parabens, principe, parabens! guincham por todos os lados.
+
+--Com que então é certo, sempre vae casar?
+
+--Sempre se casa, effectivamente?
+
+--Ora até que se casa, principezinho da minh'alma!
+
+--Está... c... claro... está... c... claro! responde o principe, encantado
+de semelhante enthusiasmo. Confesso-lhe que a sua simpatia me tocou o
+coração... Nunca me ha... de esquecer! Encan... tado! Encan... tado!
+Fizeram... me, até, vir as lagrimas aos olhos.
+
+--Venha um beijo, principe! guincha mais que todas juntas a Felissata
+Mikhailovna.
+
+--E confesso-lhe... prosegue o principe, que fiquei pasmado por ver que
+a nossa digni... ssima hos... peda, adivinhasse... com tanta
+pers... picacia, um sonho tão extraordi... nario, como se fosse ella...
+que o sonhou... tal qual--Es... panto... sa pers... pica... cia.
+
+--Ora esta! E o principe ainda a insistir no tal sonho?
+
+--Então, vamos, principe, confesse! clama o côro das damas a fazer-lhe
+cerco.
+
+--Deixe lá, principe, é escusado estar com esconderijos, é tempo de
+patentear o seu coração, declara em tom categorico Maria Alexandrovna.
+Não me escapou a fina alegoria, a delicadeza cavalheiresca, que se
+revelam na forma discreta por que tornou publico o seu pedido. Sim,
+minhas senhoras, é verdade, hoje ainda, o principe ajoelhou aos pés de
+minha filha, e de modo real e verdadeiro, que não em sonho, formulou
+solemnemente o seu pedido.
+
+--Quan... to... ha de mais real... e nas mê... mêsmas circunstancias,
+appoiou o principe. Minha me... nina, proseguiu com summa delicadeza
+dirigindo-se á Zina cada vez mais atrapalhada, juro-lhe que jamais me
+atreveria a proferir o seu n... ôme, se acaso o não tivessem outros...
+mencion... ado antes. Foi um sonho de... licioso... uma... de... licia de
+um... sonho! E folgo immenso... em ter ensejo... de o manifestar Um
+encanto!... Um encanto!
+
+--Mas, como se intende isto? Elle insiste em se referir ao tal sonho!
+murmura a Anna Nikolaievna dirigindo-se a Maria Alexandrovna, inquieta e
+um tanto enfiada.
+
+Mas, ai! O coração de Maria Alexandrovna está alanceado por tristissimos
+presentimentos.
+
+--E então? murmuram as damas a olharem umas para as outras.
+
+--Ora vamos, principe, profere Maria Alexandrovna com um sorriso
+amarello, confesso-lhe que me deixou pasmada.--Admira-me que esteja a
+insistir n'essa sorna do tal sonho! Eu até agora, estava na fé, de que
+fosse méro gracejo da sua parte... mas... se o é, ha de convir, que se
+vae prolongando um tanto fora de proposito... Não posso nem devo admitir
+que seja outra coisa além de uma distracção...
+
+--Deve de ser por distracção, efectivamente, assobia a Natalia
+Dmitrievna.
+
+--E... stá... c... claro!... Di... distracção! repete o principe sem
+perceber o que é que d'elle pretendem... Ora... ima... ginem, vou
+contar-lhes uma anecdó... ta. Fui convidado pa... ra assistir a um
+enterro, em Petersburgo, n'uma casa burguêsa, mas decente, e... e fiz
+confusão... suppús que era para festejar o nas... cimento de uma creança,
+(o tal dia... nata... licio já lá... ia, havia mais de uma semana)... e fui
+comprar um lindo rama... lhete de camelias para a pessoa... fes... tejada.
+Entro... e que hei de eu ver? Um su... jeito mui... to digno, de uma certa
+edade, estendido em cima da mesa... Fiquei passádo, sem saber onde me
+havia de meter e mais o meu ramo.
+
+--Pois sim, principe, não se trata agora de anecdótas! atalhou Maria
+Alexandrovna despeitadissima. Minha filha, louvado Deus, não tem
+necessidade de andar á pesca de noivos, mas inda agora, o senhor, em
+pessoa, ali ao pé d'aquelle piano, a pediu em casamento. Ninguem o
+obrigava... para mim propria foi uma surpreza... mas sou mãe, e ella, é
+minha filha... Acaba de referir-se a um sonho; sempre estive na fé de
+que fosse uma allusão aos seus esponsorios... Sei e mais que sei, que o
+viraram de dentro para fora--desconfio quem fosse--tal qual uma luva,
+mas...--queira explicar-se, principe, e queira fazêl-o quanto antes!
+Semelhantes gracejos não tem cabimento n'uma casa respeitavel.
+
+--E... stá.. c... claro! Não são brin... cadeiras para... uma casa
+respeitavel, concorda o principe... inconsciente, mas um tanto inquieto.
+
+--Então, não me responde, principe! Já lhe pedi que quisesse explicar-se
+de modo peremptorio: confirme, confirme, desde já, diante de toda a
+gente, o facto de haver pedido hoje minha filha em casamento.
+
+--Es... tá... c... claro... estou pronto a confirmar... Tanto mais, que já
+lhes contei tudo, e Felissata Yako... kolevna adivinhou ca... balmente o
+meu sonho.
+
+--Sonho! Qual sonho!? exclama rabiosa Maria Alexandrovna; não foi sonho.
+Foi realidade, principe, intendeu? Realidade e mais que realidade!
+
+--Rea... li... dade... repete o principe erguendo-se da cadeira... Está-se
+dando... tudo aquillo de que... tu me preveniste, accrescenta
+dirigindo-se a Mozgliakov. Afirmo-lhe, Maria Alexandrovna... que ha
+equi... voco da sua parte. Tenho toda a certeza em como foi sonho!
+
+--Meu Deus! geme Maria Alexandrovna.
+
+--Não se afflija, Maria Alexandrovna, intervem a Natalia Dmitrievna; ao
+principe, varreu-se-lhe da memoria... elle se lembrará.
+
+--Isso nem parece seu, Natalia Dmitrievna! responde furibunda Maria
+Alexandrovna. Isso são lá coisas que se esqueçam? Ora vamos, principe,
+deixemo-nos de facecias! Dar-se-ha o caso de que esteja armando em
+Lovelace? Mas, tenha a certeza, sem falarmos em que é pouco proprio da
+sua edade, juro-lhe, que lhe não ha de valer! Minha filha não é para ahi
+qualquer viscondessa francêsa! Não ha ainda muito tempo, lhe estava ella
+a cantar uma romança e o senhor de joelhos a seus pés, a formular o seu
+pedido de casamento.--Serei eu que estou a sonhar? Fale, principe...
+Estarei a dormir, porventura?
+
+--Es... tá c... claro!... e d'ahi, talvez que não, responde o principe,
+desnorteado de todo... Quero dizer... não creio... que estou a sonhar...
+pre... sente... mente. Mas... não vê a senhora... que eu, indagora,
+estava a sonhar... e depois vi... em sonhos, que eu, a sonhar...
+
+--É preciso paciencia, meu Deus!... Que quer dizer com isso? Em sonhos,
+que eu, a sonhar! Nem o proprio demonio era capaz de o perceber!... O
+principe estará a delirar?
+
+--Está c... claro!... Nem o proprio demonio... E d'ahi... eu é que não
+percebo uma pa... palavra, declara o principe a olhar para todos os
+lados, inquieto.
+
+--Mas como é que o principe póde ainda acreditar que é sonho, depois de
+eu lhe ter contado os pormenores d'esse tal supposto sonho do qual o
+senhor não tinha dado parte a ninguem?
+
+--Mas quem nos affirma que o não tivesse já contado a alguem, insinua
+n'este ensejo a Natalia Dmitrievna.
+
+--Está... claro... a alguem, confirma o principe.
+
+--Que comedia! murmura a Felissata Mikhailovna á vizinha.
+
+--Ah! meu Deus! excede a humana paciencia! vocifera Maria Alexandrovna,
+a estorcer as mãos, no auge do exaspero. Se ella até lhe estava a cantar
+uma romança; uma romança! Tambem a veria no tal sonho?
+
+--Está... claro... effectivamente, uma romança, murmura, absorto, o
+principe.
+
+De repente, vem ressuscitá-lo uma reminiscencia.
+
+--Meu amigo, exclama dirigindo-se a Mozgliakov, tinha-me esquecido
+dizer-te, indagora, que ella me tinha cantado uma romança... em que
+havia uns cas... tellos... muitos... com um tro... vador... Está...
+claro... recordo-me... e por signal... que até chorei... e agora nem sei
+já, se seria realidade ou se foi sonho.
+
+--Tiozinho, responde o Mozgliakov com a maxima tranquilidade que pôde
+assumir (com quanto lhe trema a voz) não me parece lá muito grave a
+dificuldade. Na realidade, não direi que não tenha ouvido uma romança,
+canta tão bem a Zinaida Aphanassievna! Acordar-lhe-hia reminiscencia dos
+seus bons tempos de outrora, dos instantes ditosos, talvez que da tal
+viscondessa com quem o tio cantava tambem, algum dia, romanças e á qual
+se referiu esta manhã. E depois, a dormir, sonharia talvez que estava
+apaixonado e que tinha formulado o seu pedido de casamento.
+
+Maria Alexandrovna fica atordoada com semelhante insolencia.
+
+--Ai! meu amigo! effectivamente! Ha de ser isso! exclama o principe,
+contentissimo. Sim, sim, a dor... dormir!... umas agrad... aveis
+sensações... Lembro-me da romança, e eu a querer casar... Um sonho! E
+tambem ali estava a viscondessa... Ah! como tu desen... vencilhaste bem
+tu... do isso... meu caro! Muito bem! É eu agora estou convencido:--era
+um sonho, Maria Vassilievna! Affirmo-lhe que está... equi... vocada: foi
+sonho!... eu... nunca seria capaz de estar gracejando... com a sua...
+respeita... bilidade.
+
+--Ah! agora, agora estou vendo quem foi o autor de tudo isto! exclama
+fora de si Maria Alexandrovna com os olhos fitos em Mozgliakov. Foi o
+senhor, o senhor! homem sem dignidade! Foi o senhor! Enganou este pobre
+idiota para se vingar de ter apanhado um não pelas ventas! Mas tu m'as
+pagarás, miseravel! Tu m'as pagarás, deixa estar!
+
+--Maria Alexandrovna, vociféra por sua vez Mozgliakov, vermelho que nem
+uma lagosta cozida, são tão... as suas palavras... nem sei até que ponto
+as suas palavras... uma senhora da sociedade jámais se permittiria...
+Estou defendendo meu tio... e confesse que o querer seduzir de
+semelhante modo...
+
+--Es-tá... c-claro--seduzir... seduzir... de semelhante... modo--mia o
+principe, que se ergueu da cadeira e tudo é querer esconder-se por
+detrás de Mozgliakov.
+
+--Aphanassi Matveich--despulmôa-se a berrar Maria Alexandrovna, não
+ouves que estão para aqui a desacreditar-me? Perderias tu o sentimento
+dos teus deveres, porventura? Não serás tu mais que um cêpo? Para que
+estás tu para ahi a piscar os olhos? Outro qualquer no teu logar tinha
+já lavado com sangue o ultraje que nos estão fazendo!
+
+--Minha esposa! enceta com solemnidade Aphanassi Matveich, lisonjeado
+por ver que se lembram delle, minha esposa! não seria sonho,
+effectivamente? E depois, tu, ao acordar, ficares suppondo que era
+verdadeiro...
+
+Aphanassi Matveich, nem tempo tem de concluir a sua espirituosa
+interpretação. As visitantes, até ali, contiveram-se mantendo uns módos
+de cortês hypocrisia, mas d'esta vez a risota foi geral.
+
+Maria Alexandrovna, esquecendo de todo as conveniencias, atira-se ao
+marido, para lhe arrancar os olhos, provavelmente; vêem-se na
+necessidade de a segurar á força.
+
+A Natalia Dmitrievna aproveita a circunstancia para entornar uma doze
+d'alcatrão no lume.
+
+--Ah! Maria Alexandrovna, quem nos diz que não foi sonho,
+effectivamente? emitte em voz represada.
+
+--Um sonho? Um sonho o quê? clama Maria Alexandrovna sem perceber.
+
+--Então! Maria Alexandrovna, são coisas que acontecem.
+
+--Acontece? Mas que é que acontece?
+
+--Talvez que a senhora tenha visto tudo isso a sonhar!
+
+--A sonhar! Eu? A sonhar! E atreve-se a dizer-m'o na cara!
+
+--E d'ahi, é possivel, insiste a Felissata Mikhailovna.
+
+--Está... c-claro!... é po... pos-possivel, murmura por sua vez o
+principe.
+
+--Pois tambem elle! Elle! Santo Deus! Maria Alexandrovna enclavinha as
+mãos.
+
+--Não se desconsole, Maria Alexandrovna! Lembre-se de que os sonhos é
+Deus que os manda! Não ha coisa nenhuma n'este mundo que possa ir ávante
+contra a sua santa vontade... nem é motivo para que se altere.
+
+--Está... c-claro... não ha motivo...
+
+--Cuidam talvez que sou alguma doida? consegue apenas silvar Maria
+Alexandrovna esganada de raiva.
+
+Encheu-lhe a medida ás forças semelhante scena. Procura á pressa uma
+cadeira e deixa-se cair, exanime.
+
+Segue-se uma algazarra.
+
+--Acudiu a tempo o chelique!
+
+N'este conflicto, porém, eis que surge por entre a balburdia geral, a
+intervir, uma personagem muda até então, e se transforma desde logo a
+feição da scena.
+
+
+
+
+XIV
+
+
+Era sobremodo romanesco o caracter da Zinaida Aphanassievna. Não sabemos
+se teria abusado da leitura daquelle "pateta do tal Shakspeare", lá, com
+o tal seu _utchitelzinho_, mas até agora ainda não havia praticado um
+tão heroico acto de loucura como o que praticou n'este conflicto.
+
+Enfiada, com os olhos a relampejarem-lhe de resoluta, toda ella n'um
+tremor, um portento de formosura e de colera, avança, varre com a
+provocação nos olhos toda aquella gente em redor de si, e por entre o
+silencio geral, dirige-se á mãe a qual, assim que a Zina se levantou,
+tornou a abrir os olhos.
+
+--Para que é estar com fingimentos, mamã? É já tão sujo, tudo isto a que
+estamos assistindo! Basta de mentiras! Não vale a pêna estar a tapar
+lama com a propria lama.
+
+--Mas que é isto, Zina! Tu não estás em ti! exclama Maria Alexandrovna,
+erguendo-se de repellão.
+
+--Eu bem a tinha avisado, mamã, de que não podia supportar semelhante
+vergonha! Não estejamos a sujar-nos mais do que o estamos já!...
+Assumirei a responsabilidade de tudo. Fui, eu, visto que consenti, que
+teci toda esta vilissima... intrigalha. A mamã estava na fé de que
+trabalhava com o sentido em me tornar feliz, sequer ao menos tem
+desculpa: eu, nenhuma!
+
+--Que vaes tu dizer, Zina! Bem me dizia o coração que me estava ainda
+guardado mais este desgosto!
+
+--É assim mesmo, mamã! Vou declarar tudo! Nem sei como não morri de
+vergonha... cobrimo-nos de opprobrio, tanto a mamã como eu...
+
+--Estás exagerando, Zina! Nem sabes o que estás dizendo! Contar tudo,
+para quê?... Não ha a minima necessidade... Quem se cobriu de opprobrio
+não fômos nós, e vou provál-o!
+
+--Deixe-me falar! Não quero estar calada por mais tempo na presença de
+uma gente que desprézo e que vieram aqui unica e exclusivamente para se
+rirem á nossa custa. Entre estas mulheres, sem excepção, não ha uma
+unica a quem assista o direito de me condemnar! Todas ellas estão
+prontas a fazer cem vezes peor do que fizemos, eu, e a mamã. Com que
+direito poderiam ellas, com que direito se atreveriam a fazêl-o?
+
+--Então! Já viram?
+
+--Quem n'a ouve falar!...
+
+--Mas está nos offendendo!...
+
+--E ella, sim, que será?
+
+--Ella sabe lá o que está dizendo? remata a Natalia Dmitrievna. Seja
+dito, entre parenteses, que a Natalia Dmitrievna não deixava de ter
+razão. Se a Zina considerava aquellas damas indignas de julgar á mãe e a
+si, por que era então que se ia confessar na sua presença? Em summa, a
+Zina tinha procedido com excessiva precipitação. E mais tarde, era esta,
+até, a opinião das pessoas mais sensatas em Mordassov. Tudo se poderia
+haver conciliado. É certo que Maria Alexandrovna, pela sua parte, se
+havia prejudicado pela sua precipitação e sua altivez. Ter-lhe-hia
+bastado meter a ridiculo o idiotazito do ginja e pôl-o a andar. A Zina,
+comtudo, de caso pensado e como que para arrostar com o bom senso e a
+sisudez mordassovense, dirigiu-se ao principe.
+
+--Principe, diz a Zina ao velho que desde logo se põe de pé com
+deferencia, a tal ponto o impressionou a fisionomia da Zina, queira
+perdoar-nos, mas saiba que o enganámos!
+
+--Não te calarás por uma vez! desgraçada! vocifera Maria Alexandrovna.
+
+--Minha--menina,--minha... menina... minha... en... en... cantadora...
+murmura o principe, pasmado.
+
+O caracter soberbo, fogoso e mistico da Zina leva-a a transpôr quaesquer
+limites. Esquece-se dos transes por que estará passando a mãe ante esta
+publica confissão; só vê a salvação, a redempção na franqueza, e vae até
+ao fim.
+
+--Enganámol-o, sim, uma e outra, principe; a mamã resolvendo-me a
+aceitar a sua mão, e eu em consentir. Embriagámo-nos, eu, puz-me a
+cantar e a fazer tregeitos na sua presença com sentido em o saquear,
+conforme se expressou ha pouco Pavel Alexandrovitch, para lhe roubar a
+sua fortuna e o seu titulo. Era ignobil! E peço-lhe perdão! E comtudo,
+juro-lhe, principe... que a minha intenção... O que eu queria era... mas
+é duplicar a injuria o estar a procurar desculpas. E todavia,
+declaro-lhe, principe, que se eu tivera casado com o senhor, se eu o
+houvesse saqueado e roubado, em compensação, haver-me-hia tornado o seu
+brinquedo, a sua criada, sua escrava... A mim propria m'o havia
+prometido, e cumpriria o meu juramento...
+
+Veiu interrompêl-a um deliquio, as visitantes estão de pé, todas ellas,
+com os olhos esgazeados. A tão imprevista quanto incomprehensivel
+expansão (para ellas) da Zina desorientou-as. O principe, tão sómente,
+tem os olhos arrazados de lagrimas, de commovido, supposto não perceba
+metade sequer do que ella tem dito.
+
+--Mas... es... tá... claro... que hei de casar com a menina... com a
+minha... l... linda menina, visto que tanto o... o deseja. E isso para
+mim re... representa... até, subida hon... ra... Mas, não deixarei... de
+insistir em que foi sonho!... Vejo tan... ta coisa, a so... sonhar! Por
+que é que se hão-de estar a inquietar? Eu não percebi coisa nenhuma, meu
+amigo, prosegue dirigindo-se a Mozgliakov; explica-m'o, se fazes favor!
+
+--E o senhor, Pavel Alexandrovitch, que se vingou de mim de modo tão
+cruel, como é que pôde combinar-se com semelhante gente para me
+esfacelar desacreditando-me? Allegava amar-me!... Mas para que estarei
+eu para aqui a prégar-lhe moral!... Sou mais culpada que o senhor,
+offendi-o; tambem para com o senhor me vali de hyprocrisia, de mentira!
+Nunca lhe tive amor, e se eu um dia me resolvesse a desposál-o, seria
+unicamente para me ver livre d'esta maldita cidade... Mas declaro-lhe,
+que se tal houvesse succedido, teria em mim uma esposa fiel e carinhosa.
+
+--Zinaida Aphanassiévna!
+
+--E se ainda me conserva rancor...
+
+--Zinaida Aphanassiévna!!
+
+--Se é que, algum dia, prosegue a Zina a rebalsar as lagrimas, se é que
+algum dia me teve amor...
+
+--Zinaida Aphanassievna!!!
+
+--Zina! Zina! Minha filha!
+
+--Sou um miseravel, Zinaida Aphanassievna, um miseravel, e nada mais!...
+
+Produz-se um reboliço estupendo, uma vozearia de espanto, de indignação,
+de atroar a tudo. Mozgliakov ficou que nem que fôra de pedra, incapaz de
+pensar, de falar.
+
+Sempre que um caracter fraco e ôco, afeito a constante submissão, se
+decide a insurgir-se, pára sempre perante um certo limite. A principio,
+a insurreição manifesta-se com summa energia, é a energia do desespero,
+comtudo; arremete contra os obstaculos, de olhos vendados, e assumme
+sempre fardos pesados demais para os seus hombros. Chega um momento em
+que o desatinado se assusta de si mesmo, estaca, como que atordoado, e
+diz comsigo: "Mas que estou eu fazendo?" E distende-se o arco, pede
+perdão o insurrecto, supplíca, implora que as coisas "voltem a estar
+como estavam", comtanto que isso se effectue quanto antes... Foi o que
+se deu com o nosso Mozgliakov. Afflictissimo com o desastre de que fôra
+autôr, a si proprio se abomina, despedaça-o o remorso, as ultimas
+palavras da Zina anniquilaram-n'o de todo. O passar de um extremo a
+outro extremo representa para si obra de momentos.
+
+--Sou um jumento, Zinaida Aphanassievna! Um jumento, nem mais nem menos!
+Ou ainda peor! Mas hei de provar-lhe, Zinaida Aphanassievna, que hei de
+saber tornar-me um homem de bem!... Saiba que o enganei--tiozinho! Fui
+eu, fui eu que o enganei!--O tio não estava a sonhar, e pediu
+effectivamente a mão de Zinaida Aphanassievna! Quando lhe disse que fora
+sonho, enganei-o de meio a meio...
+
+--Mas que coisas tão espantosas que estão vindo a lume! assobia a
+Natalia Dmitrievna.
+
+--Es... tá... cclaro... um sonho... responde o principe... Mas socéga, por
+favor! Assustaste-me... pa... pa... lavra de honra! E que bella voz que tu
+tens! Estou pronto a ca... sar, se fô... fôr... necessario... Mas tu foste
+o pro... prio a af... firmar-me que... que foi sonho!
+
+--E como é que eu agora o hei de despersuadir? Que hei de eu fazer?
+tiozinho, considére em que se trata de um negocio muito sério, de
+familia!
+
+--Está... cclaro... Pen... sarei. Espera ahi! Deixa ver se me vou
+recordando... por p... partes... Pri... meiramente, o Phio... philo, o meu
+cocheiro.
+
+--Não se trata agora do Phiophilo, querido tio!
+
+--Está... cclaro!.. Não se trata... já se vê... que era de Napoleão... E
+depois, tomámos chá... Appareceu uma se... senhora... e comeu-nos o
+açucar... todo...
+
+--Não é nada d'isso, tiozinho, destampa para ali o Mozgliakov, fóra de
+si, quem lhe contou essa historia foi a Maria Alexandrovna, a respeito
+da Natalia Dmitrievna! Eu estava ali, escondido, atrás da porta; ouvi
+tudo!
+
+--Ora esta, Maria Alexandrovna! agarra no ar a Natalia Dmitrievna, com
+que então foi pespegar ao principe que eu lhe tinha furtado o açucar?
+Eu, então, venho a sua casa para furtar açucar!
+
+--Passa fora! mal encontra forças para emitir Maria Alexandrovna.
+
+--Não, lá isso, tenha paciencia, Maria Alexandrovna, não lhe assiste o
+direito de se negar a responder. Eu, então, furtei-lhe o açucar? Estou
+farta de saber que não faz senão cortar-me na pelle, ha muito tempo!...
+Sou eu, então quem lhe furto o açucar!...
+
+--Mas... mi... minha senhora... isso de açucar... era sonho... o tal
+sonho...
+
+--Dorna d'uma figa! resmunga entre dentes Maria Alexandrovna.
+
+--Eu lhe direi quem é a dorna! ulula a Natalia Dmitrievna. E a senhora,
+que será então? Ha muito tempo que me pôz essa linda alcunha! Mas,
+sequer ao menos, tenho um marido, emquanto a senhora se contenta com um
+cêpo.
+
+... Es... tá... cclaro... Tam... bem me lembro da Dorna...
+
+--Ah! elle é isso?... Tambem veiu meter a sua colherada?--Atreve-se a
+injuriar uma senhora fidalga?! Com que, então, sou uma dorna; olha quem
+fala, que nem sequer tem pernas!
+
+--Es... tá... cclaro... Sem pernas...
+
+... Como foi... que disse?
+
+--Pois está sabido--nem pernas--nem dentes--Ora apanha!
+
+--E um olho, só!... accrescenta Maria Alexandrovna.
+
+--Um espartilho a suprir as costellas!
+
+--Com a cara de mólas, toda ella!
+
+--E nem um pello nessa careca!
+
+--O proprio bigode, é postiço, pateta das duzias, agrava Maria
+Alexandrovna.
+
+--Res... peitem--o meu na... nariz... sequer ao menos! É verdadei... ro!
+exclama, o principe banzado de todo.--Fôs... te... tu que me
+de... nunciaste, meu amigo!
+
+Para que fôste contar que o meu--cabêllo era--po... postiço?
+
+--Tiozinho!
+
+--Não, meu amigo, já aqui não posso ficar... leva-me para qu... alquer
+parte... Que gente!
+
+Para onde tu me trouxeste!... Valha-me Deus!
+
+--Idiota! vocifera Maria Alexandrovna.
+
+--Ai! meu Deus! suspira o coitado do principe. Já nem sei porque seria
+que aqui vim parar--mas vou ver se me lembro.--Leva-me d'aqui para
+fora--mano! Faziam-me em bo... bocadinhos!--E depois, é urgente que eu vá
+anotar um... uma ideia... ca... capital.
+
+--Venha d'ahi, querido tio, ainda estamos a tempo. Vem commigo ahi para
+um hotel, qualquer, e não me aparto do tio...
+
+--Mas... está... cclaro, com o senhor...
+
+Adeus minha lin... da menina!
+
+... A menina... e só a menina é a unica... que é virtuosa. É uma..
+nobi... lis... sima donzella!
+
+Vamos lá... meu caro...
+
+Ai! meu Deus!
+
+Não me abalançarei a descrever o epilogo da tão desagradavel scena, que
+se seguiu á retirada do principe. Os visitantes foram-se safando n'um
+berreiro de estrugir a tudo. Maria Alexandrovna ficou sósinha, em meio
+d'aquelle seu desastre. Já é infelicidade! Poderío, riqueza, gloria,
+foi-se tudo no espaço de um dia! Percebia e mais que percebia que nunca
+mais levantaria cabeça! A tirannia por ella exercida durante tão longo
+prazo sobre Mordassov estava aniquilada de todo. Que lhe restava? Não
+era filosofa, Maria Alexandrovna. Passou uma noite pavorosa.
+Desacreditada a Zina, um nunca acabar de linguarice! _Hórror, hórror,
+hórror!_ Na minha qualidade de historiografo sincero, cumpre-me
+mencionar que Aphanassi Matveich esteve a tiritar toda a santa noite no
+cubiculo, ás escuras, onde se fôra alapardar para conservação dos seus
+olhos.
+
+O dia immediato não amanheceu fagueiro: isto de desgraças vem sempre aos
+pares.
+
+
+
+
+XV
+
+
+Desde as oito horas da manhã que corria pela cidade um boato
+inacreditavel. Repetia-o cada qual com maligno contentamento, conforme é
+da praxe sempre que se trata d'algum escandalo do qual foi victima
+qualquer pessoa d'amizade.
+
+--Perder áquelle ponto a vergonha!
+
+--Rebaixar-se daquella maneira!
+
+--Arrostar assim com todas as conveniencias!
+
+--Que costumes!
+
+Eis o que succedera:
+
+Logo de manhanzinha, ahi pelas sete horas, salvo erro, entrava em casa
+de Maria Alexandrovna uma pobre vélhita, afflictissima, a supplicar da
+aia que fosse quanto antes accordar a _barichina_[15], mas esta, tão
+sómente, ás escondidas de Maria Alexandrovna. A Zina, assustada,
+accudira desde logo. Cae-lhe de joelhos aos pés a velhota, aos beijos a
+elles, a inundar-lh'os de lagrimas, a exorar-lhe que venha ver o Vassia.
+
+--Passou tão mal a noite! Suppõe-se até que não chega ao outro dia!
+Accrescenta a velha que foi o proprio Vassia quem manifestou desejos de
+tornar a ver a sua amada, antes de morrer; e supplica-lhe em nome do
+passado, e que, se ella se negar, morrerá no auge do desespero!
+
+A Zina despede por ali fora, sem dizer nada á mãe. Vae de corrida até o
+extremo de um dos arrabaldes mais pobres de Mordassov. Ali, n'uma baiuca
+muito velha e escalavrada, á qual suprem as janelas umas como que ráchas
+abertas nas paredes, n'um cochichólo muito baixo de tecto e fedorento,
+meio atravancado com uma fornalha, jazia, em cima de uma camada de
+taboas, cobertas com uma enxerga, delgada que nem uma folha de papel, um
+môço, escondido debaixo de um capóte todo elle farrápos. Tinha livido e
+refegado o semblante, os olhos, a luzir com o fôgo da fébre, as mãos,
+seccas e transparentes. Quasi que nem respirar podia; era o estertor.
+Comquanto o houvesse desfigurado a doença, conservava retraços de
+formosura. Triste espectaculo, na verdade, aquelle rosto de tisico, do
+moribundo. A edosa mãe que, ainda hontem, acreditava na cura percebe
+finalmente que vae em breve ficar sósinha n'este mundo. Com os braços
+cruzados, olhos sêcos, para ali está, sem comprehender, sem poder
+desviar a vista de cima do enfermo, aniquilada, perseguida pela visão da
+cova, na terra fria do velho cemiterio atascado de neve.
+
+Não olha para ella o Vassia, irradia-lhe no semblante a ventura: até que
+por fim vê aquella a quem, vae n'um anno, durante aquellas suas eternas
+noites de doente apenas viu em sonhos. Percebe que ella lhe perdoou,
+visto que veiu, visto que lhe aperta as mãos, visto que o contempla com
+aquelles seus lindos olhos, a chorar e a rir ao mesmo tempo. Resuscita
+de todo na alma do enfermo o passado: desperta-lhe dentro d'alma a vida
+como se quiséra tornar-lhe sensivel a que ponto é triste o ter que a
+deixar.
+
+--Zina! Zinotchka! Não chores... não me estejas a lembrar que vou
+morrer... deixa-me contemplar-te, pensar que me perdoáste. Vou morrer
+sem pensar que morro, até, beijando-te as mãos... Estás tão magrinha,
+Zinotchka! Anjo querido, a bondade com que tu estás a olhar para mim!
+Lembras-te do gosto com que te rias, d'antes? Ai! Zina! Eu já nem sequer
+te peço perdão!... Nem quero lembrar-me do que aconteceu... eu é que m'o
+não perdôo, a mim proprio... E quanta noite sem poder dormir, Zina!
+Quanta noite não levei eu a pensar, a recordar-me, a estalar, quasi, com
+saudades!... É melhor que eu morra! Sou incapaz de viver, Zinotchka!
+
+E a Zina, lavada em lagrimas, muda, a apertar nas suas as mãos do seu
+amado, como se quiséra arrancál-o á morte.
+
+--Então, não chores! insistia o enfermo. Eu morrerei hoje, porventura?
+Se ha tanto tempo que está morta a felicidade! És mais intelligente e
+vales mais do que eu... bem sabes que valho menos do que tu, por que
+será que me tens amor? Bem sabes que te não mereço! Oh! quanto me não
+tem feito padecer semelhante pensamento! Ah! querido amor, foi um sonho
+a minha vida: não vivi, sonhei! E eu a desprezar a multidão: e que
+razões tinha eu para ser tão soberbo? A purêza do meu coração? A nobreza
+dos meus sentimentos? Mas se tudo isso tinha apenas a consistencia dos
+meus sonhos, nada mais, Zina!
+
+--Basta! basta! Matas-me!
+
+--Não me interrompas, Zina!... Perdoáste-me, bem sei: e ha já muito
+tempo, talvez, mas avaliáste-me e comprehendeste o que eu era, e é isso
+que me atormenta. Sou indigno do teu amor, Zina! Fôste sempre leal e
+generosa; fôste ter com tua mãe e declaraste-lhe o teu firme desejo de
+casar commigo, ou com mais ninguem: e cumpriste a palavra dada, pois que
+para ti, palavra e acção são uma e a mesma coisa! Ao passo que eu,...
+eu! Não sabes, eu até hoje não tinha comprehendido, sequer, a extensão
+toda do sacrificio que fazias em ser minha mulher. E lembrar-me eu de
+que tu, commigo, te arriscavas a morrer de fome! Mas se a mim parecia-me
+que nada ha n'este mundo que se compare á honra de ser esposa de um
+grande poeta... sem nome,... é certo! Não quiz intender o motivo que
+alegavas para retardar o nosso casamento. Tu a padeceres por minha
+causa, eu a martirizar-te, a exprobar-te, a desprezar-te... até que por
+fim te ameacei com aquella carta... Eu, n'esse instante, nem sequer
+cheguei a ser um miseravel, mas sim um ente abjecto, e nada mais! Ah!
+nem quero pensar até onde iria o teu desprezo! Não, não! É bom que eu
+morra! Obrigado por não haveres querido pertencer-me! Iriam correndo os
+annos, e quem sabe se eu afinal não viria a ver em ti um tropêço ao meu
+porvir. Sim, antes assim! E agora, o amargor das minhas lagrimas, sequer
+ao menos, purificou este meu coração. Ah! Zina! Concede-me um quinhão no
+teu amor, tão sómente, no teu amor de algum dia!--N'esta hora
+derradeira, sequer ao menos! Sou indigno do teu amor, bem o sei! mas...
+mas... mas... ai meu anjo!
+
+E a Zina, desfeita em pranto, a escutar. Tentava interrompêl-o, elle
+porém, ia proseguindo... supplice, a gesticular, e aquella sua voz
+debil... abafada e sibilante,... fazia mal á Zina...
+
+--Não me tiveras tu encontrado, e não me terias amado, e não morrias...
+disse a Zina. Ah! Oxalá nunca nos tivessemos encontrado!
+
+--Não, meu amor, não! Não te estejas arguindo da minha morte! A culpa
+foi minha, e só minha! O amor proprio... o romantismo!... Nunca te
+contaram, Zina, a minha estupida historia? Existiu aqui, ha três annos,
+um prisioneiro, um miseravel, um ladrão. Mas no dia em que chegou o
+castigo, faltou-lhe o animo. Sabendo que não levam a justiçar um
+enfermo, alcançou uma garrafa de vinho, deitou-lhe de infusão tabaco e
+enguliu-o. Tomaram-n'o uns vomitos que duraram tanto que principiou a
+escarrar sangue e deu cabo dos pulmões. Levaram-n'o para o hospital e,
+d'ali a dias, morreu tisico. Pois bem! Occorreu-me á memoria esse
+ladrão, no dia em que se deu aquelle caso da carta... E resolvi acabar
+commigo da mesma maneira. E por que foi que eu, de proposito, escolhi a
+tisica? Por que foi que me não enforquei ou me não deitei a afogar?
+Seria porque me assustasse uma morte tão abrupta? Talvez; mas a mim
+quer-me parecer que concorreriam, e não pouco, para isso, as minhas
+ideias romanescas. Não me largava este pensamento: Que morte tão bella
+não será a minha, estirado como agora o estou, n'uma cama, com o
+estertor da tisica!... E tu, ao pé de mim, a lamentar-me, e a padecer
+com a ideia de que eras talvez a causa da minha doença! E eu a ver-te
+entrar por ali dentro, arrependida, ajoelhar á beira do meu leito... E
+eu a perdoar-te e a expirar nos teus braços!... Toleima, Zina, pois não
+era?
+
+--Esquece-te de tudo isso, nem me tornes a falar das tuas culpas, que tu
+estás a exaggerar; lembrêmo-nos dos momentos ditosos, dos dias de
+ventura.
+
+--Não m'o perdôo, meu amor, e é por isso que falo a semelhante respeito.
+Ha já dezoito mêses que te não via. Queria alliviar este meu coração!
+Durante esse tempo todo, eu para aqui, sósinho, e não houve um só
+instante, em que eu não pensasse em ti, meu amor. O que não desejaria eu
+fazer para reconquistar a tua estima? Até ao derradeiro instante não
+acreditei que morria; não me entreguei á cama desde logo, andei a pé,
+por muito tempo, com o peito escangalhado. E que sonhos tão ridiculos!
+Ás vezes suppunha ser um grande poeta e em vesperas de publicar um poema
+como ainda não tinha apparecido outro egual n'este mundo, que ninguem
+tivera genio para o escrever. E eu a pensar que me iriam n'elle todos os
+meus sentimentos, a minha alma, toda inteira, e que, d'este modo, me
+acharia sempre a teu lado, e que qualquer que fosse o sitio em que te
+encontrasses, os meus versos ir-te-hiam recordar a minha existencia, e o
+meu sonho unico era acreditar que tu em conclusão poderias dizer: "Não,
+elle a final não é tão mau como eu o suppunha". Toleima, Zina, toleima,
+pois não é?
+
+--Não, não, Vassia, exclamava a Zina.
+
+E debruçada sobre o peito d'elle, pôz-se-lhe aos beijos ás mãos.
+
+--E o ciume! Como me atormentava o ciume durante esse tempo, todo! Eu,
+se tivesse ouvido falar no teu casamento, caía morto, redondamente!... E
+eu a vigiar-te, a espreitar-te... Era ella quem lá ia (apontando para a
+mãe). Tu nunca tiveste amor ao Mozgliakov, pois não é verdade? Ai! meu
+anjo! Lembrar-te-has tu de mim quando eu já não fôr d'este mundo?
+Lembras, sim, que eu bem sei! Mas os annos hão de ir passando,
+arrefecer-te-ha esse teu coração, o inverno ir-te-ha tomando posse da
+alma, e olvidar-me-has, Zina!...
+
+--Não, não, nunca! E nunca me hei-de casar, tem a certeza!... Foste o
+meu primeiro amor e serás o derradeiro.
+
+--Tudo morre, Zinotchka, tudo, até a propria recordação, até os mais
+nobres sentimentos. Dão logar a um certo raciocinio: frio, que acalma as
+saudades. Insurgirmo-nos, para quê? Trata de aproveitar a vida, ama, sê
+feliz. Ama um vivo! Para que serve o teu amor a um morto?--E comtudo,
+não me esquéças de todo! Tivémos horas atribuladas, é certo, mas quantos
+dias de tanta doçura? Ah!--Foram-se de uma vez para sempre!... Escuta,...
+amei sempre o pôr do sol... Oh! não!... morrer, por quê?... Ah!
+viver, viver! Lembra-te da primavera! Do sol! Tão lindo! Das flores!
+Vivemos por uns tempos n'uma festa! E agora, olha! Olha!
+
+E o pobre enfermo a apontar com a mão diáfana o vidro empanado pela
+giada. Depois agarrou-se ás mãos da Zina e entrou a chorar com amargor.
+E os soluços a esfacelarem-lhe o já dilacerado peito.
+
+E assim se passou todo o dia: A Zina a dizer-lhe que jamais o olvidaria,
+que a ninguem n'este mundo viria a dedicar amor egual áquelle que a elle
+lhe dedicára. E elle a acreditál-a, a sorrir-lhe, a beijar-lhe as mãos.
+
+N'este meio tempo, Maria Alexandrovna, inquiéta, havia já mandado por
+mais de dez vezes indagar o que seria feito da Zina, a supplicar-lhe que
+voltasse para casa, que não acabasse de se desacreditar na publica
+opinião. Até que por fim, ao lusco fusco, resolveu-se, esparvoada de
+receio, a ir, em pessôa, em procura da filha. Exorou-lhe de joelhos; a
+Zina a ouvil-a sem a intender. Maria Alexandrovna saíu desesperada. A
+Zina estava decidida a passar a noite junto do moribundo. Não lhe largou
+da cabeceira. O estado do infermo ia peorando a olhos vistos: quando
+rompeu a madrugada, quasi que nem conservava sopro de vida. E não
+obstante, viveu ainda um dia inteiro. Porém, no momento em que o sol no
+occaso abrasáva as vidraças, exalou-se a alma com os ultimos raios.
+
+Deu-se então horrivel scena. A edosa mãe abraçou-se com o corpo do
+filho, e, voltada para a Zina:
+
+--Fôste tu que o deitaste a perder, maldita! clamou.
+
+A Zina, porém, não ouvia coisa nenhuma; estava para ali, qual estatua
+insensivel, como se, a ella, a alma a tivera deixado tambem. Até que por
+fim, abaixou-se, fez sobre o defunto o signal da cruz, beijou-o na
+testa, e saíu do quarto.
+
+Tão tremendas sensações, e aquellas duas noites de véla, quasi que a
+haviam enlouquecido de todo... e depois, sentia-se prestes a entrar em
+um novo viver, triste, ameaçador.
+
+Não teria ainda andado dois passos, eis lhe surge na frente o Mozgliakov
+como se com elle se abrira o chão.
+
+--Zinaida Aphanassievna, disse com timidez, rodando a vista para todos
+os lados, Zinaida Aphanassievna, sou um jumento; isto é, não é isto
+que... Se me dá licença, não serei um jumento, visto que procedi
+briozamente, apezar de todos os pezares... Mas lá que fui um jumento,
+fui... e estou mais que arrependido... Está-me a parecer que estou a
+meter os pés pelas mãos, Zinaida Aphanassievna. Perdoe-me, atendendo a
+este concurso de circunstancias...
+
+E a Zinaida, inconsciente, a olhar para elle, e a seguir seu caminho,
+sem tugir. Como no passeio não houvesse logar para dois, Mozgliakov
+desceu para a calçada.
+
+--Zinaida Aphanassievna--proseguiu o mancebo, se m'o consente, estou
+pronto a renovar o meu pedido, pronto a esquecer tudo, a
+perdoar-lhe--com uma condição:--Ficará tudo sendo segredo por emquanto.
+Ausenta-se d'esta terra o mais breve possivel, eu sigo atras, ás
+escondidas, casamos para ahi seja onde fôr, sem que ninguem dê por isso,
+e vamos para Petersburgo. E então! Que me diz? Consente, Zinaida
+Aphanassievna? Responda, depressa, por quem é! Não posso esperar;
+poderiamos ser vistos.
+
+A Zina não respondeu: olhou para o Mozgliakov, tão somente, mas fêl-o,
+porém, de modo tal, que elle comprehendeu desde logo, cumprimentou-a e
+sumiu-se por detrás da primeira esquina.
+
+"Ora esta! matutava; ella, ainda não haverá dois dias, a lançar em rosto
+a si propria as culpas todas, e agora!..."
+
+N'este comenos, em Mordassov, precipitavam-se os acontecimentos.
+
+O principe, acarretado pelo Mozgliakov para o hotel, n'aquella mesma
+noite caíu perigosamente enfermo. Os Mordassovenses só vieram a ser
+informados do caso ao romper do dia. Kalist Stanislavitch não largava a
+cabeceira do doente. Ao anoitecer, effectuou-se uma conferencia dos
+medicos todos de Mordassov. Os convites para comparencia eram redigidos
+em latim. E não obstante, a despeito do latim, o principe achava-se em
+estado de delirio, e tudo era pedir ao Kalist Stanislavitch que lhe
+cantasse uma certa romança, a fallar a respeito de chinó e bigode
+postiço e, de vez em vez, muito assustado, soltava uns berros.
+Concluiram os medicos que era uma inflammação do estomago, resultante do
+excesso de hospitalidade mordassovense, e que d'ali tinha passado á
+cabeça. Alegaram, tambem, não sei com que fundamentos, um tal qual abalo
+nervoso. E d'ahi, não se esqueceram de notar que o principe havia muito
+que manifestava predisposições para a morte e que, por conseguinte...
+está claro!--e que por conseguinte, morria. Esta ultima hypothese
+pareceu ter certo fundamento: o pobre do ginjinha expirou ao terceiro
+dia, ahi pelo anoitecer. Obito a tal ponto inesperado consternou
+Mordassov. Acudiram em chusmas ao hotel, discutiam, abanavam a cabeça, e
+concluiram acusando directamente "os assassinos do principe, coitado!"
+(aludindo assim a Maria Alexandrovna e á filha).
+
+Concordava toda a gente em que tão escandalosa historia não deixaria de
+dar brado, e podia, até, "ir muito longe".
+
+Mozgliakov nem sabia já que fazer á sua vida. A situação,
+effectivamente, antolhava-se perigosa. Não fôra elle quem accarretara
+com o principe para casa de Maria Alexandrovna? Não fôra elle tambem que
+carregara com elle para o hotel? Não sabia o que havia de fazer com o
+cadaver, onde o enterrar, a quem informar. E de mais a mais, como
+passava por ser sobrinho do principe, o seu medo todo era não se
+lembrassem de o accusar de ter morto o veneravel ancião.
+
+Eis que de repente mudam as scenas. Uma bella manhã, chega á cidade um
+viajante, desconhecido. E Mordassov, em peso, pespegado á janella, a
+commentar o adventicio.
+
+--O tal viajante era nem mais nem menos que o celebre principe
+Chtchepilov, parente do defunto, sujeito de seus trinta e cinco annos,
+usando dragonas de coronel e as agulhetas de ajudante de ordens. Aquella
+gran-cruz compenetrava de um respeitoso pavor a todos os
+_tchinovnicks_[16] do logar. O prefeito de policia por pouco não
+indoidece.
+
+Em breve se veiu a saber que o principe vinha de S. Petersburgo e já
+havia passado por Dukhanovo. Não encontrando ali ninguem, viera
+seguindo as piugadas do principe até Mordassov, onde o surprehendera a
+fatal noticia. Tomou desde logo a tudo sobre si, e Mozgliakov retirou-se
+muito encolhido em presença do lidimo sobrinho.
+
+O illustre defunto foi trasladado para o mosteiro. Ao outro dia, a
+cidade em peso congregou-se a ouvir a missa funeraria. Entre as
+senhoras, corria que Maria Alexandrovna compareceria em pessoa na
+egreja, para pedir perdão alto e bom som perante o caixão, em
+conformidade com as exigencias da lei. Escusado será dizer que tal Maria
+Alexandrovna não appareceu.
+
+Fôra para o campo e levára a Zina, parecendo-lhe insustentavel a
+situação na cidade. Lá da sua aldeia, ia recolhendo com inquietação as
+atoardas e mandava tomar informações.
+
+Do mosteiro a Dukhanovo, o caminho passava a uma versta das janellas de
+Maria Alexandrovna. Teve pois occasião de ver desfilar o prestito
+funebre. Atrás do féretro seguia uma longa cauda de trens. E por largo
+espaço, n'aquelle campo branco de neve, foi perfilando aquelle seu vulto
+negro, lento e majestoso, o carro melancólico.
+
+D'ali a oito dias, Maria Alexandrovna, com a filha e Aphanassi Matveich,
+transferiu-se para Moscou. A aldeia e a casa foram postas em leilão.
+
+E assim perdeu para sempre Mordassov uma senhora, o _mais comme il faut_
+possivel!
+
+O caso não escapou a commentarios; nem faltou quem affirmasse que o
+Aphanassi Matveich se achava tambem á venda juntamente com a aldeia...
+
+Rodou um anno, outro ainda, e ninguem tornou a falar em Maria
+Alexandrovna.
+
+E comtudo, correu que havia adquirido outra aldeia em outro governo, e
+que outra capital de districto não tardaria em tremer entre as suas
+potentissimas mãos. A Zina estaria ainda á espera de noivo.
+
+O Aphanassi Matveich...
+
+Mas não nos tornemos éco de boatos sem fundamento. É falso tudo isso.
+
+ * * * * *
+
+Já lá vão três annos desde que eu escrevi as linhas que acabaes de ler.
+Quem me diria que ainda havia de vir a folhear o manuscripto para lhe
+accrescentar ainda mais uma lauda?
+
+Mas vamos ao facto:
+
+Principiarei por Pavel Alexandrovitch Mozgliakov.
+
+Ao ausentar-se de Mordassov, foi direitinho a Petersburgo, onde alcançou
+o logar que lhe andava prometido havia muito tempo. Não tardou em se lhe
+franquearem as portas da sociedade, infronhou-se n'umas intrigalhas,
+guindou-se ás alturas de espirito do século, tornou a apaixonar-se,
+renovou o seu pedido, voltou a apanhar um não pelas ventas, enguliu-o, e
+não podendo digeril-o, sollicitou o ser incorporado a uma expedição
+enviada a um dos cantos mais remotos d'este nosso paiz sem limites.
+
+O corpo expedicionario transpôz sem novidade de maior florestas e
+desertos, alcançando a capital da longinqua região.
+
+Foi acolhido pelo general-governador.
+
+Era um homem magro e de semblante severo, um velho militar, ferido em
+diversas campanhas, condecorado com dois cráchás e com uma cruz branca.
+Convidou a todos os _tchinovniks_ para um baile effectuado aquella mesma
+noite.
+
+Pavel Alexandrovitch estava encantado. Envergara a sua casaca
+petersburguense, com a qual contava para produzir immenso effeito, e deu
+entrada nas salas nobres com modo desassombrado. Não tardou porém a
+perder o aprumo em presença de tanta dragona de cachos e de tanta farda
+enfeitada de commendas. Cumpria-lhe ir fazer a sua venia á esposa do
+governador, nóva, diziam, e formosissima. Aproxima-se, muito senhor de
+si,--mas--de subito,--escancara a bôca, e fica pregado ao chão, de
+assombrado. Com um sumptuoso vestido de baile, surge-lhe na frente a
+Zina, feraz, soberba, linda, e resplandecente de joias, toda ella. Nem
+conheceu o Pavel Alexandrovitch, os seus olhos nem se detiveram sequer
+no semblante de mancebo. Mozgliakov recuou e foi perder-se entre a
+turba-multa, e soube da bôca de um juvenil _tchinovnick_ coisas
+interessantissimas.
+
+Soube que o governador era casado ia já em dois annos, desde uma viagem
+que fizéra a Moscou. Desposara uma joven muito rica, de optima familia.
+A generala era muito soberba e só dansava com generaes, (havia nove no
+baile). A generala tem em sua companhia a mãe, senhora intelligentissima
+da mais alta aristocracia, mas que se submete á vontade da filha. E
+d'ahi, o general extasia-se tambem deante d'esta. Mozgliakov referia-se
+ao Aphanassi Matveich, mas n'aquella região remota ninguem dava noticia
+delle.
+
+Um tanto restabelecido d'aquelle seu sobresalto, Mozgliakov deu uma
+volta pelas salas e lobrigou Maria Alexandrovna, vestida com singeleza
+e, muito animada, a falar com uma personagem graúda. Faziam-lhe cerco
+varias senhoras que lhe sollicitavam a boa sombra. Maria Alexandrovna
+era amavel com toda a gente.
+
+Mozgliakov arriscou-se e foi-se-lhe apresentar. Maria Alexandrovna teve
+assim a modos de um estremeção, mas sopitou-se, acto-continuo. Dignou-se
+reconhecêl-o e pediu-lhe novas dos seus amigos de Petersburgo. A
+respeito de Mordassov, nem palavra e foi como se tal coisa não
+existisse, em conclusão, proferiu o nome de um qualquer principe
+estranho ao Mozgliakov, voltou-lhe as costas sem affectação,
+dirigindo-se a uma personagem graúda de cabello grisalho e aromatizado,
+e d'ali a instantes, dir-se-hia haver-se esquecido de todo de Pavel
+Alexandrovitch, que ficou para ali com cara de tolo, diante della.
+Mozgliakov, engatilhando um sorriso sarcastico, e de chapeu na mão,
+regressou para a sala nobre. Não sei dizer o motivo, mas considerava-se
+offendido e não se prestou a dansar. Nunca mais lhe desampararam o
+semblante quer uns ares tristes e de distracção quer um méfistofélico
+sorriso! Recovado em pinturesca atitude a uma columna, (parecia que de
+proposito, tinha columnas o salão), e toda a santa noite, horas a
+seguir, para ali se deixou estar no mesmo posto, a seguir com os olhos a
+Zina. Tempo perdido, infelizmente! Todas aquellas artimanhas, aquelles
+tregeitos todos, aquelles ares romanticos e de nimia decepção... etc...
+etc... nada lhe valeu... A Zina nem sequer deu fé da sua presença. Até
+que por fim, estafado, exasperado, com os pés dormentes em resultado da
+immobilidade, faminto, pois não tinha ceado a fim de melhor sustentar o
+seu papel de amante dolorido, recolheu para sua casa, derreado, abatido.
+E esteve a pé horas esquecidas, a matutar no passado... Logo no dia
+immediato, pediu transferencia e alcançou uma missão que o reconduziu a
+Petersburgo. Voltou a serenidade a entrar-lhe na alma assim que voltou
+costas á cidade. Lá ao longe, o espaço, o infinito, o deserto, a
+denegrida neve das florestas nos confins do horizonte. Ao som das patas
+dos cavallos a chofrarem, e a acompanharem o retinir e o telintar das
+campainhas. Pavel Alexandrovitch esteve pensativo, por instantes, mas
+depois, adormeceu muito socegado da sua vida.
+
+Acordou na terceira muda, fresco, bem disposto, e a pensar noutra coisa.
+
+
+FIM
+
+
+
+
+ [1] Mestre escola
+
+ [2] Proprietario territorial.
+
+ [3] Poeta russo.
+
+ [4] Sacristão.
+
+ [5] Diminuitivo offensivo de Natalia.
+
+ [6] Diminuitivo offensivo de Sonia.
+
+ [7] Diminuitivo offensivo de Maria.
+
+ [8] Dansa nacional russa.
+
+ [9] Mulher de mujik.
+
+ [10] A filha do principe Kotchbey.
+
+ [11] Até mais ver. (em allemão)
+
+ [12] Modo de dizer russo--por: _a minha vida acabada_.
+
+ [13] Pelissa.
+
+ [14] (Camponêsa.)
+
+ [15] A menina.
+
+ [16] Funccionarios.
+
+
+
+
+EXCERPTO DO NOSSO CATALOGO
+
+
+Bibliotheca Moderna de Romances Nacionaes e Estrangeiros
+
+200 réis fortes o volume de 200 a 250 paginas
+
+Volumes publicados:
+
+*Os Ex-homens*--_Maximo Gorki_--1 volume.
+
+*Angustia*--_Maximo Gorki_--1 volume.
+
+*Na Prisão*--_Maximo Gorki_--1 volume.
+
+*Varenca Olessova*--_Maximo Gorki_--1 volume.
+
+*O que eu penso da guerra*--_Conde Leão Tolstoi_--1 volume.
+
+*O Calvario*--_Octave Mirbeau_--1 volume.
+
+*O Filho de Napoleão*--Carolus--1 volume.
+
+*O Cerco de Paris*--_Alphonse Daudet_--1 volume.
+
+*O Coronel Chabert*--_Honoré de Balzac_--1 volume.
+
+*Historia d'um Crime*--_Maximo Gorki_--1 volume.
+
+*Os Estranguladores de Bengala*--_L. Boussenard_--2 volumes.
+
+*A Cortezan de Sagunto*--_V. Blasco Ibañez_--2 volumes.
+
+*A Feira das Vaidades*--_W. Thackeray_--3 volumes.
+
+*Um club da má-lingua*--_Theodoro Dostoievsky_--1 vol.
+
+
+Modern Style Bibliotheca
+
+*Rua da Paz (Mercados d'Amor)*--_V. du Saussay_--1 volume illustrado com
+22 esplendidas gravuras de Ch. Atamian, *1$000 réis fortes*.
+
+*O Querido das Mulheres (Romance vehemente)*--_Jerôme Monti_--1 volume
+illustrado com 26 bellas gravuras de Ch. Atamian, *1$000 réis fortes*.
+
+
+*A Russia Vermelha*--_John Foster Fraser_--1 volume illustrado com 56
+gravuras, *1$000 réis fortes*.
+
+*A Cura Natural*--_Mich Larsen_--1 volume de 180 paginas, *400 réis
+fortes*.
+
+*Manual da Sciencia da expressão do rosto*--_L. Kuhne_--*700 réis
+fortes*.
+
+*Cathecismo d'Agricultura*--_A. de Sousa Figueiredo_--1 volume *200 réis
+fortes*.
+
+*Duas mil leguas no Hindustão*--_Hypacio de Brion_--1 vol. formato
+album, illustrado com 74 gravuras, *2$000 réis fortes*.
+
+*Jesus Christo*--_Luiz Veuillot_--1 volume illustrado com 180 gravuras,
+ricamente encadernado, dourado por folhas, *13$500 réis fortes*.
+
+*O Melro Branco*--_Julio Barrili_--1 volume in-8.º grande, com
+esplendidas illustrações de _Bonamore_, *1$800 réis fortes*.
+
+*Orlando Furioso*--_Ariosto_--3 volumes illustrados com 81 magnificas
+illustrações, *12$000 réis fortes*.
+
+*Terra Illustrada*--_Onésime Reclus_--1 volume de 1.252 paginas com 600
+finissimas gravuras, *11$000 réis fortes*.
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Um club da Má-Lingua, by
+Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UM CLUB DA MÁ-LINGUA ***
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+works. See paragraph 1.E below.
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+ <title>Um Club da Má-Lingua, por Dostoyevsky</title>
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+<pre>
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+Project Gutenberg's Um club da Má-Lingua, by Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+
+Title: Um club da Má-Lingua
+
+Author: Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky
+
+Translator: Manuel de Macedo
+
+Release Date: March 15, 2010 [EBook #31657]
+
+Language: Portuguese
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+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UM CLUB DA MÁ-LINGUA ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<p>&nbsp;</p>
+<div class="fbox"><p><b>Notas de transcrição:</b></p>
+
+<p>O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1908.</p>
+
+<p>Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos alguns pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a leitura do texto, e que por isso não considerámos necessário assinalá-los.
+Os nomes das personagens apareciam impressos de múltiplas formas, e foi feito um esforço de uniformização da grafia dos mesmos, tomando como referencia uma tradução em inglês da mesma obra. Sempre que ouve alteração do nome, usámos um marcador como <span class="typo" title="no original: este">este</span>.</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;"><img src="images/capa.jpg" border="0" alt="Capa do livro" width="80%"></p>
+
+<span class="pn">{1}</span>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<hr width="40%">
+
+<p style="text-align:center; font-size: 2em;">UM CLUB DA MÁ-LINGUA</p>
+
+<hr width="40%">
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<p><span class="pn">{2}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<p><span class="pn">{3}</span></p>
+
+<div style="text-align:center;">
+<p style="font-size: 1.2em;">FÉDOR (THEODORO) DOSTOIEVSKY</p>
+
+<hr style="width: 80%; border-bottom: double;" >
+
+<p style="font-size: 2.5em;">Um club da má-lingua</p>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">TRADUCÇÃO</p>
+
+<p>DE</p>
+
+<p style="font-size: 1.8em;">MANUEL DE MACEDO</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p><span style="font-size: 1.2em;">1908</span><br>
+
+<span style="font-size: 1.8em;">"A EDITORA"</span><br>
+
+<em>Largo do Conde Barão, 50</em></p>
+
+<p>LISBOA</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn">{4}</span></p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<hr width="80%">
+
+<p style="text-align:center; font-size: 0.8em;">Typographia "A Editora"&mdash;Largo do Conde
+Barão, 50&mdash;Lisboa</p>
+
+<p><span class="pn">{5}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<div id="corpo">
+<h1>O SONHO DO PRINCIPE GAVRILA</h1>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>I</h2>
+
+<p>Maria Alexandrovna Moskalev é com toda a certeza a dama de mais subida
+importancia em Mordassov, nem haverá quem o conteste. Ao contemplál-a, dirieis
+que não precisa seja de quem fôr, e que, antes pelo contrario, toda a gente lhe
+deve obrigações. Goza de poucas sympathias, na verdade, é cordialmente
+detestada, até: mas temida tambem universalmente, e é isso que ella quer. E não
+representará isto um rasgo de finura politica? Por que será que, por exemplo,
+apezar de nutrir paixão por mexericos e de não poder dormir descansada no dia
+em que não soube nada de novo, por que será, sim, que pela apparencia de Maria
+Alexandrovna, tal é a sua majestade, não occorre á mente, seja de quem fôr, o
+facto de ella ser a primeira coscovilheira d'este mundo, ou quando menos, de
+Mordassov? Dir-se-ia antes que assim que apparece deveriam cessar,
+acto-continuo, de todo os mexericos, as comadres tremerem como garotetes em
+presença do prefeito, e as conversas guindarem-se desde logo aos assuntos mais
+transcendentes. E todavia, ella, a respeito de uns certos Mordassovenses está
+em dia com umas chronicas tão escandalosas<span class="pn">{6}</span> que, se
+as dissesse a proposito e provando-lhes&mdash;como ella o sabe fazer&mdash;a
+authenticidade, Mordassov em pêso tremeria tal qual tremeu Lisboa em tempos.
+Mas se ella quanto a segredos é o proprio tumulo; é necessario dar-se um
+concurso de circumstancias extraordinarias para que ella consinta em falar
+n'umas certas coisas,&mdash;e isto ainda entre amigos da maxima intimidade.
+Poderá arriscar uma allusão, dar a entender que "está em dia"; mas pella-se por
+manter a qualquer individuo&mdash;homem ou mulher&mdash;na sugestão de um temor
+perpetuo, em vez de o esmagar de um golpe. Isto é que é intelligencia, isto é
+que é tactica! Maria Alexandrovna sempre se distinguiu mercê do seu
+irreprehensivel <em>comme il faut</em>. É citada como modêlo. Lá quanto ao
+<em>comme il faut</em> não tem rival em toda Mordassov.</p>
+
+<p>Poderá, com uma palavrinha, matar, esfacelar, anniquilar uma pessoa que lhe
+haja cahido no desagrado,&mdash;mas sem lhe tocar, sem suspeitar, dir-se-hia, a
+importancia da dita palavrinha. Semelhante traço de caracter assás trescala a
+alta sociedade.</p>
+
+<p>Tem optimas relações. A Mordassov ainda não veiu pessoa que não ficasse
+penhorada com as recepções de Maria Alexandrovna. O maximo numero até de taes
+visitantes accidentaes ficaram-se carteando com ella. Houve até um poeta que
+lhe dedicou versos: Maria Alexandrovna exhibe-os com desvanecimento. Um
+litterato de arribação offereceu-lhe uma novélla da qual fizera leitura em casa
+da nobre senhora, durante um sarau: produziu optimo effeito. Um sabio allemão,
+vindo expressamente de Carlsruhe no intuito de estudar uma especie singular de
+vermezinhos chavelhudos que se encontram no nosso governo (o dito<span
+class="pn">{7}</span> sabio escreveu ácerca do alludido vermezinho quatro
+volumes <em>in-quarto</em>) tão encantado ficou com a amabilidade de Maria
+Alexandrovna, que ainda hoje, lá de Carlsruhe, lhe escreve cartas respeitosas e
+moraes. Chegaram até a estabelecer parallelos entre Napoleão e Maria
+Alexandrovna. Foi brincadeira, facecia de ciumentos, e comtudo, apontando a
+estranheza de semelhante comparação, atrever-me-hei a fazer uma pergunta
+ingenua; por que seria que a Napoleão, no acume da sua gloria, o tomaria uma
+vertigem? Os legitimistas attribuem uma tal fraqueza á vilã extracção de
+Bonaparte, que nem era de estirpe realenga nem sequer de nobreza limpa. Por
+espirituosa que seja semelhante opinião,&mdash;pois tresanda á mais brilhante
+épocha da antiga côrte franceza,&mdash;atrever-me-hei ainda a perguntar: mas
+por que é que a Maria Alexandrovna não a tomaram nunca vertigens? Pois é um
+facto; veiu a ser e depois ficou sendo sempre a dama de mais subida importancia
+em Mordassov. Conheceu horas atribuladas, não ha duvida, e, em certas
+circumstancias, houve até quem dissesse lá comsigo: «Mas que é que ha de agora
+fazer Maria Alexandrovna?» E o obstaculo achava-se transposto como que por
+encanto.</p>
+
+<p>Toda a gente estará lembrada da maneira porque o marido, o Aphanassi
+Matveich, perdeu a posição. Deu-se isso em seguida a uma inspecção aos fiscaes
+a quem esta achou tolos em demasia. E a cuidarem que Maria Alexandrovna não
+deixaria de perder o sizo, humilhar-se, supplicar, n'uma palavra, "rebaixar a
+sua linguarice." Longe d'isso! Percebendo que as supplicas nada adeantariam,
+houve-se de modo que a sua influencia não soffreu a minima quebra, e que a sua
+casa continuou a ser a primeira casa de Mordassov.<span class="pn">{8}</span>
+Anna Nikolaievna Antipova, inimiga figadal de Maria Alexandrovna, a despeito
+das exteriorizações de mundana amizade, já cantava victoria. Mas não tardaram
+em perceber que era difficil atrapalhar Maria Alexandrovna, e que esta era mais
+fina do que a suppunham.</p>
+
+<p>Aqui, vem ao pintar umas palavras a respeito de Aphanassi Matveich, marido
+de Maria Alexandrovna. É um homem muito bem parecido, a correcção em pessoa.
+Mas, nos casos criticos, assustava-se que nem um borrêgo que percebesse que lhe
+mudaram o que quer que fosse ao cancêlo do redil. Circumstancia que lhe não
+tolhia o ostentar ordinariamente uns ares de summa importancia, sobretudo nos
+jantares de apparato, quando punha a gravata branca. A majestade de taes
+sujeitos dura até ao momento de abrirem a bôca: mas então é tratar de metter
+rolha nos ouvidos. Semelhante homem, com toda a certeza, é indigno de pertencer
+a Maria Alexandrovna. É esta a opinião geral.</p>
+
+<p>E d'ahi, é unicamente devido á genialissima esposa o facto de elle se
+conservar no seu posto. A meu ver, ha muito tempo que o deveriam ter espetado
+na horta á laia de espantalho para os pardaes.</p>
+
+<p>Alli, e só alli, poderia ter sido de alguma utilidade. Maria Alexandrovna
+fez, pois, muito bem em exilar Aphanassi Matveich para a aldeia de cento e
+vinte almas que ella possuia a tres verstas de Mordassov. E de caminho, digamos
+que a dita propriedade representava a totalidade dos bens facultando a Maria
+Alexandrovna o custear tão bem, e com tamanho estadão, a sua casa. Facil foi
+pois o perceberem que havia supportado Aphanassi Matveich unica e
+exclusivamente por causa do seu cargo, dos respectivos ordenados<span
+class="pn">{9}</span> e... e ainda de uns certos emolumentosinhos. Agora, que,
+velho, já nem representava ordenados nem emolumentos, não seria de justiça
+affastá-lo na qualidade de inutil trambolho?</p>
+
+<p>Aphanassi Matveich leva no campo uma vida agradabilissima. Fiz-lhe uma
+visita e passei com elle uma hora encantadora. Ensaia ao espelho as gravatas
+brancas, engraxa as proprias botas, não por necessidade, mas sim por amor da
+arte, porque gosta de ver as botas a luzir muito. Toma chá tres vezes ao dia,
+vae a miudo ao banho e não se rala com coisa nenhuma... </p>
+
+<p>Estão lembrados d'aquella nojenta historia, ha dezoito mêses, a proposito da
+Zinaida Aphanassièvna, filha unica, de Maria Alexandrovna e de Aphanassi
+Matveich? Zinaida é uma beldade, e uma menina muito bem educada, de mais a
+mais; mas tem vinte e trez annos e ainda está solteira. Uma das principaes
+causas a que atribuem o celibato da Zina, é o boato vago da estrambotica
+ligação que dizem haver tido, ha exactamente dezoito mêses, com um réles
+utchitel<a name="tex2html1" href="#foot57"><sup>[1]</sup></a>&mdash;boato que
+ainda se não desvaneceu.&mdash;Citam uma missiva amorosa escrita pela Zina e
+que dizem ter corrido Mordassov de um extremo ao outro. Mas, por favor, não me
+dirão, leram a tal epistola? Não houve em Mordassov pessoa que a não visse. E
+então! onde pára ella actualmente? Toda a gente ouviu falar nella, mas quem foi
+que a viu? Eu, da minha parte, ainda não encontrei uma só pessoa que a tenha
+visto com seus proprios olhos.<span class="pn">{10}</span></p>
+
+<p>Alluda alguem á tal epistola na presença de Maria Alexandrovna e aposto
+desde já que ella não perceberá sequer esse alguem. Mas supponhamos que tenha
+havido o que quer que fosse de verdade em semelhante atoarda, e que a Zina haja
+escrito a decantada epistola, (effectivamente, estou convencido de que a
+escreveu): admirem então a habilidade de Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>Como se havia de atabafar caso tão escandaloso?&mdash;Pois bem, procurem,
+nem vestigios, prova, que é della? Maria Alexandrovna nem sequer se digna tomar
+conhecimento de calumnia tão soez, e comtudo, Deus sabe o trabalho que lhe
+custou conservar intacta a honra da filha unica! Que a Zina não tenha ainda
+casado, isso percebe-se, de mais, até: onde iria ella por aqui encontrar noivo?
+A Zina só pode casar com um principe reinante! Já alguem viu mais peregrina
+formosura? É soberba, lá isso é... Dizem que Mozgliakov a pedira em casamento,
+mas semelhante consorcio jámais se effectuará. Quem vem a ser esse tal
+Mozgliakov? É môço, assás bem parecido, elegante, peterburguense, proprietario
+de cento e cincoenta almas livres de hypotheca. Mas não fura paredes! Leviano,
+tagarélla, apaixonado pelas novas ideias... E que representarão cento e
+cincoenta almas com ideias novas? O casamento nunca se realizará.</p>
+
+<p>Quanto acaba de ler o amavel leitor foi escrito, ha cinco mêses, unicamente
+por admiração. Devo convir em que nutro uma tal ou qual sympathia por Maria
+Alexandrovna. Quizera escrever o panegyrico de tão magnifica dama sob a forma
+de uma carta dirigida a um amigo, a exemplo d'aquellas que outrora publicavam
+as revistas, n'esses bons<span class="pn">{11}</span> tempos que já lá vão, e
+que, louvôres a Deus! não voltam cá outra vez!</p>
+
+<p>Mas se não tenho um unico amigo, e, graças á incuravel timidez que de mim se
+apodera assim que se trata de litteratura, a minha obra ficou na gaveta na
+qualidade de tentame sem seguimento.</p>
+
+<p>Cinco mezes eram pois decorridos, quando em Mordassov se deu um
+acontecimento extraordinario.</p>
+
+<p>Um dia, de madrugada, eis que chega o principe K... e vae hospedar-se em
+casa de Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>As consequencias d'este acontecimento são incalculaveis. O principe passou
+apenas trez dias em Mordassov. Mas esses trez dias deixaram recordações fataes
+e inexpungiveis. Direi mais: o principe foi causa de uma verdadeira revolução
+n'esta nossa cidade. A narrativa da alludida revolução virá a ser, certamente,
+a pagina mais importante da historia de Mordassov. E é essa pagina que eu, após
+innumeras hesitações, me resolvi a offerecer, sob forma litteraria ao criterio
+do respeitavel publico.</p>
+
+<p>A minha narrativa poder-se-ia intitular: "Grandeza e Decadencia de Maria
+Alexandrovna." Grande e seductor assumpto para um poeta.<span
+class="pn">{12}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>II</h2>
+
+<p>Direi desde já que o principe K... não era um ancião centenario.</p>
+
+<p>Á primeira vista, comtudo, ninguem podia deixar de pensar que ia reverter
+outra vez aos elementos, a tal ponto se achava gasto! Corriam em Mordassov as
+historias mais estranhas a respeito do dito principe. Affirmavam que estava um
+tanto ou quanto tinôco.</p>
+
+<p>Effectivamente, parecia exquisito que um <em>pomiestchik</em><a
+name="tex2html2" href="#foot63"><sup>[2]</sup></a> de uma das mais notaveis
+familias, dono de quatro mil almas, em posição de obter consideravel influencia
+na provincia, permanecesse enclausurado, tal qual um eremitão, na sua magnifica
+propriedade. Muitos que o tinham visto, seis ou sete annos atraz, por occasião
+da primeira vinda do principe a Mordassov, affirmavam que nesse tempo nem podia
+supportar a solidão nem tinha ainda aquelles seus costumes de eremita.</p>
+
+<p>Eis os esclarecimentos que pude colher a seu respeito bebidos das mais
+seguras fontes.</p>
+
+<p>Outrora&mdash;e onde irá isso!&mdash;o principe havia effectuado na
+sociedade um ingresso de aurora... Durante os annos todos da juventude levara
+vida airada, requestando as damas, esbanjando por vezes repetidas o seu
+dinheiro em<span class="pn">{13}</span> viagens ao estrangeiro, cantando
+romanzas, fazendo trocadilhos; mas não se distinguia mediante uma intelligencia
+acima da marca. Em semelhante vida, não tardou em dar cabo do que tinha, e,
+quando chegaram os dias da senéctude, ficou sem um kopek. Aconselhou-lhe alguem
+que voltasse para a sua aldeia, que principiava já a ser vendida em hasta
+publica.</p>
+
+<p>Aproveitou o conselho, e foi nessa occasião que veiu passar seis mêses em
+Mordassov. Agradou-lhe immenso a vida de provincia, e pelo espaço de seis mêses
+acabou de se "alimpar" em amorios com as mundanas provinciaes. Era aliás
+excellente pessoa, de um fausto principesco (em Mordassov o fausto é o signal
+caracteristico da mais alta aristocracia.)</p>
+
+<p>As damas sobretudo não cessavam de se alegrar com um hospede encantador a
+tal ponto. Deixou entre nós curiosissimas recordações; entre outras
+exquisitices, contavam que o principe gastava a maxima parte do dia ao
+toucador. Parecia todo elle feito de pedacinhos enxertados. Scismavam onde e
+como fôra que elle se haveria decomposto d'aquella maneira. Usava chinó,
+bigode, suissas, e inclusivé uma pêra, tudo postiço até o minimo pellinho, e
+tudo preto como o proprio azeviche&mdash;uma lindeza! Levava todo o santo dia a
+pôr caio e carmim. Affirmavam que dispunha de um talento especialissimo em
+disfarçar as rugas do rosto por meio de umas mólazinhas escondidas com o chinó.
+Affirmavam ainda que trazia espartilho, havendo ficado sem uma costella ao
+saltar desastradamente de uma janella abaixo durante uma aventura amorosa, na
+Italia. Coxeava da perna esquerda, uma perna postiça de cortiça,
+affirmavam,<span class="pn">{14}</span> havendo quebrado a verdadeira em Paris,
+em outra aventura. É possivel que houvesse exaggêro, mas o que é certo, é que o
+olho direito era de vidro: illudia completamente, aliás; ninguem diria que não
+era natural. Os proprios dentes eram artificiaes. Passava dias inteiros a
+lavar-se com aguas-garantidas, a perfumar-se, a encalamistrar-se. Ultimamente,
+comtudo, principiava a fazer-se velho e a tresler. Parecia estar prestes a
+terminar a sua carreira, e sabia toda a gente que se achava arruinado,&mdash;e
+eis que de repente lhe morre uma sua parenta muito chegada, senhora de muita
+edade, vivendo em Paris, e de quem não esperava herdar, em seguida a haver
+enterrado um mez, exactamente, antes de fallecer, o unico herdeiro. Eram quatro
+mil almas e uma soberba propriedade a sessenta verstas de Mordassov a
+reverterem no principe sem a minima partilha. Abalou desde logo para
+Petersburgo a fim de pôr em ordem seus negocios. Por occasião da partida,
+offereceram-lhe as damas um sumptuoso banquete por subscripção. Ha quem se
+lembre ainda de como, n'aquelle dia, o principe foi seductor e espirituoso! Era
+um tiroteio de calemburgos, de anecdótas extraordinarias. Prometeu voltar o
+mais breve possivel para a sua nova propriedade e jurou que na volta daria meza
+franca e uma festa&mdash;bailes e luminarias&mdash;que nunca havia de ter fim.
+Depois da sua partida, ficaram as senhoras um anno a falar da tal promettida
+festa e impacientes á espera do encantador velhinho. Organizavam até excursões
+a Dukhanovo, a aldeóla do principe, onde se admirava um antigo solar
+acastellado, um parque adornado de acacias a imitar leões, colinas artificiaes,
+lagos em que navegavam barquinhos tripulados<span class="pn">{15}</span> por
+turcos de madeira, a tocar flauta, pavilhões de <em>Mon-Plaisir</em>, e
+quejandos attractivos.</p>
+
+<p>Até que por fim veiu o principe, com grande espanto e não menor decepção de
+toda a gente, nem sequer passou por Mordassov e foi encerrar-se em absoluto
+isolamento em Dukhanovo. Correram boatos singularissimos. A datar d'esse
+momento, torna-se obscura e phantastica a historia do principe. A principio
+constou que lá por Petersburgo lhe não tinham corrido bem os negocios, que os
+herdeiros, em vista do seu estado senil, queriam nomear-lhe um conselho
+judicial receando que voltasse a esbanjar os seus bens. Ainda mais:
+accrescentavam que aquelles ávidos caçadores de heranças tinham querido
+internál-o n'uma casa de saude! Afortunadamente para o principe, um seu
+parente, personagem de summa importancia, saiu em sua defêsa, provando á
+evidencia que o pobre homem, semi-morto e todo elle artificial, não estava para
+muita dura, certamente. E que n'essa conformidade os seus bens viriam a
+reverter nos herdeiros sem que estes se vissem na necessidade de recorrer á
+casa de saude. Eis o que se diz. São compridinhas as linguas lá em Mordassov.
+Tudo isto havia assustado o principe, a tal ponto, que se lhe tinha demudado o
+genio, descambando em eremitão. Por mera curiosidade, vieram felicitál-o varios
+Mordassovenses: e ou não foram recebidos, ou se o foram foi de modo um tanto
+exquisito. O principe nem mesmo reconheceu, ou antes, não quiz reconhecer os
+seus amigos de outrora.</p>
+
+<p>O proprio governador o foi visitar, mas voltou pelo mesmo caminho dizendo
+que o principe estava tinôco. D'alli em deante notaram que o governador punha
+uma cara de palmo,<span class="pn">{16}</span> assim que lhe falavam na jornada
+a Dukhanovo... Indignavam-se as senhoras. Até que por fim se veiu a saber uma
+coisa capital; o principe vivia submettido á tutella de uma figurona por nome
+Stepanida Matveiévna,&mdash;Deus sabe que casta de mulher!&mdash;que tinha
+vindo lá de Petersburgo, velha, obêsa, usando constantemente o mesmo vestido de
+cassa, e sempre com um mólho de chaves na mão. O principe obedece-lhe em tudo e
+por tudo e não se atreve a dar um passo sem a consultar. Ella, lava-o com suas
+proprias mãos, apaparica-o, passeia-o e entretem-n'o, como se fôra um néné; em
+conclusão, é ella quem bate com a porta na cara aos parentes que principiam a
+saber o caminho de Dukhanovo... Foi muito discutida, sobretudo entre as
+senhoras, tão incomprehensivel ligação. Accrescentavam que Stepanida Matveiévna
+regia com plenos poderes, e sem ter quem lhe fosse á mão, a totalidade dos bens
+do principe. Substitue feitores, creados, arrecada os rendimentos; é aliás boa
+a sua administração, e os camponêzes não vêem outra coisa. Com respeito ao
+principe, este nem já arreda um passo do toucador, a ensaiar chinós, pêras
+postiças, casacos. Uma vez por outra, joga ás cartas com Stepanida Matveiévna;
+de vez em quando, dá o seu passeio n'uma egua inglêsa muito mansa: Stepanida
+Matveiévna acompanha-o sempre em carruagem fechada, prompta á primeira voz,
+visto como o principe só monta a cavallo por garridice e mal se pode ter em
+cima do selim. Acontece-lhe tambem o sair a pé, embrulhado n'um sobretudo, com
+um chapéu de palha enterrado na cabeça, um lenço de mulher ao pescoço, um
+monoculo no olho e pendurado na mão esquerda um açafate para recolher cogumelos
+e flôres campestres.<span class="pn">{17}</span> Stepanida Matveiévna, vae-lhe
+seguindo as pisadas, levando á tréla dois latagões de dois lacaios; e um pouco
+mais atráz, uma carruagem. Se calha encontrarem um mujik que pára e tira o
+bonné para lhe fazer a sua contumélia dizendo: "Bom dia, paezinho principe.
+Nossa Excellencia, nosso solzinho!" o principe assesta-lhe o monoculo,
+acêna-lhe com a cabeça com bom modo e diz-lhe em francêz: "Bom dia, amigo, bom
+dia!" Qual não foi porém o espanto de toda a gente quando, uma bella manhã, se
+espalhou o boato de como o principe, aquelle eremitão, aquelle original, tinha
+vindo em pessoa a Mordassov e se hospedara em casa de Maria Alexandrovna! Foi
+um reboliço por ahi além! Estavam á espera de uma explicação, e perguntavam uns
+aos outros: "Que quererá isto dizer?" Não faltou quem se estivesse enfeitando
+para ir a casa de Maria Alexandrovna. Carteavam-se as senhoras, visitavam-se,
+mandavam as creadas e os maridos colher informações. O que maior espectação
+causava era a circunstancia de se ter ido o principe hospedar em casa de Maria
+Alexandrovna, e não em qualquer outra parte. Anna Nikolaievna Antipova ficou
+mais escandalizada do que outra qualquer pessoa, visto o principe ser ainda seu
+parente, parente muito arredado, é verdade.<span class="pn">{18}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>III</h2>
+
+<p>São dez horas da manhã. Estamos em casa de Maria Alexandrovna, na Rua
+Grande, no aposento que a dona da casa, nos dias duplices, enfeita com o titulo
+de sala. (Maria Alexandrovna, dispõe tambem de um camarim.) O papel das paredes
+é correctissimo. Os moveis, pouco commodos, arvoram com verdadeira predilecção
+a côr vermelha. Ha um fogão, e em cima do fogão um espelho; deante do espelho
+um relogio tendo por assunto um Cupido do mais execrando gosto. Nas paredes, no
+intervallo das janéllas, dois espelhos a que já tiraram as capas. Adeante dos
+espelhos, duas banquinhas, e ainda dois relogios. Toma a metade de um
+apainelado um piano de cauda. (Mandaram vir o dito piano para a Zina: cultiva a
+musica.) Ao pé do fogão, no qual arde uma bôa fogueira, estão dispostas umas
+poltronas em desalinho pinturesco a mais não poder ser. Ao meio outra
+banquinha. No outro extremo da casa, ainda outra mesa, tapada com uma toalha
+immaculada e em cima, um samovar de prata, a ferver, no meio de um lindissimo
+serviço para chá. Uma senhora, residente em casa de Maria Alexandrovna, a
+titulo de parenta affastada, Nastassia Petrovna Ziablova, está especialmente
+incumbida do chá.</p>
+
+<p>Duas palavras ácerca da alludida senhora. É viuva, frescalhona, com uns
+olhos castanhos escuros muito vivos, assaz bem parecida; é alegre, velhaca,
+até; linguareira, escusado<span class="pn">{19}</span> será dizê-lo, e sabendo
+levar agua ao seu moinho; tem dois filhos no collegio, para ahi, algures. Não
+se lhe daria de tornar a casar; vive com bastante independencia; o marido era
+official.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna em pessoa está sentada ao pé do fogão: acha-se de boa
+catadura. Traja um vestido verde claro, assentando-lhe a primor. Está
+contentissima com a vinda do principe. N'este ensejo, o principe está lá em
+cima, todo elle entregue á tarefa de se infunicar.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna nem sequer pensa em esconder o seu contentamento. Deante
+d'ella, um rapaz a fazer boquinhas e a cantar, muito animado, seja o que fôr.
+Percebe-se que se desvéla por agradar a quem o está escutando. Tem vinte e
+cinco annos. Se não fossem as suas exuberancias, se não fossem tambem as suas
+pretensões a engraçado, seria toleravel. Está bem vestido, é loiro e de
+agradavel presença. Já a elle nos referimos, é o senhor Mozgliakov, môço sobre
+quem se fundaram esperanças matrimoniaes. Maria Alexandrovna acha-lhe a cabeça
+um tanto ôca, mas nem por isso deixa de o receber muito bem. Diz elle que está
+loucamente apaixonado pela Zina. Dirige-se a esta continuamente, ancioso por
+alcançar um ar de riso a poder de bons ditos e de azoamento. Ella, comtudo,
+mantem-n'o a distancia, com extrema frialdade. A joven está de pé junto ao
+piano, a folhear um almanaque. É uma dessas mulheres que produzem effeito geral
+ao entrarem numa sala. É peregrinamente formosa: alta, morena, com uns immensos
+olhos quasi pretos, esbelta, com um collo magnifico, uns pésinhos encantadores,
+espaduas e mãos de molde classico, e um pisar de rainha. Está hoje um tanto
+descoráda,<span class="pn">{20}</span> a pallidez, comtudo, torna-lhe mais
+conspicuo o rubido fulgor dos labios por entre os quaes lhe luzem, tal qual
+perolas em fio, uns dentinhos miudinhos e regulares. Era caso para qualquer de
+nós sonhar com elles, três dias a fio, só de lhes ter posto a vista em cima. É
+séria a sua expressão.</p>
+
+<p>O senhor Mozgliakov dir-se-hia arrecear-se do olhar fito da Zina, pelo menos
+não ergue para esta os olhos sem um tal qual enleio.</p>
+
+<p>É singelissimo o vestido da joven, de gaze branca: Está-lhe bem o branco,
+está-lhe lindamente o branco... E d'ahi, que haverá que lhe não fique bem? Traz
+enfiado n'um dedo um annel de cabello entrançado. A julgar pela côr, aquelles
+cabellos não são os da mamã. Mozgliakov nunca se afoitou a perguntar de quem
+seriam aquelles cabellos. Está taciturna, esta manhã, triste, até, ou
+preoccupada, pelo menos. Em compensação, Maria Alexandrovna acha-se em maré de
+dar á lingua. De vez em quando, esguêlha uns olhos desconfiados para a Zina, e
+olhos furtivos quanto possivel, como que não se arreceando menos da joven.</p>
+
+<p>&mdash;Estou tão contente, Pavel Alexandrovitch, (dir-se-hia pipilar) que
+estou capaz de gritar da janella abaixo o meu contentamento a quem passa pela
+rua. Sem falarmos da agradabilissima surpreza que nos proporcionou, a mim e á
+Zina, com vir quinze dias mais cedo do que o esperavamos. É caso á parte. Mas o
+que mais me penhorou foi a attenção que teve comnosco trazendo comsigo o
+principe. Se soubesse como eu adoro aquelle encanto aquelle vélhinho! Não pode
+comprehender-me! As pessoas da sua edade seriam incapazes de semelhante
+affeição. Não sabe<span class="pn">{21}</span> as circumstancias que entre mim
+e elle se deram, ha seis annos? Lembras-te, Zina? E eu sem me lembrar de que
+n'esse tempo estavas em casa de tua tia. Estou que me não acreditaria, Pavel
+Alexandrovitch, se eu lhe dissesse, que servi de guia ao principe, que fui para
+elle, irmã, mãe? Havia lhaneza, carinho, nobreza n'aquella nossa ligação.
+Era... pastoril!... Nem eu sei como a hei de definir. Eis o motivo porque elle
+se lembrou da minha casa com tamanha gratidão, o pobre do principe! E se eu lhe
+disser, Pavel Alexandrovitch, que é possivel até que o salvasse trazendo-o para
+minha casa? Não podia evitar o confranger-se-me o coração, durante aquelles
+seis annos, sempre que me punha a pensar n'elle!... Eu... quer acreditar?...
+até sonhava com elle! Dizem que aquella creatura, a tal sua carcereira, o
+enfeitiçou, que o deitou a perder... mas, emfim, o senhor arrancou-o das garras
+d'aquella harpia! Urge aproveitar a occasião para o salvar completamente... Mas
+conte-me, mais uma vez, como foi que o conseguiu? Descreva-me, muito por
+miudos, o encontro de um e outro. Eu ainda agora fiquei tão sobresaltada! Não
+vi senão os traços geraes, mas não ha pormenor que não seja precioso a meus
+olhos. Se eu sou assim! Pello-me pelas minudencias, nos acontecimentos de maior
+vulto, são os pormenores que primeiramente me chamam attenção... e... emquanto
+elle se está arrebicando... </p>
+
+<p>&mdash;Mas se eu já lhe contei tudo, apressa-se em responder Mozgliakov,
+prompto a recapitular a narrativa pela décima vez. Tinha viajado toda a
+noite... não tinha pregado olho; estava com tanta pressa de chegar ao meu
+destino! (Esta ultima phrase ia sobrescritada para a Zina.) Tive que
+aturar<span class="pn">{22}</span> contendas, berreiros por occasião das mudas.
+Eu proprio, confesso, não fiz tambem pouca algazarra. É um poema moderno, sem
+tirar nem pôr. Mas vamos adeante. Ás seis horas da manhã, em ponto, eis que
+chêgo á ultima muda, em Ignichévo. Tranzido, mas, isso sim! nem sequer tiro uns
+minutos para me aquécer. Pégo a gritar: "Cavallos!" Estou em dizer, até, que
+metti um susto á mulher do capataz das mudas: tinha ao collo um néné, de peito,
+e estou com receio que se lhe talhasse o leite.&mdash;Era admiravel o despontar
+do sol! Sabe, aquelle pó da geada escarlate e prateada? E eu, sem attentar em
+coisa nenhuma, ia a vapor!</p>
+
+<p>Empalmo uns cavallos a um tal conselheiro de collegio,&mdash;com quem por um
+triz que não tenho um duéllo. Afiançam-me que um quarto de hora antes tinha
+abalado da dita muda um certo principe que viaja com cavallos proprios. Que
+pernoitara na muda. Quasi que nem lhes dou ouvidos, salto para a carruagem, vôo
+por ali fóra tal qual um prisioneiro escapulido.&mdash;Ha uma situação parecida
+em uma elegia de Fet<a name="tex2html3"
+href="#foot76"><sup>[3]</sup></a>.&mdash;Ora, a nove verstas da cidade,
+justamente, em vista do retiro de Svietozerskaia, avisto o que quer que seja de
+singular! Uma grande carruagem de jornada caída na estrada. O cocheiro e dois
+latagões de dois lacaios, de pé, junto da mesma, e muito atrapalhados. Lá do
+fundo da carruagem vinham uns bérros que me confrangiam a alma!... Eu podia
+seguir por deante, não tinha nada com isso, mas levou a melhor a humanidade,
+pois,<span class="pn">{23}</span> como diz Heine, mette o nariz em toda a
+parte. Paro, pois. Eu, o meu yamstchik Semene, e uma outra alma russa,
+accudimos a ajudar e entre nós seis pômos em pé a carruagem. Pômol-a de
+pé,&mdash;quero dizer, sobre os patins.&mdash;Uns mujiks que levavam uma carga
+de lenha para a cidade ajudaram-nos tambem, (apanharam bem boa gorgêta). E eu a
+dizer commigo: É o tal principe que passou a noite na muda. Ólho: Santo Deus! É
+o principe Gavrila! Que encontro este! "Principe! bradei: tiozinho!" Á primeira
+vista, não me conheceu; nem sei se me reconheceria á segunda: e agora mesmo não
+estou bem certo em que me reconhecesse. Creio que nem sequer já se lembra do
+nosso parentesco. Vi-o pela primeira vez, em Petersburgo. N'esse tempo era eu
+um garoto. Lembro-me muito bem, mas elle, podia-se lá lembrar de mim?
+Apresento-me: fica encantado! Beija-me, e depois pega a tremer de susto e, em
+conclusão, desata a soluçar. Por Deus! Vi-o com meus proprios olhos: até
+chorou! Palavra puxa palavra e, em conclusão, acabei por lhe propôr que viesse
+até Mordassov tomar um dia de descanso. Consentiu sem hesitações. Declarou-me
+que ia para o retiro de Svietozerskaia, para casa do arcypreste Missail a quem
+tem em grande conta; que a Stepanida Matvéina&mdash;qual de nós, parentes do
+Principe, não terá ouvido falar de Stepanida Matveiévna? O anno passado,
+escorraçou-me de <span class="typo" title="no original: Dukanovo">Dukhanovo</span> com o pau da vassoira!... Que a Stepanida Matveiévna
+recebera pois uma carta exigindo a sua presença em Moscou pelo fallecimento de
+alguem, o pae ou a filha, nem sei nem quero saber,&mdash;talvez que pae e filha
+ao mesmo tempo, e ainda por cima para ahi qualquer segundo sobrinho empregado
+na<span class="pn">{24}</span> fiscalização dos vinhos. N'uma palavra, tivera
+que conformar-se, desamparar o seu principe por uns dez dias e levantar vôo, a
+toda a pressa, para a capital.</p>
+
+<p>O principe demóra-se um dia; dois dias, sem se mexer, a experimentar chinós,
+a encalamistrar-se, a pentear-se, a fazer paciencias: em conclusão, a solidão
+acabou por lhe ser pesada. Foi então que mandou pôr o trem e metteu a caminho
+do retiro de Svietozerskaia. Alguem do seu séquito, com medo do phantasma da
+Stepanida Matveiévna, atrevera-se a ir-lhe á mão. Mas o principe é cabeçudo e
+tinha abalado na vespera, depois de jantar, pernoitando em Ignichevo, largara
+da muda de madrugada, e, justamente na volta do caminho que vae ter á
+residencia do arcypreste, por pouco se não despenha com a carruagem n'uma
+barroca. Salvei-o e persuadi-o a vir para casa da nossa amiga commum, a
+dignissima Maria Alexandrovna. Diz elle que a senhora é a dama mais encantadora
+que tem encontrado em toda a sua vida, e cá estamos. O principe está a pôr em
+ordem os arrebiques com o criado particular de quem porfiou em não prescindir.
+Mais depressa se deixaria morrer do que apresentar-se em casa de uma senhora
+sem a roupa toda da ordem... E aqui tem a historia toda... é uma historia
+deliciosa!</p>
+
+<p>&mdash;Que humorista, hein! Zina? exclama Maria Alexandrovna. Que captivante
+narrador! Escute, Pavel, uma pergunta: explique-me bem o seu parentesco com o
+principe. O senhor trata-o de tio.</p>
+
+<p>&mdash;Por Deus! Maria Alexandrovna, se eu sou o proprio a não saber, como é
+que sou seu parente. Estou em dizer, até, que talvez seja preciso para ahi um
+cento de gravêtos<span class="pn">{25}</span> para sermos do mesmo ramo. Mas eu
+cá trato-o de tiozinho, e elle responde-me. E ahi tem, até hoje, todo o nosso
+parentesco... </p>
+
+<p>&mdash;Foi Deus em pessoa que o inspirou em m'o trazer para aqui. Arrepio-me
+só de pensar que poderia ter ido hospedar-se para outra qualquer parte.
+Devoravam-n'o! Atiravam-se a elle como quem se atira a um thesouro, a uma
+mina!... Eram capazes de lhe tirar a camisa! Não põe na sua ideia o que por ahi
+vae de almas sofregas, vis e arteiras n'esta nossa Mordassov.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! meu Deus! mas para onde queria que o levassem a não ser para sua
+casa? Sempre tem cada uma, Maria Alexandrovna, interveiu Nastassia Petrovna, a
+incumbida do chá. Talvez quisesse que carregassem com elle para casa da Anna
+Nikolaievna!</p>
+
+<p>&mdash;Mas com tudo isso, por que se demorará elle tanto? É exquisito! disse
+Maria Alexandrovna, erguendo-se, impaciente.</p>
+
+<p>&mdash;O tio? Aquillo ainda é negocio para cinco horas! E d'ahi, bem sabe
+que está perdido da memoria; é capaz de se ter esquecido de que é seu hospede.
+É um homem extraordinario, Maria Alexandrovna. Se soubesse!</p>
+
+<p>&mdash;Ora vamos! Que está a dizer?</p>
+
+<p>&mdash;A verdade, Maria Alexandrovna. É um homem <em>mecanico</em>. Não o vê
+ha seis annos, mas sei o que ha a esse respeito. É a recordação de um homem,
+esquéceram-se de o enterrar. Tem olhos de vidro, pernas de cortiça; todo elle
+de <em>engonços</em>, a propria voz é artificial.</p>
+
+<p>&mdash;Valha-nos Deus, sempre é um tal esturdio! exclamou Maria Alexandrovna
+com uns modos doridos. Não tem vergonha,<span class="pn">{26}</span> o senhor,
+a falar assim de um veneravel ancião, que é seu parente? (A voz de Maria
+Alexandrovna, n'esta altura assume entonação tocante.) Sequer ao menos,
+lembre-se de que é uma reliquia da nossa aristocracia! Meu amigo, essas
+leviandades provêm-lhe das taes novas ideias em que está sempre a falar. Meu
+Deus! tambem eu participo dessas ideias; comprehendo que o principio que rege
+as suas opiniões é nobre, honrado. Presinto n'essas ideias novas o que quer que
+é de elevado, de sublime. Mas tudo isso não me impede de ver os lados praticos,
+por assim dizer&mdash;da questão. Tenho vivido na sociedade, conheço melhor que
+o senhor os homens e as coisas, pois que o senhor é apenas um rapaz. Este
+vélhinho afigura-se-lhe ridiculo lá por causa da edade. O senhor, ha dias,
+affirmava que queria dar alforria aos seus servos, que cada qual deve ir com o
+seu século. Tudo isso, sem duvida, lá por que o leu para ahi algures no tal seu
+Shakespeare! Acredite, Pavel Alexandrovitch, o seu Shakespeare já lá vae ha que
+tempos. Se elle resuscitasse, apezar de ser um génio, não percebia uma palavra
+do viver moderno. Se alguma coisa existe de majestoso, de cavalheiresco n'esta
+nossa sociedade contemporanea, é com certeza a aristocracia. Um principe é
+sempre um principe; faz um palacio ainda que seja de uma cabana. Ao passo que o
+marido da Natalia Dmitrievna, que mandou construir um palacio, fica sendo o
+marido da Natalia Dmitrievna, e mais nada,&mdash;e a Natalia Dmitrievna pode
+pôr em cima de si meio cento de crinólines, que nunca passará de ser a Natalia
+Dmitrievna como d'antes. Tambem o senhor, meu caro Pavel, é um representante da
+aristocracia, de lá veiu. Aqui onde me vê, ouso<span class="pn">{27}</span>
+tambem ter-me na conta de não ser alheia á aristocracia. Pois bem! Ai do filho
+que chasqueia dos proprios antepassados! E d'ahi, não deixará de convir, d'aqui
+a nada, meu amiguinho, que é preciso pôr de lado o seu Shakespeare, sou eu que
+lh'o digo. Estou certa em que agora mesmo não é sincéro. Está armando ao
+effeito!... Mas... eu para aqui a dar á lingua! Deixe-se estar, meu querido
+Pavel; vou saber noticias do principe. Talvez precise de alguma coisa, e com
+estes meus criados!... E saiu apressada Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Maria Alexandrovna parece estar contentissima pelo facto de o
+principe não se ter ido hospedar para casa da elegante Anna Nikolaievna; e
+comtudo, a Anna Nikolaievna tem pretensões a ser parente do principe. É capaz
+de estoirar de raiva!&mdash;observou Nastassia Petrovna.</p>
+
+<p>Mas, notando que lhe não respondem, Madame Ziablova, depois de haver
+esguelhado uma olhadéla para a Zina e para Pavel Alexandrovitch, percebe que é
+alli de mais e sae, tambem, como quem vae procurar qualquer coisa. E d'ahi,
+desforra-se da propria discreção deixando-se ficar atráz da porta, de ouvido á
+escuta.</p>
+
+<p>Pavel Alexandrovitch trata logo de se approximar da Zina; está
+commovidissimo, com a voz a tremer:</p>
+
+<p>&mdash;Zinaida Aphanassievna! Não está zangada commigo? diz timidamente e
+com modo supplice.</p>
+
+<p>&mdash;Com o senhor? Mas por quê? pergunta a Zina um tanto ruborizada,
+erguendo sobre elle os esplendidos olhos.</p>
+
+<p>&mdash;Pela minha vinda prematura, Zinaida Aphanassievna, já não podia
+supportar mais longo apartamento. Ainda mais quinze dias! E eu a vêl-a sempre
+em sonhos!<span class="pn">{28}</span> Vim para saber a minha sorte... Mas por
+que franze as sobrancelhas, está zangada? Com que então, ainda hoje não apanho
+resposta decisiva?</p>
+
+<p>Á Zinaida, effectivamente, carregou-se-lhe o parecer.</p>
+
+<p>&mdash;E eu antevia que me havia de falar a esse respeito, encetou ella em
+voz rispida com uns vislumbres de despeito. (Declina a vista.) E como
+semelhante apprehensão me maguou em extremo, acho melhor cortar de vez toda e
+qualquer indecisão... mais vale assim... O senhor exige, quero dizer, pede uma
+resposta? Seja assim. A minha resposta será a mesma que já lhe dei: espere.
+Repito-lhe, ainda não estou resolvida, não lhe posso prometter o ser sua
+mulher... Não é coisa que se obtenha por exigencia, Pavel Alexandrovitch; mas,
+para o tranquillizar accrescentarei que o não rejeito definitivamente. E
+comtudo, note que, se o deixo esperar uma decisão favoravel, é por dó da sua
+inquietação. Repito-lhe que quero tomar em plena liberdade a minha decisão, e
+se eu em conclusão lhe declarar que o rejeito, nem por isso depois me deve
+increpar por lhe ter dado esperanças. E fique isto assente por uma vez!</p>
+
+<p>&mdash;Mas então, então! exclamou Mozgliakov em voz de mais em mais
+supplice, será isso uma esperança? Poderei fundar uma qualquer esperança
+n'essas suas palavras, Zinaida Aphanassievna?</p>
+
+<p>&mdash;Lembre-se de tudo que lhe tenho dito e funde tudo que quiser: é
+livre. E nada mais acrescentarei. Não o rejeito, digo-lhe, tão somente: Espere!
+Reservo-me o direito de o rejeitar se assim o julgar necessario... Far-lhe-hei
+ainda notar o seguinte, Pavel Alexandrovitch: se veiu<span
+class="pn">{29}</span> mais cedo do que tinha dito com o sentido em operar por
+meios indirectos, esperançado em fazer valer a sua influencia, a da mamã, por
+exemplo, enganou-se nos seus calculos. Se assim fôra, rejeitál-o-hia de vez,
+entendeu? E agora, basta, se me faz favor! Até que eu proprio lhe torne a falar
+n'isso, nem palavra a semelhante respeito.</p>
+
+<p>Foi proferido em tom firme, sêcco, o conjuncto d'este discurso, sem
+hesitações, como se fôra decorado de antemão. E Pavel sente o nariz a
+crescer-lhe. N'este comenos eis que entra Maria Alexandrovna. Logo atráz d'esta
+entra madame Ziablova.</p>
+
+<p>&mdash;Já ahi vem, Zina! Quer-me parecer que não tarda ahi! Nastassia
+Petrovna, avie-se... o chá!</p>
+
+<p>E Maria Alexandrovna n'uma azafama, toda ella.</p>
+
+<p>&mdash;A Anna Nikolaievna já mandou saber noticias; a Aniutka, a creada, até
+já veiu pedir informações á copa. Ha de estar como uma bicha! disse a Nastassia
+Petrovna, investindo com o samovar.</p>
+
+<p>&mdash;E a mim que me importa? responde Maria Alexandrovna, a desfechar as
+palavras por cima do hombro a madame Ziablova. Como se me interessasse o que
+poderá pensar Anna Nikolaievna! Tenho a certeza em como não serei eu que mande
+seja quem fôr á sua copa. E demais, fique sabendo, muito me admiro de que me
+façam passar por inimiga da Anna Nikolaievna, coitada! Pois é opinião corrente
+em Mordassov. Ora seja juiz, Pavel Alexandrovitch. Conhece-nos a ambas: por que
+é que eu havia de ser sua inimiga? Para lhe disputar a supremacia? Sou
+indifferente a essas coisas! Ella que seja a primeira, eu lhe irei dar os
+parabens! Emfim, é injusto, e quero defendêl-a. É<span class="pn">{30}</span>
+meu dever. Mas para que é que a calumniam, para que hão de andar a malhar assim
+na pobre da creatura? É nova, gosta de se enfeitar: será por isso? Quanto a
+mim, acho que vale mais gostar dos trapos do que um certo numero de coisas de
+que tanto gosta a Natalia Dmitrievna, das taes coisas que nem sequer se podem
+nomear. Será ainda lá porque a Anna Nikolaievna gosta de visitas e não pode
+parar em casa? Mas, santo Deus! Se ella não tem instrucção de qualidade
+nenhuma, e com certeza que lhe havia de ser difficil o abrir um livro e
+entreter-se dez minutos a fio fosse com o que fosse. É garrida, dá de olho, da
+janella abaixo, a todo e qualquer que passa pela rua. E d'ahi?... Mas para que
+será que andam para ahi a apontál-a como uma beldade? É macilenta, que até mete
+medo! Dansa que é um riso vê-la, chega a ser comica, convenho, mas por que será
+que dizem que a polkar é um portento? Usa uns chapeus inconcebiveis! E d'ahi,
+ella terá culpa de lhe faltar o gosto? Affirme-lhe que faz bem em pregar na
+cabeça um papel de rebuçado, e verá que o faz. É linguareira, mas se por aqui
+não haverá quem o não seja. O senhor Suchilov, com aquellas suas enormes
+suissas, está pregado em casa della de manhã até á noite, e de noite até manhã,
+tenho a certeza. E d'ahi, santo Deus! para que é que o marido joga as cartas
+até ás cinco horas da madrugada? Se o que se vê por ahi são maus exemplos! E
+demais, não deixará de ser <em>talvez</em> mais outra calumnia. N'uma palavra,
+hei de sair sempre, sempre, sempre, sempre a defendêl-a... Mas! ai, Senhor! Ahi
+vem o principe! É elle! é elle! conheci-lhe os passos! Era capaz de os
+distinguir entre mil. Até que o vejo, afinal, meu principe!... <span
+class="pn">{31}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>IV</h2>
+
+<p>Á primeira vista, ninguem confundiria o principe com um velho, mas examinado
+de mais perto, ninguem deixaria de verificar que é um cadaver movido por mólas;
+empregaram toda a casta de artificios para disfarçar n'um adolescente
+semelhante mumia. Um chinó estupendo, suissas, bigodes postiços, mais pretos
+que o proprio ébano, lhe tapam metade do rosto. As faces estão pintadas com
+singular pericia; nem uma ruga: que é d'ellas?... Vestido no rigor da moda,
+dir-se-hia saído de um figurino de alfaiate. Traz assim a modos de uma
+<em>visite</em>, isto é, qualquer coisa elegantissima feita expressamente para
+as visitas matutinas. Luvas, gravata, collete, tudo isso de brancura
+deslumbrante e do mais requintado gosto. O principe manqueja um tudo-nada, mas
+tão levemente! Dir-se-hia mais um tempêrozinho exigido pela móda.</p>
+
+<p>Um monoculo no olho,&mdash;n'aquelle, exactamente, que é de vidro,&mdash;vem
+saturado de perfumes. Quando fala, arrasta umas certas palavras, talvez por
+impotencia senil, ou por serem postiços os dentes, ou ainda por elegancia.
+Pronuncia umas certas syllabas com doçura extraordinaria e accentua a letra
+<em>e</em>. Tem uma pontinha de não se-me-dá que lhe ficou da sua vida de homem
+feliz em amores. Se não perdeu de todo a transmontana, pelo menos está sem
+memoria. Engana-se a cada instante, fica-se a mascar e a metter<span
+class="pn">{32}</span> os pés pelas mãos. É necessario ter um certo dom de
+opportunismo para sustentar com elle uma conversa. Maria Alexandrovna, todavia,
+tem a consciencia dos proprios recursos, e a presença do principe léva-a ao
+auge do enthusiasmo.</p>
+
+<p>&mdash;Mas não o acho nada mudado, nada, nada! exclama ella agarrando em
+ambas as mãos ao hospede e amesendando-o n'uma commoda poltrona. Sente-se!
+sente-se, principe! Seis annos! seis annos, inteirinhos e integrados sem nos
+vermos, e nem uma carta, nem uma linha, durante todo o tempo! Oh! quantas
+culpas não tem para commigo, principe! Se soubesse o quanto eu estava zangada
+comsigo, meu caro principe! Mas, e esse chá! esse chá! Ah! meu Deus! Nastassia
+Petrovna, o chá!</p>
+
+<p>&mdash;Obrigado... ô&mdash;ôbrigado!... sou cul... cul... pado... gaguejou o
+principe. </p>
+
+<p>(Esqueceu-nos dizer que gaguejava um tanto; e d'ahi, é moda.)</p>
+
+<p>&mdash;Cul... culpado! Ora imagine que, o anno passado, quiz abs...
+absolutamente vir aqui, acrescentou a mirar a casa através da luneta.</p>
+
+<p>Mas tinham-me mettido medo: disseram-me que por aqui andava a có...
+cólera... </p>
+
+<p>&mdash;Não, principe, não a tivemos por cá, affirmou Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Tinhamos a morrinha, meu tiozinho, interrompeu Mozgliakov, que se
+quer tornar conspicuo.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna méde-o com olhar sevéro.</p>
+
+<p>&mdash;Ha de ser isso... a mo... mo... rrinha ou coisa que o valha. E vae,
+eu então deixei-me ficar. E seu marido,<span class="pn">{33}</span> minha que..
+querida Maria Nikolaievna, ainda está na ma... a... gistratura?</p>
+
+<p>&mdash;Não, principe, diz Maria Alexandrovna, meu marido não está na ma...
+a... gistratura.</p>
+
+<p>&mdash;Iá apostar que o tiozinho a está confundido com a Anna Nikolaievna
+Antipova! exclama o perspicaz Mozgliakov.</p>
+
+<p>Acto continuo, porém, mordeu o beiço, percebendo que nem por isso está muito
+á vontade Maria Alexandrovna:</p>
+
+<p>&mdash;Pois é isso, é... A Anna Nikolaievna, e... e... e eu sempre a
+esquecer-me... e então! Antipovna, exactamente, An... ti... povna, confirma o
+principe.</p>
+
+<p>&mdash;Não, principe, está equivocado! disse Maria Alexandrovna com um
+rizinho azêdo. Eu não me chamo Anna Nikolaievna, e, confesso, nunca suppuz que
+se esquecesse de mim. Estou espantada, principe, sou a sua velha amiga, a Maria
+Alexandrovna Moskalieva. Não se recorda, principe, da Maria Alexandrovna?</p>
+
+<p>&mdash;Maria Ale... lexan... xandrovna! Ora vejam! E eu a confundi-la com a
+Anna Vassiliévna... é delicioso!... Dizia eu, pois, que me não fui hospedar em
+casa da... E eu, amigo, a cuidar que me levavas exactamente para casa da tal
+Anna Matveina!</p>
+
+<p>É impagavel! E dahi, acontece-me isto tanta vez! Quanta vez não vou eu parar
+onde não quizéra!... Em geral, fico sempre contente, sempre contente, aconteça
+o que acontecer. Com que então não é a Nastassia Vassiliévna!</p>
+
+<p>É interessante!</p>
+
+<p>&mdash;Maria Alexandrovna, principe! Maria A&mdash;lex&mdash;androvna!<span
+class="pn">{34}</span> Se é coisa que se faça! Esquecer-se assim da sua melhor
+amiga!</p>
+
+<p>&mdash;Melhor amiga, sim, é verdade! Perdão, pe... er... dão! silva o
+principe fixando a attenção na Zina.</p>
+
+<p>&mdash;A minha filha Zina! O principe ainda a não conhece! Não estava em
+minha casa quando aqui veiu pela ultima vez; lembra-se?</p>
+
+<p>&mdash;Sua filha! É um encanto! um encanto! murmura o principe assestando
+ávido a luneta na Zina.&mdash;Mas que belleza; disse com visivel sobresalto.</p>
+
+<p>&mdash;Serve-se de chá, principe? pergunta Maria Alexandrovna desviando a
+attenção do jarreta para um <em>groom</em>, parado defronte d'elle com uma
+bandeja.</p>
+
+<p>O principe serve-se de uma chavena de chá e contempla o <em>groom</em> de
+bochechas rochonchudas e rosadas.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! ah! ah! É seu filho? Perfeito, muito perfeito! e... e... e... bem
+comportado, já se vê?</p>
+
+<p>&mdash;Perdão, principe... accode pressurosa Maria Alexandrovna. Ainda estou
+toda a tremer... Com que, então, deu uma quéda? Não se magoaria? Não é prudente
+arriscar a sua pessoa em semelhantes aventuras!... </p>
+
+<p>&mdash;Virou-se! virou-se! O cocheiro virou a carruagem commigo dentro!
+exclama o principe com extraordinaria animação. E eu, a pensar que era o fim do
+mundo ou coisa parecida. Os santos me perdoem: apanhei um susto... vi as
+estrellas ao meio dia, eu esperava lá!... eu es... pera... va lá!... E tudo
+aquillo, por culpa do meu cocheiro, do Pamphilio: entrego-te este negocio, meu
+amigo, has de tratar do inquerito... Estou convencido de que attentou contra a
+minha vida!<span class="pn">{35}</span></p>
+
+<p>&mdash;Muito bem! muito bem, tiosinho! responde Pavel Alexandrovitch, fica a
+meu cuidado. Mas oiça lá; se lhe perdoasse por esta vez, hein, que lhe
+parece?</p>
+
+<p>&mdash;Por caso nenhum! Tenho a certeza de que quiz dar cabo de mim, elle e
+mais o Lavrenty, que eu deixei lá em casa. Ora imaginem, encasquetaram-se-lhe
+as taes ideias novas, uma negação... que eu sei lá... e era um communista em
+toda a extensão da palavra. Quando me vejo a sós com elle... fico logo em
+suores frios.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! que verdade, principe! Não pôe na sua ideia o que eu tambem tenho
+aturado a esta sucia! Já despedi por duas vezes toda a creadagem. Que gente tão
+estupida! Anda uma pessoa a ralhar com elles de manhã até á noite.</p>
+
+<p>&mdash;E... stá claro! Gosto de ver um lacaio que não fure paredes, observou
+o principe, satisfeito, como aliás succede aos velhos, de que lhes escutem com
+respeito a tagarelice,&mdash;é até a principal qualidade de qualquer lacaio,...
+uma to... leima sincera... em certas occasiões. Incute-lhes uma certa
+imponencia... solemnidade! N'uma palavra, é mais distincto, e eu, a primeira
+qualidade que exijo a um serviçal é a distincção. É por isso, que conservo o
+Tarenty, estás lembrado do Tarenty, meu amigo? Assim que o vi, percebi-lhe a
+vocação: Has de ser porteiro. É phe... e-nome-nalmente es... tupido. Com
+aquelles olhos de carneiro mal morto: Mas que boa presença! que solemnidade! Em
+pondo a gravata branca, faz um figurão! Gosto d'elle deveras! Eu, ás vezes,
+ponho-me a olhar para elle, e não me canço de o ver: ali onde o vêem, está
+escrevendo um livro... É um verdadeiro philosopho a... al... lemão,<span
+class="pn">{36}</span> o proprio Kant, ou antes, um, perú gordo e bem comido,
+um ser incompleto, tal qual cumpre a todo e qualquer se... er... viçal.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna ri ás gargalhadas e bate palmas; Pavel Alexandrovitch faz
+côro: acha immensa graça ao tio. A Nastassia Petrovna ri tambem; e a propria
+Zina dá um ar de riso.</p>
+
+<p>&mdash;Mas que graça, principe! que alegria! exclama Maria Alexandrovna. Que
+preciosa faculdade de observar ridiculos... E desappareceu o senhor da
+sociedade! Privar assim de um talento o mundo durante cinco annos inteiros!...
+Mas podia até escrever comedias, principe! Podia muito bem restituir-nos
+Visine, Griboiedov, Gogol!</p>
+
+<p>&mdash;É verdade, é verdade!... confirma encantado o principe... eu podia
+restituir... Quer crêr? Eu d'antes tinha muita graça, até escrevi para o
+theatro um vô... ô... deville. Com umas coplas que eram uma delicia! Por signal
+que nunca foi representado.</p>
+
+<p>&mdash;Que pena! Como havia de ser divertido? Sabes o que te digo, Zina, que
+vinha mesmo a proposito. Nós, justamente, principe, andamos a combinar umas
+récitas de amadores com um fim de beneficencia patriotica, em favor dos
+feridos... Vinha mesmo ao pintar o seu vaudeville.</p>
+
+<p>&mdash;E... stá claro, estou prompto a escrevêl-o. De mais a mais, já nem me
+lembra uma palavra, mas tenho de memoria um ou dois trocadilhos que... (O
+principe beija as pontas dos dedos.) Eu, em geral, quando estava no
+estrangeiro... fazia um verda... deiro <em>furor</em>... Lembro-me de mylord
+Byron... fomos muito intimos... Dansava á maravilha a krakoviak no congresso de
+Vienna... <span class="pn">{37}</span></p>
+
+<p>&mdash;Mylord Byron, meu tio? Ora vamos, que está para ahi a dizer!</p>
+
+<p>&mdash;Está claro!... Byron. E d'ahi, talvez fosse outro. Exactamente, era
+um polaco, lembro-me agora muito bem; um grande original, o tal polaco!
+Intitulava-se conde, e porfim, veiu-se a saber que era cozinheiro.</p>
+
+<p>Mas dansava lindamente a krakoviak. Quebrou uma perna. Foi n'essa occasião,
+até, que lhe fiz estes versos:</p>
+
+<blockquote>
+ O nosso conde polaco<br>
+ Dansava a krakoviak</blockquote>
+
+<p>E d'ahi... já me esqueceu... ah!</p>
+
+<blockquote>
+ Desde que partiu a perna,<br>
+ Nunca mais pôde dansar.</blockquote>
+
+<p>&mdash;Sim, sim, deve de ser isso, rico tiozinho! exclama Mozgliakov, pôdre
+de riso! </p>
+
+<p>&mdash;Está c-claro! Quer-me parecer que seria isto ou coisa que o valha. E
+d'ahi é possivel que não seja. O que lhes sei dizer é que os versos me saíram
+muito bons. Escapam-me certas coisas, tenho tanto que fazer!</p>
+
+<p>&mdash;Mas, não me dirá, principe, pergunta com muito interesse Maria
+Alexandrovna, em que é que se occupa n'aquella sua solidão? Lembrava-me tanta
+vez do principe! Estou a arder de impaciencia por saber tudo por miudos... </p>
+
+<p>&mdash;Em que é que me occupo! Ora essa... immensa coisa em que me
+occupar... em geral. Umas vezes descanso, outras vezes dou o meu passeio... a
+imaginar cá umas coisas... <span class="pn">{38}</span></p>
+
+<p>&mdash;Deve de ter muita imaginação, rico tiozinho.</p>
+
+<p>&mdash;Muita, meu caro. Ás vezes, acontece-me imaginar coisas de que eu
+proprio fico pasmado. Quando eu estava em Kadnievo... A proposito, tu não foste
+vice-governador em Kadnievo?</p>
+
+<p>&mdash;Eu, tiozinho? Que está dizendo! Pelo amor de Deus! exclama Pavel
+Alexandrovitch.</p>
+
+<p>&mdash;E eu a confundir-te com elle... </p>
+
+<p>E dizia eu commigo: Por que será que elle está tão mudado?... Porque o outro
+tinha uma phisionomia imponente, espirituosa... um homem extra-a-ordina...
+ria... mente intelligente. Compunha sempre versos... a proposito... De perfil,
+era tal qual um rei de copas.</p>
+
+<p>&mdash;Acredite, principe, interrompeu Maria Alexandrovna, essa vida ha de
+deitál-o a perder, lhe juro eu! Encerrar-se durante cinco annos n'um ermo! Não
+ver, não ouvir pessoa alguma!... Sabe o que lhe digo, o principe é um homem
+perdido! Pergunte a algum dos seus amigos, que lhe sejam fieis, e todos lhe
+dirão isto mesmo: é um homem perdido!</p>
+
+<p>&mdash;De... de... vé-éras? arrasta o principe.</p>
+
+<p>&mdash;Com certeza... Digo-lh'o como se fôra uma irmã, porque sou muito sua
+amiga,&mdash;pois que as recordações do passado, para mim são sagradas. Que
+interesse poderia eu ter em o enganar? Nada, nada, é preciso absolutamente
+mudar de vida, aliás, não resiste?... </p>
+
+<p>&mdash;Valha-me Deus! pois eu hei de morrer, assim, tão depressa? exclama o
+principe, assustadissimo. E caso é que adivinhou: as minhas humorroides dão
+cabo de mim, e ha uns tempos para cá, principalmente... e quando me<span
+class="pn">{39}</span> atacam as crises, tenho sin-tó-ó-mas es... espan...
+tosos... Eu já lhe vou contar tudo... por miudos... </p>
+
+<p>&mdash;Deixe lá, tiozinho, contará isso tudo, para outra vez. Agora, não
+será tempo de irmos dar o nosso passeio?</p>
+
+<p>&mdash;Pois, sim, vá lá, ficará para outra vez; e d'ahi talvez não
+interésse... Mas com tudo isso... é uma doença... extrê-ê-mamente interessante.
+Com uma tal variedade de episodios! Vê se me lembras, meu caro, contar esta
+noite, com todos os pormenores, uma certa particularidade das humorroides.</p>
+
+<p>&mdash;Ora, escute, principe, atalhou ainda Maria Alexandrovna. Devia ir ao
+estrangeiro, para ver se se curava.</p>
+
+<p>&mdash;É isso, é! Ao estrangeiro, absolutamente. Lembro-me de que, ahi por
+1820, a gente divertia-se im-men-sa-mente no estrangeiro. Estive para casar com
+uma viscondessa, e era francêsa. Eu estava apaixonado por ella, e queria
+consagrar-lhe toda a minha vida. Que ella, aliás, casou com outro... Caso
+exquisito!... Tinha estado em casa della não havia ainda duas horas, e foi
+n'este meio tempo que um barão allemão a conquistou. Veiu a acabar n'um
+hospital de doidos.</p>
+
+<p>&mdash;Mas, caro principe, estavamos falando na sua saúde, e dizia-lhe eu
+que devia pensar n'isso muito a sério. Ha grandes medicos lá pelo estrangeiro.
+De mais a mais a mudança de ar, já por si, é importantissima. Terá que
+renunciar a Dukhanovo, por uns tempos, quando menos.</p>
+
+<p>&mdash;Abso-o-lu-tamente! Já me conformei, tenciono tratar-me pela hy-dro...
+the... rapia.</p>
+
+<p>&mdash;Pela hydrotherapia?<span class="pn">{40}</span></p>
+
+<p>&mdash;Está claro! Foi isso mesmo que eu disse, pela hy... dro... the...
+rapia. Já me tratei pela hy... drotherapia. Estava eu nas aguas. Tambem lá
+estava uma senhora de Moscou, varreu-se-me o nome, uma mulher muito poetica,
+com setenta annos, ou coisa assim; tinha uma filha com uns cincoenta annos, e
+com uma belida n'um olho. Falavam ambas sempre em verso. Aconteceu-lhe um
+desastre! N'um fogacho de genio, matou o criado. Teve seus da-res e to... mares
+com a justiça. E como eu ia dizendo, puzeram-me no regimen da agua; que eu,
+ainda assim, não estava doente: mas se não faziam senão dizer-me "Trate de si!
+trate de si!" E eu, por delicadeza, puz-me a beber a agua e, effectivamente,
+senti allivio. Bebi, bebi, e tornei a beber! Acho que bebi um lago inteiro... É
+optima coisa a tal hy-dro-the-rapia. Dou-me muito bem. Eu, se não tivesse caído
+de cama, tinha passado lindamente.</p>
+
+<p>&mdash;Lá isso é verdade, rico tio. Ora dize-me, rico tio, aprendeste
+logica? </p>
+
+<p>&mdash;Valha-o Deus! Que pergunta? observa Maria Alexandrovna,
+escandalizada.</p>
+
+<p>&mdash;Está c-claro, meu amigo... ha muito tempo, aqui para nós. Estudei
+philosophia, na Allemanha. Frequentei os cursos todos mas d'ali a pouco
+esqueceu-me tudo... Mas... confesso, metteu-me um tal susto no corpo com as
+taes do... enças que... fiquei atarantado... Eu volto já. Dêem-me licença!</p>
+
+<p>&mdash;Aonde vae, principe? exclama, pasmada, Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Não tardo aqui. Não me demoro... Vou apenas... assentar um
+pensamento... Até já... <span class="pn">{41}</span></p>
+
+<p>&mdash;Que tal lhe pareceu? exclama Pavel Alexandrovitch, á gargalhada.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna perde de todo a paciencia.</p>
+
+<p>&mdash;Eu não o entendo, na verdade, não posso comprehender de que é que se
+ri!&mdash;começa ella com animação. Rir de um ancião respeitavel, de um
+parente! Rebentar a rir a cada palavra que elle solta da bôcca! Abusar
+d'aquella bondade evangelica! Tenho até vergonha de o ouvir, Pavel
+Alexandrovitch! Mas não me dirá o que é que lhe encontra de ridiculo? Ainda não
+fui capaz de lhe notar o lado ridiculo.</p>
+
+<p>&mdash;Mas se nunca conhece ninguem, se não faz senão metter os pés pelas
+mãos! </p>
+
+<p>&mdash;Ahi tem as consequencias do tal sequestro de cinco annos entregue á
+guarda d'aquella megéra! Devemos antes ter dó d'elle, em vez de rirmos á sua
+custa. Veja lá, nem a mim mesmo me conheceu, até! O senhor foi testemunha. Pois
+não é terrivel! É preciso salvá-lo. Eu, se lhe propuz ir ao estrangeiro, foi na
+esperança de que se resolva a largar de mão aquella... regateira.</p>
+
+<p>&mdash;Sabe o que lhe digo, é preciso casál-o, Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;E o senhor a dar-lhe! É incorrigivel, senhor Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Não sou, acredite, Maria Alexandrovna, eu, d'esta vez, estou falando
+até muito a sério. Por que é que o não havemos de casar? É uma ideia como outra
+qualquer. Em que é que isso o pode prejudicar? No estado a que elle chegou, é
+um expediente que o pode salvar, creio eu. A lei ainda lhe permitte casar.
+D'esse modo, vê-se livre d'aquella desavergonhada,<span class="pn">{42}</span>
+desculpe a expressão. Escolherá para ahi qualquer menina, ou qualquer viuva
+honesta, intelligente, carinhosa e pobre, sobretudo, que não deixará de o
+tratar como filha e que comprehenderá que lhe deve ser grata. Que coisa melhor
+lhe poderia acontecer? Um coração terno e fiel, em vez d'aquella... moita! Está
+claro que convem que seja bonita, pois o tio professa ainda o culto da belleza.
+Não viu os olhos que elle deitava á Zinaida Aphanassievna?</p>
+
+<p>&mdash;E onde irá desencantar semelhante ideal? pergunta Nastassia Petrovna
+toda ella ouvidos.</p>
+
+<p>&mdash;Não está má pergunta? A senhora, por exemplo, sem irmos mais longe...
+se me dá licença, perguntar-lhe-hei por que é que não ha de casar com o
+principe? Primeiro e segundo, porque é bonita, e viuva, ainda por cima.
+Terceiro, por que é fidalga. Quarto, por que é honestissima. Ha de amá-lo,
+amimá-lo, pôr na rua a tal carcereira, carregar com o principe para o
+estrangeiro, dar-lhe papinha e goloseimas... tudo isto até que chegue o dia em
+que elle diga adeus a este mundo de amarguras, o que tardará para ahi um anno,
+quando muito, ou um mez ou dois, quem sabe; depois fica sendo princesa, viuva,
+rica e, para compensar o trabalho, casa para ahi com um marquez qualquer, ou um
+general. É bonito, pois não acha?</p>
+
+<p>&mdash;Ai! Deus meu! Que amor eu lhe havia de ter, por gratidão, quando por
+mais não fosse, se elle pedisse a minha mão! exclama Madame Ziablova.</p>
+
+<p>Os olhos feriram-lhe lume, até.</p>
+
+<p>&mdash;Mas, isso sim!... são sonhos!... </p>
+
+<p>&mdash;Sonhos? Tem empenho em que se realisem? Experimente,<span
+class="pn">{43}</span> peça-me que lhe alcance essa pechincha. E corto desde já
+este dedo se hoje mesmo não fôr noiva do principe. Não ha nada mais facil do
+que persuadir o meu tio. Diz sempre a tudo, que sim. A senhora bem o ouviu, ha
+boccado. Casamol-o sem elle dar por isso. Enganamol-o, é verdade, mas se é para
+seu bem, pois não acha? Em todo o caso, a senhora do que devia tratar era de ir
+arranjando uma <em>toilette</em> á altura das circumstancias, Nastassia
+Petrovna.</p>
+
+<p>A animação de Mozgliakov transforma-se em enthusiasmo. A Madame Ziablova,
+com o seu tino todo, está-lhe a crescer até agua na bôcca.</p>
+
+<p>&mdash;Eu bem sei; nem é preciso que m'o lembre, que estou para aqui uma
+trapalhona... Pareço até uma cozinheira, pois não pareço?</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna está com um cara de palmo. Afoito-me a affirmar que ouviu
+a proposta de Pavel Alexandrovitch com uma pontinha de terror. Quer sim quer
+não, teve mão em si.</p>
+
+<p>&mdash;Tudo isso é muito bonito, mas é um chorrilho de futilidades sem pés
+nem cabeça, e que não vem nada a proposito! disse, com sequidão, dirigindo-se
+ao Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Então por quê, minha querida Maria Alexandrovna? Por que é que diz
+que são futilidades fóra de proposito?</p>
+
+<p>&mdash;O senhor está em minha casa, e o principe é meu hospede. Não consinto
+que ninguem se esqueça do respeito que se deve á minha casa! Tomo as suas
+palavras como mera brincadeira, Pavel Alexandrovitch; mas, ahi vem o principe,
+graças a Deus!</p>
+
+<p>&mdash;Eu... c... cá... es... tou, guincha o principe ao entrar.<span
+class="pn">{44}</span> É espantoso, querida amiga,... que fecundidade com que
+acordou hoje este m... meu espirito! Ás vezes&mdash;talvez não
+acredites&mdash;mas acontece-me estar um dia inteiro sem me accudir um
+pensamento a esta cabeça... </p>
+
+<p>&mdash;Seria a tal queda d'inda agora que lhe abalou os nervos... </p>
+
+<p>&mdash;Tambem me quer parecer, meu amigo, ach... acho util, até, o tal
+accidente, tanto assim que estou resolvido a perdoar ao meu Pheophilo. Queres
+que te diga?&mdash;Palpita-me que não premeditará attentar contra os meus dias.
+E demais... já está bem castigado, cortaram-lhe as barbas.</p>
+
+<p>&mdash;Cortaram-lhe as barbas!&mdash;Que me diz? Elle, que tinha umas barbas
+mais compridas que um principado allemão.</p>
+
+<p>&mdash;Es... tá c-claro!... sim... um principado. Em geral, meu amigo, são
+muito acertadas as tuas conclusões. Mas as barbas d'elle são postiças. Ora
+imaginem: Mandaram-me um catalogo: acabam de chegar do estrangeiro umas optimas
+barbas quer para cocheiros quer para gentlemen: suissas, barbas á hespanhola,
+pêras á império, etc.; tudo de primeira qualidade, por preços muito mó-mó-di...
+cos. E eu, então, encommendei umas barbas para cocheiro. Mandaram-m'as: Ma-a...
+gnificas! Mas a do Pheophilo era duas vezes mais comprida. E eu muito
+atrapalhado: que hei de eu fazer? Recambiar as barbas postiças, ou mandar rapar
+as do Pheophilo? Reflecti maduramente e resolvi em favôr das barbas postiças.
+</p>
+
+<p>&mdash;Prefere a arte á natureza, rico tiozinho?</p>
+
+<p>&mdash;Pois está claro!... E que desgosto que elle teve quando se viu de
+cara rapada. Cada pêllo que lhe cortavam<span class="pn">{45}</span> era um dia
+de vida que lhe tiravam. Mas não serão horas de sair, meu caro?</p>
+
+<p>&mdash;Estou ás suas ordens, tio.</p>
+
+<p>&mdash;Principe, ouso esperar que só irá a casa do governador! exclamou
+Maria Alexandrovna, muito sobresaltada. O principe, <em>pertence-me</em>, faz
+parte da minha familia, por todo o dia. Escusado é dizer, que não tenho nada
+que ensinar-lhe, pelo que diz respeito a Mordassov. Talvez queira ir fazer a
+sua visita á Anna Nikolaievna, e não tenho direito de o dissuadir de dar
+semelhante passo. Tanto mais que estou persuadida de que a sua propria
+experiencia lhe servirá de guia. Lembre-se de que, hoje, sou sua irmã, sua mãe
+e sua aia por todo o dia... Ah! Estou toda a tremer por sua causa, principe!...
+O principe não conhece esta gente, não conhece, digo-lho eu... Não, que elle é
+preciso tempo para os conhecer.</p>
+
+<p>&mdash;Deixe o caso por minha conta, Maria Alexandrovna, disse Mozgliakov;
+tudo se passará conforme lhe prometti.</p>
+
+<p>&mdash;Entregar-me nas suas mãos, eu?... O senhor é um estouvado? Cá o
+espero para jantar, principe. Costumamos jantar cedo. Que pena que eu tenho de
+que, n'esta occasião, meu marido esteja no campo! Havia de gostar tanto de o
+ver! Estima-o tanto! Dedica-lhe tão sincera amizade!</p>
+
+<p>&mdash;Seu marido?&mdash;Com que então,... tem marido?&mdash;</p>
+
+<p>&mdash;Valha-me Deus! Que pessima memoria é a sua, principe? Pois esqueceu o
+passado a esse ponto? E meu marido, o Aphanassi Matveich, querem ver que tambem
+se não lembra d'elle? Está no campo, mas o principe, em tempos, viu-o, até,
+muita vez. Veja lá se se lembra; o Aphanassi Matveich?<span
+class="pn">{46}</span></p>
+
+<p>&mdash;Aphanassi Matveich! No campo? Ora vejam lá! Mas é delicioso! Tem
+então marido! Que ratice! Existe um vô... ô... de ville versando sobre o mesmo
+assunto: <em>O marido á porta e a mulher na</em>... Conceda-me licença!... já
+me não lembro lá muito bem... a mulher safa-se para Tula... ou para
+Yoroslav!... </p>
+
+<p><em>O marido á porta e a mulher em Tver</em>, rico tio, sopra-lhe o
+Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Está c-claro, sim, é isso! Obrigado, caro amigo, exa... cta...
+mente... em Tver... É um encanto... um en... can... to... É assim,... é!... a
+mulher em Koxtroma... quero dizer... em conclusão... safou-se... Um encanto! um
+encanto! Mas já não sei o que é que eu ia dizendo!... Ah! sim! vamo-nos embora,
+hein? Até á vista! minha rica senhora! Adeus... minha linda menina!</p>
+
+<p>O principe beija as pontas dos dedos á Zinaida.</p>
+
+<p>&mdash;O jantar! O jantar, principe!</p>
+
+<p>&mdash;Demore-se o menos que puder! brada Maria Alexandrovna deitando a
+correr atráz d'elle.<span class="pn">{47}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>V</h2>
+
+<p>&mdash;Nastassia Petrovna, não seria mau ir deitar a sua rabisáca pela
+cozinha, disse ella apóz de haver acompanhado o principe. Palpita-me que
+aquelle traste do Nikitka é capaz de se tomar da pinga e deita-nos a perder o
+jantar.</p>
+
+<p>Obedeceu Nastassia Petrovna. Á saída, olhou para Maria Alexandrovna e
+percebeu que estava animadissima a digna senhora. Em vez de ir vigiar o
+tratante do Nikitka, Nastassia Petrovna dirige-se a uma saleta contigua,
+d'alli, enfiando pelo corredor, vae ao quarto, e esgueira-se para um cubiculo
+de despejos, atulhado de bahús, de vestidos velhos e de roupa suja de toda a
+familia. Nos bicos dos pés, acerca-se de uma porta fechada, sustendo a
+respiração, e espreita pelo buraco da fechadura: Aquella porta é uma das três
+que abrem para a sala (está condemnada). Maria Alexandrovna sabe que a
+Nastassia Petrovna é velhaca, pouco delicada, de poucos escrupulos, e muito
+capaz de escutar ás portas. N'este momento, comtudo, Madame Moskalieva está tão
+preoccupada, que se descuida de toda e qualquer cautélla.</p>
+
+<p>Senta-se n'uma poltrona e despede significativa olhadela á Zina. E a Zina a
+sentir o pêso d'aquelle olhar. Dá-lhe um pulo o coração!</p>
+
+<p>&mdash;Zina!</p>
+
+<p>A Zina volta com muito vagar para a mãe o descorado semblante e aquelles
+olhos sonhadores.<span class="pn">{48}</span></p>
+
+<p>&mdash;Zina, tenho que te falar em negocio importante.</p>
+
+<p>Está de pé a Zina; cruza os braços e espera. Deslisa-lhe pelo semblante
+expressão fugaz de despeito e de ironia.</p>
+
+<p>&mdash;Quero perguntar-te qual é a tua opinião a respeito d'este tal
+Mozgliakov? </p>
+
+<p>&mdash;Está farta de saber a conta em que o tenho, responde a Zina com modo
+constrangido.</p>
+
+<p>&mdash;Pois sim, filha, mas está-me parecendo que se vae tornando um tanto
+ou quanto impertinente, atrevido; e em conclusão, aquella sua insistencia...
+</p>
+
+<p>&mdash;Diz elle que me ama; se assim fôr, acho perdoavel a sua
+insistencia.</p>
+
+<p>&mdash;Admiro-me de uma circumstancia: tu, d'antes, não o desculpavas,
+assim, tanto;... antes pelo contrario, eras, até, muito rispida para com elle,
+sempre que eu a elle me referia.</p>
+
+<p>&mdash;E a mim, o que me causa admiração é outra circumstancia: A mamã,
+d'antes, estava sempre a defendêl-o, e é agora a propria a condemnál-o.</p>
+
+<p>&mdash;Confesso que me sorria este casamento. Custava-me vêr-te assim
+sempre, tão triste.&mdash;Avaliava bem a tua tristeza,&mdash;pois sou capaz de
+a comprehender, seja qual fôr o juizo que faças a meu respeito.&mdash;Chegou
+até a tirar-me o somno! Em summa, estou convencida de que só uma mudança
+radical na tua vida te poderia salvar, e essa mudança, ha de ser o casamento.
+Não somos ricos, não podemos ir dar a nossa volta pelo estrangeiro. Os asnos
+que povoam esta cidade espantam-se de te ver ainda solteira aos vinte e três
+annos e inventam fabulas a tal respeito. Mas<span class="pn">{49}</span>
+poderei eu dar-te por marido para ahi um conselheiro d'esta estupida cidade ou
+o Ivan Ivanovitch, nosso procurador? Haverá por aqui marido á altura dos teus
+merecimentos? É certo que o Mozgliakov é apenas um peralvilho, e com tudo isso,
+de todos elles, é ainda o mais acceitavel. É de boa familia, dôno de cincoenta
+mil almas: sempre valerá mais que um procurador que vive de propinas e á custa
+Deus sabe de que tranquibernias. E eis o motivo porque me lembrei d'elle. Tanto
+menos verdadeira simpathia me merecia, e tanto mais me convenço hoje de que era
+o Suprêmo Senhor quem me enviava semelhante desconfiança como advertencia.
+Pensa bem! Se porventura se offerecesse agora um partido mais vantajoso, não
+serias tu a propria a louvar-me de não ter até hoje dado a tua palavra a
+ninguem? Pois, ouso crer, Zina, que tu hoje, nada lhe terás dito de
+positivo.&mdash;Pois não é verdade?</p>
+
+<p>&mdash;Para que servirão tantos rodeios, mamã? quando podia muito bem ter-me
+dito tudo isso em duas palavras, replica a Zina com modo resoluto.</p>
+
+<p>&mdash;Rodeios, Zina! Serão coisas que se digam a tua mãe? Ah! Vejo que de
+modo nenhum te mereço confiança! Consideras-me como inimiga muito mais do que
+como mãe!</p>
+
+<p>&mdash;Acabemos com isto, minha mãe. Parece-lhe bonito ficarmos para aqui a
+fazer questão de palavras? Não estaremos fartas de nos conhecermos uma á
+outra?</p>
+
+<p>&mdash;Repara em que me estás offendendo, minha filha. Pois não vês que
+estou resolvida a tudo, a tudo, comtanto que tu sejas feliz?</p>
+
+<p>A Zina põe-se a olhar para a mãe com aquella singularissima expressão de
+despeito e ironia.<span class="pn">{50}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não estará morrendo por que eu case com o principe para complemento
+da minha ventura? pergunta a joven com extranho sorriso.</p>
+
+<p>&mdash;Nem sequer te disse uma palavra a semelhante respeito, mas visto que
+isso veiu á teia, dir-te-hei que, se fosse possivel, representaria para ti a
+felicidade, effectivamente.</p>
+
+<p>&mdash;Pois eu acho isso pueril, exclama a Zina toda assommada, pueril,
+pueril e mais que pueril! e acho, ainda, que a mamã é dotada de excessiva
+imaginação: é uma mulher poetica; e tanto mais que é assim que a classificam em
+Mordassov. Está sempre a fazer planos. Nem lhe mettem medo impossibilidades.
+Assim que vi o principe, tive um presentimento, de como não deixaria de lhe
+accudir semelhante ideia. Quando o Mozgliakov mettia o caso a ridiculo e
+pretendia que era urgente casál-o, li no semblante á mamã o pensamento. E
+d'ahi, foi para me falar n'esse jarreta que a mamã principiou por se referir ao
+Mozgliakov. Mas esses seus sonhos aborrecem-me de morte, não sei se sabe? E
+peço-lhe que fiquêmos por aqui!... Nem mais uma palavra, entendeu, mamã? Nem
+mais uma palavra! Peço-lhe que tome a serio isto que acaba de ouvir da minha
+bocca.</p>
+
+<p>&mdash;És uma criança, Zina, uma criança doente, e com mau genio! responde
+Maria Alexandrovna em voz meliflua; e estás-me faltando ao
+respeito.&mdash;Offendes-me! Não ha mãe que aturasse o que eu te tenho aturado!
+Mas padeces, e eu acima de tudo sou christã. Vou aturando, e perdôo-te.
+Responde-me a uma pergunta, só e mais nada, Zina. Vamos que eu, effectivamente,
+tivesse sonhado semelhante<span class="pn">{51}</span> alliança, onde é que
+está a puerilidade?&mdash;Quanto a mim, nunca o Mozgliakov falou com tanto
+acerto como ainda agora, quando tentava demonstrar que o casamento é uma
+necessidade para o principe. O disparate era o ter-se lembrado d'aquella fufia
+da Nastassia.</p>
+
+<p>&mdash;Mamã, declare-me com franqueza, se me está dizendo isso por méra
+curiosidade ou com um fim qualquer.</p>
+
+<p>&mdash;Peço-te que me respondas: onde vês tu n'isto puerilidade?</p>
+
+<p>&mdash;Que aborrecimento! Triste sorte é a minha! exclama a Zina a bater o
+pé. Vou dizer-lh'o, se é que ainda o não percebeu: aproveitar o ensejo d'esse
+velho se achar caído em demencia para o enganar, para o desposar, assim,
+enfermo e caduco, para lhe extorquir o dinheiro e andar todo o santo dia a
+desejar-lhe a morte, representa, a meu vêr, não só uma puerilidade, mas uma
+vilania, e não serei eu quem lhe dê os parabens por semelhante ideia, mamã.</p>
+
+<p>Silencio.</p>
+
+<p>&mdash;Zina, já te esqueceste d'aquillo que se passou ha dois annos?
+pergunta de chofre Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>Estremece a Zina.</p>
+
+<p>&mdash;Mamã, profere com accentuada seriedade, lembre-se de que me prometteu
+não me tornar a falar em semelhante coisa.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem, minha filha&mdash;que eu até hoje ainda não tornei a
+dizer-te uma palavra&mdash;peço-te que por uma vez tão somente me desligues da
+minha promessa. Zina! Soou a hora de uma franca explicação. Foram mortaes estes
+dois annos de silencio! Isto assim não pode continuar!... Estou prompta a
+supplicar-te de joelhos que me permittas<span class="pn">{52}</span> falar.
+Entendes, Zina, é a tua propria mãe que cae de joelhos a teus pés! E
+demais&mdash;dou-te a minha palavra solemne&mdash;a palavra de uma mãe
+desgraçada que adora a propria filha&mdash;seja qual for o pretexto, em
+circumstancia alguma d'este mundo, com risco até da propria vida, de nunca mais
+abrir a bocca a tal respeito.</p>
+
+<p>&mdash;Fale! diz Zina, muito enfiada.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna calculou optimamente o lance.</p>
+
+<p>&mdash;Obrigada, Zina. Ha dois annos, pois, que frequentava esta casa, por
+causa do teu irmãozinho, do Mitra, que Deus tem, um <em>utchitel</em>.</p>
+
+<p>&mdash;Mas para que foi que a mamã assumiu esses modos tão solemnes, para
+que estará a desperdiçar toda essa eloquencia, esses pormenores tão escusados e
+penosos que ambas estamos fartas de conhecer? interrompeu a Zina com enfado.
+</p>
+
+<p>&mdash;Porque a mim, que sou tua mãe, Zina, me assiste o dever de me
+justificar a teus olhos. E demais, quero apresentar-te este negocio, todo elle,
+sob uma luz nova para ti e que é a unica verdadeira. Emfim, sem estas
+promessas, não poderias comprehender a conclusão que d'ellas pretendo deduzir.
+Não creias, minha filha, que intento fazer pouco dos teus sentimentos. Não
+Zina, has de encontrar em mim uma verdadeira mãe, e quem sabe se não serás tu a
+propria a cair-me aos pés, lavada em lagrimas, a supplicar-me que conclua essa
+reconciliação á qual o teu orgulho se nega ha tanto tempo. Tenho pois que
+recapitular as coisas desde o principio, ou calar-me.</p>
+
+<p>&mdash;Fale, repetiu a Zina, a maldizer de todo o coração a grandiloquencia
+maternal.<span class="pn">{53}</span></p>
+
+<p>&mdash;Continúo, Zina. Esse tal <em>utchitel</em> da escóla communal, um
+fedêlho, por assim dizer, produziu em ti inconcebivel impressão. Contei sempre
+com que o teu sizo, a elevação dos teus sentimentos e tambem a indignidade do
+individuo, (visto que é preciso dizer tudo) evitariam qualquer approximação
+entre tu e elle. E de repente, vens ter commigo e declarar-me com firmeza que
+tens tenção de casar com elle. Foi uma punhalada que me déste no coração, Zina!
+Soltei um grito e caí sem sentidos, mas... não deixarás de te lembrar do
+incidente. É certo que julguei necessario empregar n'aquella occorrencia toda a
+minha auctoridade: e por signal que a acoimaste de tyrannia. Reflécte, pois: um
+garotête, filho d'um <em>diatchok</em>,<a name="tex2html4"
+href="#foot129"><sup>[4]</sup></a> com um salario de doze rublos mensaes, um
+escrevinhador de máus versos que lhe imprimem por dó na <em>Bibliothéca de
+Leitura</em>, que não sabe falar em outra coisa a não ser n'esse maldito
+Shakspeare,&mdash;aquelle fedêlho, teu marido! marido da Zinaida Moskalieva!
+São coisas que só acontecem nas novéllas pastorís de Florian. Perdão, Zina, mas
+quando me lembro de tal, saio fóra de mim! Neguei-me a consentir. Não houve
+influencia que conseguisse convencer-te. Teu pae, naturalmente, manteve-se na
+neutralidade, incapaz de comprehender-me quando tentei expor-lhe o caso e sem
+saber fazer outra coisa além de pestanejar. Mantens relações com esse garoto,
+proporcionas-lhe até ensejo de te ver, e o que é ainda muito peor que tudo
+isso, tens o arrojo de lhe escrever! E as más linguas desde logo a trabalhar!
+Fazem<span class="pn">{54}</span> allusões offensivas na minha presença. Estão
+a pular de contentes, a embocar as mil trombetas da calumnia. As minhas
+antecipações a semelhante respeito vão se realizando uma por uma. Dá-se entre
+ti e elle um desaguizado e elle manifesta-se indigno de ti. Ameaça-te de
+mostrar as tuas cartas, e tu, num assômo de justa indignação, dás-lhe uma
+bofetada!... Sim, Zina, conheço tambem essa circumstancia, estou inteirada de
+tudo&mdash;de tudo, sim! Esse traste, n'esse mesmo dia, mostra uma das tuas
+cartas áquelle miseravel do Zanchine, e, d'alli a uma hora a carta está em
+poder da Natalia Dmitrievna, minha inimiga figadal! Á noite, aquelle, doido,
+arrependido já de semelhante acção inqualificavel, por toleima tenta
+envenenar-se! N'uma palavra, um escandalo medonho! Aquella pécora da Nastassia
+accode toda assustada, a participar-me que ha uma hora que a Natalia Dmitrievna
+se acha de posse da tua carta: não se passarão duas horas, sem que a cidade em
+pêso apregôe para ahi a tua vergonha. E eu a esticar os nervos para não caír
+para ali inanimada. Que lance, Zina! Aquella descarada, aquella
+desavergonhada!</p>
+
+<p>A Nastassia exige duzentos rublos para inutilizar a carta. Eu propria, deito
+a correr, com os sapatos de trazer por casa, até, atravéz da neve, para ir a
+casa do judeu Bumschtein empenhar o meu abrochador, recordação da minha
+virtuosa mãe! D'alli a duas horas tinha a carta em meu poder: roubou-a a
+Nastassia: arrombou uma boceta e está salva a tua honra. Nem vestigios, sequer!
+Mas que dia de angustias! Logo ao outro dia, encontrei entre os meus cabellos
+immensos fios brancos,&mdash;os primeiros, Zina! Tu foste a propria a avaliar
+até que ponto era indigno de ti<span class="pn">{55}</span> aquelle garoto,
+pois concordas agora, não sem amargura, talvez, que teria sido uma loucura
+entregar-lhe o teu destino. Depois, comtudo, pégas a atormentar-te, a soffrer,
+não podes varrêl-o da lembrança,&mdash;não a elle,&mdash;foi sempre coisa tão
+rasteira que a tua vista nem sequer podia deter-se n'elle,&mdash;mas ao teu
+primeiro sonho de amor. Hoje, esse desgraçado está a expirar&mdash;nem sequer
+já se levanta.&mdash;Dizem que morre tisico, e tu&mdash;anjo de
+bondade,&mdash;não queres casar emquanto elle fôr vivo; para lhe poupar
+soffrimento, visto que é ciumento... e não obstante, nunca te teve amor, tenho
+a certeza, amor sincero, elevado! O que o não impede de espionar os passos do
+Mozgliakov, de te rondar a casa, de tirar indagações...&mdash;Tens dó delle,
+minha filha, adivinhou-te o meu coração, e Deus sabe as lagrimas amargas que me
+tem encharcado o travesseiro.</p>
+
+<p>&mdash;Veja se acaba com tudo isso, mamã! atalhou Zina com enfado. O seu
+travesseiro não vem cá fazer coisa nenhuma! Não poderá falar com singeleza?</p>
+
+<p>&mdash;Não me acreditas, Zina! Não me trates tão mal, minha filha! Já lá vão
+dois annos, e não faço outra coisa senão chorar, mas tenho-te encoberto as
+minhas lagrimas, Zina, durante esses dois annos mortaes!... Ha muito tempo que
+conheço os teus sentimentos. Medi todo o alcance da tua magua. Poderá alguem
+lançar-me em rosto, minha querida, o haver considerado semelhante ligação como
+uma phantasia romanesca, nascida sob a influencia do tal maldito Shakspeare?
+Qual seria a mãe que condemnasse os alvitres de que tenho lançado mão e achasse
+rigoroso em demasia o modo por que avalio este caso? E comtudo, a mim propria
+represento o teu longo padecer, comprehendo<span class="pn">{56}</span> e
+apprecio a tua sensibilidade. Acredita: comprehendo-te melhor, talvez, do que
+te comprehendes a ti propria. Estou certa de que o não amas, a esse garoto
+ridiculo: a quem tu amas é ao teu sonho, á tua ventura mallograda, ao esvair
+das tuas illusões. Eu tambem amei, não cuides que não, e com mais excesso de
+paixão do que tu; tambem eu padeci; tinha tambem as minhas illusões!... Não
+falo pois sem experiencia, e se affirmo que uma alliança com o principe
+representaria para mim a salvação, mereço talvez que me dêem ouvidos.</p>
+
+<p>A Zina ouviu com espanto aquella estirada declaração, farta de saber que a
+mamã nunca assume aquelle tom pathetico sem designio occulto. E comtudo, a
+conclusão deixa confundida a joven.</p>
+
+<p>&mdash;É pois a sério, que fala em casar-me com o principe? exclama pasmada
+a considerar a mãe que assumiu attitude majestatica; não é então uma hypothese,
+como se dissessemos? É tenção firme e assente, pelo que vejo? Mas... como é que
+poderia salvar-me semelhante casamento? E... e... que relação terá tudo isso
+com o que acaba de expôr-me, com essa historia toda?... Declaro que a não
+percebo, mamã.</p>
+
+<p>&mdash;E a mim, meu anjo, espanta-me que o não percebas! exclama Maria
+Alexandrovna, com subita animação. Primeiramente, o facto só por si de teres de
+transferir-te para outra sociedade, para um mundo differente; de teres de dizer
+adeus de uma vez para sempre a esta nojenta cidade das duzias, semeada para ti
+de tão temiveis recordações, á qual te não prende a minima affeição, onde te
+assacaram calumnias, onde essa sucia de pêgas te detestam por<span
+class="pn">{57}</span> causa da tua formosura, esse facto só por si, repito, é
+já capital. E depois, podes, ainda esta primavera, ir para o estrangeiro, para
+a Italia, para a Suissa, para a Hespanha,&mdash;Zina&mdash;para a Hespanha,
+onde irás ver a Alhambra, o Guadalquivir! Não estarás farta d'este immundo
+riacho de Mordassov, com aquelle seu nome inconveniente?</p>
+
+<p>&mdash;Mas se me dá licença, mamã! está falando como se eu já estivesse
+casada, ou pelo menos como se o principe me tivesse já pedido em casamento...
+</p>
+
+<p>&mdash;Lá quanto a isso não te dê cuidado, meu anjo, sei o que estou
+dizendo. Deixa-me continuar. Eu disse <em>primeiramente</em>, e ahi vae o
+segundo ponto: Comprehendo, minha filha, quanto te contraría o dares a mão de
+esposa a este Mozgliakov... </p>
+
+<p>&mdash;Sei muito bem, nem preciso de que m'o digam&mdash;que nunca serei sua
+mulher! interrompeu Zina com arrebatamento.</p>
+
+<p>&mdash;Se tu soubesses, meu amor, como eu avalio essa repugnancia! É
+terrivel o ter que jurar perante o altar de Deus amor e fidelidade áquelle a
+quem se não pode ter amor! É terrivel o pertencer a um homem a quem se não pode
+respeitar. E todavia, exigir-te-hia amor; foi para te possuir que elle casou
+comtigo: isso adivinha-se nos olhos que elle te deita quando não olhas para
+elle. Mas como simular perpetuamente amor? Ah! minha filha, aqui estou eu que
+ando a padecer ha vinte e cinco annos com esta comedia necessaria. Teu pae
+deitou-me a perder. Posso afirmar, até, que envenenou de todo a minha mocidade,
+e quantas vezes não terás visto correr as minhas lagrimas?<span
+class="pn">{58}</span></p>
+
+<p>&mdash;O papá está no campo; não esteja a atacál-o, por quem é!</p>
+
+<p>&mdash;Sim, tu saes sempre em sua defêsa, bem o sei... Ah! Zina!
+Confrangia-se-me o coração quando a prudencia me obrigava a desejar o teu
+casamento com o Mozgliakov! Com respeito ao principe, com esse não tinhas tu
+necessidade de representar nenhuma comedia. Escusado é dizer que lhe não
+poderás dedicar o que se chama amor. E demais, elle proprio é <em>incapaz</em>
+de exigir semelhante amor.</p>
+
+<p>&mdash;Que disparate, meu Deus! E eu affirmo-lhe que se engana de meio a
+meio: não tenciono sacrificar-me,&mdash;ignoro aliás o fim com que o faria.
+Fique sabendo que não quero casar. Não casarei seja com quem fôr; ficarei
+solteira. Tem-se farto de me atormentar ha dois annos para cá, por causa de eu
+ter rejeitado quantos noivos me tem apparecido, mas não tem remedio senão
+conformar-se; não quero, já disse!</p>
+
+<p>&mdash;Zinotchka, não te alteres, pelo amor de Deus, sem me ouvires, meu
+amorzinho! Que cabeça tão esturrada! Consente em que eu te exponha o caso em
+conformidade com o meu modo de ver, e verás que has de vir a concordar commigo.
+O principe poderá ainda viver um anno, dois, talvez, mas não vae além, com
+certeza. Ora, mais vale ser viuva e nova do que velha solteirona, isto sem
+falarmos em que depois de elle fechar o olho ficas sendo princêsa, rica e
+livre. Minha querida, desprezas talvez estes meus calculos baseados na morte de
+um homem, mas sou mãe, e quem haverá ahi que condemne a minha previdencia? Em
+conclusão, se tu, anjo de bondade, ainda tens pena d'esse tal garoto, se tu,
+conforme eu suspeito, não queres casar emquanto<span class="pn">{59}</span>
+elle fôr vivo, considera que, se casares com o principe, vaes resuscitar
+aquelle a quem amas! Se é que a elle lhe restam ainda uns vislumbres de bom
+senso, comprehenderá, manifestamente, que o ter ciumes a respeito do principe,
+seria coisa fora de proposito, ridiculo. Comprehenderá que não casas com este
+velho a não ser por interesse, por necessidade. N'uma palavra, comprehenderá...
+quero dizer&mdash;depois de fallecido o principe, já se vê,&mdash;que poderás
+casar segunda vez, se fôr da tua vontade... </p>
+
+<p>&mdash;Casar com o principe, expoliá-lo, e estar á espera de que elle morra
+para depois ir casar com o meu amante, não é assim? É muito habil; quer
+seduzir-me propondo-me... Percebo-a á legua, minha mãe, percebo-a optimamente.
+Só o lembrar-me eu de que não pode deixar de fazer alarde de nobres
+sentimentos, até, n'um negocio tão pouco limpo? Seria muito mais estimavel o
+dizer-me, singelamente: "É uma ignominia, Zina, mas é lucrativa; e portanto,
+acceita." Sequer ao menos era mais franco.</p>
+
+<p>&mdash;Mas que teimosia será essa tua em encarar o negocio no ponto de vista
+da trapaça, da arteirice, da cobiça? Consideras os meus calculos como uma soez
+hypocrisia; mas, em nome de quanto venéras como mais sagrado, onde estará a
+baixeza, onde a hypocrisia? Vê-te bem n'aquelle espelho: és formosa o
+sufficiente para conquistares com esses teus olhos, sem mais nada, um reino! E
+tu, tão formosa, sacrificas a um velho os teus melhores annos; tu, estrella
+magnifica, vaes embellezar-lhe o occaso da vida; tal qual a hera viçosa, florir
+na sua velhice! Está afeito á companhia de uma feiticeira que o sequestra lá
+n'um canto do mundo, e d'essa feiticeira, és tu, tu, Zina, quem vaes ser
+successora!<span class="pn">{60}</span> O dinheiro e o titulo d'elle podem lá
+equiparar-se ao teu valor? Onde vês pois n'isto a baixeza, a hypocrisia?</p>
+
+<p>Nem sabes o que estou dizendo, Zina!</p>
+
+<p>&mdash;O dinheiro e o titulo d'elle valem mais do que eu, visto que para os
+alcançar, teria que resignar-me a casar com um enfermo. Dêmos ás coisas os seus
+nomes: é uma ignobil hypocrisia, mamã!</p>
+
+<p>&mdash;Pelo contrario, minha querida, pelo contrario! O caso pode até ser
+encarado de um ponto de vista superior, christão. Declaraste-me, um dia, em um
+assômo de enthusiasmo, que querias ser irmã da caridade: o teu coração
+exaltara-se de amor ao pensares nos humanos soffrimentos, outro qualquer amor
+parecia-te tibio e mesquinho. Pois bem! Se ainda queres acreditar no amor,
+acredita na dedicação, com sinceridade, tal qual uma creança, com candura.
+Dedica-te, e abençoar-te-ha Deus! Tem padecido este velho; é desditoso,
+perseguem-n'o. Conheço-o ha muitos annos e sempre lhe dediquei incomprehensivel
+simpathia, carinho, por assim dizer: presentia o futuro. Sê sua amiga, minha
+filha, seu brinquedo, até, se é forçoso dizêl-o, mas aquenta-lhe o coração e
+fál-o por amor de Deus! Admittamos que é ridiculo? Elle nem sequer d'isso tem
+consciencia. Não chega a ser a metade de um homem. Tem dó d'elle, tu, que és
+christã. Contrafaze-te; com força de vontade consegue-se domar a alma para
+semelhantes façanhas. Quanto não custa o pensar as chagas nos hospitaes, com
+que repugnancia se não respira o ar viciado dos lazaretos: mas não ha anjos que
+desempenham sem asco essas repugnantissimas taréfas e que ainda dão graças a
+Deus pela triste sorte que lhes coube? E ahi está o remedio de que<span
+class="pn">{61}</span> tanto necessitava o teu magoado coração: uma tarefa
+heroica! Onde vês tu n'isto egoismo? Baixeza? Não me acreditas, suppões que
+estou representando uma comedia, não podes comprehender que uma mulher mundana,
+n'este meio de viver leviano, possa ter uns sentimentos de tanta elevação? Pois
+bem, não me acredites, minha filha! Desconfia do coração de tua mãe! mas sequer
+ao menos concorda em que as minhas palavras são sensatas e salutares. Esquece
+que sou eu quem te estou falando, fecha os olhos, volta-me as costas e põe na
+tua ideia que é uma voz misteriosa que estás ouvindo... O que acima de tudo te
+prende, é a questão de dinheiro, essa apparencia de compra e venda. Pois bem,
+rejeita o dinheiro visto que lhe tens tamanha aversão, acceita apenas o
+necessario, e o resto, dá-o aos pobres. Por exemplo, estende o teu braço
+áquelle desgraçado que está ás portas da morte.</p>
+
+<p>&mdash;Elle nunca acceitaria, disse a Zina, baixinho, como se estivera
+falando comsigo.</p>
+
+<p>&mdash;Dado o caso de que elle rejeite, lá está a mãe para o acceitar em
+nome d'elle, responde Maria Alexandrovna sentindo que conseguiu acertar-lhe com
+a corda sensivel. Acceitará sem que elle proprio o saiba. Já vendeste os teus
+brincos (presente de tua tia) para lhe accudir, ha seis meses, que eu bem o
+sei, e tambem sei que a mãe, a pobre da velha, anda a lavar roupa para
+sustentar o filho.</p>
+
+<p>&mdash;Dentro em pouco deixará de precisar seja do que fôr.</p>
+
+<p>&mdash;Comprehendo-te! apanha de relance Maria Alexandrovna, (accode-lhe uma
+inspiração, uma verdadeira inspiração.) Dizem que morre tisico: mas quem é que
+o affirma? Indaguei a seu respeito, ha dias, do Kalist-Stanislavitch... <span
+class="pn">{62}</span> Pois sou a primeira a interessar-me pelo pobre rapaz,
+tambem tenho coração, Zina! E o Kalist-Stanislavitch respondeu-me que a doença
+é grave, não ha duvida, mas que, até hoje, existe apenas uma forte affecção dos
+bronchios,&mdash;tu mesmo lh'o podes perguntar. E accrescentou que a mudança de
+clima, impressões fortes, podiam curar o doente. Contou-me elle que, em
+Hespanha&mdash;e já não é a primeira vez que o oiço... li-o, até&mdash;ha uma
+ilha extraordinaria, Malaga, creio eu... emfim, um nome que lembra o de um
+qualquer vinho&mdash;onde não só os que padecem do peito, mas até os proprios
+tisicos saram de todo, graças ao clima. Vão ali tratar-se fidalgos, e
+commerciantes ricos. Que elle, effectivamente, a Alhambra&mdash;esse palacio
+encantado&mdash;as murtas e os limoeiros, os hespanhoes a cavallo nas mulas,
+não será o sufficiente a produzir impressão n'uma natureza de poeta? Suppões
+que rejeitaria o teu dinheiro?... Enganas-te se tens dó d'elle! A mentira é
+perdoavel, quando d'ella depende a vida. Alimenta-lhe a esperança, promette-lhe
+o teu amor, dize-lhe que casarás com elle quando enviuvares,&mdash;tudo se pode
+dizer com nobreza: tua mãe não era capaz de te dar maus conselhos,
+Zina!&mdash;Has de fazer tudo isso para o salvar e o bastante para te
+justificares. Recuperará alento assim que souber que está esperando por ti.
+Tratar-se-ha, seguirá rigorosamente as recommendações do medico, ha de querer
+resuscitar para a ventura. Se elle se curar, ainda quando não viesses a ser sua
+mulher, sequer ao menos têl-o-has salvo! e se a desventura o tiver mudado, se o
+houver tornado digno de ti, casarás com elle. Effectuada a cura, poderás
+alcançar-lhe uma situação na sociedade, facultar-lhe<span
+class="pn">{63}</span> uma carreira. O teu casamento, n'estas condições,
+tornar-se-ha possivel. Hoje!... que é que os espera a ambos, se porfiassem em
+perpetrar o acto de loucura de casarem. O desprezo de toda a gente e a
+miseria.</p>
+
+<p>Pensas acaso que a leitura entre ambos do seu Shakspeare lhes havia de
+compensar tudo isso? Ficariam a vegetar aqui em Mordassov até que elle
+morresse, o que não tardaria, aliás. Mas se está na tua mão o incutir-lhe gosto
+pelo trabalho e pela virtude!</p>
+
+<p>Perdoa-lhe e adorar-te-ha. O remorso d'aquelle seu acto vergonhoso
+apavóra-o! O teu perdão tudo irá ápagar e reconciliál-o-ha comsigo mesmo.</p>
+
+<p>Passa ao serviço activo, sobe postos, e se morrer, sequer ao menos morrerá
+feliz, nos teus braços (visto que poderás achar-te a seu lado), seguro do teu
+amor, do teu perdão, á sombra das murtas e dos limoeiros, debaixo da cupula
+azul de um ceu exotico. Ah! Zina! Tudo isto se acha nas tuas mãos; basta que
+consintas em casar com o principe.</p>
+
+<p>Cala-se Maria Alexandrovna. Segue-se prolongado silencio. A Zina acha-se no
+auge da afflicção.</p>
+
+<p>Não nos abalançaremos a descrever os seus sentimentos: não os conhecemos.
+Mas, a julgar pelas apparencias, Maria Alexandrovna encontrou o verdadeiro
+caminho para o coração da filha. Não ha duvida de que a excellente mãe andou um
+tanto ás apalpadélas, até que por fim conseguiu pôr o dedo na ferida,
+principiou por maguar sem precaução os pontos mais sensiveis das feridas ainda
+abertas, a despeito de um desenvolvimento por ahi além de sentimentos.<span
+class="pn">{64}</span></p>
+
+<p>Agora, comtudo, logrou introduzir na mente da Zina o pensamento que a si lhe
+convinha: produzindo-se o effeito, alcançou-se o fim desejado. A Zina escuta
+com soffreguidão, com as faces afogueadas, o seio a arfar.</p>
+
+<p>&mdash;Ora escute, mamã,... diz por fim, resoluta, comquanto a subita
+pallidez manifeste claramente quanto lhe custa semelhante resolução.</p>
+
+<p>&mdash;Escute, mamã... </p>
+
+<p>N'este ensejo, comtudo, resôa no vestibulo um ruido: uma voz aguda a chamar
+por Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna levanta-se com vivacidade.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! meu Deus! demonios levem aquella pêga! É a coronela! E eu que
+quasi que a despedi, ha quinze dias! accrescenta, desesperada... </p>
+
+<p>Mas é impossivel recebêl-a agora! De todo impossivel! E comtudo isso... quem
+me diz que me não virá trazer noticias... aliás, nunca se atreveria. É caso
+sério, Zina, é-me indispensavel sabêl-o, nada se póde desprezar... </p>
+
+<p>&mdash;Como lhe fico grata por esta sua visita... quanto estimo!... exclama
+correndo ao encontro da coronela. A que feliz acaso serei eu devedora de se ter
+lembrado de mim, minha preciosa Sofia Petrovna? Encantadora surpreza!</p>
+
+<p>A Zina deitou a fugir.<span class="pn">{65}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>VI</h2>
+
+<p>A coronela Sofia Petrovna Farpukhina apenas suggere moralmente o tipo da
+pêga. Quanto ao phisico, participa antes do pardal. É uma mulherita cincoentona
+com sardas entre ruivas e amareladas pela cara e uns olhos que nunca param. O
+corpo ético, implantado sobre umas sólidas pernas de pardal, esconde-se por
+debaixo das amplas pregas d'um vestido escuro, de seda, em continuo restralar,
+visto como a coronela nunca póde estar quiéta. É uma linguareira ruim e
+vingativa, perde o tino com a seguinte ideia: "Sou coronela." Ella e o marido,
+coronel reformado, jogavam a unhada a toda a hora: elle ostentava no rosto os
+signaes das garras da consorte. Ella, préga no bucho com quatro copinhos de
+vodka, todas as manhãs, e outros tantos ao deitar. Vota um odio figadal a Anna
+Nikolaievna Antipova e á Natalia <span class="typo" title="no original: Dmitorévna">Dmitrievna</span> Padknvina, que a sacudiram das suas
+salas, ha oito dias.</p>
+
+<p>&mdash;Demoro-me apenas um instantinho, meu anjo, pia a dama; nem sequer me
+quero sentar. Traz-me aqui unicamente o desejo de lhe contar os singularissimos
+acontecimentos que se estão dando. O tal principe faz andar n'uma roda viva
+esta nossa Mordassov. Os nossos espertalhões&mdash;comprehende&mdash;não lhe
+largam o rastro, a farejál-o por todos os cantos, a puxál-o para todos os
+lados, obrigam-n'o a beber champanhe. Eu se o não visse não o acreditava.<span
+class="pn">{66}</span> Como é que o deixou saír? Não sei se sabe que, n'este
+instante, está em casa da Natalia Dmitrievna?</p>
+
+<p>&mdash;Em casa de Natalia Dmitrievna? exclama Maria Alexandrovna dando um
+pulo na cadeira. Mas se elle ia apenas fazer a sua visita ao governador e a
+casa de Anna Nikolaievna, e sem tenção de se demorar.</p>
+
+<p>&mdash;Para se não demorar, isso sim! E agora, corra atrás d'elle!</p>
+
+<p>Não encontrou em casa o governador, foi visitar a Anna Nikolaievna, e
+prometteu-lhe jantar com ella, e a Natachka<a name="tex2html5"
+href="#foot147"><sup>[5]</sup></a>, bem sabe, que nunca sáe de casa, lá estava
+pespegada; carregou com elle para almoçar. E ahi tem o seu principe!</p>
+
+<p>&mdash;Que me diz! E o Mozgliakov a prometter-me... </p>
+
+<p>&mdash;Pois sim! O tal seu Mozgliakov a quem a senhora não se farta de pôr
+nas nuvens!... Está em casa delles! Olho n'elle! Veja lá se o obrigam a jogar
+as cartas e principia para ahi a perder como succedeu o anno passado. E o
+principe é capaz de se deixar limpar que nem um prato. E que calumnias que ella
+inventa, aquella Natachka! A atordoar os ouvidos a toda a gente com a galga de
+como a senhora faz a côrte ao principe com o sentido em... com um certo
+sentido, não sei se m'entende? E pespega-lh'o a elle na cara, até; e elle sem
+perceber patavina, sentado para ali como um gato encharcado e a responder, a
+cada palavra: "Ah! Está claro, está claro!" E sabidas as contas é ella a
+propria que... Mandou saír a Sonka<a name="tex2html6"
+href="#foot148"><sup>[6]</sup></a>. Ora imagine! Com<span
+class="pn">{67}</span> quinze annos e anda ainda de vestido curto que mal lhe
+chega ao joelho; tambem mandou vir aquella orfã, a Machka,<a name="tex2html7"
+href="#foot150"><sup>[7]</sup></a> com um vestido ainda mais curto. Impingiram
+a ambas uns casquêtesinhos encarnados cheios de plumas, não sei para quê, e ao
+som do piano põem-se a dansar, aquelles dois espinafres, deante do principe, a
+Kozatchok.<a name="tex2html8" href="#foot151"><sup>[8]</sup></a> Ora a minha
+amiga está farta de conhecer o fraco ao principe! A babar-se todo: "Que... e...
+fó... órmas!" diz elle "... Que... e... fó... ó... órmas!" E a mirál-as pelo
+monóculo, e ellas com uns módinhos, as duas perúas! Todas afogueadas á força de
+levantarem a perna! E toda a gente a rir, faça ideia como e porquê!... Que
+nojo! E chamam áquillo dansar! Aqui estou eu que dansei de chale, quando saí do
+collegio aristocratico de Madame Jarmé: fiz sensação, acredite... pela
+nobreza!</p>
+
+<p>Fartaram-se até de dar palmas uns senadores. Estavam a educar nesse mesmo
+collegio filhas de principes e de condes.&mdash;Mas a tal Kozatchok, aqui para
+nós, é tal qual o Cancan! E eu com a cara a arder, de envergonhada! Não me pude
+conter... </p>
+
+<p>&mdash;Mas, então... tambem estava em casa da Natalia Dmitrievna? A senhora?
+Cuidei que... </p>
+
+<p>&mdash;Então que quer! Ella offendeu-me, a semana passada, e não me ensaiei
+para o pespegar a toda a gente. Mas que quer, minha amiguinha, se eu estava
+morta por ver o principe, ainda que fosse por uma greta da porta, e ahi tem por
+que é que lá fui, apezar de tudo, a casa da Natalia Dmitrievna;<span
+class="pn">{68}</span> a não ser o principe, não era eu que lá tornava a pôr os
+pés! Ora imagine; servem chocolate a toda a gente, e a mim, nem raça, nem
+sequer abrem a bocca para me pedir desculpa! Ha de ter noticias minhas! Mas
+adeus, meu anjo, vou-me embora, estou com muita pressa... é-me indispensavel
+encontrar em casa a Apulina Panfilovna para lhe contar o caso. Ah! Pode-se
+desde já considerar viuva da lindeza do tal principe, não é elle que volta para
+sua casa. Está perdido da memoria, bem sabe, e a Anna Nikolaievna terá cuidado
+em o não deixar saír.</p>
+
+<p>Estão com medo de que a minha amiga... todas ellas... não sei se percebe? a
+proposito da Zina... </p>
+
+<p>&mdash;Que horror!</p>
+
+<p>&mdash;É como lhe digo; já corre até por essa cidade. A Anna Nikolaievna não
+o deixa saír sem jantar e depois não o larga. Os planos d'ella são todos elles
+armados contra a senhora, meu anjo! Fui deitando o olho para o pateo: que
+reboliço! Prepararam um jantar com trinta entradas, mandaram vir champanhe.
+Quer um conselho? Veja se trata de lhe deitar a mão antes de que elle vá a casa
+d'ella. Não, que elle, pertence-lhe, é seu hospede! Não se deixe engazupar por
+aquella espertalhona, por aquella ranhosa! Não vale a sola de um sapato, lá com
+ser mulher de um procurador. E eu, aqui onde me vê, sou coronela, fui educada
+no collegio aristocratico de Madame Jarmé... Forte nojo! Adeus, meu anjinho,
+tenho o trenó á espera, se não fosse isso, fazia-lhe companhia.</p>
+
+<p>E abalou a gazeta viva.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna, desesperada, toda ella n'um tremor. Não padece duvida
+que o conselho da coronela é seguro e<span class="pn">{69}</span> pratico; não
+ha tempo para perder, mas subsiste ainda a grande difficuldade.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna investe para o quarto da Zina. A Zina andava ás voltas
+pela casa, de mãos no peito, muito enfiada, cabisbaixa, no auge da afflicção.
+Borbotavam-lhe nos olhos as lagrimas. Fulge-lhe porém no semblante uma
+expressão de decisão, assim que põe os olhos na mãe. Engole as lagrimas e
+refega-lhe os labios um risinho sarcastico.</p>
+
+<p>&mdash;Mamã, diz ella, antecipando-se a Maria Alexandrovna, desperdiçou
+thesouros de eloquencia em minha honra, de mais, até, visto que me não
+conseguiu cegar a vista, e eu não ser nenhuma creança. Querer persuadir-me de
+que, eu, casando com o principe, ia praticar um acto de irmã de
+caridade,&mdash;profissão para que não sinto a minima vocação,&mdash;justificar
+mediante um nobre fim baixezas egoistas, tudo isso representa apenas o mais
+grosseiro egoismo, entendeu?</p>
+
+<p>&mdash;Porém, meu anjo... </p>
+
+<p>&mdash;Cale-se, mamã, tenha paciencia, e oiça-me até ao fim. Saiba, pois,
+que tenho a consciencia da sua hypocrisia. Estou pois plenamente convencida de
+que o verdadeiro fim de tudo isto é vil; e comtudo, acceito a sua proposta,
+completamente, mas <em>completamente</em>, entendeu? Estou prompta a casar com
+o tal principe, prompta a ajudar os seus esforços no sentido de o convencer a
+casar commigo. O motivo d'esta minha resolução, não é da conta da mamã,
+baste-lhe saber que me prontifico a tudo: ajudál-o-hei a enfiar as botas, serei
+sua creada, hei de dansar para que elle se não arrependa de ter casado commigo.
+Mas, em troca, peço-lhe<span class="pn">{70}</span> que me diga, o modo por que
+pretende alcançar semelhante resultado. Não ponho em duvida, visto que se
+empenha n'este negocio, o facto da mamã ter já urdido o seu plano.
+Transmita-m'o, seja franca uma vez na sua vida, eis as minhas condições.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna ficou tão embatucada, que emudeceu sem bulir com um dedo,
+com os olhos espipados. Contara com a lucta contra as ideias romanescas da
+filha, e ficou estupefacta ao vêl-a decidida a agir contra as proprias
+convicções. O negocio toma verdadeira consistencia. Maria Alexandrovna, lá por
+dentro, não cabe em si de contente.</p>
+
+<p>&mdash;Zinotchka! exclama enthusiasmada, és a carne da minha carne e o osso
+dos meus óssos!</p>
+
+<p>Nem uma palavra mais pode accrescentar, lança-se nos braços da filha.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! meu Deus! Dispense-me dos seus abraços, mamã! respondeu,
+enfadada, a Zina. É absolutamente deslocado esse seu enthusiasmo. Exijo uma
+resposta á minha pergunta, e nada mais!</p>
+
+<p>&mdash;Mas, Zina, eu amo-te, adoro-te, e tu a repelires-me! É para te ver
+feliz que eu ando a trabalhar. E, dos olhos de Maria Alexandrovna borbotavam
+lagrimas <em>sincéras</em>. Effectivamente, ama a seu modo a Zina, e d'ahi, a
+commoção do triumpho torna-a tão sentimental como qualquer <em>baba</em>,<a
+name="tex2html9" href="#foot158"><sup>[9]</sup></a> áquelle general de saias. A
+Zina sente bem, a despeito de tudo, que a mãe é sua amiga; mas pésa-lhe
+semelhante amor, preferir-lhe-hia o odio.<span class="pn">{71}</span></p>
+
+<p>&mdash;Pois bem! Não se zangue, mamã; sei muito bem o que vou fazer, se eu
+estou tão afflicta!... disse para tranquillizál-a.</p>
+
+<p>&mdash;Eu não me zango, não me zango, meu anjinho, cacarêja Maria
+Alexandrovna recuperando animo. Não deixo de avaliar a tua agitação. Mas não
+vês tu, querida amiguinha... tu pediste-me franqueza... Seja assim, serei
+franca, mas acredita-me. Lá quanto a um plano inteiramente definido, é coisa
+que ainda não tenho, nem o posso ter: tudo depende das circumstancias. Antevejo
+até algumas difficuldades.</p>
+
+<p>... Se aquella pêga, aindagora, esteve-me para ahi a grasnar um chorrilho de
+pessimas noticias. (Ah! meu Deus! não tenho tempo para perder!) Serei pois
+franca: juro-te que hei de conseguir o meu fim. Não vás acreditar n'uma miragem
+qualquer, n'uma illusão; o meu plano assenta todo elle na toleima do principe,
+e representa isso uma talagarça em que se pode bordar tudo que se quiser. O
+mais importante é que nos deixem operar. E demais, essas fufias nada podem
+contra mim! exclama Maria Alexandrovna assentando um murro na mêsa. Tem
+confiança, mas cumpre operar depressa! Hoje ainda façamos o principal, se for
+possivel.</p>
+
+<p>&mdash;Está bem, mamã; escute ainda... uma franqueza. Sabe o motivo porque
+tanto me interessa esse seu plano? É porque não estou segura de mim propria.
+Disse-lhe que me achava decidida a praticar semelhante baixeza. Mas se os
+pormenores d'esse seu plano forem repugnantes em demasia, desde já lhe declaro
+que me verei obrigada a desistir. Sei que será mais uma baixeza, o resignar-me
+a entrar<span class="pn">{72}</span> no lodaçal e não ter animo de lá ficar.
+Mas que se lhe ha de fazer? Se não pode deixar de ser assim!</p>
+
+<p>&mdash;Mas, Zina, meu anjo, onde é que tu vês n'isto baixeza? replica,
+timida, Maria Alexandrovna. Trata-se de um bom casamento, de uma coisa normal;
+encara as coisas d'este ponto de vista e verás que te ha de parecer muitissimo
+razoavel.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! mamã, pelo amor de Deus, nada de dissimulações para commigo!
+Estou prompta para tudo, bem vê; que mais quer? Não se escandalize, peço-lh'o
+eu, por eu dar ás coisas o nome que lhes compete: será, talvez, actualmente,
+essa a minha unica consolação.</p>
+
+<p>E sorriu com tristeza.</p>
+
+<p>&mdash;Ora vamos! Vamos! Está bom, meu anjinho; pode haver estima reciproca sem
+identidade de convicções. Quanto ao meu plano, tem a certeza em como te não irá
+salpicar de lama, isso te juro eu! Quererás talvez comprometter-me? Tudo ha de
+correr bem, com muita dignidade, até. Não ha de haver escandalo. E ainda quando
+o houvesse, n'esse caso, d'este ou d'aquelle modo... já nós estariamos d'aqui
+muito longe... diziamos adeus a Mordassov. E depois, essas gralhas que piassem
+para ahi até rebentar, já nos não fazia mossa. Merecem que façamos caso
+d'ellas, porventura? E como é que tu, Zina, tão soberba, podes arrecear-te de
+semelhante gente?</p>
+
+<p>&mdash;Ah! mamã, a mim não me mettem medo, acredite! Não me entende!
+respondeu a Zina, irritadissima.</p>
+
+<p>&mdash;Está bom, está bom, minha joia, não te zangues! Onde eu queria chegar
+era a que essa gentalha praticam vilanias a cada instante, e que tu... por uma
+só vez... Mas,<span class="pn">{73}</span> que digo eu... sempre sou muita
+tola! Trata-se até de uma nobre acção! Depende tudo do ponto de vista... </p>
+
+<p>&mdash;Basta, mamã, basta! exclama a Zina.</p>
+
+<p>E bate o pé.</p>
+
+<p>Deixa lá! meu anjo, não torno mais!</p>
+
+<p>Silencio. Maria Alexandrovna fica a olhar pelas costas para a Zina, que
+seguiu por a casa fora com uma expressão de cachorro a olhar para a chibata.
+</p>
+
+<p>&mdash;Nem sequer chego a perceber como é que tenciona dar-lhe volta,
+prosegue com enfado a Zina. Tenho a certeza de que o resultado que tirará será
+uma affronta. Pela parte que me toca, tanto se me dá, mas vae ter desgosto,
+creia. </p>
+
+<p>&mdash;Ora! Se é só isso que te dá cuidado, vae descançada, meu anjo!</p>
+
+<p>Comtanto que estejamos de accordo, quanto ao mais, pouco importa! Se tu
+soubesses os transes de que eu tenho escapado, sã e a salvo! Em summa,
+permitte-me fazer uma tentativa. É urgente que eu tenha quanto antes uma
+conferencia com o principe. Já estou adivinhando o que d'aqui sairá. De quem eu
+tenho medo é do tal Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Do Mozgliakov? perguntou a Zina com desdem.</p>
+
+<p>&mdash;Do Mozgliakov, sim, pois que cuidas? Mas não te assustes, ainda
+assim, Zina, hei-de induzil-o a auxiliar-me, até. Nem tu sabes ainda quem aqui
+está, Zina! Ah! tão certa tenha eu a salvação, mas assim que ouvi falar no
+principe, accudiu-me logo semelhante ideia! Foi uma revelação. Quem havia de
+dizer que elle havia de vir parar a nossa casa! Bem podiamos estar cem annos á
+espera d'uma occasião d'estas! Ah! és tão linda, minha Zina! Que<span
+class="pn">{74}</span> belleza! Olha, eu, se fosse homem, atirar-te-hia aos pés
+um reino! Sucia de asnos! Quem não ha de estar morrendo por beijar esta
+mãozinha? (Maria Alexandrovna, effusiva, beija a mão da filha.) É a carne da
+minha carne!... É preciso casál-o dê por onde der, áquelle imbecil! E que bem
+viveriamos depois, Zina! Pois nunca nos havemos de apartar, não é verdade? Não
+pões na rua tua mãe, quando te vires feliz? Tivemos os nossos desaguizados, mas
+aonde irás tu encontrar outra amiga como eu? Eu, apezar de tudo... </p>
+
+<p>&mdash;Mamã, se está resolvida, é tempo de fazer alguma coisa. Está perdendo
+minutos preciosos! disse a Zina, com impaciencia.</p>
+
+<p>&mdash;E já vae apertando. Vae, sim, effectivamente. E eu aqui a dar á
+lingua! Querem açambarcar o principe! Vou já a correr. É já; mando chamar o
+Mozgliakov e carrégo com o principe, á força, se fôr preciso. Adeus, Zinotchka!
+Adeus, meu amor, minha pomba! Não te desconsoles, não desanimes, não estejas
+triste. Então!... Tudo ha de correr com dignidade, com muita, até. Tudo está no
+modo de encarar as coisas. Emfim! adeus, adeus!</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna faz o signal da cruz á Zina e sae. Investe para o quarto,
+detem-se um momento em frente do espelho e, d'alli a dez minutos, lá vae
+rodando por essas ruas de Mordassov, na carruagem de patins (já dissemos que
+Maria Alexandrovna vivia á larga.)</p>
+
+<p>&mdash;Não, não são vocês que podem luctar de esperteza commigo! A Zina
+annue, e já é meio caminho andado! Não ser bem succedida! Que asneira! Ah!
+Zina, com que então, ha calculos que influem no teu animo? Commovi-a
+fazendo-lhe luzir deante dos olhos um risonho porvir... Como<span
+class="pn">{75}</span> ella estava linda, hoje! Ora, tivera eu sido tão
+formosa, e haveria revolvido, até, meia Europa. Em summa, paciencia, esperemos.
+O tal Shakspeare ha-de-lhe passar assim que ella se vir princêsa... E que
+princêsa não ha de ser!... Gosto de a ver assim; tão soberba, tão senhora de
+si!... Tem uns olhos de rainha!... Como é que ella poderia deixar de conhecer
+que ia n'isso o seu interesse?&mdash;Até que emfim percebeu-o! Ficarei vivendo
+em sua companhia, e ha de consentir em tudo que eu quiser. É princêsa? pois
+tambem eu! Hão-de falar de mim, em Petersburgo, até... E adeus... cidadezinha
+da asneira! O principe e o garoto hão-de ir marchando d'esta para melhor, e eu,
+caso-a com uma testa coroada! Ha só uma coisa que me mette medo: não terei
+usado para com ella excesso de franqueza? Assusta-me! Assusta-me deveras!</p>
+
+<p>E engolfa-se em suas cogitações Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>Assim que se viu entre quatro paredes, a Zina poz-se ás voltas no quarto, de
+mãos atráz das costas, a pensar. E não lhe faltava em quê, com certeza! E a
+revezes e quasi inconscia repetia: "é urgente, é urgente, ha já muito tempo que
+devia estar feito!" Que quereria dizer aquella exclamação? Por mais de uma vez
+as lagrimas lhe refulgiram n'aquellas pestanas tão longas e sedeúdas. Nem
+pensava, sequer, em as enxugar. A mãe fazia mal em estar-se inquietando! A Zina
+achava-se disposta para tudo... </p>
+
+<p>"Eu te direi, deixa estar! pensou a Nastassia Petrovna ao saír do seu cadoz
+da farrapada depois de se haver retirado a coronela. E eu com tenções de pôr
+uma gravata côr de rosa por causa do tal principe! Sempre sou bem<span
+class="pn">{76}</span> tola! A enfeitar-me para casar com elle! Ora, uma
+gravata depressa se põe! Deixa tu estar, minha Maria Alexandrovna! Com que
+então, eu, sou uma pécora, uma miseravel? Acceito duzentos rublos para arrombar
+uma bocêta! Pois já se vê, não deixar escapar a occasião!... E demais... eu se
+o fiz foi por ser generosa, pois ainda tive que fazer despêsa... Eu te direi!
+Hei-de-lhes fazer ver a ambas se sou uma pécora ou se o não sou! Hão de
+aprender a lidar com a Nastassia Petrovna!<span class="pn">{77}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>VII</h2>
+
+<p>Maria Alexandrovna, comtudo, deixava-se arrastar pelo proprio talento.
+Concebeu um plano grandioso quanto audaz. Casar a filha com um ricaço, com um
+principe e um moribundo; casál-a sem que ninguem o soubesse, aproveitando a
+senilidade do seu hospede, era não só ousadia, mas imprudencia, até. Não havia
+duvida, o projecto era seductor, porém, em caso de malogro, poderia vir a
+reverter para o autor n'uma confusão sem antecedentes. Maria Alexandrovna bem o
+sabia, mas não era mulher para recuar.</p>
+
+<p>&mdash;Tenho-me visto em peores lances, dissera ella á Zina, e era verdade.
+E seria uma heroina, se assim não fôra?</p>
+
+<p>Certamente, o projecto tinha seus visos de bandoleirismo á mão armada; Maria
+Alexandrovna não era, porém, mulher para se prender com taes ninharias. Resumia
+o caso n'um dito muito acertado: "uma pessoa não fica para sempre casada." Era
+simplicissima semelhante ideia, mas apresentava á imaginação tamanhas
+vantagens, que Maria Alexandrovna era a propria a assustar-se.</p>
+
+<p>Como mulher de recursos, dotada de legitima faculdade creadora, urdiu o seu
+plano n'um revez de mão. É certo que apenas se lhe pintiparava na mente a
+largos traços, um tanto vagos, até. Escasseavam pormenores e havia que contar
+com circumstancias imprevistas. Maria Alexandrovna tinha porém confiança em si
+mesmo. Não era<span class="pn">{78}</span> o malogro que lhe mettia medo, lá
+isso, não; o que a sobresaltava, era a impaciencia em encetar a lucta. A
+impaciencia, a nobre impaciencia minava-a, ao pensar nos possiveis obstaculos.
+</p>
+
+<p>As mais sérias difficuldades, antecipava-as Maria Alexandrovna por parte dos
+seus nobres concidadãos de Mordassov, e acima de tudo, da nobre sociedade das
+damas Mordassovenses: Conhecia, por experiencia propria, até onde ia o odio de
+semelhante gente. Nem sequer punha em duvida, já se vê, que n'aquelle ensejo
+toda a gente lhe avaliava as intenções, supposto que ninguem houvesse dito
+ainda uma palavra fosse a quem fosse. Sabia, á força de triste experiencia, que
+não havia um unico acontecimento, por mais secreto que fosse, referente á sua
+vida, que, dando-se pela manhã, não andasse á noite na lingua de todas as
+mexeriqueiras. Maria Alexandrovna, pois, antevia apenas o perigo, esta casta de
+presentimentos, porém, que jamais a haviam enganado, não a enganariam ainda
+d'esta vez.</p>
+
+<p>Eis, effectivamente, o que succedera, e de que ella ainda não tinha
+conhecimento. Pela volta do meio dia, isto é, tres horas, minuto por minuto,
+depois de haver chegado o principe a Mordassov, corriam pela cidade uns boatos
+algo singulares. Qual teria sido o ponto de partida? Ninguem o sabia, mas caso
+é que se espalharam acto continuo.</p>
+
+<p>Afiançava toda a gente que Maria Alexandrovna já tinha promettido a mão da
+filha, da sua Zina, com vinte e tres annos e sem um kopek de dote, ao principe:
+que o Mozgliakov tinha sido posto a andar e que estava tudo resolvido e
+assignado.<span class="pn">{79}</span></p>
+
+<p>Qual era a causa de semelhantes boatos? Tão bem conheciam Maria Alexandrovna
+que lhe tivessem adivinhado, com tão perfeita unidade, os mais intimos
+pensamentos? Nem a inverosemelhança de um tal boato, visto como um projecto
+d'aquelle genero se não leva a effeito no espaço de uma hora, nem a falta
+evidente de todo e qualquer fundamento, pois ninguem sabia d'onde partira a
+noticia, puderam dissuadir os Mordassovenses. O mais surprehendente, era o
+haver-se principiado a espalhar o boato no proprio ensejo em que Maria
+Alexandrovna encetava aquella sua conversa com a Zina a semelhante respeito.
+Tal é o faro dos provincianos! O instincto dos novelleiros das cidadécas
+attinge por vezes as raias do maravilhoso. E todavia, o caso explica-se.
+Baseia-se no estudo intimo e perseverante do proximo. Todo o provinciano vive
+debaixo de uma redoma de vidro, como se disséssemos. É-lhe absolutamente
+impossivel esconder seja o que fôr aos seus honrados concidadãos. Sabem a seu
+respeito aquillo que elle é o proprio a ignorar. O provinciano, de sua
+natureza, devia de ser um psicologo profundissimo. E eis o motivo porque eu ás
+vezes pasmava sincéramente d'encontrar na provincia tão poucos psicólogos e
+tanto imbecil! Mas ponhamos isso de banda.</p>
+
+<p>Estoirou a noticia tal qual o raio. O casamento com o principe antolhava-se
+tão vantajoso a toda a gente, tão brilhante, que a face extranha d'aquelle
+negocio a todos escapou. Dava-se ainda uma circumstancia: A Zina era tão odiada
+ou mais ainda que a propria Maria Alexandrovna; e por quê? Ninguem o sabia.
+Entraria talvez em linha de conta a formosura da Zina, talvez pelo facto
+de<span class="pn">{80}</span> Maria Alexandrovna, apezar de todos os pezares,
+ser, muito mais do que a filha, da mesma massa das outras Mordassovenses.
+Ausentasse-se ella da cidade, e quem sabe, é possivel que deixasse saudades.
+Dava animação á sociedade mediante incidentes variados. Sem ella
+aborrecer-se-hiam. Por outro lado, a Zina, pela sua attitude, parecia pairar
+nas nuvens e não em Mordassov. Não era da mesma raça, e talvez, inconsciamente,
+até, tivesse uns modos demasiado altivos. E eis que esta mesma Zina, ácerca de
+quem corria tanta historia escandalosa, aquella soberbona, apparecia
+millionaria, princêsa e entrava no rol da aristocracia. Dentro de um ou dois
+annos, talvez, vem a enviuvar e casa para ahi com algum duque, ou algum
+general, e quem sabe, com o governador, e coincide exactamente o estar viuvo e
+o ser grande admirador da formosura o governador de Mordassov. Desde então virá
+a ser a primeira senhora da provincia, e um tal pensamento, só por si, era
+intoleravel, nem haveria noticia capaz de provocar tanta indignação em
+Mordassov.</p>
+
+<p>Estrugiam por todos os lados clamores de raiva. Diziam que era indigno; que
+o jarreta não tinha o juizo todo; que o tinham enganado, embaído; que urgia
+livrál-o da soffreguidão d'aquellas garras; que, apuradas as contas, era
+immoral,&mdash;uma ladroeira! Que não faltavam meninas valendo tanto como a
+Zina e em condições de casar com o principe.</p>
+
+<p>Todas estas exclamações e estas linguarices eram apenas supposições da parte
+de Maria Alexandrovna, e já era demais. Estava farta de saber que toda a gente
+se achava prompta a praticar o possivel e o impossivel, até, para se<span
+class="pn">{81}</span> oppôr a seus projectos. Pois não haviam confiscado o
+principe e não tinha agora que o reconquistar a unhas e dentes? E d'ahi, dado
+ainda o caso de que ella lograsse tornál-o a agarrar e trazêl-o outra vez para
+sua casa, não poderá comtudo têl-o preso a toda a hora. Em summa, quem é que
+lhe podia affiançar que hoje, ainda, dentro em duas horas, o côro solemne em
+peso das damas de Mordassov se não terá congregado na sua sala, e a pretexto de
+ordem tal que se torne impossivel recebêl-as? Se ella lhes fechar a porta,
+entram-lhe pela janella. Em conclusão, não se podia perder um instante, e
+todavia, nada estava feito ainda.</p>
+
+<p>De subito, eis que brota na mente de Maria Alexandrovna, e amadurece do
+mesmo jacto, uma ideia genial. Referir-nos-hemos á dita ideia em logar
+competente: n'este ensejo, a nossa heroina lá ia rodando a toda a pressa
+através das ruas de Mordassov, tremenda e inspirada, decidida a dar batalha
+para reconquistar o principe. Nem sequer sabia o alvitre que esposaria nem onde
+o iria encontrar; mas sabia com certeza que mais depressa devia afundar-se
+Mordassov do que falhar-lhe um unico de seus projectos.</p>
+
+<p>Do seu primeiro passo não podia saír-se melhor. Encontrou o principe na rua
+e carregou com elle para jantar.</p>
+
+<p>Se me perguntarem o modo porquê, cercada por tantas ciladas armadas contra
+si, conseguiu pôr o nariz a uma banda á Anna Nikolaievna, declaro que considero
+esta pergunta offensiva para Maria Alexandrovna. Deteve o principe no acto
+d'este estar á porta da casa da sua rival, e a despeito de tudo, a despeito até
+das objecções do proprio Mozgliakov, receoso de um escandalo, atirou com o<span
+class="pn">{82}</span> ginjinha para dentro do trem. Era n'isto exactamente que
+Maria Alexandrovna levava as lampas ás suas rivaes. Nos lances decisivos, não
+se detinha em presença de um escandalo, tendo como axioma que o exito a tudo
+justifica. Escusado será dizer que o principe não oppôz resistencia de maior, e
+como sempre esqueceu-se de tudo e ficou muito contente da sua vida.</p>
+
+<p>Ao jantar, não fez senão dar á lingua, muito alegre, a fazer trocadilhos, a
+contar anecdótas que nunca concluia e passando de uma para outra sem dar por
+isso. Tinha bebido tres copos de champanhe em casa de Natalia Dmitrievna. Ao
+jantar, bebeu mais alguns e ficou alegrinho. Maria Alexandrovna era a propria a
+lhe não deixar nunca o copo vazio.</p>
+
+<p>Eram irreprehensiveis as iguarias, aquelle ladrão do Nitichka esquecera-se
+de as chamuscar. A dona da casa desvelava-se em electrizar os seus hospedes com
+os enlevos da sua amabilidade. A Zina, comtudo, mantinha gélido silencio, e o
+Mozgliakov nem por isso estava nos seus dias. Comia pouco, estava muito
+preoccupado, a pensar; e, coisa que raras vezes lhe succedia, Maria
+Alexandrovna estava inquieta. A Nastassia Petrovna, mazomba, fazia ás escondidas
+signaes ao Mozgliakov e este sem dar por tal. A não serem Maria Alexandrovna e o
+principe, haveria descambado em jantar de enterro.</p>
+
+<p>E comtudo, Maria Alexandrovna encobre intima afflicção: assusta-a a Zina,
+com aquelles seus modos tristonhos, de olhos vermelhos. E demais, o tempo não
+sobeja, e Mozgliakov, esse obstaculo material, está para alli como um marco de
+pedra. Ergue-se da mêsa Maria Alexandrovna,<span class="pn">{83}</span> minada
+por funda inquietação. Mas qual não é o seu espanto, deixem-me assim dizer,
+quando vem ter com ella o Mozgliakov e lhe declara, que sente muito, mas que se
+vae retirar immediatamente!</p>
+
+<p>&mdash;Aonde é que vae, então? indaga ella, com simpatia.</p>
+
+<p>&mdash;Eu lhe digo, Maria Alexandrovna, enceta o Mozgliakov atrapalhado,
+aconteceu-me um caso um tanto esquisito... Nem sei até como lh'o diga... Mas,
+pelo amor de Deus, dê-me um conselho.</p>
+
+<p>&mdash;Que é, diga lá?</p>
+
+<p>&mdash;Meu padrinho, o Borodoniev... conhece, aquelle commerciante...
+encontrei-o hoje... está irritadissimo, dirigiu-me exprobações, diz que sou um
+soberbo. Com esta é a terceira vez que venho a Mordassov sem ir para sua casa.
+"Vem hoje, me disse elle, tomar uma chavena de chá commigo". São quatro horas
+em ponto, e elle toma o chá, á antiga, ahi pelas cinco horas, depois da sésta.
+Que quer que lhe eu faça... Eu avalio, Maria Alexandrovna... Mas colloque-se no
+meu logar! Foi elle que teve mão em meu pae que se queria enforcar, quando
+perdeu aquelle dinheiro do Estado!... Foi n'essa occasião, por signal, que elle
+insistiu em ser meu padrinho. Se fôr a effeito o meu casamento com Zina
+Aphanassievna, bem sabe que disponho apenas de cento e cincoenta almas, ao
+passo que elle é millionario, e mais que isso, até, segundo affirmam. Não tem
+filhos. Se eu estiver a bem com elle, pode deixar-me cem mil rublos. Ora elle
+está com setenta annos, lembre-se d'isto!</p>
+
+<p>&mdash;Ah! meu Deus! Mas então que é que o prende? Por que está para ahi a
+marralhar? exclama Maria Alexandrovna,<span class="pn">{84}</span> disfarçando
+a custo o contentamento. Vá-se embora, vá! Com essas coisas não se brinca! E
+era por isso então que estava tão absorto durante o jantar? Vá, meu amigo, não
+se demore! Mas devia de ter ido vêl-o esta manhã para lhe provar que aprecia a
+sua benevolencia. Ai! esta mocidade!</p>
+
+<p>&mdash;Mas, se Maria Alexandrovna tem sido a propria a arguir-me de
+semelhantes relações! Tudo era dizer-me que era um mujik, parente de
+taberneiros e agentes de negocio!</p>
+
+<p>&mdash;Ah! meu amigo, quanta coisa se diz sem pensar! Tambem sou sujeita a
+enganar-me.&mdash;Não me tenho na conta de infallivel. E d'ahi... não me
+recordo... mas... é possivel que eu me achasse numa tal disposição de
+espirito... em summa, o senhor não tinha ainda formulado o seu pedido.
+Certamente, que houve da minha parte egoismo maternal, mas agora devo encarar
+as coisas de um ponto de vista novo. Qual seria a mãe que m'o levasse a mal? Vá
+e não perca um instante. Passe a noite com elle... e oiça lá! Fale-lhe a meu
+respeito, diga-lhe que o tenho em muita conta, que sou muito sua amiga...
+Proceda com habilidade. Ah! meu Deus! Tinha-se-me varrido de todo. E era eu que
+lh'o devia ter lembrado.</p>
+
+<p>&mdash;Resuscitou-me, Maria Alexandrovna! exclama Mozgliakov encantado. E
+agora obedecer-lhe-hei em tudo e por tudo. E eu sem me atrever a falar-lhe
+n'isso! Pois bem, adeus! vou-me embora. Desculpe-me para com a Zinaida
+Aphanassievna. E d'ahi, hei de voltar.</p>
+
+<p>&mdash;Receba a minha benção, meu amigo. E não se esqueça de falar a meu
+respeito. Effectivamente, é um velho estimabilissimo.<span
+class="pn">{85}</span> Ha muito tempo que mudei de opinião a seu respeito. E
+demais, eu sempre o estimei na qualidade de Russo dos bons tempos, tão despido
+de artificios. Até mais ver, meu amigo, até mais ver!</p>
+
+<p>"Foi uma fortuna carregar com elle o demonio! Que estou dizendo, foi o
+proprio Deus que veiu em meu auxilio."</p>
+
+<p>Pavel Alexandrovitch estava já no vestibulo a enfiar a <em>chuba</em>, eis
+que rompe por alli dentro, saída não se sabe d'onde, a Nastassia Petrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Aonde vae? diz, agarrando-o pela mão.</p>
+
+<p>&mdash;A casa do Borodoniev, Nastassia Petrovna, a casa do meu padrinho.
+Coube-lhe a honra de me baptizar. Um velho rico, um padrinho de quem se herda,
+um homem que se deve amimar.</p>
+
+<p>&mdash;A casa do Borodoniev! Pois diga adeus, desde já, á sua noiva, disse
+com sequidão Nastassia Petrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Como assim?</p>
+
+<p>&mdash;Assim mesmo. Suppõe que a tem segura? Isso sim! Vae, mas é casar com
+o principe.</p>
+
+<p>&mdash;Com o principe. Que me diz, Nastassia Petrovna?!</p>
+
+<p>&mdash;Que me diz, quê?&mdash;Quer ver com os proprios olhos e ouvir com os
+proprios ouvidos? Pendure para ahi a <em>chuba</em>, e venha commigo.</p>
+
+<p>Pavel Alexandrovitch, aturdido, atira para o lado a <em>chuba</em> e
+deixa-se levar para o quarto escuro, cuja porta dá para a sala.</p>
+
+<p>&mdash;Mas que quer isto dizer! Nastassia Petrovna, não percebo patavina.</p>
+
+<p>&mdash;Perceberá assim que ouvir. A comedia não tarda a principiar.<span
+class="pn">{86}</span></p>
+
+<p>&mdash;Qual comédia?</p>
+
+<p>&mdash;Chiton! Não fale tão alto! Qual comédia? E é o senhor que paga as
+despêsas; andam a enganál-o; esta manhã, assim que o senhor saíu com o
+principe, a Maria Alexandrovna pôz-se a apoquentar de dôr d'ilharga a Zina,
+mais de uma hora, com o sentido em persuadil-a a aceitar para marido aquelle
+jarreta d'engonços. Dizia ella que não havia nada mais facil do que era o
+enredál-o. Propunha uns taes alvitres que a mim propria me causavam asco.
+Ouvi-os d'aqui, a Zina annuiu. E que cama lhe não fizeram ao senhor, ambas de
+duas! Tem-n'o na conta de um imbecil, e a Zina declarou formalmente que não
+casava com o senhor por coisa nenhuma d'este mundo. E eu, tão tola, que já me
+estava até enfeitando para pôr ao pescoço uma gravata côr de rosa!</p>
+
+<p>Mas escute! escute!</p>
+
+<p>&mdash;Se assim é,... é uma infamia! murmurou Pavel Alexandrovitch,
+esparvoado, fitando olho a olho a Nastassia Petrovna... </p>
+
+<p>&mdash;Mas escute! Vae ouvir o bom e o bonito!... </p>
+
+<p>&mdash;Escutar onde?</p>
+
+<p>&mdash;Debruce-se se ali n'aquella frincha da porta.</p>
+
+<p>&mdash;Mas... Nastassia Petrovna, eu sou lá homem que me ponha a escutar ás
+portas?!</p>
+
+<p>&mdash;Emprega bem o seu tempo! Aqui, meu paezinho, é preciso metter a honra
+na algibeira. Desde que cá veiu, escute... </p>
+
+<p>&mdash;Comtudo... </p>
+
+<p>&mdash;Se não quer, resigne-se a ficar a chuchar no dedo! E a mim que me
+importa? Eu com dó do senhor, e o senhor<span class="pn">{87}</span> com
+ceremonias! Será para mim que eu ando a trabalhar? Eu, por mim, já nem cá fico
+esta noite. </p>
+
+<p>Pavel Alexandrovitch, muito contra sua vontade, encosta o ouvido á fisga da
+porta. Referve-lhe o sangue nas arterias. Não percebe uma palavra de quanto em
+volta de si se está dando.<span class="pn">{88}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>VIII</h2>
+
+<p>&mdash;Com que, então, divertiu-se muito, principe, em casa da Natalia
+Dmitrievna? indaga Maria Alexandrovna, deitando olhar soffrego para a futura
+prêsa.</p>
+
+<p>(Enceta de proposito as hostilidades do modo mais innocente. De commovida,
+tem o coração aos pulos.)</p>
+
+<p>Depois de jantar, transferiram o principe para a sala onde este havia
+entrado pela manhã. O ginjinha, com lastro de seis copos de champanhe, já não
+conserva equilibrio. Em compensação, não cessa de badalar. Maria Alexandrovna
+percebe que é apenas uma excitação de momento e que o hospede, d'alli a nada,
+ferra comsigo a dormir. Cumpre pois aproveitar a occasião. Nota com jubilo que
+o voluptuario ginjinha dispara á Zina uns olhares de gula. Rejubilam os seus
+maternaes sentimentos.</p>
+
+<p>&mdash;Ex-trê-ê-ma-mente! e, não sabe? é uma mulher incom-pa-ra-á-vel...
+aquella Natalia Dmitrievna, uma incompa-ra-vel mulher!</p>
+
+<p>A despeito dos muitos cuidados, aquelles louvores tributados á rival fazem
+sangrar o ciume a Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Ora vamos, principe! exclama com os olhos a ferir lume, se essa sua
+Natalia Dmitrievna é uma mulher incomparavel, tapa-me a boca, mas é preciso que
+o principe conheça muito mal esta nossa sociedade! Não passa tudo de um alarde
+descarado de sentimentos ausentes, comédia, verniz, oiro ao de cima.<span
+class="pn">{89}</span></p>
+
+<p>Erga uma pontinha ás apparencias, e encontrará um verdadeiro inferno
+escondido por baixo das flores, uma ninhada de viboras promptas a tragál-o.</p>
+
+<p>&mdash;De-vé-ras! Estou pa-a-asmado!</p>
+
+<p>&mdash;Sou eu que lh'o digo! Ah! meu principe! Ora escute, é a Zina!
+Assiste-me o dever&mdash;e a tanto me vejo obrigada&mdash;de contar ao principe
+uma aventura ridicula que se deu a semana passada, com aquella Natalia
+Dmitrievna&mdash;lembras-te?&mdash;Sim, principe, com aquella Natalia a quem
+tanto admira.</p>
+
+<p>Ah! meu caro principe, affirmo-lhe que não sou mexeriqueira, mas devo
+contar-lhe isto unicamente para lhe dar uma amostra viva e irrisoria da nossa
+sociedade.</p>
+
+<p>Haverá quinze dias veiu visitar-me essa tal Natalia Dmitrievna. Estavam
+servindo o café, e eu tinha que sair. Lembro-me muito exactamente das pedras de
+açucar que ficaram no meu açucareiro de prata: estava cheio. Volto, e que hei
+de eu ver? Restavam apenas tres pedrinhas. Ora, a Natalia Dmitrievna tinha
+ficado sósinha! Que me diz a isto?</p>
+
+<p>Tem casa, dinheiro, tudo que lhe apetece... É comico e pequenino, pois não
+acha?&mdash;E por aqui já pode avaliar o que é esta nossa sociedade em
+Mordassov. </p>
+
+<p>&mdash;De-ve-ras?&mdash;É uma gulodice... sobre-natural! Mas como é que ella
+pôde engulir um açucareiro?</p>
+
+<p>&mdash;E ahi tem a sua mulher incomparavel, principe; se já se viu uma
+vergonha assim? Eu por mim estou que antes queria morrer, do que resolver-me a
+praticar um acto tão nojento!</p>
+
+<p>&mdash;Está c... claro!... está... claro!&mdash;Mas ainda assim&mdash;sempre
+lhe digo, que é uma linda mulher!<span class="pn">{90}</span></p>
+
+<p>&mdash;Quem? A Natalia Dmitrievna! Ora vamos, principe, ella o que é é uma
+pipa. Ah! principe, principe, que está dizendo? Sempre fiz outra opinião do seu
+bom gosto!</p>
+
+<p>&mdash;Está&mdash;c... claro&mdash;uma pipa!&mdash;Mas ainda
+assim&mdash;sempre lhe digo que é bem feita; e depois, aquella pequer... rucha
+que dansava... essa tambem é... bem feita.</p>
+
+<p>&mdash;A Sónitchka? Ora! Uma pequena! Tem apenas quatorze annos.</p>
+
+<p>&mdash;Está... claro!&mdash;mas ainda assim,... é tão leve... e com umas
+formas..., tão... geitozinhas!... E a outra que dan... sou com ella?</p>
+
+<p>&mdash;Ah! aquella serigaita d'aquella orphã, principe?</p>
+
+<p>&mdash;Está claro&mdash;orphã! É porquinha,&mdash;devia ao menos ter lavado
+as mãos,&mdash;mas é sedu-u-ú-ctora.</p>
+
+<p>E o principe, emquanto vae falando, não despega, com crescente avidez, o
+monóculo do semblante da Zina.</p>
+
+<p>&mdash;Mas... que... linda... me... nina! tartamudéa... meio estarrecido...
+</p>
+
+<p>&mdash;Zina, vê se tocas alguma coisa, ou antes... canta. Canta que é uma
+delicia, principe; chega a ser uma virtuose, ouso affirmál-o, uma verdadeira
+virtuose. E se soubesse, principe, prosegue a meia voz Maria Alexandrovna
+emquanto Zina se approxima do piano, com aquelle seu andar, lento e cadenciado,
+que põe num sobresalto o jarreta, e se soubesse a que ponto é amoravel, como é
+carinhosa para commigo! Que coração! Que sentimentos!</p>
+
+<p>&mdash;Está claro! Sentimentos! E se quer que lhe diga... ainda não conheci
+senão uma mulher que se lhe possa comparar como formosura, responde o principe
+a engulir a saliva, é a condessa Naniskara; que Deus tem. Já lá vae<span
+class="pn">{91}</span> ha trinta annos. Que mulher! Que maravilhosa formosura!
+Casou com o cozinheiro.</p>
+
+<p>&mdash;Com o cozinheiro, principe!?</p>
+
+<p>&mdash;Está claro&mdash;o cozinheiro, um francez, no estrangeiro.&mdash;E
+arranjou-lhe lá no estrangeiro um titulo de conde. Um homem muito instruido,
+com uns bigodinhos.</p>
+
+<p>&mdash;E como é que viviam, e onde, principe?</p>
+
+<p>&mdash;Está claro&mdash;viviam muito bem! E d'ahi, não tardou muito que se
+não apartassem.&mdash;Elle roubou-a e safou-se. Quer-me parecer que jogaram as
+cristas lá por causa de um môlho.</p>
+
+<p>&mdash;Que queres que eu toque, mamã?</p>
+
+<p>&mdash;Por que não cantas, antes? Se soubesse como ella canta, principe!
+Gosta de musica?</p>
+
+<p>&mdash;Está c... laro! Um encanto&mdash;um encanto! Gosto immenso de musica!
+Co... onheci muito Beethoven, no estrangeiro.</p>
+
+<p>&mdash;Beethoven! Ora imagina, filha, o principe conheceu Beethoven! clamou
+Maria <span class="typo" title="no original: Alexandrowna">Alexandrovna</span>, maravilhada. Ah! principe, pois devéras, conheceu
+Beethoven?</p>
+
+<p>&mdash;Está c... laro: Eramos intimos amigos. Tinha o nariz sempre atulhado
+de rapé... Que sujeitinho tão ratão!</p>
+
+<p>&mdash;Quem, Beethoven?</p>
+
+<p>&mdash;Está c... laro,&mdash;Beethoven? E não seria talvez Beethoven... mas
+sim outro qualquer. Ha muito allemão, por toda a parte... Que eu, afinal,
+parece-me que estou equivocado.</p>
+
+<p>&mdash;E que hei de eu cantar, mamã?</p>
+
+<p>&mdash;Ah, Zina! Canta-me aquella romança, não te lembras? Aquella que tem
+um accento tão cavalheiresco: a castellã<span class="pn">{92}</span> e o seu
+trovador&mdash;Ah principe, sou doida pelos assuntos cavalheirescos! Os
+castéllos! aquelle viver mediéval! Trovadores, arautos! Festas e torneios!...
+Vou te fazer o acompanhamento, Zina... Sente-se aqui, mais perto, principe! Ai!
+os castéllos, os castéllos!</p>
+
+<p>&mdash;Está c... laro! os castéllos... tambem gosto de cas... tellos, repete
+o principe assestando na Zina o olho solitario: Mas... santo Deus! que
+romança!... Estou a conhecêl-a... Ha que tempos... que tempos que a ouvi...
+recorda-me... ah! meu Deus!... </p>
+
+<p>Não me incumbo de dizer o que foi que succedeu ao principe, quando a Zina
+entrou a cantar. Cantava uma romança francêsa, muito antiga e que estivera em
+moda, nos seus tempos. A Zina cantou a primor. A voz pura de contralto ia
+direita ao coração. O lindo rosto, os magnificos olhos, os dedos fusiformes a
+voltarem as folhas, os bastos e negros cabellos, tão lustrósos, o seio
+afflante, a sua pessoa féra e linda, toda ella, concorria tudo a enfeitiçar o
+pobre do gêbo. Não despegou os olhos de cima d'ella emquanto ella esteve a
+cantar. Suffocava de commovido. Aquelle senil coração, esquentado pelo
+champanhe, pela musica e pelas reminiscencias, palpitava cada vez com mais
+força, e como não havia palpitado ha tanto tempo! Estava a ponto de chorar
+quando ella acabou.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! minha linda menina! exclamava, a beijar-lhe os dedos, estou
+encantado!&mdash;E só agora é que me lembro... mas... mas... Oh! minha linda
+menina!... </p>
+
+<p>O principe nem foi senhor de concluir.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna sentiu haver chegado o momento psicologico.<span
+class="pn">{93}</span></p>
+
+<p>&mdash;Para que anda a dar cabo de si, principe?&mdash;encetou com
+solemnidade. Quantos sentimentos, quantas forças vitaes, quanta riqueza moral
+lhe não resta ainda? E com tudo isso, foi emparedar-se por toda a vida num
+carcere! Fugir do mundo! Das amizades! É imperdoavel! Pense bem, principe!
+Encare a vida, como se dissessemos, com uns olhos limpidos! Lembre-se do
+passado, da sua aurea juventude, dos seus dias sem cuidados. Resuscite esse
+passado, resuscite-se a si proprio! Volte a viver entre a sociedade dos vivos:
+vá até ao estrangeiro... á Italia, á Hespanha, principe, á Hespanha. Precisava
+de um guia, de um coração que lhe tivesse amor, que o estimasse e que lhe fosse
+simpathico.</p>
+
+<p>Pois bem! O principe tem amigos, appelle para elles e virão em monte. Cá
+estou eu que seria a primeira a dar de mão a tudo, e a deitar a correr para
+acudir ao seu chamado! Não me esqueço da nossa antiga amizade, principe!
+Deixaria, até, meu marido, se estivesse mais nova, e fosse tão formosa como
+minha filha, fazia-me sua companheira, sua amiga, sua mulher, até, se o
+desejasse.</p>
+
+<p>&mdash;Estou certo de que, nos seus tempos, deve de ter sido uma mulher
+encantadora, disse o principe a assoar-se.</p>
+
+<p>Tinha os olhos arrazados de lagrimas.</p>
+
+<p>&mdash;A nós proprios sobrevivemos nos nossos filhos, principe, responde
+effusiva Maria Alexandrovna. Tambem eu tenho o meu anjo da guarda, a amiga dos
+meus pensamentos, do meu coração, principe! Rejeitou até agora sete pedidos de
+casamento, por se não querer apartar de mim.</p>
+
+<p>&mdash;E por conseguinte, vae comsigo quando me ac... com... ompanhar ao
+estrangeiro? Sendo assim, irei para o estrangeiro... <span
+class="pn">{94}</span> está resolvido... exclama o animadissimo
+principe.&mdash;Absolutamente!... E se eu pudesse lison... jear-me com a es...
+pe... rança... Mas é uma menina po... rtentosa, portentosa! Ah! minha linda
+menina!</p>
+
+<p>E o principe volta outra vez a beijar os dedos á Zina. Tentou até
+ajoelhar-lhe aos pés, o pobre do homem.</p>
+
+<p>&mdash;Então!... então, principe, ia dizendo que se pudesse lisonjeál-o a
+esperança?... agarrou no ar Maria Alexandrovna, sentindo brotar-lhe novo
+accesso de eloquencia. Que homem tão singular é o principe!... Não se considera
+então digno da attenção das mulheres! A formosura não consiste apenas na
+mocidade! Lembre-se de que é uma reliquia da aristocracia russa! É o
+representante dos mais refinados, dos mais cavalheirescos sentimentos, e das
+mais requintadas maneiras! E a Maria não amou o Mazeppa<a name="tex2html10"
+href="#foot188"><sup>[10]</sup></a> porventura? Li algures que Lauzun, um
+marquêz seductor da côrte de Luis... não sei quantos... já velho, conquistou
+uma das mais supinas beldades do seu tempo!... E demais, quem foi que lhe
+metteu em cabeça que já era velho? Quem se atreveu a afirmál-o? Homens como o
+senhor envelhecerão jámais, porventura? O principe, tão opulentamente dotado de
+sentimento, de alegria, de espirito, de força vital, de tão delicadas maneiras!
+Fosse o principe para ahi a qualquer estação balnear com uma mulher joven, com
+uma beldade como a Zina, para não irmos mais longe,&mdash;e eu lhe diria que
+effeito colossal não havia de produzir, o senhor, reliquia da nossa
+aristocracia;<span class="pn">{95}</span> ella, uma belleza de rainha! Ella,
+com aquelle seu pisar majestatico, de braço dado com o principe, a cantar n'uma
+sociedade aristocratica; o principe, pela sua parte, a fuzilar ditos de
+espirito! Era caso para acudirem os banhistas em pêso a fazer-lhe côrte! Dava
+brado por toda essa Europa! Pois teria a seu favor os jornaes, todos elles
+folhetins, e surgia um grito unanime: "Principe! Principe!"</p>
+
+<p>E o senhor a dizer: "Pudesse eu lisonjear-me com a esperança?"</p>
+
+<p>&mdash;Os jornaes... está claro, está claro!... Os folhetins... balbucia o
+principe, que não percebeu nem metade do aranzel de Maria Alexandrovna e cada
+vez está mais lamecha... Mas... minha rica menina... se se não sen... te fa...
+tigada, repita outra vez aquella romança que cantou inda'gora... </p>
+
+<p>&mdash;Ah! principe, ella sabe outras ainda mais bonitas! Conhece a
+<em>Andorinha</em>? Já a ouviu?</p>
+
+<p>&mdash;Está claro... mas já não me lembra... </p>
+
+<p>Não... não!... aquella que cantava ha pouco: não quero a <em>Andorinha</em>!
+Quero aquella tal romança: disse o principe a pedinchar como um pequerrucho.
+</p>
+
+<p>A Zina recommeça a alludida romança. O principe não pode ter mão em si e
+ajoelha-lhe aos pés a chorar... </p>
+
+<p>&mdash;Oh! minha formosa castellã! (Treme-lhe a voz de senilidade e de
+commoção). </p>
+
+<p>Oh! minha en... can... tadora castellã! Oh! minha querida menina! Quanta
+coisa me não veiu recordar do passado!... E eu, então, vivia esperançado em
+outro porvir. N'esse tempo cantava eu com a viscondessa... uns duêtos... <span
+class="pn">{96}</span> essa mesma romança... e agora... ah! Sei muito bem o que
+me espera!</p>
+
+<p>O principe proferiu aquella discurso em voz entrecortada e offegante,
+intoiriu-se-lhe a lingua... tornam-se inintelligiveis algumas palavras. Apenas
+se vê que atingiu o acume da commoção. Maria Alexandrovna apressa-se em lançar
+azeite no lume.</p>
+
+<p>&mdash;Principe! quer me parecer que se vae apaixonando pela Zina.</p>
+
+<p>A resposta do principe vae além de quanto ousaria esperar Maria
+Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Estou apaixonado por ella a ponto d'enlouquecer! exclama o velhito
+muito exaltado e sempre de joelhos.</p>
+
+<p>Estou prompto a sacrificar-lhe a minha vida... pudesse eu ao menos ter
+esperança... Mas levante-me, por quem é... sinto-me um tanto fraco... Se eu...
+ao menos, pudesse nutrir a es... pe... perança offerecia-lhe o meu coração... e
+então... eu... Havia de cantar-me todos os dias
+ro&mdash;ro&mdash;man&mdash;manças, e eu a olhar para ella sempre... sempre...
+sempre... ai, meu Deus!</p>
+
+<p>&mdash;Principe, principe! Está offerecendo a minha filha a sua mão,
+quer-m'a roubar, a mim, a minha Zina! O meu enlevo, o meu anjo, Zina! Não te
+deixarei nem por quanto ha! Zina! Venha alguem arrancál-a dos braços, dos
+braços de sua mãe; se é capaz!</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna atira-se á filha e estreita-a nos braços, comquanto se
+sinta repellida com força. A mamã exaggera um tanto ou quanto a comedia, e a
+Zina está em transes de asco. Mas não abre a bôca, é tudo quanto deseja Maria
+Alexandrovna.<span class="pn">{97}</span></p>
+
+<p>&mdash;Já rejeitou nove partidos só para se não apartar da mãe! clama.
+Agora, comtudo, o meu coração antevê o apartamento. Não ha ainda um instante,
+reparei que olhava para o principe de modo particularissimo... A sua
+aristocracia, a sua finura seduziram-n'a, principe!.. Oh! O principe
+apartar-nos-ha... estou-o a sentir.</p>
+
+<p>&mdash;A... dó... óro-a! murmura o principe a tremelicar como uma folha.</p>
+
+<p>&mdash;Com que então desamparas a tua mãe! exclama Maria Alexandrovna
+atirando-se outra vez ao pescoço da filha.</p>
+
+<p>A Zina, morrendo por pôr ponto a tão penosa scena, estende ao principe a
+linda mão, e faz esforço para sorrir. O principe agarra respeitoso n'aquella
+mão e por pouco a não come com beijos.</p>
+
+<p>&mdash;Agora, sim, agora é que eu principío a viver!... </p>
+
+<p>&mdash;Zina! diz com solemnidade Maria Alexandrovna: é o mais delicado, o
+mais nobre dos homens! Um cavalleiro da edade média! Ella bem o sabe, principe,
+e sabe-o até demais, por minha desgraça!... Ah!... Oxalá cá não tivesse
+apparecido... Entrego nas suas mãos o meu thesouro... Conserve-o, principe!...
+Escute os rógos de uma mãe! Qual será a mãe que poderá levar-me a mal a minha
+magua?!</p>
+
+<p>&mdash;Basta! mamã! murmura a Zina.</p>
+
+<p>&mdash;Ha de defendêl-a, principe, a sua espada ha de fulgir se as calumnias
+se atreverem a tocar-lhe!</p>
+
+<p>&mdash;Basta mamã, aliás... </p>
+
+<p>&mdash;Está c... claro... a minha espada!... murmura o principe. Quero que o
+ca... casamento se realize, quanto antes... agora... é que eu devéras prin...
+cipío a viver!... <span class="pn">{98}</span> Tenciono mandar desde já a
+Dur-kha-khanovo... Tenho lá uns brilhantes, quero pôl-os a seus pés.</p>
+
+<p>&mdash;Que ardor, que arrebatamentos, que nobreza de alma! E lembrar-me eu,
+principe, de que se estava a perder n'aquelle ermo!... Não me canço em
+repetir... Eu, quando me lembro d'aquella... infernal... toda eu me
+horrorizo!... </p>
+
+<p>&mdash;Mas que queria que eu fizesse?</p>
+
+<p>Tinha tanto... mê... mêdo! choraminga o principe. Queriam pregar commigo
+numa casa de saude... e tive... mê... mêdo!</p>
+
+<p>&mdash;N'uma casa de saude! Ah! que miseraveis! Que vileza, que
+crueldade!... Já me constou isso mesmo, principe! Mas essa gente está doida!
+Mas por quê... por quê?... </p>
+
+<p>&mdash;Se quer que... lhe diga, nem eu o sei, responde o ginjinha caindo
+derrengado de cansaço na poltrona. Foi assim&mdash;estava eu n'um ba... baile,
+e contei-lhe uma anecdóta.&mdash;Desagradou-lhes e ahi está... e resultou d'ahi
+uma historia... uma histo... ria.</p>
+
+<p>&mdash;E foi esse apenas o motivo?</p>
+
+<p>&mdash;Não foi, eu tambem tinha jogado as cartas com o principe Pedro
+Dmirititch, e perdido immenso... tinha dois reis e três... da... damas... quero
+dizer, três da... da... mas e dois r... reis... Não é isto... um r... r... rei
+e só... da... damas!</p>
+
+<p>&mdash;E foi só por isso!&mdash;por isso!&mdash;Infernalissima protervia!
+Não chore, principe! Não lhe torna a acontecer! D'aqui em diante, encontra-me a
+seu lado, meu principe!&mdash;Pois não me aparto da Zina, e veremos quem é que
+se atreve a abrir bocca. Sabe o que lhe digo, principe? Que o<span
+class="pn">{99}</span> seu casamento vae deixál-os consternados; vae
+envergonhál-os! Hão de ver que ainda é capaz... quero dizer... comprehenderão
+que tão peregrina beldade nunca iria casar com um mentecapto!&mdash;E agora,
+pode olhar para elles rosto a rosto, de cabeça erguida!</p>
+
+<p>&mdash;Está&mdash;claro... rosto a rosto!&mdash;murmura o principe fechando
+os olhos.</p>
+
+<p>&mdash;Está derreado de todo, diz comsigo Maria Alexandrovna; creio que
+estarei a soltar palavras ao vento.</p>
+
+<p>&mdash;Está commovido, meu principe, precisa de ir descançar, diz debruçada
+sobre elle com maternal sollicitude.</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... claro... encostar-me um bocadinho.</p>
+
+<p>&mdash;É tal qual... Estes abalos!&mdash;Espere ahi, vou acompanhál-o. Eu
+propria irei deitál-o, se for necessario... Por que é que está a olhar tanto
+para aquelle retrato, principe?</p>
+
+<p>É o retrato de minha mãe, não era uma mulher, era um anjo! Oh! oxalá ella
+ainda cá estivesse! Era uma santa, uma santa, sim, nem lhe posso dar outro
+nome!</p>
+
+<p>&mdash;Uma s... anta, é bonito!... Eu tambem tive mãe, uma senhora extrê...
+ê... ma... mente nut... trida... E d'ahi, não é isso que eu queria dizer...
+Estou um tanto fatigado... Adeus... minha linda menina... amanhã... em sum...
+ma... não importa... Até mais ver... até mais ver!... </p>
+
+<p>Tenta fazer um gesto gracioso, mas escorrega no pavimento encerado, e por
+pouco se não desiquilibra.</p>
+
+<p>&mdash;Cuidado, principe. Encoste-se ao meu braço! grita Maria
+Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Um encanto! um encanto! Agora sim, agora começo a viver!<span
+class="pn">{100}</span></p>
+
+<p>Ficou a sós a Zina. Sentia uma oppressão, um desprezo para comsigo mesmo.
+Com as faces a escaldar, as mãos contraídas, os dentes enclavinhados. Inérte, e
+a vergonha a arrazar-lhe os olhos de lagrimas... </p>
+
+<p>N'este lance, eis se abre a porta e investe pela sala dentro o
+Mozgliakov&mdash;fulvo de raiva!<span class="pn">{101}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>IX</h2>
+
+<p>&mdash;Ouvi tudo, tudo!</p>
+
+<p>A Zina a fitar-lhe uns olhos espantados.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! E são esses os seus sentimentos! exclama com a voz tomada. Até
+que por fim aprendi a conhecêl-a!</p>
+
+<p>&mdash;A conhecer-me? repete a Zina (fulgem-lhes os olhos, de colera).
+Atreve-se a falar-me assim?</p>
+
+<p>Dá um passo para o mancebo.</p>
+
+<p>&mdash;Tudo ouvi! insiste solemne o Mozgliakov, recuando porém um passo, mau
+grado seu.</p>
+
+<p>&mdash;Ouviu?&mdash;Espionou, diga! emenda a Zina a mirál-o com desprezo.</p>
+
+<p>&mdash;Espionei, seja? É verdade, decidi-me a praticar semelhante vilania!
+Mas, graças a ella... fiquei afinal sabendo que é a mais... nem sei como
+qualificar a sua... tartamudeava o mancêbo, de mais em mais atrapalhado sob o
+olhar da Zina.</p>
+
+<p>&mdash;E quando haja ouvido a tudo, que é que me poderá lançar em rosto?
+Quem lhe deu o direito de me accusar, de me falar n'esse tom?</p>
+
+<p>&mdash;Com que direito!... Eu!? E ainda m'o pergunta!? Intenta casar com o
+principe... e a mim não me assiste o direito...!... Pois não me deu a sua
+palavra?</p>
+
+<p>&mdash;Quando?</p>
+
+<p>&mdash;Quando, essa é melhor!</p>
+
+<p>&mdash;Esta manhã, sem irmos mais longe, o senhor a apertar<span
+class="pn">{102}</span> commigo e a minha resposta formal foi que nada lhe
+podia afirmar de positivo.</p>
+
+<p>&mdash;Mas não me rejeitou em absoluto, e por conseguinte, guardava-me para
+o não chega&mdash;poupava-me!... </p>
+
+<p>Contrahiu-se o semblante á Zina com dolorosa sensação, mas não se atenua o
+desprezo que sente para comsigo.</p>
+
+<p>&mdash;Se o não escorraçei, responde em voz grave e compassada, mas algo
+trémula, foi unicamente por compaixão. Supplicava-me que esperasse, que lhe não
+dissesse que não. "Vá aprendendo a conhecer-me"&mdash;disse o senhor um dia, "e
+quando se houver convencido de que sou um homem de caracter digno, é possivel
+que me não rejeite." Foram estas as suas palavras, no principio das nossas
+relações, não as poderá renegar: E agora atreve-se a dizer, que o guardo para o
+não chega! Pois não percebeu, esta manhã, o meu aborrecimento por ver como
+antecipava de quinze dias o seu regresso? E todavia, não lhe encobri esse meu
+enfado, e o senhor foi o proprio a notál-o, visto que me perguntou se me não
+agastava este seu regresso permaturo. Chama então poupar um homem o não lhe
+poder encobrir o fastio que alguem experimenta em ver esse homem? Ah! Eu então
+guardava-o para o não chega!? Não! eu dizia commigo, a seu respeito: "Se não é
+demasiado intelligente, é bondoso, quando menos"... agora, comtudo, fiquei
+sabendo&mdash;a tempo, felizmente&mdash;que tem tanto de mau como de tolo, e só
+o que me resta é desejar-lhe boa jornada! Adeus!</p>
+
+<p>A Zina volta-lhe as costas e caminha, de seu vagar, para a porta. Mozgliakov
+comprehende que tudo está perdido; referve-lhe a raiva.<span
+class="pn">{103}</span></p>
+
+<p>&mdash;Ah! com que, eu, então, sou tolo! vociféra; tolo!&mdash;Muito bem!
+Adeus! Mas, antes de me ir embora, saiba que a toda a gente ha de constar a
+infame comédia que aqui estão representando... tanto a senhora como sua mãe.
+Vou contar tudo a toda a gente, que embebedam o principe, que o subornam! Ha de
+ouvir falar de Mozgliakov!</p>
+
+<p>Estremece a Zina, vae para reponder, mas, volvido um instante de reflexão,
+encolhe os hombros, desdenhosa, e bate-lhe com a porta na cara. N'este
+conflicto, assoma aos hombraes Maria Alexandrovna. Ouviu as ultimas exclamações
+de Mozgliakov e adivinhou o restante. O Mozgliakov sem, se ir ainda embora! O
+Mozgliakov á ilharga do principe! O caso espalhado por toda a cidade pelo
+Mozgliakov! E todavia, é indispensável guardar segredo... Maria Alexandrovna,
+n'um relance, tudo calculou, a tudo preveniu, e urde um plano para aplacar o
+Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Que tem, meu amigo? diz estendendo-lhe a mão, cordial.</p>
+
+<p>&mdash;Como <em>meu amigo</em>! exclama o outro furibundo. E depois de tudo
+isto; meu amigo! <em>Morgen Früh</em><a name="tex2html11"
+href="#foot203"><sup>[11]</sup></a>, minha senhora. Metteu-se-lhe então em
+cabeça embaçar-me outra vez?</p>
+
+<p>&mdash;Sinto, devéras, acredite, sinto immenso vêl-o em um estado de
+espirito tão estranho, Pavel Alexandrovitch. Que linguagem! Nem sequer méde as
+palavras em presença de uma senhora!</p>
+
+<p>&mdash;Em presença de uma senhora!... Será quanto quiser... menos uma
+senhora. </p>
+
+<p>(Ignoro o que é que elle queria dizer, mas, com certeza, devia de ser um
+qualquer ultrage, de esmagar.) Maria<span class="pn">{104}</span> Alexandrovna
+com os olhos n'elle e um risinho de commiseração:</p>
+
+<p>&mdash;Sente-se, diz, com tristeza, apontando para a cadeira na qual, um
+quarto de hora antes, estivéra sentado o principe.</p>
+
+<p>&mdash;Mas no fim de contas, não me dirá, Maria Alexandrovna?... exclama
+Mozgliakov, desnorteado. Está-me tratando como se a senhora estivesse innocente
+e fosse eu o culpado! Não pode ser!... Vae muito além dos limites! É abusar da
+paciencia... de todo... digo-lh'isto!</p>
+
+<p>&mdash;Meu amigo... responde Maria Alexandrovna&mdash;e deixe-me dar-lhe
+ainda este titulo, pois neste mundo não terá melhor amiga...&mdash;o senhor
+está afflicto, excitado, ferido no coração, e devo pois relevar-lhe semelhantes
+desmandos de linguagem. Pois bem, vou abrir-me com o senhor. Tanto mais que eu,
+até certo ponto, não deixo de ter culpas para com o senhor. Sente-se, pois, e
+conversemos. A voz de Maria Alexandrovna assumiu o auge da meiguice, é
+compungida a sua expressão phisionomica.</p>
+
+<p>Senta-se Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Esteve escutando á porta, diz ella com uns modos de exprobação e de
+indulgencia, ao mesmo tempo.</p>
+
+<p>&mdash;Escutei, sim! E por que não? Nem que eu fôra um asno!... Se quer ao
+menos fiquei sabendo o que andava a maquinar contra mim, responde Mozgliakov,
+haurindo valôr da propria colera.</p>
+
+<p>&mdash;E resolver-se a senhora, com a sua educação, as suas maneiras, a
+representar semelhante papel! Santo Deus! Mozgliakov está aos pulos na cadeira.
+</p>
+
+<p>&mdash;Maria Alexandrovna, não posso ouvir-lhe uma palavra<span
+class="pn">{105}</span> mais! Melhor será que se lembre do que está fazendo, a
+despeito da sua educação e das suas maneiras, e diga-me se lhe assiste o
+direito de accusar a outrem!</p>
+
+<p>&mdash;Ainda uma pergunta, prosegue ella sem responder. Quem foi que lhe
+suggeriu a ideia de escutar á porta? Quem será que anda por aqui a espiar-me os
+passos? É isso o que eu não se me dava de saber!</p>
+
+<p>&mdash;Lá quanto a isso, tenha paciencia, não serei eu quem lh'o diga.</p>
+
+<p>&mdash;Muito bem, eu tratarei de o saber... Dizia eu, pois, Pavel, que não
+deixo de ter culpas para com o senhor, mas, se é que póde julgar-me com
+conhecimento de causa, verá que se tenho alguma culpa é a de lhe querer bem em
+demasia.</p>
+
+<p>&mdash;Com que então, quer-me bem?&mdash;Esta a caçoar commigo, e
+certifico-lhe que não torna a enganar-me; serei muito creança mas nunca até
+esse ponto!</p>
+
+<p>E elle, n'um sarilho na poltrona, e a poltrona a tremer.</p>
+
+<p>&mdash;Por quem é, meu amigo, socegue se é possivel, escute com attenção, e
+verá que ha de concordar commigo. Eu, a principio, tencionava contar-lhe tudo,
+pôl-o em dia com tudo sem que se lhe tornasse necessario aviltar-se ao ponto de
+escutar ás portas. Se o não fiz, foi unicamente porque o negocio se achava
+ainda em estado de projecto e podia mallograr-se. Bem vê a franqueza de que uso
+para com o senhor. E, acima de tudo mais, não se volte contra minha filha, que
+de nada tem culpa. É doida pelo senhor, e custou-me os olhos da cara
+arrancar-lh'a ao senhor e persuadil-a a acceitar o offerecimento do principe.
+</p>
+
+<p>&mdash;E eu, que com os meus proprios ouvidos, ouvi,&mdash;n'este<span
+class="pn">{106}</span> instante, provas d'esse tal louco affecto, replica
+ironico Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Muito bem! Mas em que termos se lhe dirigiria o senhor? É assim que
+se expressa um namorado? Será essa a linguagem propria de um homem de fino
+trato? Offendeu-a, irritou-a.</p>
+
+<p>&mdash;Como se fosse questão de fino trato, Maria Alexandrovna! Esta manhã,
+ambas me faziam boa cara, mas assim que eu saí e mais o principe, puzéram-me
+pelas ruas da amargura.&mdash;Estou sciente de tudo... tudo.</p>
+
+<p>&mdash;Bebido da mesma fonte ignobil, provavelmente, observou Maria
+Alexandrovna com risinho de desdem. É verdade, Pavel Alexandrovitch, púl-o
+pelas ruas da amargura e, confesso, Deus sabe quanto me custou. Quanto não tive
+eu que luctar com os proprios sentimentos! Mas bastará o facto de eu me ver na
+necessidade de o calumniar para lhe provar a difficuldade que eu encontraria em
+obter d'ella que desistisse do senhor! É possivel que não veja um palmo adeante
+do nariz? Se ella lhe não tivesse amor, eu teria alguma necessidade de appellar
+para calumnias? E ainda o senhor não sabe o melhor! Tive que valer-me da minha
+maternal auctoridade para lh'o arrancar a ella do coração! Em conclusão, depois
+de esforços inauditos, consegui alcançar uns arremedos de consentimento... E
+visto que esteve á escuta, não deixaria de notar que ella não me ajudou em
+presença do principe com uma palavra, sequer, ou com um gesto. Cantou para alli
+como um automato; em visiveis afflições toda ella, e foi por ter dó d'ella, que
+eu carreguei com o principe. Tenho a certeza, até, de que se pôz a chorar,
+assim que se apanhou sósinha.<span class="pn">{107}</span> O senhor bem viu,
+quando entrou... Mozgliakov recorda-se de que effectivamente a Zina estava a
+chorar quando elle entrou.</p>
+
+<p>&mdash;Mas a senhora, a senhora, por que é que está assim tão contra mim,
+Maria Alexandrovna? Por que é que me foi calumniar segundo é a propria a
+affirmál-o. </p>
+
+<p>&mdash;Ora, isso agora é outro negocio; e se o senhor m'o tivesse perguntado
+em termos logo ao principio, ha muito tempo que lhe teria dado resposta. Sim,
+tem razão, fui eu que fiz tudo, eu, sósinha: não esteja a accusar a Zina. Por
+que foi que o fiz? E eu respondo-lhe: primeiramente, por interesse da Zina. O
+principe é rico, representante de nobilississima casa, tem relações, e casando
+com elle a Zina faz um optimo casamento. Emfim, se elle morrer, o que não
+poderá tardar muito, pois todos nós, mais ou menos, somos mortaes,&mdash;n'esse
+caso, a Zina, nova e viuva, pertencendo á alta sociedade, fica riquissima e
+casa com quem quizer. Ora, está claro que irá casar com o homem a quem ama, e
+que foi o primeiro a quem teve amor, e cujo coração terá martirizado casando
+com o principe. E bastará o arrependimento... O acto que terá mais a peito será
+o de remediar a propria falta.</p>
+
+<p>&mdash;Hum! rosna Mozgliakov pensativo, a contemplar os bicos das botas.</p>
+
+<p>&mdash;Em segundo logar... mas serei breve a semelhante respeito, é possivel
+que me não comprehendesse. O senhor só o que sabe é ler o tal seu Shakspeare,
+fonte aonde exclusivamente vae beber os seus nobres sentimentos; e d'ahi, o
+senhor está tão moço! Eu, comtudo, sou mãe, Pavel Alexandrovitch. Caso a Zina
+com o principe um tanto por<span class="pn">{108}</span> causa d'elle tambem,
+visto que para elle o casamento pode representar a salvação! Ha tanto tempo que
+voto amizade áquelle honradissimo ancião, tão bondoso, cavalheiresco! Quero
+arrancál-o ás garras d'aquella infernal creatura que ha de pregar com elle na
+cova!... Invoco a Deus por testemunha em como foi patenteando á Zina todo o
+alcance do heroismo da sua dedicação que eu pude convencêl-a.</p>
+
+<p>Arrastou-a o irresistivel prestigio da abnegação. Ella propria tem o que
+quer que seja de cavalheiresco. Submetti-lhe o meu projecto sob colôr de um
+acto christão. Vaes ser, lhe disse eu, o amparo, a consolação, a amiga, a
+filha, a beldade, o idolo de um homem que talvez que nem um anno tenha de vida.
+Mas sequer ao menos, extinguir-se-ha no dôce calôr do amor. Estes seus ultimos
+dias parecer-lhe-hão um paraiso. Onde é que vê n'isto egoismo, Pavel? Não! e
+não! É um acto de irmã de caridade.</p>
+
+<p>&mdash;A senhora, então, procede desse modo, por amizade para com o
+principe... á laia de irmã de caridade? commenta o ironico Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Comprehendo essa sua pergunta, Pavel Alexandrovitch, é clarissima.
+Suppõe que estou fazendo uma confusão jesuitica dos interesses do principe com
+os meus. Pois bem, é possivel que me tivesse atravessado pela mente semelhante
+calculo, inconscientemente, porém, e sem resquicios de jesuitismo. Espanta-o
+esta minha franqueza? Peço-lhe apenas uma mercê, Pavel Alexandrovitch: não
+involva a Zina n'este negocio! Está pura que nem uma pomba. Não calcula; sabe
+apenas amar, pobre pequena! Se houve alguem que calculasse, esse alguem fui eu,
+e só eu! Indague, porém, sinceramente da sua consciencia e diga-me<span
+class="pn">{109}</span> quem seria que no meu logar não haveria calculado?
+Calculamos os nossos interesses, as nossas mais generosas acções, até, sem
+darmos por isso, instinctivamente. Pois; se enganam, quantos alarmam que
+procedem movidos por pura nobreza de alma. Eu, porém, não quero enganál-o.
+Confesso que calculei. Mas, sempre quero que me diga, seria levando em vista o
+meu interesse pessoal? A mim, Pavel Alexandrovitch, que mais me será preciso?
+Vivi o meu seculo<a name="tex2html12" href="#foot413"><sup>[12]</sup></a>,
+calculei para bem d'ella, do meu anjo, da minha filha: e qual será a mãe que
+m'o lance em rosto?</p>
+
+<p>As lagrimas inundavam o rosto de Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>Pavel Alexandrovitch tem escutado com pasmo semelhante confissão:
+latejam-lhe as palpebras, esforça-se por comprehender.</p>
+
+<p>&mdash;Qual seria a mãe, sim! diga lá!... pergunta elle, em conclusão.</p>
+
+<p>Mas cae em si, acto continuo, e:</p>
+
+<p>&mdash;Canta lindamente, Maria Alexandrovna, mas tinha-me dado a sua
+palavra, tinha-me alentado a esperança... Como posso eu supportar semelhante
+coisa? Terei que engulir a propria vergonha!</p>
+
+<p>&mdash;E acredita talvez que não pensei no senhor, meu querido Pavel? Pelo
+contrario, em todos os meus calculos, o senhor tinha a sua parte. Ouso dizer,
+até, que foi por sua causa que eu emprehendi este negocio.</p>
+
+<p>&mdash;Por minha causa! exclama Mozgliakov, desnorteado, d'esta vez. Como
+assim?! </p>
+
+<p>&mdash;Meu Deus! Como é que se pode ser tão simples, ter<span
+class="pn">{110}</span> vistas tão limitadas! exclama Maria Alexandrovna
+erguendo as mãos ao ceu. Esta mocidade! O tal Shakspeare! E ahi tem o que elle
+lhe arranjou, aquelle sonhador, aquelle phantasista! Viver da intelligencia e
+dos pensamentos alheios! E o senhor a perguntar&mdash;<em>meu bom Pavel
+Alexandrovitch</em>, qual é n'este caso o seu interesse. Para maior clareza,
+consinta-me uma leve digressão. A Zina ama-o, é incontestavel Mas tenho notado
+que, a despeito do seu manifesto amor, o caracter de Pavel Alexandrovitch, as
+suas aspirações lhe tem incutido uma tal ou qual desconfiança. Por vezes, e
+como que de caso pensado, contêm-se, é fria para com o senhor. Eis o resultado
+das reflexões que a levaram a desconfiar. Pois não reparou tambem n'isto que
+lhe estou dizendo, Pavel Alexandrovitch?</p>
+
+<p>&mdash;Reparei, sim, hoje ainda. Mas que quer dizer com isso, Maria
+Alexandrovna? </p>
+
+<p>&mdash;Bem vê, o senhor foi o proprio a reparar n'isso: logo, não me
+enganei. E acima de tudo, foi a estabilidade do seu caracter, a sua constancia
+o que mais duvidas lhe incutiu. Sou mãe, e não havia de conhecer o coração de
+minha filha! Ora imagine agora que, em vez de entrar aqui com exprobações, e
+até com injurias, em vez de a irritar, de a offender, de a melindrar, a ella
+tão bella, tão pura e soberba, e por esse facto, a despeito ainda da sua
+vontade, ir tornar-lhe mais firme a desconfiança com respeito ás suas
+inconstancias; supponha que acceitava com brandura a noticia, com lagrimas de
+magua, com desespero, até, mas com dignidade... </p>
+
+<p>&mdash;Hum!</p>
+
+<p>&mdash;Mau! Não me interrompa. Pavel Alexandrovitch. Quero<span
+class="pn">{111}</span> expôr-lhe um quadro que possa ferir-lhe a imaginação.
+Ora imagine que ia ter com ella e lhe dizia: "Zina, amo-te mais que a propria
+vida, mas afastam-nos umas razões de familia. Comprehendo essas razões:
+trata-se da tua ventura e não me atrevo a insurgir-me contra ella. Perdôo-te,
+Zinaida; sê feliz se puderes!" E dito isto, lhe lançava uns olhos, uns olhos de
+cordeiro nas vascas da agonia, se me é licita a expressão. Ponha tudo isto na
+sua ideia e calcule o effeito que haveria produzido uma scena assim no coração
+della!</p>
+
+<p>&mdash;Pois sim, Maria Alexandrovna, supponhamos tudo isso&mdash;É certo que
+eu podia ter me expressado d'esse modo... mas nem por isso deixaria de voltar
+pelo mesmo caminho com um não pelas ventas.</p>
+
+<p>&mdash;Não, não, e não, meu amigo. Não me interrompa! Quero acabar de
+pintar-lhe o quadro para que no animo lhe produza uma impressão nobre e
+completa. Imagine, pois, que a vinha a encontrar; d'ahi a tempos, na alta
+sociedade, num baile illuminado <em>à giorno</em>, ao som de uma musica
+enebriante, no meio de um sem numero de beldades, e, no melhor da festa tão
+deslumbrante, o senhor, para alli, sósinho e triste, a scismar, pállido,
+encostado para alli, algures, a uma columna, mas de modo a dar nas vistas; o
+senhor a seguil-a com os olhos na vertigem da dansa; ao pé do senhor a vibrarem
+os divinos accordes de Strauss. Fuzila por todos os lados nas conversas o
+espirito da alta sociedade; e o senhor sósinho, enfiado, melancholico, immerso
+na propria paixão.</p>
+
+<p>Considere&mdash;em que estado ficará a Zina quando o vir! E com que olhos o
+não ha de ella contemplar! "E eu," pensará<span class="pn">{112}</span> ella,
+"que duvidei d'aquelle homem! Tudo me sacrificou! Despedaçou o proprio coração
+por minha causa!" Certamente, o seu amor de outr'óra resuscitar-lhe-hia lá
+dentro com força irresistivel.</p>
+
+<p>Deteve-se Maria Alexandrovna para cobrar alento. Mozgliakov a barafustar na
+cadeira, que por pouco não estoira de todo. Maria Alexandrovna prosegue:</p>
+
+<p>&mdash;A Zina, por causa da saude do principe, parte para o estrangeiro,
+para Italia ou para Hespanha, o paiz das murtas, dos limoeiros, do azulino céu
+do Guadalquivir, o país do amor, o país onde se não pode viver sem amar, onde
+as rosas e os beijos adejam por assim dizer no ar. E o senhor vae atrás d'ella,
+compromette a sua situação, as suas relações, tudo!... E principia então o seu
+romance de amor: amor, mocidade, Hespanha... Deus meu!... É certo que será
+platonico o seu amor, puro... mas o senhor... em summa, enlanguescem a
+contemplarem-se um ao outro... Espero que me haverá comprehendido, meu amigo?&mdash;Não
+faltarão, por lá, entes soêzes, vis, miseraveis para affirmar que
+não foi a lembrança do seu parentesco com o velho que o arrastou ao
+estrangeiro. Muito de proposito me referi ao platonismo do seu amor; não ignoro
+que haverá quem lhe atribua differente significação.</p>
+
+<p>Mas sou mãe, Pavel Alexandrovitch e seria incapaz de o impellir para mau
+caminho!... É claro que o principe os não poderá vigiar a ambos; isso que
+importa, comtudo? Poder-se-ha fundar n'isso semelhante accusação?</p>
+
+<p>Até que por fim, morre o principe abençoando o proprio destino. Ora diga-me
+quem é que depois ha de casar com a Zina, a não ser o senhor? É parente tão
+afastado do<span class="pn">{113}</span> principe que o parentesco nunca
+poderia representar um impedimento ao consorcio. Acceita-a, joven, rica,
+princêsa, e em que ensejo? Quando os mais nobres senhores se poderiam ufanar da
+sua alliança! Por causa d'ella, entra na mais alta sociedade; obtêm um posto de
+summa importancia, promoções. Diz o senhor que dispõe de cento e cincoenta
+almas? Mas depois será rico. O principe não deixará de fazer um testamento nos
+termos, por isso lhe respondo eu. E em conclusão, o principal, é o ella estar
+segura dos seus sentimentos e o senhor vir a ser para ella um heroe pela
+virtude e pela abnegação. E ainda me pergunta, onde vae n'isto o seu interesse?
+Tem-n'o deante dos olhos, a contemplál-o, a rir-se para o senhor, e a
+dizer-lhe: "Aqui me tens!" Ora vamos, Pavel Alexandrovitch!... </p>
+
+<p>&mdash;Maria Alexandrovna! exclama Pavel Alexandrovitch, a tudo fiquei
+percebendo, agora! Portei-me como homem grosseiro, vil, reles!... </p>
+
+<p>Levanta-se com vivacidade e puxa pelos cabellos ás mancheias.</p>
+
+<p>&mdash;E como homem inconsiderado, accrescenta Maria Alexandrovna,
+inconsiderado, eis o que o senhor é!</p>
+
+<p>&mdash;Sou um asno, Maria Alexandrovna! exclamou com desespero o môço. E
+agora, está tudo perdido! E eu que a amava com loucura!</p>
+
+<p>&mdash;É possivel que não esteja tudo perdido, declara Madame Moskalieva,
+baixinho, como quem está reflectindo.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! se fosse possivel! Ajude-me! aconselhe-me! Valha-me! E pôs-se a
+chorar o Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Meu amigo, diz em apiedada voz Maria Alexandrovna e estende-lhe a
+mão,&mdash;praticou esse seu acto no ardor do<span class="pn">{114}</span> seu
+affecto, estava exasperado, nem sequer tinha consciencia do que fazia. E ella
+não deixará de o avaliar.</p>
+
+<p>&mdash;Amo-a com loucura e estou prompto a sacrificar-lhe seja o que for!
+clama o Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Ora escute, justifica-lo-hei aos olhos d'ella.</p>
+
+<p>&mdash;Maria Alexandrovna!</p>
+
+<p>&mdash;Sim, fica tudo por minha conta: collocál-os-hei em presença um do
+outro. E o senhor diz-lhe tudo tal qual eu acabo de lh'o dizer.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! meu Deus! Que bondade a sua, Maria Alexandrovna!... Mas... não
+seria possivel procedermos a isso desde já?</p>
+
+<p>&mdash;Deus nos defenda! Sempre é muito estouvado, meu amigo! Ella, então,
+que é tão soberba! Ia tomar isso como uma nova insolencia, um ultraje, até! Eu
+arranjarei tudo, e não ha de passar d'amanhã; agora, comtudo, vá se embora, vá
+até casa do tal negociante, ou para onde lhe apetecer... Ou, se, antes quer,
+volte esta noite, mas não serei eu que lh'o aconselhe.</p>
+
+<p>&mdash;Vou m'embora! vou m'embora!</p>
+
+<p>Meu Deus! Resuscitou-me! Mas uma pergunta, ainda: e se o principe não morre
+tão cedo?</p>
+
+<p>&mdash;Valha-nos Deus! Sempre é muito ingenuo, meu caro Pavel! O senhor o
+que deve é rogar a Deus que conserve os dias d'aquelle vélhito, todo elle
+bondade, carinho, cavalheirismo! Devemos desejar-lhe longa vida, de todo o
+coração! E eu serei a primeira; noite e dia, com lagrimas, a rezar pela ventura
+de minha filha! Mas, ai de mim! A saude do principe, coitado, quer me parecer
+que está muito abalada! E demais, elle não deixará de fazer a sua<span
+class="pn">{115}</span> visita á capital, de levar a Zina aos bailes, e receio
+muito, muito, acredite, que isso concorra a dar cabo d'elle! Orêmos, porém, meu
+caro Pavel, e quanto ao mais, entreguêmo-nos nas mãos de Deus! Espére, arme-se
+de paciencia, seja viril, e viril, acima de tudo! Nunca puz em duvida a nobreza
+dos seus sentimentos... Aperta-lhe com força as mãos, e o Mozgliakov sáe do
+aposento em bicos de pés.</p>
+
+<p>&mdash;Até que em fim! Vi-me livre de um imbecil! diz com ares de triumpho.
+E agora vamos aos outros... Abre-se a porta e entra por ali dentro a Zina. Vem
+mais pallida do usual; fulgem-lhe os olhos com febril clarão.</p>
+
+<p>&mdash;Mamã, veja se acaba com isto, que eu estou, que já nem posso mais; é
+tão nojento tudo isto que me vem tentações de fugir por ahi fora. Não me faça
+padecer por muito mais tempo, não me irrite! Este lodaçal causa-me <span class="typo" title="no original: orgulho">engulho</span>,
+entendeu?</p>
+
+<p>&mdash;Zina, que tens tu, meu anjo?... Estiveste escutando á porta! exclama
+Maria Alexandrovna olhando de fito para a filha.</p>
+
+<p>&mdash;Escutei, é verdade.&mdash;Veja se m'o quer lançar em rosto, como o
+fez aquelle imbecil? Juro-lhe que se porfiar em obrigar-me a representar
+semelhante papel em tão vergonhosa comedia, renuncío a tudo, e acabo com tudo,
+com uma só palavra. Não ha duvida que me resolvi a prestar-me á principal
+vilania, mas foi por me não conhecer a mim mesma; atabáfo com semelhante
+vergonha!</p>
+
+<p>E sae atirando com a porta.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna segue-a com a vista e fica a scismar.</p>
+
+<p>"É andar ligeira, depressa! É de si que depende tudo,<span
+class="pn">{116}</span> e em si que consiste o maior perigo, e se esses
+miseraveis porfiarem em se colligar contra nós, se principiam para ahi a dar á
+lingua, tudo está perdido! E ella não poderá resistir contra tantas arrelias e
+acabará por entregar-se mediante uma rejeição. Custe o que custar e sem demora,
+urge carregar para o campo com o principe. Prego commigo lá, n'um pulo, e
+carrégo com aquelle estafermo do senhor meu esposo para aqui. Sequer ao menos
+sirva para alguma coisa! E assim que o outro accordar, safamo-nos."</p>
+
+<p>Toca a campainha.</p>
+
+<p>&mdash;E então! a parêlha? pergunta ao creado que entra.</p>
+
+<p>&mdash;Está prompta, ha que tempos, responde o criado.</p>
+
+<p>(Maria Alexandrovna mandou pôr o trem no acto de acompanhar o principe ao
+quarto d'este.)</p>
+
+<p>Veste-se á pressa e corre ao quarto da Zina para lhe transmitir o seu plano
+e dar-lhe as devidas instrucções. A Zina, comtudo, nem lhe quer dar ouvidos,
+debruçada no leito com o rosto enterrado no travesseiro ensopado de lagrimas; a
+arrancar com as niveas mãos os compridos cabellos; tem os braços nus até ao
+cotovêlo. Saccóde-a, a revézes, um estremeção. A mãe dirige-lhe a palavra, sem
+que a Zina consinta em erguer a cabeça.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna insiste por instantes, depois, sae, inquietissima. Sobe
+para a carruagem e recommenda que espertem a parelha.</p>
+
+<p>"O peor de tudo", vae ruminando comsigo, "é a Zina ter ouvido a conversa que
+eu tive com o Mozgliakov. Empreguei com ella e com elle quasi que os mesmos
+argumentos; ella é orgulhosa e offender-se-hia, talvez... Hum! o que a tudo
+sobreleva, é a necessidade de por mãos á obra,<span class="pn">{117}</span>
+antes de que conste seja o que fôr! Que desgraça! E se eu, para mais ajuda, não
+fosse encontrar em casa aquelle meu imbecil?!"</p>
+
+<p>Ante esta hypothese, enraivece-se, toma-se de um rancor que nada vaticina de
+bom para Aphanassi Matveich. E Maria Alexandrovna impaciente, a esfervilhar!
+</p>
+
+<p>Os cavallos despedem a galope.<span class="pn">{118}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>X</h2>
+
+<p>A carruagem não corre, vôa.</p>
+
+<p>Dissémos que, n'aquella mesma manhã, emquanto ella andava em procura do
+principe, por todos os cantos da cidade, já havia accudido á mente de Maria
+Alexandrovna um alvitre genial: era o confiscar por sua vez o principe quanto
+antes, e pregar com elle no campo;&mdash;n'aquella aldeia onde floria em paz o
+beatifico Aphanassi Matveich. Ia pois realizar aquella sua inspiração. Mas não
+encubramos ao leitor que principiava a sentir-se atribulada por uma inquietação
+inexplicavel. Aos proprios heroes acontece outro tanto, e no ensejo,
+justamente, em que estão prestes a atingir seus fins. Advertia-a um qualquer
+instincto de que havia perigo na permanencia em Mordassov.</p>
+
+<p>"Uma vez no campo, vire-se tudo isto pés, com cabeça, que a mim tanto se me
+dá!"</p>
+
+<p>É certo, que ainda no proprio campo, não ha tempo para perder: tudo poderá
+acontecer, tudo... E n'essa conformidade, Maria Alexandrovna acha-se resolvida
+a concluir immediatamente o consorcio. O cura da aldeia procederá á ceremonia
+na propria residencia. D'alli a dois dias, no outro dia, talvez, em caso de
+urgencia. Quantos casamentos se não tem visto, aldravados para alli em duas
+horas! Quanto ao principe, é levál-o a acceitar como necessidade de bom sizo
+uma tal precipitação, semelhante ausencia de toda e qualquer festa. "Será mais
+decente e mais<span class="pn">{119}</span> nobre"... Poder-se-hia até
+seduzil-o pelo lado romanesco do negocio e fazer-lhe vibrar assim a fibra
+sentimental do coração. Enebriál-o-ha, se tanto fôr necessario, mantêl-o-ha
+n'aquelle estado de embriaguez, e a Zina ha de ser princêsa.</p>
+
+<p>Se houver algum escandalo lá por Petersburgo ou por Moscou entre a parentéla
+do principe, consolações não hão de faltar. Em primeiro logar, são coisas que
+ainda estão para vir; em segundo, Maria Alexandrovna está convencida de que, na
+alta sociedade, nada se faz sem escandalo, e muito mais tratando-se de
+casamento: que é estilo. Mas os escandalos da alta sociedade, a seu ver, tem
+uma côr mui particular de grandiosidade, no genero do <em>Monte-Christo</em> e
+das <em>Memorias do Diabo</em>. Finalmente, a Zina bastar-lhe-ha mostrar-se, e
+a mãe ajudál-a com seus conselhos, e toda a gente ficará desarmada,
+acto-continuo, entre todas aquellas condessas e princêsas, não havendo uma só
+que seja capaz de resistir á mordassoviana habilidade de Maria Alexandrovna,
+sósinha contra todas ellas juntas ou contra cada uma em particular.</p>
+
+<p>E é animada por semelhante pensamento que Maria Alexandrovna vem ter com
+Aphanassi Matveich o qual lhe é necessario, segundo seus planos.</p>
+
+<p>Effectivamente, levar o principe para o campo é levál-o para casa de
+Aphanassi Matveich com quem o principe é possivel não se dar lá muito de travar
+conhecimento: mas se Aphanassi Matveich fôr o proprio a convidál-o, o caso muda
+de figura. E demais, a apparição de um chefe de familia, de edade veneranda, de
+gravata branca, casaca, chapeu na mão, acorrendo expressamente das suas
+propriedades, á noticia de que se acha em Mordassov o principe<span
+class="pn">{120}</span> K... é caso para produzir optimo effeito no amor
+proprio d'aquelle ginjinha.</p>
+
+<p>Até que por fim, havendo tragádo três verstas a carruagem, o cocheiro Safron
+pára junto ao patim de um comprido edificio com um unico andar, casarão de
+madeira, com uma extensa fieira de janélas, e envolto n'umas tilias venerandas.
+É a residencia estável de Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>Já se acham illuminadas as janélas.</p>
+
+<p>&mdash;Onde está o manequim? clama Maria Alexandrovna caíndo como uma
+trovoada, no vestibulo. Que faz aqui esta toalha? Ah! estava aborrecido, e
+ainda não saiu do banho! E sempre n'aquelle fadario do chá! E então! Para que
+estarás tu para ahi a esbogalhar esses olhos, meu idiota incuravel? Por que é
+que se não corta esse cabello?!</p>
+
+<p>Grichka! Grichka! Por que é que não cortaste o cabello ao <em>barine</em>
+conforme te dei ordem, a semana passada?</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna premeditára operar em casa de Aphanassi Matveich uma
+entrada menos violenta. Mas ao vêl-o entretido a sorver o seu cházinho, com
+toda a sua pachorra, não foi senhora de sopitar a indignação. Para ella,
+tamanhos cuidados, e para elle, para aquelle ente inutil, aquella paz podre!
+Semelhante contraste chóca de modo cruel Maria Alexandrovna. E todavia, o
+manequim, ou para nos expressarmos com mais urbanidade, aquelle a quem applicam
+o ápodo, está sentado em frente do samovár; inerte, bôcca e olhos escancarados,
+petrificado, quasi, pela apparição da consorte. O adormecido vulto do Grichka
+assoma ao vestibulo. O Grichka tosqueneja os olhos durante toda esta scena.</p>
+
+<p>&mdash;Se elle não deixa... E ahi esta porque é que o não<span
+class="pn">{121}</span> fiz, profere em voz encatarroada e socarrôna. Peguei na
+tesoira para ahi umas dez vezes, e a dizer-lhe: A <em>barinia</em> não tarda
+por ahi e apanhamos ambos a nossa conta!&mdash;E vae elle e
+diz-me:&mdash;Não&mdash;espera ahi: quéro que me frizes no domingo; e é preciso
+para isso que o cabello tenha comprimento.</p>
+
+<p>&mdash;Muito me contas: Com que então elle, friza-se? Inventaste então essa
+obra dos frizados, assim que eu virei costas?</p>
+
+<p>Que termos são esses? Cuidas talvez que embellezas assim essa tua cabeça de
+idiota? Santo Deus! Que desordem que por aqui vae! E que cheiro! Não me dirás,
+miseravel, d'onde provém semelhante cheiro? vociféra a consorte a crescer de
+mais em mais ameaçadora para o innocente e assarapantado de todo Aphanassi
+Matveich.</p>
+
+<p>&mdash;Ah... mi-minha mãezinha, balbucía o esposo sem se erguer e
+desfechando sobre o seu generalissimo uns olhos assustados e suplices, mi...
+mi... minha mãezi... </p>
+
+<p>&mdash;Quantas vezes não tenho eu tentado encaixar-te n'essa cabeça de burro
+que não sou tua mãezinha, pedaço de pygmeu? Como te atreves a tratar por
+semelhante nome uma senhora nobre cujo logar é na alta sociedade, e não ao pé
+de um aguadeiro da tua laia?</p>
+
+<p>&mdash;Mas, Maria Alexandrovna, tu com tudo isso não deixas de ser minha
+mulher em face das leis! e eu... estou-te falando... na qualidade de marido!
+Objecta Aphanassi Matveich, levando a um tempo a mão aos cabellos para os
+defender.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Carranca! Cêpo! Se já se viu! Mulher d'elle em face das leis!...
+Que quererá dizer uma mulher em face<span class="pn">{122}</span> das leis?
+Haverá na alta sociedade alguem que empregue semelhante termo de
+seminarista:&mdash;em face das leis?&mdash;E quem te deu o atrevimento de me
+recordares que sou tua mulher, a mim que faço quanto posso para o esquecer? E
+para que estavas tu a tapar a cabeça com as mãos?</p>
+
+<p>Olhem para este cabello! Todo encharcado! Não está enxuto estas tres horas
+mais chegadas! Como hei de eu carregar com elle? Haverá meio de o arrancar
+d'aqui?&mdash;Que hei de eu fazer? Maria Alexandrovna péga ás carreiras pela
+casa fóra, a estorcegar as mãos. A desgraça é nulla e facil de remediar, não ha
+duvida, mas se ella não pode ter mão n'aquelle seu genio imperial, impaciente
+em presença do minimo impecilho! Sente que precisa de desabafar a colera na
+pessoa de Aphanassi Matveich, visto como a sua habitual tirannia desandou para
+si em necessidade. E depois, toda a gente sabe o acervo de inopinadas
+grosserias de que são capazes, longe das vistas dos mirones, uns certos entes
+delicados e pechósos da sociedade mais graúda. Aphanassi Matveich, estupido e
+tremelica, cança a vista a seguir com os olhos as evoluções todas da consorte.
+</p>
+
+<p>&mdash;Grichka, exclama esta por fim, traze já, já, ao <em>barine</em> tudo
+que é preciso para se vestir de ceremonia, calça, casaca, gravata e colete,
+brancos. Vá, despacha!</p>
+
+<p>Onde iria parar a escova do cabello?</p>
+
+<p>&mdash;Mas se eu acabo de sair do banho, minha mãezinha, vou apanhar algum
+resfriamento... </p>
+
+<p>&mdash;Qual historia!... </p>
+
+<p>&mdash;Estou com a cabeça encharcada!... </p>
+
+<p>&mdash;Ênxuga-se. Grichka, escova o cabello ao <em>barine</em>, até<span
+class="pn">{123}</span> que enxugue. Com mais força... mais... ainda mais...
+Assim!</p>
+
+<p>O fiel e zeloso Grichka esfréga, com quanta força tem, o seu <em>barine</em>
+a quem, para mais commodidade, agarrou pelo cachaço, encostando-o para trás no
+divan.</p>
+
+<p>Aphanassi Matveich por pouco não desata a chorar.</p>
+
+<p>&mdash;E agora, em pé!... Vê se o levantas, Grichka, dá cá a pomada... </p>
+
+<p>&mdash;Vá, abaixas-te ou não, miseravel!</p>
+
+<p>Abaixa-te, já te disse, meu papa jantares.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna com as proprias mãos besunta a grenha ao marido, puxando
+sem dó nem consciencia pelos cabellos, bastos e grisalhos que elle, por sua
+desgraça, não deixou cortar. Aphanassi Matveich põe-se a gemer, a suspirar e
+aguenta, Deus sabe como, semelhante provação.</p>
+
+<p>&mdash;Miseravel! Foste tu que murchaste as flores da minha mocidade!...
+Abaixa mais essa cabeça, não ouves! Abaixa-te!</p>
+
+<p>&mdash;Mas como é que eu murchei as tuas flores, minha mãezinha? regouga o
+esposo de bruços no divan.</p>
+
+<p>&mdash;Manequim! Nem sequer percebeste a allegoria! Agora vê se te
+penteias.</p>
+
+<p>&mdash;Grichka, veste-o depressa, anda!</p>
+
+<p>A nossa heroina senta-se n'uma poltrona a vigiar com olhos de inquisidor a
+ceremonia indumentaria.</p>
+
+<p>Aphanassi Matveich lá conseguiu tomar folego, e, quando se chegou ao laço da
+gravata, afoita-se a ponto de emittir opiniões ácêrca do feitio e da perfeição
+da laçada. Em conclusão, assim que envergou a casaca, a distincta
+personagem<span class="pn">{124}</span> tem reconquistado de todo o aprumo e
+pega a rever-se ao espelho com manifesto desvanecimento.</p>
+
+<p>&mdash;Mas para onde é que tu me levas, Maria Alexandrovna? indága, a fazer
+moquenquices á propria imagem.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna hesita em acreditar n'aquillo que ouviu.</p>
+
+<p>&mdash;Não ouvem isto? Ora o manequim! E como te atreves tu a perguntar-me
+para onde é que eu te lévo?</p>
+
+<p>&mdash;Mas já se vê que o devo de saber, minha mãezinha.</p>
+
+<p>&mdash;Caluda! Torna-me tu a tratar de mãezinha, e muito mais no sitio aonde
+vamos, e ficas sem chá um mês inteiro.</p>
+
+<p>O marido, espavorido, nem bole sequer.</p>
+
+<p>&mdash;Se já se viu? Nem sequer conseguiu apanhar a mais réles
+condecoração?</p>
+
+<p>Colherão de marmita!&mdash;exclama ao contemplar com desprezo a casaca do
+marido, casaca virgem de toda e qualquer insignia.</p>
+
+<p>Até que por fim, Aphanassi Matveich sente-se melindrado.</p>
+
+<p>&mdash;Eu não sou colherão de marmita, sou conselheiro, minha mãezinha,
+pondéra com assômo de nobre indignação.</p>
+
+<p>&mdash;Quê&mdash;quê&mdash;quê?&mdash;A raciocinar, por mais que me digam!
+Ora o mujik, o ranhoso! Tenho pêna de me faltar tempo para te ensaboar esse
+bestunto, quando não... Mas não as perdes, deixa estar!... Grichka, dá-lhe o
+chapéu e a <em>chuba</em><a name="tex2html13"
+href="#foot237"><sup>[13]</sup></a>. Assim que eu saír, arruma estes três
+quartos e o quarto aberto. Vá, pega n'essa vassoira! tira as capas aos
+espelhos, aos relogios e quero tudo prompto em menos de<span
+class="pn">{125}</span> uma hora! E tu, tambem, veste a casaca, e dá luvas aos
+criados! Ouviste, Grichka? Ouviste?</p>
+
+<p>Sobem para a carruagem. Aphanassi Matveich está com uma cara espantada.
+Maria Alexandrovna dá voltas ao miolo para lhe encasquetar na cabeça e na
+memoria as recommendações mais essenciaes, elle, porém, interrompe-lhe as suas
+cogitações.</p>
+
+<p>&mdash;Maria Alexandrovna, eu esta noite tive um sonho tão exquisito, diz,
+após breve silencio.</p>
+
+<p>&mdash;Ápre! Manequim de uma figa! E eu que estava a pensar!... Como te
+atreves tu a vir-me para cá com esses teus sonhos de mujik? Escuta, e olha que
+t'o digo pela ultima vez, se te atreveres, hoje, a fazer a minima allusão aos
+taes sonhos ou ao quer que seja,... toma sentido... nem sei o que ha de ser de
+ti! Escuta bem: o principe K... está hospedado em nossa casa. Lembras-te do
+principe K... </p>
+
+<p>&mdash;Se lembro! minha mãezinha, lembro-me muito bem! E por que é que elle
+nos dispensou tamanha honra?</p>
+
+<p>&mdash;Cala-te, não é da tua conta! Tu, com a maxima amabilidade, e como
+dono de casa, vaes convidál-o a vir comnosco para o campo. Partimos ainda hoje.
+Mas se lhe disseres uma palavra só que seja, em toda a noite, ou amanhã... ou
+no outro dia... ou em toda a roda do anno, mando-te guardar gansos! Nem
+palavra! São essas as tuas funcções&mdash;e mais nada! Intendeste?</p>
+
+<p>&mdash;Mas se me fizerem perguntas?</p>
+
+<p>&mdash;Não importa! Cálas-te.</p>
+
+<p>&mdash;Pois sim, mas uma pessoa nem sempre pode ficar calado, Maria
+Alexandrovna!<span class="pn">{126}</span></p>
+
+<p>&mdash;Responde com monosylabos, um <em>hum!</em>... ou coisa que o valha,
+para que fiquem na persuasão de que és homem espirituoso e que reflectes antes
+de responder.</p>
+
+<p>&mdash;Hum!... </p>
+
+<p>&mdash;E atenta bem n'isto que te estou dizendo. Carrégo comtigo: ouviste
+falar do principe, e acto-continuo, doido de contente, deste-te pressa em vir
+apresentar-lhe os teus respeitos e convidál-o a ir para o campo. Percebeste?
+</p>
+
+<p>&mdash;Hum!</p>
+
+<p>&mdash;Para que estás tu já a dizer: <em>hum!</em> meu parvalhôco!
+Responde.</p>
+
+<p>&mdash;Está bom, minha mãezinha, tudo se fará á medida dos teus desejos.
+Mas, não me dirás por que é que eu tenho que o convidar?</p>
+
+<p>&mdash;Quê, quê? pois ainda te mettes a raciocinar?! Que tens tu com isso? E
+ainda te atreves a fazer-me perguntas?</p>
+
+<p>&mdash;Mas... é que eu, por mais que faça não posso perceber como é que eu o
+hei de convidar sem dizer palavra!</p>
+
+<p>&mdash;Eu falarei por ti, e tu, fazes-lhe a tua cortesia, e mais nada,
+percebeste?&mdash;De chapeu na mão... </p>
+
+<p>&mdash;Percebi..., minha mãe... Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;O principe é espirituosissimo: diga elle o que disser, ainda quando
+se não dirija á tua pessoa, responde-lhe a tudo com um sorriso bonacheirão e
+alegre, percebeste?</p>
+
+<p>&mdash;Hum!</p>
+
+<p>&mdash;E elle a dar-lhe com o <em>hum!</em> Vê se acabas com o tal
+<em>hum!</em>&mdash;a mim, responde-me ao que eu te perguntar. Percebeste?</p>
+
+<p>&mdash;Percebi, Maria Alexandrovna, percebi muito bem. E como é que eu não
+havia de perceber? Mas estou a dizer<span class="pn">{127}</span> <em>hum!</em>
+para me ir exercitando. O que tu queres é que eu me ponha a olhar para o
+principe, com um ar de riso... mas quando elle não me vir?</p>
+
+<p>&mdash;Forte espantalho! Forte idiota! Cala-te, cala-te, e cala-te! Olha e
+sorri. </p>
+
+<p>&mdash;Mas se elle é capaz de suppor que sou surdo!</p>
+
+<p>&mdash;Olhem a desgraça! Sequer ao menos não ficará sabendo que és um
+imbecil. </p>
+
+<p>&mdash;Hum! E se mais alguem me fizer perguntas?</p>
+
+<p>&mdash;Ninguem t'as faz, deixa estar! E demais, não estará lá ninguem. E se
+por infelicidade, do que Deus nos defenda, apparecer alguem e te perguntarem
+alguma coisa, responde desde logo com um sorriso sarcastico. Sabes o que vem a
+ser um sorriso sarcastico?</p>
+
+<p>&mdash;Uma careta muito espirituosa, pois não é verdade, minha mãezinha?</p>
+
+<p>&mdash;Eu te darei o espirituoso, deixa estar, manequim! E quem é que te
+iria suppor capaz de ter espirito, meu asneirão? Um risinho de escarneo,
+percebeste? De escarneo e de desdem.</p>
+
+<p>&mdash;Hum!</p>
+
+<p>&mdash;Ai! Estou toda eu em suores frios por causa d'este estafermo! murmura
+Maria Alexandrovna. Não ha mais que ver, acho que fez uma jura em como me havia
+de murchar de todas as minhas flores! Teria sido muito melhor o prescindir
+delle.</p>
+
+<p>A raciocinar por esta forma, Maria Alexandrovna tudo é olhar pela vidraça do
+trem e atiçar o cocheiro. Voam os cavallos, e ella a achar que se não mexem.
+Aphanassi <span class="typo" title="no original: Matveick">Matveich</span>, alapardado a um canto, a repetir mentalmente a<span
+class="pn">{128}</span> lição. Até que emfim a carruagem alcança a casa de
+Maria Alexandrovna! Mas ainda bem a nossa heroina não tinha posto pé no patim,
+eis que vê passar ao lado do seu proprio trem um trenél coberto, de dois
+assentos, o trenél da Anna Nikolaievna Antipova.&mdash;Vinham n'elle duas
+senhoras. Uma dellas é a propria Anna Nikolaievna Antipova, a outra a Natalia
+Dmitrievna, duas amigas sinceras e recentes. Maria Alexandrovna olha para
+ellas, e o coração dá-lhe um báque. Ainda bem não abrira a bocca para exclamar,
+eis que chega outra carruagem, com outra visitante. Ouvem-se alegres
+exclamações.</p>
+
+<p>&mdash;Maria Alexandrovna com o Aphanassi Matveich... ambos no mesmo trem!
+Feliz coincidencia! E nós que vinhamos passar a noite em sua casa!
+Agradabilissima surpreza!</p>
+
+<p>As visitantes galgam a escada a pipilarem que nem andorinhas, Maria
+Alexandrovna contempla-as, estupefacta.</p>
+
+<p>&mdash;E não vos tragar o chão! diz, lá comsigo; cheira-me isto a conluio...
+Pois sim!... vocês o que não tem é unhas para luctar commigo, minhas
+amiguinhas!... Esperem um nadinha!... <span class="pn">{129}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>XI</h2>
+
+<p>Mozgliakov saíu de casa de Maria Alexandrovna, consoladissimo. Não foi a
+casa do Borodoniev, pois necessitava de estar sósinho. Sentia a cabeça
+atravancada de romanescos devaneios. Phantaziava a explicação solemne com a
+Zina, o generoso perdão, scena melancolica no baile, lá em Petersburgo;
+Hespanha, o Guadalquivir, o principe no leito da agonia a juntar nas proprias
+mãos as mãos dos dois amantes, e em conclusão, o amor d'uma mulher tão formosa,
+vencido por tanto heroismo; por aqui e por acolá, um ou outro favor de alguma
+baronêsa, ou condessa de alto cothurno, n'aquella sociedade onde semelhante
+casamento lhe daria certamente ingresso, um logar de vice-governador, dinheiro;
+n'uma palavra, toda a eloquente descripção de Maria Alexandrovna. Mas, emfim,
+como explicál-o?&mdash;Através de todos aquelles arrebatamentos eis lhe surge o
+seguinte pensamento, algo desagradavel, que, em todo o caso, tudo aquillo
+estava ainda em vêl-o-hemos, e no momento actual, elle, com o que ficara, fôra
+com um nariz de palmo! De subito, nota que se alargou demais pelo arrabalde
+menos central de Mordassov. Vem caíndo a noite. Pelas ruas, ladeadas de
+pardieiros, ladram, como aliás succede em toda e qualquer cidade provincial,
+aquelles innumeros cães que infestam de preferencia os bairros em que nada ha
+que guardar ou que roubar. Derrete-se a neve. De vez em quando, topa-se com
+algum <em>mestchanine</em> retardado,<span class="pn">{130}</span> ou com
+qualquer <em>baba</em><a name="tex2html14" href="#foot252"><sup>[14]</sup></a>
+enfunicada n'uma tulupa e a arrastar umas botifarras. Tudo aquillo principiava
+a irritar a Pavel Alexandrovitch: mau signal, visto como, quando uma pessoa
+está contente, a tudo acha risonho. Pavel Alexandrovitch lembra-se com despeito
+de que, até aquelle dia, era elle quem dava o tom em Mordassov. Era recebido
+por toda a parte como um noivo, uma situação tão interessante, e
+felicitavam-n'o, e elle todo desvanecido. E eis que, de subito, vinha a constar
+que se achava reformado; rir-se-hiam á sua custa por toda a parte. E com tudo
+isso não é exequivel estar a iniciar toda a gente ao segredo do tal baile de
+Petersburgo, da columna melancolica e do Guadalquivir!</p>
+
+<p>Triste e pensativo, acaba por formular este pensamento que secretamente lhe
+faz sangrar o coração desde alguns instantes: "Mas tudo isto será verdade,
+realmente? Virá tudo a acontecer conforme m'o pintou Maria Alexandrovna?"
+Occorre-lhe, n'aquelle ensejo, exactamente, que Maria Alexandrovna é mulher
+arteira quanto possivel; que, apezar da estima geral que disfructa, é uma
+enredadeira de respeito, que mente com o maximo desplante, que é possivel que
+tivesse motivos particulares para o afastar; que, emfim, o descrever um quadro
+seductor não compromete a coisa nenhuma. Pensa na Zina, revóca aquelle seu
+olhar de despedida tão pouco compativel com um desatinado amor. Lembra-se de
+que uma hora antes foi tratado por ella na qualidade de asno&mdash;sem tirar
+nem pôr. Ante uma<span class="pn">{131}</span> tal recordação, Pavel
+Alexandrovitch estaca de vez, como que pregado ao chão, e ruboriza-se a ponto
+de lhe virem as lagrimas aos olhos. E como que de proposito, d'ali a instantes,
+acontece um desagradavel incidente: escorrega e estatéla-se num montão de
+neve... Emquanto elle escabuja e patinha, um bando de canzoada, que vinham
+atrás d'elle a ladrar, accodem por todos os lados; um d'elles, o mais pequeno e
+mais atrevido, aferra-se-lhe á aba da chuba. Pavel Alexandrovitch
+desenvencilha-se dando ao diabo a cainçada e o destino e, com a aba do casacão
+esfarrapada e uma indefinivel tristeza na alma, lá se vae arrastando até á
+esquina da rua. Ali, percebe que vae perdido.</p>
+
+<p>É sabido que um homem, quando se acha perdido em um bairro que lhe é
+extranho, e muito mais de noite, nunca se resolve a meter a direito por uma rua
+larga. Impelle-o, mau grado seu, um poder misterioso para toda a casta de
+betesgas que topa a geito. Em harmonia com este sistema, Pavel Alexandrovitch
+perde-se de todo. "Diabos levem tanta chiméra!" exclama e cospe com engulho.
+"Leve o diabo os sentimentos elevados e o tal Guadalquivir!"</p>
+
+<p>Não me abalanço a afiançar, que Mozgliakov n'aquelle ensejo apresentasse
+aspecto por demais seductor. Até que emfim, extenuado, fatigado, em seguida a
+haver andado a êsmo para cima de duas horas, alcança a escadaria de Maria
+Alexandrovna. Fica espantado ao dar com os olhos em tanta carruagem: "Tem
+visitas? Alguma <em>soirée</em>? Com que intenção?"</p>
+
+<p>Informado por um lacaio de que Maria Alexandrovna tinha carregado com
+Aphanassi Matveich do campo, de gravata branca, que o principe já está
+acordado, mas que<span class="pn">{132}</span> ainda não desceu do quarto,
+Pavel Alexandrovitch, sem dizer palavra, vae lá acima ter com o tio. Acha-se
+n'aquella disposição de animo em que um homem de caracter fraco se decide pela
+ideia de maior malignidade, em favor da vingança, sem se lembrar de que virá
+talvez a arrepender-se, durante toda a sua vida.</p>
+
+<p>Sobe. Dá com os olhos no principe, sentado n'uma poltrona em frente do seu
+toucador de viagem, com a caréca á vela, mas com a cara já rebocada e com as
+suissas e a pêra postiça já pegadas. O chinó está entre mãos do edoso criado
+particular, Ivan Pakhomitch. Ivan Pakhomitch está a penteál-o com modo absorto
+e respeitoso. O principe apresenta aspecto lamentavel. Não se acha ainda
+restabelecido d'aquella sua temulencia. Enterrado na poltrona, a tosquenejar as
+palpebras, todo elle engelhado, amarrotado, e a olhar para o Mozgliakov como se
+o não conhecesse.</p>
+
+<p>&mdash;Como vae de saude, rico tiozinho? indaga Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Como? Ah! És tu? acaba por dizer o tio. Pois eu, manozinho, dormi a
+minha somnéca. Ai! meu Deus! exclama de subito, animadissimo. E eu que estou
+sem o chi... chi... n... nó!</p>
+
+<p>&mdash;Não se assuste, tiozinho! Eu ajudo-o a pôl-o se quiser.</p>
+
+<p>&mdash;Ora esta! E ahi estás tu senhor do meu segredo! Eu bem dizia que era
+pr... preciso fe... fe... char a po... rta! Pois então, meu amigo, vaes já, já,
+dar-me a tua palavra de honra que... que, não has-de abu... sar do meu segredo,
+e que não dizes, a nin... guem que é po... pos... tiça a minha cab... be...
+leira!</p>
+
+<p>&mdash;Ora vamos, tiozinho, pois suppõe-me capaz de semelhante<span
+class="pn">{133}</span> vilêza? exclama Mozgliakov que deseja agradar ao
+ancião.</p>
+
+<p>&mdash;Está, claro... está... c... laro, e como eu sei que és cavalheiro...
+vá... la... vaes fi... car espantado: vou te des... vendar de todo os meus
+se... segredos&mdash;Que me dizes a estes bi... bigodes&mdash;m... meu caro?</p>
+
+<p>&mdash;Um portento, rico tio, espantosos! Como é que os pode conservar do
+mesmo comprimento, por tanto tempo?</p>
+
+<p>&mdash;Socéga, meu amigo... s... são postiços, diz o principe a olhar muito
+ufano para <span class="typo" title="no original: Paulo">Pavel</span> Alexandrovitch.</p>
+
+<p>&mdash;Postiços!?&mdash;É inacreditavel! E as suissas, então? Confesse que
+as pinta, tiozinho!</p>
+
+<p>&mdash;Não só as pin... into, como são postiças e mais que... que pos...
+tiças!</p>
+
+<p>&mdash;Postiças! Isso agora, tenha paciencia, o tio está a caçoar
+commigo!</p>
+
+<p>&mdash;Pa... lavra de honra, amigo! exclama o principe desvanecido. Ora põe
+na tua ideia, que toda a gente... sem excepção&mdash;anda ill... udida, como
+tu. A propria Stepanida Matveina não quer acreditar que o sejam, e olha que é
+ella quem m'as põe. Mas tenho a certeza, meu amigo, de que me has de guardar
+segredo&mdash;Dá-me a tua pa... palavra de honra... </p>
+
+<p>&mdash;Conte desde já com ella, querido tio! Mas, insisto, suppõe-me então
+capaz de semelhante vilania?</p>
+
+<p>&mdash;Ai! meu amigo! Que tombo que eu apanhei! Não fazes ideia! O Pamphili,
+tornou-me a virar a car... a carruagem.</p>
+
+<p>&mdash;Pois elle tornou a pregar-lhe outro tombo? Mas quando?</p>
+
+<p>&mdash;Iamos nós quasi a chegar ao... mo... mos... teiro... <span
+class="pn">{134}</span></p>
+
+<p>&mdash;Já sabia, tiozinho!</p>
+
+<p>&mdash;Não, não é isso... se ainda não ha duas horas. Fui ao mo... mosteiro.
+Foi elle que me levou... e pregou-me um tombo! Que susto que... que eu apanhei!
+Ainda nem tenho o co... coração no seu logar.</p>
+
+<p>&mdash;Mas o tio estava a dormir?</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... laro... estava a dormir... E vae... d'ahi fui... vi...
+viajar... E d'ahi... d'ahi... talvez fosse... Ah! que coisa tão exquisita!...
+</p>
+
+<p>&mdash;Afirmo-lhe que estava a dormir, tiozinho... que sonhou... Depois de
+jantar ferrou-se a dormir muito socegado.</p>
+
+<p>&mdash;De... devéras?!</p>
+
+<p>O principe pós-se a scismar.</p>
+
+<p>&mdash;Sim... sim... effec... tivamente, talvez fôsse. E d'ahi, lembro-me
+muito bem do sonho... todo. Primeiramente, sonhei com um toiro muito bravo...
+com uns páus!... Depois com um pró... ó... curador... mas tambem tinha p...
+páus!</p>
+
+<p>&mdash;Havia de ser o Nikolai Vassiliévitch Antipov, tiozinho.</p>
+
+<p>&mdash;Está... claro... era elle... era... E depois tambem sonhei com Na...
+napoleão... Bo... bo... naparte. Não sabes, amigo, diz toda a gente que n...
+nos parecêmos?... De perfil... pelos modos... faço lembrar um papa... muito
+antigo: Tu, que dizes?... Achas que te... terei ares de papa?</p>
+
+<p>&mdash;Acho que se parece mais a Napoleão.</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... laro... é assim... mesmo... de... de... frente. E d'ahi,
+tambem d'isso estou conven... cido, meu<span class="pn">{135}</span> caro. Vi-o
+em sonho, sentado lá na sua ilha... Não sabes? A fô... legar... muito
+contente... muito lam... peiro!... Que graça que... eu lhe achei!</p>
+
+<p>&mdash;Refére-se a Napoleão, tiozinho? indaga Pavel Alexandrovitch, todo
+elle absorto, a observál-o.</p>
+
+<p>Principiava a surgir-lhe na mente um estranho pensamento, sem que elle
+pudesse formulál-o com clareza.</p>
+
+<p>&mdash;Está claro... Na... na... po... leão. Tivémos uma pa... palestra
+filosó... fica... Não sabes? tenho pena de que os Inglezes lhe fizessem aquillo
+que... que lhe fizeram... É verdade que se elles o não tivessem en...
+gaiolado... atirava-se para ahi a to... toda a gente... aquelle damnado! Mas
+com... apezar d'isso... foi pena!... Eu cá... por mim não era capaz de o fazer!
+Prega... va com elle n'uma ilha deserta... </p>
+
+<p>&mdash;Deserta... então para quê? perguntou, distrahido, Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Está... claro... De... deserta, não, mas habitada por gente com
+juizo. E depois arranjava-lhe distracções... theatro, mu... musica... ba...
+bailados e tu... tudo isso por conta do Estado. Dáva-lhe licença para
+passear... vi... vigiado... já se vê... qu... quando não... pi... pisgava-se...
+Elle gostava de uns certos bôlos... Pois bem! faziam-se-lhe todos os dias...
+Tratava-o com pa... pater... nal carinho: Elle... commigo... arre... pen...
+dia-se... di... digo... t'o eu.</p>
+
+<p>Mozgliakov escuta distrahido a garrulice do vegête, a roer as unhas,
+impaciente. Elle a querer desviar a conversa para o assunto do casamento, e nem
+sequer sabe o motivo, mas referve-lhe lá dentro uma maldade,<span
+class="pn">{136}</span> infame. De subito, eis que exclama o tio, muito
+espantado:</p>
+
+<p>&mdash;Ai! meu amigo! E eu que me esquecia de t'o par... parti... cipar...
+Saberás que fiz ho... je o meu pe... pedido!</p>
+
+<p>&mdash;O seu pedido, tiozinho?... exclama Mozgliakov animando-se
+acto-continuo. </p>
+
+<p>&mdash;Está... c... claro... o meu pedido! Já te vaes embora, Pakhomitch?
+Está bem. É uma menina encanta... dora!... Mas confesso... amigo, que andei com
+leviandade, estou-o per... cebendo agora... Ai! meu Deus!</p>
+
+<p>&mdash;Mas, se me dá licença, querido tio, quando é que fez esse tal
+pedido!</p>
+
+<p>&mdash;Confesso, que... não... sei ao certo, qu... ando foi, amiguinho!...
+Querem ver que... seria sonho, tam... tam... bem?... Que co... isa t... tão
+ex... quisita! </p>
+
+<p>Mozgliakov estremece de contentamento... Accode-lhe uma ideia luminosa.</p>
+
+<p>&mdash;Mas a quem, e quando é que fez o tal pedido? repete impaciente,
+já.</p>
+
+<p>&mdash;Á... á... fi... lha da casa, meu amigo... áquella... lin... da me...
+nina! E d'ahi... esqué... ceu... me o nome. O peor, meu amiguinho... é que não
+posso casar,... impos... sivel, meu amigo! Que hei de eu fazer?</p>
+
+<p>&mdash;Pois decerto... semelhante casamento iria deitál-o a perder! Mas, uma
+pergunta: Tem a certeza de haver feito o pedido?</p>
+
+<p>&mdash;Está... claro... tenho a certeza... tenho... </p>
+
+<p>&mdash;E se fosse sonho, como aquella sua quéda da carruagem?<span
+class="pn">{137}</span></p>
+
+<p>&mdash;Valha-me Deus!... E o c... caso é que é possivel... no tal sonho... E
+o... peor é que e... eu já nem tenho cara para lhe apparecer... E não... achas
+que se poderia saber... indi... recta... mente, se eu faria ou não o tal
+pedido? </p>
+
+<p>&mdash;Sabe o que lhe digo, querido tio? Que acho até escusado ir tirar
+informações.</p>
+
+<p>&mdash;E... por-quê?</p>
+
+<p>&mdash;Por que tenho a certeza de que tudo foi sonho, tambem.</p>
+
+<p>&mdash;Tambem... me quer... parecer... m... meu ca... ro, e tanto... m...
+mais que eu estou sempre a ter sonhos... assim.</p>
+
+<p>&mdash;Então já vê, tiozinho... Faça de conta que beberia mais um copito ao
+almoço... ou ao jantar... e ahi tem... </p>
+
+<p>&mdash;Está... claro... amigo... foi isso foi,... é o que havia de ser.</p>
+
+<p>&mdash;Tanto mais, que o tio, por mais influido que estivesse, nunca se iria
+arriscar a fazer um pedido tão disparatado. O tiozinho, desde que o conheço,
+tive-o sempre na conta de um homem de muitissimo tino.</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... laro. Está... c... laro.</p>
+
+<p>&mdash;Ora considére: ponha na sua ideia que os seus parentes, tão mal
+dispostos já, para com o tio, vinham a ter conhecimento do caso, que
+acontecia?</p>
+
+<p>&mdash;Ai! meu Deus! exclama o assustadissimo principe... que acontecia?...
+é verdade!</p>
+
+<p>&mdash;Então, já vê! Punham-se a berrar todos á uma que estava doido, que
+era preciso nomear-lhe tutôres, que o<span class="pn">{138}</span> tinham
+embaçado, e catrafilavam-n'o para ahi em qualquer parte, guardado á vista.</p>
+
+<p>O Mozgliakov estava farto de saber que o argumento éra de molde a deixar
+espavorido o principe.</p>
+
+<p>&mdash;Ai! meu Deus! exclamou o jarrêta, todo elle a tremer...
+engaiolavam-me?! </p>
+
+<p>&mdash;Ora considére, tiozinho, passar-lhe-ia nunca pela cabeça o ir fazer
+um pedido tão disparatado? O tio avalia muito bem os seus interesses!
+Affirmo-lhe que foi sonho.</p>
+
+<p>&mdash;So... nho, sim, é o que foi! So... nho... e mais nada! Ah! tu... é
+que... que acertaste... com a coisa! E fico... te grato, muito grato... por me
+teres con... vencido.</p>
+
+<p>&mdash;E eu, contentissimo, tiozinho, por termos vindo á fala. Se não fosse
+eu, o tio ficava acreditando que estava noivo, e procederia n'esse sentido.
+Veja lá do que se livrou!</p>
+
+<p>&mdash;Está c... laro... me... livrei... dizes bem!</p>
+
+<p>&mdash;Lembre-se de que está com vinte três annos essa menina! Não ha quem a
+queira, e eis se não quando, apparece o tio, rico, nobre e vae pedil-a em
+casamento! E ellas, já se vê, apanham a pélla no ar: affirmam a toda a gente
+que o tio está noivo e impingem-lh'a em casamento. E em seguida, põem-se á
+espera de que o tio se vá indo desta para melhor.</p>
+
+<p>&mdash;Que... me dizes!</p>
+
+<p>&mdash;E depois, tiozinho... é lá coisa que convenha a um homem da sua
+jerarchia... </p>
+
+<p>&mdash;Está c... claro! Jerarchia... </p>
+
+<p>&mdash;Tão intelligente... tão amável... </p>
+
+<p>&mdash;Está... c... claro... intelligente... é is... so... é!<span
+class="pn">{139}</span></p>
+
+<p>&mdash;E em conclusão, é principe... Será partido que lhe convenha,
+porventura? Se é que, por qualquer motivo insiste em querer casar. Lembre-se do
+que diriam os seus parentes.</p>
+
+<p>&mdash;Ai, meu amigo, comiam-me em vida! Elles que já me não têm feito
+poucas terrafi... as... aquelles des... almados! Ora imagina! Desconfio até
+que... qué-rem pregar commigo n'uma casa... de... sa... saúde! Ora, dize-me,
+achas que se... ja razoavel? Que é que eu havia de fa... zer numa casa de
+saúde?</p>
+
+<p>&mdash;Pois certamente, rico tio, e ahi está o motivo porque eu já o não
+largo quando o tio fôr lá para baixo. Estão lá visitas.</p>
+
+<p>&mdash;Vi... sitas! Ai! valha-me Deus!</p>
+
+<p>&mdash;Não se assuste, tiozinho, eu vou com o tio.</p>
+
+<p>&mdash;Sou-te m... muito obrigado... muito! Fô... ste a minha redempção!
+Mas, qu... éres que te diga, eu antes queria ir-me embora!</p>
+
+<p>&mdash;Amanhã, tiozinho, amanhã, ás sete horas da manhã! Hoje, despede-se de
+todos e declara que se vae embora.</p>
+
+<p>&mdash;Ab... so... lu... tamente!... safo... me... ab... solu... tamente!...
+vou para casa do padre Missail... Mas... meu amiguinho, e se ella casar commigo
+contra minha vontade?... </p>
+
+<p>&mdash;Não lhe dê cuidado, tiozinho, cá estou eu. E demais, digam o que
+disserem, responda sempre que foi sonho... o que é verdade, aliás.</p>
+
+<p>&mdash;Es... tá... c... claro, sonhei!... Mas sempre te direi... meu a...
+mi... miguinho, que foi um sonho delicioso!... <span class="pn">{140}</span>
+Que for... mosura! É um por... tento! E se... soubesses!... Com umas...
+fórmas!</p>
+
+<p>&mdash;Pois então, até logo, tiozinho, vou indo lá para baixo... E o tio...
+</p>
+
+<p>&mdash;Ora... essa!... Então para aqui me deixas?... exclama o principe,
+assustado.</p>
+
+<p>&mdash;Não é isso, tiozinho, eu o que vou é indo adiante... não vamos
+juntos. Primeiro eu, depois, o tio. É melhor assim.</p>
+
+<p>&mdash;Está-c... laro... melhor. E eu, demais a mais, tenho que tomar nota
+d'um pensamento... capital.</p>
+
+<p>&mdash;Pois é o que deve fazer, tio, vá assentando o seu pensamento, e
+depois, não se demore, appareça, e conte que, amanhã... </p>
+
+<p>&mdash;Amanhã, de manhã, para casa do-arci-préste... sem fa-lta,... casa...
+do ar... ci... ci... Magnifico! Mas olha que... ella é um por... tento de
+formosura! Que... fórmas! Se não houvesse outro remedio senão casar com ella...
+eu... então... </p>
+
+<p>&mdash;Deus o livre de tal, querido tio!</p>
+
+<p>&mdash;Está claro!... livre... Está dito! até já, meu amigo! Eu não tardo
+lá. É só tomar no... ta... A proposito,... e... ago... ra me lembra que te
+queria perguntar... se... j... já tinhas lido as <em>memorias</em> de
+Cásanova?</p>
+
+<p>&mdash;Já, tiozinho... Mas por quê?</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... claro&mdash;Por quê?&mdash;Mas... deixa lá... já me não
+lembro do que é que te queria dizer.</p>
+
+<p>&mdash;Depois se lembrará, tiozinho, até logo.</p>
+
+<p>&mdash;Até logo, amiguinho, até logo...&mdash;Mas que foi uma... delicia...
+o tal sonho... lá isso foi!<span class="pn">{141}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>XII</h2>
+
+<p>&mdash;Viémos vêl-a todas, todas! A Prakovia Ilinicha não tarda por ahi! A
+Luisa Karbovna tambem queria vir, pipila a Anna Nikolaievna dando entrada na
+sala e a inspeccionar tudo em redor com uns olhos de bisbilhoteira.</p>
+
+<p>É uma mulherzinha, bonitinha, veste com riqueza, mas com umas côres
+espalhafatosas, e com presunção na sua boniteza. Fareja-lhe que o principe deve
+de estar alapardado n'um cantinho qualquer e mais a Zina.</p>
+
+<p>&mdash;E a Katerina Petrovna tambem não deixa de apparecer, accrescenta
+Natalia Omstrievna, mulherão com proporções de colosso á qual tem reduzido o
+pêso os jejuns e dando ares de um granadeiro.</p>
+
+<p>Traz um chapelinho, minusculo, côr de rosa, pespegado na nuca. Ella, vae em
+três semanas, é a mais intima amiga da Anna Nikolaievna, de quem ella anda
+atrás, ha muito tempo, e a quem se pudesse nem a pelle lhe deixava.</p>
+
+<p>&mdash;O alegrão que ambas me deram em vir passar a noite commigo, nem ha
+palavras que o possam exprimir, cantaróla Maria Alexandrovna, um tanto refeita
+já da instantanea surpreza. Mas não me dirão a que feliz acaso devo o
+prazer?... Nem contava, já, com semelhante honra!</p>
+
+<p>&mdash;Valha-me Deus! Maria Alexandrovna, não seja má! diz muito açucarada a
+Natalia Dmitrievna, com voz de pipía, e tregeitos, toda ella&mdash;o que
+estabelecia curiosissimo contraste com o seu exterior.<span
+class="pn">{142}</span></p>
+
+<p>&mdash;Mas minha querida, pipila Anna Nikolaievna, precisamos concluir os
+arranjos do tal theatro. Ainda hoje o Petre Mikailovitch disse ao Kalist
+Stanislavitch que está contrariadissimo por não terem corrido bem as coisas, e
+porque andassemos a jogar as cristas. E como succedesse ajuntarmo-nos todas
+quatro, dissémos comnosco: "E se nós fossemos ter com a Maria Alexandrovna a
+ver se levamos a cabo este negocio?" A Natalia Dmitrievna passa palavra ás
+outras, e cáem aqui todas. D'este modo poderiamos chegar a um accordo e as
+coisas entravam no seu curso regular. É para que não digam que apenas sabemos
+andar á unhada, pois não é assim, meu anjo? accrescentou dando um beijo a Maria
+Alexandrovna.</p>
+
+<p>Valha-me Deus! Zinaida Aphanassievna, está cada dia mais linda!</p>
+
+<p>Anna Nikolaievna atira-se á Zina e prega-lhe um beijo.</p>
+
+<p>&mdash;Mas se a menina não tem outra coisa que fazer a não ser o ir
+embellezando dia a dia, affirma com affectada amabilidade Natalia Dmitrievna a
+esfregar as mãos.</p>
+
+<p>&mdash;Demonios as levem! E eu que nem sequer já me lembrava do tal theatro!
+Sim, senhor, estas pêgas tem apurado a malicia! murmura Maria Alexandrovna fula
+de raiva.</p>
+
+<p>&mdash;E tanto mais, meu anjinho, accrescenta Maria Nikolaievna, que o nosso
+querido principe se acha hospedado em sua casa. Bem sabe que não ha
+<em>pomietok</em> de <span class="typo" title="no original: Duckhanova">Dukhanova</span>, de paes a filhos, que não tenha tido um
+theatro. Tomámos informações e viémos a apurar que existe algures um armazem
+atulhado de scenario velho, e um panno, e fatos, até. O principe esteve hoje em
+minha casa, mas se quer que lhe diga, fiquei tão assarapantada com a visita,
+que de<span class="pn">{143}</span> todo me esqueceu tocar-lhe em semelhante
+coisa. Agora, comtudo, tencionamos conversar com elle a esse respeito; ha de
+ajudar-nos, e o principe não deixará de dar as suas ordens para que nos remetam
+toda essa cangalhada. Pois a quem haviamos de encommendar por aqui coisa que se
+pareça com uma vista de theatro? E d'ahi, queremos que o principe em pessoa
+participe da nossa empresa. É necessario levál-o a subscrever: é para os
+pobres. Quem sabe se elle se não encarregará, até, de qualquer papel; é tão
+condescendente, tão dado! Correria tudo ás mil maravilhas.</p>
+
+<p>&mdash;Pois já se vê, que acceita um papel! Tanto mais que nada ha mais
+facil do que induzil-o a desempenhar seja que papel fôr, accrescenta
+significativamente Natalia Dmitrievna.</p>
+
+<p>Anna Nikolaievna não tinha enganado Maria Alexandrovna. Vão chegando de
+instante para instante senhoras. Maria Alexandrovna quasi que nem tem tempo de
+se levantar para recebêl-as e de proferir as exclamações da praxe em
+semelhantes casos, exigidas pelas conveniencias.</p>
+
+<p>Não me afoitarei a descrever uma por uma as visitantes. Direi apenas que
+cada uma d'ellas desfecha insidiosa olhadella para a dona da casa. Todas ellas
+denunciando na fisionomia ávida impaciencia. Entre as nobres damas, mais de
+uma, até, concorria ali na espectativa de presencear a qualquer escandalozinho
+extraordinario: ficariam desconsoladissimas se se não désse o dito escandalo.
+Exteriormente, desfaziam-se em amabilidades, Maria Alexandrovna porém estava
+armada para a lucta. Choviam perguntas a respeito do principe, naturalissimas
+todas ellas, na apparencia, mas por detrás de todas lá estava uma allusão.<span
+class="pn">{144}</span></p>
+
+<p>Serve-se o chá. Sentam-se todas á mêsa. Apodera-se do piano um grupo, Zina,
+ao convite de tocar ou de cantar, responde, muito sêca, que se acha
+incommodada. A pallidez do rosto abona-lhe aliás a veracidade. Segue-se um
+tiroteio de perguntas simpáticas, e isso mesmo dá motivo para uma allusão.</p>
+
+<p>Indagam noticias á cêrca de Mozgliakov, é á Zina que são dirigidas. Maria
+Alexandrovna não tem mãos de medir: acha-se presente a um tempo em cada canto
+da sala, ouve tudo que dizem as visitantes, supposto sejam mais de dez.
+Responde a quanta pergunta lhe dirigem sem ter necessidade de remexer as
+algibeiras á procura de palavras. Está toda ella a tremer com o sentido na
+Zina, e muito admirada por esta não sair da sala, conforme é seu costume em
+taes occasiões. Notam tambem a presença de Aphanassi Matveich. Por via de regra
+fazem escarneo d'elle para melindrarem Maria Alexandrovna na pessoa do marido.
+Hoje, porém, tudo é quererem sacar as palavras do bucho ao tão singelo e franco
+Aphanassi Matveich. Maria Alexandrovna, inquieta, não tira os olhos do marido,
+collocado em estado de sitio.</p>
+
+<p>Elle, responde a todas as perguntas: Hum! com uns modos tão entalados e
+pouco naturaes que é de uma pessoa se derramar.</p>
+
+<p>&mdash;Maria Alexandrovna, não ha quem saque uma palavra a Aphanassi
+Matveich! exclama uma caçapa de uma dama com uns olhos vivos e uns ares de
+intrepidez, como quem não tem medo seja de quem fôr, e se não atrapalha com
+coisa nenhuma. Veja se lhe diz que seja mais delicado com as senhoras.<span
+class="pn">{145}</span></p>
+
+<p>&mdash;Ainda estou para saber o que é que elle terá hoje, responde Maria
+Alexandrovna, toda ella sorrisos e interrompendo a sua palestra com a Anna
+Nikolaievna e com a Natalia Dmitrievna. Não está nada expansivo; aqui estou eu
+que ainda não fui capaz de lhe ouvir uma palavra. Por que é que não respondes á
+Felissata Mikhailovna, Athanasio?&mdash;Que foi que lhe perguntou, Felissata
+Mikhailovna?</p>
+
+<p>&mdash;Mas... mas... minha mãezinha... tu não me recommend... encéta
+Aphanassi Matveich assarapantado, desnorteado.</p>
+
+<p>N'este ensejo, está espécado ao pé do fogão acêso, com o dedo pollegar
+enfiado no bolso do collete, em atitude pinturesca e a chuchurrebiar o seu
+cházinho.</p>
+
+<p>Atrapalham-n'o as perguntas das senhoras, põe-se córado qual candida
+donzella. Porém, ainda bem não encetara a propria justificação, eis que topa
+com uns olhos tão irritados da consorte furibunda que fica petreficado de
+terror. Sem saber o que ha-de fazer e desejoso de remediar a asneira, e
+reconquistar a estima de Maria Alexandrovna, engole um golo de chá, mas o chá
+está a ferver, Aphanassi Matveich escalda-se, engasga-se, toma-se de um froixo
+de tosse, e pisga-se da sala para o quarto, deixando banzada toda a assembleia.
+Perceberam tudo, e Maria Alexandrovna nem põe em duvida o estarem cabalmente
+informadas as suas visitas, e o haverem-se congregado em sua casa com intuito
+malevolo.</p>
+
+<p>É perigosa a situação. Podem muito bem obrigál-o a descoser-se, enredál-o na
+propria presença da mulher. São capazes, até, de carregar com o principe e de o
+malquistar<span class="pn">{146}</span> com Maria Alexandrovna... Em summa,
+cumpre contar com o peor.</p>
+
+<p>A sorte reserva á nossa heroina ainda outra prova. Abre-se a porta, e dá
+entrada o Mozgliakov, a quem ella suppunha em casa de Borodoniev. A previdente
+senhora estremece como se o que quer que fosse lhe houvera trespassado o
+coração. Mozgliakov pára nos umbraes da porta, um tanto intimidado, e põe-se a
+examinar a assembleia. Não consegue dominar o sobresalto a ler-se-lhe no
+semblante.</p>
+
+<p>&mdash;Ai, meu Deus! Pavel Alexandrovitch! exclamam diversas vozes.</p>
+
+<p>&mdash;Ai, meu Deus! Mas é o Pavel Alexandrovitch!</p>
+
+<p>&mdash;E a senhora a dizer-nos, Maria Alexandrovna, que elle a estas horas
+devia estar em casa do Borodoniev?</p>
+
+<p>E a dizerem que estava escondido, Pavel Alexandrovitch, lá em casa do
+Borodoniev, ladra Natalia Dmitrievna.</p>
+
+<p>&mdash;Escondido? repete Mozgliakov com sorriso contrafeito. É um tanto
+exquisita a expressão! Queira perdoar, Natalia Dmitrievna, eu não me escondo
+nem tenho motivos para me esconder seja de quem fôr, accrescenta vibrando
+significativo olhar a Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>Estremece Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;"Ora esta! querem ver que se insurge tambem este bonifrate? diz
+comsigo, a examinar Mozgliakov. Não faltava mais nada!"</p>
+
+<p>&mdash;Será verdade. Pavel Alexandrovitch, que está reformado... das suas
+funcções?&mdash;arrisca a atrevida da Felissata Mikhailovna, a olhar para elle,
+ironica.</p>
+
+<p>&mdash;Reformado? Reformado de quê?<span class="pn">{147}</span></p>
+
+<p>Fui apenas transferido; tenho o meu logar lá em Petersburgo, responde com
+secura Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Ainda bem! E desde já o felicito; continua a Felissata Mikhailovna.
+Tivemos um susto por sua causa, quando nos disseram que andava a ver se
+arranjava um logar em Mordassov. Que, logares, por aqui, são pouco estaveis.
+Pavel Alexandrovitch, de um dia para o outro apanha-se uma demissão.</p>
+
+<p>&mdash;A não ser que se trate de um logar de <em>utchitel</em>, para ahi em
+qualquer escola communal... Esses têm ferias... observa a Natalia Dmitrievna.
+</p>
+
+<p>É tão transparente a allusão, tão grosseira, que á propria Anna Nikolaievna
+assoma-lhe o rubor ás faces e pega ás cotoveladas á peste da amiga.</p>
+
+<p>&mdash;Persuadem-se então que Pavel Alexandrovitch seria homem para marchar
+nas piugadas de um reles <em>utchitel</em>? insiste a Felissata Mikhailovna.</p>
+
+<p>Pavel Alexandrovitch, sem saber o que ha de dizer, volta costas e dá de
+rosto com Aphanassi Matveich de mão estendida para elle. Mozgliakov, alvar, não
+acceita a mão do conselheiro e faz-lhe rasgada contumélia, com pretenções a
+ironica. Acerca-se da Zina e, mirando-a a fito, socina-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;É a culpada de tudo isto... mas espere, e ainda esta noite, verá se
+eu sou, ou não sou um asno!</p>
+
+<p>&mdash;Esperar, eu?&mdash;Como se já se não estivesse vendo o sufficiente!
+retruca a Zina muito de rijo, a medir com uns olhos desdenhosos o
+recem-rejeitado.</p>
+
+<p>Mozgliakov precipita a retirada, espavorido pela expansão vocal da
+donzella.<span class="pn">{148}</span></p>
+
+<p>&mdash;Vem de casa do Borodoniev? resolve-se por fim a perguntar Maria
+Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Não; venho de estar com meu tio.</p>
+
+<p>&mdash;Com seu tio?&mdash;Esteve com o principe?</p>
+
+<p>&mdash;Ai meu Deus! Com que então o principe já está acordado? E a dizer-nos
+que estava ainda recolhido, acode Natalia Dmitrievna a enterrar pelo chão
+abaixo Maria Alexandrovna com uns olhos em que transluz odio e triunfo.</p>
+
+<p>&mdash;Não lhe dê cuidado o principe, Natalia Dmitrievna, replica o
+Mozgliakov; está acordado, e, graças a Deus, recuperou as suas faculdades.
+Tinha bebido uns copitos a mais, hontem, em sua casa, e acabaram aqui de o
+toldar de todo; de modo que se lhe tinha varrido completamente o tino. Bem
+sabe, que está um tanto fraco de cabeça. Agora, comtudo, eu e elle tivemos uma
+conversa, e está com o juizo no seu logar. Não tarda por ahi, meia hora, Maria
+Alexandrovna, para lhe dizer adeus, e lhe dar os agradecimentos pela sua franca
+hospitalidade. Logo de madrugada vamos até á Charneca, tenciono acompanhál-o
+até Dukhanovo, a vêr se lhe evito para ahi algum tombo, como aquelle que hoje
+apanhou. Voltará a collocar-se ao abrigo do broquel da Stepanida Matveiévna, que
+a estas horas já deve ter regressado de Moscou, e lhe não tornará a consentir o
+expôr-se outra vez aos riscos de uma jornada, isso lhe asseguro eu!</p>
+
+<p>E o Mozgliakov, maligno, a examinar Maria Alexandrovna, embatucada e
+estupefacta.</p>
+
+<p>(Pêsa-me o ter de confessar que, pela primeira vez na sua vida, sente medo a
+nossa heroina).<span class="pn">{149}</span></p>
+
+<p>&mdash;Retira-se ámanhã! Mas então... como assim? indaga de Maria
+Alexandrovna a Natalia Dmitrievna.</p>
+
+<p>&mdash;Como assim? repete Anna Alexandrovna, pasmada.</p>
+
+<p>&mdash;Como assim? effectivamente, écoam outras vozes. E nós a julgarmos
+que... É extraordinario, na verdade.</p>
+
+<p>A dona da casa nem atina sequer com o que ha de dizer. Eis que, de subito, é
+attrahida a geral attenção por um episodio da mais extraordinaria
+excentricidade. Ouve-se, na saleta contigua, um alarido de vozes, de
+exclamações, e rompe por ali dentro a Sofia Petrovna Karpukhina.</p>
+
+<p>A Sofia Petrovna é sem discussão possivel a mulher mais original em toda
+Mordassov; é original a ponto que tiveram que a excluir da sociedade. E cumpre
+advertir que ella, regularmente, ás sete horas, despacha a sua merenda, e que
+depois de a despachar fica sempre n'uma disposição de espirito... mais que
+muito emancipada... para não irmos mais longe. E é n'esse estado, exactamente,
+que ella effectua em casa de Maria Alexandrovna tão inesperada apparição.</p>
+
+<p>&mdash;E esta! Com a senhora é sempre assim, Maria Alexandrovna! berra ella
+estrugindo a tudo: isto será modo de proceder para commigo?!... Não se assuste,
+vim aqui de corrida, nem me sento, sequer. Vim de proposito para saber se é
+verdade aquillo que me disseram. A senhora a dar bailes, banquetes e n'este
+meio tempo, a Sofia Petrovna para ali a um canto, em casa, a concertar as
+meias! A senhora a ajuntar em sua casa a cidade em peso, menos a mim! Commigo,
+d'antes, tudo era: minha amiguinha, meu anjo,&mdash;quando lhe conveio saber o
+enredo que a Natalia Dmitrievna a seu respeito e do principe andava a
+tecer,<span class="pn">{150}</span> e vae senão quando, a Natalia Dmitrievna,
+de quem a senhora&mdash;hoje mesmo&mdash;como ella aliás diz da
+senhora&mdash;disse cobras e lagartos&mdash;está para ahi amesendada na sua
+<em>soirée</em>! Não se assuste, Natalia Dmitrievna, passo muito bem sem o tal
+seu chocolate de dois kopeks cada pau. Eu, quando me appetece beber seja o que
+fôr, lá em minha casa não falta, graças a Deus; tomára a senhora!</p>
+
+<p>&mdash;Bem se vê! observa a Natalia Dmitrievna.</p>
+
+<p>&mdash;Ora vamos, Sofia Petrovna, exclama Maria Alexandrovna, afogueada de
+despeito, que é que tem? Socegue!</p>
+
+<p>&mdash;Não lhe dê cuidado a minha pessoa, Maria Alexandrovna, estou sciente
+de tudo, de tudo! guincha com a voz de pipia a Sofia Petrovna, á qual fazem
+cêrco as visitantes, que não cabem em si de contentes com o escandolozinho.
+Estou informada de tudo e foi lá a sua Nastassia quem m'o pespegou, tim-tim por
+tim-tim! A senhora pregou uma camoéca ao tal principe e tanto apertou com elle,
+até que lhe pediu em casamento a sua filha&mdash;que já nem tem quem a queira!
+E a senhora a ver-se já toda emproada, a julgar-se uma duquêsa, com manto e
+tudo.&mdash;Pfu-u! Não cuide que me mete mêdo! Tenho visto muitas duquêsas e
+aqui onde me vê sou coronela! Ah! A senhora então nem sequer me convidou para a
+bôda!&mdash;Cá por mim, escarro-lhe em cima!&mdash;Tenho muito com quem me dar,
+tomára a senhora. O ponto está que eu queira! Vá ouvindo: Hontem jantei eu com
+a princesa Zalikhvatskaia, e por signal que até o commissario principal, o
+Kuropchkine, me pediu em casamento. Estou-me ninando para o tal seu
+<em>salsifrê</em>.</p>
+
+<p>Pfu-u! Arreda!</p>
+
+<p>&mdash;Escute, Sofia Petrovna, responde Maria Alexandrovna<span
+class="pn">{151}</span> fora de si, fique sabendo que assim ninguem se atreve a
+pôr pé numa casa decente;... e n'esse seu estado, de mais a mais!... Se me não
+favorece desde já com a sua ausencia... obriga-me a appellar para... </p>
+
+<p>&mdash;Bem sei, chama os criados para me pôrem no olho da rua? Não lhe dê
+cuidado, sei muito bem o caminho. Adeuzinho! Case lá a sua filha com quem muito
+bem quiser. E a senhora, Natalia Dmitrievna, escusa de se rir á minha custa: eu
+cá, ao tal seu chocolate, só se lhe cuspir dentro! Ella convidava-me lá! Isso
+sim! Não, que lá em minha casa não ha quem danse o <em>kazatchok</em> diante de
+principes! E lá a senhora, tambem, Anna Nikolaievna, de que é que se está a
+rir? O seu Suchilov partiu indagora uma perna: e lá o levaram em charóla para
+casa&mdash;ha de-lhe fazer falta, já se vê! Pfu-u! E a senhora, Felissata
+Mikhailovna, se não avisa aquelle calcanhar rachado do seu Matvehka que, se
+torna a consentir que a sua vacca esteja todo o santo dia aos bérros debaixo da
+minha janéla, parto-lhe as pernas, ao tal seu Matevchka! Adeuzinho, Maria
+Alexandrovna! A bom intendedor, o resto já se sabe! Saúde!</p>
+
+<p>Pfu-u!</p>
+
+<p>Some-se a Sofia Petrovna. Desata toda a gente á gargalhada. Maria
+Alexandrovna ficou entupida de todo.</p>
+
+<p>&mdash;Estou em dizer que beberia a sua pinga, diz a Natalia Dmitrievna,
+muito de mansinho.</p>
+
+<p>&mdash;Se já se viu semelhante desaforo;</p>
+
+<p>&mdash;Abominavel criatura!</p>
+
+<p>&mdash;Se quer ao menos fartámo-nos de rir!</p>
+
+<p>&mdash;Que chorrilho d'inconveniencias!</p>
+
+<p>&mdash;É ella abrir a bôca!&mdash;Passa fora!<span
+class="pn">{152}</span></p>
+
+<p>&mdash;Mas que queria ella dizer com as taes bôdas? indaga em ar de mofa a
+Felissata Mikhailovna.</p>
+
+<p>&mdash;É temivel! exclama Maria Alexandrovna. E são uns monstros d'este
+calibre que andam para ahi a desacreditar a toda a gente, com a estupida
+linguarice! E sabe o que lhe digo, Felissata Mikhailovna, é que me não admira,
+que umas fufias assim sejam recebidas na nossa sociedade, quando, o que é ainda
+mais para admirar, ha gente que a ellas recorra, que lhe dê ouvidos, e que lhes
+dê credito... cambada!... </p>
+
+<p>&mdash;O principe! O principe! gritam á uma.</p>
+
+<p>&mdash;Valha-me Deus! O principe!</p>
+
+<p>&mdash;Graças a Deus! Até que emfim vamos ficar sabendo a verdade.<span
+class="pn">{153}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>XIII</h2>
+
+<p>Entra o principe, dilatados, os labios por aquelle seu meigo sorriso. A
+inquietação insuflada pelo Mozgliakov n'aquelle descuidado coração desapparece
+de todo, ao dar com os olhos nas damas: derrete-se desde logo que nem um
+rebuçado.&mdash;Elle, em geral, entretem muitissimo o bello sexo. A Felissata
+Mikhailovna affirmava, até, esta manhã, por brincadeira, já se vê, que estava
+pronta a sentar se-lhe nos joelhos, se elle quisesse, pois era "um encanto de
+um ginjinha, um encanto nunca visto, até." E Maria Alexandrovna sem tirar
+d'elle os olhos, a estudál-o, tentando prever-lhe no semblante o desfecho de
+tão critica situação. É evidente haver o Mozgliakov comprometido gravemente o
+negocio e o estar um tanto vacilante a emprêsa. E não obstante nada se pode ler
+no rosto do principe... está, como sempre, insipido e encantador.</p>
+
+<p>&mdash;Ai, meu Deus! Até que ahi vem o principe! E nós todos á sua espera!
+exclamam diversas damas.</p>
+
+<p>&mdash;Com impaciencia, principe, com impaciencia, pipilam as restantes.</p>
+
+<p>&mdash;Li... son... son... jeia... me... sum... ma... mente, diz o principe
+sentando-se á mêsa defronte do samovar a ferver.</p>
+
+<p>As damas atrigam-se em fazer-lhe cerco. A Anna Nikolaievna e a Natalia
+Dmitrievna são as unicas que se deixam ficar ao pé de Maria Alexandrovna.
+Aphanassi Matveich<span class="pn">{154}</span> sorri, respeitozissimo.
+Mozgliakov sorri tambem a olhar com uns ares de provocação para a Zina a qual,
+sem fazer caso delle, se acerca do pae e se senta ao lado d'este n'uma
+poltrona.</p>
+
+<p>Ah! principe&mdash;sempre é verdade que se retira? indaga a Felissata
+Mikhailovna.</p>
+
+<p>&mdash;Está c... claro... minhas senhoras, retiro-me; vou... im... me...
+diata.. mente para o estrangeiro.</p>
+
+<p>&mdash;Para o estrangeiro, principe!</p>
+
+<p>&mdash;Para o estrangeiro! clama toda a gente em côro. Que ideia!</p>
+
+<p>&mdash;Pa... ra o est... est... rangeiro, affirma o principe, a tomar
+atitudes, e n... não sabem?&mdash;eu se vou é... é... por causa das taes...
+ideias novas.</p>
+
+<p>&mdash;Como assim? As ideias novas?</p>
+
+<p>&mdash;De que é que se trata? perguntam as damas a olhar umas para as
+outras.</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... laro!... As ideias novas! insiste o principe com uns
+modos de intima convicção; vae lá toda a gente, agora, por causa das ideias
+novas, e eu se vou é... com... o sentido tambem de me sa... turar.</p>
+
+<p>&mdash;É capaz de estar com o sentido em ir filiar-se por lá em alguma loja
+maçonica? intervem o Mozgliakov desejoso de fazer brilhar o seu espirito na
+presença das damas.</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... claro, meu amigo, não t'enganas. Eu, em tempos,
+pertenci, effectivamente, a uma loja maçónica. Animavam-me, até, umas ideias,
+muitissimo generosas... Propunha-me a fazer muita coisa... em... em favor da...
+in... instrucção... mo... moderna. Queria dar carta... de... al... fo... forria
+ao meu Si... do... dor, mas safou-se<span class="pn">{155}</span> antes de
+tempo, com grande es... panto da minha parte. Que lemb... rança tão ra... tona!
+Depois, um dia, encontrei-o cara... a... cara... lá em Paris, vestido como um
+dandy, com umas suissas,... a passear pelo bou... levard... com uma
+"<em>menina</em>". Acenou-me com a cabeça... e mais nada. E a tal
+<em>menina</em>, que levava p... pelo braço tinha uns ares tão agai...
+atados... tão ape... titosa.</p>
+
+<p>&mdash;O tiozinho, então, d'esta vez, em se apanhando em Paris, dá a
+liberdade aos servos todos, sem excepção?</p>
+
+<p>&mdash;Está..., c... claro... adivinháste-me o pensamento, meu c... caro. É
+tal qual... quero dar liberdade a to... dos elles.</p>
+
+<p>&mdash;Ora vamos, principe, safam-se-lhe todos de casa, e depois, quem é que
+lhe paga o dizimo? exclama a Felissata Mikhailovna.</p>
+
+<p>&mdash;Pois já se vê, que se safam, acode, inquieta, Anna Nikolaievna.</p>
+
+<p>&mdash;Ai, meu Deus! Que me diz? Então parece-lhe que o façam?</p>
+
+<p>&mdash;Safam-se, safam-se, pudera não... Tão certo! E o senhor, depois,
+vê-se sósinho, confirma a Natalia Dmitrievna.</p>
+
+<p>&mdash;Ai! meu Deus! Visto isso... então n... não lhes dou... al... for...
+ria! E d'ahi, eu dizia isto... por dizer.</p>
+
+<p>&mdash;Antes assim, tiozinho.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna, até agora, tem estado caláda a observar. Parece-lhe que
+o principe se esqueceu d'ella, totalmente, e não acha isso natural.</p>
+
+<p>&mdash;Principe, enceta elevando a voz e com dignidade, peço-lhe licença
+para lhe apresentar Aphanassi Matveich,<span class="pn">{156}</span> meu
+marido. Veiu expressamente do cantinho da sua aldeia, assim que soube que o
+principe se achava hospedado em minha casa.</p>
+
+<p>Aphanassi, todo elle sorrisos e a fazer papo. Afigura-se-lhe que acabam de
+lhe endereçar um cumprimento.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Fol... go im... menso... Apha-anassi Matveich. Dê me licença...
+está-me a parecer que... me lembro... do que quer que seja... Aphana-assi
+Matvei... tch? Ah! sim! sim! Aquelle que estava no campo?... Encantado!
+encantado! Quanto esti... imo... Meu amigo, exclama o principe dirigindo-se a
+Mozgliakov... mas foi elle que... que... como se intende, então?... O marido lá
+por fóra... e a mulher... em... Sim, sim, lá n'uma cidade... e a mulher... </p>
+
+<p>&mdash;Ah! principe,... isso pelos modos ha de ser: o <em>Marido lá por
+fóra</em>, e a mulher <em>em Tvor</em>, o tal vaudeville, que uma companhia
+ambulante representou lá em casa o anno passado?</p>
+
+<p>&mdash;Está c... claro, em <em>Tvor</em>, e... eu... sempre a esqué...
+quécer-me! Encantado, encantado! Com que, então, é o senhor? Quanto estimo
+conhecêl-o! diz o principe sem se erguer da cadeira, de mão estendida para
+Aphanassi Matveich. E então, como vae?</p>
+
+<p>&mdash;Hum!... </p>
+
+<p>&mdash;Está optimo, optimo! acode Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... claro... bem se vê... Com que, então, vive sempre no
+campo? Pois, senhor, estimo muito.&mdash;Mas que bochêchas tão corádas que elle
+tem! E não faz senão rir!... </p>
+
+<p>Aphanassi Matveich sorri e faz-lhe a sua vénia, a arrastar<span
+class="pn">{157}</span> o pé pelo sobrado. E comtudo, assim que ouve a ultima
+observação do principe, não se pode suster e desata uma gargalhada alvar. E
+imita-o toda a gente. As damas soltam guinchos de alegria. A Zina, corrida,
+ruboriza-se e vibra uns olhos coruscantes a Maria Alexandrovna, que se está
+comendo de raiva. É tempo de desviar a conversação.</p>
+
+<p>&mdash;Dormiu bem, meu principe? indaga com voz tranquilla, intimando ao
+mesmo tempo, com uma olhadella vivaz, Aphanassi Matveich a que volte quanto
+antes para o seu logar.</p>
+
+<p>&mdash;Dormi op... ti... mamente... E, não sabem, tive um sô... ônho
+deliciôso, deli... ciô... so!</p>
+
+<p>&mdash;Um sônho! Gósto tanto de que me contem sônhos! exclama a Felissata
+Mikhailovna.</p>
+
+<p>&mdash;Tambem eu! accrescenta a Natalia Dmitrievna.</p>
+
+<p>&mdash;Um sô... nho... deliciôso... repete o principe com meigo sorriso; mas
+é segredo o tal sônho.</p>
+
+<p>&mdash;Como assim, principe? Nem sequer se pode contar? observa Maria
+Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Um grande segredo! repete o principe.</p>
+
+<p>Recrudesce a curiosidade.</p>
+
+<p>&mdash;Mas, então, deve de ser interessante, interessantissimo, exclamam de
+todos os lados.</p>
+
+<p>&mdash;Não se me dava de apostar que o principe, no tal seu sônho, estava de
+joelhos aos pés de alguma beldade a fazer-lhe a sua declaração de amor! exclama
+a Felissata Mikhailovna. Ora vamos, principe, confesse! Confesse!... então, meu
+rico principezinho da minha alma!</p>
+
+<p>&mdash;Confesse, principe, confesse! exclamam por todos os lados.<span
+class="pn">{158}</span></p>
+
+<p>E o principe deliciado, a escutar aquella gralhada. Lisonjeia-o a
+supposição, e lambe-se todo, até.</p>
+
+<p>&mdash;Comquanto seja um grande segredo, não tenho remedio senão confessar
+que ma... madame, com grande espanto da minha parte, por pouco o não adivinha
+de todo.</p>
+
+<p>&mdash;Adivinhei! exclama com arrebatamento Felissata Mikhailovna. E então,
+principe, é preciso dizer-nos quem é essa tal belleza!</p>
+
+<p>&mdash;Tem obrigação de o dizer!</p>
+
+<p>&mdash;Achar-se-ha aqui?</p>
+
+<p>&mdash;Diga, diga, meu rico principezinho!</p>
+
+<p>&mdash;Principe... meu amorzinho! Diga! Morra depois, mas diga!</p>
+
+<p>&mdash;Mi... nhas... senhoras! Minhas se... senho... ras, se insistem em
+absoluto por que lh'o diga, apenas lhes po... derei desvendar uma coisa: era a
+mais seductora, a mais virtuosa menina, de quantas... tenho conhecido em minha
+vi... vida!</p>
+
+<p>&mdash;A mais seductora... de quantas aqui estão? Quem será? indagam entre
+si as damas a trocarem signaes de connivencia.</p>
+
+<p>&mdash;Com toda a certeza que deve de ser aquella que disputa a fama de ser
+a primeira beldade de Mordassov, prorompe a Natalia Petrovna a bater as palmas
+com aquellas manápolas côr de lagosta e sem tirar os olhos de cima da Zina.</p>
+
+<p>E toda a gente com os olhos pregados na Zina.</p>
+
+<p>&mdash;Mas como é, então, que o principe, com uns sonhos assim, não se casa
+por uma vez? indaga a Felissata Mikhailovna.<span class="pn">{159}</span></p>
+
+<p>&mdash;Soubessemol-o nós, e que noivazinha lhe não teriamos arranjado!
+affirma, d'ali, outra dama.</p>
+
+<p>&mdash;Case-se! case-se, principezinho da minha alma&mdash;pipíla uma
+terceira.</p>
+
+<p>&mdash;Case! case-se!&mdash;guincham por todos os lados. Por que é que não
+ha de casar?</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... claro... por que é que eu me... n... não hei-de casar?
+acóde o principe, atrapalhado.</p>
+
+<p>&mdash;Tiozinho! exclama o Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... claro, meu amigo, já te percebi. O que eu queria
+dizer-lhes, minhas senhoras, é que me não posso casar. Concluida esta deliciosa
+<em>soirée</em>, em casa da nossa amabilissima hospeda, amanhã tenciono ir até
+a charnéca, e d'ali, para o es-trangeiro, quero ir estudar a ins-tru-cção
+euro-ro-pêa.</p>
+
+<p>A Zina está enfiada e vibra á mãe uns olhos rancorosos. Maria Alexandrovna,
+comtudo, assentou n'uma resolução. Até agora, estava á espera, a apalpar o
+terreno, supposto lhe parecesse achar-se sufficientemente compromettido o
+negocio e haverem-se-lhe antecipado seus inimigos. Percebe tudo, finalmente, e,
+de um golpe, quer acabar com aquella hydra das cem cabeças. Ergue-se,
+majestatica, acerca-se da mêsa a passo firme e com soberbo olhar enterra pelo
+chão abaixo aquelles pygmeus que a rodeiam. Reluz-lhe nos olhos o fogo da
+inspiração. Vae aniquilar aquella sucia de coscovilheiras peçonhentas, esmagar
+aquelle sevandija do Mozgliakov como quem esmága uma barata, e com um golpe
+decisivo, reconquistar de todo a influencia que perdeu sobre a pessoa d'aquelle
+idiota d'aquelle principe. Claro está que para isso ha mister de appellar<span
+class="pn">{160}</span> para um atrevimento extraordinario, mas não será isso
+que escasseie a Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Minhas senhoras, enceta com modo solemne (Maria Alexandrovna nutre
+paixão pela solemnidade), minhas senhoras, tenho estado a ouvir calada as suas
+gracinhas e acho que já vae sendo tempo de que eu, pela minha vez, lhes dirija
+algumas. Bem sabem que nos achamos aqui juntas, unicamente por mero acaso.
+Estimo isso muito... Nunca me haveria resolvido a tornar publico um tão
+importante negocio de familia antes de o exigirem os dictames do mais estricto
+decoro. E acima de tudo, pedirei perdão ao nosso distinctissimo hospede. Mas
+quer me parecer que é elle o proprio quem, mediante remotissimas allusões a
+semelhante circunstancia, me suggere o pensamento de que a formal declaração
+d'este segredo lhe será grata, mas que ella lhe inspira apprehensões. Não é
+verdade, meu principe, que me não enganei?</p>
+
+<p>&mdash;Está claro... não se enganou... e estimo muito... muito... diz o
+principe sem perceber palavra d'aquillo de que se está tratando.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna, no intuito de melhor dispôr o seu lance, toma o folego e
+põe-se a examinar todo o auditorio, todos á uma a escutál-a com ávida e
+inquieta curiosidade. O Mozgliakov, todo elle a tremer, a Zina, muito
+afogueada, levanta-se... Aphanassi Matveich, n'estes assados, assôa-se.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, minhas senhoras, folgo immenso de as tornar participes d'este
+segredo familial. Hoje, depois de jantar, o principe, seduzido pela formosura
+de... pelas qualidades de minha filha... conferiu-lhe a honra de lhe pedir a
+mão. Principe, conclue ella com um tremor na voz, querido<span
+class="pn">{161}</span> principe, não me deve querer mal por esta minha
+indiscreção. O auge do contentamento, eis o que conseguiu arrancar-me do
+coração, um tanto prematuramente, este segredo estremecido, e... qual será a
+mãe que m'o leve a mal? Nem encontro sequer palavras que descrever possam o
+effeito produzido pela inspirada saída de Maria Alexandrovna. Ficaram todos
+varados de espanto. As visitantes, que suppunham assustar Maria Alexandrovna,
+deixando-lhe antever o estarem senhoras do seu segredo, matál-a com a
+divulgação do segredo, esfacelál-a com o poder unico das allusões, ficam
+estupefactas perante uma tão denodada franqueza. Uma tal valentia era um signal
+certo de bom exito.</p>
+
+<p>&mdash;Por conseguinte, é por sua propria vontade que o principe vae casar
+com minha filha Zina. Ninguem o enganou, ninguem o embriagou... E por tanto,
+não foi com esconderijos, á laia de ladrão, que o obrigaram a tomar estado!
+Maria Alexandrovna, n'essa conformidade, não se arreceia seja de quem fôr, e
+não ha ninguem que possa malograr este casamento.</p>
+
+<p>Paira um borborinho que desde logo se transforma em jubiloso alarido. A
+Natalia Dmitrievna arremete de braços abertos para Maria Alexandrovna,
+segue-lhe o exemplo a Anna Nikolaievna, e a Felissata Mikhailovna vem na
+trazeira do rancho. Põem-se todos de pé, baralham-se. Das damas, algumas ha que
+estão fulas de raiva. Pegam a dirigir parabens á Zina, atrapalhada, e
+atiram-se, até, ao Aphanassi Matveich. Maria Alexandrovna estende os braços com
+enfase, e á viva força, quasi, agarra-se á filha aos abraços a ella. Tão
+sómente o principe, todo elle a rebulir, a considerar<span
+class="pn">{162}</span> esta scena, de olhos espantados. E d'ahi, agrada-lhe
+aquillo. Ao ver a filha nos braços da mãe, saca, até, do lenço e limpa o canto
+do olho onde bugalhou uma lagrima. Atiram-se a elle, tambem, para lhe dar os
+parabens.</p>
+
+<p>&mdash;Parabens, principe, parabens! guincham por todos os lados.</p>
+
+<p>&mdash;Com que então é certo, sempre vae casar?</p>
+
+<p>&mdash;Sempre se casa, effectivamente?</p>
+
+<p>&mdash;Ora até que se casa, principezinho da minh'alma!</p>
+
+<p>&mdash;Está... c... claro... está... c... claro! responde o principe,
+encantado de semelhante enthusiasmo. Confesso-lhe que a sua simpatia me tocou o
+coração... Nunca me ha... de esquecer! Encan... tado! Encan... tado! Fizeram...
+me, até, vir as lagrimas aos olhos.</p>
+
+<p>&mdash;Venha um beijo, principe! guincha mais que todas juntas a Felissata
+Mikhailovna.</p>
+
+<p>&mdash;E confesso-lhe... prosegue o principe, que fiquei pasmado por ver que
+a nossa digni... ssima hos... peda, adivinhasse... com tanta pers... picacia,
+um sonho tão extraordi... nario, como se fosse ella... que o sonhou... tal
+qual&mdash;Es... panto... sa pers... pica... cia.</p>
+
+<p>&mdash;Ora esta! E o principe ainda a insistir no tal sonho?</p>
+
+<p>&mdash;Então, vamos, principe, confesse! clama o côro das damas a fazer-lhe
+cerco.</p>
+
+<p>&mdash;Deixe lá, principe, é escusado estar com esconderijos, é tempo de
+patentear o seu coração, declara em tom categorico Maria Alexandrovna. Não me
+escapou a fina alegoria, a delicadeza cavalheiresca, que se revelam na forma
+discreta por que tornou publico o seu pedido. Sim, minhas senhoras, é verdade,
+hoje ainda, o principe ajoelhou aos<span class="pn">{163}</span> pés de minha
+filha, e de modo real e verdadeiro, que não em sonho, formulou solemnemente o
+seu pedido.</p>
+
+<p>&mdash;Quan... to... ha de mais real... e nas mê... mêsmas circunstancias,
+appoiou o principe. Minha me... nina, proseguiu com summa delicadeza
+dirigindo-se á Zina cada vez mais atrapalhada, juro-lhe que jamais me atreveria
+a proferir o seu n... ôme, se acaso o não tivessem outros... mencion... ado
+antes. Foi um sonho de... licioso... uma... de... licia de um... sonho! E folgo
+immenso... em ter ensejo... de o manifestar Um encanto!... Um encanto!</p>
+
+<p>&mdash;Mas, como se intende isto? Elle insiste em se referir ao tal sonho!
+murmura a Anna Nikolaievna dirigindo-se a Maria Alexandrovna, inquieta e um
+tanto enfiada.</p>
+
+<p>Mas, ai! O coração de Maria Alexandrovna está alanceado por tristissimos
+presentimentos.</p>
+
+<p>&mdash;E então? murmuram as damas a olharem umas para as outras.</p>
+
+<p>&mdash;Ora vamos, principe, profere Maria Alexandrovna com um sorriso
+amarello, confesso-lhe que me deixou pasmada.&mdash;Admira-me que esteja a
+insistir n'essa sorna do tal sonho! Eu até agora, estava na fé, de que fosse
+méro gracejo da sua parte... mas... se o é, ha de convir, que se vae
+prolongando um tanto fora de proposito... Não posso nem devo admitir que seja
+outra coisa além de uma distracção... </p>
+
+<p>&mdash;Deve de ser por distracção, efectivamente, assobia a Natalia
+Dmitrievna. </p>
+
+<p>&mdash;E... stá... c... claro!... Di... distracção! repete o principe sem
+perceber o que é que d'elle pretendem... Ora... ima... ginem, vou contar-lhes
+uma anecdó... ta. Fui convidado<span class="pn">{164}</span> pa... ra assistir
+a um enterro, em Petersburgo, n'uma casa burguêsa, mas decente, e... e fiz
+confusão... suppús que era para festejar o nas... cimento de uma creança, (o
+tal dia... nata... licio já lá... ia, havia mais de uma semana)... e fui
+comprar um lindo rama... lhete de camelias para a pessoa... fes... tejada.
+Entro... e que hei de eu ver? Um su... jeito mui... to digno, de uma certa
+edade, estendido em cima da mesa... Fiquei passádo, sem saber onde me havia de
+meter e mais o meu ramo.</p>
+
+<p>&mdash;Pois sim, principe, não se trata agora de anecdótas! atalhou Maria
+Alexandrovna despeitadissima. Minha filha, louvado Deus, não tem necessidade de
+andar á pesca de noivos, mas inda agora, o senhor, em pessoa, ali ao pé
+d'aquelle piano, a pediu em casamento. Ninguem o obrigava... para mim propria
+foi uma surpreza... mas sou mãe, e ella, é minha filha... Acaba de referir-se a
+um sonho; sempre estive na fé de que fosse uma allusão aos seus esponsorios...
+Sei e mais que sei, que o viraram de dentro para fora&mdash;desconfio quem
+fosse&mdash;tal qual uma luva, mas...&mdash;queira explicar-se, principe, e
+queira fazêl-o quanto antes! Semelhantes gracejos não tem cabimento n'uma casa
+respeitavel.</p>
+
+<p>&mdash;E... stá.. c... claro! Não são brin... cadeiras para... uma casa
+respeitavel, concorda o principe... inconsciente, mas um tanto inquieto.</p>
+
+<p>&mdash;Então, não me responde, principe! Já lhe pedi que quisesse
+explicar-se de modo peremptorio: confirme, confirme, desde já, diante de toda a
+gente, o facto de haver pedido hoje minha filha em casamento.</p>
+
+<p>&mdash;Es... tá... c... claro... estou pronto a confirmar... <span
+class="pn">{165}</span> Tanto mais, que já lhes contei tudo, e Felissata
+Yako... kolevna adivinhou ca... balmente o meu sonho.</p>
+
+<p>&mdash;Sonho! Qual sonho!? exclama rabiosa Maria Alexandrovna; não foi
+sonho. Foi realidade, principe, intendeu? Realidade e mais que realidade!</p>
+
+<p>&mdash;Rea... li... dade... repete o principe erguendo-se da cadeira...
+Está-se dando... tudo aquillo de que... tu me preveniste, accrescenta
+dirigindo-se a Mozgliakov. Afirmo-lhe, Maria Alexandrovna... que ha equi...
+voco da sua parte. Tenho toda a certeza em como foi sonho!</p>
+
+<p>&mdash;Meu Deus! geme Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Não se afflija, Maria Alexandrovna, intervem a Natalia Dmitrievna; ao
+principe, varreu-se-lhe da memoria... elle se lembrará.</p>
+
+<p>&mdash;Isso nem parece seu, Natalia Dmitrievna! responde furibunda Maria
+Alexandrovna. Isso são lá coisas que se esqueçam? Ora vamos, principe,
+deixemo-nos de facecias! Dar-se-ha o caso de que esteja armando em Lovelace?
+Mas, tenha a certeza, sem falarmos em que é pouco proprio da sua edade,
+juro-lhe, que lhe não ha de valer! Minha filha não é para ahi qualquer
+viscondessa francêsa! Não ha ainda muito tempo, lhe estava ella a cantar uma
+romança e o senhor de joelhos a seus pés, a formular o seu pedido de
+casamento.&mdash;Serei eu que estou a sonhar? Fale, principe... Estarei a
+dormir, porventura?</p>
+
+<p>&mdash;Es... tá c... claro!... e d'ahi, talvez que não, responde o principe,
+desnorteado de todo... Quero dizer... não creio... que estou a sonhar... pre...
+sente... mente. Mas... não vê a senhora... que eu, indagora, estava a sonhar...
+e depois vi... em sonhos, que eu, a sonhar... <span class="pn">{166}</span></p>
+
+<p>&mdash;É preciso paciencia, meu Deus!... Que quer dizer com isso? Em sonhos,
+que eu, a sonhar! Nem o proprio demonio era capaz de o perceber!... O principe
+estará a delirar?</p>
+
+<p>&mdash;Está c... claro!... Nem o proprio demonio... E d'ahi... eu é que não
+percebo uma pa... palavra, declara o principe a olhar para todos os lados,
+inquieto.</p>
+
+<p>&mdash;Mas como é que o principe póde ainda acreditar que é sonho, depois de
+eu lhe ter contado os pormenores d'esse tal supposto sonho do qual o senhor não
+tinha dado parte a ninguem?</p>
+
+<p>&mdash;Mas quem nos affirma que o não tivesse já contado a alguem, insinua
+n'este ensejo a Natalia Dmitrievna.</p>
+
+<p>&mdash;Está... claro... a alguem, confirma o principe.</p>
+
+<p>&mdash;Que comedia! murmura a Felissata Mikhailovna á vizinha.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! meu Deus! excede a humana paciencia! vocifera Maria Alexandrovna,
+a estorcer as mãos, no auge do exaspero. Se ella até lhe estava a cantar uma
+romança; uma romança! Tambem a veria no tal sonho?</p>
+
+<p>&mdash;Está... claro... effectivamente, uma romança, murmura, absorto, o
+principe.</p>
+
+<p>De repente, vem ressuscitá-lo uma reminiscencia.</p>
+
+<p>&mdash;Meu amigo, exclama dirigindo-se a Mozgliakov, tinha-me esquecido
+dizer-te, indagora, que ella me tinha cantado uma romança... em que havia uns
+cas... tellos... muitos... com um tro... vador... Está... claro...
+recordo-me... e por signal... que até chorei... e agora nem sei já, se seria
+realidade ou se foi sonho.</p>
+
+<p>&mdash;Tiozinho, responde o Mozgliakov com a maxima<span
+class="pn">{167}</span> tranquilidade que pôde assumir (com quanto lhe trema a
+voz) não me parece lá muito grave a dificuldade. Na realidade, não direi que
+não tenha ouvido uma romança, canta tão bem a Zinaida Aphanassievna!
+Acordar-lhe-hia reminiscencia dos seus bons tempos de outrora, dos instantes
+ditosos, talvez que da tal viscondessa com quem o tio cantava tambem, algum
+dia, romanças e á qual se referiu esta manhã. E depois, a dormir, sonharia
+talvez que estava apaixonado e que tinha formulado o seu pedido de
+casamento.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna fica atordoada com semelhante insolencia.</p>
+
+<p>&mdash;Ai! meu amigo! effectivamente! Ha de ser isso! exclama o principe,
+contentissimo. Sim, sim, a dor... dormir!... umas agrad... aveis sensações...
+Lembro-me da romança, e eu a querer casar... Um sonho! E tambem ali estava a
+viscondessa... Ah! como tu desen... vencilhaste bem tu... do isso... meu caro!
+Muito bem! É eu agora estou convencido:&mdash;era um sonho, Maria Vassilievna!
+Affirmo-lhe que está... equi... vocada: foi sonho!... eu... nunca seria capaz
+de estar gracejando... com a sua... respeita... bilidade.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! agora, agora estou vendo quem foi o autor de tudo isto! exclama
+fora de si Maria Alexandrovna com os olhos fitos em Mozgliakov. Foi o senhor, o
+senhor! homem sem dignidade! Foi o senhor! Enganou este pobre idiota para se
+vingar de ter apanhado um não pelas ventas! Mas tu m'as pagarás, miseravel! Tu
+m'as pagarás, deixa estar!</p>
+
+<p>&mdash;Maria Alexandrovna, vociféra por sua vez Mozgliakov,<span
+class="pn">{168}</span> vermelho que nem uma lagosta cozida, são tão... as suas
+palavras... nem sei até que ponto as suas palavras... uma senhora da sociedade
+jámais se permittiria... Estou defendendo meu tio... e confesse que o querer
+seduzir de semelhante modo... </p>
+
+<p>&mdash;Es-tá... c-claro&mdash;seduzir... seduzir... de semelhante...
+modo&mdash;mia o principe, que se ergueu da cadeira e tudo é querer esconder-se
+por detrás de Mozgliakov.</p>
+
+<p>&mdash;Aphanassi Matveich&mdash;despulmôa-se a berrar Maria Alexandrovna,
+não ouves que estão para aqui a desacreditar-me? Perderias tu o sentimento dos
+teus deveres, porventura? Não serás tu mais que um cêpo? Para que estás tu para
+ahi a piscar os olhos? Outro qualquer no teu logar tinha já lavado com sangue o
+ultraje que nos estão fazendo!</p>
+
+<p>&mdash;Minha esposa! enceta com solemnidade Aphanassi Matveich, lisonjeado
+por ver que se lembram delle, minha esposa! não seria sonho, effectivamente? E
+depois, tu, ao acordar, ficares suppondo que era verdadeiro... </p>
+
+<p>Aphanassi Matveich, nem tempo tem de concluir a sua espirituosa
+interpretação. As visitantes, até ali, contiveram-se mantendo uns módos de
+cortês hypocrisia, mas d'esta vez a risota foi geral.</p>
+
+<p>Maria Alexandrovna, esquecendo de todo as conveniencias, atira-se ao marido,
+para lhe arrancar os olhos, provavelmente; vêem-se na necessidade de a segurar
+á força.</p>
+
+<p>A Natalia Dmitrievna aproveita a circunstancia para entornar uma doze
+d'alcatrão no lume.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Maria Alexandrovna, quem nos diz que não foi sonho,
+effectivamente? emitte em voz represada.<span class="pn">{169}</span></p>
+
+<p>&mdash;Um sonho? Um sonho o quê? clama Maria Alexandrovna sem perceber.</p>
+
+<p>&mdash;Então! Maria Alexandrovna, são coisas que acontecem.</p>
+
+<p>&mdash;Acontece? Mas que é que acontece?</p>
+
+<p>&mdash;Talvez que a senhora tenha visto tudo isso a sonhar!</p>
+
+<p>&mdash;A sonhar! Eu? A sonhar! E atreve-se a dizer-m'o na cara!</p>
+
+<p>&mdash;E d'ahi, é possivel, insiste a Felissata Mikhailovna.</p>
+
+<p>&mdash;Está... c-claro!... é po... pos-possivel, murmura por sua vez o
+principe. </p>
+
+<p>&mdash;Pois tambem elle! Elle! Santo Deus! Maria Alexandrovna enclavinha as
+mãos. </p>
+
+<p>&mdash;Não se desconsole, Maria Alexandrovna! Lembre-se de que os sonhos é
+Deus que os manda! Não ha coisa nenhuma n'este mundo que possa ir ávante contra
+a sua santa vontade... nem é motivo para que se altere.</p>
+
+<p>&mdash;Está... c-claro... não ha motivo... </p>
+
+<p>&mdash;Cuidam talvez que sou alguma doida? consegue apenas silvar Maria
+Alexandrovna esganada de raiva.</p>
+
+<p>Encheu-lhe a medida ás forças semelhante scena. Procura á pressa uma cadeira
+e deixa-se cair, exanime.</p>
+
+<p>Segue-se uma algazarra.</p>
+
+<p>&mdash;Acudiu a tempo o chelique!</p>
+
+<p>N'este conflicto, porém, eis que surge por entre a balburdia geral, a
+intervir, uma personagem muda até então, e se transforma desde logo a feição da
+scena.<span class="pn">{170}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>XIV</h2>
+
+<p>Era sobremodo romanesco o caracter da Zinaida Aphanassievna. Não sabemos se
+teria abusado da leitura daquelle "pateta do tal Shakspeare", lá, com o tal seu
+<em>utchitelzinho</em>, mas até agora ainda não havia praticado um tão heroico
+acto de loucura como o que praticou n'este conflicto.</p>
+
+<p>Enfiada, com os olhos a relampejarem-lhe de resoluta, toda ella n'um tremor,
+um portento de formosura e de colera, avança, varre com a provocação nos olhos
+toda aquella gente em redor de si, e por entre o silencio geral, dirige-se á
+mãe a qual, assim que a Zina se levantou, tornou a abrir os olhos.</p>
+
+<p>&mdash;Para que é estar com fingimentos, mamã? É já tão sujo, tudo isto a
+que estamos assistindo! Basta de mentiras! Não vale a pêna estar a tapar lama
+com a propria lama.</p>
+
+<p>&mdash;Mas que é isto, Zina! Tu não estás em ti! exclama Maria Alexandrovna,
+erguendo-se de repellão.</p>
+
+<p>&mdash;Eu bem a tinha avisado, mamã, de que não podia supportar semelhante
+vergonha! Não estejamos a sujar-nos mais do que o estamos já!... Assumirei a
+responsabilidade de tudo. Fui, eu, visto que consenti, que teci toda esta
+vilissima... intrigalha. A mamã estava na fé de que trabalhava com o sentido em
+me tornar feliz, sequer ao menos tem desculpa: eu, nenhuma!<span
+class="pn">{171}</span></p>
+
+<p>&mdash;Que vaes tu dizer, Zina! Bem me dizia o coração que me estava ainda
+guardado mais este desgosto!</p>
+
+<p>&mdash;É assim mesmo, mamã! Vou declarar tudo! Nem sei como não morri de
+vergonha... cobrimo-nos de opprobrio, tanto a mamã como eu... </p>
+
+<p>&mdash;Estás exagerando, Zina! Nem sabes o que estás dizendo! Contar tudo,
+para quê?... Não ha a minima necessidade... Quem se cobriu de opprobrio não
+fômos nós, e vou provál-o!</p>
+
+<p>&mdash;Deixe-me falar! Não quero estar calada por mais tempo na presença de
+uma gente que desprézo e que vieram aqui unica e exclusivamente para se rirem á
+nossa custa. Entre estas mulheres, sem excepção, não ha uma unica a quem
+assista o direito de me condemnar! Todas ellas estão prontas a fazer cem vezes
+peor do que fizemos, eu, e a mamã. Com que direito poderiam ellas, com que
+direito se atreveriam a fazêl-o?</p>
+
+<p>&mdash;Então! Já viram?</p>
+
+<p>&mdash;Quem n'a ouve falar!... </p>
+
+<p>&mdash;Mas está nos offendendo!... </p>
+
+<p>&mdash;E ella, sim, que será?</p>
+
+<p>&mdash;Ella sabe lá o que está dizendo? remata a Natalia Dmitrievna. Seja
+dito, entre parenteses, que a Natalia Dmitrievna não deixava de ter razão. Se a
+Zina considerava aquellas damas indignas de julgar á mãe e a si, por que era
+então que se ia confessar na sua presença? Em summa, a Zina tinha procedido com
+excessiva precipitação. E mais tarde, era esta, até, a opinião das pessoas mais
+sensatas em Mordassov. Tudo se poderia haver conciliado. É certo que Maria
+Alexandrovna, pela sua parte, se havia<span class="pn">{172}</span> prejudicado
+pela sua precipitação e sua altivez. Ter-lhe-hia bastado meter a ridiculo o
+idiotazito do ginja e pôl-o a andar. A Zina, comtudo, de caso pensado e como
+que para arrostar com o bom senso e a sisudez mordassovense, dirigiu-se ao
+principe.</p>
+
+<p>&mdash;Principe, diz a Zina ao velho que desde logo se põe de pé com
+deferencia, a tal ponto o impressionou a fisionomia da Zina, queira
+perdoar-nos, mas saiba que o enganámos!</p>
+
+<p>&mdash;Não te calarás por uma vez! desgraçada! vocifera Maria
+Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Minha&mdash;menina,&mdash;minha... menina... minha... en... en...
+cantadora... murmura o principe, pasmado.</p>
+
+<p>O caracter soberbo, fogoso e mistico da Zina leva-a a transpôr quaesquer
+limites. Esquece-se dos transes por que estará passando a mãe ante esta publica
+confissão; só vê a salvação, a redempção na franqueza, e vae até ao fim.</p>
+
+<p>&mdash;Enganámol-o, sim, uma e outra, principe; a mamã resolvendo-me a
+aceitar a sua mão, e eu em consentir. Embriagámo-nos, eu, puz-me a cantar e a
+fazer tregeitos na sua presença com sentido em o saquear, conforme se expressou
+ha pouco Pavel Alexandrovitch, para lhe roubar a sua fortuna e o seu titulo.
+Era ignobil! E peço-lhe perdão! E comtudo, juro-lhe, principe... que a minha
+intenção... O que eu queria era... mas é duplicar a injuria o estar a procurar
+desculpas. E todavia, declaro-lhe, principe, que se eu tivera casado com o
+senhor, se eu o houvesse saqueado e roubado, em compensação, haver-me-hia
+tornado o seu brinquedo, a sua criada, sua escrava... A<span
+class="pn">{173}</span> mim propria m'o havia prometido, e cumpriria o meu
+juramento... </p>
+
+<p>Veiu interrompêl-a um deliquio, as visitantes estão de pé, todas ellas, com
+os olhos esgazeados. A tão imprevista quanto incomprehensivel expansão (para
+ellas) da Zina desorientou-as. O principe, tão sómente, tem os olhos arrazados
+de lagrimas, de commovido, supposto não perceba metade sequer do que ella tem
+dito.</p>
+
+<p>&mdash;Mas... es... tá... claro... que hei de casar com a menina... com a
+minha... l... linda menina, visto que tanto o... o deseja. E isso para mim
+re... representa... até, subida hon... ra... Mas, não deixarei... de insistir
+em que foi sonho!... Vejo tan... ta coisa, a so... sonhar! Por que é que se
+hão-de estar a inquietar? Eu não percebi coisa nenhuma, meu amigo, prosegue
+dirigindo-se a Mozgliakov; explica-m'o, se fazes favor!</p>
+
+<p>&mdash;E o senhor, Pavel Alexandrovitch, que se vingou de mim de modo tão
+cruel, como é que pôde combinar-se com semelhante gente para me esfacelar
+desacreditando-me? Allegava amar-me!... Mas para que estarei eu para aqui a
+prégar-lhe moral!... Sou mais culpada que o senhor, offendi-o; tambem para com
+o senhor me vali de hyprocrisia, de mentira! Nunca lhe tive amor, e se eu um
+dia me resolvesse a desposál-o, seria unicamente para me ver livre d'esta
+maldita cidade... Mas declaro-lhe, que se tal houvesse succedido, teria em mim
+uma esposa fiel e carinhosa.</p>
+
+<p>&mdash;Zinaida Aphanassiévna!</p>
+
+<p>&mdash;E se ainda me conserva rancor... </p>
+
+<p>&mdash;Zinaida Aphanassiévna!!<span class="pn">{174}</span></p>
+
+<p>&mdash;Se é que, algum dia, prosegue a Zina a rebalsar as lagrimas, se é que
+algum dia me teve amor... </p>
+
+<p>&mdash;Zinaida Aphanassievna!!!</p>
+
+<p>&mdash;Zina! Zina! Minha filha!</p>
+
+<p>&mdash;Sou um miseravel, Zinaida Aphanassievna, um miseravel, e nada
+mais!... </p>
+
+<p>Produz-se um reboliço estupendo, uma vozearia de espanto, de indignação, de
+atroar a tudo. Mozgliakov ficou que nem que fôra de pedra, incapaz de pensar,
+de falar.</p>
+
+<p>Sempre que um caracter fraco e ôco, afeito a constante submissão, se decide
+a insurgir-se, pára sempre perante um certo limite. A principio, a insurreição
+manifesta-se com summa energia, é a energia do desespero, comtudo; arremete
+contra os obstaculos, de olhos vendados, e assumme sempre fardos pesados demais
+para os seus hombros. Chega um momento em que o desatinado se assusta de si
+mesmo, estaca, como que atordoado, e diz comsigo: "Mas que estou eu fazendo?" E
+distende-se o arco, pede perdão o insurrecto, supplíca, implora que as coisas
+"voltem a estar como estavam", comtanto que isso se effectue quanto antes...
+Foi o que se deu com o nosso Mozgliakov. Afflictissimo com o desastre de que
+fôra autôr, a si proprio se abomina, despedaça-o o remorso, as ultimas palavras
+da Zina anniquilaram-n'o de todo. O passar de um extremo a outro extremo
+representa para si obra de momentos.</p>
+
+<p>&mdash;Sou um jumento, Zinaida Aphanassievna! Um jumento, nem mais nem
+menos! Ou ainda peor! Mas hei de provar-lhe, Zinaida Aphanassievna, que hei de
+saber tornar-me um homem de bem!... Saiba que o enganei&mdash;tiozinho! Fui eu,
+fui eu que o enganei!&mdash;O tio não estava a sonhar, e<span
+class="pn">{175}</span> pediu effectivamente a mão de Zinaida Aphanassievna!
+Quando lhe disse que fora sonho, enganei-o de meio a meio... </p>
+
+<p>&mdash;Mas que coisas tão espantosas que estão vindo a lume! assobia a
+Natalia Dmitrievna.</p>
+
+<p>&mdash;Es... tá... cclaro... um sonho... responde o principe... Mas socéga,
+por favor! Assustaste-me... pa... pa... lavra de honra! E que bella voz que tu
+tens! Estou pronto a ca... sar, se fô... fôr... necessario... Mas tu foste o
+pro... prio a af... firmar-me que... que foi sonho!</p>
+
+<p>&mdash;E como é que eu agora o hei de despersuadir? Que hei de eu fazer?
+tiozinho, considére em que se trata de um negocio muito sério, de familia!</p>
+
+<p>&mdash;Está... cclaro... Pen... sarei. Espera ahi! Deixa ver se me vou
+recordando... por p... partes... Pri... meiramente, o Phio... philo, o meu
+cocheiro.</p>
+
+<p>&mdash;Não se trata agora do Phiophilo, querido tio!</p>
+
+<p>&mdash;Está... cclaro!.. Não se trata... já se vê... que era de Napoleão...
+E depois, tomámos chá... Appareceu uma se... senhora... e comeu-nos o açucar...
+todo... </p>
+
+<p>&mdash;Não é nada d'isso, tiozinho, destampa para ali o Mozgliakov, fóra de
+si, quem lhe contou essa historia foi a Maria Alexandrovna, a respeito da
+Natalia Dmitrievna! Eu estava ali, escondido, atrás da porta; ouvi tudo!</p>
+
+<p>&mdash;Ora esta, Maria Alexandrovna! agarra no ar a Natalia Dmitrievna, com
+que então foi pespegar ao principe que eu lhe tinha furtado o açucar? Eu,
+então, venho a sua casa para furtar açucar!</p>
+
+<p>&mdash;Passa fora! mal encontra forças para emitir Maria Alexandrovna.<span
+class="pn">{176}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não, lá isso, tenha paciencia, Maria Alexandrovna, não lhe assiste o
+direito de se negar a responder. Eu, então, furtei-lhe o açucar? Estou farta de
+saber que não faz senão cortar-me na pelle, ha muito tempo!... Sou eu, então
+quem lhe furto o açucar!... </p>
+
+<p>&mdash;Mas... mi... minha senhora... isso de açucar... era sonho... o tal
+sonho... </p>
+
+<p>&mdash;Dorna d'uma figa! resmunga entre dentes Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Eu lhe direi quem é a dorna! ulula a Natalia Dmitrievna. E a senhora,
+que será então? Ha muito tempo que me pôz essa linda alcunha! Mas, sequer ao
+menos, tenho um marido, emquanto a senhora se contenta com um cêpo.</p>
+
+<p>... Es... tá... cclaro... Tam... bem me lembro da Dorna... </p>
+
+<p>&mdash;Ah! elle é isso?... Tambem veiu meter a sua
+colherada?&mdash;Atreve-se a injuriar uma senhora fidalga?! Com que, então, sou
+uma dorna; olha quem fala, que nem sequer tem pernas!</p>
+
+<p>&mdash;Es... tá... cclaro... Sem pernas... </p>
+
+<p>... Como foi... que disse?</p>
+
+<p>&mdash;Pois está sabido&mdash;nem pernas&mdash;nem dentes&mdash;Ora
+apanha!</p>
+
+<p>&mdash;E um olho, só!... accrescenta Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Um espartilho a suprir as costellas!</p>
+
+<p>&mdash;Com a cara de mólas, toda ella!</p>
+
+<p>&mdash;E nem um pello nessa careca!</p>
+
+<p>&mdash;O proprio bigode, é postiço, pateta das duzias, agrava Maria
+Alexandrovna. </p>
+
+<p>&mdash;Res... peitem&mdash;o meu na... nariz... sequer ao menos!<span
+class="pn">{177}</span> É verdadei... ro! exclama, o principe banzado de
+todo.&mdash;Fôs... te... tu que me de... nunciaste, meu amigo!</p>
+
+<p>Para que fôste contar que o meu&mdash;cabêllo era&mdash;po... postiço?</p>
+
+<p>&mdash;Tiozinho!</p>
+
+<p>&mdash;Não, meu amigo, já aqui não posso ficar... leva-me para qu... alquer
+parte... Que gente!</p>
+
+<p>Para onde tu me trouxeste!... Valha-me Deus!</p>
+
+<p>&mdash;Idiota! vocifera Maria Alexandrovna.</p>
+
+<p>&mdash;Ai! meu Deus! suspira o coitado do principe. Já nem sei porque seria
+que aqui vim parar&mdash;mas vou ver se me lembro.&mdash;Leva-me d'aqui para
+fora&mdash;mano! Faziam-me em bo... bocadinhos!&mdash;E depois, é urgente que
+eu vá anotar um... uma ideia... ca... capital.</p>
+
+<p>&mdash;Venha d'ahi, querido tio, ainda estamos a tempo. Vem commigo ahi para
+um hotel, qualquer, e não me aparto do tio... </p>
+
+<p>&mdash;Mas... está... cclaro, com o senhor... </p>
+
+<p>Adeus minha lin... da menina!</p>
+
+<p>... A menina... e só a menina é a unica... que é virtuosa. É uma.. nobi...
+lis... sima donzella!</p>
+
+<p>Vamos lá... meu caro... </p>
+
+<p>Ai! meu Deus!</p>
+
+<p>Não me abalançarei a descrever o epilogo da tão desagradavel scena, que se
+seguiu á retirada do principe. Os visitantes foram-se safando n'um berreiro de
+estrugir a tudo. Maria Alexandrovna ficou sósinha, em meio d'aquelle seu
+desastre. Já é infelicidade! Poderío, riqueza, gloria, foi-se tudo no espaço de
+um dia! Percebia e mais que percebia que nunca mais levantaria cabeça! A
+tirannia<span class="pn">{178}</span> por ella exercida durante tão longo prazo
+sobre Mordassov estava aniquilada de todo. Que lhe restava? Não era filosofa,
+Maria Alexandrovna. Passou uma noite pavorosa. Desacreditada a Zina, um nunca
+acabar de linguarice! <em>Hórror, hórror, hórror!</em> Na minha qualidade de
+historiografo sincero, cumpre-me mencionar que Aphanassi Matveich esteve a
+tiritar toda a santa noite no cubiculo, ás escuras, onde se fôra alapardar para
+conservação dos seus olhos.</p>
+
+<p>O dia immediato não amanheceu fagueiro: isto de desgraças vem sempre aos
+pares.<span class="pn">{179}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<h2>XV</h2>
+
+<p>Desde as oito horas da manhã que corria pela cidade um boato inacreditavel.
+Repetia-o cada qual com maligno contentamento, conforme é da praxe sempre que
+se trata d'algum escandalo do qual foi victima qualquer pessoa d'amizade.</p>
+
+<p>&mdash;Perder áquelle ponto a vergonha!</p>
+
+<p>&mdash;Rebaixar-se daquella maneira!</p>
+
+<p>&mdash;Arrostar assim com todas as conveniencias!</p>
+
+<p>&mdash;Que costumes!</p>
+
+<p>Eis o que succedera:</p>
+
+<p>Logo de manhanzinha, ahi pelas sete horas, salvo erro, entrava em casa de
+Maria Alexandrovna uma pobre vélhita, afflictissima, a supplicar da aia que
+fosse quanto antes accordar a <em>barichina</em><a name="tex2html15"
+href="#foot323"><sup>[15]</sup></a>, mas esta, tão sómente, ás escondidas de
+Maria Alexandrovna. A Zina, assustada, accudira desde logo. Cae-lhe de joelhos
+aos pés a velhota, aos beijos a elles, a inundar-lh'os de lagrimas, a
+exorar-lhe que venha ver o Vassia.</p>
+
+<p>&mdash;Passou tão mal a noite! Suppõe-se até que não chega ao outro dia!
+Accrescenta a velha que foi o proprio Vassia quem manifestou desejos de tornar
+a ver a sua amada,<span class="pn">{180}</span> antes de morrer; e supplica-lhe
+em nome do passado, e que, se ella se negar, morrerá no auge do desespero!</p>
+
+<p>A Zina despede por ali fora, sem dizer nada á mãe. Vae de corrida até o
+extremo de um dos arrabaldes mais pobres de Mordassov. Ali, n'uma baiuca muito
+velha e escalavrada, á qual suprem as janelas umas como que ráchas abertas nas
+paredes, n'um cochichólo muito baixo de tecto e fedorento, meio atravancado com
+uma fornalha, jazia, em cima de uma camada de taboas, cobertas com uma enxerga,
+delgada que nem uma folha de papel, um môço, escondido debaixo de um capóte
+todo elle farrápos. Tinha livido e refegado o semblante, os olhos, a luzir com
+o fôgo da fébre, as mãos, seccas e transparentes. Quasi que nem respirar podia;
+era o estertor. Comquanto o houvesse desfigurado a doença, conservava retraços
+de formosura. Triste espectaculo, na verdade, aquelle rosto de tisico, do
+moribundo. A edosa mãe que, ainda hontem, acreditava na cura percebe finalmente
+que vae em breve ficar sósinha n'este mundo. Com os braços cruzados, olhos
+sêcos, para ali está, sem comprehender, sem poder desviar a vista de cima do
+enfermo, aniquilada, perseguida pela visão da cova, na terra fria do velho
+cemiterio atascado de neve.</p>
+
+<p>Não olha para ella o Vassia, irradia-lhe no semblante a ventura: até que por
+fim vê aquella a quem, vae n'um anno, durante aquellas suas eternas noites de
+doente apenas viu em sonhos. Percebe que ella lhe perdoou, visto que veiu,
+visto que lhe aperta as mãos, visto que o contempla com aquelles seus lindos
+olhos, a chorar e a rir ao mesmo tempo. Resuscita de todo na alma do enfermo o
+passado:<span class="pn">{181}</span> desperta-lhe dentro d'alma a vida como se
+quiséra tornar-lhe sensivel a que ponto é triste o ter que a deixar.</p>
+
+<p>&mdash;Zina! Zinotchka! Não chores... não me estejas a lembrar que vou
+morrer... deixa-me contemplar-te, pensar que me perdoáste. Vou morrer sem
+pensar que morro, até, beijando-te as mãos... Estás tão magrinha, Zinotchka!
+Anjo querido, a bondade com que tu estás a olhar para mim! Lembras-te do gosto
+com que te rias, d'antes? Ai! Zina! Eu já nem sequer te peço perdão!... Nem
+quero lembrar-me do que aconteceu... eu é que m'o não perdôo, a mim proprio...
+E quanta noite sem poder dormir, Zina! Quanta noite não levei eu a pensar, a
+recordar-me, a estalar, quasi, com saudades!... É melhor que eu morra! Sou
+incapaz de viver, Zinotchka!</p>
+
+<p>E a Zina, lavada em lagrimas, muda, a apertar nas suas as mãos do seu amado,
+como se quiséra arrancál-o á morte.</p>
+
+<p>&mdash;Então, não chores! insistia o enfermo. Eu morrerei hoje, porventura?
+Se ha tanto tempo que está morta a felicidade! És mais intelligente e vales
+mais do que eu... bem sabes que valho menos do que tu, por que será que me tens
+amor? Bem sabes que te não mereço! Oh! quanto me não tem feito padecer
+semelhante pensamento! Ah! querido amor, foi um sonho a minha vida: não vivi,
+sonhei! E eu a desprezar a multidão: e que razões tinha eu para ser tão
+soberbo? A purêza do meu coração? A nobreza dos meus sentimentos? Mas se tudo
+isso tinha apenas a consistencia dos meus sonhos, nada mais, Zina!</p>
+
+<p>&mdash;Basta! basta! Matas-me!</p>
+
+<p>&mdash;Não me interrompas, Zina!... Perdoáste-me, bem sei:<span
+class="pn">{182}</span> e ha já muito tempo, talvez, mas avaliáste-me e
+comprehendeste o que eu era, e é isso que me atormenta. Sou indigno do teu
+amor, Zina! Fôste sempre leal e generosa; fôste ter com tua mãe e
+declaraste-lhe o teu firme desejo de casar commigo, ou com mais ninguem: e
+cumpriste a palavra dada, pois que para ti, palavra e acção são uma e a mesma
+coisa! Ao passo que eu,... eu! Não sabes, eu até hoje não tinha comprehendido,
+sequer, a extensão toda do sacrificio que fazias em ser minha mulher. E
+lembrar-me eu de que tu, commigo, te arriscavas a morrer de fome! Mas se a mim
+parecia-me que nada ha n'este mundo que se compare á honra de ser esposa de um
+grande poeta... sem nome,... é certo! Não quiz intender o motivo que alegavas
+para retardar o nosso casamento. Tu a padeceres por minha causa, eu a
+martirizar-te, a exprobar-te, a desprezar-te... até que por fim te ameacei com
+aquella carta... Eu, n'esse instante, nem sequer cheguei a ser um miseravel,
+mas sim um ente abjecto, e nada mais! Ah! nem quero pensar até onde iria o teu
+desprezo! Não, não! É bom que eu morra! Obrigado por não haveres querido
+pertencer-me! Iriam correndo os annos, e quem sabe se eu afinal não viria a ver
+em ti um tropêço ao meu porvir. Sim, antes assim! E agora, o amargor das minhas
+lagrimas, sequer ao menos, purificou este meu coração. Ah! Zina! Concede-me um
+quinhão no teu amor, tão sómente, no teu amor de algum dia!&mdash;N'esta hora
+derradeira, sequer ao menos! Sou indigno do teu amor, bem o sei! mas... mas...
+mas... ai meu anjo!</p>
+
+<p>E a Zina, desfeita em pranto, a escutar. Tentava interrompêl-o, elle porém,
+ia proseguindo... supplice, a gesticular,<span class="pn">{183}</span> e
+aquella sua voz debil... abafada e sibilante,... fazia mal á Zina... </p>
+
+<p>&mdash;Não me tiveras tu encontrado, e não me terias amado, e não morrias...
+disse a Zina. Ah! Oxalá nunca nos tivessemos encontrado!</p>
+
+<p>&mdash;Não, meu amor, não! Não te estejas arguindo da minha morte! A culpa
+foi minha, e só minha! O amor proprio... o romantismo!... Nunca te contaram,
+Zina, a minha estupida historia? Existiu aqui, ha três annos, um prisioneiro,
+um miseravel, um ladrão. Mas no dia em que chegou o castigo, faltou-lhe o
+animo. Sabendo que não levam a justiçar um enfermo, alcançou uma garrafa de
+vinho, deitou-lhe de infusão tabaco e enguliu-o. Tomaram-n'o uns vomitos que
+duraram tanto que principiou a escarrar sangue e deu cabo dos pulmões.
+Levaram-n'o para o hospital e, d'ali a dias, morreu tisico. Pois bem!
+Occorreu-me á memoria esse ladrão, no dia em que se deu aquelle caso da
+carta... E resolvi acabar commigo da mesma maneira. E por que foi que eu, de
+proposito, escolhi a tisica? Por que foi que me não enforquei ou me não deitei
+a afogar? Seria porque me assustasse uma morte tão abrupta? Talvez; mas a mim
+quer-me parecer que concorreriam, e não pouco, para isso, as minhas ideias
+romanescas. Não me largava este pensamento: Que morte tão bella não será a
+minha, estirado como agora o estou, n'uma cama, com o estertor da tisica!... E
+tu, ao pé de mim, a lamentar-me, e a padecer com a ideia de que eras talvez a
+causa da minha doença! E eu a ver-te entrar por ali dentro, arrependida,
+ajoelhar á beira do meu leito... E eu a perdoar-te e a expirar nos teus
+braços!... Toleima, Zina, pois não era?<span class="pn">{184}</span></p>
+
+<p>&mdash;Esquece-te de tudo isso, nem me tornes a falar das tuas culpas, que
+tu estás a exaggerar; lembrêmo-nos dos momentos ditosos, dos dias de
+ventura.</p>
+
+<p>&mdash;Não m'o perdôo, meu amor, e é por isso que falo a semelhante
+respeito. Ha já dezoito mêses que te não via. Queria alliviar este meu coração!
+Durante esse tempo todo, eu para aqui, sósinho, e não houve um só instante, em
+que eu não pensasse em ti, meu amor. O que não desejaria eu fazer para
+reconquistar a tua estima? Até ao derradeiro instante não acreditei que morria;
+não me entreguei á cama desde logo, andei a pé, por muito tempo, com o peito
+escangalhado. E que sonhos tão ridiculos! Ás vezes suppunha ser um grande poeta
+e em vesperas de publicar um poema como ainda não tinha apparecido outro egual
+n'este mundo, que ninguem tivera genio para o escrever. E eu a pensar que me
+iriam n'elle todos os meus sentimentos, a minha alma, toda inteira, e que,
+d'este modo, me acharia sempre a teu lado, e que qualquer que fosse o sitio em
+que te encontrasses, os meus versos ir-te-hiam recordar a minha existencia, e o
+meu sonho unico era acreditar que tu em conclusão poderias dizer: "Não, elle a
+final não é tão mau como eu o suppunha". Toleima, Zina, toleima, pois não é?</p>
+
+<p>&mdash;Não, não, Vassia, exclamava a Zina.</p>
+
+<p>E debruçada sobre o peito d'elle, pôz-se-lhe aos beijos ás mãos.</p>
+
+<p>&mdash;E o ciume! Como me atormentava o ciume durante esse tempo, todo! Eu,
+se tivesse ouvido falar no teu casamento, caía morto, redondamente!... E eu a
+vigiar-te, a espreitar-te... Era ella quem lá ia (apontando para a mãe).<span
+class="pn">{185}</span> Tu nunca tiveste amor ao Mozgliakov, pois não é
+verdade? Ai! meu anjo! Lembrar-te-has tu de mim quando eu já não fôr d'este
+mundo? Lembras, sim, que eu bem sei! Mas os annos hão de ir passando,
+arrefecer-te-ha esse teu coração, o inverno ir-te-ha tomando posse da alma, e
+olvidar-me-has, Zina!... </p>
+
+<p>&mdash;Não, não, nunca! E nunca me hei-de casar, tem a certeza!... Foste o
+meu primeiro amor e serás o derradeiro.</p>
+
+<p>&mdash;Tudo morre, Zinotchka, tudo, até a propria recordação, até os mais
+nobres sentimentos. Dão logar a um certo raciocinio: frio, que acalma as
+saudades. Insurgirmo-nos, para quê? Trata de aproveitar a vida, ama, sê feliz.
+Ama um vivo! Para que serve o teu amor a um morto?&mdash;E comtudo, não me
+esquéças de todo! Tivémos horas atribuladas, é certo, mas quantos dias de tanta
+doçura? Ah!&mdash;Foram-se de uma vez para sempre!... Escuta,... amei sempre o
+pôr do sol... Oh! não!... morrer, por quê?... Ah! viver, viver! Lembra-te da
+primavera! Do sol! Tão lindo! Das flores! Vivemos por uns tempos n'uma festa! E
+agora, olha! Olha!</p>
+
+<p>E o pobre enfermo a apontar com a mão diáfana o vidro empanado pela giada.
+Depois agarrou-se ás mãos da Zina e entrou a chorar com amargor. E os soluços a
+esfacelarem-lhe o já dilacerado peito.</p>
+
+<p>E assim se passou todo o dia: A Zina a dizer-lhe que jamais o olvidaria, que
+a ninguem n'este mundo viria a dedicar amor egual áquelle que a elle lhe
+dedicára. E elle a acreditál-a, a sorrir-lhe, a beijar-lhe as mãos.</p>
+
+<p>N'este meio tempo, Maria Alexandrovna, inquiéta, havia já mandado por mais
+de dez vezes indagar o que seria<span class="pn">{186}</span> feito da Zina, a
+supplicar-lhe que voltasse para casa, que não acabasse de se desacreditar na
+publica opinião. Até que por fim, ao lusco fusco, resolveu-se, esparvoada de
+receio, a ir, em pessôa, em procura da filha. Exorou-lhe de joelhos; a Zina a
+ouvil-a sem a intender. Maria Alexandrovna saíu desesperada. A Zina estava
+decidida a passar a noite junto do moribundo. Não lhe largou da cabeceira. O
+estado do infermo ia peorando a olhos vistos: quando rompeu a madrugada, quasi
+que nem conservava sopro de vida. E não obstante, viveu ainda um dia inteiro.
+Porém, no momento em que o sol no occaso abrasáva as vidraças, exalou-se a alma
+com os ultimos raios.</p>
+
+<p>Deu-se então horrivel scena. A edosa mãe abraçou-se com o corpo do filho, e,
+voltada para a Zina:</p>
+
+<p>&mdash;Fôste tu que o deitaste a perder, maldita! clamou.</p>
+
+<p>A Zina, porém, não ouvia coisa nenhuma; estava para ali, qual estatua
+insensivel, como se, a ella, a alma a tivera deixado tambem. Até que por fim,
+abaixou-se, fez sobre o defunto o signal da cruz, beijou-o na testa, e saíu do
+quarto.</p>
+
+<p>Tão tremendas sensações, e aquellas duas noites de véla, quasi que a haviam
+enlouquecido de todo... e depois, sentia-se prestes a entrar em um novo viver,
+triste, ameaçador.</p>
+
+<p>Não teria ainda andado dois passos, eis lhe surge na frente o Mozgliakov
+como se com elle se abrira o chão.</p>
+
+<p>&mdash;Zinaida Aphanassievna, disse com timidez, rodando a vista para todos
+os lados, Zinaida Aphanassievna, sou um jumento; isto é, não é isto que... Se
+me dá licença, não serei um jumento, visto que procedi briozamente,<span
+class="pn">{187}</span> apezar de todos os pezares... Mas lá que fui um
+jumento, fui... e estou mais que arrependido... Está-me a parecer que estou a
+meter os pés pelas mãos, Zinaida Aphanassievna. Perdoe-me, atendendo a este
+concurso de circunstancias... </p>
+
+<p>E a Zinaida, inconsciente, a olhar para elle, e a seguir seu caminho, sem
+tugir. Como no passeio não houvesse logar para dois, Mozgliakov desceu para a
+calçada.</p>
+
+<p>&mdash;Zinaida Aphanassievna&mdash;proseguiu o mancebo, se m'o consente,
+estou pronto a renovar o meu pedido, pronto a esquecer tudo, a
+perdoar-lhe&mdash;com uma condição:&mdash;Ficará tudo sendo segredo por
+emquanto. Ausenta-se d'esta terra o mais breve possivel, eu sigo atras, ás
+escondidas, casamos para ahi seja onde fôr, sem que ninguem dê por isso, e
+vamos para Petersburgo. E então! Que me diz? Consente, Zinaida Aphanassievna?
+Responda, depressa, por quem é! Não posso esperar; poderiamos ser vistos.</p>
+
+<p>A Zina não respondeu: olhou para o Mozgliakov, tão somente, mas fêl-o,
+porém, de modo tal, que elle comprehendeu desde logo, cumprimentou-a e sumiu-se
+por detrás da primeira esquina.</p>
+
+<p>"Ora esta! matutava; ella, ainda não haverá dois dias, a lançar em rosto a
+si propria as culpas todas, e agora!..."</p>
+
+<p>N'este comenos, em Mordassov, precipitavam-se os acontecimentos.</p>
+
+<p>O principe, acarretado pelo Mozgliakov para o hotel, n'aquella mesma noite
+caíu perigosamente enfermo. Os Mordassovenses só vieram a ser informados do
+caso ao romper do dia. Kalist Stanislavitch não largava a cabeceira do doente.
+Ao anoitecer, effectuou-se uma conferencia<span class="pn">{188}</span> dos
+medicos todos de Mordassov. Os convites para comparencia eram redigidos em
+latim. E não obstante, a despeito do latim, o principe achava-se em estado de
+delirio, e tudo era pedir ao Kalist Stanislavitch que lhe cantasse uma certa
+romança, a fallar a respeito de chinó e bigode postiço e, de vez em vez, muito
+assustado, soltava uns berros. Concluiram os medicos que era uma inflammação do
+estomago, resultante do excesso de hospitalidade mordassovense, e que d'ali
+tinha passado á cabeça. Alegaram, tambem, não sei com que fundamentos, um tal
+qual abalo nervoso. E d'ahi, não se esqueceram de notar que o principe havia
+muito que manifestava predisposições para a morte e que, por conseguinte...
+está claro!&mdash;e que por conseguinte, morria. Esta ultima hypothese pareceu
+ter certo fundamento: o pobre do ginjinha expirou ao terceiro dia, ahi pelo
+anoitecer. Obito a tal ponto inesperado consternou Mordassov. Acudiram em
+chusmas ao hotel, discutiam, abanavam a cabeça, e concluiram acusando
+directamente "os assassinos do principe, coitado!" (aludindo assim a Maria
+Alexandrovna e á filha).</p>
+
+<p>Concordava toda a gente em que tão escandalosa historia não deixaria de dar
+brado, e podia, até, "ir muito longe".</p>
+
+<p>Mozgliakov nem sabia já que fazer á sua vida. A situação, effectivamente,
+antolhava-se perigosa. Não fôra elle quem accarretara com o principe para casa
+de Maria Alexandrovna? Não fôra elle tambem que carregara com elle para o
+hotel? Não sabia o que havia de fazer com o cadaver, onde o enterrar, a quem
+informar. E de mais a mais, como passava por ser sobrinho do principe, o seu
+medo todo<span class="pn">{189}</span> era não se lembrassem de o accusar de
+ter morto o veneravel ancião.</p>
+
+<p>Eis que de repente mudam as scenas. Uma bella manhã, chega á cidade um
+viajante, desconhecido. E Mordassov, em peso, pespegado á janella, a commentar
+o adventicio.</p>
+
+<p>&mdash;O tal viajante era nem mais nem menos que o celebre principe
+Chtchepilov, parente do defunto, sujeito de seus trinta e cinco annos, usando
+dragonas de coronel e as agulhetas de ajudante de ordens. Aquella gran-cruz
+compenetrava de um respeitoso pavor a todos os <em>tchinovnicks</em><a
+name="tex2html16" href="#foot335"><sup>[16]</sup></a> do logar. O prefeito de
+policia por pouco não indoidece.</p>
+
+<p>Em breve se veiu a saber que o principe vinha de S. Petersburgo e já havia
+passado por <span class="typo" title="no original: Duchkanovo">Dukhanovo</span>. Não encontrando ali ninguem, viera seguindo as piugadas
+do principe até Mordassov, onde o surprehendera a fatal noticia. Tomou desde
+logo a tudo sobre si, e Mozgliakov retirou-se muito encolhido em presença do
+lidimo sobrinho.</p>
+
+<p>O illustre defunto foi trasladado para o mosteiro. Ao outro dia, a cidade em
+peso congregou-se a ouvir a missa funeraria. Entre as senhoras, corria que
+Maria Alexandrovna compareceria em pessoa na egreja, para pedir perdão alto e
+bom som perante o caixão, em conformidade com as exigencias da lei. Escusado
+será dizer que tal Maria Alexandrovna não appareceu.</p>
+
+<p>Fôra para o campo e levára a Zina, parecendo-lhe insustentavel a situação na
+cidade. Lá da sua aldeia, ia recolhendo com inquietação as atoardas e mandava
+tomar informações.<span class="pn">{190}</span></p>
+
+<p>Do mosteiro a <span class="typo" title="no original: Duchkanovo">Dukhanovo</span>, o caminho passava a uma versta das janellas de
+Maria Alexandrovna. Teve pois occasião de ver desfilar o prestito funebre.
+Atrás do féretro seguia uma longa cauda de trens. E por largo espaço, n'aquelle
+campo branco de neve, foi perfilando aquelle seu vulto negro, lento e
+majestoso, o carro melancólico.</p>
+
+<p>D'ali a oito dias, Maria Alexandrovna, com a filha e Aphanassi Matveich,
+transferiu-se para Moscou. A aldeia e a casa foram postas em leilão.</p>
+
+<p>E assim perdeu para sempre Mordassov uma senhora, o <em>mais comme il
+faut</em> possivel!</p>
+
+<p>O caso não escapou a commentarios; nem faltou quem affirmasse que o
+Aphanassi Matveich se achava tambem á venda juntamente com a aldeia... </p>
+
+<p>Rodou um anno, outro ainda, e ninguem tornou a falar em Maria Alexandrovna.
+</p>
+
+<p>E comtudo, correu que havia adquirido outra aldeia em outro governo, e que
+outra capital de districto não tardaria em tremer entre as suas potentissimas
+mãos. A Zina estaria ainda á espera de noivo.</p>
+
+<p>O Aphanassi Matveich... </p>
+
+<p>Mas não nos tornemos éco de boatos sem fundamento. É falso tudo isso.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<p>Já lá vão três annos desde que eu escrevi as linhas que acabaes de ler. Quem
+me diria que ainda havia de vir a folhear o manuscripto para lhe accrescentar
+ainda mais uma lauda?<span class="pn">{191}</span></p>
+
+<p>Mas vamos ao facto:</p>
+
+<p>Principiarei por Pavel Alexandrovitch Mozgliakov.</p>
+
+<p>Ao ausentar-se de Mordassov, foi direitinho a Petersburgo, onde alcançou o
+logar que lhe andava prometido havia muito tempo. Não tardou em se lhe
+franquearem as portas da sociedade, infronhou-se n'umas intrigalhas, guindou-se
+ás alturas de espirito do século, tornou a apaixonar-se, renovou o seu pedido,
+voltou a apanhar um não pelas ventas, enguliu-o, e não podendo digeril-o,
+sollicitou o ser incorporado a uma expedição enviada a um dos cantos mais
+remotos d'este nosso paiz sem limites.</p>
+
+<p>O corpo expedicionario transpôz sem novidade de maior florestas e desertos,
+alcançando a capital da longinqua região.</p>
+
+<p>Foi acolhido pelo general-governador.</p>
+
+<p>Era um homem magro e de semblante severo, um velho militar, ferido em
+diversas campanhas, condecorado com dois cráchás e com uma cruz branca.
+Convidou a todos os <em>tchinovniks</em> para um baile effectuado aquella mesma
+noite.</p>
+
+<p>Pavel Alexandrovitch estava encantado. Envergara a sua casaca
+petersburguense, com a qual contava para produzir immenso effeito, e deu
+entrada nas salas nobres com modo desassombrado. Não tardou porém a perder o
+aprumo em presença de tanta dragona de cachos e de tanta farda enfeitada de
+commendas. Cumpria-lhe ir fazer a sua venia á esposa do governador, nóva,
+diziam, e formosissima. Aproxima-se, muito senhor de si,&mdash;mas&mdash;de
+subito,&mdash;escancara a bôca, e fica pregado ao chão, de assombrado. Com um
+sumptuoso vestido de baile, surge-lhe na frente a Zina, feraz, soberba, linda,
+e resplandecente<span class="pn">{192}</span> de joias, toda ella. Nem conheceu
+o Pavel Alexandrovitch, os seus olhos nem se detiveram sequer no semblante de
+mancebo. Mozgliakov recuou e foi perder-se entre a turba-multa, e soube da bôca
+de um juvenil <em>tchinovnick</em> coisas interessantissimas.</p>
+
+<p>Soube que o governador era casado ia já em dois annos, desde uma viagem que
+fizéra a Moscou. Desposara uma joven muito rica, de optima familia. A generala
+era muito soberba e só dansava com generaes, (havia nove no baile). A generala
+tem em sua companhia a mãe, senhora intelligentissima da mais alta
+aristocracia, mas que se submete á vontade da filha. E d'ahi, o general
+extasia-se tambem deante d'esta. Mozgliakov referia-se ao Aphanassi Matveich,
+mas n'aquella região remota ninguem dava noticia delle.</p>
+
+<p>Um tanto restabelecido d'aquelle seu sobresalto, Mozgliakov deu uma volta
+pelas salas e lobrigou Maria Alexandrovna, vestida com singeleza e, muito
+animada, a falar com uma personagem graúda. Faziam-lhe cerco varias senhoras
+que lhe sollicitavam a boa sombra. Maria Alexandrovna era amavel com toda a
+gente.</p>
+
+<p>Mozgliakov arriscou-se e foi-se-lhe apresentar. Maria Alexandrovna teve
+assim a modos de um estremeção, mas sopitou-se, acto-continuo. Dignou-se
+reconhecêl-o e pediu-lhe novas dos seus amigos de Petersburgo. A respeito de
+Mordassov, nem palavra e foi como se tal coisa não existisse, em conclusão,
+proferiu o nome de um qualquer principe estranho ao Mozgliakov, voltou-lhe as
+costas sem affectação, dirigindo-se a uma personagem graúda de cabello grisalho
+e aromatizado, e d'ali a instantes, dir-se-hia haver-se esquecido de todo de
+Pavel Alexandrovitch, que ficou<span class="pn">{193}</span> para ali com cara
+de tolo, diante della. Mozgliakov, engatilhando um sorriso sarcastico, e de
+chapeu na mão, regressou para a sala nobre. Não sei dizer o motivo, mas
+considerava-se offendido e não se prestou a dansar. Nunca mais lhe desampararam
+o semblante quer uns ares tristes e de distracção quer um méfistofélico
+sorriso! Recovado em pinturesca atitude a uma columna, (parecia que de
+proposito, tinha columnas o salão), e toda a santa noite, horas a seguir, para
+ali se deixou estar no mesmo posto, a seguir com os olhos a Zina. Tempo
+perdido, infelizmente! Todas aquellas artimanhas, aquelles tregeitos todos,
+aquelles ares romanticos e de nimia decepção... etc... etc... nada lhe valeu...
+A Zina nem sequer deu fé da sua presença. Até que por fim, estafado,
+exasperado, com os pés dormentes em resultado da immobilidade, faminto, pois
+não tinha ceado a fim de melhor sustentar o seu papel de amante dolorido,
+recolheu para sua casa, derreado, abatido. E esteve a pé horas esquecidas, a
+matutar no passado... Logo no dia immediato, pediu transferencia e alcançou uma
+missão que o reconduziu a Petersburgo. Voltou a serenidade a entrar-lhe na alma
+assim que voltou costas á cidade. Lá ao longe, o espaço, o infinito, o deserto,
+a denegrida neve das florestas nos confins do horizonte. Ao som das patas dos
+cavallos a chofrarem, e a acompanharem o retinir e o telintar das campainhas.
+Pavel Alexandrovitch esteve pensativo, por instantes, mas depois, adormeceu
+muito socegado da sua vida.</p>
+
+<p>Acordou na terceira muda, fresco, bem disposto, e a pensar noutra coisa.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<p style="text-align:center;">FIM</p>
+
+<p><span class="pn">{194}</span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<div align="center">
+</div>
+
+<div class="rodape">
+<p><a name="foot57" href="#tex2html1"><sup>[1]</sup></a> Mestre escola</p>
+
+<p><a name="foot63" href="#tex2html2"><sup>[2]</sup></a> Proprietario
+territorial.</p>
+
+<p><a name="foot76" href="#tex2html3"><sup>[3]</sup></a> Poeta russo.</p>
+
+<p><a name="foot129" href="#tex2html4"><sup>[4]</sup></a> Sacristão.</p>
+
+<p><a name="foot147" href="#tex2html5"><sup>[5]</sup></a> Diminuitivo offensivo
+de Natalia.</p>
+
+<p><a name="foot148" href="#tex2html6"><sup>[6]</sup></a> Diminuitivo offensivo
+de Sonia.</p>
+
+<p><a name="foot150" href="#tex2html7"><sup>[7]</sup></a> Diminuitivo offensivo
+de Maria.</p>
+
+<p><a name="foot151" href="#tex2html8"><sup>[8]</sup></a> Dansa nacional russa.
+</p>
+
+<p><a name="foot158" href="#tex2html9"><sup>[9]</sup></a> Mulher de mujik.</p>
+
+<p><a name="foot188" href="#tex2html10"><sup>[10]</sup></a> A filha do principe
+Kotchbey.</p>
+
+<p><a name="foot203" href="#tex2html11"><sup>[11]</sup></a> Até mais ver. (em
+allemão)</p>
+
+<p><a name="foot413" href="#tex2html12"><sup>[12]</sup></a> Modo de dizer
+russo&mdash;por: <em>a minha vida acabada</em>.</p>
+
+<p><a name="foot237" href="#tex2html13"><sup>[13]</sup></a> Pelissa.</p>
+
+<p><a name="foot252" href="#tex2html14"><sup>[14]</sup></a> (Camponêsa.)</p>
+
+<p><a name="foot323" href="#tex2html15"><sup>[15]</sup></a> A menina.</p>
+
+<p><a name="foot335" href="#tex2html16"><sup>[16]</sup></a> Funccionarios.</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<div style="margin: 10%;">
+<h2 style="text-align:center;">EXCERPTO DO NOSSO CATALOGO</h2>
+
+<h3 style="text-align:center;">Bibliotheca Moderna de Romances Nacionaes e
+Estrangeiros</h3>
+
+<p style="text-align:center;">200 réis fortes o volume de 200 a 250 paginas</p>
+
+<p style="text-align:center;">Volumes publicados:</p>
+
+<p><strong>Os Ex-homens</strong>&mdash;<em>Maximo Gorki</em>&mdash;1 volume.</p>
+
+<p><strong>Angustia</strong>&mdash;<em>Maximo Gorki</em>&mdash;1 volume.</p>
+
+<p><strong>Na Prisão</strong>&mdash;<em>Maximo Gorki</em>&mdash;1 volume.</p>
+
+<p><strong>Varenca Olessova</strong>&mdash;<em>Maximo Gorki</em>&mdash;1
+volume.</p>
+
+<p><strong>O que eu penso da guerra</strong>&mdash;<em>Conde Leão
+Tolstoi</em>&mdash;1 volume.</p>
+
+<p><strong>O Calvario</strong>&mdash;<em>Octave Mirbeau</em>&mdash;1 volume.</p>
+
+<p><strong>O Filho de Napoleão</strong>&mdash;<em>Carolus</em>&mdash;1 volume.</p>
+
+<p><strong>O Cerco de Paris</strong>&mdash;<em>Alphonse Daudet</em>&mdash;1
+volume.</p>
+
+<p><strong>O Coronel Chabert</strong>&mdash;<em>Honoré de Balzac</em>&mdash;1
+volume.</p>
+
+<p><strong>Historia d'um Crime</strong>&mdash;<em>Maximo Gorki</em>&mdash;1
+volume.</p>
+
+<p><strong>Os Estranguladores de Bengala</strong>&mdash;<em>L.
+Boussenard</em>&mdash;2 volumes.</p>
+
+<p><strong>A Cortezan de Sagunto</strong>&mdash;<em>V. Blasco
+Ibañez</em>&mdash;2 volumes.</p>
+
+<p><strong>A Feira das Vaidades</strong>&mdash;<em>W. Thackeray</em>&mdash;3
+volumes.</p>
+
+<p><strong>Um club da má-lingua</strong>&mdash;<em>Theodoro
+Dostoievsky</em>&mdash;1 vol. </p>
+
+<hr width="15%">
+
+<h3 style="text-align:center;">Modern Style Bibliotheca</h3>
+
+<p><strong>Rua da Paz (Mercados d'Amor)</strong>&mdash;<em>V. du
+Saussay</em>&mdash;1 volume illustrado com 22 esplendidas gravuras de Ch.
+Atamian, <strong>1$000 réis fortes</strong>.</p>
+
+<p><strong>O Querido das Mulheres (Romance vehemente)</strong>&mdash;<em>Jerôme
+Monti</em>&mdash;1 volume illustrado com 26 bellas gravuras de Ch. Atamian,
+<strong>1$000 réis fortes</strong>.</p>
+
+<hr width="15%">
+
+<p><strong>A Russia Vermelha</strong>&mdash;<em>John Foster Fraser</em>&mdash;1
+volume illustrado com 56 gravuras, <strong>1$000 réis fortes</strong>.</p>
+
+<p><strong>A Cura Natural</strong>&mdash;<em>Mich Larsen</em>&mdash;1 volume de
+180 paginas, <strong>400 réis fortes</strong>.</p>
+
+<p><strong>Manual da Sciencia da expressão do rosto</strong>&mdash;<em>L.
+Kuhne</em>&mdash;<strong>700 réis fortes</strong>.</p>
+
+<p><strong>Cathecismo d'Agricultura</strong>&mdash;<em>A. de Sousa
+Figueiredo</em>&mdash;1 volume <strong>200 réis fortes</strong>.</p>
+
+<p><strong>Duas mil leguas no Hindustão</strong>&mdash;<em>Hypacio de
+Brion</em>&mdash;1 vol. formato album, illustrado com 74 gravuras,
+<strong>2$000 réis fortes</strong>.</p>
+
+<p><strong>Jesus Christo</strong>&mdash;<em>Luiz Veuillot</em>&mdash;1 volume
+illustrado com 180 gravuras, ricamente encadernado, dourado por folhas,
+<strong>13$500 réis fortes</strong>.</p>
+
+<p><strong>O Melro Branco</strong>&mdash;<em>Julio Barrili</em>&mdash;1 volume
+in-8.º grande, com esplendidas illustrações de <em>Bonamore</em>, <strong>1$800
+réis fortes</strong>.</p>
+
+<p><strong>Orlando Furioso</strong>&mdash;<em>Ariosto</em>&mdash;3 volumes
+illustrados com 81 magnificas illustrações, <strong>12$000 réis
+fortes</strong>.</p>
+
+<p><strong>Terra Illustrada</strong>&mdash;<em>Onésime Reclus</em>&mdash;1
+volume de 1.252 paginas com 600 finissimas gravuras, <strong>11$000 réis
+fortes</strong>.</p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Um club da Má-Lingua, by
+Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UM CLUB DA MÁ-LINGUA ***
+
+***** This file should be named 31657-h.htm or 31657-h.zip *****
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+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net
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+
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+will be renamed.
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+Creating the works from public domain print editions means that no
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+(and you!) can copy and distribute it in the United States without
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+set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
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+Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
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+such as creation of derivative works, reports, performances and
+research. They may be modified and printed and given away--you may do
+practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is
+subject to the trademark license, especially commercial
+redistribution.
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+*** START: FULL LICENSE ***
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+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
+collection are in the public domain in the United States. If an
+individual work is in the public domain in the United States and you are
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+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
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+warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
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+interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
+the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
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+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
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+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
+
+</pre>
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