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+The Project Gutenberg EBook of Os tripeiros, by António José Coelho Lousada
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Os tripeiros
+ romance-chronica do seculo XIV
+
+Author: António José Coelho Lousada
+
+Release Date: September 13, 2009 [EBook #29979]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS TRIPEIROS ***
+
+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
+produced from scanned images of public domain material
+from the Google Print project.)
+
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+
+ *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
+ existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
+ versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com
+ o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
+ corrigidos.
+
+ Rita Farinha (Set. 2008)
+
+
+
+
+OS
+
+TRIPEIROS.
+
+ROMANCE-CHRONICA DO SECULO XIV.
+
+POR
+
+A. C. LOUSADA.
+
+
+PORTO:
+TYPOGRAPHIA DE J. J. GONÇALVES BASTO,
+LARGO DO CORPO DA GUARDA N. 106.
+
+1857.
+
+
+
+
+I.
+
+A mensagem do Mestre.
+
+
+ Alteradas estão do reino as gentes
+ Co' o odío que occupado os peitos tinha.
+
+ CAMÕES, LUS. CANT. IV.
+
+
+Era uma estranha romaria, para quem não tivesse noticia dos alvoroços a
+que a morte de Fernando 1.^o e o casamento de Beatriz em Castella tinham
+dado causa, a que pelos meados de Maio de mil trezentos e oitenta e
+quatro sahia pelas portas da cidade do Porto que davam sobre o rio, e
+mais pela chamada Porta Nova. Se fosse facil conduzir o leitor a vêr do
+alto das torres que a defendiam aquelle gentio, acreditaria que elle
+tinha invadido algum arsenal a procurar disfarce entre o guerreiro e o
+burlesco. Um popular cobria a cabeça com um elmo adamascado, e,
+mostrando os joelhos através do grosso estofo das calças, com pés
+descalços pisava a areia onde o montante que arrastava deixava um sulco;
+um outro, parecendo ter em menos conta a cabeça do que o peito, abrigava
+este em uma couraça mais que farta, e deixava aquella ao sol e ao vento;
+este, vestindo apenas umas calças, se assim se podia chamar um cirzido
+de trapos, trazia suspenso de funda um escudo de couro, onde em tempos
+estivera pintada ou divisa ou brasão, pois não era já facil adivinhar o
+que fôra; de um cinto leonado pendia de um lado um estoque, do outro um
+punhal, e, como se não bastassem estas armas offensivas, empunhava um
+chuço enorme; aquelle levava um bacinete amassado e um gorjal
+ferrujento, e tinha por cinto de grosseira jornea uma funda, o
+provimento da qual, como se não fôra uma arma facil de encontrar a cada
+passo, pesava em um sacco lançado aos hombros. De tempos a tempos o bom
+povo, como lhe chamava o mestre de Aviz, abria aqui logar a um
+cavalleiro acobertado de ferro desde os pés á cabeça, seguido dos seus
+pagens, ou escudeiros, alem a outros mais exquisitamente vestidos pelo
+antiquado das armas, ou pelo incompleto. Havia capacete que, se
+Cervantes o visse, não o deixaria ser original descrevendo o que deu ao
+seu heroe no principio das perigrinações; peitos de aço polido,
+espelhando o sol, que disparatavam com umas grevas desconjuntadas,
+enegrecidas, remendo visivel; feixes de armas que desdiziam umas das
+outras pelo valor, casando-se a facha grosseira com um estoque cuja
+bainha acobertavam ornatos de prata, montantes de Toledo e adagas
+grosseiras. Os cavallos iam uns cobertos de ferro, outros apenas com os
+arreios necessarios para se poder cavalgar, e não poucos dos
+cavalleiros, e aos pares até, montavam em mulas. Os cidadãos que assim
+sobrecarregavam os pobres animaes, costume vulgar por esses tempos e por
+muitos outros, vestiam em geral a garnacha negra, distinctivo dos
+doutores e physicos. Com este mesmo traje, porém arregaçado pela
+ponteira da espada, deixando vêr a calça de duas cores e o borzeguim
+ponteagudo via-se tres ou quatro aspirantes áquella distincta classe de
+medicos e letrados, e com elles alguns monges, que tambem se mostravam
+affeitos ás armas pelo modo como seguravam o punho da espada e cobriam a
+tonsura com o bacinete. Um dos cavalleiros mais bizarros da romaria era
+tambem um ecclesiastico; pelo menos assim o demonstrava um roquete, que
+sobre armas soberbas vestia em vez de brial.
+
+De burlesco para a gente que guarnecia as muralhas, as torres, os
+eirados e soteas nada havia nesta procissão; de marcial havia muito,
+tudo, a avaliar pelo enthusiasmo com que a saudavam, e pelos vivas que
+se juntavam ás saudações. Tinha decorrido uma boa hora desde que correra
+na cidade que umas galés demandavam a barra, e, posto que houvesse quem
+affirmasse logo que eram portuguezas, como dos de casa havia tanto a
+recear como dos extranhos, todos se tinham prevenido para as receber. Um
+pagem levara já a Ayres Gonçalves e ao bispo D. João a nova de que eram
+expedidas pelo mestre de Aviz; porém estes senhores eram então
+authoridades quasi nominaes, e deixavam por tanto, para não perderem o
+tempo, fazer a sua demonstração aos bons populares e aos cavalleiros que
+não eram de suas casas, creação, ou serviço.
+
+Ideia de que no seculo decimo quarto era uma guerra civil, acompanhada
+de uma invasão estrangeira, nem todos os que passam os olhos por este
+capitulo farão. Hoje hasteam­-se duas ou tres bandeiras, ou mais, se
+quizerem, mas, o primeiro impeto passado, a machina civil lá vae
+funccionando peor ou melhor por conta dos governos provisorios­;
+naquelles tempos, porém, ninguem se entendia por vezes. Cada fidalgo
+levantava o seu troço de gente e vendia e revendia a espada; hoje era ao
+serviço de um, ámanhã ao de outro; os alcaides dos castellos, a maior
+parte dominando as povoações principaes, juravam preito e perjuravam
+todos os dias, e as municipalidades lançavam, bom ou mau grado, pela
+manhã um bando em favor de um monarcha e á tarde acclamavam outro. No
+meio desta bella ordem havia caudilho que dava em ambos os partidos
+belligerantes, e sobretudo nos pacificos, aventureiros que se batiam por
+si e para seu proveito. Na menoridade do pae do regedor, como modesta e
+arteiramente se appellidara o irmão bastardo de D. Fernando, e em quasi
+todos os reinados antecedentes, a provincia de Entre Douro e Minho tinha
+tido a sua amostra destas amabilidades; mas o que a gente da _ordem_
+chama revolução e revolução politica não estalara em tempo algum como
+agora. Até ahi o povo contentara­-se, salvo um ou outro caso, com evitar
+a ponta da lança dos nobres senhores e o virote dos seus homens d'armas,
+e ainda mais de lhe franquear as arcas e de correr os cordões da bolsa,
+o que raras vezes conseguia. Os burguezes do Porto, o mais desenquieto
+povo de toda a provincia e do reino, tinham já dado mostras da sua força
+aos bispos Martinho Rodrigues e Vasco Martins, porém, nestas revoltas se
+entrava politica era acobertada: elles não davam por tal. Desta vez o
+exemplo da capital fôra-­lhes contagioso, e mesmo sem tão bons motores
+como Alvares Paes, desempenháram a sua tarefa por tal arte, que se póde
+dizer, que a lei por que se governavam era a sua. Ayres Gonçalves de
+Figueiredo, o governador de Gaya admirára da outra margem a valentia dos
+pulmões dos partidarios do novo governo, e, posto que não estivesse bem
+seguro das suas ideias quanto á legalidade da regedoria, e preferencia
+de direitos do mestre de Aviz sobre os do infante, dos deste sobre a
+irmã, ou vice-versa, para não lhes avaliar as iras tambem,
+contemporisara, soltando as mesmas acclamações. Na cidade havia um
+cahos. Os vereadores, governavam; governavam os juizes do povo e o juiz
+real; governavam os chefes das corporações; governava, porém menos, o
+bispo e os seus meirinhos; governavam até, ou mandavam, os prisioneiros,
+ou tidos por taes, como era o conde D. Pedro de Transtamara, que no
+campo de Coimbra tivera as suas aspirações á coroa de Portugal, e a ser
+o terceiro marido legitimado de Leonor Telles; finalmente, mandavam
+todos, se a mais ninguem fosse, cada um a si.
+
+Do pequeno povoado que ficava extra-­muros, composto de uma mescla de
+armenios, que nove annos antes tinham deixado cahir o throno de Livonio,
+o seu ultimo rei, aos golpes de espada do sultão do Egypto; de gregos da
+Asia, escapados á furia dos soldados de Amurath; de flamengos e
+genovezes aventureiros, de mouros, os cultivadores da encosta em que o
+bairro se abrigava; da pequena povoação, do bairro Armenio, augmentado
+ainda depois da tomada de Constantinopla com os piedosos guardas de S.
+Pantaleão, ajuntava-se á procissão sahida da Porta Nova uma chusma de
+curiosos, que pela variedade de vestuarios, lhe vinha dar realce. Como
+em taes casos succede, toda esta gente se embaraçava na marcha, peões a
+cavalleiros, cavalleiros a peões; todos fallavam, todos tomavam e davam
+concelho, e perguntavam por novas de que iam dar ao primeiro encontrado
+uma versão correcta e augmentada com reflexões de lavra propria e
+extranha. O espaço que se estendia desde os muros até onde a Arrabida
+deixava apenas um caminho de cabras, aberto na rocha para quem se
+quizesse dirigir á Foz do Douro, não foi pois transposto em menos de uma
+hora, pela vanguarda: uma grande parte do exercito popular nem lá
+chegou. Os primeiros que encontraram uma das galés subindo o rio,
+gritaram para os tripolantes que lhes dissessem por quem vinham, e como
+estes respondessem que pelo Mestre, sem mais attenderem, voltaram atraz,
+dando vivas, como se fosse aquillo reforço inesperado, que os viesse
+tirar de apuros.
+
+Nas galés não vinha reforço algum para os do Porto, unica terra de
+importancia ao norte do reino, que não acceitára como rei o marido de
+Beatriz, e tinha a braços setecentas lanças e dous mil infantes do
+arcebispo de Santiago e de outros senhores castelhanos e portuguezes,
+sem contar os aventureiros de Fernando Affonso, que não eram nem uma
+cousa nem outra.
+
+D. João de Castella, feita em Santarem a cessão dos direitos á coroa por
+D. Leonor, a troco de vinganças promettidas no povo de Lisboa, que a
+respeito della e em rosto esgotára um vocabulario immenso de nomes, de
+que Fernão Lopes dá uma amostra, e a mimoseára com pedradas; D. João,
+resolveu-se, senão a cumprir o ajuste, pois se malquistára com a
+ambiciosa sogra por causa de dous judeus, a destruir a rebellião, como
+elle lhe chamava, no fóco, e avançára até o Bombarral, ao passo que
+aprestava uma armada que, fechado o assedio por terra, cerrasse tambem
+as communicações por mar.
+
+Os arredores de Lisboa talados, as povoações saqueadas não podiam
+abastecer de viveres os sitiados; entre elles e Coimbra estavam os
+arraiaes inimigos, portanto recorria-se ao Porto, pedindo tambem um
+reforço de navios para impedir que o Tejo fosse bloqueado. D. Lourenço,
+arcebispo de Braga, azafamára-se para armar as galés que deviam levar
+estes soccorros, e o mestre de Aviz encarregára Ruy Pereira de uma
+missiva, em que aos bons burguezes se promettia mil regalias; pois D.
+João acceitára o conselho de dar tudo o que lhe fosse possivel dar, e
+prometter até o impossivel.
+
+Os vivas e o appendice a todo o enthusiasmo politico de morras, naquella
+quadra aos castelhanos, aos traidores e aos scismaticos, prolongaram-se
+até que as galés em que vinham Ruy Pereira e Gonçalo Rodrigues vararam
+perto dos muros da cidade e principiou o desembarque destes e outros
+illustres personagens, e ainda maior foi a algazarra quando o estandarte
+real appareceu. O conde de Transtamara, como primo do rei de Castella,
+não era dos coristas mais fracos deste grande côro desafinado, e fôra
+dos primeiros cavalleiros que se apearam para receber os reaes
+mensageiros, com toda a cortezania. O povo sem fé naquella conversão e
+pouco acatador nesse momento das esporas de ouro, das cotas bordadas e
+cimeiras historiadas; o povo, deixando escapar desses epygrammas de que
+elle possue o molde particular, em vez de lhe abrir caminho, cerrava-se
+na sua passagem, fazendo perder ao fidalgo o aranzel lisongeiro que
+tencionava prégar a Ruy Pereira. Ruy era uma notabilidade, como hoje se
+diz; porque então ainda se não tinha inventado as notabilidades, nem
+muitas outras cousas. Desde que explicára ao mestre de Aviz a opinião do
+povo a respeito da rainha Leonor, notando que quando andava para casar
+com sua mulher, fallavam todos em que se queria casar com Violante
+Lopes, e depois de casado ninguem mais de tal fallára; depois,
+sobretudo, que déra o golpe de mercê ao conde valido, abaixo de seu
+sobrinho, dos homens de espada com valimento na côrte, era o primeiro, e
+para quem estava nas circumstancias de D. Pedro, portanto, pessoa que
+era prudente lisongear.
+
+Já então, como se verá no decurso desta narração, se attendia a
+conveniencias.
+
+Em quanto os mesteiraes e burguezes embaraçavam o conde, Martim Gil,
+abbade de Paço de Sousa, substituia-o dignamente com duas rajadas de
+latim, a substancia do todo, que o mensageiro perdeu por não entender a
+lingua de Cicero, e uma enfiada de periodos em portuguez garrafal, que
+entenderia perfeitamente, se a algazarra tivesse cessado. Ruy Pereira
+satisfez-se com vêr abrir e fechar a bocca ao reverendo, e respondeu a
+toda esta eloquencia, fazendo-lhe um ponto no meio do recado,
+perguntando onde havia de pousar. Martim Gil indicou-lhe todas as boas
+casas da cidade desde os paços da Sé e o convento de S. Domingos, até
+algumas das vivendas particulares, e o tio de Nuno Alvares escolheu S.
+Domingos, mostrando mais pressa de descançar dos encommodos do mar, que
+de dar conta da sua missão. O abbade tentou então dar á entrada na
+cidade dos passageiros e tripolantes da galé de Gonçalo Rodrigues, e das
+outras que iam aproando ao longo da praia, um todo processional, porém
+luctava em vão; que era até difficultoso fazer desembaraçar os sitios de
+desembarque, onde o povo se apinhava, se acotovallava sem dar descanço
+ao pulmão. O Douro não tinha ainda, nas suas soberbas, arrojando as
+terras roubadas nas campinas d'encontro á praia; tornado esta tão larga
+como hoje; nem os homens haviam com parapeitos avançado sobre o leito
+daquelle. O espaço existente logo além de portas, onde havia povoado,
+era tão limitado, que, a distancia, parecia que as edificações tinham
+para a agua serventia, como os da cidade das lagunas, a rainha do
+Adriatico; o estado de exaltação, e animo revoltoso ou independente dos
+burguezes e vilões, porém, até em logares mais espaçosos tornava
+difficil a empresa do abbade.
+
+Ruy Pereira, apesar de ter presenceado em Lisboa a revolta popular,
+fazendo-se popular elle mesmo, não o era tanto que levasse a bem aquella
+sem-ceremonia dos portuenses, e lançando sobre os mais proximos um olhar
+pouco amavel, reprimindo a custo a vontade que tinha de mandar abrir
+caminho a prancha de espada e conto de lança, lamentava _in mente_ os
+bons velhos tempos--que já então havia bons velhos tempos--em que a
+cousa «peão» descortinando a vontade no gesto de um rico homem, logo
+obedecia sem mais tugir ou mugir.
+
+Graças á intervenção dos juizes do povo e real, que, avisados da chegada
+dos navios e de quem eram as pessoas que elles conduziam, vinham para as
+accommodar em pousada decente e fazer todas as honrarias, que em tal
+caso competia, o embaraço terminou. As tres authoridades, duas
+municipaes, uma real, duas de muros a dentro, outra ribeirinha, foram
+felizes, deve-se confessar, naquella occasião, por não haver conflicto
+de poderes, nem recalcitração dos governados, o que era raro, e deveram
+esta felicidade a estar satisfeita a curiosidade dos burguezes, e não
+ser preciso empregar barqueiro ou pescador algum na amarração dos
+navios. A procissão começou pois a mover-se pelas estreitas ruas da
+cidade, e, em vez de parar em S. Domingos, seguiu até á casa da camara
+no meio sempre de grandes acclamações ao mestre de Aviz, defensor e
+regedor do reino, e morras aos castelhanos herejes, scismaticos e
+traidores, o que fazia tragar sem réplica a Ruy Pereira o ceremonial
+amofinador a que o submettiam os edis portuenses, e a pressa que tinham
+de saber em que podiam servir a sua senhoria, o futuro rei.
+
+
+
+
+II.
+
+Um rapaz travesso.
+
+
+ He elle um par bem 'scolhido.
+
+ GIL VICENTE.--V. DA HORTA
+
+
+Quando o mensageiro do Mestre era processionalmente levado pela porta,
+que tempos depois deu a um poeta com o nome um trocadilho para um
+requerimento em verso, no marulhar de curiosos e patriotas que se
+empuxavam, forcejando por abrir caminho para aquelle gargalo, um burguez
+que tornava respeitavel o sizudo do traje, uma barriga proeminente, onde
+batia uma gorda bolsa de couro e um esguio punhal, cabello branco,
+patrioticamente cortado, luctava para não ser levado na corrente, dando
+mostras pelo inquieto do olhar que procurava alguem. A força da corrente
+era grande, porém, e arrastou-o pouco a pouco até junto de uma das
+torres de defesa, onde a ressaca o fazia tomar todas as direcções e
+posições possiveis no meio dos gritos das mulheres abafadas, das
+crianças trilhadas, do estalar das armaduras, que, permitta-se a imagem,
+eram os crustaceos que as ondas daquelle mar lançavam d'encontro ás
+rochas. Mestre Gonçalo Domingues suava por todos os póros e formava com
+os cotovellos um amparo ao abdomen e quebra-mar á maré, receando ser
+lythographado no muro, resmungando ao passo uma ladainha contra o
+causador daquelle desastre, segundo se lhe affigurava, um sobrinho que o
+acompanhára momentos antes, e que perdera de vista. Resolvido já a
+deixal-o por sua conta, pois não estava já em edade de se perder, e a
+escapar-se daquelle aperto, começava a recuar, servindo-se dos
+cotovellos como de uma alavanca, quando sentiu umas mãos callosas
+pousarem-lhe no hombro, sustendo-o na marcha. Sentindo aquella
+resistencia, sem vêr quem a oppunha, pois lhe era impossivel voltar o
+rosto, e receando de novo ser levado para o muro, empregou contra o
+individuo que assim lhe cortava a retirada um cotovellão, que estava na
+razão directa da força que o impellia: tudo isto acompanhado por uma
+praga:
+
+--Más terçãs te colham, cabeça de bogalho!
+
+A praga a meio, e uma das mãos a erguer-se a descer fechada em murro,
+estourando no costado de mestre Gonçalo Domingues, que soltou um
+regougo, cambaleou e perderia de certo o equilibrio, se um mesteiral,
+que estava na frente, o não amparasse na queda. O burguez, incommodando
+com o peso o seu primeiro ponto de appoio, este o saccudiu para um dos
+visinhos, que o recambiou sobre o homem do murro, appresentando-lh'o de
+cara.
+
+--Se te apanhára aqui, maldito! tornou a exclamar mestre Gonçalo,
+soltando outro gemido: punha-te as orelhas a fumegar. Tu m'as pagarás!
+
+Esta exclamação a meia voz, dirigida ao ausente sobrinho, foi
+interceptada a meio pelo homem de murro, um marinheiro, que, vendo o
+rosto afflicto do bojudo cidadão, se contentou com dar-lhe um grande
+encontrão, resmungando, como goso que vê em perigo o osso que esburga:
+
+--Pois junte lá mais isso á conta, meu baleote.
+
+Mestre Gonçalo estava affeito a ser mais bem tractado intra-muros:
+doeu-se da chufa dirigida ao seu physico pelo maritimo, e fez-se mais
+vermelho do que estava; fez-se roixo, se póde dizer, desde a raiz do
+cabello até aos queixos, mas não reagiu. A sua indole era pacifica,
+apesar do punhal que o acompanhava; e demais, não via perto de si senão
+caras desconhecidas e rostos queimados pelo ar do mar, que podiam ser de
+vassallos da coroa, e estes, posto nessa occasião estivessem em harmonia
+com os vassallos da mitra, e já um pouco apagadas as divisões antigas,
+era de crêr que por elle não tomassem partido. Comtudo, não se ficou,
+sem responder:
+
+--Se não está bom, deite-se, ou vá travar razões com petintaes,
+espadeleiros ou outra gente da sua egualha; não se metta com quem não se
+mette comsigo.
+
+--Olhem o outro! resmungou o marinheiro; abalroou-me com os cotovellos
+pelos peitos, e diz que se não mette com a gente; traz aquella cara que
+parece mesmo um odre a rever, e grita que um homem cá está toldado!
+
+Gonçalo Domingues, doendo-se da nova zombaria, tornou mais apropriada a
+imagem do marinheiro, e cerrando os punhos exclamou:
+
+--Veja como falla!
+
+--Graças a S. Pedro; meu advogado, redarguiu o homem do mar, levando a
+mão ao barrete--não é facil de dizer se em attenção ao santo-apostolo,
+se em cortezia zombeteira, pelo esgar que fez, ao senhor Gonçalo--graças
+a S. Pedro, fallo sem trave. E não me faça biocos nem arremessos,
+accrescentou com ar mais carregado: que, se me sobe a maré aos
+cascos?!...
+
+--Que é lá isso, mestre Gonçalo? perguntou quasi ao mesmo tempo um
+cidadão de pouco menos edade que o interrogado.
+
+--É este excommungado, que se metteu onde não era chamado, e me poz a
+paciencia em maior apuro do que já a trazia.
+
+--Excommungado é elle! resmungou o marinheiro, recambiando o apódo que
+lhe fôra dirigido, e fitando ora o novo, ora o antigo interlocutor.
+
+--Olhe, mestre Gil, tornou o burguez rubicundo, dirigindo-se ao
+recem-chegado; ia eu amofinado por causa daquella cabeça de vento de meu
+sobrinho...
+
+--E que tenho lá eu com seu sobrinho? tornou o marinheiro.
+
+--Isso mesmo queria eu que me dissesse! acudiu o senhor Gonçalo.
+
+E, voltando-se para o seu collega, continuou:
+
+--­­Ia eu, como lhe dizia, amofinado, porque o maldito do rapaz se me
+escapou--ora sei eu lá para onde!--e não sei que digo de mim para mim,
+quando essa creaturinha, como se não tivesse da sua egualha mais com
+quem desenferrujar a lingua, travou-se de razões...
+
+--Isso nada vale, mestre Gonçalo! atalhou o homem a quem vimos dar o
+nome de Gil, dirigindo-se para o galeote, que lhe voltou as costas,
+fazendo uma careta muito expressiva para um companheiro, que, com uma
+mão pousada no hombro delle, parecia, na posição que tomava, querer
+dizer que alli estava para ir em seu auxilio, se preciso fosse, que não
+era.
+
+O gordo burguez, vendo o antagonista voltar-lhe as costas, desafogou
+contra elle, com o seu amigo, a cholera, que o ameaçava com uma
+apoplexia; e em seguida desafogou tambem a respeito do causador, o
+estouvado sobrinho, que desapparecera. Apesar de ter escoado a multidão
+pela porta da cidade, de estar já desembaraçado o transito, á volta dos
+altercadores havia uma reunião de curiosos, como de costume, cujo nucleo
+era uma boa duzia de garotos pertencentes, pelo que dos trapos vestidos
+se divisava, a tres religiões; pelo typo, a tres raças, e ao qual se
+juntavam por um segundo, que mais não fosse, os arrastados daquella
+procissão e todos os que por alli o acaso conduzia. Uma velha que
+regressava aos lares com os aviamentos para a ceia, comprados na tenda
+d'ao pé da porta, soalheiro do bairro, não escapou, apesar de carregada,
+á força attrahente das lamentações de mestre Gonçalo; e, sabida a causa
+destas, se appressou em dar-lhe remedio.
+
+--Quer saber do seu sobrinho que esteve no convento, mestre Gonçalo? Bem
+se vê que o rapaz não tinha queda para os latins e o hábito; aquillo é
+um levantado! Tome sentido com elle, mestre! Agora o vi eu a correr pela
+bitesga que vai por pé da casa de João Ramalho. A modos que elle...
+
+A reflexão da velha, se na phrase ficou incompleta, não o ficou no
+gesto. A traducção deste era que o rapaz começava a inclinar­-se ás
+saias. (Como demos a traducção, ajuntaremos, em nota intercalada no
+texto, que a boa santinha parecia, no ar malicioso que tomou,
+recordando-se dos seus tempos, ter delles saudade.)
+
+Gonçalo Domingues, sem mais attender á mulher da alcofa, tomou a
+direcção do sitio indicado como o seguido pelo sobrinho, resolvido a
+descarregar nelle o mau humor excitado pelo seu desapparecimento, pelos
+apertões que levára, o cortejo que perdera, e, sobretudo, os apodos e
+murros do galeote. Em quanto para lá se dirige, ruminando aquellas
+passadas attribulações, saibamos o que fazia o travesso rapaz.
+
+Como já viu o leitor, no antecedente capitulo, no tempo em que estas
+cousas succediam, as habitações, em Miragaya, estavam mais perto do rio,
+ou melhor, o rio corria mais perto das habitações. Entre S. Pedro e os
+muros, havia, no espaço que abre a montanha, algumas bitesgas, de que
+ainda se conserva uma amostra, povoadas umas, outras correndo entre
+cercados e muros; em outros sitios, um fraguedo deixava apenas o logar
+preciso para algum carreiro não muito viavel. A povoação cerrava-se,
+apinhava-se mais para o pé da velha egreja de S. Pedro, e rareava
+progressivamente para o oriente e poente. Perto dos muros, havia tão
+sómente uma fieira de casas á beira d'agua; depois o declive rude do
+monte onde se edificou o convento dos Agostinhos, coberto de silvados e
+matto, que vinha angustiar mais o passo para a cidade. Onde se tornava
+mais suave a encosta, subia um carreiro, que, depois de serpear por
+detraz de algumas das moradas do bairro do rei, se bifurcava, levando um
+braço a uma daquellas ruas, lançando outro pelo monte, serventia a
+casaes que se communicavam egualmente com a cidade pelo lado do Olival.
+Por este carreiro é que tomára Fernando, ou Fernão Vasques, o sobrinho
+do senhor Gonçalo Domingues, mal viu absorvida a atenção deste nas galés
+reaes e seus passageiros. O rapaz correu por algum tempo sem tropeçar,
+para o que preciso era estar bem affeito a trilhar similhante caminho, e
+só affrouxou o passo quando se approximava de uma casa de boa
+apparencia, cuja frente dava para a praia, habitação de uma das
+notabilidades do bairro, e que o foi depois, na historia, do piloto e
+mercador João Ramalho.
+
+A casa para o lado do rio nada appresentava de notavel na fachada: era
+um edificio de madeira como muitos dessa epocha; para o lado do monte,
+porém, era bastante pictoresca. A parte inferior escondia-­se em uma
+moita de arbustos de um pequeno cercado, onde tambem se levantavam
+algumas arvores de fructo, uma das quaes, rompendo, com um braço lançado
+á flor da terra o muro de pedra insossa, saccudia sobre o caminho a
+folha, a flor e mesmo o fructo, se a gula dos garotos esperava pelos
+effeitos do tempo. Acima do verde dos arbustos descortinava-se uma
+varanda de pau, onde, no parapeito, davam passagem ao ar e á luz
+aberturas symetricas, figurando folhas de trevo, e na parte superior,
+zelozias em xadrez, tudo pintado de encarnado vivo e verde esmeralda,
+com que realçava o branco que tingia o tabique. De ambos os lados da
+varanda descia uma escada, cujos maineis se perdiam entre os arbustos,
+depois de se ligarem em um patamar, ao centro, para de novo se
+separarem, formando da sorte um corpo saliente na fachada. Por cima da
+varanda abriam-­se duas janellas, todas lavradas, ornadas de zelozias
+tambem, e tendo por baixo, sobre traves salientes, em cada uma das quaes
+artista rude esculpira um animal sonhado, dous caixões com terra. Em um,
+apar do qual duas longas canas formavam um estendal, onde se via roupa a
+seccar, a providencia domestica semeára salsa e a precaução contra
+feitiços dispozera um pé de arruda; no outro, havia um pé de amores
+perfeitos e outro de madresilva marinhando por cordões passados para o
+guarda-chuva de madeira que os abrigava.
+
+Quando Fernando Vasques se aproximou da casa, depois de alguns assobios,
+entre a trepadeira e por cima dos amores, appareceu, aberta a zelozia,
+uma cabeça bem propria para encaixilhar entre aquellas flores. Imaginae
+um rosto oval, de uma carnação que se não podia dizer branca, mas a que
+se não podia chamar trigueira, porque o não era; uma pallidez, sem ser
+dessas que denunciam uma natureza enfesada, doentia; uma pallidez que
+lhe dava um todo de brandura, de carinho, que fazia por vezes realçar um
+carmim vivissimo e trahia um olhar travesso, de travessura infantil,
+innocente; imaginae uma bocca de um lindo desenho, formando em cada
+extremo uma covinha engraçada; uma bocca que parecia sorrir sempre,
+mesmo quando a fronte scismava ou as lagrimas desciam pelas faces;
+imaginae que o nariz fôra modelado pelo de uma estatua antiga, e
+imaginae, sobretudo, uns olhos castanhos rasgados, assombrados por uma
+franja de cilias tão cerrada, que pareciam negros como a baga do
+loureiro; uns olhos, emfim, expressivos, verdadeiros espelhos d'alma,
+como lhes chamam os poetas, e tereis uma ideia das feições de Irene.
+Esta encantadora cabeça enfeitava-se com o mais soberbo cabello que se
+póde ter aos quinze annos; negro, longo, serico, ligeiramente ondeado.
+Para maior realce da côr, parecia feita á moda que vogava. As tranças,
+que vinham pousar no collo, alvo como marfim, eram intermeiadas por
+fitas de lã de um vermelho vivo, que se cruzavam depois na cabeça e
+vinham cahir soltas, dos lados, terminando em pingentes de metal
+dourado.
+
+As leis que faziam distinguir, pela cabeça, as solteiras das casadas e
+estas das viuvas cahiam em desuso.
+
+A filha de João Ramalho, apesar da curta edade, era uma bellesa. O
+sangue de sua mãe, uma dessas bellas moças da Asia, em que se confundiam
+dous typos, o grego e o armenio, predominando, desenvolvera aquelle
+corpo garboso; dera-lhe na adolescencia o acabado, a morbidez que só
+mais tarde, em geral, em outra edade se alcança. Com o corpo
+desenvolvera-se o espirito: desenvolvera-o a esmerada educação materna,
+que distava bem da vulgar entre a nossa burguezia naquelles tempos, e os
+carinhos da boa mulher, que o senhor João não comprehendia bem,
+entretido sempre nas suas viagens e rude, voltados todos para aquella
+filha unica, em que se embellezava cultivando-lhe o coração,
+aformosearam-lhe a alma. Uma bella alma faz um rosto, senão formoso,
+amavel; a intelligencia reproduz-se nas feições como aureola que lhes dá
+realce; a natureza, já o dissemos, fôra madrinha e não madrasta para com
+Irene: a bella menina, reunindo, pois, todas as formosuras, despertava a
+admiração e o amor ao mesmo tempo. A impressão produzida no sobrinho de
+Gonçalo Domingues fôra esta, e que o amor naquelle peito tinha boas
+raizes, dizia-o a confusão em que elle ficou, mal á janella appareceu a
+gentil cabeça. Fernando, um rapaz jovial e resoluto, como o diziam uns
+olhos castanhos cheios de fogo, um nariz ligeiramente curvo, os lábios
+delgados, accentuados na extremidade por um ligeiro buço; Fernando
+baixou os olhos, fez-se vermelho, sentiu que os joelhos se dobravam,
+enfraquecidos, e, sem se attrever a fitar de novo aquella apparição, bom
+tempo gastou em puxar o barrete de um para o outro lado da cabeça e
+amarrotal-o nas mãos, nem creança bisonha que se dispõe a abrir brecha
+na bolsa paterna, ou tem de responder por avaria feita, acabando por
+desafivelar o cinto da jornea, como se carecesse de tomar largo folego
+para levar a cabo a sua empresa.
+
+Não era esta a vez primeira em que alli se encontrava em taes embaraços,
+porém nunca tão graves tinham sido as circumstancias. A gravidade não
+provinha da escapula feita a seu tio, que já nem de tal se lembrava, mas
+da resolução que tomára de realisar as suas ambições e sonhos, as
+combinações de tantas horas; de passar além de alguns gestos e sorrisos
+e umas saudações feitas do cimo da encosta, não fallando em uma enfiada
+de sons, que palavras se não podiam dizer, pois nem elle lhes soubera o
+sentido, soltados á porta de S. Pedro entre uns como arrepios, que
+attribuiu ao modo porque o encarou a cultivadora da arruda, a creada a
+quem o senhor João Ramalho, por morte de sua esposa, confiára o governo
+da casa e a guarda da filha.
+
+Quasi egual á força da resolução fôra o abalo, como nestas cousas é de
+costume, mas Fernando não estava resolvido a deixar perder mais uma
+occasião: puxando o barrete sobre a nuca, subiu a um comoro, ao lado da
+quelha, ergueu os olhos e abriu a bocca, porém a palavra
+engasgou-­se-lhe a um gesto de Irene. O pobre não prevera que prégar a
+sua confidencia daquelle sitio fôra, querendo que ella a ouvisse,
+mettel-a tambem nos ouvidos dos visinhos, ou pelo menos das pessoas de
+casa, e a moça, levando um dedo aos lábios e indicando-lhe com um gesto
+que descia á varanda para encurtar a distancia, se no enleio, no rubor
+se mostrava mal affeita áquellas artimanhas, professadas pelo amor, ou
+quem suas vezes faz, como do sexo a que pertencia, se mostrava mais
+prudente. Irene desceu, mas vencido a meio o inconveniente da distancia,
+furtava-se, encoberta pelo cercado da horta, ás vistas de Fernando. Este
+eclypse, como diria um poeta, foi que deu ao namorado um animo de que
+elle proprio se espantou por muitos dias depois: atreveu-­se a subir ao
+muro e marinhar pela arvore que se debruçava sobre a estrada, a
+esconder-se entre a ramagem.
+
+Os discursos naquelle dia tinham má sorte: como o que fôra destinado a
+Ruy Pereira, o pensado e repensado do sobrinho de Gonçalo Domingues não
+vingou. A erudicção do abbade de Paço de Sousa achatar­a-se de encontro
+á paciencia do fidalgo; as flores escolhidas para ornar a declaração
+feita a Irene (tão rico dellas é o coração em que rebenta o amor!) as
+flores de estylo queimou-as um olhar lançado ao mancebo, traduzindo
+tanta cousa, que só um desses olhares podia dar bons tres capitulos como
+este em que se conta e commenta tanto successo. O olhar de uma donzella,
+como a filha do piloto, nestas confidencias de um primeiro amor--deixem
+dizer que o amor, o verdadeiro amor só vem muito mais tarde, deixem; que
+elles treleem, e julgam que o egoismo aquilata a paixão--; o olhar de
+uma donzella assim, encerra um mixto de affecto carinhoso, de volupia
+indefinivel, de pudor e innocencia, de receio e ousadia, que, para delle
+dar uma ideia, a poesia mesmo é uma linguagem descolorida.
+
+Fernando, mal se viu frente a frente com a moça namorada, sentiu um
+formigueiro nos pés, turbara-se-lhe a vista, e teve de se agarrar aos
+ramos da arvore, para não cahir; quiz procurar o cabeçalho da sua
+declaração, porém nem uma só ideia lhe vinha á mente; por mais de uma
+vez abriu a bocca, e teve de a fechar sem formular um unico monosyllabo.
+Irene, na varanda, com a approximação tambem se acanhára, e occultava o
+seu embaraço, ou, antes descobria-­o, passando a mão pela fronte,
+levantando uma trança para logo a abaixar, enrolando e desenrolando uma
+das fitas, afogando e desafogando o pescoço com o singelo colleirinho do
+corpete. Os minutos que assim passaram não foram poucos. Recuar depois
+de ter chegado até alli era desairoso e difficil.
+
+O sobrinho de Gonçalo Domingues fez o supremo esforço para não perder
+tudo.
+
+--Irene, Irenesinha! disse elle, amarrotando o barrete com a mão que
+tinha desembaraçada.
+
+A moça fitou-o, sorriu-se, e ainda alguns minutos foram desperdiçados,
+se desperdiçado se póde dizer aquelle tempo passado em enleio, rápido na
+passagem, mas que depois enche com a recordação tantas horas de vida.
+
+--Irenesinha! tornou Fernando, continuando a procurar a musa no barrete.
+
+A moça continuou a fitar o embaraçado rapaz, aguardando que alguma
+palavra mais seguisse á invocação. O barrete não absorvera, ao que
+parecia, os galanteios estudados, amimados por tanto tempo, pelo que,
+depois de larga pausa, Fernando desceu das regiões do amor a cousas mais
+terrestres, na linguagem; procurou, se, o que é mais provavel, se não
+agarrou á primeira idea visada, um ponto de partida nos successos do
+dia, e titubeou:
+
+--Não sabe que chegaram ahi umas galés de Lisboa?
+
+--Sei; respondeu a joven, baixinho, depois de olhar para todos os lados
+a vêr se alguem poderia ouvir aquella conversação _amorosa_. Meu pae
+para lá foi.
+
+--Foi? interrogou machinalmente o mancebo.
+
+-­-Foi, repetiu Irene, debruçando-se pela varanda e fazendo com uma das
+mãos junto do ouvido uma concha para não perder uma só palavra.
+
+--Pois veem nellas muitos fidalgos de Lisboa. Não os viu desembarcar?
+
+-­­-Vi.
+
+--Disseram-me que iam em procissão á cidade, e que traziam um recado do
+senhor D. João!
+
+--E não foi vêr?...
+
+--Olhe, Irene, atalhou Fernando em voz mais baixa e intercortada, por
+muito que tenham que vêr, eu antes quero estar aqui. A menina é que não
+sei como não vai para o lado da praia.
+
+--Para que? Tão longe fica o lugar onde vararam as galés, e está um
+gentio...
+
+--Então, se podésse vêr, não estava ahi.
+
+--Porque não? disse Irene, córando.
+
+--Porque... porque, titubiou Fernando, baixando os olhos; porque
+aquelles fidalgos com as jorneas bordadas, aquellas armas a espelhar são
+mais para se verem...
+
+--Da janella, tornou a moça, encolhendo os hombros; da janella não se
+podem admirar esses alindes.
+
+Fernando baixou a cabeça, desconcertado o seu intento. A moça não vinha
+para o campo para que elle a queria trazer: não o entendia, pensava
+elle, e se o não entendia é porque o não amava. Se soubesse avaliar a
+entonação de certas palavras não pensaria daquella sorte; porém todos os
+namorados assim são: não reparam nas rosas e colhem os espinhos.
+
+--Oh! Irenesinha, e se esses fidalgos viessem fazer uma leva para a
+guerra contra os scismaticos de Castella? tornou o mancebo, procurando
+levar a conversação ao fim desejado.
+
+--Para que pensar nessas cousas!
+
+--E se me levassem? insistiu elle.
+
+--Mas elles não veem para isso; não, senhor Fernando? disse a donzella
+com uma inflexão de voz, que pintava o receio de que uma affirmativa
+fosse a resposta.
+
+O sobrinho de Gonçalo Domingues não notou esta expressão e proseguiu:
+
+--Não se lhe dava que eu fosse?
+
+--Eu?
+
+--Sim; parece que não teria pena alguma.
+
+--Não diga essas cousas!
+
+--Pois devéras magoava-a a minha partida?
+
+--Devéras; disse Irene, passando a mão pelo rosto, para occultar as
+tintas do pejo, que a elle assomavam com esta confissão.
+
+--Não diz o que pensa, acudiu o mancebo, imprimindo, cheio de alegria,
+um tal abalo á arvore, que esta, oscilando o roçando de encontro ao
+muro, fez desprender algumas pedras.
+
+--Jesus! vai cahir! exclamou a donzella, tornando-se pállida.
+
+--Ai! Irenezinha, só para vêr se o que diz é certo, de boa vontade
+quebrava a cabeça.
+
+A moça, em vez de responder, com um gesto impoz silencio ao seu
+conversado. Do lado de baixo ouvia-se os passos de quem para alli se
+dirigia, e pouco depois appareceu Gonçalo Domingues.
+
+--É meu tio, disse Fernando, com voz tão sumida, que para si tão só
+parecia fallar, e no momento em que o rotundo burguez passava distrahido
+junto do muro, querendo esconder as pernas que deixava pender de um e
+outro lado do galho em que cavalgava, de novo oscilou a arvore
+violentamente, mais arruinando o muro a que se encostava.
+
+--Oh velhaco, que fazes ahi empoleirado?
+
+--Eu, senhor tio? accudiu o pobre rapaz, coçando na cabeça com toda a
+furia.
+
+--Sim, tu, Belzebuth! Salta cá para baixo, que te ensino a andar a
+roubar fructa pelos cerrados.
+
+--Oh meu tio, a arvore não tem fructo; olhe bem.
+
+--Então que fazes ahi?
+
+--Eu estava a vêr...
+
+--O que, rapaz de má morte, cabeça ôcca?
+
+--A vêr se o via por algures, proseguiu o desconcertado mancebo.
+
+--Levadigas te colham! Procuraste atalaya bem longe do caminho. Ora,
+desce, que eu te vou ensinar chanças melhores.
+
+--Cuidei que ia pela Aljama.
+
+--Algemia é isso que tu estás a prégar. Desce, velhaco!
+
+--Lá vou, tio; disse Fernando, descavalgando, porém deixando-se suspenso
+pelas mãos do seu poleiro. Mas...
+
+--Mas o que? Por tua causa em boas me vi, e tu m'as pagarás juntas. Eu
+farei de modo que não tenhas mais vontade de ir devassar hortas e
+cerca­dos. Se vais por esse caminho, acabas nas mãos da justiça!
+exclamou o senhor Gonçalo Domingues, com sobrecenho provocado pela
+recordação de desaguisado da praia.
+
+Fernando deitou á donzella, que toda trémula se conservava encostada á
+varanda, um olhar a furto, não se attrevendo, por envergonhado de ser
+assim, alli na presença della, tractado como uma creança, a uma
+despedida; com outro relance d'olhos avaliou se as ameaças do tio não
+teriam, na execução, algum desconto, e lentamente, soltando um suspiro,
+desceu da arvore em que, ao modo das aves, tinha soltado as primeiras
+confidencias do amor. Tão depressa sentiu nos pés o contacto do
+pedregulho da bitesga, como sentiu nas orelhas o da mão de mestre
+Gonçalo, que acompanhava cada puxão com um epitheto pouco amavel,
+terminando pelo de «ladrão».
+
+--Ladrão não! exclamou o rapaz dando um salto, ferido pela insistencia
+do tio naquelle ruim conceito.
+
+--Então que fazias alli, rapaz dos meus peccados?
+
+Alguem, não o interrogado, se encarregou de responder. Á janella onde
+vecejava a arruda assomou um rosto encarquilhado, meio occulto em uma
+enorme touca de linho a feição das que usam as freiras, e gritou com uma
+voz de canna rachada, debruçando-se:
+
+--Menina Irene! menina Irene!
+
+Gonçalo Domingues suspendeu as suas iras, e estendeu o lábio inferior
+com um gesto que queria dizer muita cousa, e, entre outras, que atinava
+com o motivo de ter o sobrinho trocado a procissão dos fidalgos por uma
+ascensão ás arvores do senhor João Ramalho. Lembraram-lhe as palavras e
+os momos da velha da praia.
+
+--Já agora vamos pela Aljama, e de passo fallarei com meu compadre;
+disse em seguida, dando um encontrão ao mancebo e indicando o carreiro
+que subia a montanha.
+
+Mettendo-se a caminho, voltou a cabeça, como a voltára Fernando, para a
+casa do mercador, e viu na janella do andar superior, por entre a
+zelozia meia aberta, o rosto da gentil menina.
+
+--Á fé, disse elle por entre dentes, que o rapaz não tem ruim gosto; e
+ella...
+
+A palavra foi terminada por um sorriso, olhando para Fernando, como
+desvanecido do seu sangue. Gonçalo Domingues era um excellente homem,
+apesar de toda a sua aspereza apparente.
+
+
+
+
+III.
+
+Os Velhacos.
+
+
+ Aquelles cidadãos nobres praticavam n'isto com mais deliberação,
+ como homens, que tinham mais que perder, que os plebeus que seguiam
+ o Mestre...
+
+ CHRONICA DE D. JOÃO 1.^o
+
+
+Uma cidade da peninsula, no seculo XIV, não era um aggregado de
+individuos vivendo, como hoje, debaixo da mesma lei--segundo reza a lei,
+entenda-se. Afóra as distincções de classes e senhorios diversos, havia
+a distincção de crenças, e a separação era visivel nas grossas cadeias
+que tornavam ao cahir das Ave-Marias incommunicaveis certos bairros. O
+Porto tinha de tudo: subditos da coroa e subditos da mitra, e no tempo
+em que succedia o que narramos, moradores que nem reconheciam uma, nem
+outra; havia christãos, mouros e judeus. Sobre um monte alteavam-se as
+torres da Sé, e os paços fortificados do bispo; sobre o outro mais
+humilde levantava-se a esnoga, ou synagoga, e na encosta, entre um e
+outro, a pequena aljama appresentava-se, como o symbolo da religião do
+propheta de Yatreb, querendo approximar-se do Evangelho e da Biblia, e
+lançando depois pela encosta um ou outro casebre, como transição para
+alguma morada de heresiarcha que se occultasse entre os foragidos do
+Oriente. A aljama era a mais pobre: a esnoga era a mais rica; a cruz,
+mais alta, dominando as duas, era a mais forte.
+
+Aljama, municipio, cathedral, esnoga, tudo fôra cintado pela mesma
+muralha, como para viver em boa fraternidade; mas esta aguara entre os
+dous filhos de Adão, quanto mais entre tanta gente. O judeu despresava o
+mouro; o mouro despresava o judeu; o christão despresava a ambos, e,
+como fizera a lei, talhára para si mais regalias e para os outros mais
+tributos, reservando, para os que nada tivessem de seu, o direito de se
+lamentarem em particular de algum pescoção de burguez arrufado, gilvaz
+de cavalleiro, pedrada de garoto e praga de rascôa enraivecida, ou velha
+rabujenta. Era uma sorte bem agradavel, feliz, comtudo, aquella, em
+comparação á que lhes prepararam, aos judeus especialmente, uns beatos
+mettidos em politica, de que se serviam para ganhar o céu, suppunham
+elles, e um bando de togas, garnachas e roupetas que se serviam do céu
+para apanhar dinheiro. Aquella animosidade era a regra geral, mas toda a
+regra tem excepção, e na mouraria era ás vezes recebido com os braços
+abertos o mesteiral; na judearia havia mão que se estendia ao burguez em
+prova de amisade sincera, e um ou outro filho de Israel achava agasalho
+não chorado na casa do christão, mesmo quando aquelle não tinha a arca
+cheia de boas dobras; que em tal caso todas as portas se abriam, desde a
+do paço régio ou episcopal e a do solar do nobre, até á da cella do
+reverendo abbade, e a do leigo, e sobre elles choviam honras e mercês;
+como eram prova viva D. Judas e D. David, duas creaturas, que, fazendo
+grande arruido na côrte, jogaram com os destinos do paiz, como bons
+ministros de finanças­--o nome, o titulo ainda não estava creado, mas a
+cousa já existia--não se esquecendo de tirar delle todo o succo
+possivel. Gonçalo Domingues vivia em boa harmonia com o arabi, ou arrabi
+menor, harmonia que o devia lisongear, pois era até certo ponto uma
+notabilidade, como chefe dos judeus da cidade e como homem de teres, e
+por isso se resolvera a subir a encosta, pelo lado do Olival, para
+fallar em certos negocios em que desejava servir um seu compadre, e
+tractar da compra de porção de gado. O velho Gonçalo, forçureiro nos
+seus principios, reunira o cabedal bastante para alargar a área do seu
+commercio: estendera-o ás carnes-verdes e ensacadas e a pellames de todo
+o genero; tornara-se em fim um negociante de consideração, como um seu
+collega de Coimbra, que salvou a patria, emprestando a sua senhoria, o
+Mestre de Aviz, alguns punhados de dobras, serviço que lhe rendeu a
+doação de alguns bens nacionaes e a gloria de ser o tronco de uma nobre
+familia. A nobreza de elmo cerrado atira-se aos fidalgos do seculo XIX,
+lançando-lhe em rosto o não ser com a espada que lavrassem os seus
+escudos; mas é porque não teem paciencia ou vagar de revolver os
+archivos da familia, senão deixaria de atirar pedra ao telhado dos
+visinhos, vendo os seus de vidro: se por tal de vidro os podem
+considerar. Deixemos reflexões, porém, e retrogrademos ao bom tempo, que
+assim se chama sempre ao tempo passado, a apanhar o rico burguez e o
+sobrinho á porta do Olival.
+
+No campo, que, extra-­muros, por aquelles lados se estendia, ainda se
+viam alguns individuos, que, com os olhos postos no rio, pareciam
+analysar as galés chegadas; mas era visivel que, de todos os portuenses,
+estes, que assim ainda pasmavam, eram os menos curiosos, os mais
+indifferentes á lucta travada. A boa parte, farrapos, que em bom tempo
+tinham formado uma aljuba, denunciavam como decendentes de Tarik; a
+outros distinguia-os um circulo de lã amarella pregado nos grosseiros
+tabardos; o resto não se distinguia por cousa alguma da roupa, porque
+naquelle cerzido de trapos nada se podia distinguir. Os curiosos, os
+verdadeiros curiosos tínham, como vimos, descido á baixa da cidade, e
+mais crescera o numero depois que se soubera que nada havia que receiar
+das galés, e que Ruy Pereira e os outros capitães desembarcaram e
+seguiram processionalmente para os paços municipaes. Gonçalo Domingues,
+intercalando as combinações de seu negocio com reflexões sobre a
+descoberta feita dos amores de seu sobrinho, reflexões que faziam com
+que a este mostrasse gesto carregado, e interiormente se sorrisse,
+avivando na memoria os seus verdes annos: medindo de tempos a tempos a
+altura do sol, que não eram depois de Ave-Marias seguras certas
+paragens, passeava de um para o outro lado do campo: Fernando
+acompanhava-­o, voltando a todo o instante a cabeça para Miragaya;
+procurando aproximar-se de sitio d'onde podésse ao menos vêr a casa do
+mercador; reprehendendo-se por não ter aproveitado melhor o tempo que
+passára junto de Irene, dizendo uma fineza daquellas do livro de
+cavallerias, que frei Gumeado lhe deixára lêr; descoroçoado por aquelle
+final, que de certo o rebaixaria no conceito da linda moça. O sobrinho
+andava tão embebido, que nem sentia os pés tocar no chão, e o campo não
+era jardim areado; o tio cançava-se já de aguardar seu compadre, que não
+encontrára em casa, quando a apparição de um personagem veio pôr em
+movimento os frequentadores do campo: uns deslisaram-se, o mais
+sorrateiramente que lhes foi possivel, pela encosta e por entre o
+arvoredo, outros perfilaram-­se, e levaram as mãos aos barretes, os que
+os tinham, mostrando, comtudo, pelo gesto, que não era a estima, mas o
+temor que os levava a esta delicadesa.
+
+O recem-chegado, personagem lhe chamamos, e mostrava-o ser de conta
+entre aquella gente, era uma figura notavel. Um barrete de tela vermelha
+de forma exquisita rematava, assentado sobre um capirote, uma fronte um
+pouco crescida e saliente, complemento de um rosto ossudo, moreno, em
+que dous olhos desesperados com a proeminencia de um nariz, que se
+mettia em tudo de permeio, tinham aca­bado por enviar as pupillas, cada
+uma para o seu lado, a tomar conhecimento com as orelhas; o lábio
+superior era adornado por um bigode esfarrapado, de côr duvidosa, ou de
+todas as côres possiveis--preto, branc­o, castanho, louro e ruivo--e de
+egual mescla eram os pellos que deixava crescer no queixo. Da cabeça não
+desdiziam o resto do corpo e o vestuario: trajava um gibão bipartido
+preto e vermelho, e uma das longas pernas enfiava-se em uma calça e
+borzeguim vermelho, a outra em calça e borzeguim preto; do pescoço
+pendia-lhe uma medalha de metal amarello, com as armas da cidade, da
+cinta um grande punhal e uma enorme bolsa de couro, e na mão sustinha um
+bastão, terminado por uma cabeça de metal cinzelada, ao que parecia, por
+artista que tomára a delle por modello. Medalha e bastão apregoavam que
+Tello Rabaldo era o pae dos velhacos, cargo que não tem hoje
+correspondente, por não tolerarem as luzes do seculo absurdos. Tello
+superintendia, governava tão sómente cidadãos que em noites serenas teem
+o docel do leito recamado de estrellas, jejuam sem devoção, deixam
+crestar o corpo pelo sol de Agosto e gelar o sangue pelo frio de
+Janeiro, e chamar-lhes velhacos era alterar a significação das palavras,
+se não era malicia de legislador, que assim arrebanhava e baptisava
+alguns centos de creaturas, para que se persuadissem as de boa fé que na
+terra não havia mais, como os hospitaes de doudos lisongeam muita gente
+que não é forçada a não ter lá moradia. Os velhacos, os verdadeiros,
+então, como hoje, não se deixavam governar, sempre governavam tambem, e
+havia-os anafados, vestindo custosas telas e abrigados em paços
+soberbos.
+
+--Eh! boa gente! exclamou Tello, dirigindo-se aos individuos que
+tractavam de lhe evitar a presença; então assim querem fugir a seu pae!
+Vamos, venham receber a benção, como bons filhos, e com a benção uma boa
+nova. Olá, Pedro Choca! accrescentou, depois de honrar com um sorriso a
+facecia que servira de exordio, dirigindo-se a um dos que se
+desbarretava; que nenhum dos teus falte depois de ámanhã na Ribeira.
+Onde está o João Bispo?
+
+--João Bispo, redarguiu o interrogado, ha dias que desappareceu.
+
+--O velhaco voltaria para o convento farto de estar deitado de barriga
+ao sol, ou se metteu outra vez com a filha do velho Humeia, e está a
+fazer penitencia por ter peccado com moura?
+
+--Ou se foi lançar com os scismaticos...
+
+--Para que? Toma conta em ti! Chegou-me aos ouvidos que te travaste com
+elle de razões por umas nonadas, e se me déste cabo do rapaz, em boa te
+metteste! Se não me trouxeres em breve novas delle, a tua pelle m'as
+dará. A polé do aljube está nova, e poderá bem comtigo.
+
+Choca resmungou por entre dentes algumas palavras, e o pae dos velhacos
+proseguiu:
+
+--Avisa aos compadres para que ou vão comtigo e mais a sua gente, ou a
+levem para as tercenas. Que não falte ninguem! Quero duzentos homens,
+bons pulsos...
+
+--Duzentos homens, bem sabe sua mercê que não podemos reunir. A melhoria
+da gente levou-a o senhor conde Gonçalo; o senhor alcaide tem boa
+porção, e se creanças, mulheres e aleijados não servem...
+
+--E esses perros de cabeça amarrada! exclamou Tello, designando um mouro
+que a curiosidade trouxera para junto de Pedro Choca, capataz de uma
+turma de vádios. Quanto aos aleijados, sei de uma mésinha que os põe
+sãos como um pero, ajuntou, mostrando o seu bastão; o manco da porta da
+Sé que o diga. Vamos: sua senhoria (uma barretada) appellidou os bons
+homens da sua boa cidade (outra barretada) para que o ajudassem a dar
+cabo dos perros de Castella, e os alvazires dão-vos honra mettendo-vos
+na conta dos bons homens... fazendo-vos trabalhar. Que ninguem falte, e
+viva sua senhoria!
+
+--Viva sua senhoria! repetiram os vádios e com elles Gonçalo Domingues,
+que se approximára da roda formada ao pae dos velhacos, roda desfeita a
+um signal por este dado com a vara, deixando a importante, incansavel e
+incorruptivel auctoridade, como lhe chamariam hoje, que todos os
+encargos teem um ou mais adjectivos annexos, face a face com o burguez,
+que abria a bocca para indagar quaes os serviços que o filho de Thereza
+Lourenço reclamava dos portuenses.
+
+A interrogação não foi formulada. Tello Rabaldo, cheio da sua
+importancia, fez uma leve saudação, carregou o barrete sobre um dos
+olhos em rebeldia, e girou sobre os calcanhares ao mesmo tempo que um
+outro individuo assentava nos hombros do forçureiro uma grande palmada.
+Gonçalo Domingues voltou-se a vêr quem segundava a amabilidade do
+marinheiro, e se não reconheceu logo o seu compadre, foi porque um
+abraço de metter costellas dentro o suffocou. O bom homem vinha
+lisongeado com a carta de que Ruy Pereira fôra portador, lisongeado em
+extremo no seu patriotismo de localidade, e expandia o seu contentamento
+daquella sorte e em exclamações, que fizeram suspeitar ao tio de
+Fernando, que não estava em bom arranjo aquella cabeça. D. João chamava
+aos portuenses o seu bom povo, mi­moseára-o além disso com outros
+epythetos taes como--leal, esforçado, etc., e o portador, resolvido,
+apesar do seu enfado, a ser amavel e popular, pintára a amisade e
+reconhecimento do Mestre, pela espontaneidade da sua acclamação na
+cidade da Virgem, com taes côres, descera da sua dignidade
+prodigalisando sor­risos ao corpo municipal, batendo no hombro de Luiz
+Giraldes de um modo, que o nosso homem esteve por um triz a deixar cahir
+uma lagrima de commoção. Era uma alma candida e enthusiastica, apesar do
+involucro grosseiro, o compadre do senhor Gonçalo Domingos; tão candida
+que acreditava no desinteresse do Mestre de Aviz, suppondo que defendia
+a coroa para a entregar ao filho de Ignez de Castro; tão enthusiastica e
+patriotica que, quando, á força de lhe perguntar o marchante se
+encontrára o arrabi, seccas as goellas e já sem alento para descrever a
+reunião nos paços municipaes e mais epysodios da embaixada, se recordou
+do seu negocio, era tarde. O sol ia quasi a mergulhar no oceano, e era
+provavel não só que, na judearia estivessem fechadas as ruas, mas até
+que se lá fossem, encontrassem as portas da cidade cerradas no regresso.
+Os dous burguezes separaram-se, pois: o patriota, compadre de Gonçalo
+Domingues, seguiu pelos campos em direcção ao povoado de Cedofeita;
+est'outro, despertando o sobrinho de pensamentos em que não entravam nem
+compras, nem vendas, nem os direitos que os filhos de Henrique 2.^o de
+Castella e D. Pedro 1.^o de Portugal, podiam ter á terra que pisava,
+tomou com elle o caminho de casa.
+
+As nuvens, que o norte espalhára no ar, como flocos de algodão, ornadas
+pelas tintas que formam a gradação entre o rubro e o amarello vivo,
+davam ao céu a apparencia de um marmore, um todo que em pintura seria
+inverosimil; os edificios de Villa Nova e de Gaya cortavam com o perfil
+o horisonte, vestindo pouco a pouco uma côr uniforme, o cinzento-escuro.
+De um destes edificios, o que mais se avantajava, do castello de Gaya,
+as janellas esguias voltadas para o poente pareciam dar sahida aos fogos
+de um incendio. De que não era, porém, este chamejar mais que um reflexo
+do sol no occaso, se poderia desenganar quem, mesmo nunca tendo
+presenceado este phenomeno, se nos anticipasse na residencia do tenente
+do conde D. Gonçalo, onde uma hora depois lhe provariamos que a
+reflexão, ao appresentar Tello Rabaldo, não fôra de leve feita: velhacos
+não eram só os que não tinham nem leira nem beira.
+
+Em uma das salas que no castello serviam de apposento ao alcaide,
+revestida de apainelados de carvalho, em que a luz do dia, coada pelos
+miudos vidros de côr, formando losangos, embaçava, e embaçava egualmente
+a que davam as tochas sustentadas por braços de ferro, passeava de um
+para outro lado um homem de alguma edade já, magro e de estatura
+mediana. No peito de uma especie de camisola de panno de curtas fraldas,
+cujas mangas, farpadas nas orlas, pendiam até ao joelho, viam-­se
+bordadas a verde com nervuras de ouro tres folhas de figueira; o mesmo
+distinctivo se reproduzia em uma bolsa de couro, que, do lado contrário
+ao estoque, acompanhava um punhal, nos fartos reposteiros das duas
+portas, que para a sala davam serventia, e na manga da jornea de um
+pagem, creança de dez annos, que cabeceava com somno a um canto. O
+barrete adornava-se com duas pennas de aguia, presas em fecho de ouro, e
+os borzeguins apresentavam uns longos bicos, moda que um epysodio da
+guerra travada deixou assignalada na historia. Encostados, no vão de uma
+janella, conversavam, em voz baixa, uma dama e um individuo que se
+tornava notavel por usar crescido o cabello, raro e de côr avermelhada,
+e por uma longa espada, de que affagava o punho. Do lado opposto havia
+seis individuos, um dos quaes vestia hábito monastico, e outro se
+acobertava com uma velha armadura de malha.
+
+O homem que passeava era Ayres Gonçalves de Figueiredo; a dama era a
+esposa deste, D. Catharina; o individuo, que lhe fazia companhia, o
+irlandez Guilherme Down-Patrick; os restantes eram quatro cavalleiros,
+homens de solar de Entre-Douro-e-Minho, o capitão de besteiros, Pero
+Bedoido, e frei Garcia.
+
+As passadas do alcaide soavam mais alto do que as poucas palavras que
+toda aquella gente trocava entre si, e visivelmente preoccupava-­o
+negocio, que não era para os outros estranho, a não enganar o modo
+porque de tempos a tempos se fitavam e a meditação que se seguia. Duas
+pessoas se subtrahiam á influencia geral, a castellã e o irlandez: se se
+calavam era, ella para amimar uma galga branca, que se enroscava sobre
+um escabello, elle para com a vista percorrer a laçaria e penduróes do
+tecto.
+
+Segredos e silencio, aquelles olhares e gestos tinham um todo
+mysterioso, que houve por bem quebrar Ayres Gonçalves.
+
+--Que me dizeis, senhores? exclamou, estacando no meio do passeio, como
+a procurar alvitre que viesse pôr termo á sua irresolução, parecer que
+se conformasse com o que tinha na mente.
+
+Ninguem respondeu, porém, e o castellão, lançando á volta de si um olhar
+de quem queria lêr nas physionomias dos hospedes as suas intenções,
+proseguiu:
+
+--Sua senhoria quer em volta de si todas as lanças do reino, e não se
+lembra, ou não se quer lembrar de que fica desguarnecida uma terra tão
+importante como esta, e cercada por tantos senhores que levantaram voz
+pela rainha D. Beatriz. Deixa a cidade aos peões, aos peões, que tracta
+como a gente de prol?!
+
+--Em boa confusão vae pondo as cousas! Um dia, veremos, senão lhes pozer
+cobro ás ousadias, vir arraya tomar-nos os solares; atalhou, abanando a
+cabeça com ar sentencioso, um velho fidalgo de Riba-Tua. Bem altaneiros
+andam já burguezes e mesteiraes!
+
+--Deixae, accudiu Affonso Darga, as encamiza­das dos peões, que terão
+seu cabo. O Mestre precisa de sustentar a guerra, e lisongea por isso
+quanto mercador tem a arca bem provida de boas dobras, tornezes, gentis,
+florins e pilartes. Aos do Porto pede elle agora uma armada, mantimentos
+e dinheiro.
+
+--Armada que nos levará a vêr o rosto ás hostes de Castella; tornou
+Ayres Gonçalves.
+
+--Se se fizer.
+
+--O povo do Messias de Lisboa a arranjará. Não viram como os alvazires
+propozeram logo uma derrama, e juraram a Rui Pereira que teriam antes de
+um mez a nado algumas naus e outras se armariam dos melhores navios do
+commercio com Flandres?! Estão inchados com o valimento que lhes dão.
+
+--Por ahi se conhecem os vilões...
+
+--É que dão elles ao Mestre? Grande cousa! Em campo se verá de que
+servem, e no campo é que a contenda tem de se decidir. Irão com béstas,
+virotes e azevans fazer frente ás lanças de Cas­tella? Lingua teem
+elles; mas brio é que nem toda a algaravia desses mestres em leis e
+clerigos, que o regedor tomou para seus conselhos, esses falladores de
+Pisa e Bolonha, poderá metter nessa gente.
+
+--Mas nella se estriba D. João, disse, meneando a cabeça, um dos
+cavalleiros.
+
+--Para elles appella com boas palavras; a nós manda-nos, não recado, mas
+ordem! exclamou o alcaide. É dessas garnachas sahidas do nada que vem a
+desconsideração em que nos tem.
+
+--Tempos do rei D. Fernando! suspirou Down-Patrick, recordando-se talvez
+de quando as hostes do duque de Lencastre faziam, entre os alliados
+por­tuguezes e os inimigos de Castella, de tudo roupa de francez.
+
+--Era um bom rei o que Deus tem! ajuntou frei Garcia, fazendo uma momice
+de piedade.
+
+­--Rei, e creado como rei, bem sabia elle onde estava a força e grandesa
+do reino e sua.
+
+--E melhor agasalho não nos fazem sempre no campo do marido da rainha D.
+Beatriz. Aos de sua casa aconselhou D. Leonor que fossem para o Mestre,
+que ao menos não era soffrego.
+
+--Com isso perdeu D. João: perdeu-o a altivez.
+
+--E ao Mestre não approveitarão as mercês rastejadas.
+
+--Elle não precisa de nós, tornou o velho, o mais desappontado dos
+hospedes do alcaide, ao que perecia; faz cavalleiros a seu capricho do
+primeiro peão que se lhe antolha.
+
+--Bons cavalleiros! observou, rindo, o mais moço da reunião. Por lá
+andam montados em mulas fazendo rir com os seus ares de importancia. Não
+será preciso, para os derribar, erguer clava ou montante: andam tão mal
+a geito com arnez e grevas, tão abafados pelos elmos, os que os teem,
+que ao primeiro arranco das azes vão ao chão.
+
+--Em se tractando de lançadas é comnosco que se haverão, bem o vêdes,
+disse Ayres de Sá.
+
+--E ireis, senhor alcaide? interrogou Affonso Darga.
+
+--Eu, senhores, respondeu Ayres depois de alguma hesitação, levantei voz
+pelo Mestre, mas recebi o castello do conde D. Gonçalo: obedecerei a sua
+senhoria em tudo, mas só abandonarei o castello...
+
+A phrase do alcaide não terminou. D. Catharina, approximando-se de seu
+marido, e impondo-lhe com um relance d'olhos a conveniencia de não
+proseguir, atalhou:
+
+--Largos dias tendes para tomar conselho, cavalleiros; alegrae o sarau
+com outros contos. Cousas de tanta importancia não se devem tractar de
+salto: o tempo que se leva a pensar em casos taes não é perdido. Tomai
+exemplo de D. Gonçalo Telles, ajuntou mais baixo, dirigindo-se ao
+esposo.
+
+D. Catharina de Figueiredo era, até certo ponto, uma dona prudente, como
+chama um historiador, por egual conselho fabiano, a Beatriz Gonçalves de
+Moura, aia depois da excellente rainha D. Philippa. O exemplo do conde
+era um grande exemplo, pois era de homem que sabia, ou parecia ter de
+memoria o _Sic vos non vobis_ de Virgilio, e dar-lhe o valor devido nas
+cousas do mundo. D. Gonçalo fechara-se em Coimbra, jogára­ com sua irmã
+um jogo pouco leal e parecia aguardar que a sorte decidisse qual dos
+pretendentes á corôa tinha razão e direito, ou força e geito para a
+segurar na cabeça. O alcaide approveitou o conselho e abandonou o thema
+em que o lançára o mau humor causado pela mensagem de Ruy Pereira.
+
+Palestra sobre outro assumpto era naquella occasião difficil de
+sustentar. Os cavalheiros pouco a pouco deixaram a sala, e quando só
+restavam o aventureiro, Henrique Fafes, o mais moço dos da reunião, e
+frei Garcia, indicou este ultimo com o olhar o pagem quasi adormecido,
+tirando ao mesmo tempo da manga uma tira de pergaminho dobrada. Ayres de
+Figueiredo, sacudindo com violencia a creança de quem o reverendo
+parecia recear a indiscripção, a poz, extremunhada, fóra da porta,
+ordenando-lhe que se recolhesse, e em seguida percorreu com os olhos o
+escripto, que lhe appresentaram.
+
+--O alcaide de Monsaraz veio? disse elle terminando a leitura e
+dirigindo-se ao frade.
+
+--Senhor, sim, veio.
+
+--E não desconfiaram de nada?
+
+­--Penso que de nada. As galés castelhanas não appareceram.
+
+--E de boa fonte houvestes esta proposta?
+
+--Do irmão do arrabi-mór, esse judeu a quem sua real senhoria acaba de
+fazer mercê.
+
+--Misser Guilherme, senhor Henrique, disse o alcaide depois de fitar os
+dous por um momento, se pouco caso se faz de nós em Lisboa, no campo dos
+que a sitiam teem-nos em apreço. D. João não é tão soffrego como o
+pintavam, e a prova é este pergaminho.
+
+Down-Patrick fez uma visagem e soltou um «oh» guttural, que expressava a
+pouca admiração que lhe causava o apreço em que o poderiam ter, como
+certo dos seus muitos merecimentos.
+
+--Gonçalo Rodrigues vos fallará depois d'ámanhã em S. Domingos, disse
+frei Garcia, attrahindo o alcaide para junto de uma das portas, a
+opposta áquella por onde sahira o pagem. E depois, accrescentando
+algumas palavras em voz baixa, sahiu pelo outro lado.
+
+Ayres de Sá, chamando Henrique Fafes e o irlandez, seguiu-o.
+
+Quando a sala ficou deserta, o reposteiro, junto do qual frei Garcia
+fallára com o alcaide de Gaya, oscillou e appareceu entre elle e a
+hombreira da porta um rosto, onde a curiosidade e a malicia se pintavam.
+
+--A mulher tem razão, disse, referindo-­se ás palavras de D. Catharina,
+o curioso, depois de ter o ouvido á escuta por alguns segundos; o tempo
+que se gasta em certas cousas não se perde, e eu não perdi o meu. Ah!
+Garifa, minha pobre Garifa! exclamou em seguida, mudando de expressão e
+ajuntando á exclamação um suspiro, de ti é que não apanho novas.
+
+
+
+
+IV.
+
+Dous namorados.
+
+
+ ... Donde amor se atraviesa
+ No hay padres reverenciados.
+
+ (ROMANCES DE GAZUL.)
+
+
+Fernando, chegando a casa, o melhor predio da rua dos Pellames, ao toque
+de Angelus, viu seu tio devorar com todo o appetite uma grande posta de
+carneiro e um tassalho de toucinho, capaz do pôr em debandada um
+exercito mahometano, regado tudo com o summo da uva. Gonçalo Domingues,
+se dava descanço aos dentes, não o dava á lingua, pois incetou, ao
+_benedicite_, um sermão, que, ao _gratias_, ainda não estava concluido.
+O velho fallou na creação do seu tempo, na obediencia da gente moça á
+mais idosa em geral, e em especial áquella de quem se recebe o pão do
+corpo e o pão do espirito; discorreu sobre as passadas travessuras do
+sobrinho, e foi cahir na ultima, terminando pela ameaça de um sevéro
+castigo, em caso de reincidencia. Fernando, ao inverso do tio, não
+tocava sequer em uma mealha do pão alvo, que a criada com um prato de
+figos passos servira por mimo, e, com os olhos fixos na toalha, não
+soltava uma palavra de desculpa. O bom velho, notando aquelle
+extraordinario fastio e sizudez, tomou tudo por effeito da sua
+eloquencia, conversão e compunção do rapaz, e por um triz esteve, no
+final, a addicionar ao sermão um palliativo, tirando o exemplo de casa,
+pois que o podia fazer; mas a necessidade da disciplina, de conservar
+sempre perante o sobrinho um todo de soberania, um sobrecenho, que
+julgava indispensavel, embora não quadrasse com a affeição que lhe
+tinha, o detiveram. Fernando era, segundo elle, um estouvado, um leviano
+como seu pae, do que déra já provas exuberantes, abandonando, depois dos
+estudos, o convento de S. Francisco, então extra-muros, para onde um
+outro parente o chamára, a fim de o metter na estrada do céu e do mundo
+pela clausura. O que nisto amofinava mais o forçureiro era a boa
+disposição que mostrava o mancebo para as letras, a intelligencia
+desenvolvida, que nos primeiros tempos fizera dizer a frei Gumeado,
+grande sabedor para aquellas epochas, que bem podia vir a aspirar a
+grandes dignidades da egreja e do seculo, a ser geral, bispo, ou
+chanceller. Todo o rigor, pois, que empregasse era pouco, e despediu-se
+do mancebo com toda a solemnidade, para dizer á cuvilheira que, como por
+seu voto e lembrança, lhe levasse ao quarto alguma cousa de comer.
+
+Se Gonçalo Domingues soubera qual a attenção que lhe dava o sobrinho, de
+certo não fizera semelhante recommendação. É bem certo que os annos
+trazem, ás vezes, experiencia e algum saber; mas não é menos certo que á
+proporção que vão passando se esquece muita cousa egualmente: aos
+sessenta perde-se a memor­ia dos vinte, senão das acções praticadas, dos
+pensamentos havidos; um mancebo póde muito bem avaliar o que não
+apreciará, não conseguirá distinguir um homem a quem o inverno da vida
+tenha gelado o coração. A prédica entrava tanto na absorpção de
+Fernando, como entrava a mensagem do Defensor: as palavras do tio
+eccoavam-lhe aos ouvidos como sons vagos, que se não reproduziam no
+machinismo regulador chamado intelligencia e outros nomes, segundo a
+face por onde é visto, porque sons diversos o impressionavam. As fallas
+de Irene, as inflexões, os mais leves gestos preoccupavam-no: de uns e
+outros tirava esperanças agora, logo motivos de amofinação; traduzia
+agora uma phrase, das poucas obtidas de Irene, por um modo que o coração
+trasbordava de alegria, e logo parecia-lhe que o timbre de voz, um nada
+sonhado lhe dava bem diverso valor; assignalava aquelle dia como o mais
+feliz da vida, e recordando-se do desfecho do colloquio, em seguida;
+entristecia-se e amaldiçoava o tio, que o fizera descer do galho da
+arvore e dos braços da felicidade. O puxão de orelhas, sobretudo,
+doia-lhe, quando o recordava, mais do que lhe doera em Miragaya,
+julgando-se aos olhos da sua namorada deshonrado... mais que deshonrado,
+ridiculo. Este combate entre o desejo e o receio, durou, trazendo a
+insomnia, até altas horas da noite; mas, a final, venceu o desejo, e a
+alegria espelhou-se-lhe no rosto. Fernando, nas azas da imaginação;
+voava do passado ao futuro, e deste áquelle, amontoando as pedras do seu
+castello de felicidade. Deitando-se e apagando a luz sorria a todos os
+sonhos creados; sentia como nova vida a inflar-se no peito, e parecia
+querer affogar-se em ar, tanto era o que respirava de momentos a
+momentos. Junto com a imagem da linda filha de João Ramalho toda a
+natureza era risonha naquella miragem: as arvores reproduziam-se mais
+verdes, mais cheias de perfumes e mais bellas as flores; as aves nos
+cantos diziam todas--alegria; o céu transparente deixava adivinhar além
+do manto azul uma segunda vida toda amor. O mancebo vira, bem o po­dem
+acreditar, bastantes vezes o céu, as arvores e as flores, mas nunca se
+lhe tinham affigurado assim: como á estatua de Pygmalião, faltava-lhe o
+fogo no peito. A lavareda ateára-se naquelle dia, posto que incubasse
+havia muito.
+
+Fernando Vasques amava Irene desde que a vira, e vira-a nessa edade em
+que se sente um vacuo no coração; a si mesmo confessára já esse amor;
+mas definido, claro, só então rebentára: o vácuo enchera-­se, e a
+trasbordar, e para o encher talvez o amaldiçoado puxão de orelhas, a
+primeira grande contrariedade, entrasse por muito: «talvez» dizemos, e
+podiamos dizer «certamente.» O amor vive de contrariedades, de luctas,
+diz um phisiologista; e como um malicioso accrescentou que por isso só
+elle nas mulheres se creava, saibam, acreditem as leitoras que todo o
+homem tem no coração o seu tanto ou quanto de mulher, na mocidade
+sobretudo, e por isso não perde. As mulheres lucram menos com o que
+recebem do homem em geral: não as compensamos. Como diziamos, porém,
+deixando reflexões, a correcção de Gonçalo Domingues, e ainda, se
+quizerem, as poucas palavras trocadas entre os dous namorados, tinham
+ateado a lavareda no peito do mancebo, e um dos effeitos della fôra, de
+fazer acordar homem quasi quem se deitára creança.
+
+Fernando, no dia seguinte, não era o mesmo rapaz; o tio notou aquella
+differença e attribuio-a ao jejum da vespera, com a mesma prespicacia
+com que attribuira a causa delle á sua predica; e para contentar o
+rapaz, levou-o de manhã, depois de tractar dos seus negocios e da
+politica do dia, a visitar frei Gumeado, que o costumava regalar, apesar
+da sua deserção, com gulodices, em que não tocou dessa vez, e de tarde,
+a passeio até aos Carvalhos do monte, que assim se chamava o local onde
+o cabeçudo parodiador do marquez de Pombal no Porto, o corregedor
+Almada, edificou um theatro. O effeito destas amabilidades é facil de
+adivinhar. O namorado de Irene, que, voltando com a luz da madrugada á
+lucta de esperanças e receios, anceava por occasião de ir buscar um
+desengano nos olhos da donzella, preso assim todo o dia, revoltou-se
+interiormente contra a tutella do tio e desappontou-o com desabrimentos.
+O velho pasmou, benzeu-se, e da compaixão, do arrependimento da aspereza
+da vespera cahiu com um mau humor verdadeiro, tomando aquelle
+procedimen­to por ingratidão, protestou que a severidade, que até ahi
+lhe ficava nos lábios, ia ser posta em acção, e como assim se revoltára
+pelo leve castigo de uma travessura, elle trataria em primeiro logar de
+as impedir, não lhe deixando uma hora para folias, nem arredar pé da
+loja de pellames; em segundo, se se furtasse á sua vigilancia, de passar
+além do puxão de orelhas, dando causa verdadeira a amuos.
+
+No outro dia, um domingo, não se esqueceu do seu protesto o velho
+forçureiro, e o desespero do sobrinho augmentou, tanto quanto augmentava
+o receio de perder o amor da linda moça; que, se até ao dia em que
+conseguira trocar algumas palavras com Irene, muitos se passaram em que
+não descera a Miragaya, sem que tanto se amofinasse, aquella meia
+declaração e o desfecho mudára as circumstancias: daquellas em que se
+encontrava bem podem fazer ideia as leitoras e os leitores, aos quaes a
+memoria ainda conserva vivas as paginas da mo­cidade.
+
+Depois de jantar, porém--­refeição que se tomava nessas epochas, mesmo
+entre aristocratas, desde as onze ao meio dia, exactamente á hora em que
+hoje almoça muita gente--quando Gonçalo Domingues executava, dormindo a
+sesta, uma musica que se assemelhava a tempestade em chaminé na
+combinação de assobios e notas de contrabasso, appareceu Luiz Geraldes,
+o mais respeitavel individuo da burguezia, a procural-o para irem a S.
+Domingos, onde se devia tractar do meio de corresponder á confiança que
+o mestre de Aviz depositára nos bons cidadãos da terra, assumpto em que
+o alvitre do forçureiro era valioso, por se poder traduzir na linguagem
+sonora das boas dobras de el-rei D. Pedro; appareceu Luiz Geraldes e com
+elle a occasião que desde madrugada esperava e provocára á sombra de
+todos os pretextos. Mestre Gonçalo, pois, a sahir, e Fernando a procurar
+na arca o seu melhor gibão e o barrete, a alindar-se, e a bater com a
+porta da rua na cara da velha creada, que lhe recordava as ordens dadas
+pelo tio, avivadas segundos antes, e a trovoada que sobre elle e sobre
+ella descarregaria se ou o encontrasse na rua, ou o não achasse em casa,
+regressando.
+
+O namorado moço deitou a correr; mas, como em certo apologo, a pressa
+foi causa de vagares. Tal era o estado daquella cabeça que tomou o
+caminho seguido por seu tio e o grande amigo do Mestre, e ao cabo da rua
+da Bainharia esbarrava com elles se um encontrão de um homem d'armas o
+não obrigasse a uma pausa, e na pausa a um espadeiro, que se sentava em
+um desses balcões ou mostradores que fechavam uma das portas das
+estreitas e escuras lojas, conservando nas ruas mais estreitas e não
+menos escuras os freguezes, não ouvisse dizer para um visinho que
+deitava a cabeça por uma adufa:
+
+--Lá vae em cata de mestre Gonçalo, que dobrou agora mesmo para o
+terreiro, o sobrinho... o filho de Vasco, que Deus haja.
+
+Fernando, quiz retroceder; porém, como o bom do espadeiro lhe gritasse
+que perto ia Gonçalo Domingues, se o procurava, não teve remedio senão
+responder que ia a recado para as Aldas, e enfiar pelo arco de
+Sant'Anna, tomar caminho pelo lado da judearia e descer aos Banhos, onde
+lhe tolheu o passo o personagem que no capitulo antecedente vimos no
+castello de Gaya, surdir por entre o reposteiro.
+
+--Vindes de S. Domingos? interrogou elle, pondo-se diante do mancebo.
+
+--Oh! és tu João Bispo! exclamou Fernando, depois de examinar o rosto do
+individuo, assombrado por um farto capuz. Ha muitos dias que te não
+vejo.
+
+--É verdade, redarguiu o recem-chegado, dando pelo nome, que ouvimos já
+da bocca do pae dos velhacos. É verdade, repetiu; e á palavra ajuntou um
+profundo suspiro.
+
+--Que tens, tu? Estás tão triste como quando nos tinham no convento.
+
+--D'onde nunca devêra ter sahido! tornou João, soltando outro suspiro.
+
+--Bem mudado estás, meu folião, ou é isso momice nova?
+
+--Antes fôra, Fernando! antes fôra! mas finaram-se as alegrias.
+
+--Mas, ao que parece, a vida não te vae peor. Gibão novo de barregana...
+boa adaga! disse o mancebo, medindo-o de alto a baixo. ­
+
+--Vesti isto; mas embrulhade em almafega respirava melhor: o saio e as
+calças riam-se por todas as costuras, mas eu tambem ria, e agora bem
+vedes....
+
+--Vejo que estás sizudo como eremitão, ou mestre em leis, é verdade...
+Mas onde assim te pozeram? d'onde vens?
+
+--Do castello.
+
+--Do castello? Tomaste lá moradia e serviço?
+
+--Ou cousa parecida... que não se pode assim dizer de praça...
+
+--Segredo! Ora vejam João Bispo feito escrivão da puridade do alcaide!
+exclamou o mancebo, sorrindo e dando alguns passos para seguir seu
+caminho.
+
+João segurou-o por um dos braços, e encolhendo os hombros respondeu á
+zombaria:
+
+--Mofai, que a vez a todos chega. Algum dia haveis de querer bem a
+alguem....
+
+--E por isso te amofinas, quando não tens quem te empeça de a vêr a todo
+o momento! redarguiu Fernando, que se não recordou naquelle instante de
+outro contratempo em amores, senão do que com elle se dava.
+
+--Vêl-a!... vêl-a! exclamou, tornando a suspirar o vadio. Oh! minha
+pobre Garifa!
+
+--Garifa, repetiu Fernando; Garifa... ora espera... Garifa não era
+aquella rapariga moura que vinha ao terreiro vender fructa?
+
+João Bispo fez com a cabeça um aceno affirmativo.
+
+--­­Uma rapariga sempre alegre, que na procissão de _Corpus_ tangia
+pandeiro e dançava com tanta desenvoltura, trazendo o vestido cheio de
+cascaveis?
+
+--­Sim.
+
+--Que tão bem cantava umas cantigas castelhanas?
+
+--Sim.
+
+--Pois bonita era... pena que fosse moura! E tu, João...
+
+--Eu quero-lhe, quero-lhe como se em noite de S. João me fizessem
+feitiço...
+
+--E feitiço foi de certo; porque uma moura...
+
+--Não sei se é grande peccado o querer-lhe bem; mas cá para mim tenho
+que não. Ella é moura, é; mas...
+
+--É por isso que tão magoado te vejo? Querial-a christã, e casavas.
+
+--Não é, não; é porque m'a roubaram!
+
+--Roubaram-ta?
+
+--Roubaram. Ha uma semana, no sabbado, estava eu na encosta do Olival,
+ao pé do regato, á espera della, e eis que vejo o pae, o velho Humeia,
+vir direito a mim. O pobre homem chorava como uma creança; as lagrimas
+eram como punhos pela cara abaixo e os soluços pareciam affogál-o;
+cortava o coração! disse João Bispo, limpando com a manga do gibão os
+olhos, sensibilisado ou pela recordação da scena, que narrava, ou pela
+desapparição de Garifa. O velho proseguiu, quando pôde começar a fallar,
+a pedir-me a filha, dizendo que lh'a entregasse; que bem tinha visto
+andar-lhe no seguimento, e na vespera a encontrára ainda alli mesmo a
+fallar commigo. Olha, Fernando, fiquei como quando me vieram dizer que
+meu pae--Deus o tenha--era finado, e jurei áquelle pobre homem que não
+fôra eu que lhe tirára a filha... e commigo pela hostia consagrada jurei
+tambem descobrir-lhe a rapariga. O velho acreditou-me, e disse-me
+cousas, que não poderei repetir; que não sei bem o que foram; mas que
+pelo modo de as dizer me deram um nó na garganta: parecia que tinha
+engolido uma maçã inteira. Procurei Garifa. Dous homens foram vistos a
+passar o rio nessa noite com uma mulher, me disse um petintal, e corri
+tudo em Gaya; alistei-me no troço de Pero Bedoido, para ter occasião de
+esquadrinhar todos os cantos do castello; mas vêl-a... vêl-a... ainda a
+não vi! Desconfio, porém, que lá esteja, e se lá estiver, ai do
+rausador! Olhai, elles deram-me esta adaga, e eu trago-a bem afiada, os
+ouvidos attentos e os olhos abertos!
+
+João Bispo, ao soltar estas ultimas palavras, baixou a voz e um veo
+sinistro lhe assombrou a fronte; por alguns instantes permaneceu calado,
+e proseguiu depois, vendo que o sobrinho de Gonçalo Domingues parecia
+atterrado com semelhante confidencia:
+
+--A alegria não póde durar sempre. Desde que, morto meu pae, que por
+força me queria vêr tonsurado, fiz uma reverencia ao guardião, dei um
+cascudo no porteiro e me fiz velhaco, visto que no convento não apprendi
+officio e de sujeição estava farto, bem vestido, mal vestido, mais
+trapo, menos trapo, barriga mais cheia ou menos, tinha quasi todo o
+santo dia os dentes á amostra; agora veio um revez...
+
+--Não és só tu, João, que os tens; eu...
+
+--Que lhe fizeram, atalhou o vadio; diga, que eu dou uma ensinadella,
+e...
+
+--É negocio em que nada podes. Não sabes, João, disse o mancebo, pondo a
+mão no hombro do seu antigo companheiro, e chegando-lhe a bocca perto do
+ouvido, como em segredo; não sabes... eu tambem quero a uma rapariga
+como ás meninas dos meus olhos. Oh! é mais bonita que a tua!
+
+--É, disse João Bispo, com um meio sorriso.
+
+--Muito mais; porém, meu tio, tenho eu para mim...
+
+--Não quer? ­
+
+--Parece-me que não.
+
+--É pobre?
+
+--Pobre!... repetiu Fernando Vasques, encolhendo os hombros.
+
+--Mestre Gonçalo Domingues é rico, e...
+
+O namorado de Irene, ouvindo o nome do tio, lançou em torno de si os
+olhos, como se receiasse que alli apparecesse; lembrou-se que passava o
+tempo e elle podia, de volta a casa, não o encontrar, se fosse grande a
+demora; recordou a causa do seu passeio, e fazendo um gesto de
+despedida, deu alguns passos em direcção á porta da cidade.
+
+--Se fôr necessario o antigo companheiro das folias, não o poupeis. Os
+meus trapos nunca vos fizeram voltar o rosto, quando nos encontramos, e
+hei de mostrar que não tendes feito mal, Fernando, disse o ex-noviço,
+estendendo ao mancebo um pulso que não era fraco. Ah! exclamou em
+seguida; não vindes do lado de S. Domingos?
+
+­--Não.
+
+--Nem pelo caminho vistes o alcaide de Gaya?
+
+--Não.
+
+--E que tens a vêr com o senhor alcaide, meu velhaco? disse uma voz, que
+logo João Bispo reconheceu por ser de Tello Rabaldo.
+
+--Ah! sois vós! murmurou o interpellado, visivelmente contrariado por
+aquella apparição, em quanto Fernando deitava a correr pela rua abaixo.
+
+--Vosso servo, tornou o pae dos velhacos, tirando com ar zombeteiro o
+seu barrete e segurando pelo capuz a João Bispo. O fidalgo de certo que
+só com fidalgos tem tracto e por elles procura; porém como está em
+behetria, para não haver desaguisado, pondo-o fóra, dou-lhe companhia
+mais chã; mas que lhe fará bom agasalho. Vamos! exclamou mudando de tom;
+para as tercenas já!
+
+--Senhor Tello, porém...
+
+--Vais seccar a goella sem proveito.
+
+--Senhor Tello, quizera fallar a Ruy Pereira.
+
+--Agora é com Ruy Pereira! Grandes são os negocios! Bravo! continuou o
+pae dos velhacos, medindo João Bispo de cima abaixo, como minutos antes
+fizera o sobrinho de Gonçalo Domingues, e como elle admirando a mudança
+que na roupa havia; bravo! Parece que vamos ter contas graves a ajustar!
+Cortaste bolsa, ou arrombaste a porta a mercador ou algibebe para vires
+assim garrido?
+
+--Sou bésteiro do rei.
+
+--Bésteiro do rei desde quando, velhaco? desde que fugiste com a filha
+do velho Humeia?
+
+--Está excommungado! crédo! gritou uma velha do pequeno ajuntamento que
+se fizera á volta dos dous interlocutores. Ter contractos com aquella
+condemnada moura, aquella...!
+
+A mulher disse nome que lhe valeu de João Bispo um murro, que levava a
+força proporcional á raiva que lhe causára a abelhuda comadre,
+insultando Garifa.
+
+--Olhem o maldito! gritaram duas companheiras da aggredida. Onde está a
+justiça? Que faz o senhor bispo que o não manda açoutar bem açoutado? E
+attreve-se em rosto do senhor Tello...
+
+--Calem a bocca, serpentes! berrou o pae dos velhacos, fazendo um gesto
+e meneando o seu bastão.
+
+--Serpentes? grunhiu a velha, segurando com a mão os dentes que o socco
+pozera em vesperas de despedida.
+
+--Serpentes? pipitou uma das novas, esganiçando-se.
+
+--Serpentes? resmungou a outra, ferrando os pulsos nas ancas.
+
+--Serpentes! gritaram, grunhiram e pipitaram entre gargalhadas e em
+todos os tons os garotos que já embaraçavam o transito.
+
+Tello Rabaldo viu a sua dignidade compromettida, o que não poucas vezes
+acontecia, e tractou de a salvar pelos meios usados ainda hoje em
+embaraços--pela força; e como á mão não tivesse se não a sua, foi dessa
+que se serviu. Segurando sempre o namorado da moura pela extremidade do
+capirote, fez rodizo com o seu bastão; tomando-o pela parte superior, e
+uma escala salteada de «ais» e «uis» sahiu dentre a roda de curiosos e
+curiosas, que augmentava.
+
+--O senhor alcaide! Ahi vem Ayres Gonçalves! gritaram duas vozes quasi
+ao mesmo tempo.
+
+--Tolhido sejas tu, maldito! resmungou João Bispo, lançado em apuros com
+semelhante apparição.
+
+--Senhor Pero! senhor Pero Bedoido! berrou o pae dos velhacos, para o
+capitão de bésteiros, que, seguindo o alcaide de Gaya, se dispunha a
+embarcar para o castello, e desepparecia por um dos postigos.
+
+--Já nada faço, disse comsigo o ex-noviço deitando o olho a vêr se o
+capitão accudia ao chamamento. A pelle corre-me agora grande risco, se
+desconfiam de mim. Com a bocca no pixel não os apanho já!
+
+--Olé, senhor Pero! sua mercê não me diz se este velhaco tomou serviço?
+proseguiu Tello, querendo arrastar comsigo João Bispo, mais talvez para
+á sombra do capitão dos bésteiros se fazer acatar, do que pela
+curiosidade de saber se o namorado de Garifa lhe mentira, ao que estava
+bastante affeito, para regular a sua justiça pelo humor em que o
+apanhavam e não por depoimentos e confissões. Em materia de confissões
+dava fé ás feitas em potro, ou de borzeguins, quando estava de boa
+feição, e felizmente não era isto raro.
+
+­­--Grande velhaco! continuou, dirigindo a palavra ao seu prisioneiro;
+ainda ha pouco não tinhas que dizer a todos os fidalgos? Mais depressa
+se pilha um mentiroso do que um côxo.
+
+Pero Bedoido, ouvindo a voz do pae dos velhacos, parára junto do
+postigo, que dava sobre a margem do rio, e retorcendo o bigode piscava
+os olhos para concentrar os raios visuaes afim de melhor reconhecer quem
+o chamava. Ayres de Figueiredo parára igualmente.
+
+Quem não deve não teme. João Bispo sentia os seus arripios pelos lombos,
+porque um pensamento, que o leitor experto, e que de certo se recorda do
+dialogo apanhado atraz do reposteiro, adivinhará, o punha, na
+consciencia, em hostilidade com o nobre alcaide, e se na presença delle
+Tello Rabaldo de novo se referisse á entrevista que pretendia ter com o
+tio de Nuno Alvares, a vida corria-lhe grave risco. João não tinha,
+porém, cursado em vão os estudos em S. Francisco e a eschola pratica de
+velhacarias dos terreiros, praças e bitesgas da cidade da Virgem, para
+não achar um expediente bom ou mau com que se sahisse de apuros,
+momentaneamente que fosse. Tello segurava-o, tendo-o quasi esganado pela
+extremidade do capirote, e o cabeção deste fechava no peito e garganta
+por meio de quatro grossos botões. Desabotoado estava livre.
+
+--Senhor Tello, senhor D. Tello?! murmurou o rapaz, levando as mãos já
+aos botões, e esgotando no submisso, no plangente da voz, e naquelle
+«dom», o ultimo recurso oratorio.
+
+--Ah! perro, velhaco! Eu te...
+
+O pae dos velhacos não concluiu a phrase: um cascudo que preparava como
+paga da nobilitação dada ao seu nome, deu-o no ar, e com o costado no
+mesmo momento apalpou o chão, depois de abalroar com as canellas de
+alguns curiosos.
+
+Um côro formado de um unisono de gargalhadas e de gritos ensurdeceu os
+visinhos que enchiam as janellas e atulhavam as portas. As gargalhadas
+provocara-as o desastre de Tello; os gritos soltaram-nos os que abriam
+caminho a João Bispo. O amante de Garifa deixando o capirote na mão do
+pae dos velhacos, que perdera o equilibrio, mettera mãos á adaga e
+corria na direcção da Ferraria.
+
+Ao passar em frente do postigo um acontiado da behetria tomou um virote
+para lhe embargar o passo.
+
+Ayres Gonçalves, ao mesmo tempo que Pero Bedoido, reconhecendo no
+fugitivo um dos seus homens, lhe sustava o arremesso, gritou em voz bem
+alta para chegar aos ouvidos de João:
+
+--Perro, villão, se tocas n'um dos meus homens!...
+
+E a mão do fidalgo pousou como complemento de phrase no punho do
+estoque.
+
+O acontiado fez uma careta de despeito, baixou o virote, e quando o
+fidalgo voltou costas, deu com elle com uma força tal d'encontro á
+parede, que o fez voar em hastilhas, resmungando:
+
+--Perros e villões... perros e villões! A nossa vez ha de chegar,
+traidores, scismaticos!
+
+
+
+
+V.
+
+Irene.
+
+ Ma son, mentre ella piange, i suoi lamenti
+ Rotti da un chiaro suon oh'a lei ne viene...
+
+ TASSO. Ger. lib. cant. VII.
+
+
+E a linda Irene, a filha de João Ramalho?
+
+Irene, das primeiras fallas trocadas com Fernando, colheu um resultado
+quasi igual ao que este obtivera. A impressão primeira foi a da alegria.
+Deslembrada da apparição de mestre Gonçalo, quando foi ao encontro da
+cuvilheira, que a chamára, a physionomia illuminára-se, reproduzindo
+toda a felicidade que lá ia por dentro naquelle coração. Á pergunta que
+lhe fizeram, mas não ouviu, respondeu com um abraço na velha, que, mal
+affeita, pela sua rabuje, a taes carinhos, abriu grandes olhos, e o
+espanto desta subiu ainda, levando-a a benzer-se, quando viu que, sem
+lhe prestar attenção, a moça começou a entoar uma copla de amores,
+desses cavalheirescos amores da epocha. Aquella alma de virgem saudava o
+enfloramento da nobre paixão que no seio lhe germinára, e a velha, como
+Gonçalo Domingues a respeito de Fernando, nem se quer pensou que nessa
+exaltação entrasse por alguma cousa o mancebo, de quem já havia notado
+os passeios em frente da casa--o que a levára a fazer-lhe carrancas de
+sobrecenho capazes de affugentar qualquer outro que não fosse um
+namorado.
+
+--A menina Irene namorar! a menina que depois da morte da nossa ama
+tenho creado com todos os cuidados?! pensava ella com os seus botões,
+quando lhe vinham desconfianças, ou as visinhas, pela sésta, no cavaco
+quotidiano que tinha depois de arranjados prateis, agomias, sartã,
+pucaros e mais aprestes de cosinha, notavam o volver d'olhos de um ou
+outro alindado da terra.
+
+A tia Genoveva tinha de si para si que o coração de Irene se abriria só
+quando ella, ou o senhor João Ramalho muito bem quizessem.
+
+As tias Genovevas ainda hoje não são raras.
+
+A linda moça, quando a deixou a cuvilheira, insensivelmente começou a
+reflectir nas palavras de Fernando, e pouco a pouco no semblante e no
+coração começou a tristeza a vencer. A pobre não sabia que o amor se não
+traduz bem em palavras, e esmorecera pensando que podia não ser amada,
+ao passo que bem sentia definir-se-lhe no seio a paixão; e quando, noite
+cabida, a velha trouxe para o quarto de trabalho um velador do qual
+pendia um graúdo candil, não respondeu ás «boas noites» dadas, possuida
+de sentimento bem diverso do que horas antes a distrahira. Ainda mais: a
+tia Genoveva, ao espiar a roca e terminar a ultima ave-maria da coroa
+que todas as noites rezava á Senhora da Silva, para a ter por sua
+intercessora; a tia Genoveva notou uma lagrima a balouçar-se nas cilias
+da linda joven, como aljofre matutino nos estames de uma flor.
+
+--Porque chora, menina? perguntou a velha criada tomando-lhe o rosto
+entre as mãos, para melhor se certificar de que não era illusão sua
+aquelle pranto.
+
+--Chorar... eu? murmurou Irene, limpando os olhos.
+
+--Sim, a menina. Então não veem o espanto que faz?
+
+--É que eu não choro... Porque havia de chorar?
+
+­--Porque? Ora sei eu o porque?
+
+--Nem eu...
+
+--Credo! Anjo bento da minha guarda! Feitiço por certo lhe fizeram! De
+tarde a rir e a cantar como uma louquinha, e a fazer-me momices
+carendeiras; agora a choramingar sem que nem para que! É quebranto,
+menina... é feitiçaria; e bem fará em pôr esta noite debaixo da
+almadraquexa um ramo de arruda.
+
+A velha atinava: que maior feitiçaria que a do amor não póde haver. Só
+elle tem o privilegio de dar a uma palavra ecco que, por vezes, dura até
+com elle se casar já bem fraco o das ultimas preces: de perpetuar uma
+imagem ante os olhos até que os cerre o frio osculo da morte.
+
+Pranto e risos, succedendo-se rápidamente sem explicação para quem os
+vê, sem explicação mesmo para quem os sente humedecer as faces, ou
+descerrar os lábios, são em geral o resultado vulgar do toque da vara do
+grande feiticeiro: emquanto o feitiço conserva toda a força, o pranto é
+como os chuveiros de Maio, que veem como para fazer ressaltar o sol que
+lhes succede, ou como os orvalhos de Junho, que refrigeram as flores;
+quando o feiticeiro se ausenta, o riso é como o luar em noites de
+Fevereiro, quando tudo é silencio: contrista como elle,· traz
+melancholia. As lagrimas da linda filha de João Ramalho eram chuveiros
+de Maio. Correndo á vontade sobre o travesseiro, em que não pozera a
+arruda, não lhe imprimiam nas faces a aridez; regavam, permitta-se mais
+esta imagem entre tantas, o amor que, como no sobrinho de Gonçalo
+Domingues, repetimos, se definira naquella tarde.
+
+O amor na juventude, no sexo que chamamos fragil, porque nós, que nos
+dobramos a todo o momento a seus pés, lhe esmigalhamos o coração em um
+circulo de ferro chamado positivismo, realidade e conveniencia, quasi
+sempre nasce entre lagrimas, lagrimas das que chorava Irene quando
+repetia baixinho, comsigo, o nome de Fernando; lagrimas que rebentam
+espaçadas, se demoram nas palpebras, e descem lentas pelo rosto.
+
+No outro dia muitas vezes correu a moça namorada á janella da praia,
+muitas á que dava para o lado do monte, e impacientou-se e
+entristeceu-se quando viu cahir a tarde sem apparecer o sobrinho do
+forçureiro; no domingo, durante a missa do dia, na velha igreja de S.
+Pedro, fez cochichar umas poucas de comadres, que lhe ficavam na
+rectaguarda, tantas foram as vezes que voltou, durante o officio, a
+cabeça para o lado da porta, e ainda mais se impacientou e entristeceu
+quando, feitas ante todas as imagens as estações que eram da devoção da
+senhora Genoveva, regressou a casa sem vêr uma sombra rastejando ao lado
+della (que olhar face a face, de perto, para Fernando, nunca a gentil
+menina olhara) sem ouvir certas passadas, que distinguia de todas as
+outras e lhe causavam uma impressão nervosa agradavel.
+
+Neste descontentamento, sentada na varanda, que tentamos já descrever,
+prestava attenção a todos os ruidos, quando a velha criada com quem João
+Ramalho havia conferenciado depois de jantar, arrastando um tamborete de
+pau e umas contas com que se entretinha todas as vezes que não
+trabalhava ou dava á lingua, lhe veio fazer companhia. Genoveva
+engorolou um _pater_ e tossiu; engorolou outro _pater_ e tossiu outra
+vez; terceiro _pater_ a meio e mais prolongada foi a tosse, e, ao
+findar, a esta juntou um arrastar de tamborete e um suspiro. Era
+evidente que rebentava por fallar; porém a sua joven ama estava bastante
+distrahida para notar todos aquelles preparativos oratorios. A velha
+ainda se resignou a fazer passar mais algumas contas, a mudar o
+tamborete da direita para a esquerda e a passar na tosse do _piano_ ao
+_forte_, do _moderato_ ao _vivace_ e até á _furia_; mas vendo que era
+trabalho perdido, pousou o rosario, puchou a touca, crusou os braços
+sobre a barriga e exclamou:
+
+--A menina que tem?
+
+--Nada, respondeu Irene, olhando pela abertura da zelozia para o céu,
+que mostrava um azul soberbo.
+
+--Nada! Então eu estou cega; ha dias que não sei o que tem... anda
+triste!...
+
+--Triste? atalhou Irene, com um desses sorrisos, que se denunciam como
+contrafeitos. Ainda esta manhã me disse que andava com a cabeça no ar, e
+achou que ria como louca... não sei quando...
+
+--Sim, sim: veja se me engana com esses risinhos sêccos, menina. Por
+mais que faça não me faz acreditar que não está magoada. Eu desconfio
+que...
+
+­--De que? interrogou Irene, fazendo-se vermelha, julgando ser do
+sentimento dominante no seu coração que lhe iam fallar.
+
+--Nada, nada. O senhor seu pae não lhe fallou... não lhe deu a
+entender...
+
+--Meu pae, tornou a joven sobresaltada, não me disse cousa alguma...
+
+--É que... pensei...
+
+--O que, Genoveva? Que tinha meu pae a dizer-me?
+
+--Nada, nada; respondeu a velha, recomeçando de novo o rozario.
+
+--Não, alguma cousa era! Diga, diga, Genoveva; meu pae está de mal
+commigo?
+
+--De mal! elle que não vê outra cousa, que a traz nas palminhas das
+mãos, apesar daquelle modo assim de poucas palavras?! Se se amofina é...
+
+-­-Acabe! supplicou a joven.
+
+--Triste já está a menina; para que a entristecer mais? disse a criada
+mastigando. ­ --Não me quer entristecer mais? Pois que ha? exclamou a
+filha de João Ramalho, erguendo-se com a anciedade pintada no rosto.
+
+--É... nada, nada, redarguiu a velha. E baixo accrescentou, tornando a
+carregar a roca:--Cala-te, bocca. Ora, não ia eu já dizer tudo?
+
+O áparte da cuvilheira, por uma mania que tinha de sempre dar á lingua
+para que a ouvissem, pareceu­-se com todos os ápartes do theatro, e mais
+anciosa ficou Irene.
+
+--Jesus, Genoveva! Succedeu alguma cousa?
+
+--Nada: é que...
+
+--Acabe por uma vez.
+
+--Como tem de ser... porém, olhe, triste já a menina está, e quanto mais
+tarde...
+
+--Está a fazer-me mal, minha boa Genoveva! exclamou Irene, juntando e
+erguendo as mãos em acção de supplica.
+
+--Ora vejam! mal é que eu lhe não queria fazer; mas visto que teima...
+sempre lhe digo: seu pae embarca por estes dias.
+
+--Embarca... disse a joven tornando a sentar-se. Julguei que fosse outra
+cousa. Não estou já affeita a vêr partir meu pae, todos os annos, uma,
+duas e tres vezes para essas terras de Christo? Se podésse fazer com que
+não andasse sobre aguas do mar, ex­posto; porém...
+
+-­-Ao mar, atalhou Genoveva, já o senhor João Ramalho está affeito.
+Parece que tem todos os santos e santas por elle... e merece-o, que não
+ha tempestade­ que mal lhe faça; e mais dizem que são bem más as da
+Inglaterra e Flandres! Mas não é agora só o mar...
+
+--Então que mais é, Genoveva?
+
+--É... que... que volta a Lisboa... e...
+
+--Jesus! agora... que anda a guerra por lá!...
+
+--Deus ha de querer que nenhum mal lhe venha, e eu hei-de recommendal-o
+muito á Senhora da Silva e á Senhora do Amparo, as duas santas de mais
+valimento que ha no céo... de maiores milagres pelo menos... ao Senhor
+S. Pedro, advogado da gente do mar, e ás almas milagrosas! redarguiu a
+senhora Genoveva, fazendo uma especie de mesura a cada nome dos beatos
+patronos que proferia.
+
+--Bem me dizia o coração que destas náus e galés chegadas me viria mal,
+disse Irene recordando-se naquelle instante das palavras de Fernando.
+
+--Mal... mal? Tenha fé em Deus, que é grande peccado descoroçoar assim.
+O senhor João Ramalho, seu pae, se anda cuidadoso é por si, menina
+Irene: como está já uma moça... eu cá me entendo... quer deixal-­a bem
+amparada, em logar seguro; que nestes tempos revoltos, e nos que o não
+são, todo o cuidado é pouco. Como não vae lobo a redil nem raposa a
+gallinheiro senão quando acha a porta mal cerrada e não ha mastins para
+açular, queria deixal-a em abrigo seguro, e lembrou-se de um convento.
+Já dei recado para uma prima, que tenho, sergente em Entre-Rios, a vêr
+como poderei ir fazer companhia á menina...
+
+--Então, Genoveva, vamos para tão longe! exclamou a linda moça com voz
+magoada.
+
+--Ainda não é de certo. É precisa licença do senhor D. João Affonso, e
+não sei que outras requestas... e como não é para já o caso... por estes
+dias...
+
+--Genoveva! Genoveva! gritou do andar terreo o senhor João Ramalho,
+fazendo estacar a falladora cuvilheira, que incetando um Padre-nosso em
+um tom de voz que, sem offensa da boa da beata, se podia comparar ao
+rosnar de um cão, desceu as escadas.
+
+--Virgem santa, valei-me! murmurou a joven fechando uma na outra as
+mãos, brancas e delicadas, e deixando sobre o seio pender o rosto, que
+não desfeiavam os assomos de tristeza.
+
+Irene assim permaneceu longo tempo, e quando ergueu os olhos orlava-lhe
+as palpebras uma côr mais rosada que de costume, e as lagrimas
+borbulhavam mais intensas do que as trazidas pela desconfiança de que
+Fernando Vasques não correspondesse ao affecto por ella consagrado. Eram
+mais intensas, porque junto com as arrancadas pelo amor filial--pois
+bemqueria a joven a seu pae, com um extremo inexplicavel, attenta a
+rudesa apparente do piloto, se é que uma força occulta a não fazia
+corresponder ao sentimento por elle votado ao unico ente que na terra
+lhe restava, á imagem de uma esposa adorada com o fogo que empregam
+essas almas reconcentradas, os homens que jogam a vida sobre o mais
+terrivel dos elementos, e passam dias e noites seguidas a soletrar no
+livro da natureza a pagina do infinito, em circulo fachado por céo e
+mar;--junto com as saudades e receios por seu pae, se ligavam penas
+avultadas pela sua imaginação, suppondo-­se já separada, longe de
+Fernando, clausurada para a vida talvez; que no amor tudo é coado por um
+prisma que engrandece e multiplica os objectos.
+
+Ás lagrimas do travesso moço succedera a resolução: Fernando fizera-se
+homem; ás lagrimas de Irene succedia o anniquilamento: póde-se dizer
+tambem que se fizera mulher a pobre menina porque: a coroa do seu sexo é
+formada por essas perolas nascidas no coração, perolas que resgatam a
+propria culpa e a alheia. Para o resgate da humanidade Deus, tornado
+homem, deu o seu sangue; para completar essa regeneração, para abrir ás
+mulheres as portas da vida, inflar-lhe no seio uma alma, verteu lagrimas
+uma virgem.
+
+Irene chorava pela segunda vez, depois que se apoderára do seu coração a
+imagem de Fernando, quando lhe veio ferir os ouvidos um som distante e
+confuso; confuso porque era grande o arruido que petintaes, espadeleiros
+e galeotes faziam na praia, sanctificando o dia do descanço com libações
+frequentes de verde e maduro, cidra e outras bebidas. Era o som de um
+toque de caça, assobiado por um valente folego. A moça estremeceu,
+quando se lhe afigurou reconhecel-o; estremeceu e a alegria repelliu
+naquella fronte as nuvens de tristeza com tanta ou mais rapidez de que
+nos leva a dar uma ideia dessa mudança. Ergueu-se e correu ao extremo da
+varanda, encostou á adufa o ouvido attento a linda namorada; mas
+calára-se a marcha, e os berros da chusma iam em um _rinforzando_
+prodigioso. Alguns minutos de anciedade assim passou, com o seio a
+arfar, os lábios meio-abertos, deixando vêr uma enfiada de dentes alvos
+como o fructo das camarinhas, com os olhos brilhantes, fixos, até que
+com novo sibilo rompeu um grito da joven, um grito de alegria, e
+deixando a varanda subiu a assomar a cabeça por aquella historiada
+janella das flores, onde com ella travamos conhecimento.
+
+A cabeça appareceu e desappareceu logo.
+
+Irene soltou outro grito, porque os seus olhos encontraram os de seu
+pae, irados, em vez de outros que de certo procurava carinhosos.
+
+Junto com o sibilo, com os gritos, com o bater das adufas da varanda e
+portadas da janella--junto, se póde dizer, tal foi a rapidez da
+successão--ouviu-se um grande fragor.
+
+A arvore do cercado oscillára e o muro da quelha fôra a terra.
+
+A filha de João Ramalho deixou-se cahir no estrado em que costumava
+costurar; o piloto soltou uma praga, e a cabeça da tia Genoveva, que da
+cosinha presenceára parte desta scena, appareceu de bocca aberta no
+quarto da donzella, persignando-se e abanando a cabeça como um manequim,
+pintando em toda esta gesticulação o seu pasmo, e terminando por entre
+dentes com esta phrase, que havia de ser, como já fôra, repetida
+milhares de vezes:
+
+--Ora fiem-se lá nas innocencias deste tempo! O mundo vai perdido!
+
+
+
+
+VI.
+
+Causa publica e cousas particulares.
+
+/#
+ A nenhu era ouvida rezão, nem escuza, que por sua parte dar
+ quizesse, mas como hum falava dizendo: que fohão he delles; não
+ havia cousa que lhe desse vida, nem justiça que o livrasse das suas
+ mãos: e isto era especialmente contra os melhores e mais honrados,
+ que havia nos logares, dos quaes muitos foram postos em grande
+ cajão de morte...
+
+ FERNÃO LOPES.--Chronic.
+#/
+
+
+Em quanto Irene soluçava, Tello Rabaldo vociferava, sacudindo a poeira
+do gibão, e João Bispo evitava na rêde de bêccos e escadas do bairro a
+sanha do bésteiro e de alguns mesteiraes, que o suppunham réo de crime
+grave, ou queriam nelle desacatar o alcaide, que viam, como a grande
+parte dos nobres, com maus olhos, no terreiro de S. Domingos havia
+grande ajuntamento de povo, e na portaria do convento e claustro da
+igreja se reuniam os homens bons da cidade, burguezes e cavalleiros; que
+a ordenação de D. Diniz era desattendida durante aquelles transtornos,
+como o tinha sido por vezes, e depois havia de ser.
+
+Ruy Pereira e a edilidade portuense combinavam os meios, já o sabemos
+por via de Luiz Giraldes, de corresponder ao appello do Mestre, e
+corriam as cousas ás mil maravilhas. Affonso Eannes Pateiro e Alvaro da
+Veiga, bastante compromettidos com a acclamação do novo governo,
+juntamente com o rico mercador que fôra despertar Gonçalo Domingues
+sopravam em pequenos conciliabulos o enthusiasmo de amigos e conhecidos,
+e não perdiam o tempo. Os periodos mais ou menos bombasticos, mais ou
+menos curtos, tinham, depois de um ou outro commento, como ponto, a
+deslocação de dous ou tres individuos, que se dirigiam a uma mesa
+cercada de tamboretes e cadeiras, onde dous homens vestidos de negro, um
+redondo, de nariz globuloso e vermelho, outro côr de pergaminho e de
+feições angulares, se viam ao par de alguns vereadores, afagando este
+com a rama da penna os lábios ressecidos, abanando-se aquelle com um
+caderno de papel. Um dos patriotas segredava tres palavras ou quatro ao
+ouvido de um dos alvazires; os burguezes diziam outras tantas; os homens
+negros traçavam algumas letras e algarismos, que liam em voz alta, e de
+tudo isto sahia, póde-se dizer, a Milheira, a Estrella e a Sangrenta, o
+levantamento do cerco e bloqueio de Lisboa, a dynastia de Aviz e--quem
+sabe?--a salvação e civilisação da Europa. Se julgam paradoxal a ultima
+parte, provem como sem os donativos daquelles bons homens se accudiria
+ao Mestre; se este não se veria obrigado a tornar real o fingido
+embarque para Inglaterra; se, simples João Pires, casaria com a exemplar
+filha de João de Ghaunt; se haveria quem formasse um viveiro de
+navegantes tão destemidos, arrojados, para devassar a costa d'Africa e
+penetrar na Asia pelo Oceano, como o infante D. Henrique; como sem o
+córte dado naquellas paragens ao poder ottomano, se lhe sustaria a
+carreira victoriosa dos seus estandartes, que chegaram a tremular junto
+dos muros de Vienna, na costa da Italia, na Hungria e na Bohemia, que
+pendiam bafejados pelas tépidas aragens de Aldjesireh, da Arabia, e
+açoutavam os ares impellidos pelos ventos gelados na Polonia, se
+espalhavam nas aguas do Mediterraneo, no mar-Negro, no golfo Persico e
+no Oceano, e acobertavam os recebedores de pareas até ao Dekan.
+
+Se algumas circumstancias concorreram tambem para este gigante resultado
+foram as narradas nos antecedentes capitulos, desde as dos namoros de
+Irene com Fernando e de Garifa com João Bispo, até á daquelle virote
+quebrado.
+
+Não cuidem que um escriptor consciencioso escreva uma linha só com o fim
+de encher papel; que invente um episodio por seu alto recreio: tudo aqui
+vem a pello desde o mais somenos facto ao de mais vulto, e os leitores
+phylosophos, que esquadrinham os fins moraes, procuram o succo de todo o
+livro e folheto, farejam uma ideia em cada letra impressa, acharão neste
+romance demonstrações de que grandes successos, que pasmam do mundo, são
+como os nevões: um floco de neve, que rola do cimo dos Alpes, ao chegar
+ás fraldas destroe casas e plantios; uns bigodes cortados em 1152, ainda
+no seculo em que viviam estes nossos heroes, destruia cidades, assim
+como as bagatellas acima apontadas salvavam este canto da terra de ser
+hoje em dia... um pachalik ou cousa peior.
+
+E João Bispo, Fernando Vasques, e até para muita gente João Ramalho,
+Affonso Eannes, Alvaro da Veiga, Domingos Pires das Eiras, Luiz Giraldes
+e outros com quem o leitor tomará ainda conhecimento, estavam no
+olvido?!
+
+Lamentemos esta má sina de ingratidão pelos grandes homens... que em
+vida não tiverem condados d'Ourem, nem terras do Alfeite; lamentemos, e
+vamos de novo para S. Domingos.
+
+Ao passo que os burguezes davam que fazer a Gonçalo Pires, escrivão de
+chancellaria e ao seu companheiro, na casa do capitulo, bocejavam os
+poucos cavalleiros que tinham adherido, como hoje se diz, ao
+pronunciamento do Porto, por vontade, ou circumstancias. Dissemos que
+bocejavam; pois movimento, acção em poucos se notava, a não ser um
+alguns dos recem-chegados de Lisboa, dos quaes o mestre soubera captar a
+benevolencia com aquella largueza de mãos, que o deixaria rei das
+estradas de Portugal, se não fossem depois as garnachas, de que já se
+queixavam então, e em alguns pobres infanções e simples cavalleiros. Ruy
+Pereira reunia em volta de si, os dous sobrinhos do rei de Castella, D.
+Pedro e Affonso Henriques de Transtamara, misser Manoel Pessanha, João
+Rodrigues Guaday, Ayres Pires de Camões, Affonso Furtado e os irmãos
+d'Alvalade, e em uma das extremidades da quadra segredavam, ou antes
+fallavam quasi por signaes o alcaide de Monsaraz, Affonso Darga, o
+irlandez Down-Patrick e o velho fidalgo de Riba-Tua. Do resto, faziam
+uns retinir pelo sobrado os acicates dos seus sapatos de ferro, que
+vinham em traje de guerra não poucos, outros descançavam nas grandes
+cadeiras de espaldar, que os reverendos para alli tinham feito conduzir.
+De tempos a tempos um pagem ou um leigo entravam com recado para o tio
+do condestavel, ou este fallava a alguns dos seus homens, que
+estanceavam á porta, e elles partiam ás carreiras para diversos pontos.
+
+Ruy Pereira tractava de aproveitar o tempo o melhor possivel, como bom
+cabo de guerra e bom politico, depois de ter conferenciado com os
+influentes da cidade, conferencia que déra em resultado decidir-se que
+se chamasse ao partido do defensor o conde Gonçalo, combinação que não
+era mais do que uma lisonja aos bons burguezes: pois, soprada pelo
+mensageiro de sua senhoria a Domingos Pires, e por este appresentada,
+fôra já decidida nos paços de S. Martinho. D. João resolvera comprar o
+conde com os bens pertencentes á irmã desthronada, bens que já tinham
+servido de engodo a outros. O escolhido para o ajuste do balsão do nobre
+senhor, de quem tinham sido já indagadas as ambições--que se iam
+encontrar com as de Nuno Alvares, felizmente bastante patriota para
+ceder ás circumstancias;--o escolhido fôra o alcaide de Monsaraz,
+Gonçalo Rodrigues de Sousa, e devia seguir logo com alguns navios para a
+Figueira, emquanto outros iriam correr a costa da Galliza, inquietar em
+casa o inimigo, e nos seus barcos, pescarias e alfandegas procurar um
+reforço para as arcas exhaustas do thesouro.
+
+O movimento dos pagens, dos sergentes do convento, dos bésteiros e
+homens d'armas tinha produzido o ajuntamento da pequena praça ou
+terreiro, que ficava em frente do convento, e das tortuosas ruas
+visinhas. Na praça, vistas do alto, as cabeças dos curiosos formavam uma
+massa, que ondeava como as espigas de trigo sazonado, impellidas pelo
+vento, e no meio de borborinho constante, especie de gemer de tempestade
+em praia cheia de recifes, surgiam ora estrepitosas gargalhadas, ora
+gritos, apodos e vivas. As gargalhadas eram provocadas pelo bôbo da
+cidade. O Porto não era uma terra de pouca monta para não ter um bôbo
+seu, como qualquer principe, mesmo no meio daquellas calamidades e
+sustos, e tinha-o até que não ficava nada a dever aosque se importavam
+de França, por aquellas epochas, com o mesmo cuidado com que se haviam
+de importar cabelleireiros--o que, entre parenthesis, não quer dizer que
+para escolha dos primeiros se expedissem tão gordas personagens como
+para o dos segundos--.Voltando ao nosso caso, ao bôbo da cidade: os
+leitores que comnosco fazem esta viagem ao seculo XIV e ao terreiro de
+S. Domingos, devem confessar que a verba votada no orçamento municipal,
+verba insignificantissima, não devia ser chorada. D. Golias era uma
+raridade; uma creatura de seis palmos de alto, se tanto, comprehendendo
+esta medida uma desmarcada cabeça, cortada de lado a lado no terço
+inferior por uma bocca, cousa unica que correspondia naquelle todo ao
+nome com que o tinham baptisado. D. Golias áquella bocca, mais do que ao
+infésado da estatura e uma mobilidade de feições extraordinaria, devia o
+seu emprego e a sua popularidade. Os mesteiraes e burguezes que o
+encontraram, vindo do acampamento, onde exercia as suas funcções,
+tinham-lhe feito um acolhimento brilhante, uma ovação, e elle,
+escarranchado sobre um vádio espadaúdo e meio idiota, com o seu vestido
+variega­do e o seu capirote, notavel por duas immensas ore­lhas
+asininas, correspondia a tanto extremo disparando, entre esgares e
+tregeitos, epygrammas para a direita e esquerda, na portaria do
+convento.
+
+Uns bons dous terços destes gracejos, dos mais pesados, eram dirigidos a
+nobres senhores ou a alguns ricos burguezes, o que os fazia ser
+acolhidos com prazer pela gente da praça.
+
+--Olé, mossem Methusael, D. Methusael, tio Methusael! ginchou elle
+sacudindo os cascaveis do vestido e da palheta, dirigindo-se ao
+arrabi-menor, que por entre a multidão abria caminho; o vinho que á
+socapa comprastes a mestre Manoel do Arco, subiu-vos á cabeça, ou foi
+exconjuro que vos trouxe aqui?! Mossem Methusael, as vossas dobras vão
+tinir como a minha jornea, e o vinho vae desfazer-se em lagrimas! Não é
+verdade, manos, que vai haver juderega dobrada e tresdobrada. Mossem
+Methusael antes quer que elles roubem a pequena Lea do que um punhado
+das boas barbudas da arca!
+
+O arrabi resmungou algumas pragas, que se perderam entre as risadas do
+povo, e appressou o passo, seguindo um cavalleiro, na direcção da
+portaria, a fim de em tal companhia ter mais facil accesso.
+
+--Guarda! berrou o bôbo, attravessando a palheta; guarda! Se queres
+entrar pede a frei Roque que te lave em agua-benta!
+
+--Tira a tua vara, truão, gritou o cavalleiro, ao pousar o pé no limiar
+da porta.
+
+--Arreda, Portugal! tornou Golias; arreda, que ahi vem Castella em peso!
+Passe lá, don cavalleiro; eu levanto o meu sceptro e arredo-me, porque
+não quero tocar em scismaticos. Don cavalleiro, tornou, quando o fidalgo
+subia já a escadaria, tendes novas do mano Garcia Manrique? Quando lhe
+ides dar a mão?!
+
+E voltando-se para o leigo porteiro, que, depois de fazer uma grande
+reverencia ao nobre recem-chegado, o fitava, espantado da ousadia,
+proseguiu:
+
+­--Eh! beguino de má morte, se cuidas que te estás a vêr a espelho de
+Veneza, enganas-te: estas orelhas são do capirote. As tuas são mais
+compridas e mais felpudas!
+
+Estes e outros gracejos, que não é licito escrever, pois não curava o
+truão da polidez da linguagem, nem eram por esses tempos malsoantes
+palavras que o são hoje; estes e outros gracejos eram a pedra de toque
+da popularidade dos individuos a quem os dirigiam: a gargalhada e os
+assobios, as palmas, os grasnidos e murmurios que provocavam, diziam a
+conta em que eram tidos. Quando a vaia partia, e o povo se calava, não
+insistia o bôbo, certo de que era a personagem aggredida estimada por
+aquella boa gente, e não teria, por isso, defensor, se algum syllogismo
+contundente fosse servir de censura ás suas burlescas reflexões.
+Regulando por este thermometro, o piloto e mercador João Ramalho e
+Gonçalo Domingues eram bemquistos na cidade da Virgem. O forçureiro,
+sahindo açodado pela porta do convento, esbarrára em cheio com o piloto
+que entrava, e do choque resultou a oscillação dos dous corpos, que
+procuravam o equilibrio, e um regougo abafado do burguez. A risada foi
+inevitavel, pois as pequenas desgraças teem sempre o riso por
+caudatario; mas um olhar do pae de Irene engasgou nas fauces de Golias o
+motejo.
+
+João Ramalho não vinha para graças.
+
+Ao olhar sevéro dirigido ao bôbo seguiu-se outro lançado a mestre
+Gonçalo, que lhe estendia a mão com a costumada lhaneza, e o piloto
+começou, quasi sem tomar folego, uma lenga-lenga de recriminações, que
+fizeram abrir os olhos do burguez desmarcadamente. Porque se espantava
+um, adivinha-o o leitor, porque desabafava o outro a sua cólera, se o
+não sabe, aventa-o: Fernando sahira contra ordem expressa da rua dos
+Pellames e fôra colhido em flagrante delicto de namoro, acompanhado das
+aggravantes circumstancias de escalada e destruição de um muro. O piloto
+deduzira de tanto ruido peccado mais gordo do que sonhára o mancebo, e,
+como este se lhe tinha salvado da furia, valendo-se da sua agilidade na
+carreira, avinha-se com o tio. Mestre Gonçalo Domingues, se naquelle
+instante apanhasse a geito o travesso rapaz, de certo o punha em maus
+lençoes, tal era a indignação e raiva, traduzidas nas faces em uma côr
+arroixada, que lhe incitava a narração deste successo, feita pelo rude
+marinheiro. O sangue subia-lhe á cabeça e ameaçava-o com uma apoplexia.
+Sem o querer, applicou-lhe o pae de Irene o remedio; porém, continuou a
+aggressão tão viva contra o travesso rapaz; chegou a taes ameaças, que o
+forçureiro julgou dever fazer algumas observações a esse respeito, e as
+observações fizeram desviar o raio de uma cabeça para outra. A culpa
+daquelle attentado, tão grave para o cego piloto, era de Gonçalo
+Domingues, que não soubera morigerar o seu pupillo; que lhe déra largas
+illimitadas; que lhe deixára damnar alma e corpo com ruins paixões. Quem
+ouvisse aquella recapitulação de queixas e accusações tomaria o namorado
+de Irene por um D. Juan, se Tirso de Molina já tivesse modelado no
+_Burlador_ o typo famoso, que, com um arrebique para aqui, uma limadella
+para acolá, um nariz de cartão, uma cabelleira empoada, ou os tezos e
+cortantes colarinhos de um mylord tem servido a tanta e tão boa gente. O
+bom do tio, posto que chofrado, e duvidando de tanto aggravo, julgou o
+caso de consciencia, comtudo, e mentalmente resolveu a questão por um
+dos lados; por onde a lei, se fossem veridicas as supposições do
+forçureiro, a resolveria, mesmo naquelle tempo, visto que não havia
+desigualdade de castas. O rico burguez não mettia em linha de conta a
+vaidade do piloto, não se recordava tambem de que o commercio e
+industria com que se locupletara eram marcados com despreso tradicional,
+despreso ecclipsado para as maiorias pelo brilho das dobras, é verdade;
+porém não de todo para os mais pechosos. João Ramalho, á primeira phrase
+em que o forçureiro dava a entender a sua resolução, feriu-o vivamente
+no fraco, e emcambulhando-se as palavras em dialogo alternado, a voz do
+tio de Fernando chegava ao diapasão da do pae da linda namorada deste,
+quando arruido maior lhes abafou as vozes, e uma onda de povo os
+separou, lançando um para um lado, outro para outro.
+
+Para explicar esse alvoroço voltemos outra vez ás assoadas de D. Golias,
+o bôbo da cidade.
+
+Como em baile de etiqueta annunciava o maninelo quanto individuo de seu
+conhecimento se approximava do mirante semovente, em que se empoleirara,
+quando um claro se fez do lado do arco, que dava serventia para as
+Cangostas, rua que não desmente­ ainda hoje o nome posto, para a
+Bainharia e almuinhas, e appareceu açodado o nosso conhecido João Bispo.
+Se a pressa, que mostrava trazer, e o conservar na mão a adaga não
+fizessem notada a pessoa do ex-subordinado de Tello, chamariam sobre
+elle a attenção os gritos de Golias.
+
+--Upa! acima sineiros da maldição, berrava elle. Os sinos não tangem?
+Beguino, frei velhaco! campas e sino grande, tudo a chocalhar! Venha
+toda a monjaria de cruz alçada, que chega o senhor bispo, o bispo João!
+Sua mercê traz pressa; mas nem por isso deve ser recebido sem as
+honrarias de usança. Vá: deitem-lhe agua benta aos olhos, para que não
+veja por ahi moura perdida pelas celas!
+
+E terminando a exclamação imitava com a bocca o repique de sinos,
+baloiçando-se sobre os hombros do espadaudo vadio, em quanto este, que
+não tinha a insensibilidade de campanario, grunhia incommodado pelo
+revolver dos pés do bôbo ante os olhos, e arrepelões dados na hirsuta
+cabelleira.
+
+A cidade ficava de certo sem o importante Golias; pois que o vadio
+estava já disposto a sacudil-o no lagedo, como o besoiro, que lhe
+fizesse cocegas no cachaço, e de certo o estatelava, senão se ouvissem
+gritos no meio da praça, e o novo bésteiro de Gaya se não viesse
+embaraçar, tentando penetrar na portaria, nas pernas da victima do bôbo,
+ao mesmo tempo quasi que o acontiado do municipio.
+
+--Castelhano! gritou este, deitando as mãos ao namorado de Garifa,
+castelhano, aqui não te valem os fidalgos traidores!
+
+O homem do virote, que sentira subir-­lhe o sangue á cabeça com a ameaça
+de Ayres Gonçalves, correra, mal este embarcára, a procurar desafogo em
+João Bispo, e mais desesperado pela velocidade da carreira deste e pelo
+emmaranhado dos beccos por onde seguira, quando o encontrou, ao dobrar o
+arco, sentiu o despeito renascer; o nosso bésteiro, porém, deitou-o no
+chão com um cambapé e seguiu caminho. A vontade de tirar desforço do
+novo desappontamento trouxe aos lábios do homem do virote aquella
+palavra «castelhano». João Bispo correra menos risco quando lhe chamaram
+ladrão, entre os bons burguezes, na baixa, do que baptisado com
+semelhante nome.
+
+--Castelhano?! exclamaram alguns mesteiraes correndo para junto dos dous
+soldados, emquanto João se desembaraçava do seu aggressor.
+
+E um sussurro indicador de que a tempestade, as iras populares estavam
+eminentes se levantava no terreiro, ao passo que a portaria era
+invadida.
+
+--Mata, mata! gritaram em seguida alguns garotos do outro extremo da
+praça; mata o castelhano!
+
+João Bispo sentiu um suor frio correr-lhe pelo corpo todo, e murmurou
+dando um salto, encostando-se a uma das hombreiras da porta, e cobrindo
+o peito com a adaga:
+
+--Castelhano... castelhano? Quem falla aqui em castelhano? Affastar,
+proseguiu em voz mais forte, affastar! Em castelhanos vou eu pôr o dedo.
+
+--Mata, mata! berraram com os garotos alguns dos homens mais
+esfarrapados da chusma; e uma pedra veio ferir fogo nos umbraes do
+convento.
+
+O amante de Garifa, metteu a mão no seio e tirou uma pequena tira de
+pergaminho, ao passo que o bôbo, atterrado com o arremesso de projectis
+em semelhante direcção, julgava dever intervir:
+
+--Sús, boa gente; quem chama castelhano a João Bispo? Frei João não foi
+sagrado pelo papa dos scismaticos... foi pelo papa dos velhacos.
+
+--Oh! é João Bispo? perguntaram duas ou tres vozes d'entre a chusma.
+
+--João Bispo, ou o bispo João, tornou o bôbo, fazendo mesuras ao
+publico, ao qual soubera modificar as iras com o seu gracejo.
+
+O homem do virote via de novo escapar-se-lhe a victima.
+
+--Vêde, vêde, gritou elle apontando para o pergaminho, que o bésteiro
+segurava na mão, e tentando apoderar-se delle: vêde como quer esconder
+aquillo.
+
+João Bispo levantou o braço para furtar o escripto, que trazia a Ruy
+Pereira, á mão do bésteiro do municipio, ao mesmo tempo que Golias
+estendia o braço e o apanhava.
+
+--Ui que esgaravunhos! pipitou elle desenrolando a tira. Isto é
+esconjuro de bruxa, ou pacto de venda de alma de judeu?
+
+--Ou mensagem para os do arcebispo! resmungou um dos mesteiraes.
+
+--Mensagem para os do arcebispo... disseste a verdade, mal-­cuidando!
+accudiu o bésteiro de Gaya, soltando ao mesmo tempo uma praga, e com a
+raiva pintada no rosto dando um salto para rehaver o pergaminho.
+
+O escripto voou das mãos do truão assustado para junto de João Ramalho,
+que, levantando-o, passou pelos olhos as primeiras linhas:
+
+--Traidor, Gonçalo de Sousa?! exclamou elle.
+
+--Traidor, sim, disse João Bispo; e ainda ha pouco aqui tramou não sei
+que outras villanias! Estes cães que trouxe ás pernas não me deixaram...
+
+João não proseguiu. O alcaide de Monsaraz desembocava no pateo,
+acompanhado de Affonso Darga, vindo do lado da casa do capitulo. Entre
+os mesteiraes entrados na portaria reinava profundo silencio. O joven
+cavalleiro fallava com o commandante da flotilha enviada pelo Mestre de
+Aviz ás aguas do Douro:
+
+--Senhor Gonçalo de Sousa...
+
+Como João Bispo não acabára a phrase não a acabou tambem Affonso Darga.
+João Ramalho dirigira-se para o alcaide, e batendo-lhe com uma das mãos
+no hombro, appresentou-lhe o escripto. Aquelle pergaminho apanhara-­o o
+ex-­noviço ao capellão de Ayres Gonçalves. Scismando nas palavras
+ouvidas atraz do reposteiro, quando, ao regressar de uma visita á
+ucharia, se perdera nos lanços de escada e corredores dos paços de Gaya,
+pensou que no aposento do frade lhe acharia a explicação. A prova de que
+não pensou mal era o ter encontrado alguma cousa, e essa cousa--o
+pergaminho--fizera perder a côr ao alcaide de Monsaraz.
+
+Á pallidez, seguiu-se o rubor, e depois de novo a pallidez. Gonçalo de
+Sousa sacudiu a mão do mercador, como se fosse um reptil, que lhe
+tivesse pousado nos hombros; quiz fallar e a voz prendeu-se-lhe na
+garganta; a espuma produzida por um accesso de bilis appareceu-lhe aos
+cantos da bocca. O nobre senhor, nesse instante, temia menos as iras das
+turbas, sentia menos a deshonra, se deshonra via na sua traição, do que
+a ousadia do homem do povo, que assim se arvorava em seu juiz.
+
+--Arreda, villão! gritou, mal a voz se desembaraçou.
+
+--Villão! repetiu João Ramalho, refece é quem assim atraiçoa a terra que
+o viu nascer; não é, senhor alcaide?
+
+A voz do piloto tremia; mas não de susto. Gonçalo Rodrigues de Sousa
+arrancou-lhe das mãos o pergaminho, e rasgando-o, lançou-lhe os pedaços
+ao rosto.
+
+--Quereis resposta? disse elle com um sorriso nervoso, symptoma de um
+excesso de raiva; quereis uma resposta? Eil-a... Outra só a darei quando
+o meu accusador não fôr da tua ralé.
+
+O punhal de João Ramalho lampejou no ar. O alcaide de Monsaraz contára
+aquella hora como a ultima da vida, se uns poucos de mesteiraes e
+bésteiros do municipio não fizessem o mesmo, lançando-se sobre elle,
+embaraçando-se uns aos outros.
+
+A onda popular, levantada pelas primeiras palavras do homem do virote,
+pela accusação feita ao namorado de Garifa, crescera furiosa, estuara no
+meio dos gritos de «morra o traidor, o castelhano». A portaria do
+convento fôra invadida, esmagado quasi o porteiro, apeiado e pisado o
+pobre D. Golias, e azevans, ascumas e agomias luziam ameaçadoras por
+cima daquellas cabeças inquietas, como na crista das vagas os flocos de
+espuma feridos pelos raios do sol. Quatro braços possantes seguraram o
+alcaide, mais já lembrado de que era homem do que fidalgo: Affonso Darga
+e uns dous monges, que o quizeram cobrir com o corpo, foram repellidos
+em um abrir e fechar d'olhos.
+
+--Ao pelourinho, ao pelourinho! gritou um dos mesteiraes arvorados em
+justiceiros. Açoutado e enforcado!...
+
+--Jesus! gritou o dominico, tentando salvar Gonçalo Rodrigues; Jesus! o
+que ides fazer é um homizio, e o sangue...
+
+--Vamos fazer justiça. A traidor como a traidor! Peões, não temos cepo
+nem cutello; mas temos boas cordas de canave.
+
+--Ao pelourinho, ao pelourinho!
+
+--Morram os traidores!
+
+--Bésteiros, a mim bésteiros! gritou o alcaide de Monsaraz, vendo
+apparecer do lado do claustro dous acontiados da esquadra.
+
+--Quem é aqui por traidores?! exclamou um dos que empunhára o alcaide.
+
+Os bésteiros não se moveram. A celeuma na praça crescia.
+
+--Por Christo crucificado! tornou o dominico pacificador, erguendo a
+cima da cabeça a imagem do Redemptor. Quem com ferro matar, morrerá pelo
+ferro...
+
+--Ide-­vos, homem de Deus; ide-vos, senão quereis que vos tomem por
+traidor.
+
+­A voz de Ruy Pereira, avisado do risco em que estava Gonçalo de Sousa,
+trovejou por cima daquella celeuma:
+
+--Quem falla aqui em traições? Traidores, se os ha, deixai-os á justiça
+do regedor. D. João vol-a fará boa e prompta, bons homens! Senhor
+meirinho, senhor meirinho!
+
+--O povo do Porto sabe fazel-a tão bem e tão boa como o de Lisboa.
+
+--Senhor meirinho, senhor meirinho, gritava o tio de Nuno Alvares,
+barafustando para se approximar do commandante das galés do Mestre, e
+procurando com o vista o meirinho da cidade, que abafava entre os
+mesteiraes.
+
+­--Ao pelourinho! vozeavam estes.
+
+Um bésteiro neste momento atravessava o terreiro, soffreando o cavallo
+em que montava, para não pisar o povo, nessa occasião soberano em
+verdade. Conhecido de alguns dos amotinados, abaixara-se a fallar-lhes,
+e pouco e pouco, á proporção que se approximava da portaria do convento,
+ao berreiro de «morras» succedia um borborinho destas palavras trocadas
+em voz baixa:
+
+--Os gallegos! os gallegos!
+
+--Os gallegos! exclamou o mesteiral que segurava o alcaide e parecia ter
+grande influencia nos seus companheiros; os gallegos veem? Boa idéa:
+mandar-lhe-hemos este bom cavalleiro para o arraial. As machinas que
+estão do lado das Hortas podem com pesos maiores. É uma boa lança que
+enviamos aos do arcebispo. Não é para elles que se queria partir?
+
+Uma gargalhada saudou a lembrança, apesar de não ser original.
+
+Gonçalo Rodrigues de Sousa estava salvo com aquelle addiamento das
+vinganças populares.
+
+
+
+
+VII.
+
+Recontro de Leça.
+
+ Todo oro que se afina
+ Es de mas fina valia,
+ Porque tiene mejoria
+ De cuando estaba en la mina,
+ Ansi se apura y retina
+ El hombre y cobra valor
+ En la fragoa del amor.
+
+ GIL VICENTE.--FRAGOA D'AMOR.
+
+
+--Bofé, por aqui?!
+
+--É verdade, João.
+
+--Mas como? Se o não vira com estes olhos que a terra ha de comer...
+
+--Pois eu sou.
+
+--Como S. Thomé, parece-me que será preciso tocar-­vos para crêr. E como
+vindes armado! Nem moço escudeiro vos leva as lampas! Mas ainda o não
+posso acreditar. E mestre Gonçalo?
+
+--Meu tio...
+
+--Sim! O bom do velho veio tambem na arrancada. É o que faltava vêr...
+elle que não é para estas cousas, apesar de bom portuguez. Mas, em fim,
+está ahi o Porto em peso; velhos e cachopos... até mouros. Por pouco
+vinham as mulheres! Ala fé, mestre Gonçalo Domingues...
+
+--Meu tio não veio...
+
+--Então...
+
+­--Ai, João, se souberas?!
+
+­--O que?
+
+--Estou como tu; sem leira nem beira.
+
+--S. Jorge e todos os santos batalhadores sejam commigo! Que foi o que
+vos succedeu, Fernando? Morreu mestre Gonçalo?
+
+­--Não morreu, não... nem Deus queira tal.
+
+--Então, que foi?
+
+--Ai, João, hontem foi um dia bem de mau sestro!
+
+--Para mim tambem: por um argueiro duas vezes escapei á morte!... Pois
+não vi, ao sahir de Gaya, nem gato preto, nem chapim de sola para o ar,
+nem velha varrendo lixo: nem ouvi piar a coruja, nem uivar os cães!
+Valeu-me o anjo da Guarda...
+
+--A mim não me quizeram matar; mas... parece-­me que me foi peior...
+
+--Peior?!
+
+--Sim, João: lembras-te de me encontrares nos Banhos, e de te fallar em
+certos amores? ..... Fui vêl-­a.
+
+--Ah! fostes vêr a tal menina, e estava arrufada...
+
+--Não, João; Irene...
+
+--Irene? chama-se Irene? é um nome que não é feio.
+
+--E ella é mais linda; mas, como te ia contando, fui vel-a. Ia a subir a
+um muro do lado do quintal para lhe fallar--queria tirar um peso que
+tinha no coração; dizer-lhe que, apesar de meu tio ralhar, lhe havia de
+querer muito e... nem eu sei o que mais; mas queria-lhe fallar,
+vel-a--ia a subir ao muro, e o muro... zas... no meio do chão, e cara a
+cara dou com o pae...
+
+--Ora! E por tal é essa amofinação?
+
+--Olhe, João, que não é o caso para folgar! Como não ralharia elle á
+minha pobre Irene, elle, que não tem ar de palavras de mel, e ficou com
+um senho... que descarregou nella... de certo...
+
+--Isso de nada vale, Fernando.
+
+--Ainda não ficou ahi o mal. Deitei a correr... eu sei lá para onde!
+Quando me lembrei de voltar para casa era tarde; pouco faltava para o
+sol posto. Appressei o passo, lembrado de que se meu tio me não
+encontrasse nos Pellames, elle, que me guardava má tenção por me haver
+encontrado já na maldita arvore, faria de sorte que eu não tornaria a
+pôr pés na rua. Ao chegar quasi a S. Domingos, havia uns alaridos, um
+grande vozear, e parara ao pé do arco, quando mestre Duarte, o nosso
+visinho, veio aonde eu estava, e contou que vira o pae de Irene fallar
+com meu tio, e que ambos esbravejavam, por palavras que lhes ouvira,
+contra mim. Voltei a Miragaya...
+
+--Para que?
+
+--Nem o sei dizer. Receiava de meu tio... e não receiava. Quando de novo
+me dirigi á porta da cidade estava fechada. Do lado da Esnoga via-­se um
+grande clarão, e continuava o alarido...
+
+--Era a chamusca da casa de mossem Moysés, o irmão de D. David Algaduxe;
+era o escote dos judeus.
+
+--Assim me disseram de manhã.
+
+--Passastes a noite ao relento?!
+
+--Passei, João, e se visse sequer uma luz á janella, parece-­me que
+ficava consolado. Ao alvorecer, como depois daquella noite assim corrida
+maiores razões tivesse para não voltar aos Pellames, subi a encosta em
+cata de mestre Pedro, e, como o não encontrei, fui pelas Hortas. No
+campo, a chusma das galés, os acontiados da cidade, e a gente de armas
+dos ricos homens vindos de fóra, estava tudo em movimento; chegava povo
+a todos os momentos e sahia no meio de vivas; ao pé da torre, junto á
+porta, do lado de dentro, distribuiam armas. Um anadel deu-me um
+encontrão, e disse-­me que fosse buscar tambem alguma cousa, e fui;
+pozeram-me a caminho para aqui, e puz-me a caminho tambem...
+
+--Amores! amores! E agora que ides fazer?
+
+--Boa pergunta, disse, erguendo e cabeça com certo enthusiasmo, o
+namorado de Irene, Fernando Vasques, de certo já reconhecido, bem como
+João Bispo desde as primeiras linhas deste dialogo; agora é batalhar, e
+ou ficar para ahi, ou fazer acção de fama; e depois...
+
+--E depois ides pôr a espada aos pés da vossa dama, como naquelle conto
+da Tavola-Redonda ou naquell'outro que tinha frei Gumado... Ama...
+Ama...
+
+--Amadis, queres dizer?
+
+--Isso é: um em que havia combates de gigantes e uma princeza muito
+formosa: deixai vêr se me lembra o nome... Oriana!...
+
+--A dama de Amadis.
+
+--Bonitos contos, Fernando, esses de cavallerias e amores; pena é que
+hoje nada succeda assim de geito.
+
+--Pena que não haja quem tenha a vontade de boas acções e famosas! O
+senhor Nun'Alvares, tem-se, ainda assim, havido como alguns dos mais
+pintados, e ouvi contar a meu tio, que o viu simples pagem, acompanhando
+a rainha Leonor, pela qual depois foi armado.
+
+--Tomou o leão para o fazer lebreo de estrado; mas elle, mal chegou a
+idade, mostrou-lhe os dentes todos, e foi para o monte a monteal-a.
+Desde nado trouxe boa sina Nuno Alvares. Mestre Thomaz, grande
+astrologo, que andava em casa de seu pae, leu nas estrellas, e viu que
+empresa em que se mettesse seria boa, e elle sahiria vencedor, se fosse
+para bem sua tenção.
+
+--Por isso deixou elle a rainha Leonor; pois em serviço della não andava
+bem, e podia-se quebrar o encanto com que foi fadado.
+
+--A mim tambem me leram a sina; porém a maldita da moura que o fez disse
+uma tal embrulhada, de que só percebi que havia de entrar em grandes
+batalhas, e salvaria um rei...
+
+--Não ouvis? atalhou Fernando, sobresaltado.
+
+--Ouço.
+
+--Além do rio...
+
+--Um como tropear de gente, e quebrar de ramos. Estas fogueiras não
+deixam vêr bem. As vigias dormirão?
+
+--­Não... olha, não vês alli ao pé daquelle fraguedo, onde bate o luar,
+aquella que se move? está bem desperta. Ainda ha pouco se recolheu uma
+rolda, a que acompanhou frei Patinho.
+
+--Escutai, tornou João Bispo, deitando-se no chão para melhor distinguir
+a direcção do rumor, depois de retesada a corda da sua besta.
+
+A noite descera havia muito; os galos de algumas choças visinhas tinham
+já annunciado que ia alta, a meio do seu curso, e a lua erguia-se
+redonda, avermelhada, semelhando um escudo candente, por entre as ramas
+dos pinheiros, que fechavam ao nascente o horisonte, fazendo destacar a
+uns por contornos negros, cobrindo de uma luz phantastica os curutos de
+outros, e projectando sombras immensas pelas clareiras. Á proporção que
+ella minguava no céu, tornavam-se mais vivos os reflexos azulados com
+que tingia alguns objectos, fazendo contraste com os fogos dos dous
+acampamentos áquem e álem de Leça--fogos que em pontos ainda se
+mostravam vivos, fazendo ressaltar vultos negros, tocados, sobretudo nos
+arnezes, braçaes e grevas dos homens d'armas, de linhas ardentes,
+vermelhas quasi; em outros quasi extinctos, mostrando, através de uma
+luz vaga, fórmas indecisas, movendo-se, tregeitando. Aqui o ferro de uma
+azevan, volteando, espelhava um raio da lua, e imitava os fogos fátuos;
+acolá o bacinete polido de um bésteiro de polé lampejava, ao cruzar
+rápido por pé dos fogos das vigias. De vez em quando o relincho dos
+cavallos se reproduzia nos eccos; as vozes das roldas se alteava;
+erguia-se aqui uma risada, alli um clamor, e depois recahia tudo em um
+silencio, que só interrompia, alguma conversa a meia voz, como a que
+cortaram os nossos dous namorados.
+
+Pela bocca de um delles já todos sabem que os combatentes de que podia
+dispôr a cidade da Virgem, homens e rapazes se tinham nessa dia de
+madrugada posto a caminho de Leça, e se estão lembrados da noticia dada
+pelo bésteiro em S. Domingos, noticia que tirou Gonçalo Rodrigues das
+mãos dos populares e o entregou á justiça, que lhe fez grande favor em o
+reter preso em Gaya; se se lembram de que D. João Manrique, arcebispo de
+Santiago, abalára de Braga com setecentas lanças e dous mil infantes,
+portuguezes, partidarios de D. Beatriz, e gallegos, e quando chegára a
+mensagem do Mestre acampava perto da cidade, atinarão qual o intento que
+ahi os levava. Alguns corredores do bando inimigo tinham, ao tempo que
+pecuniariamente se salvava a patria, chegado a Paranhos, alarmando os
+poucos camponezes não recolhidos á cidade, e os bons burguezes, que já
+os tinham esperado duas vezes sem verem apparecer uma só lança, haviam
+resolvido affugentar estes hospedes importunos.
+
+Seis a sete mil homens, pois, acampavam áquem do Leça, occupando uma
+extensa linha.
+
+Esta tropa, superior á do arcebispo em numero, era, encarada por outro
+lado, talvez inferior. Dos nobres que com os seus homens d'armas tinham
+seguido as hostes populares, em alguns não eram firmes as crenças de
+partido, como vimos; nos outros, em geral, havia certa má vontade por
+vêrem ao seu lado cavalleria burgueza, para a qual olhavam pouco mais ou
+menos com os mesmos olhos com que ainda hoje, no seculo XIX, olha o
+militar para o miliciano que marcha ao seu lado. Os bésteiros da
+behetria, trezentos ao todo, era gente de animo resoluto, porém fracos
+atiradores, e os quinhentos, tirados da esquadra e de Gaya, tinham os
+outros quasi na mesma conta que ás lanças que rodeavam a bandeira onde
+entre torres a Virgem apparecia mostrando Jesus inda menino, aquelles
+que seguiam balsões historiados, e mesmo ainda ao mais historiado
+labaro, museu de imagens santas ideado pelo futuro condestavel.
+
+Cinco mil homens, exceptuando a chusma da armada, pertenciam a essa
+gente que parecia entregue a uma mascarada, quando levamos o leitor aos
+adarves que tinham vista para Miragaya. Eram porém estes, era o povo e
+os acontiados do municipio que tinham de fazer retirar os muito
+esforçados cavalleiros Lopo de Lira, Fernão Gomes da Silva, Martim
+Gonçalves de Athaide, Gonçalo Pires Coelho e outros nobres, que seguiam
+com elles o arcebispo de Santiago. As ascumas e os mangoaes affaziam-se,
+a passar aquellas entre o gorjal e a barbuda, a malhar estes em
+cimeiras; amestravam-se para a grande tarefa de Aljubarrota.
+
+Como dissemos, os defensores do Mestre estendiam-se na margem do Leça
+por bom espaço. João Bispo e Fernando Vasques encontravam-se em uma das
+extremidades da linha, ou acampamento, quando extranho ruido vindo de
+uma mata visinha os fez interromper o dialogo que ahi fica exarado. O
+amante de Garifa, depois de se conservar por alguns segundos deitado,
+com o ouvido attento, ergueu-se, fez um signal ao seu companheiro, e,
+empregando o maior cuidado possivel para não fazer rumor, dirigiram-se
+ambos para o lado do poente, onde de novo se pozeram a escutar.
+
+--São os nossos, disse o bésteiro novel a Fernando; são os nossos, que
+estão abrindo caminho no bosque.
+
+Palavras não eram ditas, um grito sahia da selva, e um bésteiro
+levantava quasi debaixo da cara do sobrinho de Gonçalo Domingues a sua
+besta armada, mirando-o.
+
+--Eh! Gil! abaixa lá isso, gritou João Bispo: guarda os teus virotes
+para os gallegos! Que desbravar de matto é esse?
+
+--Eramá! estás ahi, João? tomei-vos por esculcas desses condemnados!
+Abrimos caminho na mata, e vamos passar o rio. João Ramalho está lá em
+baixo com trezentos dos da cidade.
+
+--Começa o folguedo?
+
+--Boa festa! Vamos fazer dançar os do arcebispo ao som de assobiar de
+virotes, e ranger de polés e garruchas. Os malditos deste lado dormem,
+ao que parece, e não é mau despertal-­os.
+
+O amante de Garifa deu alguns passos para se internar na mata. Fernando
+reteve-o.
+
+--Espera, João, eu sei um sitio onde se póde passar melhor do que ahi.
+
+--Sabes?
+
+--Além, abaixo daquelle casal que está a alvejar, pelo açude.
+
+--Bom discorrimento teve o cachopo! exclamou o bésteiro, com um sorriso
+de escarneo. Vão lá passar pelo açude! É o mesmo que fazer caminho para
+o outro mundo. Dous homens na outra margem tragam-vos uma hoste, como a
+uma tigella de migas.
+
+--E se de lá não houver ninguem?
+
+O bésteiro, como unica resposta, voltou as costas, encolhendo os
+hombros; João Bispo, depois de curta reflexão, tomando a mão do seu
+companheiro, exclamou:
+
+--Vámos ao açude!
+
+O desbaste do arvoredo continuou com affinco, e uma hora passada, havia
+uma soffrivel clareira aberta, onde tinham já penetrado alguns homens
+d'armas. No campo inimigo, em frente, não se ouvia senão o ciciar da
+aragem. Um troço de bésteiros e populares, armados estes com toda a
+sorte de armas, desde o montante farpeado e o machado, a maça de puas,
+até ao chuço e mangoal, começaram a passar o pequeno rio pouco abaixo do
+mosteiro dos Hospitaleiros. Cem homens teriam tomado pé na outra margem,
+quando um sibilo se ouviu, e um virote se veio cravar em um velho roble,
+ao pé do qual João Ramalho dava ordens aos acontiados da cidade. Em
+seguida, a outro sibilo juntou-se um grito, o som da queda de um corpo
+na agua, e logo um alarido immenso. Bésteiros de pé e a cavallo,
+burguezes e mesteiraes, que se tinham lançado ao Leça, recuaram.
+
+Do campo do arcebispo haviam notado o movimento da gente do Mestre, e o
+silencio guardado fôra alliciente para os chamar além. Cem homens
+estavam na outra margem prisioneiros, se o grosso da força não
+avançasse.
+
+--Santiago! Santiago! gritaram os castelhanos; e a margem appareceu como
+por encanto coberta de frecheiros, e d'ahi a momentos o relinchar dos
+ginetes e o som das trombetas eccoava pelos valles.
+
+--S. Jorge e Portugal! gritou João Ramalho, arrebatando a bandeira da
+cidade das mãos de um cavalleiro do municipio, e lançando-se ao rio.
+Ávante, filhos, ávante!
+
+Um troço de mesteiraes lançou-se em seguida do caudilho popular; porém
+recuou de novo.
+
+As folhas das arvores cahiam, como varejadas, e os troncos lascavam aqui
+e alli, que os bésteiros de Garcia Manrique faziam a sua obrigação.
+
+--Assim deixaes os vossos nas mãos daquelles perros?! exclamou Nicolau
+Domingues, apontando para a outra margem onde havia um concerto de
+pragas, vivas e morras. Bésteiros! bésteiros, pela Virgem de Vandoma,
+ávante!
+
+--Ávante! responderam alguns mesteiraes e acontiados, seguindo o exemplo
+de João Ramalho.
+
+A lucta travada além do Leça era uma temeridade. O luar alto já,
+allumiava o necessario para o inimigo vêr o inimigo que tinha junto de
+si, para uma lucta quasi corpo a corpo; e os homens d'armas do
+arcebispo, avançando sobre o ponto invadido, iam dar cabo dos attrevidos
+portuenses; demais, os fundibularios e bésteiros d'aquem temiam ferir os
+seus, ao passo que os gallegos, prolongando-se de lado opposto pela
+margem, enviando tiros mesmo ao acaso, difficultavam a passagem. Martim
+Correia, o escrivão da chancellaria, Gonçalo Pires, e o filho do Mestre
+de Santiago, D. Pedro de Transtamara, com alguns escudeiros e um troço
+de cavalleria da cidade, forcejavam em vão por enfiar mais além a
+estreita ponte, ainda hoje existente naquellas paragens. O grosso dos
+homens d'armas e cavalleiros embaraçavam-se uns e outros, nos vallos,
+fraguedos e silvados, pelos sitios onde tinham acampado, alarmados pelo
+rebate extemporaneo.
+
+No rio, se se ouvia o chapejar, era o de um ou outro burguez fugitivo;
+no bosque o estallar dos ramos, o rumorejar dos fetos não era só
+produzido pela queda de virotes; era tambem pela queda de homens.
+Nicolau Domingues gritava a bom gritar; mas a chusma da esquadra, vinda
+de reforço, não se resolvia a ir juntar-se aos acontiados do Porto,
+quando um sucesso inesperado deu um fim brilhante ao que até então não
+se podia dizer mais que uma imprudencia do pae de Irene, e da sua gente.
+
+O mosteiro dos Hospitaleiros appareceu illuminado por uma luz
+avermelhada: nas ameias da egreja e das torres veria quem dellas se
+approximasse vultos negros correndo de um para outro lado açodados, e um
+alarido immenso se casava ao fragor do combate da margem.
+
+Fernando Vasques e João Bispo tinham passado o açude e approximado,
+fazendo um rodeio, do acastellado mosteiro, pelo lado do norte, lado
+desguarnecido, e bastante custára ao namorado da filha do velho Humeia a
+suster o seu companheiro, que na effervescencia do seu amor, cheio de
+enthusiasmo, imbuido de mais na leitura dos livros de cavallerias, para
+conquistar renome se dispunha a commetter temeridades, que serviriam
+apenas para alarmar os castelhanos e arriscar a vida. João persuadiu-o a
+voltar á outra margem, a procurar reforço para uma ideada surpresa, e
+não tinham do lado de áquem dado muitos passos quando lhes chegou aos
+ouvidos um vozear confuso, e toparam com uma mulher, que, soluçando, com
+os olhos arrasados de lagrimas, conduzia pela mão uma creança, chorosa
+tambem. Guiados por essa mulher, a quem Fernando, condoido, perguntára a
+causa daquelle pranto, foram ter a um casal. As portas todas da casa
+estavam arrombadas: por uma sahia um grande clarão. Uma velha arca e
+outros trastes ardiam ao canto de uma adega, e á volta das pipas
+tripudiava um troço de bésteiros. O vinho derramado em uma grande celha
+de pau, e que, trasbordando, se esbanjava pelo chão, mostrava em que
+estado tinham as cabeças, e mais ainda o modo porque recebiam as
+admoestações de micer Guilherme: dançavam, tregeitavam, grunhiam e
+berravam em várias linguas e dialectos, chegando alguns dos que se
+mostravam menos firmes nas pernas ao nariz do nobre aventureiro uma
+escudella a trasbordar. Para bem da verdade deve-­se dizer que o
+irlandez, pretendendo conter os seus patricios, os inglezes, escocezes,
+gascões e normandos, que, recrutados pelo chanceller em Londres, tinham
+vindo nas galés, deitava á escudella um olhar tão terno, que não era
+para delle esperar grande sanha contra os indisciplinados, nem grande
+vontade de se metter á agua.
+
+João Bispo via no meio de gargalhadas e motejos desfazer-se o plano
+combinado com o sobrinho de Gonçalo Domingues, quando este se lembrou de
+notar aos nossos fieis alliados por palavras e gestos que o vinho dos
+cavalleiros de S. João devia de ser cousa muito superior ao de pobre
+lavrador. Um hurrah saudou Fernando, e, cambaleando, a turma tomou o
+caminho do açude, apesar dos protestos de Down-Patrick.
+
+Vinte homens, se tanto, seguiam aos dous namorados: uma duzia de
+archeiros de Gilles de Montferrand e alguns subordinados de Tello
+Rabaldo, encontrados tambem na adega do casal: os demais, embriagados,
+tinham ficado pelo caminho, e uns dous ou tres afogados no Leça.
+Bésteiros e vádios penetraram na cerca com o maior silencio em quanto
+João e Fernando rodeavam um páteo junto da igreja, onde os do arcebispo
+tinham amontoada bagagem, carros e grande porção de escadas, com que
+ameaçavam um assalto á cidade. A sentinella, posta desse lado, dormia,
+cabeceando, encostada á lança, quando Fernando deitou mão de uma das
+escadas para a encostar ao muro. O pobre archeiro, extremunhado, abriu
+os olhos, esgaziados logo pelo terror, e a bocca para dar o signal de
+alarme; porém aquelles embaciaram, e desta sahiu apenas uma golphada de
+sangue; deu umas outras duas passadas, cambaleando, estendendo as mãos
+como a procurar appoio, e cahiu no chão soltando um som rouco e um
+assobio, como de homem que desperta de pezadello. O castelhano, não
+despertava; adormecia para sempre: aquelle estertor sahia pela garganta
+e feridas abertas no peito por João Bispo.
+
+--S. Jorge e Portugal! exclamou o namorado de Irene, abraçando-se ás
+ameias do eirado, e arrancando a bandeira dos partidarios de D. Beatriz,
+que tremulava ao pé da vermelha dos cavalleiros. S. Jorge e Portugal!
+
+--Estamos perdidos! resmungou João, ouvindo o grito do mancebo; e
+estropeando o nome do aventureiro irlandez, gritou: Micer D. Patrico!
+micer D. Patrico, por aqui! por aqui! A mim, bésteiros!
+
+Nas torres ergueu-se um alarido immenso: alguns penedos cahiram do
+eirado no páteo, e uma nuvem de virotes sibilava nos ares. Ao chamamento
+de João apenas tinham acudido Pedro Choca e tres vádios. O sobrinho de
+Gonçalo Domingues, com a haste da bandeira defendia-se dos castelhanos,
+que, alarmados, mais tratavam de lançar a escada a terra do que de se
+desfazerem do temerario inimigo.
+
+--Abaixo, Fernando, abaixo! gritou João; e no alto das torres
+appareceram algumas luzes.
+
+--Viva o Mestre de Aviz! gritou o mancebo quasi ao mesmo tempo que lhe
+fugia a escada debaixo dos pés, deixando-o suspenso das ameias e
+estribado em uma enorme salamandra de granito, que servia de goteira ao
+eirado.
+
+--Ahi vem ginetes, disse Pedro Choca, fazendo um esgar. Recommendemos a
+alma a Deus!
+
+--Se elle t'a quizer! redarguiu um dos vádios soprando a uns tições alli
+deixados em rescaldo, que embrulhára em uma pouca de palha.
+
+--Fernando! exclamou João Bispo, encostando outra escada ao muro, apesar
+dos arremessos; afferra-te, Fernando, que eu sou comtigo. ­
+
+--S. Jorge! S. Jorge! se ouviu do outro lado do mosteiro em altas vozes.
+
+--A mim, bésteiros, a mim! tornou João Bispo, em quanto o seu amigo se
+defendia na goteira, procurando saltar no eirado.
+
+--Hurrah! S. Jorge!
+
+--Malditos! aquelles odres onde estarão! Micer D. Patrico!
+
+--Arriba, João, arriba! accudiram os vádios, marinhando pela escada, que
+de novo tinham erguido. Aquelle endemoninhado cachopo vai morrer!
+
+Uma grande lavareda, de repente, illuminou a lucta travada entre
+Fernando Vasques, os seus companheiros e alguns homens d'armas do
+eirado. Pedro Choca tinha lançado fogo a uns carros de palha, e este
+ateava-se aos enormes pavezes de vime, proprios para assalto, amontoados
+entre as escadas e bagagens. Era uma fogueira soberba que dentro em
+pouco faria estalar o travejamento dos aposentos de D. Mafalda, ao mesmo
+tempo que os castelhanos abandonavam o eirado da egreja.
+
+--Os do Mestre! os do Mestre! se ouvia por todos os lados; e nas torres,
+besteiros e fundibularios perdiam os seus tiros.
+
+­--Hurrah! continuavam, já roucos, a berrar, do outro lado da cerca, os
+inglezes.
+
+--S. Jorge e Portugal! gritaram algumas vozes, com boa clara, pronuncia
+portugueza, do lado do rio, apparecendo por entre os castanheiros,
+retirando os homens d'armas de Garcia Manrique.
+
+--Ter! gritou um dos seus caudilhos, ameaçando com o estoque os mais
+medrosos; ter, rapazes! Não se diga que retiramos diante de meia duzia
+de villões!
+
+--Ter, ter! exclamou o guerreiro arcebispo, ap­parecendo no meio dos
+fugitivos.
+
+--Os do Mestre estão no bailiado! disse uma voz d'entre a multidão.
+Vêde, o mosteiro está a arder, e foi derribada a bandeira!
+
+--Por Sanctiago! tornou o arcebispo para os seus companheiros, espantado
+da audacia dos portuenses, embrulhados já com os gallegos, e suppondo-se
+cortado por forças immensas; estes excommungados estão decididos a
+morrer, e trazem com­sigo o poder do mundo. A caminho de Braga,
+senhores! Temos tempo sobejo para desforra.
+
+--Covarde! resmungou João Rodrigues Portocarreiro, esporeando o seu
+ginete para se lançar sobre os do Mestre. Covarde! repetiu; e o fogoso
+animal, ferido nos peitos por um virotão, ergueu-­se com as mãos no ar,
+e cahiu, arrojando com ruido o portuguez rebelde a alguns passos de
+distancia, abollando-lhe a armadura e o capacete e fracturando-lhe o
+craneo.
+
+--Covarde! repetiu tambem o arcebispo com um sorriso de mofa,
+voltando-se para um dos seus capitães, e designando o fidalgo portuguez:
+temeridades não aproveitam.
+
+A ponte tinha sido forçada ao mesmo tempo quasi, e a cavallaria de D.
+Pedro de Transtamara cortava já pelo meio dos gallegos, atterrados.
+
+--A caminho de Braga! tornou a gritar o arcebispo D. João, que,
+lançando-se na estrada partiu, a galope,­ seguido de grande porção de
+cavalleiros, e pouco depois de todo o exercito, deixando os apprestes
+d'assalto, viveres e bagagens nas mãos dos burguezes do Porto.
+
+--Senhor conde, senhor conde, aqui está a bandeira de Castella,
+exclamava momentos depois, attravessando no meio de vivas por entre as
+hostes do Mestre, o sobrinho de Gonçalo Domingues, com as mãos cheias de
+sangue, de feridas do corpo e da cabeça, mas tão contente, que nada lhe
+doia naquelle instante, e, em vez do perigo corrido, se recordava tão
+sómente de Irene, alegrava-se por saber que o seu nome lhe havia de
+chegar aos ouvidos na historia daquelle recontro.
+
+Era um heroe feito pelo amor.........................................
+.....................................................................
+
+O mosteiro dos Hospitalarios tinha sido abandonado, mal o incendio
+mostrou aos seus guardas as hostes portuenses além já do Leça, abatida a
+bandeira e em fuga Garcia Manrique. No entanto, ainda do lado da cerca,
+sol já nascido, as mesmas vozes roucas gritavam:
+
+--Hurrah! S. Jorge!
+
+--Onde demonio estarão estes bargantes? perguntou o namorado de Garifa,
+procurando o sitio donde sahia aquelle vozear.
+
+Uma gargalhada estrondosa se seguia, pouco depois, á pergunta. Os
+besteiros encontrados no casal, não se esqueceram, chegados ao mosteiro
+dos cavalleiros de S. João, que vinham para humedecer a garganta com bom
+vinho, e foi a adega a primeira cousa que procuraram. Era de lá que
+tinham, com os seus hurrahs, ajudado a alarmar os gallegos.
+
+Desta vez micer Guilherme Down-Patrick não resistira á tentação.
+
+
+
+
+VIII.
+
+Torneio.
+
+/#
+ E elles no Porto por ledice de sua vinda ordenarão hum torneo
+ vespora de S. Iohão, que era em que os moradores daquella cidade
+ costumavam fazer gram festa.
+
+ ­(Fernão Lopes _Chronic._)
+#/
+
+
+Por uma tarde de mez de Junho, pouco mais de uma hora seria, caminhavam
+em direcção ás Hortas, no meio de extraordinario concurso, mestre
+Gonçalo Domingues e Fernando Vasques. O feito de Le­ça, tornando um
+heroe, entre os patriotas da terra, o moço namorado, os gabos por elle
+publicamente recebidos de Martim Correa e do conde D. Pedro, a ovação
+feita pelos populares, que em charola, o conduziram, quando perdidas as
+forças, pelo sangue derramado, cahira ao voltar do recontro; tudo fizera
+passar por alto ao bom tio a fuga da loja. O velho abraçou-o
+enthusiasmado tambem, com o riso nos labios e ao mesmo tempo umas duas
+lagrimas nos olhos e só se lembrou de fazer algumas reflexões sobre as
+imprudencias da mocidade, quando em casa notou a necessidade de chamar
+um medico, ou physico, como então se dizia.
+
+Gonçalo Domingues tinha, como muita gente, na cabeça uma boa dóse de
+ideas em opposição com as inspirações e sentimentos do coração,
+sobretudo a respeito de seu sobrinho. Se dissessemos que queria ao
+mancebo tanto como ás suas dobras, diriamos que lhe tinha affeição de
+pae; porém, ia mais longe o velho: queria-lhe mais; pois bom dinheiro
+sem dó com elle tinha dispendido. E comtudo dava-se de vez em quando a
+perros por causa de certas travessuras e inclinações do filho de seu
+irmão, sobre as quaes fazia observações muito sisudas, cheias de um
+positivismo tal, que obrigava a dizer aos que o ouviam que elle era um
+homem de grande tino e prudencia. Reflexões e ralhos, terminavam quasi
+sempre por aquelle sorriso que lhe viram os leitores quando elle voltava
+de Miragaya.
+
+Fernando vinha ainda alguma cousa pállido, debilitado, ao que no corpo
+mostrava; porém nos olhos havia um fogo extraordinario, uma alegria
+pintada em todo o semblante, e nos movimentos uma força, uma rapidez,
+que não parecia de quem entrára pouco havia em convalescença. O tio bem
+lhe dizia que moderasse o passo, pois lhe fazia mal aquella violencia, e
+elle mesmo a custo o poderia seguir sem correr; mas o mancebo, se o
+affrouxava, era por instantes.
+
+O sol, ainda quasi a prumo, podendo, dardejar os raios por entre as
+esguias e altas edificações das estreitas ruas, que percorriam,
+rarefazia o ar, appresentando nos terreiros á vista a illusão de um como
+doudejar de átomos no ambiente, um tremor que fere os olhos; porém
+Fernando nada sentia. Ia vêr Irene, Irene que não vira desde o
+esboroamento fatal do muro; Irene, que João Ramalho, em vesperas de se
+fazer de véla para a Figueira, d'onde seguiria para Lisboa, recolhera ao
+castello de Gaya, recommendando-a a D. Catharina. A nobre senhora era
+bastante astuciosa para não affagar em quanto fosse conveniente um homem
+popular como o piloto mercador, e fallando elle em metter a joven em um
+convento, em quanto ia servir o Mestre, para a guardar dos riscos a que
+a idade a expunha, se offerecera para a tomar como donzella sua «e tel-a
+como filha» palavras della. D. Catharina devia ir ao campo das Hortas
+nessa tarde, e por João Bispo soubera o mancebo que á sua namorada fôra
+concedida a honra de formar parte do seu cortejo. Em logar do sol que
+fazia, podia queimar o dos tropicos, que o mancebo o sentiria tanto como
+a aragem fagueira por sesta do outomno, ou a gellos de hinverno.
+
+O recontro de Leça deixára desassombrada a cidade, e os bons burguezes
+entregaram-se todos aos cuidados de aprestar as embarcações e mais
+soccorros pedidos pelo Mestre de Aviz, posto em apuros pelo aperto do
+sitio e bloqueio. Em quanto o abbade de Paço de Sousa se dirigia a
+Coimbra, transtornada, como vimos, a embaixada do alcaide de Monsaraz,
+as galés vindas de Lisboa e outras do Porto, já prestes, para não
+perderem tempo tinham-­se feito de véla pela costa da Galliza,
+capitaneadas pelo conde D. Pedro, lançando contribuições aos povos que
+não queriam experimentar o nosso ferro. Destruido completamente o Ferrol
+e queimadas algumas naus, pelos fins de Junho de novo a frota appareceu
+nas aguas do Douro, rebocando umas sete presas, e carregada de despojos.
+
+Os sinos de todas as torres da cidade balouçaram-se, atroando os ares;
+berrou-se em todas as escalas os vivas do costume, e os edis, no fogo do
+enthusiasmo, decretaram uma festa esplendida, como appensa á de S. João,
+santo sempre popular e mais nessa quadra, por ser o do nome do Mestre,
+que o povo tinha por um Messias, como diziam os partidarios de D.
+Beatriz. A vespera da commemoração do nascimento do Baptista, morto por
+ter desdenhado da dança, devia ser celebrada com danças, guinolas,
+touras, momos e por um vistoso torneio, que tinha de ser o assombro da
+terra, pouco affeita a tão graúdos folguedos.
+
+Desde o amanhecer do dia 23 o campo das Hortas estava cheio de gente
+embasbacada para o tablado levantado na vespera, que alguns operarios
+cobriam com tapeçarias, em quanto outros davam a ultima demão ao circo,
+ou estacada, adornando-a com bandeiras, panoplias e festões de ramagem.
+
+Aos gritos e cantigas dos trabalhadores, aos commentos dos curiosos, ás
+risadas pouco e pouco se juntavam os pregões das vendilhonas de fructa,
+dos taberneiros, fritadeiras e padeiras, que assentavam as suas mezas,
+as suas tendas, ou os carros enramados por todos os lados, que o circo
+deixava devolutos, e pouco antes do meio-­dia era já difficil mover-se
+no campo, apinhando-se além disso um gentio immenso nos adarves e torres
+da cidade, por aquelle lado, e na encosta dos dous montes do Olival e
+Batalha. Se até ahi os bons burguezes tinham aberto a bocca para as
+tapeçarias onde a agulha ou a lançadeira traçara os episodios dos contos
+de cavallerias, mostrando o rei Arthur, Amadis, Lisuarte, Galaor, a
+duqueza Iguerna, Mabilia, Oriana, Urganda, Brisena e outras muitas
+personagens, que para maior illucidação dos seus feitos e ditos tinham a
+sahir pela bocca o texto da «illustração»; se ficavam embellesados nos
+grandes pannos de ouro, trazidos da cathedral para enfeitar o esperavel
+do estrado das damas, nos estandartes, onde havia divisas de toda a
+sorte, bordadas ou pintadas, mais pasmaram quando começaram a apparecer
+os mantenedores das justas, os improvisados arautos, mestres e juizes de
+campo, passavantes, sergentes, menestreis e trovadores, que para a festa
+tinham sido igualmente apenadas as musas.
+
+O Porto, behetria havia muito, entregue todo ao commercio, quando não se
+divertia a jogar as cristas com os seus bispos e a pugnar pelas suas
+liberdades, o Porto tinha visto passar os cortejos de alguns reis e
+principes; mas de fugida, meios envergonhados, como o de D. Fernando, ou
+em som de guerra, e em devota romagem e peregrinação: cortejo assim,
+festa egual nunca se déra, pois nunca, como então, se reuniram de muros
+a dentro tantos e taes elementos: tinha uma côrte de seu. Os mesteiraes
+e os burguezes nesse dia, tão enlevados estavam nas louçanias que se
+desenrolavam, que abriam caminho com a melhor vontade aos cavalleiros, e
+alguns mesmo suspiravam por que fosse levantado o interdicto a quem com
+tanto garbo soffreava um ginete, vestia tão airosamente, e fazia tão
+acabadas mesuras.
+
+Tinham as corporações apparecido com as suas bandeiras, precedidas pelas
+figuras que davam para abrilhantar o acto, como na procissão de Corpus:
+tinham-se­ reunido, amontoado os trajes mais variados, desde as vestes
+negras, compridas dos juizes, alvazires e meirinhos, as jorneas
+partidas, de panno bristol, de seda e velludo, os briaes blasonados, as
+marlotas dos mouros dançarinos, as olandilhas, as opas dos foliões e
+jograes, os arnezes polidos, espelhando o sol, adamascados ou tingidos
+de vivas cores, os vestidos de brocado, de panno de ouro e prata, os
+arminhos e zibelinas das damas e donzellas, a almafega e o burel de
+certos momos; casavam-­se os preludios de todos os instrumentos; o
+arrabil e o tiorba, a charamela e o clarim, o tambor e o pandeiro,
+estrugiam, chiavam, rangiam; mas tudo aquillo dava vida e animação,
+afinava, no meio da sua desafinação, permitta-se dizer, com o ressalte
+das côres, que como em brazão pareciam postas, com os alaridos, as
+risadas e os vivas, quando Fernando penetrou no palanque, onde seu tio,
+como notabilidade da terra, conseguira bom logar.
+
+O mancebo, mal entrou, estendeu a cabeça, a procurar com a vista não os
+arautos improvisados, que se pavoneavam de ambos os lados da liça,
+vistosamente trajados de branco e azul, com as armas da cidade bordadas
+no peito, nem os mestres de campo, montados já em bem ajaesados corceis,
+e correndo de um para o outro lado: foi para o estrado ou cadafalso das
+damas. Estava porém cerrada a cortina, e, que não estivesse, no palanque
+era tal o reboliço, tanta gente estava de pé, que não seria facil
+descobrir lá alguem, a não estar em logar eminente. Mestre Gonçalo
+Domingues, parte por natural curiosidade, parte por desejo de ostentar
+perante os visinhos, como os paes costumam, quando se embellesam nas
+prendas dos filhos, inquiria a significação de todas aquellas
+tapeçarias, e amofinava-se por ver que o sobrinho mal lhe prestava
+attenção, respondendo de tal sorte, que facil era ver que nem sequer
+olhava para o sitio indicado.
+
+De repente notou-se um marulhar de cabeças, e á algazarra succedeu o
+silencio. Os alvazires appareceram no estrado para elles preparado, e em
+outro, contiguo ao das damas, os juizes do campo--Ruy Pereira e Ayres
+Gonçalves de Figueiredo.
+
+As trombetas soaram; alvazires e juizes tomaram assento, e depois de
+feitas as costumadas ceremonias, um dos trovadores ergueu-se, desenrolou
+um pergaminho cheio de illuminuras, e começou em voz alta a recitar o
+seu poema, que era nada menos que um elogio aos guerreiros da espedição
+maritima. A poesia nessa epocha era tida em grande conta, e as
+attenções, por tanto, da assemblea voltaram-se todas para o bardo. Uma
+cabeça, uma só se volvia attenta para outro lado, e esta cabeça era a de
+Fernando.
+
+A cortina de cadafalso das damas fora corrida por dous pagens, e D.
+Catharina e mais umas oito damas da nobresa das visinhanças da cidade
+tinham apparecido rodeadas pelas suas donzellas.
+
+Os trovadores podiam dizer bocados de ouro sobre­ façanhas militares,
+que as palavras eccoavam como sons vagos aos ouvidos do namorado moço;
+os versos de amores, esses, como se affinados pelo sentimento que o
+dominava, ligados por uma corrente magnetica, faziam-no sorrir e córar,
+sem comtudo desviar os olhos do estrado.
+
+Depois que as palmas de todos os lados, e as trombetas soaram, quando o
+vencedor proclamado, appresentando o seu manuscripto a Gonçalo Pires,
+escrivão da chancellaria, com uma corôa de louros, recebeu em soberba
+bandeja um bonito sacco de argempel, rico pelo bordado, e mais ainda
+pelas boas dobras que o pejavam, premio votado pela municipalidade,
+segundo antigas usanças, appareceu no meio da liça o mantenedor das
+justas.
+
+D. Pedro de Transtamara vinha, sobre garrido, aprimorado, formoso.
+
+Bem fraca figura fazem hoje nas nossas festas e folguedos, com a esguia
+casaca preta e a gravata branca de rigor, os alindados do seculo XIX á
+vista da que faziam os nossos avós. Para o namorado de hoje em dia no
+baile não ha meio de se distinguir, de lisongear o amor da sua dama,
+como então nos torneios, nos jogos de cannas e argolas, nos bafurdios e
+cavalgadas; não apparecem hoje os vistosos trajes de seda, ouro e prata,
+as mangas bordadas, de honra, as charpas ou bandas, nas quaes em cores
+preferidas pela donzella querida se via a tenção ou divisa, que
+recordava a ambos um protesto, uma confidencia, ou descobria um
+pensamento. O amor tinha, sobretudo no cavalheiresco seculo a que
+transportamos o leitor, um culto, que hoje não tem, hoje em que
+arrancaram a aljava a Eros, o facho ao Hymeneo, e a ambos deram por
+distinctivo um saquitel de lona, como a imagem globulosa de bemfeitor de
+confraria. (Entre parenthesis, faço aqui excepção dos meus leitores: os
+que são casados, o são por amor, e os solteiros e as solteiras ainda não
+deram um sorriso, um olhar a dote algum de boa somma, simplesmente pelo
+dote e nada mais. São a nata das creaturas.)
+
+O conde D. Pedro vestia sobre ricas armas de Toledo cheias de relevos,
+esmaltes e embutidos, um brial côr de cereja, onde, em vez do brasão
+proprio, havia bordadas chammas de ouro, e no escudo, esmaltado da mesma
+côr rubra, e taxeado de ouro, lia-se a palavra «_Cuydado_» entre duas
+palmas, que enramavam um sol feito de espadas. Um malicioso notou que o
+desenho do escudo podia figurar a roda de navalhas de Santa Catharina, e
+que a esposa de Ayres Gonçalves trajava um corpete de tela, da côr
+favorita do mantenedor do torneio, adornado com um peitilho e fraldilhas
+de arminho; todos poderiam notar egualmente que, quando, ao fazer
+caracolar o seu ginete, o conde deu uma volta á roda do circo, antes de
+tomar das mãos do escudeiro que o seguia o elmo, a lança e o escudo,
+entre elle e a nobre castellã se cruzára um olhar expressivo; porém, o
+governador de Gaya mostrava-lhe um sorriso de agrado, e eram tão sabidos
+os recentes amores, que o tinham feito abandonar a côrte de seu tio, que
+a maledicencia achava-se um pouco embaraçada nos vôos.
+
+O mantenedor do campo foi saudado com tanto enthusiasmo ou mais que o
+trovador, e da mesma sorte foram acolhidos, em seguida, os
+contendedores, que se appresentaram: Vasco Martins de Mello, Gil
+Esteves, Affonso Darga, Henrique Fafes, um dos irmãos Alvalade, micer
+Manoel Pessanha, Affonso Henriques de Transtamara, e outros mancebos,
+todos tão adornados e vistosos, que á multidão iam-se-lhe os olhos
+nelles, não sabendo a qual dar primazia. Depois das ceremonias do
+costume e de um bafurdio, jogo em que cada um mostrava a destreza no
+arremesso das lanças, diversão tomada dos arabes, começou o combate.
+Vasco Martins, Henrique Fafes e Alvalade perderam a sella, não
+supportando o embate das lanças; micer Manoel, como mais affeito ao mar
+que á terra, ao dar a volta em um dos extremos da liça, para arremetter
+contra o seu antagonista, o fez de sorte, que, roçando pela barreira com
+o cavallo, o arremessou este para o outro lado, deixando-o menos
+maltractado que a uns dous burguezes, que lhe amacearam a queda com o
+corpo.
+
+As damas debruçavam-se curiosas na balaustrada do cadafalso, e mais
+curiosas do que as damas as donzellas de honra e as burguesas, para quem
+tudo aquillo era inteiramente novo e de fortes impressões, como hoje se
+diria. D. Catharina de Figueiredo, entre as do seu sexo, era a excepção,
+como Fernando entre os homens. Alguma cousa lhe prendia a attenção, e
+essa cousa ficava perto da bancada onde estava­ o mancebo. Seguindo a
+direcção dos olhares frequentes da bella dama, encontrar-­se-hiam as
+vistas do sobrinho do forçureiro, e ao primeiro relance dir-se-hia que
+se provocavam e comprehendiam. D. Catharina notara Fernando; notara nos
+olhos os reflexos do incendio ateado no coração, e illudira-­se, como se
+poderia illudir muita gente. Extranhar a audacia a principio, podia-­a
+extranhar; porém, mulher, havia de achar-lhe indulgencia, por virtuosa
+que fosse. Não o era. De sangue ardente, fogosa por temperamento
+pertencera, demais, á corte de Leonor Telles; era uma das damas com que
+a astuta rainha jogara, para formar partido, cativar a benevolencia dos
+cavalleiros a principio um pouco do parecer do povo que apedrejara os
+paços de apar S. Martinho, e não desdissera depois da escóla em que se
+criara. Nos seus galanteios não encontrara nunca um olhar de adoração
+como o que interceptava; Fernando Vasques fizera-lhe mesmo uma impressão
+mais que extraordinaria: fizera-lhe não só, alli, esquecer o conde; mas,
+depois, ainda mais, a distancia em que estava ella, dama de alta
+linhagem, de um simples burguez, um peão.
+
+A illustre dama não contava com Irene, que se occultava, córando, atraz
+da poltrona em que se sentava: o filho do mestre de Santiago não contava
+tambem com o sobrinho de Gonçalo Domingues; mas via claramente que as
+côres e divisas que tomara podiam ser taxadas de vaidade, presumpção e
+nada mais.
+
+Quando um novo contendor entrou na liça, estava tão preoccupado o nobre
+mantenedor, a procurar quem lhe podia roubar completamente as attenções,
+que não reparou que era esse o mais destro de todos, affeito aos jogos
+dos arabes de Granada, a medir-se com os cavalleiros da Africa ao
+serviço dos Alhamarides; que era seu proprio irmão, Affonso Henriques. O
+moço castelhano, passando junto do conde guiou tão destramente o
+cavallo, que lhe roçou pelas joelheiras, e dando um geito á lança, na
+carreira, desviou completamente a do seu antagonista e tocou com a sua
+no escudo de tal sorte, que o braço que o segurava, estendeu-se; a mão
+abriu-se e aquella arma defensiva foi ao chão. D. Pedro, ao ouvir os
+applausos levantados a seu irmão, e com a cabeça perdida pela distracção
+da sua dama, ergueu-se furioso nos estribos e arremetteu contra elle. A
+sua lança desfez-se desta vez em hastilhas no arnez do mancebo; porém
+este não saltou da sella, e em poucos instantes estava outra vez em
+frente do conde. A lucta tornou-se então um verdadeiro duello, e as
+regras do cartel apresentado no principio, consentindo tudo que fosse
+destresa, e mandando parar ao primeiro ferimento ou queda, pois que não
+era justo que grande mágoa enlutasse tão grande festejo, foram
+despresadas. O conde tinha sido desappontado nos seus galanteios como
+homem, e nos seus brios como cavalleiro. Ás lanças succedeu a espada; e
+as espadas como a lança quebraram, amolgando os elmos, disjuntando e
+torcendo peças dos braçaes. Tomaram um a maça, outro o machado, e
+furiosos correram um para outro.
+
+O tio de Nuno Alvares Pereira e Ayres Gonçalves de Figueiredo, estavam
+tomados de assombro para intervirem na lucta; os mestres de campo, que a
+principio haviam tentado manter com os arautos as condições do cartel,
+tinham-se, embaraçados, por noviços, retirado para junto das bancadas, e
+olhavam uns para os outros e para os juizes, procurando conselho, que
+não viam nos olhos de ninguem. Os espectadores, homens e mulheres, esses
+applaudiam os epysodios da lucta.
+
+A massa ressoou na armadura de Affonso Henriques, e a um rugido, um
+regougo seguiu-se um fio de sangue a correr por entre as fendas do
+gorjal sobre o arnez. Os contendores tinham-se esquecido de que eram
+irmãos. D. Pedro, sobretudo, estava cego. O brial do conde fez-­se em
+farrapos, enrodilhado pela machadinha; o ginete em que montava D.
+Affonso, ferido na cabeça, apesar de acobertado de ferro, cahiu na arena
+levando o cavalleiro. Os gritos da multidão, como nos circos romanos,
+eccoaram pelos montes visinhos.
+
+--A pé, a pé! gritaram alguns cavalleiros enthusiasmados, exigindo a
+egualdade de combate.
+
+Não foi preciso repetir a exigencia: ou melhor fôra ella escusada: o
+conde de Transtamara lançara-se abaixo do cavallo, e corria direito para
+o irmão, que, já erguido, com o machado no ar o esperava.
+
+--Cavalleiros, cavalleiros! exclamou Ruy Pereira ao mesmo tempo que
+Ayres Gonçalves, querendo sustar o combate.
+
+Os passavantes e o mestre de campo correram para a arena, porém quando
+chegaram junto dos irmãos, um delles, D. Pedro, soltáva um grito
+doloroso, e cahia com todo o peso do corpo, fazendo ranger e estallar
+todas as peças da armadura.
+
+O guante de ferro que lhe guarnecia a mão direita estava despedaçado, e
+despedaçado o pulso. O sangue tingiu a areia da liça.
+
+--Jesus! se ouviu do lado das damas e depois uma borborinha correu pela
+assemblea; pois a queda do sobrinho do rei de Castella, tomada como o
+baquear extremo, produzira no povo uma impressão desagradavel.
+
+Aquelle rumor e assombro fizeram cahir em si Affonso Henriques.
+
+Os momos que se seguiram ao torneio foram sem interesse para os
+espectadores entretidos a commentar o combate extraordinario dos dous
+nobres castelhanos. Se recrearam alguem foi a Fernando Vasques e a
+Irene, e pela duração; não por outra cousa.
+
+D. Catharina não havia tambem despregado os olhos do mancebo. Ao
+cavalleiro que a invocára no torneio, se concedera um olhar, fôra de
+curiosidade. Quando este tornára a si do desmaio em que a dôr e o sangue
+perdido o haviam feito cahir, passando junto delle, ao entrar para as
+andas em que viera de Gaya, teve algumas palavras; mas ainda, se não
+dirigidas, allusivas ao sobrinho de Gonçalo Domingues, que tratára de
+seguir Irene, apesar das exclamações do velho forçureiro, pouco amigo de
+se metter em apertos, lembrado do desembarque de Ruy Pereira.
+
+--Bello pagem se fizera daquelle mancebo... se fôra de linhagem! Não é
+certo, micer Guilherme? disse ella.
+
+--Bello pagem! disse o irlandez, que de certo devia ter achado a festa
+menos divertida que o recontro de Leça, e sem mesmo olhar para o joven
+que D. Catharina designava com a vista.
+
+Fernando, perto da linda filha de João Ramalho, mais formosa agora e
+esbelta com as galas que lhe consentira a castellã, embellecido o rosto
+pelo amor; Fernando não ousára erguer os olhos, e sustentára assim a
+illusão para a antiga donzella de Leonor Telles, que repetio:
+
+--Bello pagem!
+
+
+
+
+IX.
+
+Garifa.
+
+ Cade in tanto dolor, che si dispone
+ Allora allora di voler morire......
+
+ _Ariosto_--Orland. fur. cant. V.
+
+ Maravilhou a todos o spectaculo
+ Inesperado...
+ Que será? disse emfim um rumor surdo
+ De vozes dos que tremulos pararam...
+
+ _Garrett_--D. Branca--cant. I.
+
+
+--Para longe o agouro! Ora esta! dizia, horas depois do torneio, em
+Gaya, junto da fonte do rei Ramiro, a mulher de um galeote.
+
+--Pois que é, tia Dordia? interrogava outra.
+
+--Que ha de ser? Vindo ás vozes do lado do monte, ouvi fallar em
+affogado, e bem sabe que o meu Manoel anda por esses mares!
+
+--Para longe o agouro, repetiu a outra mulher. Isto de agouros nem
+sempre são certos. Fé em Deus, que elle fará as cousas pelo melhor.
+
+--Fé em Deus tenho eu; mas bem mau é que em noite de S. João se ouçam
+cousas destas! A velha Mafalda, o anno passado, ouviu, ao passar ao arco
+de S. Domingos, fallar em um justiçado, e bem sabe o que aconteceu ao
+filho.
+
+--São signaes que cada um traz ao nascer. Mas ainda não é meia-noite,
+proseguiu a mulher, querendo consolar a senhora Dordia da crença ainda
+hoje existente junto da foz do Douro, de que, quando, vespera de S.
+João, ao cahir da meia-noite, se procura um prognostico, ou noticias da
+sorte de pessoa ausente, as dão as primeiras palavras de qualquer
+conversa.
+
+--Deus a ouça, visinha... Deus a ouça; mas parece-me que já será: o
+sete-estrello vai alto!
+
+--Não é, não. Ólá, João Canhoto, meia-noite será?
+
+--Não é, tia Luiza. Quer ir saltar as fogueiras?
+
+--Eu não: forças para tal Deus as déra. O meu tempo já passou. Quando
+rapariga!...
+
+--Então deitou ovo em escudella?
+
+--Para que?
+
+--A vêr se lhe sahe arco de egreja, respondeu o homem, que dava pelo
+nome de João Canhoto, rindo.
+
+--A mim agora só se me sahir tumba. Isso é bom para cachopas.
+
+--Vamos, vamos, tia Luiza; ainda está féra, rija como um virote, e um
+noivo agora era mel pelos beiços.
+
+--Seu bargante! exclamou a velha, mostrando no rosto que a mofa do
+galeote não era inteiramente recebida como tal.
+
+-­­-Então, ainda não é meia-­noite? tornou a perguntar a senhora Dordia,
+bastante impressionada pelo agouro tomado, para delle tirar o sentido,
+não obstante os gracejos dirigidos pelo galeote á sua amiga.
+
+--Qual meia-noite! Ao cantar do gallo toda a chusma, que anda por ahi,
+ha de vir em descante. É uma festa de estrondo cá da gente. Verá se lá
+os da cidade nos levam as lampas! Só violas é uma meia duzia, e os
+rapazes que as tangem são mestres acabados. É de se abrir a bocca. E o
+Safio? Se ha por ahi quem saiba deitar uma cantiga como elle, que eu
+beba agua toda a minha vida! O Safio vem no rancho.
+
+--Então, temos grande descante? interrogou uma outra mulher.
+
+--É esperar para ver.
+
+--O sitio não é lá dos melhores.
+
+--Dizem que por aqui...
+
+--O que?
+
+--Que em noite de S. João apparece na fonte uma moura encantada... Ora
+uma moura de não sei que rei...
+
+--Bôa, bôa! exclamou o galeote. As mouras não se vem metter assim com um
+homem do mar, por mais tresloucadas que andem. Se ella quizesse bailar
+na festa...
+
+--Credo! Não diga isso, que o póde ella ouvir! exclamaram duas ou tres
+mulheres ao mesmo tempo.
+
+­--Ai, senhor João, bem se vê que não é da terra, e não sabe que é certo
+o apparecer ás vezes ahi a maldicta. Minha avó, que Deus haja, quando
+era rapariga, viu-a, disse a tia Luiza.
+
+--E vi-a eu, vai em tres annos, com estes que a terra ha de comer,
+accudiu a tia Dordia.
+
+--E eu, disse outra.
+
+--E eu, exclamaram em seguida mais cinco ou seis.
+
+--Então, como é a moura?
+
+--Ora como ha de ser a moura? É uma figura branca, toda branca, muito
+branca, com os cabelos, nem fios de ouro, soltos pelas costas; e
+apparece a bailar na agua de um para o outro lado...
+
+--Hoje quebra-se-lhe o encanto, atalhou o galeote, que era para o seu
+tempo um grande incredulo ouvindo um desfinar de instrumentos do lado da
+povoação.
+
+--Alli vem a festa! Lenha para ahi! exclamou em seguida, dirigindo-se a
+um rancho de creanças de ambos os sexos, que saltavam por cima do
+brazido deixado pela fogueira.
+
+A festa annunciada não tardou com effeito a apparecer. Uma grande porção
+de galeotes, petintaes e espadeleiros de Gaya e Villa Nova arranhavam em
+violas, tocavam tamboril, ou cantavam, fazendo coro, a canção entoada
+por um rapaz alto e de ar jovial, que era nem mais nem menos o Safio
+apregoado por João Canhoto. Para se dizer toda a verdade, deve-se
+accrescentar que a desafinação dos instrumentos não destoava das vozes,
+um pouco roucas, como as de todos os embarcadiços, e demais
+ressentindo-se de brodio feito em tasca.
+
+Uma voz cantava:
+
+ Em noite de S. João
+ Até no mar traiçoeiro
+ Accendem anjos ou fadas
+ Em cada vaga um luzeiro.
+
+ E, velas de seda ao vento,
+ Passa a galé encantada;
+ Remos de ouro batem n'agua
+ Ao som de branda toada.
+
+ No ceo bailam as estrellas
+ Bailam as mouras nas fontes...
+ ..............................
+
+--Jesus! exclamou uma mulher, pallida, com os olhos espantados,
+lançando-se a tremer no meio da festa.
+
+As violas calaram-se, o cantor, que desta vez dizia versos, que não eram
+de sua lavra; os coros, que repetiam no fim de cada estrophe um
+estribilho maritimo, calaram-se tambem; os rostos tornaram-se de
+finados, como se tornara o da mulher. Esta, com o braço estendido,
+designava a fonte de D. Ramiro.
+
+Se vós, leitora, que talvez por mais de uma vez apregoastes que não
+credes em muita cousa natural, quanto mais nas que o não são, visseis o
+que Safio e os festeiros de Gaya estavam vendo, a côr do rosto vos
+fugira, como a elles lhes fugiu, e talvez, como a vossa organisação não
+é a de qualquer petintal, um desmaio vos tirasse de sustos.
+
+A lua no extremo da sua carreira, redonda, mergulhava no mar, marcando
+nas aguas uma esteira tremula, de um brilho duvidoso. O disco, meio
+embaciado pelos vapores do occeano, podia servir para uma imagem
+funebre: dir-se-hia que era o espectro do sol. Na outra margem, para o
+lado da cidade, por entre fogos vermelhos, appareciam e desappareciam
+figuras negras, como possuidas de uma vertigem, de frenesi, e a aragem
+trazia nas azas humidas pelo orvalho, um concerto de rizadas em todas as
+notas possiveis da escala, e uma discordancia de instrumen­tos, como em
+ronda de feiticeiras. O rosto tornava-o negro uma immensa fogueira feita
+na praia. Os reflexos da luz davam ao rosto dos marinheiros de Gaya,
+tomados de assombro, um todo phantastico, assustador. Toda esta scena
+momentos antes era alegre. Uma só cousa bastára para a transtornar.
+Entre o fundo escuro em que se mergulhava a margem opposta, em
+consequencia da fogueira que fizera avivar João Canhoto, e o lanço do
+rio tocado pelos derradeiros raios da lua, junto da fonte, á beira da
+agua, via-se uma figura branca, indefinida em tudo que não era o
+contorno, movel, conforme as oscillações e intensidade dos fogos,
+accesos que parecia, mais do que a pousar na terra, suspensa do ar,
+baloiçada por fio invisivel.
+
+Aquella apparição, como transtornára o aspecto da scena, como déra aos
+cantos e aos risos um tom sobrenatural, tornára immoveis quasi os
+collegas de Safio. Se não fosse o movimento que faziam para se
+aconchegar uns aos outros, dir­-se-hia que ella os havia petrificado. O
+suor innundara-lhes a fronte, e o frio corria-lhes pela espinha dorsal.
+
+A campa do convento de Corpus-Christi dobrou compassada marcando a
+meia-noite, e ao mesmo tempo quasi uma nota plangente vibrou no ar.
+Marinheiros, que tinham affrontado a tempestade com o coração sereno,
+que nas galés reaes ouviram sibilar os pelouros, sentiram perto do
+craneo o embate do machado no machado tremeram como as folhas dos
+alamos. Das mulheres nem fallamos. Todas as orações, todas as fórmas de
+esconjuros se lhes embaralhavam na memoria, e os lábios negavam-se a
+pronuncial-as.
+
+--Meia-noite, tartamudeou João Canhoto, momentos antes emprazador de
+phantasmas, e fazendo ao soar a ultima badalada o signal da cruz ás
+avessas.
+
+--Valham-me os santos e santas do céu!
+
+--Jesus! bento nome de Jesus!
+
+O silencio que estas exclamações interrompiam era tal que se ouvia o
+respirar não muito desembaraçado daquella boa gente, e o terror tambem
+era tamanho, que as passadas e mesmo a apparição de um homem junto do
+rancho dos festeiros não foi por elles notada. Daquelle pasmo pasmou o
+recem-chegado, mas não por muito tempo.
+
+--Ui, Canhoto, exclamou elle; que mau olhado vos deu, e em toda essa
+gente, que tendes cara de quem viu o trêpo em encruzilhada?!
+
+--Jesus! bento nome de Jesus! repetiram as mulheres, deitando a correr
+para o lado da povoação, como se a presença daquelle homem quebrára o
+encanto de terror em que estavam.
+
+--Ui! tornou elle, que demonio se lhes metteu no corpo?! Nem bando de
+cotovias que farejaram besta armada. Eh! Canhoto, que feio esgar que
+estás a fazer! Estás mudo, homem? Aquelles pergaminhos velhos de saias
+que fugiram a grasnar eram bruxas? Em noite de S. João...
+
+João Bispo, pois era o nosso conhecido o recem-chegado calou-se, e
+recuou espantado, fitando um gesto dos galeotes de Gaya a apparição
+phantastica que os atemorisára, e quasi ao mesmo tempo dous gritos se
+confundiram com o baque de um corpo no rio. O phantasma branco, a moura
+encantada durante a enfiada de perguntas de João Bispo, approximara-se
+da margem do Douro, erguera os braços ao céo, como em supplica, e
+precipitara-se na corrente. Durante este movimento o bésteiro
+reconhecera naquelle vulto um ente querido, e ao grito, soltado como em
+adeus extremo ao mundo, juntara-se outro de angustia tambem. O pasmo
+produzido pelo reconhecimento feito em taes circumstancias não foi
+longo, porém; ao baque na agua do corpo da moura seguiu-se outro, o do
+bésteiro.
+
+--João! João! exclamaram alguns galeotes perplexos; sem saber como
+traduzir na sua intelligencia o passo do condiscipulo de Fernando.
+
+João não ouviu sequer aquelles gritos.
+
+--A moura saltou ao rio! disse um espadeleiro, que se attrevera a
+procurar com a vista a causa do terror geral.
+
+--Foi para casa de _Brazabu_! redarguiram dous ou tres, tomando de um
+folego o ar necessario para cem homens, e limpando com as costas da mão
+o suor frio que lhe banhava o rosto.
+
+--João! João! tornaram os que mais perto estavam da praia.
+
+--Arrastou-o a maldita. Não viram os olhos que ella deitava. Eram dous
+luzeiros.
+
+--Guay delle! Aquillo não era moura; era o tinhoso, resmungou o
+espadeleiro, fazendo o signal da cruz, o vigessimo talvez nessa noite.
+
+--A modo que sim, tio Vasco. Cheira aqui a não sei que.
+
+--Olhem! olhem! disse com voz abafada outro marinheiro, que se attrevera
+a approximar-se da margem, e de novo recuára atterrado. Olhem! olhem!
+Não veem na agua aquelle marulhar? A moura filou o bésteiro.
+
+--A Virgem santa seja com elle! murmuraram tres ou quatro a um tempo,
+dando o nosso homem como perdido de corpo e alma.
+
+No rio, mesmo na esteira que prateava a lua, com effeito apparecia e
+desapparecia, para de novo surgir á flor d'agua, um vulto, a bracejar.
+De uma das vezes não veio só. O vestido da moura alvejou, tocado por um
+raio de luz, e a crença, dos marinheiros, de que João Bispo era
+arrastado por um espirito ou pelo demonio, mais se confirmou, levando-os
+a novos esconjuros. O bésteiro sobraçando o corpo e segurando com os
+dentes as vestes da infeliz, embaraçado nos movimentos, luctava com a
+corrente afim de alcançar a margem.
+
+--A mim! a mim! gritou elle de uma das vezes em que veio ao lume d'agua;
+porém os marinheiros olhando espantados uns para os outros não se
+moveram em seu auxilio.
+
+--S. Pedro seja com sua alma, murmurou o velho Vasco, recuando ao passo
+que o bésteiro se approximava da margem, um pouco escarpada naquelle
+sitio e então mais do que hoje. Que se apegue com a Virgem, não com a
+gente, que nada póde com encantos.
+
+--Oh de terra! soccorro, por Deus, que se me fina esta desgraçada!
+tornou João Bispo com uma inflexão de voz, que denotava o desespero que
+ia naquelle coração.
+
+Safio e Canhoto, por um impulso sobre o qual nem tempo tiveram de
+reflexionar, correram á praia. Safio approximou-se da rocha junto da
+qual o bésteiro se debatia, segurando sempre a mulher de branco.
+
+--Uma mão a esta pobre, que já mal respira.
+
+­--É uma rapariga! exclamaram os dous marinheiros, estendendo os braços
+a segurar aquella que, momentos antes, tomavam todos por um ente
+sobrenatural.
+
+Os petintaes, galeotes e mais festeiros pouco a pouco se tinham
+approximado, ouvida esta exclamação, e vendo que se não tratava de mais
+do que de arrancar á morte uma creatura, o exemplo de Safio e Canhoto
+foi seguido, e, instantes depois, João Bispo a depositava em terra a sua
+preciosa carga.
+
+De novo reinou o silencio. Os marinheiros atordoados com as sensações
+diversas experimentadas em tão curto espaço de tempo, formaram roda ao
+corpo da mulher, que inane, desmaiada haviam conduzido para junto de uma
+fogueira, e deitado sobre um monte de trevo, alfombra improvisada das
+moças da terra, dispersas pouco havia. João Bispo com o olhar fixo,
+espantado, as mãos pendentes, os lábios entreabertos contemplava o rosto
+da moura, pois moura era a desfallecida. Parecia ter-se-­lhe apagado
+completamente da memoria o que acabava de se passar: o corpo alli
+prostrado era uma surpresa. De repente deu um grito; lançou-se de
+joelhos junto da moura, tomou-lhe a cabeça no regaço, e palpou-lhe as
+faces e o seio, a vêr se encontrava o calor da vida, e, curvando-se,
+entre carinhos, como se com elles a quizesse acordar daquelle lethargo,
+exclamou:
+
+--Garifa! Garifa!
+
+Garifa não respondeu. Os lábios contrahidos, lividos, perdido o fogo que
+animava aquelle rosto moreno, quando, pelas grandes festas, nas danças e
+folias, com que as da sua raça contribuiam, fazia girar sobre a cabeça o
+adufe, ou agitava os cascaveis que lhe adornavam o curto saio; os olhos
+cerrados; as longas cilias cheias de gotas d'agua, como se a morte a
+surprehendesse entre prantos, nem um suspiro desprendia; nem um
+movimento, por leve que fosse, se lhe notava.
+
+--Morta! tornou a meia-voz, atterrado, o bésteiro, tirando do cinto o
+punhal, e chegando-lhe a folha aos lábios depois de a ter limpado.
+
+Um raio de luz, um raio de alegria passou pelos olhos do magoado amante,
+quando o fraco alento da moça formou uma mancha na folha luzidia.
+
+--Garifa! Garifa! tornou elle a exclamar.
+
+--É viral-a de cabeça para baixo! resmungou o velho Vasco; é a mésinha
+dos afogados.
+
+--Garifa... minha pobre Garifa! murmurava o bésteiro.
+
+--Safio, chega-lhe vinho; um trago não lhe fará mal, gritou João
+Canhoto; e em seguida, tomando o pichel que o seu companheiro trazia á
+cinta, derramou algumas gotas sobre os lábios da desfallecida moça, ao
+passo que este resmungava, vendo correr o licôr a que não parecia
+desaffeiçoado:
+
+--Boa cera com ruins defuntos!
+
+João Bispo lançou-­lhe um olhar terrivel, e fez um movimento, como se
+tentasse desafogar em cólera contra o imprudente marinheiro todo o peso
+do coração, e estallar, quando Garifa moveu os lábios fazendo um gesto
+de repugnancia.
+
+--Basta, Canhoto, basta! acudiu Safio, que não reparara no bésteiro;
+vais fazer perder a alma á ra­pariga. No céu dos mouros... que é o
+inferno, accrescentou por entre dentes... não entra quem prova do sumo
+da uva, ouvi dizer.
+
+O bésteiro arredára Canhoto, e, com um braço debruçando-se sobre o corpo
+da sua namorada, tomava-lhe as mãos entre as suas, quando ella abriu os
+olhos, murmurou algumas palavras inintelligiveis, e tornou a fechál-os,
+soltando um suspiro.
+
+--Garifa! Garifa! tornou a exclamar o amigo de Fernando.
+
+--Quem me chama? perguntou a moura, como se acordára de um somno, com
+voz fraca, descerrando de novo as palpebras, e fazendo um esforço para
+se erguer.
+
+--Eu, eu, Garifa! acudiu João Bispo cheio da alegria.
+
+--Porque me não deixaram morrer? murmurou a filha de Humeia cobrindo o
+rosto com as mãos.
+
+--Morrer, Garifa?! E que querias depois que eu fizesse no mundo!
+exclamou o mancebo affastando-lhe­ com brandura as mãos do rosto. Que
+faria eu? proseguio... Morrer... morrer tambem!
+
+A moura meneou a cabeça; fixou a vista, como admirada no besteiro;
+estremeceu toda, e dos olhos rebentou-lhe o pranto ao mesmo tempo que os
+soluços do peito. João Bispo, que, em alguns minutos apenas
+experimentara os mais contrariados affectos, a extrema dôr e a alegria,
+redobrou os seus carinhos, as palavras affectuosas; mas as lagrimas
+continuavam a correr em fio dos olhos de Garifa.
+
+--Garifa, minha Garifa, porque choras? Deixa esse pranto com que me
+amofinas. Eu estou aqui, Garifa, e ninguem nos ha de agora separar. Tu
+cumpres a tua promessa... e teu pae, que não espera já vêr-te...
+
+--Oh, meu pae, exclamou a moça interrompendo-o, e de novo cobrindo as
+faces; com que rosto lhe poderei eu apparecer?!...
+
+--Elle perdoará tudo, Garifa; esquecerá tudo... e que não perdôe, eu...
+
+--Nem elle, nem tu; João... Oh! porque me não deixaram morrer!
+
+--Eu? Garifa? Eu não te entendo... Que mal me fizestes? porque te hei de
+malquerer?...
+
+João Bispo estacou, e de um salto ficou de pé. O que se passara
+causara-lhe um violento abalo, para dar logar a reflexões, e
+esquecera-se de que a mulher, que assim tentava pôr termo á vida, tinha,
+duas semanas havia, desapparecido; esquecera­-se do que lhe dissera o
+petintal e das suspeitas que o levaram ao ­ castello de Gaya. Tudo,
+porém, resumido em uma idea unica acabára de lhe passar pela mente.
+
+--Rausada?! exclamou, abaixando-se a arredar-­lhe de novo as mãos das
+faces, procurando vêr se dos olhos mais depressa do que dos lábios
+obtinha uma resposta.
+
+A moça só redarguiu:
+
+--Porque me trouxeram á vida... porque?
+
+--Rausada! tornou João, passando uma das mãos pela fronte, em quanto com
+a outra apertava o cabo do punhal. O nome desse homem, e pela hostia
+consagrada juro que dentro em dias o repetirão em resa de finados.
+Falla, Garifa: o nome desse homem? Vilão ou cavalleiro que seja, eu me
+pagarei em sangue de quanto elle me roubou. Garifa, Garifa!
+
+Soluços e lagrimas foi a resposta que obteve da filha de Humeia.
+
+--Garifa, não respondes? Dize... dize que não te pozeram mão, dize,
+proseguiu o mancebo fóra de si; livra-me desta idea que me faz perder a
+cabeça; livra-me della ou aponta-me um homem em quem desafogue todo o
+desespero que sinto. Tu não me atraiçoaste, não; não era possivel...
+Empregaram a força; empregarei a força, e hei-de esmagar quem quer que
+seja o rausador. Garifa, não respondes? Uma palavra!
+
+--Que queres que te diga, João? Esmagaram o nosso amor, tornando-­me
+indigna de ti: a filha de Humeia não póde mais apparecer com a face
+descoberta!
+
+--E o refece, o maldito?! gritou o bésteiro apertando com violencia os
+pulsos da moura.
+
+--A aguia vôa tão alto que não a alcança a garrocha, murmurou meneando a
+cabeça, depois de alguns instantes de silencio, a namorada de João
+Bispo.
+
+--Quem foi, Garifa, quem foi?
+
+--Deixa-me, João.
+
+--O nome desse homem!... o nome desse homem!
+
+--Não, não posso.
+
+--Não pódes?...
+
+--Não, não posso: dizer-te o nome era fazer-te açoutar ámanhã no
+pelourinho... era matar-te...
+
+--Ayres Gonçalves... Henrique Fafes!... gritou João Bispo.
+
+--Não... não m'o perguntes...
+
+--Qual delles, Garifa; qual delles? Affonso Darga?
+
+--Ninguem!
+
+--Ninguem?! O nome desse homem, ou tu és tão vil como elle!
+
+--Serei, João... sou. A moura do Olival, que te queria tanto como á luz
+dos olhos, morreu no dia em que lhe pozeram uma mordaça na bocca e
+ataram os pulsos: atiraram depois o corpo ao monturo... como de moura
+que era. Garifa morreu, João: o que aqui está é uma desgraçada corrida
+por palafreneiros... a quem a lançaram...
+
+--Calai-vos, calai-vos! exclamou o moço bésteiro, pondo a mão na bocca
+da sua namorada. Não póde ser... é impossivel!
+
+--Antes fôra!... murmurou Garifa.
+
+--Em má hora vim ao mundo!
+
+João Bispo calou-se e deixou pender a cabeça sobre o peito. Quando de
+novo a ergueu, as palpebras estavam vermelhas, mas seccas; os olhos
+vagavam-lhe incertos; o rosto estava pállido, e uma contracção nervosa
+dos musculos parecia emagrecer-lhe, avelhentar as feições. O amigo de
+Fernando Vasques, occultava sob as vestes grosseiras um grande coração,
+cheio de fogo, de energia, e toda essa energia empregára-a no amor da
+filha de Humeia. A moura do Olival era tambem a unica mulher que topára
+no seu trilho capaz de não esfriar essa paixão. Não prendia, não
+captivava sómente com a bellesa do corpo; captivava com os dotes do
+coração, da intelligencia. Garifa tivera na infancia faixas bem
+superiores ás telas grosseiras dos vestidos que trajava no Porto. Para
+corresponder á exaltação, que a vida ociosa e ao mesmo tempo cheia de
+sobresaltos e de incertesas produzia na mente do escolar de S. Domingos,
+era necessaria a exaltação do sangue arabe, fervente nas veias de
+Garifa. É facil de avaliar qual o abalo que o mancebo recebeu no caes de
+Gaya. Aquella desventura, receara-a, temera-a; mas não se afizera á idem
+de que se realisásse; achára sempre a providencia a estender a mão á sua
+namorada, a protegel-a. Na maré mais negra seguindo-a com o pensamento,
+depois que ella desapparecera do Olival vira-a morta; mas se encontrasse
+no Douro o seu cadaver, a mágoa­ não fôra tamanha como a que sentia.
+
+Mesteiraes e marinheiros fitavam commovidos os dous amantes, que se
+conservavam mudos affastando as vistas um do outro: João de pé, sombrio,
+pensativo; Garifa de joelhos, lacrimosa, tremulla, branca como a roupa
+que vestia por baixo do roto gabão, que um marinheiro lhe lançara aos
+hombros.
+
+--Rausada! murmurou passados momentos o mancebo, sacudindo a cabeça,
+como se assim podesse repellir aquella ideia.
+
+Depois, estendendo a mão á pobre moura, ajuntou:
+
+--Vem, Garifa; já não sou tambem o mesmo que era. Vem commigo.
+
+A moça, levada pela solemnidade da voz e do gesto do mancebo, e ajudada
+por elle, levantou-­se machinalmente, e com passos mal seguros,
+seguiu-o, perdendo-se os dois na escuridão da estreita rua que guiava ao
+povoado.
+
+Os marinheiros ficaram olhando uns para os outros.
+
+--Pobre rapaz! murmurou um delles.
+
+--A rapariga era a que chegou a noite passada, quasi nua e toda magoada
+á taberna do tio Pero, e que elle abrigou por caridade, e livrou de dous
+mal encarados que a seguiam.
+
+--Deu-me os seus ares della.
+
+--Era a mesma, sem tirar nem pôr.
+
+--Mal a puzeram em terra, conheci-a: era a moura do Olival.
+
+--Coitado do Bispo, resmungou o velho Vasco. Bem enfeitiçado o traz a
+tal moura. Estas condemnadas teem taes artes, que, se vos lançam olhado,
+fica-se perdido de todo. Teem feitiços para tudo. Um rapaz conheci eu no
+meu tempo, que se myrrou de todo, e morreu por causa de uma destas
+maldictas. Em casa da rapariga, uma moura, e linda até alli, encontraram
+uma figura de cera feita a imagem d'elle com os olhos pregados, e um
+alfinete enterrado no sitio do coração.
+
+--Qual feitiço, nem meio feitiço! resmungou João Canhoto.
+
+--Não acreditas! accudiu outro mesteiral. As mouras todas sabem de
+feitiçaria, e quando querem querem que um homem lhes queira, a ellas ou
+a quem isso lhe pede, apanham um sapo, e cozem-lhe os olhos.
+
+--Não digo que se não façam desses maleficios; mas a rapariga do
+Bispo...
+
+--Homem, é moura e basta.
+
+--Moura ou christã, se enfeitiçava, era com os olhos. Não precisava de
+outra cousa, accudiu João Canhoto. A bôa gente vi ficar de bocca aberta
+para ella, este anno ainda na procissão de Corpus, e depois não tem sido
+nem a um, nem a dous senhores de alta linhagem que tenho visto seguil-a,
+todos requebrados. A um dos que está no castello ainda ha semanas
+encontrei em seu alcance pela aljama, era já noite cahida. Não disse
+nada ao Bispo, por que elle faria alguma!
+
+--Feitiços, feitiços, para nos perder a alma, resmungou o velho.
+
+--Ora, mestre Vasco! Tambem enfeitiçou ella a quem o poz naquelle
+estado? A pobre, que se queria finar por se vêr assim, é porque não foi
+por sua vontade que a tiraram de casa. Christãs conheço eu, como as
+palmas das mãos, que não a valem. Se mestre Vasco estivesse mais novo, e
+ella lhe dissesse palavras de bem querer...
+
+--Credo! era um peccado!
+
+--Deus me perdôe; mas eu não o tenho por peccado; se o é, muita gente
+pecca.
+
+João Canhoto não deixava de dizer a verdade: as mouras por aquelles
+tempos roubavam ás christãs bastantes corações, tanto de nobres, como de
+peões, o que as obrigava a crêr em poderes occultos, para não se
+confessarem derrotadas nos encantos. Nos paços dos cavalheiros e
+ricos-homens, muita descendente de Agar, forjava dos ferros que lhes
+lançára a escravidão cadeias para os seus senhores: nas cidades as mais
+jovens e formosas eram como Garifa forçadas quasi a mostrarem as suas
+graças em publico nas grandes solemnidades: eram as bailarinas da
+epocha, e as bailarinas teem feito dançar muita cabeça desde Herodiade
+até aos nossos dias. Os escrupulos do velho Vasco não eram partilhados
+senão pelos que se viam no seu estado. Os legisladores, entretendo-se a
+impedir relações ou ligações entre as duas raças com penas mais ou menos
+sevéras, não quizeram, ao que parece, mais do que deixar prova de que
+ellas eram um pouco frequentes, e que já então se faziam leis para
+ficarem letra morta, salva uma ou outra excepção feita com algum pobre
+de Christo. Nos principios do seculo XVI ainda apparecem trovadores,
+que, apregoando o seu affecto por descendentes de Azharat e de Shobeia,
+não nos deixam ficar por mentiroso.
+
+Para crédito das nossas avós christãs, attribuamos a maior recato
+dellas, as conquistas das moças do Islam. O leitor, comtudo, não fique
+pensando que estas não tinham sobre a virtude, sobre o pudor e sobre o
+amor ideas identicas ás professadas por aquellas. Garifa não era uma
+excepção unica feita para João Bispo: as ideas com que hoje são creadas
+as mulheres no Oriente, não eram as das mulheres arabes de Hespanha. Com
+pequenas excepções, o amor no seculo XIV tinha em Granada as mesmas leis
+que na côrte da condessa de Champagne.
+
+O leitor poderá agora dizer-nos o mesmo que Safio a Vasco e João
+Canhoto:
+
+--Deixemo-nos dessas cousas.
+
+O marinheiro accrescentou:
+
+--Vamos: a noite de S. João é para descantes e folias! Venham as moças
+para o terreiro. Eia! mãos á obra: avivar as fogueiras e tanger as
+violas, que as cachopas acudirão! Ehuh! Mafalda! Joanna!
+
+Pouco depois ninguem diria que na praia da velha Cale se tinha passado
+uma scena de lagrimas; que uma pobre rapariga tentára pôr termo aos seus
+dias; que um coração se despedaçára. Um bando de raparigas, de
+marinheiros e mesteiraes, dando as mãos uns aos outros, dançavam, ou
+melhor, giravam, formando circulo, em volta de uma grande fogueira, e
+entoavam todos esta cantiga, que os musicos da festa faziam por
+acompanhar:
+
+ «Todas as hervas são bentas
+ Em noite de S. João
+ Só o trevo, coitadinho!
+ Anda a rasto pelo chão.»
+
+E o sol, nascendo, ainda os encontrava no mesmo local.
+
+
+
+
+X.
+
+Uma idea.
+
+ Não falta com razões quem desconcerte
+ Da opinião de todos na vontade.
+ Em quem o esforço antigo se converte
+ Em desusada e má deslealdade.
+
+ Camões. _Lusiad._ Cant. IV.
+
+
+Os burguezes do Porto tinham desempenhado a sua palavra: os navios
+promettidos estavam a nado nos aguas do Douro, promptos para dar á véla.
+Os cavalleiros e ricos-­homens nem todos procediam do mesmo modo; o fogo
+do amor da patria era em alguns, tibio, em outros nullo. Ayres Gonçalves
+de Figueiredo era deste numero. Approveitara os conselhos de sua mulher,
+e fazia todo o possivel por aguardar que a situação se definisse para
+entrar com segurança na contenda. Martim Gil, mandado pelos portuenses,
+ao conde D. Gonçalo, delle recebera uma resposta favoravel, depois de
+feita, entende-se, a concessão das terras da rainha D. Leonor a sua
+mercê, e a das de Lordello e Bouças seu filho D. Martinho, fóra outras
+miudesas, taes como dinheiro e peças de panno; porém o conde adiava, sob
+pretexto de aprestes, a sua partida, quanto lhe era possivel. O Mestre
+lembrava continuamente os apuros em que estava a sua boa cidade de
+Lisboa; mas os nossos homens não se queriam metter tambem nelles, sem a
+certesa de bom resultado. Ayres Gonçalves tinha os olhos no conde de
+Neiva; Affonso Darga e outros cavalleiros aguardavam a resolução do
+alcaide de Gaya. Ruy Pereira, no entanto, enfastiara-se de tanta
+delonga, e tendo Alvaro da Veiga, Luiz Giraldes e Domingos Pires
+lembrado que se enviasse a armada receber o conde á Figueira, o alvitre
+fôra acceite, com grande amofinação­ dos Fabios politicos, que trataram
+logo de procurar embaraços á sua realisação.
+
+Uma circumstancia os favoreceu.
+
+Quando, pouco depois do S. João, a municipalidade tratava não só de
+abastecer as galés, mas até de enviar alguns viveres para os sitiados,
+como fôra requerido, alguns companheiros de Fernando Affonso de Zamora,
+deslembrados da lição dada em Santo Thyrso, ou outros aventureiros
+similhantes appareceram nas visinhanças da cidade. Mal a noticia se
+espalhára, frei Garcia fora ter com Pedro Choca, e causára nas tercenas
+um alvoroço extraordinario, pintando as cousas o mais feias possivel.
+Este alvoroço, graças a outros individuos, se tornou contagioso; o temor
+calou nos animos fracos, e na tarde desse mesmo dia nas ruas, terreiros
+e praças lamentações não faltavam.
+
+--Eis de novo esses malditos gallegos! más terçães os colham! dizia um
+mercador. Não nos deixam tomar folego os hereges, e em bem mau estado
+vão já os negocios. O tempo vai bom para espadeiros; que os outros não
+veem pogea. Tudo são guerras, agora, e desordens. Dantes não era assim.
+No tempo do rei D. Pedro!... suspirou o bom homem, e concluiu meneando a
+cabeça, e fitando os olhos no tecto da loja.
+
+Este gesto queria dizer que no tempo do pae do Defensor a paz florescia
+na terra, e era, talvez, copiado de outro identico, feito pelo senhor
+seu progenitor quando o amante de Ignez de Castro talava o Douro e o
+Minho, e mesmo de algum feito por seu avô, affectado pelas desavenças de
+D. Diniz com o pae do rei D. Pedro.
+
+--Não foram bem sangrados, e veem por mais esses castelhanos ou
+acastelhanados, redarguia um visinho; pois terão o seu escote, como o
+teve o de Zamora e o arcebispo.
+
+--Mal haja quem mal faz!
+
+--Ruy Pereira, Ayres Gonçalves, ou qualquer os receberão como merecem.
+
+--Assim creio; e por isso, como me dizia ha pouco mestre Lourenço, é que
+não acho muito acertado mandarem para Lisboa quanta bôa lança ha por
+ahi. É dever acudir ao proximo; mas em primeiro logar estão os da casa.
+
+Quasi todos os dialogos, travados em diversos pontos appresentavam,
+espremidos, o mesmo succo que o ­do bom mercador quando pelo lado das
+Hortas entrava uma grande manada de bois, e rebanhos de ovelhas e
+cabras, destinados ao abastecimento das galés. Alguns ociosos,
+encontrando-se com a manada fizera-­lhe cortejo; alguns mesteiraes,
+vendo os ociosos, pousaram a ferramenta e engrossaram-no; os garotos,
+que possuem o faro dos grandes ajuntamentos, conhecendo que se formava
+um, surdiram de todos os bêcos, para o completar. Ao chegar o gado a S.
+Domingos, caminho das tercenas, onde deviam os carniceiros preparar as
+carnes, a procissão era solemne pelo numero. A ideia que presidia a
+todas as lamentações ia ser formulada de outra sorte: frei Garcia e
+alguns outros apaniguados do alcaide, achavam-se entre as turbas; Pedro
+Choca, desembocára do lado da Esnoga, sahido de uma taberna, onde, junto
+com individuos que deviam estar debaixo da jurisdição de Tello Rabaldo,
+tinha enxugado algumas medidas de vinho, e não era pelo menos destituido
+da manha necessaria para certas empresas.
+
+Se o concurso era grande, tambem era ruidoso. Os conductores da manada
+gritavam, vendo que uma ovelha tresmalhava, picada por algum rapaz
+travesso, ou um boi estacava, atemorisado por negaças; os homens d'armas
+da escolta praguejavam no meio de tantos embaraços; aqui uma mulher
+queixava-se de que a pizavam; além alguns homens altercavam com os
+bésteiros, que os repelliam do transito; mais longe chorava uma creança.
+Os garotos e os vádios praguejavam, gritavam, riam-­se, assobiavam,
+cantavam e imitavam o balido de ovelhas e cabras, e o mugido dos bois,
+como se os animaes se recusassem a tomar parte naquelle concerto.
+
+Entrando no terreiro a multidão, crescera a algazarra. Uma chusma de
+homens cobertos de andrajos, bem similhante á que estacionava no Olival,
+no dia da chegada da mensagem, correra para as boccas das ruas que iam
+dar ao rio, obstruindo-as completamente. Quando os guardas dos rebanhos
+quizeram abrir caminho para as tercenas, os vadios demonstraram a sua má
+vontade com apodos a que responderam os acontiados da behetria com os
+contos das azevans, ou as béstas, manejadas em ar de clava. Nesta
+destribuição de pancadas foram, como succede muita vez em casos taes,
+contemplados bastantes innocentes. Um bésteiro, querendo chegar a um
+velhaco, feriu no rosto uma mulher, levada para o centro do motim pelas
+ondas de povo. O sangue, correndo pelas faces da pobre creatura,
+indignou alguns circumstantes, que só a curiosidade alli trouxera.
+
+--Fazei praça, exclamou d'entre elles um burguez, fazei praça, mas com
+tento. Guardai os virotes para castelhanos escismaticos. Em recontro ou
+batalha talvez o braço não ande tão destro.
+
+O acontiado fez um gesto como de quem ia empregar syllogismo
+contundente; mas a prudencia o aconselhou melhor, e contentou-se com
+redarguir:
+
+--Cuidai no vosso mester, bom homem, e deixae-­me. Onde pozeram a mira
+estes velhacos sei eu. Não lhes passa ha mezes pelas goelas bocado de
+cabrito, e querem fazer bôdo com algum que filem.
+
+--Olha o outro! gritou um petintal. Se não comemos cabrito todos os
+dias, comemos pão; mas amassamol-o com o nosso suor: não o vamos roubar
+pelas padeiras. Os tagantes do aljube ainda teem a pelle de dous dos
+vossos! Nós não nos servimos das adagas para cortar escarcellas de
+mercadores encontrados fóra d'horas.
+
+--Muito nos custa a viver! acudiu uma gôrda cidadôa, e mais custará
+agora que levam todo isso para Lisboa.
+
+--E não parará ahi, disse um dos companheiros de Pedro Choca do meio da
+turba: vai quanto mantimento se encontra pela redondesa e ha na cidade.
+
+--Se os de Lisboa estão cercados pelos de Castella, que façam como
+fizemos em Leça: se por lá estão minguados de mantimentos, tambem não
+nos sobejam.
+
+--E os do arcebispo ainda não foram desta tão malferidos, que não possam
+voltar, disse uma voz. Alguns corredores teem sahido de Braga.
+
+--É verdade, é verdade! berraram ao mesmo tempo dez ou doze mesteiraes.
+Os de Lisboa que se avenham como poderem.
+
+--Teem braços como nós.
+
+--E não havemos de finar-nos á mingua. Os mercadores mandam boas dobras.
+
+--E a prata da Sé vai tambem!
+
+--Já os alvazires carregaram uma galé de armas, e de Coimbra e Montemór
+vieram outras.
+
+--Que se contentem com isso, e com o biscouto e farinha que embarcaram!
+
+--Deixai que não faltará, louvado Deus, mantimento na cidade, embora
+levem tudo isso ao Mestre.
+
+--Fallais assim redarguiu um dos queixosos, voltando para o ordeiro, que
+proferira estas ultimas palavras, porque se um pão de praça vos custar
+dous reaes brancos, tendel-os na arca! Nem mealha deixaremos embarcar.
+
+--Nem mais tanto como uma unha negra!
+
+Este dialogo, ou esta scena, que se passava ao pé do arco, como nas
+tragedias antigas tinha o seu côro n'uma gritaria descompassada de que
+seria difficil dar uma ideia. O que sobresahia no meio de tudo, eram os
+_vivas_ e os _morras_. Se se perguntasse a cada um dos coristas em
+separado porque davam essas vozes, nenhum talvez vol-o diria, a não ser
+que confessassem que sentiam a necessidade de gritar, e que na falta de
+melhor cousa, aquellas palavras serviam perfeitamente para tudo:
+enthusiasmavam, animavam o tumulto, e de mais apregoavam que eram muitos
+bons patriotas. Os vivas eram ao Mestre; os morras aos scismaticos:
+levar a mal aquella berraria, ninguem podia levar.
+
+Do lado opposto a algazarra era a mesma, com pequenas variantes.
+
+Os conductores de gado e os guardas embrulhados pela chusma não tratavam
+já senão de se deslimdarem della, e de acudir aos rebanhos.
+
+Alguns amotinados tinham, para desembaraçar o terreiro, conduzido a
+maior parte do gado graúdo para as azenhas: ovelhas e cabras, essas
+corriam em todas as direcções. Para cumulo da confusão, quando Pedro
+Choca e os seus companheiros persuadiam o povo a que se dirigissem ao
+paço episcopal ou á casa do municipio, dous touros, enfurecidos ou
+assustados pelo ruido e negaças d'alguns garotos, tinham aberto caminho
+para o lado da Esnoga, derribando e maltractando algumas creanças e
+mulheres. A culpa do desastre era dos amotinados; mas todos elles á uma
+tinham procurado origem mais remota, e lançaram aos vereadores e bons
+homens que tinham ordenado a remessa dos mantimentos. Um velhaco
+lembrara-se de juntar aos «morras» da ordem um aos «alvazires, que
+queriam matar o povo á fome» e entre multidão, mesteiraes, que horas
+antes teriam dado a sua ultima pogea, se para sua senhoria lh'a
+pedissem, repetiram aquelle grito.
+
+Uma voz ampliou-o:
+
+--Morram os traidores, que querem dar cabo da arraia miuda para entregar
+a cidade aos de Castella!­
+
+--Morram os traidores! uivou a chusma.
+
+E apparecia já o alvitre de se ir em procura de alguns alvazires, e até
+mesmo de os tractarem como ao arrabi-menor, quando dois daquelles
+appareceram no terraço do arco de S. Domingos. Ruy Pereira, que vira
+rebentar o alvoroço, mandara-os chamar e a alguns bons homens para que
+socegassem os animos como podessem. O tio de Nuno Alvares, a principio
+tivera, ao ouvir o arruido, vontade de baixar ao terreiro e cortar
+naquella villanagem, que de cabeça tão levantada, insolente e turbulenta
+trazia o Deffensor; mas, apenas mandara sellar o seu cavallo, a reflexão
+lembrou-lhe a inconveniencia de um tal passo, e ­a reminiscencia poz-lhe
+diante dos olhos os tumultos de Lisboa e Evora e tantas outras terras do
+reino. O mensageiro do mestre, contentou-se, pois, em desabafar em
+pragas, em dar duas grandes punhadas sobre a mesa, e desappareceu pelo
+lado da cerca­ do convento onde pousava, para não se ver obrigado a
+aturar o bom povo, deixando as authoridades municipaes em apuros. Não
+eram fortes em rhetorica os bons homens, e a pouca que lhes concedera a
+natureza fugira assustada.
+
+Os velhacos, dando por elles saudaram-nos com uma ladainha de apôdos que
+faria pasmar ao leitor pela quantidade e pelo desusado.
+
+A arraia do terreiro tinha grande vantagem sobre os burguezes do arco:
+para o attaque bastavam palavras soltas, ou mesmo gritos inarticulados;
+para a defesa, para satisfazer as exigencias de Ruy Pereira, era
+necessario um discurso, pequeno ou grande, mas um discurso.
+
+Os alvazires e mais cidadãos que os acompanhavam, depois de se empuxarem
+e acotovellarem uns aos outros, por bom espaço de tempo, tinham
+resolvido, ou antes forçado o mais bojudo e o mais endinheirado d'entre
+elles a tomar a palavra, e o nosso homem depois de um gesto bastante
+solemne feito ao bom povo; depois de tossir e escarrar, como o faria, ao
+encetar um sermão, o frade mais sabedor do convento de a pár, balbuciára
+uma ou duas duzias de palavras. É de crêr que fossem boccados de ouro;
+mas asseverál-o ninguem, a não serem os collegas, o poderia fazer, pois,
+quasi nada perceberam no terreiro os que lhe quizeram prestar attenção.
+Uma grande parte não lh'a dava, e continuava a formular as suas queixas
+ou accusações.
+
+--Querem dar cabo do povo, e entregar a cidade aos de Castella!
+
+--Morram os traidores!
+
+--Morram os scismaticos.
+
+--Amigos, tornou o alvazir levantando a voz, logo que a tempestade
+popular serenou mais; o Mestre nosso regedor e defensor se encomendou ás
+vossas boas lealdades, e vos mandou dizer que, como este reino andava
+todo revolto com desvairadas tenções...
+
+--E bem desvairadas são as que tendes! exclamou cortando a palavra ao
+orador, um amotinado, pouco reverente para com o plagio da mensagem de
+Ruy Pereira, de que em apuros aquelle se valera.
+
+O pobre homem, olhou em torno de si espantado; limpou o suor, que lhe
+corria em bagas pela fronte; tossiu de novo; poz a mão no peito para
+tomar um ar mais solemne, e começou novo aranzel:
+
+--Todos vós sabeis que esta cidade levantou voz pelo Mestre...
+
+--Viva o Mestre! Alcacere por sua senhoria! gritou a chusma...
+
+--Todos vós sabeis, repetiu o alvazir, que esta cidade deu voz pelo
+Mestre, que jurou defender-nos e amparar-nos, e tambem sabeis que el-rei
+de Castella veio sobre Lisboa com toda a sua gente...
+
+--Morram os castelhanos! gritaram do terreiro.
+
+O illustre orador, como hoje lhe chamariam, se ele vivesse, as gazetas,
+orgãos ou respiradouros do partido em que se tivesse lançado; o illustre
+orador, vendo que não havia com tal gente meio de atar duas phrases sem
+uma interrupção, tratou, já desesperado, de resumir o seu discurso:
+
+--O regedor mandou pedir a esta boa cidade que lhe enviassem todas as
+galés e barcos que fosse possivel armar e equipar, e bem assim
+mantimentos e dinheiros, os quaes--­ajuntou o bom do alvazir, como se
+entre os amotinados houvesse alguem que com tal se importasse--­como
+filho de el-rei que é, por toda a sua verdade jurou pagar muito bem...
+
+--E ressuscita os que tiverem morrido á fome? perguntou um velhaco, que
+subira acima de um poial, arrimado ao arco, e de braços cruzados, com
+gesto zombeteiro encarava o orador.
+
+--Morram os traidores!
+
+--O regedor não quer que matem o povo!
+
+--Viva o Mestre!
+
+--Fora os alvazires, gritou Pedro Choca.
+
+--Fora, fora! vozearam d'entre a multidão.
+
+O orador tornou a limpar o suor, que se tornava copioso e frio cada vez
+mais, e ainda tentou proseguir; mas a sua má estrella quiz que ao
+examinar o seu auditorio désse de novo com os olhos no velhaco do poial.
+O maldito riu-se, e fez-lhe um esgar; e risada e esgar seccaram-­lhe
+completamente a prosa na garganta. O bojudo cidadão bateu com a lingua
+nos dentes, soltou dous ou tres sons, estendeu os braços, e meneou-os,
+como se pertencesse á seita dos mestres pedreiros que, pouco havia,
+tinham concluido os muros da cidade, ou quizesse nadar em secco; mas nem
+uma palavra mais conseguiu formular, nem com todos aquelles tregeitos
+exprimir uma ideia.
+
+A atrapalhação do orador deu incremento ao alvoroço, e os bons-homens
+que tentaram substituir aquelle na tribuna, não conseguiram um momento
+de attenção. Era este o estado das cousas, quando Gonçalo Domingues e
+Fernando, appareceram no terreiro, vindos do lado do Palmeirim. Mestre
+Gonçalo e o compadre, que já encontramos no campo do Olival, tinham sido
+os encarregados de arranjar o gado, e portanto a sua apparição trouxe
+áquellas cabeças ­ desorientadas a ideia de que uma boa parte da culpa
+dos males que receiavam, delles provinham. O acolhimento foi pois o
+menos amavel possivel. As relações de mestre Gonçalo com o judeu Moyses,
+em quem o povo já fizera justiça a seu modo, foi a primeira pecha que
+lembrou a alguns dos amotinados, e mal lhes lembrou, logo foi lançada em
+rosto. A chusma fez côro, como fazia a todas as lembranças, e o bom
+burguez ficou perplexo: fez-se vermelho e fez-se amarello quasi ao mesmo
+tempo, e o caso não era para menos. Quem não respeitava nem bispos, nem
+abbadessas, não era muito que desacatasse um forçureiro, por mais
+endinheirado que fosse. Não era mesmo naquellas circumstancias o
+dinheiro carta de seguro; bem pelo contrario: era mais uma razão para
+temores.
+
+Gonçalo Domingues, impallidecendo, agarrou-se ao braço do sobrinho e
+quiz retroceder; mas a rectaguarda estava-lhe já cortada, e entre
+ameaças foi levado pela multidão até junto do paiol, onde se empoleirára
+o vadio que seccára a eloquencia ao orador do arco. Fernando tomado de
+assombro seguiu o tio. O sangue do mancebo, porém, não era o do velho, e
+a vozearia, os insultos bem depressa o fizeram ferver. O primeiro
+impulso do namorado de Irene, recuperada a exaltação que o dominava
+desde o recontro de Leça, e levado por assomos de cholera foi o de se
+lançar contra os amotinados. Desembaraçando-­se das mãos de seu tio,
+atirou-se a um mesteiral, que junto do rosto daquelle erguera o punho
+cerrado, e ia ser victima talvez dos seus brios, quando dous braços
+musculosos seguraram o seu antagonista, e uma voz, que devia ser
+conhecida de alguns dos que se mostravam mais enfurecidos contra mestre
+Gonçalo, exclamou:
+
+--Ter mão rapazes!
+
+Pedro Choca vira Fernando Vasques ameaçado e correra em seu auxilio. O
+velhaco, apesar de tudo, não deixava de ser um bom patriota, de ter o
+seu enthusiasmo pelos defensores da arraia meuda. Conhecia Fernando do
+assalto ao bailiado, e o denodo do mancebo fizera com que elle o tivesse
+na conta de um heroe, contra o qual não levantára mão, nem consentira
+que se levantasse por todo o dinheiro que lhe dessem.
+
+As suggestões e os tornezes do capellão de Ayres Gonçalves, e mesmo o
+prazer de fazer arruido não eram as unicas causas que o tinham feito
+estafar os pulmões; frei Garcia gastára tempo e algumas malgas de vinho
+para o convencer de que entre os alvazires havia partidarios de
+Castella, que tinham tido o negregado pensamento de se vingarem do povo,
+por meio da fome, fingindo que serviam ao mestre. Que Fernando pactuasse
+com traidores não acreditava porém, o velhaco, e por isso repetiu com ar
+ameaçador, vendo que alguns animos ainda se mostravam hostis ao mancebo:
+
+--Que ninguem lhe toque em um cabello da cabeça, senão commigo tem de se
+haver!
+
+--A traidor, como a traidores! gritou o mesteiral, querendo
+desembaraçar-se da prisão em que estava.
+
+--Traidor, quem tomou uma bandeira aos gallegos, quem eu vi atirar-se a
+esses perros como se os virotes fossem palheiras?!
+
+--Se não é traidor, é por elles, que vale o mesmo. Que tem elle com esse
+forçureiro de má morte!
+
+--Que enriqueceu furtando ao peso.
+
+--E mais sabe Deus se era cabrito ou cão o que dantes vendia!
+
+--E agora comprou o gado todo, para nos deixar á fome!
+
+--Mentis! exclamou Fernando, respondendo a estes capitulos de accusação;
+mentis!
+
+--Ahi o tendes! ponde a mão no fogo por elle! resmungou um dos vadios,
+dirigindo-se a Pedro Choca.
+
+--Se tão bom é um como o outro! ajuntou uma mulher. O rapazelho é filho,
+ou cousa que o valha do forçureiro.
+
+Pedro Choca coçou a cabeça, e olhou para Fernando com ar indeciso, mas
+logo formulou este raciocinio:
+
+--O mancebo era incapaz de pactuar com os inimigos do Defensor, e
+protegia Gonçalo Domingues logo a não quadrava tambem o appellido de
+traidor.
+
+--Se é pae do meu homemsinho é outro caso, exclamou em seguida,
+voltando-se para os circumstantes. Deve ser dos nossos.
+
+Gonçalo Domingues, vendo que alguem mais de que o sobrinho vinham em seu
+auxilio, tartamudeou.
+
+--Domingues Pires ou Affonso Eannes, se aqui estivessem vol-o diriam!
+
+--Que resmunga elle?
+
+--Acoberta-se com o trato que tem com Domingues Pires?
+
+--Sim, sim; mas tambem era dos amigos do perro Moyses! se ouviu dentre a
+multidão.
+
+A arraia meuda, como se baptisára o povo naquella quadra, tresvairada,
+estreitára o circulo formado á volta do burguez e as suas intenções
+pareciam ser bem pouco pacificas, quando Fernando, saltou acima do
+poial, abandonado pelo companheiro de Pedro Choca. A vis oratoria,
+molestia que se dá em quadras revoltas como sezões em terrenos
+alagadiços, acommettera tambem o namorado de Irene. O rapaz emprehendia
+tarefa espinhosa, como os respeitaveis edis o podiam attestar,
+commettia, pode-se avançar uma loucura; mas é sabido que neste mundo por
+vezes as loucuras aproveitam mais do que as cousas pensadas. Fernando
+tivera uma idea, que vos fará rir talvez leitor, e que podia ter entre
+os amotinados o mesmo, ou peior acolhimento; porem que foi agua em
+fervura, como diz o povo. Fora uma idea feliz, uma idea luminosa a do
+mancebo.
+
+--Metteram-vos em cabeça que vos queriam matar á fome... porque se
+embarca alguma carne na esquadra! exclamou elle: mas não se lembrou
+ninguem de que todos os miudos cá ficam.
+
+--É verdade?! acudiu com outros Pedro Choca, que desfazia agora, por
+causa do seu heroe, a obra para que concorrera; é verdade!
+
+--E depois? interrogou um mesteiral, embasbacado.
+
+--E depois com tanta forçura, com tanta miudagem de todo esse gado não
+se morre á fome.
+
+--E a carne não é cousa que engasge a arraia muita vez no anno! observou
+o vadio.
+
+--Demais, proseguiu o mancebo, aos corredores gallegos nós os
+ensinaremos, e haverá ahi mantimentos de sobra. Para dez scismaticos
+basta um portuguez. A gente que foi a Leça e Santo Thyrso está ahi, e
+antes da chegada das galés os do Porto esperaram a pé quedo os do
+arcebispo, sem que elles se atrevessem a vir ás mãos comnosco. Deixai ir
+as galés...
+
+--Quem as quita? exclamou um mesteiral, a quem aquellas palavras tinham
+inflamado o orgulho patrio. Se os de Lisboa carecem de nós, nós não
+carecemos delles. Não nos atraiçoem os de casa...
+
+--De casa... aqui neste boa cidade não ha traidores, atalhou o namorado
+de Irene; aqui, ninguem põe o seu braço em almoeda: as lanças e ascumas
+dos populares não teem preço!
+
+­--Como certas espadas.
+
+O mancebo apesar das interrupções, de approvação agora, não se calou.
+Surprehendendo, como vimos, os amotinados com a primeira lembrança que
+tivera, lançando por instincto mão dos argumentos melhores em taes
+circumstancias, proseguiu appellando para os brios do povo, appellando
+com a convicção de ser attendido, e o rumor levantado pouco a pouco em
+torno de si provar-lhe-hia, se a isso désse attenção, se elle mesmo não
+se enthusiasmasse com as suas palavras, que senão havia enganado. Quando
+terminou o descontentamento da arraia, estava convertido em abnegação
+civica, em enthusiasmo patriotico. O povo tem, como o oceano, destas
+mudanças repentinas. Pedro Choca, cuja bossa decididamente era a de
+vivorio, encarregou-se de dar expansão aos sentimentos que o agitavam.
+
+--Viva Fernando Vaz! que... gritou elle; mas não pôde proseguir, porque
+o distrahiu e engasgou uma pancada em um hombro e uma voz zombeteira,
+que lhe dizia ao ouvido:
+
+--Assim é que sua mercê trabalha nas tercenas?
+
+O impulso estava porém dado, e Choca, desapparecendo, pois bem
+reconhecera pela amabilidade da pancada e da voz a presença do pae dos
+velhacos, deixava de novo o rico forçureiro em suores nos apertos da
+ovação do sobrinho. O nome de Fernando Vasques era bastante popular
+desde o recontro de Leça... pelo que demonstravam os successos, mais do
+que a pessoa.
+
+Quando Pedro se eclypsava com os seus companheiros, os acontiados do
+municipio, ha pouco apupados, arrebanhavam sem a menor opposição o gado
+que se espalhára pelos campos das azenhas. Os planos de Ayres Gonçalves
+goravam completamente, graças sobretudo ao namorado de Irene. O rapaz,
+tivera, repetimos, uma ideia feliz, e soubera tocar no fraco dos
+amotinados melhor do que os alvazires, que no convento ainda discutiam,
+embaraçados, a maneira de darem conta da sua missão. Falho o expediente
+do alcaide de Gaya, as indecisões dos seus nobres companheiros tinham de
+ser cortadas pela emulação dos caudilhos.
+
+Os portuenses davam o primeiro passo para obterem em chrisma uma alcunha
+que tinha de durar seculos; mas a honra da cidade estava salva. O pae
+dos velhacos capitaneava os vadios, que, juntos com os besteiros,
+levavam o gado ás tercenas, e os mesteiraes, que momentos antes tão
+descontentes se mostravam acompanhavam-nos, berrando:
+
+--Viva o Mestre de Aviz! Viva a arraia meuda do Porto!
+
+
+FIM
+
+
+
+
+PREÇO 300 REIS.
+
+LIVRARIA DE IGNACIO CORREA, _Rua de Bellomente, n.^o 65 e 66--Porto._
+
+
+*Louzada.*
+
+Rua Escura--1 vol. 500
+Na Consciencia--1 vol. 500
+
+*Camillo C. Branco*
+
+Anathema, 2.^a edição 500
+Duas Epochas da vida, poesias--1 vol. 600
+Duas horas de leitura--1 vol. 400
+Espinhos e flores.--1 vol. 300
+Lagrimas abençoadas--1 vol. 400
+Livro negro--1 vol. 400
+Marquez (O) de Torres Novas, drama--1
+vol. 400
+Mysterios de Lisboa--2 vol. 1$000
+Neta do Arcediago (A)--1 vol. 400
+Onde está a felicidade?--1 vol. 500
+Purgatorio e Paraizo, drama--1 vol. 300
+Que (O) fazem mulheres--1 vol. 500
+Scenas Contemporaneas, contendo a
+«Poesia e dinheiro» drama, e outros--1
+vol. 500
+Scenas da Foz--1 vol. 500
+Um homem de brios--1 vol. 400
+Um Livro, poesias--1 vol. 360
+Vingança--1 vol. 500
+
+*A. Gama*
+
+Genio do Mal (O)--4 vol. 8.^o 1$920
+Honra ou Loucura 8.^o 500
+Poesias e Contos--8.^o 800
+
+*E. Sue*
+
+Avareza (A)--1 vol. 300
+Gula (A)--1 vol. 240
+Inveja (A)--3 vol. 720
+Ira (A)--in-12.^o 300
+Judeu Errante (O)--10 vol. 8.^o 2$000
+Luxuria (A)--2 vol. in-12.^o 480
+Martim o Engeitado--6 vol. 8.^o 1$600
+Preguiça (A)--in-12.^o 240
+Soberba (A)--4 vol. in-12.^o 960
+
+*Souza Lobo*
+
+O Emparedado, drama--8.^o 300
+A Cigana, drama--8.^o 200
+A Moura, drama--8.^o 200
+Os tres dramas reunidos 500
+
+*P. J. Conceição*
+
+Mysterios do Porto.--2 vol. 480
+Amante e Irmã--drama 200
+
+
+Lista de erros corrigidos
+
+Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:
+
+
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ | | Original | Correcção |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ |#pág. 11| presonagens | personagens |
+ |#pág. 13| edificapões | edificações |
+ |#pág. 52| o insomnia | a insomnia |
+ |#pág. 53| rebem | recebem |
+ |#pág. 53| ingratidão,; | ingratidão, |
+ |#pág. 68| ressaltar | ressaltar |
+ |#pág. 103| desonvolver | desenvolver |
+ |#pág. 263| gallegos? | galegos! |
+ |#pág. 119| curiosidadade | curiosidade |
+ |#pág. 121| embtuidos | embutidos |
+ |#pág. 132| o ocoração | o coração |
+ |#pág. 132| ?ibilar ?s pelouros | sibilar os pelouros |
+ |#pág. 139| Que ma? | Que mal |
+ |#pág. 143| hemem | homem |
+ |#pág. 144| principiosdo | principios do |
+ |#pág. 144| prdor | pudor |
+ |#pág. 144| id enticas | identicas |
+ |#pág. 151| demonstaram | demonstraram |
+ |#pág. 151| pobrecreatura | pobre creatura |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Os tripeiros, by António José Coelho Lousada
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS TRIPEIROS ***
+
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+
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+
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+things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
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+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
+collection are in the public domain in the United States. If an
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+form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
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+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
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+ has agreed to donate royalties under this paragraph to the
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+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
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+ of receipt of the work.
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+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
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+
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+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
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+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
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+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
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+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
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+ <title>Os tripeiros: romance-chronica do seculo XIV</title>
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+The Project Gutenberg EBook of Os tripeiros, by António José Coelho Lousada
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+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
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+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: Os tripeiros
+ romance-chronica do seculo XIV
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+Author: António José Coelho Lousada
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+Release Date: September 13, 2009 [EBook #29979]
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+Language: Portuguese
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+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS TRIPEIROS ***
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+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
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+
+<div>
+<br />
+
+<div class="bbox"><br />
+
+<br />
+
+<h3>OS</h3>
+
+<h1>TRIPEIROS.
+</h1>
+
+<br />
+
+<h3>ROMANCE-CHRONICA DO SECULO XIV.
+</h3>
+
+<br />
+
+<h3>POR
+</h3>
+
+<h3><br />
+
+A. C. LOUSADA.
+</h3>
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<h4>
+PORTO:
+TYPOGRAPHIA DE J. J. GON&Ccedil;ALVES BASTO,<br />
+
+LARGO DO CORPO DA GUARDA N. 106.</h4>
+
+<div class="breaks">
+<hr /></div>
+
+<h4>1857.
+</h4>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>I.
+</h3>
+
+<h3>
+A mensagem do Mestre.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">Alteradas est&atilde;o do
+reino as gentes
+Co' o od&iacute;o que occupado os peitos tinha.</div>
+
+<br />
+
+<div class="smallcaps signature">cam&otilde;es, lus.
+cant. iv.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Era uma estranha romaria, para quem n&atilde;o tivesse
+noticia dos alvoro&ccedil;os a que a morte de Fernando 1.&ordm;
+e o casamento de Beatriz em Castella tinham dado
+causa, a que pelos meados de Maio de mil trezentos
+e oitenta e quatro sahia pelas portas da cidade do
+Porto que davam sobre o rio, e mais pela chamada
+<span class="pagenum">[6]</span>
+Porta Nova. Se fosse facil conduzir o leitor a v&ecirc;r
+do alto das torres que a defendiam aquelle gentio,
+acreditaria que elle tinha invadido algum arsenal a procurar
+disfarce entre o guerreiro e o burlesco. Um
+popular cobria a cabe&ccedil;a com um elmo adamascado,
+e, mostrando os joelhos atrav&eacute;s do grosso estofo das
+cal&ccedil;as, com p&eacute;s descal&ccedil;os pisava a
+areia onde o
+montante que arrastava deixava um sulco;
+um outro,
+parecendo ter em menos conta a cabe&ccedil;a do que
+o peito, abrigava este em uma coura&ccedil;a mais que farta,
+e deixava aquella ao sol e ao vento; este, vestindo
+apenas umas cal&ccedil;as, se assim se podia chamar um
+cirzido
+de trapos, trazia suspenso de funda um escudo
+de couro, onde em tempos estivera pintada ou
+divisa ou bras&atilde;o, pois n&atilde;o era j&aacute;
+facil adivinhar
+o que f&ocirc;ra; de um cinto leonado pendia de um lado
+um estoque, do outro um punhal, e, como se
+n&atilde;o bastassem estas armas offensivas, empunhava
+um chu&ccedil;o enorme; aquelle levava um bacinete
+amassado
+e um gorjal ferrujento, e tinha por cinto de grosseira
+jornea uma funda, o provimento da qual, como
+se n&atilde;o f&ocirc;ra uma arma facil de encontrar a cada
+passo, pesava em um sacco lan&ccedil;ado aos hombros.
+De tempos a tempos o bom povo, como lhe chamava
+o mestre de Aviz, abria aqui logar a um cavalleiro
+acobertado de ferro desde os p&eacute;s &aacute;
+cabe&ccedil;a, seguido dos
+seus pagens, ou escudeiros, alem a outros mais exquisitamente
+vestidos pelo antiquado das armas, ou
+pelo incompleto. Havia capacete que, se Cervantes o
+visse, n&atilde;o o deixaria ser original descrevendo o que deu
+ao seu heroe no principio das perigrina&ccedil;&otilde;es;
+peitos de
+a&ccedil;o polido, espelhando o sol, que disparatavam com
+umas grevas desconjuntadas, enegrecidas, remendo
+visivel; feixes de armas que desdiziam umas das outras
+<span class="pagenum">[7]</span>
+pelo valor, casando-se a facha grosseira com um
+estoque cuja bainha acobertavam ornatos de prata,
+montantes de Toledo e adagas grosseiras. Os cavallos
+iam uns cobertos de ferro, outros apenas com
+os arreios necessarios para se poder cavalgar, e n&atilde;o
+poucos dos cavalleiros, e aos pares at&eacute;, montavam
+em mulas. Os cidad&atilde;os que assim sobrecarregavam
+os pobres animaes, costume vulgar por esses tempos
+e por muitos outros, vestiam em geral a garnacha
+negra, distinctivo dos doutores e physicos. Com este
+mesmo traje, por&eacute;m arrega&ccedil;ado pela ponteira da
+espada,
+deixando v&ecirc;r a cal&ccedil;a de duas cores e o borzeguim
+ponteagudo via-se tres ou quatro aspirantes &aacute;quella
+distincta classe de medicos e letrados, e com
+elles alguns monges, que tambem se mostravam affeitos
+&aacute;s armas pelo modo como seguravam o punho
+da espada e cobriam a tonsura com o bacinete. Um
+dos cavalleiros mais bizarros da romaria era tambem
+um ecclesiastico; pelo menos assim o demonstrava
+um roquete, que sobre armas soberbas vestia
+em vez de brial.
+<br />
+
+<br />
+
+De burlesco para a gente que guarnecia as muralhas,
+as torres, os eirados e soteas nada havia
+nesta prociss&atilde;o; de marcial havia muito, tudo, a avaliar
+pelo enthusiasmo com que a saudavam, e pelos vivas
+que se juntavam &aacute;s sauda&ccedil;&otilde;es. Tinha
+decorrido
+uma boa hora desde que correra na cidade que umas
+gal&eacute;s demandavam a barra, e, posto que houvesse
+quem affirmasse logo que eram portuguezas, como
+dos de casa havia tanto a recear como dos extranhos,
+todos se tinham prevenido para as receber. Um pagem
+levara j&aacute; a Ayres Gon&ccedil;alves e ao bispo D.
+Jo&atilde;o
+a nova de que eram expedidas pelo mestre de Aviz;
+por&eacute;m estes senhores eram ent&atilde;o authoridades
+quasi
+<span class="pagenum">[8]</span>
+nominaes, e deixavam por tanto, para n&atilde;o perderem
+o tempo, fazer a sua demonstra&ccedil;&atilde;o aos bons
+populares e aos cavalleiros que n&atilde;o eram de suas casas,
+crea&ccedil;&atilde;o, ou servi&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Ideia de que no seculo decimo quarto era uma
+guerra civil, acompanhada de uma invas&atilde;o estrangeira,
+nem todos os que passam os olhos por este capitulo
+far&atilde;o. Hoje hasteam-se duas ou tres bandeiras,
+ou mais, se quizerem, mas, o primeiro impeto passado,
+a machina civil l&aacute; vae funccionando peor ou melhor
+por conta dos governos provisorios; naquelles
+tempos, por&eacute;m, ninguem se entendia por vezes. Cada
+fidalgo levantava o seu tro&ccedil;o de gente e vendia e revendia
+a espada; hoje era ao servi&ccedil;o de um,
+&aacute;manh&atilde; ao
+de outro; os alcaides dos castellos, a maior parte
+dominando as povoa&ccedil;&otilde;es principaes, juravam preito
+e
+perjuravam todos os dias, e as municipalidades lan&ccedil;avam,
+bom ou mau grado, pela manh&atilde; um bando
+em favor de um monarcha e &aacute; tarde acclamavam outro.
+No meio desta bella ordem havia caudilho que
+dava em ambos os partidos belligerantes, e sobretudo
+nos pacificos, aventureiros que se batiam por si e para
+seu proveito. Na menoridade do pae do regedor,
+como modesta e arteiramente se appellidara o irm&atilde;o
+bastardo de D. Fernando, e em quasi todos os reinados
+antecedentes, a provincia de Entre Douro e Minho
+tinha tido a sua amostra destas amabilidades;
+mas o que a gente da <em>ordem</em> chama
+revolu&ccedil;&atilde;o e revolu&ccedil;&atilde;o
+politica n&atilde;o estalara em tempo algum como
+agora. At&eacute; ahi o povo contentara-se, salvo um ou
+outro caso, com evitar a ponta da lan&ccedil;a dos nobres
+senhores e o virote dos seus homens d'armas, e ainda
+mais de lhe franquear as arcas e de correr os cord&otilde;es
+da bolsa, o que raras vezes conseguia. Os
+<span class="pagenum">[9]</span>
+burguezes do Porto, o mais desenquieto povo de
+toda a provincia e do reino, tinham j&aacute; dado mostras
+da sua for&ccedil;a aos bispos Martinho Rodrigues e Vasco
+Martins, por&eacute;m, nestas revoltas se entrava politica era
+acobertada: elles n&atilde;o davam por tal. Desta vez o exemplo
+da capital f&ocirc;ra-lhes contagioso, e mesmo sem
+t&atilde;o
+bons motores como Alvares Paes, desempenh&aacute;ram a sua
+tarefa por tal arte, que se p&oacute;de dizer, que a lei por
+que se governavam era a sua. Ayres Gon&ccedil;alves de
+Figueiredo, o governador de Gaya admir&aacute;ra da outra
+margem a valentia dos pulm&otilde;es dos partidarios do
+novo governo, e, posto que n&atilde;o estivesse bem seguro
+das suas ideias quanto &aacute; legalidade da regedoria, e
+preferencia de direitos do mestre de Aviz sobre os
+do infante, dos deste sobre a irm&atilde;, ou vice-versa,
+para n&atilde;o lhes avaliar as iras tambem, contemporisara,
+soltando as mesmas acclama&ccedil;&otilde;es. Na cidade havia
+um cahos. Os vereadores, governavam; governavam
+os juizes do povo e o juiz real; governavam os chefes
+das corpora&ccedil;&otilde;es; governava, por&eacute;m
+menos, o bispo
+e os seus meirinhos; governavam at&eacute;, ou mandavam,
+os prisioneiros, ou tidos por taes, como era o
+conde D. Pedro de Transtamara, que no campo de
+Coimbra tivera as suas aspira&ccedil;&otilde;es &aacute;
+coroa de Portugal,
+e a ser o terceiro marido legitimado de Leonor
+Telles; finalmente, mandavam todos, se a mais ninguem
+fosse, cada um a si.
+<br />
+
+<br />
+
+Do pequeno povoado que ficava extra-muros,
+composto de uma mescla de armenios, que nove annos
+antes tinham deixado cahir o throno de Livonio,
+o seu ultimo rei, aos golpes de espada do sult&atilde;o
+do Egypto; de gregos da Asia, escapados &aacute; furia
+dos soldados de Amurath; de flamengos e genovezes
+aventureiros, de mouros, os cultivadores da encosta
+<span class="pagenum">[10]</span>
+em que o bairro se abrigava; da pequena
+povoa&ccedil;&atilde;o,
+do bairro Armenio, augmentado ainda depois da
+tomada de Constantinopla com os piedosos guardas
+de S. Pantale&atilde;o, ajuntava-se &aacute;
+prociss&atilde;o sahida da
+Porta Nova uma chusma de curiosos, que pela variedade
+de vestuarios, lhe vinha dar realce. Como
+em taes casos succede, toda esta gente se embara&ccedil;ava
+na marcha, pe&otilde;es a cavalleiros, cavalleiros a
+pe&otilde;es;
+todos fallavam, todos tomavam e davam concelho, e
+perguntavam por novas de que iam dar ao primeiro
+encontrado uma vers&atilde;o correcta e augmentada com
+reflex&otilde;es de lavra propria e extranha. O espa&ccedil;o
+que se
+estendia desde os muros at&eacute; onde a Arrabida deixava
+apenas um caminho de cabras, aberto na rocha
+para quem se quizesse dirigir &aacute; Foz do Douro, n&atilde;o
+foi pois transposto em menos de uma hora, pela vanguarda:
+uma grande parte do exercito popular nem l&aacute;
+chegou. Os primeiros que encontraram uma das
+gal&eacute;s subindo o rio, gritaram para os tripolantes que
+lhes dissessem por quem vinham, e como estes respondessem
+que pelo Mestre, sem mais attenderem, voltaram
+atraz, dando vivas, como se fosse aquillo refor&ccedil;o
+inesperado, que os viesse tirar de apuros.
+<br />
+
+<br />
+
+Nas gal&eacute;s n&atilde;o vinha refor&ccedil;o algum para
+os do
+Porto, unica terra de importancia ao norte do reino,
+que n&atilde;o acceit&aacute;ra como rei o marido de Beatriz,
+e tinha a bra&ccedil;os setecentas lan&ccedil;as e dous mil
+infantes do arcebispo de Santiago e de outros senhores
+castelhanos e portuguezes, sem contar os aventureiros
+de Fernando Affonso, que n&atilde;o eram nem
+uma cousa nem outra.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Jo&atilde;o de Castella, feita em Santarem a cess&atilde;o
+dos direitos &aacute; coroa por D. Leonor, a troco de
+vingan&ccedil;as
+promettidas no povo de Lisboa, que a respeito
+<span class="pagenum"><a name="p11" id="p11">[11]</a></span>
+della e em rosto esgot&aacute;ra um vocabulario immenso
+de nomes, de que Fern&atilde;o Lopes d&aacute; uma amostra,
+e a mimose&aacute;ra com pedradas; D. Jo&atilde;o, resolveu-se,
+sen&atilde;o a cumprir o ajuste, pois se malquist&aacute;ra com
+a ambiciosa sogra por causa de dous judeus, a destruir
+a rebelli&atilde;o, como elle lhe chamava, no f&oacute;co,
+e avan&ccedil;&aacute;ra at&eacute; o Bombarral, ao passo
+que aprestava
+uma armada que, fechado o assedio por terra, cerrasse
+tambem as communica&ccedil;&otilde;es por mar.
+<br />
+
+<br />
+
+Os arredores de Lisboa talados, as povoa&ccedil;&otilde;es
+saqueadas n&atilde;o podiam abastecer de viveres os sitiados;
+entre elles e Coimbra estavam os arraiaes inimigos,
+portanto recorria-se ao Porto, pedindo tambem
+um refor&ccedil;o de navios para impedir que o Tejo
+fosse bloqueado. D. Louren&ccedil;o, arcebispo de Braga,
+azafam&aacute;ra-se para armar as gal&eacute;s que deviam levar
+estes soccorros, e o mestre de Aviz encarreg&aacute;ra Ruy
+Pereira de uma missiva, em que aos bons burguezes
+se promettia mil regalias; pois D. Jo&atilde;o acceit&aacute;ra
+o conselho de dar tudo o que lhe fosse possivel
+dar, e prometter at&eacute; o impossivel.
+<br />
+
+<br />
+
+Os vivas e o appendice a todo o enthusiasmo politico
+de morras, naquella quadra aos castelhanos,
+aos traidores e aos scismaticos, prolongaram-se at&eacute; que
+as gal&eacute;s em que vinham Ruy Pereira e Gon&ccedil;alo
+Rodrigues
+vararam perto dos muros da cidade e principiou
+o desembarque destes e outros illustres <a href="#e1">personagens</a>,
+e ainda maior foi a algazarra quando o
+estandarte real appareceu. O conde de Transtamara,
+como primo do rei de Castella, n&atilde;o era dos coristas
+mais fracos deste grande c&ocirc;ro desafinado, e f&ocirc;ra
+dos
+primeiros cavalleiros que se apearam para receber
+os reaes mensageiros, com toda a cortezania. O povo
+sem f&eacute; naquella convers&atilde;o e pouco acatador nesse
+<span class="pagenum">[12]</span>
+momento das esporas de ouro, das cotas bordadas e
+cimeiras historiadas; o povo, deixando escapar desses
+epygrammas de que elle possue o molde particular,
+em vez de lhe abrir caminho, cerrava-se na
+sua passagem, fazendo perder ao fidalgo o aranzel lisongeiro
+que tencionava pr&eacute;gar a Ruy Pereira. Ruy
+era uma notabilidade, como hoje se diz; porque ent&atilde;o
+ainda se n&atilde;o tinha inventado as notabilidades,
+nem muitas outras cousas. Desde que explic&aacute;ra ao
+mestre de Aviz a opini&atilde;o do povo a respeito da rainha
+Leonor, notando que quando andava para casar
+com sua mulher, fallavam todos em que se queria
+casar com Violante Lopes, e depois de casado ninguem
+mais de tal fall&aacute;ra; depois, sobretudo, que d&eacute;ra
+o golpe de merc&ecirc; ao conde valido, abaixo de seu
+sobrinho, dos homens de espada com valimento na
+c&ocirc;rte, era o primeiro, e para quem estava nas circumstancias
+de D. Pedro, portanto, pessoa que era prudente
+lisongear.
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; ent&atilde;o, como se ver&aacute; no decurso
+desta narra&ccedil;&atilde;o,
+se attendia a conveniencias.
+<br />
+
+<br />
+
+Em quanto os mesteiraes e burguezes embara&ccedil;avam
+o conde, Martim Gil, abbade de Pa&ccedil;o de Sousa,
+substituia-o dignamente com duas rajadas de latim,
+a substancia do todo, que o mensageiro perdeu por
+n&atilde;o entender a lingua de Cicero, e uma enfiada de
+periodos em portuguez garrafal, que entenderia perfeitamente,
+se a algazarra tivesse cessado. Ruy Pereira
+satisfez-se com v&ecirc;r abrir e fechar a bocca ao
+reverendo, e respondeu a toda esta eloquencia, fazendo-lhe
+um ponto no meio do recado, perguntando
+onde havia de pousar. Martim Gil indicou-lhe todas
+as boas casas da cidade desde os pa&ccedil;os da S&eacute; e o
+convento de S. Domingos, at&eacute; algumas das vivendas
+<span class="pagenum"><a name="p13" id="p13">[13]</a></span>
+particulares, e o tio de Nuno Alvares escolheu S. Domingos,
+mostrando mais pressa de descan&ccedil;ar dos encommodos
+do mar, que de dar conta da sua miss&atilde;o. O abbade
+tentou ent&atilde;o dar &aacute; entrada na cidade dos
+passageiros
+e tripolantes da gal&eacute; de Gon&ccedil;alo Rodrigues, e
+das outras que iam aproando ao longo da praia, um
+todo processional, por&eacute;m luctava em v&atilde;o; que era
+at&eacute;
+difficultoso fazer desembara&ccedil;ar os sitios de desembarque,
+onde o povo se apinhava, se acotovallava
+sem
+dar descan&ccedil;o ao pulm&atilde;o. O Douro n&atilde;o
+tinha ainda,
+nas suas soberbas, arrojando as terras roubadas nas
+campinas d'encontro &aacute; praia; tornado esta t&atilde;o
+larga
+como hoje; nem os homens haviam com parapeitos
+avan&ccedil;ado sobre o leito daquelle. O espa&ccedil;o
+existente
+logo al&eacute;m de portas, onde havia povoado, era
+t&atilde;o limitado, que, a distancia, parecia que as
+<a href="#e2">edifica&ccedil;&otilde;es</a>
+tinham para a agua serventia, como os da cidade
+das lagunas, a rainha do Adriatico; o estado de
+exalta&ccedil;&atilde;o,
+e animo revoltoso ou independente dos burguezes
+e vil&otilde;es, por&eacute;m, at&eacute; em logares mais
+espa&ccedil;osos
+tornava difficil a empresa do abbade.
+<br />
+
+<br />
+
+Ruy Pereira, apesar de ter presenceado em Lisboa
+a revolta popular, fazendo-se popular elle mesmo,
+n&atilde;o o era tanto que levasse a bem aquella sem-ceremonia
+dos portuenses, e lan&ccedil;ando sobre os mais
+proximos um olhar pouco amavel, reprimindo a custo
+a vontade que tinha de mandar abrir caminho a
+prancha de espada e conto de lan&ccedil;a, lamentava
+<em>in
+mente</em> os bons velhos tempos&#8213;que j&aacute;
+ent&atilde;o havia
+bons velhos tempos&#8213;em que a cousa
+&laquo;pe&atilde;o&raquo; descortinando
+a vontade no gesto de um rico homem,
+logo obedecia sem mais tugir ou mugir.
+<br />
+
+<br />
+
+Gra&ccedil;as &aacute; interven&ccedil;&atilde;o dos
+juizes do povo e real,
+que, avisados da chegada dos navios e de quem eram
+<span class="pagenum">[14]</span>
+as pessoas que elles conduziam, vinham para as
+accommodar em pousada decente e fazer todas as
+honrarias, que em tal caso competia, o embara&ccedil;o terminou.
+As tres authoridades, duas municipaes, uma
+real, duas de muros a dentro, outra ribeirinha, foram
+felizes, deve-se confessar, naquella occasi&atilde;o,
+por n&atilde;o haver conflicto de poderes, nem
+recalcitra&ccedil;&atilde;o
+dos governados, o que era raro, e deveram esta
+felicidade a estar satisfeita a curiosidade dos burguezes,
+e n&atilde;o ser preciso empregar barqueiro ou
+pescador algum na amarra&ccedil;&atilde;o dos navios. A
+prociss&atilde;o
+come&ccedil;ou pois a mover-se pelas estreitas ruas da
+cidade, e, em vez de parar em S. Domingos, seguiu
+at&eacute; &aacute; casa da camara no meio sempre de grandes
+acclama&ccedil;&otilde;es
+ao mestre de Aviz, defensor e regedor do
+reino, e morras aos castelhanos herejes, scismaticos
+e traidores, o que fazia tragar sem r&eacute;plica a Ruy Pereira
+o ceremonial amofinador a que o submettiam
+os edis portuenses, e a pressa que tinham de saber
+em que podiam servir a sua senhoria, o futuro
+rei.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+II.</h3>
+
+<h3>
+Um rapaz travesso.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+He elle um par bem 'scolhido.</div>
+
+<br />
+
+<div class="smallcaps signature">
+gil vicente.&#8213;v. da horta</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Quando o mensageiro do Mestre era processionalmente
+levado pela porta, que tempos depois deu
+a um poeta com o nome um trocadilho para um requerimento
+em verso, no marulhar de curiosos e patriotas
+que se empuxavam, forcejando por abrir caminho
+para aquelle gargalo, um burguez que tornava
+<span class="pagenum">[16]</span>
+respeitavel o sizudo do traje, uma barriga proeminente,
+onde batia uma gorda bolsa de couro e um
+esguio punhal, cabello branco, patrioticamente cortado,
+luctava para n&atilde;o ser levado na corrente, dando
+mostras pelo inquieto do olhar que procurava alguem.
+A for&ccedil;a da corrente era grande, por&eacute;m, e
+arrastou-o
+pouco a pouco at&eacute; junto de uma das torres
+de defesa, onde a ressaca o fazia tomar todas as
+direc&ccedil;&otilde;es e posi&ccedil;&otilde;es
+possiveis no meio dos gritos
+das mulheres abafadas, das crian&ccedil;as trilhadas, do estalar
+das armaduras, que, permitta-se a imagem, eram
+os crustaceos que as ondas daquelle mar lan&ccedil;avam
+d'encontro &aacute;s rochas. Mestre Gon&ccedil;alo Domingues
+suava
+por todos os p&oacute;ros e formava com os cotovellos
+um amparo ao abdomen e quebra-mar &aacute; mar&eacute;,
+receando
+ser lythographado no muro, resmungando
+ao passo uma ladainha contra o causador daquelle
+desastre, segundo se lhe affigurava, um sobrinho
+que o acompanh&aacute;ra momentos antes, e que perdera
+de vista. Resolvido j&aacute; a deixal-o por sua conta,
+pois n&atilde;o estava j&aacute; em edade de se perder, e a
+escapar-se
+daquelle aperto, come&ccedil;ava a recuar, servindo-se
+dos cotovellos como de uma alavanca, quando
+sentiu umas m&atilde;os callosas pousarem-lhe no hombro,
+sustendo-o na marcha. Sentindo aquella resistencia,
+sem v&ecirc;r quem a oppunha, pois lhe era impossivel
+voltar o rosto, e receando de novo ser levado
+para o muro, empregou contra o individuo que
+assim lhe cortava a retirada um cotovell&atilde;o, que estava
+na raz&atilde;o directa da for&ccedil;a que o impellia: tudo
+isto acompanhado por uma praga:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;M&aacute;s ter&ccedil;&atilde;s te colham,
+cabe&ccedil;a de bogalho!
+<br />
+
+<br />
+
+A praga a meio, e uma das m&atilde;os a erguer-se
+a descer fechada em murro, estourando no costado
+<span class="pagenum">[17]</span>
+de mestre Gon&ccedil;alo Domingues, que soltou um regougo,
+cambaleou e perderia de certo o equilibrio,
+se um mesteiral, que estava na frente, o n&atilde;o amparasse
+na queda. O burguez, incommodando com o peso
+o seu primeiro ponto de appoio, este o saccudiu para
+um dos visinhos, que o recambiou sobre o homem
+do murro, appresentando-lh'o de cara.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se te apanh&aacute;ra aqui, maldito! tornou a exclamar
+mestre Gon&ccedil;alo, soltando outro gemido: punha-te
+as orelhas a fumegar. Tu m'as pagar&aacute;s!
+<br />
+
+<br />
+
+Esta exclama&ccedil;&atilde;o a meia voz, dirigida ao ausente
+sobrinho, foi interceptada a meio pelo homem de
+murro, um marinheiro, que, vendo o rosto afflicto
+do bojudo cidad&atilde;o, se contentou com dar-lhe um
+grande encontr&atilde;o, resmungando, como goso que v&ecirc;
+em perigo o osso que esburga:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois junte l&aacute; mais isso &aacute; conta, meu baleote.
+<br />
+
+<br />
+
+Mestre Gon&ccedil;alo estava affeito a ser mais bem
+tractado intra-muros: doeu-se da chufa dirigida ao
+seu physico pelo maritimo, e fez-se mais vermelho
+do que estava; fez-se roixo, se p&oacute;de dizer, desde
+a raiz do cabello at&eacute; aos queixos, mas n&atilde;o
+reagiu.
+A sua indole era pacifica, apesar do punhal que o
+acompanhava; e demais, n&atilde;o via perto de si sen&atilde;o
+caras desconhecidas e rostos queimados pelo ar do
+mar, que podiam ser de vassallos da coroa, e estes,
+posto nessa occasi&atilde;o estivessem em harmonia com
+os vassallos da mitra, e j&aacute; um pouco apagadas as
+divis&otilde;es antigas, era de cr&ecirc;r que por elle
+n&atilde;o tomassem
+partido. Comtudo, n&atilde;o se ficou, sem responder:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se n&atilde;o est&aacute; bom, deite-se, ou v&aacute;
+travar raz&otilde;es
+com petintaes, espadeleiros ou outra gente da
+<span class="pagenum">[18]</span>
+sua egualha; n&atilde;o se metta com quem n&atilde;o se mette
+comsigo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhem o outro! resmungou o marinheiro;
+abalroou-me com os cotovellos pelos peitos, e diz
+que se n&atilde;o mette com a gente; traz aquella cara
+que parece mesmo um odre a rever, e grita que um
+homem c&aacute; est&aacute; toldado!
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Domingues, doendo-se da nova zombaria,
+tornou mais apropriada a imagem do marinheiro,
+e cerrando os punhos exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Veja como falla!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Gra&ccedil;as a S. Pedro; meu advogado, redarguiu
+o homem do mar, levando a m&atilde;o ao barrete&#8213;n&atilde;o
+&eacute; facil de dizer se em atten&ccedil;&atilde;o ao
+santo-apostolo,
+se em cortezia zombeteira, pelo esgar que fez,
+ao senhor Gon&ccedil;alo&#8213;gra&ccedil;as a S. Pedro, fallo sem
+trave.
+E n&atilde;o me fa&ccedil;a biocos nem arremessos, accrescentou
+com ar mais carregado: que, se me sobe a
+mar&eacute; aos cascos?!...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que &eacute; l&aacute; isso, mestre Gon&ccedil;alo?
+perguntou
+quasi ao mesmo tempo um cidad&atilde;o de pouco
+menos edade que o interrogado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; este excommungado, que se metteu onde
+n&atilde;o era chamado, e me poz a paciencia em maior
+apuro do que j&aacute; a trazia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Excommungado &eacute; elle! resmungou o marinheiro,
+recambiando o ap&oacute;do que lhe f&ocirc;ra dirigido,
+e fitando ora o novo, ora o antigo interlocutor.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhe, mestre Gil, tornou o burguez rubicundo,
+dirigindo-se ao recem-chegado; ia eu amofinado
+por causa daquella cabe&ccedil;a de vento de meu
+sobrinho...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E que tenho l&aacute; eu com seu sobrinho? tornou
+o marinheiro.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[19]</span>
+&#8213;Isso mesmo queria eu que me dissesse!
+acudiu o senhor Gon&ccedil;alo.
+<br />
+
+<br />
+
+E, voltando-se para o seu collega, continuou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ia eu, como lhe dizia, amofinado, porque o
+maldito do rapaz se me escapou&#8213;ora sei eu l&aacute; para
+onde!&#8213;e n&atilde;o sei que digo de mim para mim, quando
+essa creaturinha, como se n&atilde;o tivesse da sua egualha
+mais com quem desenferrujar a lingua, travou-se
+de raz&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Isso nada vale, mestre Gon&ccedil;alo! atalhou o
+homem a quem vimos dar o nome de Gil, dirigindo-se
+para o galeote, que lhe voltou as costas, fazendo
+uma careta muito expressiva para um companheiro,
+que, com uma m&atilde;o pousada no hombro
+delle, parecia, na posi&ccedil;&atilde;o que tomava, querer
+dizer
+que alli estava para ir em seu auxilio, se preciso fosse,
+que n&atilde;o era.
+<br />
+
+<br />
+
+O gordo burguez, vendo o antagonista voltar-lhe
+as costas, desafogou contra elle, com o seu amigo,
+a cholera, que o amea&ccedil;ava com uma apoplexia;
+e em seguida desafogou tambem a respeito do causador,
+o estouvado sobrinho, que desapparecera. Apesar
+de ter escoado a multid&atilde;o pela porta da cidade,
+de estar j&aacute; desembara&ccedil;ado o transito,
+&aacute; volta dos
+altercadores havia uma reuni&atilde;o de curiosos, como de
+costume, cujo nucleo era uma boa duzia de garotos
+pertencentes, pelo que dos trapos vestidos se divisava,
+a tres religi&otilde;es; pelo typo, a tres ra&ccedil;as, e ao
+qual se juntavam por um segundo, que mais n&atilde;o fosse,
+os arrastados daquella prociss&atilde;o e todos os que
+por alli o acaso conduzia. Uma velha que regressava
+aos lares com os aviamentos para a ceia, comprados
+na tenda d'ao p&eacute; da porta, soalheiro do bairro,
+n&atilde;o
+escapou, apesar de carregada, &aacute; for&ccedil;a attrahente
+das
+<span class="pagenum">[20]</span>
+lamenta&ccedil;&otilde;es de mestre Gon&ccedil;alo; e,
+sabida a causa destas,
+se appressou em dar-lhe remedio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quer saber do seu sobrinho que esteve no
+convento, mestre Gon&ccedil;alo? Bem se v&ecirc; que o rapaz
+n&atilde;o tinha queda para os latins e o h&aacute;bito;
+aquillo
+&eacute; um levantado! Tome sentido com elle, mestre!
+Agora o vi eu a correr pela bitesga que vai por p&eacute;
+da casa de Jo&atilde;o Ramalho. A modos que elle...
+<br />
+
+<br />
+
+A reflex&atilde;o da velha, se na phrase ficou incompleta,
+n&atilde;o o ficou no gesto. A traduc&ccedil;&atilde;o
+deste era
+que o rapaz come&ccedil;ava a inclinar-se &aacute;s
+saias. (Como
+demos a traduc&ccedil;&atilde;o, ajuntaremos, em nota
+intercalada
+no texto, que a boa santinha parecia, no ar malicioso
+que tomou, recordando-se dos seus tempos, ter delles
+saudade.)
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Domingues, sem mais attender &aacute; mulher
+da alcofa, tomou a direc&ccedil;&atilde;o do sitio indicado
+como o
+seguido pelo sobrinho, resolvido a descarregar nelle
+o mau humor excitado pelo seu desapparecimento,
+pelos apert&otilde;es que lev&aacute;ra, o cortejo que perdera,
+e,
+sobretudo, os apodos e murros do galeote. Em quanto
+para l&aacute; se dirige, ruminando aquellas passadas
+attribula&ccedil;&otilde;es, saibamos o que fazia o travesso
+rapaz.
+<br />
+
+<br />
+
+Como j&aacute; viu o leitor, no antecedente capitulo,
+no tempo em que estas cousas succediam, as
+habita&ccedil;&otilde;es,
+em Miragaya, estavam mais perto do rio, ou
+melhor, o rio corria mais perto das habita&ccedil;&otilde;es.
+Entre
+S. Pedro e os muros, havia, no espa&ccedil;o que abre
+a montanha, algumas bitesgas, de que ainda se conserva
+uma amostra, povoadas umas, outras correndo
+entre cercados e muros; em outros sitios, um fraguedo
+deixava apenas o logar preciso para algum carreiro
+n&atilde;o muito viavel. A povoa&ccedil;&atilde;o
+cerrava-se, apinhava-se
+<span class="pagenum">[21]</span>
+mais para o p&eacute; da velha egreja de S. Pedro,
+e rareava progressivamente para o oriente e poente.
+Perto dos muros, havia t&atilde;o s&oacute;mente uma fieira
+de casas &aacute; beira d'agua; depois o declive rude do
+monte onde se edificou o convento dos Agostinhos,
+coberto de silvados e matto, que vinha angustiar
+mais o passo para a cidade. Onde se tornava mais
+suave a encosta, subia um carreiro, que, depois de
+serpear por detraz de algumas das moradas do bairro
+do rei, se bifurcava, levando um bra&ccedil;o a uma daquellas
+ruas, lan&ccedil;ando outro pelo monte, serventia
+a casaes que se communicavam egualmente com a
+cidade pelo lado do Olival. Por este carreiro &eacute; que
+tom&aacute;ra Fernando, ou Fern&atilde;o Vasques, o sobrinho do
+senhor Gon&ccedil;alo Domingues, mal viu absorvida a
+aten&ccedil;&atilde;o
+deste nas gal&eacute;s reaes e seus passageiros. O
+rapaz correu por algum tempo sem trope&ccedil;ar, para o
+que preciso era estar bem affeito a trilhar similhante
+caminho, e s&oacute; affrouxou o passo quando se approximava
+de uma casa de boa apparencia, cuja frente
+dava para a praia, habita&ccedil;&atilde;o de uma das
+notabilidades
+do bairro, e que o foi depois, na historia, do piloto
+e mercador Jo&atilde;o Ramalho.
+<br />
+
+<br />
+
+A casa para o lado do rio nada appresentava
+de notavel na fachada: era um edificio de madeira
+como muitos dessa epocha; para o lado do monte,
+por&eacute;m, era bastante pictoresca. A parte inferior
+escondia-se
+em uma moita de arbustos de um pequeno
+cercado, onde tambem se levantavam algumas arvores
+de fructo, uma das quaes, rompendo, com um
+bra&ccedil;o lan&ccedil;ado &aacute; flor da terra o muro
+de pedra insossa,
+saccudia sobre o caminho a folha, a flor e
+mesmo o fructo, se a gula dos garotos esperava pelos
+effeitos do tempo. Acima do verde dos arbustos
+<span class="pagenum">[22]</span>
+descortinava-se uma varanda de pau, onde, no parapeito,
+davam passagem ao ar e &aacute; luz aberturas symetricas,
+figurando folhas de trevo, e na parte superior,
+zelozias em xadrez, tudo pintado de encarnado
+vivo e verde esmeralda, com que real&ccedil;ava o branco
+que tingia o tabique. De ambos os lados da varanda
+descia uma escada, cujos maineis se perdiam
+entre os arbustos, depois de se ligarem em um patamar,
+ao centro, para de novo se separarem, formando
+da sorte um corpo saliente na fachada. Por
+cima da varanda abriam-se duas janellas, todas lavradas,
+ornadas de zelozias tambem, e tendo por baixo,
+sobre traves salientes, em cada uma das quaes
+artista rude esculpira um animal sonhado, dous caix&otilde;es
+com terra. Em um, apar do qual duas longas canas
+formavam um estendal, onde se via roupa a seccar,
+a providencia domestica seme&aacute;ra salsa e a
+precau&ccedil;&atilde;o
+contra feiti&ccedil;os dispozera um p&eacute; de arruda; no
+outro, havia um p&eacute; de amores perfeitos e outro de
+madresilva marinhando por cord&otilde;es passados para o
+guarda-chuva de madeira que os abrigava.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando Fernando Vasques se aproximou da casa,
+depois de alguns assobios, entre a trepadeira e por
+cima dos amores, appareceu, aberta a zelozia, uma
+cabe&ccedil;a bem propria para encaixilhar entre aquellas
+flores. Imaginae um rosto oval, de uma carna&ccedil;&atilde;o
+que
+se n&atilde;o podia dizer branca, mas a que se n&atilde;o podia
+chamar trigueira, porque o n&atilde;o era; uma pallidez, sem
+ser dessas que denunciam uma natureza enfesada,
+doentia; uma pallidez que lhe dava um todo de brandura,
+de carinho, que fazia por vezes real&ccedil;ar um carmim
+vivissimo e trahia um olhar travesso, de travessura
+infantil, innocente; imaginae uma bocca de um
+lindo desenho, formando em cada extremo uma covinha
+<span class="pagenum">[23]</span>
+engra&ccedil;ada; uma bocca que parecia sorrir sempre,
+mesmo quando a fronte scismava ou as lagrimas
+desciam pelas faces; imaginae que o nariz f&ocirc;ra modelado
+pelo de uma estatua antiga, e imaginae, sobretudo,
+uns olhos castanhos rasgados, assombrados por
+uma franja de cilias t&atilde;o cerrada, que pareciam negros
+como a baga do loureiro; uns olhos, emfim, expressivos,
+verdadeiros espelhos d'alma, como lhes chamam os
+poetas, e tereis uma ideia das fei&ccedil;&otilde;es de Irene.
+Esta
+encantadora cabe&ccedil;a enfeitava-se com o mais soberbo
+cabello que se p&oacute;de ter aos quinze annos; negro, longo,
+serico, ligeiramente ondeado. Para maior realce
+da c&ocirc;r, parecia feita &aacute; moda que vogava. As
+tran&ccedil;as,
+que vinham pousar no collo, alvo como marfim, eram
+intermeiadas por fitas de l&atilde; de um vermelho vivo, que
+se cruzavam depois na cabe&ccedil;a e vinham cahir soltas,
+dos lados, terminando em pingentes de metal dourado.
+<br />
+
+<br />
+
+As leis que faziam distinguir, pela cabe&ccedil;a, as solteiras
+das casadas e estas das viuvas cahiam em desuso.
+<br />
+
+<br />
+
+A filha de Jo&atilde;o Ramalho, apesar da curta edade,
+era uma bellesa. O sangue de sua m&atilde;e, uma dessas
+bellas mo&ccedil;as da Asia, em que se confundiam dous
+typos, o grego e o armenio, predominando, desenvolvera
+aquelle corpo garboso; dera-lhe na adolescencia
+o acabado, a morbidez que s&oacute; mais tarde,
+em geral, em outra edade se alcan&ccedil;a. Com o corpo
+desenvolvera-se o espirito: desenvolvera-o a esmerada
+educa&ccedil;&atilde;o materna, que distava bem da vulgar
+entre a nossa burguezia naquelles tempos, e os
+carinhos da boa mulher, que o senhor Jo&atilde;o n&atilde;o
+comprehendia bem, entretido sempre nas suas viagens
+e rude, voltados todos para aquella filha unica,
+em que se embellezava cultivando-lhe o cora&ccedil;&atilde;o,
+<span class="pagenum">[24]</span>
+aformosearam-lhe a alma. Uma bella alma faz
+um rosto, sen&atilde;o formoso, amavel; a intelligencia reproduz-se
+nas fei&ccedil;&otilde;es como aureola que lhes d&aacute;
+realce; a natureza, j&aacute; o dissemos, f&ocirc;ra madrinha e
+n&atilde;o madrasta para com Irene: a bella menina, reunindo,
+pois, todas as formosuras, despertava a admira&ccedil;&atilde;o
+e o amor ao mesmo tempo. A impress&atilde;o produzida
+no sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues f&ocirc;ra esta,
+e que o amor naquelle peito tinha boas raizes, dizia-o
+a confus&atilde;o em que elle ficou, mal &aacute; janella
+appareceu
+a gentil cabe&ccedil;a. Fernando, um rapaz jovial e resoluto,
+como o diziam uns olhos castanhos cheios de
+fogo, um nariz ligeiramente curvo, os l&aacute;bios delgados,
+accentuados na extremidade por um ligeiro bu&ccedil;o;
+Fernando baixou os olhos, fez-se vermelho,
+sentiu que os joelhos se dobravam, enfraquecidos,
+e, sem se attrever a fitar de novo aquella
+appari&ccedil;&atilde;o,
+bom tempo gastou em puxar o barrete de um para o
+outro lado da cabe&ccedil;a e amarrotal-o nas m&atilde;os, nem
+crean&ccedil;a bisonha que se disp&otilde;e a abrir brecha na
+bolsa
+paterna, ou tem de responder por avaria feita, acabando
+por desafivelar o cinto da jornea, como se carecesse
+de tomar largo folego para levar a cabo a sua
+empresa.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o era esta a vez primeira em que alli se encontrava
+em taes embara&ccedil;os, por&eacute;m nunca t&atilde;o
+graves
+tinham sido as circumstancias. A gravidade n&atilde;o
+provinha da escapula feita a seu tio, que j&aacute; nem de
+tal se lembrava, mas da resolu&ccedil;&atilde;o que
+tom&aacute;ra de realisar
+as suas ambi&ccedil;&otilde;es e sonhos, as
+combina&ccedil;&otilde;es de
+tantas horas; de passar al&eacute;m de alguns gestos e sorrisos
+e umas sauda&ccedil;&otilde;es feitas do cimo da encosta,
+n&atilde;o fallando em uma enfiada de sons, que palavras
+se n&atilde;o podiam dizer, pois nem elle lhes soubera o
+<span class="pagenum">[25]</span>
+sentido, soltados &aacute; porta de S. Pedro entre uns como
+arrepios, que attribuiu ao modo porque o encarou
+a cultivadora da arruda, a creada a quem o senhor
+Jo&atilde;o Ramalho, por morte de sua esposa, confi&aacute;ra
+o governo da casa e a guarda da filha.
+<br />
+
+<br />
+
+Quasi egual &aacute; for&ccedil;a da
+resolu&ccedil;&atilde;o f&ocirc;ra o abalo, como
+nestas cousas &eacute; de costume, mas Fernando n&atilde;o
+estava
+resolvido a deixar perder mais uma occasi&atilde;o: puxando
+o barrete sobre a nuca, subiu a um comoro,
+ao lado da quelha, ergueu os olhos e abriu a bocca,
+por&eacute;m a palavra engasgou-se-lhe a um gesto de
+Irene.
+O pobre n&atilde;o prevera que pr&eacute;gar a sua confidencia
+daquelle sitio f&ocirc;ra, querendo que ella a ouvisse,
+mettel-a tambem nos ouvidos dos visinhos, ou pelo
+menos das pessoas de casa, e a mo&ccedil;a, levando um
+dedo aos l&aacute;bios e indicando-lhe com um gesto que
+descia &aacute; varanda para encurtar a distancia, se no
+enleio, no rubor se mostrava mal affeita &aacute;quellas
+artimanhas,
+professadas pelo amor, ou quem suas vezes
+faz, como do sexo a que pertencia, se mostrava mais
+prudente. Irene desceu, mas vencido a meio
+o inconveniente da distancia, furtava-se, encoberta pelo
+cercado da horta, &aacute;s vistas de Fernando. Este eclypse,
+como diria um poeta, foi que deu ao namorado
+um animo de que elle proprio se espantou por muitos
+dias depois: atreveu-se a subir ao muro e marinhar pela
+arvore que se debru&ccedil;ava sobre a estrada, a esconder-se
+entre a ramagem.
+<br />
+
+<br />
+
+Os discursos naquelle dia tinham m&aacute; sorte: como
+o que f&ocirc;ra destinado a Ruy Pereira, o pensado
+e repensado do sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues n&atilde;o
+vingou. A erudic&ccedil;&atilde;o do abbade de Pa&ccedil;o
+de Sousa
+achatara-se de encontro &aacute; paciencia do fidalgo; as
+flores escolhidas para ornar a declara&ccedil;&atilde;o feita a
+Irene
+<span class="pagenum">[26]</span>
+(t&atilde;o rico dellas &eacute; o
+cora&ccedil;&atilde;o em que rebenta
+o amor!) as flores de estylo queimou-as um olhar
+lan&ccedil;ado ao mancebo, traduzindo tanta cousa, que
+s&oacute;
+um desses olhares podia dar bons tres capitulos como
+este em que se conta e commenta tanto successo.
+O olhar de uma donzella, como a filha do piloto,
+nestas confidencias de um primeiro amor&#8213;deixem
+dizer que o amor, o verdadeiro amor s&oacute; vem muito
+mais tarde, deixem; que elles treleem, e julgam que
+o egoismo aquilata a paix&atilde;o&#8213;; o olhar de uma donzella
+assim, encerra um mixto de affecto carinhoso,
+de volupia indefinivel, de pudor e innocencia, de receio
+e ousadia, que, para delle dar uma ideia, a poesia
+mesmo &eacute; uma linguagem descolorida.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando, mal se viu frente a frente com a mo&ccedil;a
+namorada, sentiu um formigueiro nos p&eacute;s, turbara-se-lhe
+a vista, e teve de se agarrar aos ramos da
+arvore, para n&atilde;o cahir; quiz procurar o cabe&ccedil;alho
+da sua declara&ccedil;&atilde;o, por&eacute;m nem uma
+s&oacute; ideia lhe vinha
+&aacute; mente; por mais de uma vez abriu a bocca,
+e teve de a fechar sem formular um unico monosyllabo.
+Irene, na varanda, com a approxima&ccedil;&atilde;o
+tambem se acanh&aacute;ra, e occultava o seu embara&ccedil;o,
+ou,
+antes descobria-o, passando a m&atilde;o pela fronte,
+levantando
+uma tran&ccedil;a para logo a abaixar, enrolando
+e desenrolando uma das fitas, afogando e desafogando
+o pesco&ccedil;o com o singelo colleirinho do corpete.
+Os minutos que assim passaram n&atilde;o foram poucos.
+Recuar depois de ter chegado at&eacute; alli era desairoso
+e difficil.
+<br />
+
+<br />
+
+O sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues fez o supremo
+esfor&ccedil;o para n&atilde;o perder tudo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Irene, Irenesinha! disse elle, amarrotando o
+barrete com a m&atilde;o que tinha desembara&ccedil;ada.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[27]</span>
+A mo&ccedil;a fitou-o, sorriu-se, e ainda alguns minutos
+foram desperdi&ccedil;ados, se desperdi&ccedil;ado se
+p&oacute;de dizer
+aquelle tempo passado em enleio, r&aacute;pido na
+passagem, mas que depois enche com a recorda&ccedil;&atilde;o
+tantas horas de vida.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Irenesinha! tornou Fernando, continuando a
+procurar a musa no barrete.
+<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a continuou a fitar o embara&ccedil;ado rapaz,
+aguardando que alguma palavra mais seguisse &aacute;
+invoca&ccedil;&atilde;o.
+O barrete n&atilde;o absorvera, ao que parecia,
+os galanteios estudados, amimados por tanto tempo,
+pelo que, depois de larga pausa, Fernando desceu das
+regi&otilde;es do amor a cousas mais terrestres, na linguagem;
+procurou, se, o que &eacute; mais provavel, se
+n&atilde;o agarrou &aacute; primeira idea visada, um ponto de
+partida nos successos do dia, e titubeou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o sabe que chegaram ahi umas gal&eacute;s de
+Lisboa?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sei; respondeu a joven, baixinho, depois de
+olhar para todos os lados a v&ecirc;r se alguem poderia
+ouvir aquella conversa&ccedil;&atilde;o
+<em>amorosa</em>. Meu pae para
+l&aacute; foi.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Foi? interrogou machinalmente o mancebo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Foi, repetiu Irene, debru&ccedil;ando-se pela varanda
+e fazendo com uma das m&atilde;os junto do ouvido
+uma concha para n&atilde;o perder uma s&oacute; palavra.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois veem nellas muitos fidalgos de Lisboa.
+N&atilde;o os viu desembarcar?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vi.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Disseram-me que iam em prociss&atilde;o &aacute; cidade,
+e que traziam um recado do senhor D. Jo&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E n&atilde;o foi v&ecirc;r?...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhe, Irene, atalhou Fernando em voz mais
+baixa e intercortada, por muito que tenham que v&ecirc;r,
+<span class="pagenum">[28]</span>
+eu antes quero estar aqui. A menina &eacute; que n&atilde;o sei
+como n&atilde;o vai para o lado da praia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para que? T&atilde;o longe fica o lugar onde vararam
+as gal&eacute;s, e est&aacute; um gentio...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, se pod&eacute;sse v&ecirc;r, n&atilde;o
+estava ahi.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque n&atilde;o? disse Irene, c&oacute;rando.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque... porque, titubiou Fernando, baixando
+os olhos; porque aquelles fidalgos com as jorneas
+bordadas, aquellas armas a espelhar s&atilde;o mais
+para se verem...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Da janella, tornou a mo&ccedil;a, encolhendo os
+hombros; da janella n&atilde;o se podem admirar esses
+alindes.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando baixou a cabe&ccedil;a, desconcertado o seu
+intento. A mo&ccedil;a n&atilde;o vinha para o campo para que
+elle a queria trazer: n&atilde;o o entendia, pensava elle,
+e se o n&atilde;o entendia &eacute; porque o n&atilde;o
+amava. Se soubesse
+avaliar a entona&ccedil;&atilde;o de certas palavras
+n&atilde;o
+pensaria daquella sorte; por&eacute;m todos os namorados
+assim s&atilde;o: n&atilde;o reparam nas rosas e colhem os
+espinhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh! Irenesinha, e se esses fidalgos viessem
+fazer uma leva para a guerra contra os scismaticos de
+Castella? tornou o mancebo, procurando levar a
+conversa&ccedil;&atilde;o
+ao fim desejado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para que pensar nessas cousas!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E se me levassem? insistiu elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas elles n&atilde;o veem para isso; n&atilde;o, senhor
+Fernando? disse a donzella com uma inflex&atilde;o de voz,
+que pintava o receio de que uma affirmativa fosse a
+resposta.
+<br />
+
+<br />
+
+O sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues n&atilde;o notou
+esta express&atilde;o e proseguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o se lhe dava que eu fosse?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[29]</span>
+&#8213;Eu?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim; parece que n&atilde;o teria pena alguma.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o diga essas cousas!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois dev&eacute;ras magoava-a a minha partida?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Dev&eacute;ras; disse Irene, passando a m&atilde;o pelo
+rosto, para occultar as tintas do pejo, que a elle assomavam
+com esta confiss&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o diz o que pensa, acudiu o mancebo, imprimindo,
+cheio de alegria, um tal abalo &aacute; arvore, que
+esta, oscilando o ro&ccedil;ando de encontro ao muro, fez
+desprender algumas pedras.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! vai cahir! exclamou a donzella, tornando-se
+p&aacute;llida.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ai! Irenezinha, s&oacute; para v&ecirc;r se o que diz
+&eacute;
+certo, de boa vontade quebrava a cabe&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a, em vez de responder, com um gesto
+impoz silencio ao seu conversado. Do lado de baixo
+ouvia-se os passos de quem para alli se dirigia, e
+pouco depois appareceu Gon&ccedil;alo Domingues.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; meu tio, disse Fernando, com voz t&atilde;o sumida,
+que para si t&atilde;o s&oacute; parecia fallar, e no momento
+em que o rotundo burguez passava distrahido
+junto do muro, querendo esconder as pernas que deixava
+pender de um e outro lado do galho em que
+cavalgava, de novo oscilou a arvore violentamente,
+mais arruinando o muro a que se encostava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh velhaco, que fazes ahi empoleirado?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu, senhor tio? accudiu o pobre rapaz, co&ccedil;ando
+na cabe&ccedil;a com toda a furia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim, tu, Belzebuth! Salta c&aacute; para baixo, que
+te ensino a andar a roubar fructa pelos cerrados.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh meu tio, a arvore n&atilde;o tem fructo; olhe
+bem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o que fazes ahi?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[30]</span>
+&#8213;Eu estava a v&ecirc;r...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O que, rapaz de m&aacute; morte, cabe&ccedil;a
+&ocirc;cca?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A v&ecirc;r se o via por algures, proseguiu o desconcertado
+mancebo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Levadigas te colham! Procuraste atalaya bem
+longe do caminho. Ora, desce, que eu te vou ensinar
+chan&ccedil;as melhores.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Cuidei que ia pela Aljama.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Algemia &eacute; isso que tu est&aacute;s a
+pr&eacute;gar. Desce,
+velhaco!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;L&aacute; vou, tio; disse Fernando, descavalgando,
+por&eacute;m deixando-se suspenso pelas m&atilde;os do seu
+poleiro.
+Mas...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas o que? Por tua causa em boas me vi, e
+tu m'as pagar&aacute;s juntas. Eu farei de modo que n&atilde;o
+tenhas mais vontade de ir devassar hortas e cercados.
+Se vais por esse caminho, acabas nas m&atilde;os da
+justi&ccedil;a! exclamou o senhor Gon&ccedil;alo Domingues, com
+sobrecenho provocado pela recorda&ccedil;&atilde;o de
+desaguisado
+da praia.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando deitou &aacute; donzella, que toda tr&eacute;mula
+se conservava encostada &aacute; varanda, um olhar a furto,
+n&atilde;o se attrevendo, por envergonhado de ser assim,
+alli na presen&ccedil;a della, tractado como uma
+crean&ccedil;a,
+a uma despedida; com outro relance d'olhos avaliou
+se as amea&ccedil;as do tio n&atilde;o teriam, na
+execu&ccedil;&atilde;o, algum
+desconto, e lentamente, soltando um suspiro, desceu
+da arvore em que, ao modo das aves, tinha soltado
+as primeiras confidencias do amor. T&atilde;o depressa sentiu
+nos p&eacute;s o contacto do pedregulho da bitesga, como
+sentiu nas orelhas o da m&atilde;o de mestre Gon&ccedil;alo,
+que acompanhava cada pux&atilde;o com um epitheto
+pouco amavel, terminando pelo de
+&laquo;ladr&atilde;o&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[31]</span>
+&#8213;Ladr&atilde;o n&atilde;o! exclamou o rapaz dando um salto,
+ferido pela insistencia do tio naquelle ruim conceito.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o que fazias alli, rapaz dos meus peccados?
+<br />
+
+<br />
+
+Alguem, n&atilde;o o interrogado, se encarregou de
+responder. &Aacute; janella onde vecejava a arruda assomou
+um rosto encarquilhado, meio occulto em uma enorme
+touca de linho a fei&ccedil;&atilde;o das que usam as freiras,
+e gritou com uma voz de canna rachada, debru&ccedil;ando-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Menina Irene! menina Irene!
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Domingues suspendeu as suas iras, e estendeu
+o l&aacute;bio inferior com um gesto que queria dizer
+muita cousa, e, entre outras, que atinava com o motivo
+de ter o sobrinho trocado a prociss&atilde;o dos fidalgos
+por uma ascens&atilde;o &aacute;s arvores do senhor
+Jo&atilde;o Ramalho.
+Lembraram-lhe as palavras e os momos da
+velha da praia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;J&aacute; agora vamos pela Aljama, e de passo fallarei
+com meu compadre; disse em seguida, dando um
+encontr&atilde;o ao mancebo e indicando o carreiro que subia
+a montanha.
+<br />
+
+<br />
+
+Mettendo-se a caminho, voltou a cabe&ccedil;a, como a
+volt&aacute;ra Fernando, para a casa do mercador, e viu na
+janella do andar superior, por entre a zelozia meia
+aberta, o rosto da gentil menina.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Aacute; f&eacute;, disse elle por entre dentes, que o rapaz
+n&atilde;o tem ruim gosto; e ella...
+<br />
+
+<br />
+
+A palavra foi terminada por um sorriso, olhando
+para Fernando, como desvanecido do seu sangue.
+Gon&ccedil;alo Domingues era um excellente homem,
+apesar de toda a sua aspereza apparente.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>III.</h3>
+
+<h3>
+Os Velhacos.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+Aquelles cidad&atilde;os nobres praticavam
+n'isto com mais delibera&ccedil;&atilde;o,
+como homens, que tinham mais
+que perder, que os plebeus que seguiam
+o Mestre...
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="smallcaps signature">
+chronica de d. jo&atilde;o
+1.&ordm;
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Uma cidade da peninsula, no seculo XIV, n&atilde;o era
+um aggregado de individuos vivendo, como hoje,
+debaixo da mesma lei&#8213;segundo reza a lei, entenda-se.
+Af&oacute;ra as distinc&ccedil;&otilde;es de classes e
+senhorios diversos,
+havia a distinc&ccedil;&atilde;o de cren&ccedil;as, e a
+separa&ccedil;&atilde;o era
+visivel nas grossas cadeias que tornavam ao cahir
+<span class="pagenum">[34]</span>
+das Ave-Marias incommunicaveis certos bairros. O
+Porto tinha de tudo: subditos da coroa e subditos da
+mitra, e no tempo em que succedia o que narramos,
+moradores que nem reconheciam uma, nem outra;
+havia christ&atilde;os, mouros e judeus. Sobre um
+monte alteavam-se as torres da S&eacute;, e os pa&ccedil;os
+fortificados
+do bispo; sobre o outro mais humilde levantava-se
+a esnoga, ou synagoga, e na encosta, entre
+um e outro, a pequena aljama appresentava-se,
+como o symbolo da religi&atilde;o do propheta de Yatreb,
+querendo approximar-se do Evangelho e da Biblia,
+e lan&ccedil;ando depois pela encosta um ou outro casebre,
+como transi&ccedil;&atilde;o para alguma morada de heresiarcha
+que se occultasse entre os foragidos do Oriente. A
+aljama era a mais pobre: a esnoga era a mais rica;
+a cruz, mais alta, dominando as duas, era a
+mais forte.
+<br />
+
+<br />
+
+Aljama, municipio, cathedral, esnoga, tudo f&ocirc;ra
+cintado pela mesma muralha, como para viver em
+boa fraternidade; mas esta aguara entre os dous filhos
+de Ad&atilde;o, quanto mais entre tanta gente. O judeu
+despresava o mouro; o mouro despresava o judeu;
+o christ&atilde;o despresava a ambos, e, como fizera
+a lei, talh&aacute;ra para si mais regalias e para os outros
+mais tributos, reservando, para os que nada tivessem
+de seu, o direito de se lamentarem em particular de
+algum pesco&ccedil;&atilde;o de burguez arrufado, gilvaz de
+cavalleiro,
+pedrada de garoto e praga de rasc&ocirc;a enraivecida,
+ou velha rabujenta. Era uma sorte bem
+agradavel, feliz, comtudo, aquella, em compara&ccedil;&atilde;o
+&aacute; que lhes prepararam, aos judeus especialmente, uns
+beatos mettidos em politica, de que se serviam para
+ganhar o c&eacute;u, suppunham elles, e um bando de
+togas, garnachas e roupetas que se serviam do c&eacute;u
+<span class="pagenum">[35]</span>
+para apanhar dinheiro. Aquella animosidade era a
+regra geral, mas toda a regra tem excep&ccedil;&atilde;o, e na
+mouraria era &aacute;s vezes recebido com os bra&ccedil;os
+abertos
+o mesteiral; na judearia havia m&atilde;o que se estendia
+ao burguez em prova de amisade sincera, e um ou
+outro filho de Israel achava agasalho n&atilde;o chorado na
+casa do christ&atilde;o, mesmo quando aquelle n&atilde;o tinha
+a
+arca cheia de boas dobras; que em tal caso todas as
+portas se abriam, desde a do pa&ccedil;o r&eacute;gio ou
+episcopal
+e a do solar do nobre, at&eacute; &aacute; da cella do
+reverendo
+abbade, e a do leigo, e sobre elles choviam
+honras e merc&ecirc;s; como eram prova viva D.
+Judas e D. David, duas creaturas, que, fazendo grande
+arruido na c&ocirc;rte, jogaram com os destinos do
+paiz, como bons ministros de finan&ccedil;as&#8213;o nome, o
+titulo ainda n&atilde;o estava creado, mas a cousa j&aacute;
+existia&#8213;n&atilde;o
+se esquecendo de tirar delle todo o succo
+possivel. Gon&ccedil;alo Domingues vivia em boa harmonia
+com o arabi, ou arrabi menor, harmonia que o devia
+lisongear, pois era at&eacute; certo ponto uma notabilidade,
+como chefe dos judeus da cidade e como
+homem de teres, e por isso se resolvera a subir a
+encosta, pelo lado do Olival, para fallar em certos
+negocios em que desejava servir um seu compadre,
+e tractar da compra de por&ccedil;&atilde;o de gado. O velho
+Gon&ccedil;alo,
+for&ccedil;ureiro nos seus principios, reunira o cabedal
+bastante para alargar a &aacute;rea do seu commercio:
+estendera-o &aacute;s carnes-verdes e ensacadas e a pellames
+de todo o genero; tornara-se em fim um negociante
+de considera&ccedil;&atilde;o, como um seu collega de
+Coimbra, que salvou a patria, emprestando a sua
+senhoria, o Mestre de Aviz, alguns punhados de dobras,
+servi&ccedil;o que lhe rendeu a doa&ccedil;&atilde;o de
+alguns bens
+nacionaes e a gloria de ser o tronco de uma nobre
+<span class="pagenum">[36]</span>
+familia. A nobreza de elmo cerrado atira-se aos fidalgos
+do seculo XIX, lan&ccedil;ando-lhe em rosto o n&atilde;o ser
+com a espada que lavrassem os seus escudos; mas
+&eacute; porque n&atilde;o teem paciencia ou vagar de revolver
+os archivos da familia, sen&atilde;o deixaria de atirar
+pedra ao telhado dos visinhos, vendo os seus
+de vidro: se por tal de vidro os podem considerar.
+Deixemos reflex&otilde;es, por&eacute;m, e retrogrademos ao bom
+tempo, que assim se chama sempre ao tempo passado,
+a apanhar o rico burguez e o sobrinho &aacute; porta
+do Olival.
+<br />
+
+<br />
+
+No campo, que, extra-muros, por aquelles lados
+se estendia, ainda se viam alguns individuos,
+que, com os olhos postos no rio, pareciam analysar
+as gal&eacute;s chegadas; mas era visivel que, de todos os
+portuenses, estes, que assim ainda pasmavam, eram os
+menos curiosos, os mais indifferentes &aacute; lucta travada.
+A boa parte, farrapos, que em bom tempo tinham
+formado uma aljuba, denunciavam como decendentes de Tarik; a outros
+distinguia-os um circulo de
+l&atilde; amarella pregado nos grosseiros tabardos; o resto
+n&atilde;o se distinguia por cousa alguma da roupa, porque
+naquelle cerzido de trapos nada se podia distinguir.
+Os curiosos, os verdadeiros curiosos t&iacute;nham,
+como vimos, descido &aacute; baixa da cidade, e mais crescera
+o numero depois que se soubera que nada havia
+que receiar das gal&eacute;s, e que Ruy Pereira e os outros
+capit&atilde;es desembarcaram e seguiram processionalmente
+para os pa&ccedil;os municipaes. Gon&ccedil;alo Domingues,
+intercalando as combina&ccedil;&otilde;es de seu negocio
+com reflex&otilde;es sobre a descoberta feita dos amores
+de seu sobrinho, reflex&otilde;es que faziam com que
+a este mostrasse gesto carregado, e interiormente se
+sorrisse, avivando na memoria os seus verdes annos:
+<span class="pagenum">[37]</span>
+medindo de tempos a tempos a altura do
+sol, que n&atilde;o eram depois de Ave-Marias seguras
+certas paragens, passeava de um para o outro lado
+do campo: Fernando acompanhava-o, voltando a todo
+o instante a cabe&ccedil;a para Miragaya; procurando
+aproximar-se de sitio d'onde pod&eacute;sse ao menos v&ecirc;r
+a casa do mercador; reprehendendo-se por n&atilde;o ter
+aproveitado melhor o tempo que pass&aacute;ra junto de
+Irene, dizendo uma fineza daquellas do livro de cavallerias,
+que frei Gumeado lhe deix&aacute;ra l&ecirc;r;
+descoro&ccedil;oado
+por aquelle final, que de certo o rebaixaria
+no conceito da linda mo&ccedil;a. O sobrinho andava
+t&atilde;o embebido, que nem sentia os p&eacute;s tocar no
+ch&atilde;o, e o campo n&atilde;o era jardim areado; o tio
+can&ccedil;ava-se
+j&aacute; de aguardar seu compadre, que n&atilde;o
+encontr&aacute;ra
+em casa, quando a appari&ccedil;&atilde;o de um personagem
+veio p&ocirc;r em movimento os frequentadores
+do campo: uns deslisaram-se, o mais sorrateiramente
+que lhes foi possivel, pela encosta e por entre o
+arvoredo, outros perfilaram-se, e levaram as m&atilde;os
+aos
+barretes, os que os tinham, mostrando, comtudo, pelo
+gesto, que n&atilde;o era a estima, mas o temor que os levava
+a esta delicadesa.
+<br />
+
+<br />
+
+O recem-chegado, personagem lhe chamamos,
+e mostrava-o ser de conta entre aquella gente, era
+uma figura notavel. Um barrete de tela vermelha
+de forma exquisita rematava, assentado sobre um capirote,
+uma fronte um pouco crescida e saliente, complemento
+de um rosto ossudo, moreno, em que dous
+olhos desesperados com a proeminencia de um nariz,
+que se mettia em tudo de permeio, tinham acabado
+por enviar as pupillas, cada uma para o seu
+lado, a tomar conhecimento com as orelhas; o l&aacute;bio
+superior era adornado por um bigode esfarrapado,
+<span class="pagenum">[38]</span>
+de c&ocirc;r duvidosa, ou de todas as c&ocirc;res
+possiveis&#8213;preto,
+branco, castanho, louro e ruivo&#8213;e de egual
+mescla eram os pellos que deixava crescer no queixo. Da
+cabe&ccedil;a n&atilde;o desdiziam o resto do corpo e o
+vestuario:
+trajava um gib&atilde;o bipartido preto e vermelho, e uma
+das longas pernas enfiava-se em uma cal&ccedil;a e borzeguim
+vermelho, a outra em cal&ccedil;a e borzeguim preto;
+do pesco&ccedil;o pendia-lhe uma medalha de metal
+amarello, com as armas da cidade, da cinta
+um grande punhal e uma enorme bolsa de couro,
+e na m&atilde;o sustinha um bast&atilde;o, terminado por
+uma cabe&ccedil;a de metal cinzelada, ao que parecia, por
+artista que tom&aacute;ra a delle por modello. Medalha e
+bast&atilde;o apregoavam que Tello Rabaldo era o pae dos
+velhacos, cargo que n&atilde;o tem hoje correspondente,
+por n&atilde;o tolerarem as luzes do seculo absurdos. Tello
+superintendia, governava t&atilde;o s&oacute;mente
+cidad&atilde;os que
+em noites serenas teem o docel do leito recamado
+de estrellas, jejuam sem devo&ccedil;&atilde;o, deixam crestar
+o corpo pelo sol de Agosto e gelar o sangue pelo
+frio de Janeiro, e chamar-lhes velhacos era alterar
+a significa&ccedil;&atilde;o das palavras, se n&atilde;o
+era malicia de legislador,
+que assim arrebanhava e baptisava alguns
+centos de creaturas, para que se persuadissem as de
+boa f&eacute; que na terra n&atilde;o havia mais, como os
+hospitaes de doudos lisongeam muita gente que n&atilde;o
+&eacute; for&ccedil;ada a n&atilde;o ter l&aacute;
+moradia. Os velhacos, os verdadeiros,
+ent&atilde;o, como hoje, n&atilde;o se deixavam governar,
+sempre governavam tambem, e havia-os
+anafados, vestindo custosas telas e abrigados em pa&ccedil;os
+soberbos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eh! boa gente! exclamou Tello, dirigindo-se
+aos individuos que tractavam de lhe evitar a presen&ccedil;a;
+ent&atilde;o assim querem fugir a seu pae! Vamos,
+<span class="pagenum">[39]</span>
+venham receber a ben&ccedil;&atilde;o, como bons filhos, e com
+a ben&ccedil;&atilde;o uma boa nova. Ol&aacute;, Pedro
+Choca! accrescentou,
+depois de honrar com um sorriso a facecia
+que servira de exordio, dirigindo-se a um dos que
+se desbarretava; que nenhum dos teus falte depois
+de &aacute;manh&atilde; na Ribeira. Onde est&aacute; o
+Jo&atilde;o Bispo?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jo&atilde;o Bispo, redarguiu o interrogado, ha dias
+que desappareceu.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O velhaco voltaria para o convento farto de
+estar deitado de barriga ao sol, ou se metteu outra
+vez com a filha do velho Humeia, e est&aacute; a fazer penitencia
+por ter peccado com moura?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ou se foi lan&ccedil;ar com os scismaticos...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para que? Toma conta em ti! Chegou-me
+aos ouvidos que te travaste com elle de raz&otilde;es por
+umas nonadas, e se me d&eacute;ste cabo do rapaz, em
+boa te metteste! Se n&atilde;o me trouxeres em breve novas
+delle, a tua pelle m'as dar&aacute;. A pol&eacute; do aljube
+est&aacute; nova, e poder&aacute; bem comtigo.
+<br />
+
+<br />
+
+Choca resmungou por entre dentes algumas palavras,
+e o pae dos velhacos proseguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Avisa aos compadres para que ou v&atilde;o comtigo
+e mais a sua gente, ou a levem para as tercenas.
+Que n&atilde;o falte ninguem! Quero duzentos homens,
+bons pulsos...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Duzentos homens, bem sabe sua merc&ecirc; que
+n&atilde;o podemos reunir. A melhoria da gente levou-a o
+senhor conde Gon&ccedil;alo; o senhor alcaide tem boa
+por&ccedil;&atilde;o,
+e se crean&ccedil;as, mulheres e aleijados n&atilde;o servem...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E esses perros de cabe&ccedil;a amarrada! exclamou
+Tello, designando um mouro que a curiosidade
+trouxera para junto de Pedro Choca, capataz de uma
+turma de v&aacute;dios. Quanto aos aleijados, sei de uma
+m&eacute;sinha que os p&otilde;e s&atilde;os como um pero,
+ajuntou,
+<span class="pagenum">[40]</span>
+mostrando o seu bast&atilde;o; o manco da porta da S&eacute;
+que o diga. Vamos: sua senhoria (uma barretada)
+appellidou os bons homens da sua boa cidade (outra
+barretada) para que o ajudassem a dar cabo dos
+perros de Castella, e os alvazires d&atilde;o-vos honra
+mettendo-vos
+na conta dos bons homens... fazendo-vos
+trabalhar. Que ninguem falte, e viva sua senhoria!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva sua senhoria! repetiram os v&aacute;dios e com
+elles Gon&ccedil;alo Domingues, que se approxim&aacute;ra da
+roda
+formada ao pae dos velhacos, roda desfeita a um
+signal por este dado com a vara, deixando a importante,
+incansavel e incorruptivel auctoridade, como lhe chamariam
+hoje, que todos os encargos teem um ou mais adjectivos
+annexos, face a face com o burguez, que abria
+a bocca para indagar quaes os servi&ccedil;os que o filho
+de Thereza Louren&ccedil;o reclamava dos portuenses.
+<br />
+
+<br />
+
+A interroga&ccedil;&atilde;o n&atilde;o foi formulada.
+Tello Rabaldo,
+cheio da sua importancia, fez uma leve sauda&ccedil;&atilde;o,
+carregou o barrete sobre um dos olhos em
+rebeldia, e girou sobre os calcanhares ao mesmo
+tempo que um outro individuo assentava nos hombros
+do for&ccedil;ureiro uma grande palmada. Gon&ccedil;alo
+Domingues
+voltou-se a v&ecirc;r quem segundava a amabilidade do marinheiro,
+e se n&atilde;o reconheceu logo o seu compadre,
+foi porque um abra&ccedil;o de metter costellas dentro
+o suffocou. O bom homem vinha lisongeado com a carta
+de que Ruy Pereira f&ocirc;ra portador, lisongeado
+em extremo no seu patriotismo de localidade, e expandia
+o seu contentamento daquella sorte e em
+exclama&ccedil;&otilde;es,
+que fizeram suspeitar ao tio de Fernando,
+que n&atilde;o estava em bom arranjo aquella cabe&ccedil;a. D.
+Jo&atilde;o chamava aos portuenses o seu bom povo,
+mimose&aacute;ra-o
+al&eacute;m disso com outros epythetos taes como&#8213;leal,
+esfor&ccedil;ado, etc., e o portador, resolvido, apesar
+<span class="pagenum">[41]</span>
+do seu enfado, a ser amavel e popular, pint&aacute;ra a
+amisade e reconhecimento do Mestre, pela espontaneidade
+da sua acclama&ccedil;&atilde;o na cidade da Virgem, com
+taes c&ocirc;res, descera da sua dignidade prodigalisando
+sorrisos
+ao corpo municipal, batendo no hombro de Luiz
+Giraldes de um modo, que o nosso homem esteve por
+um triz a deixar cahir uma lagrima de commo&ccedil;&atilde;o.
+Era uma alma candida e enthusiastica, apesar do involucro
+grosseiro, o compadre do senhor Gon&ccedil;alo
+Domingos; t&atilde;o candida que acreditava no desinteresse
+do Mestre de Aviz, suppondo que defendia a coroa
+para a entregar ao filho de Ignez de Castro; t&atilde;o
+enthusiastica e patriotica que, quando, &aacute; for&ccedil;a
+de lhe
+perguntar o marchante se encontr&aacute;ra o arrabi, seccas
+as goellas e j&aacute; sem alento para descrever a
+reuni&atilde;o nos
+pa&ccedil;os municipaes e mais epysodios da embaixada,
+se recordou do seu negocio, era tarde. O sol ia quasi
+a mergulhar no oceano, e era provavel n&atilde;o s&oacute; que,
+na judearia estivessem fechadas as ruas, mas at&eacute; que
+se l&aacute; fossem, encontrassem as portas da cidade cerradas
+no regresso. Os dous burguezes separaram-se, pois: o
+patriota, compadre de Gon&ccedil;alo Domingues, seguiu pelos
+campos em direc&ccedil;&atilde;o ao povoado de Cedofeita;
+est'outro, despertando o sobrinho de pensamentos em
+que n&atilde;o entravam nem compras, nem vendas, nem
+os direitos que os filhos de Henrique 2.&ordm; de Castella
+e D. Pedro 1.&ordm; de Portugal, podiam ter &aacute;
+terra que pisava, tomou com elle o caminho de
+casa.
+<br />
+
+<br />
+
+As nuvens, que o norte espalh&aacute;ra no ar, como
+flocos de algod&atilde;o, ornadas pelas tintas que formam
+a grada&ccedil;&atilde;o entre o rubro e o amarello vivo, davam
+ao c&eacute;u a apparencia de um marmore, um todo que
+em pintura seria inverosimil; os edificios de Villa
+<span class="pagenum">[42]</span>
+Nova e de Gaya cortavam com o perfil o horisonte,
+vestindo pouco a pouco uma c&ocirc;r uniforme, o cinzento-escuro.
+De um destes edificios, o que mais se
+avantajava, do castello de Gaya, as janellas esguias
+voltadas para o poente pareciam dar sahida aos fogos
+de um incendio. De que n&atilde;o era, por&eacute;m, este
+chamejar
+mais que um reflexo do sol no occaso, se poderia desenganar
+quem, mesmo nunca tendo presenceado este phenomeno,
+se nos anticipasse na residencia do tenente
+do conde D. Gon&ccedil;alo, onde uma hora depois lhe
+provariamos que a reflex&atilde;o, ao appresentar Tello
+Rabaldo, n&atilde;o f&ocirc;ra de leve feita: velhacos
+n&atilde;o eram
+s&oacute; os que n&atilde;o tinham nem leira nem beira.
+<br />
+
+<br />
+
+Em uma das salas que no castello serviam de
+apposento ao alcaide, revestida de apainelados de
+carvalho, em que a luz do dia, coada pelos miudos
+vidros de c&ocirc;r, formando losangos, emba&ccedil;ava, e
+emba&ccedil;ava
+egualmente a que davam as tochas sustentadas
+por bra&ccedil;os de ferro, passeava de um para outro
+lado um homem de alguma edade j&aacute;, magro e
+de estatura mediana. No peito de uma especie de
+camisola de panno de curtas fraldas, cujas mangas,
+farpadas nas orlas, pendiam at&eacute; ao joelho, viam-se
+bordadas
+a verde com nervuras de ouro tres folhas de figueira;
+o mesmo distinctivo se reproduzia em uma
+bolsa de couro, que, do lado contr&aacute;rio ao estoque,
+acompanhava um punhal, nos fartos reposteiros
+das duas portas, que para a sala davam serventia,
+e na manga da jornea de um pagem, crean&ccedil;a
+de dez annos, que cabeceava com somno a
+um canto. O barrete adornava-se com duas pennas
+de aguia, presas em fecho de ouro, e os borzeguins
+apresentavam uns longos bicos, moda que
+um epysodio da guerra travada deixou assignalada
+<span class="pagenum">[43]</span>
+na historia. Encostados, no v&atilde;o de uma janella,
+conversavam, em voz baixa, uma dama e um
+individuo que se tornava notavel por usar crescido
+o cabello, raro e de c&ocirc;r avermelhada, e por uma
+longa espada, de que affagava o punho. Do lado opposto
+havia seis individuos, um dos quaes vestia
+h&aacute;bito monastico, e outro se acobertava com uma
+velha armadura de malha.
+<br />
+
+<br />
+
+O homem que passeava era Ayres Gon&ccedil;alves de
+Figueiredo; a dama era a esposa deste, D. Catharina;
+o individuo, que lhe fazia companhia, o irlandez
+Guilherme Down-Patrick; os restantes eram quatro
+cavalleiros, homens de solar de Entre-Douro-e-Minho,
+o capit&atilde;o de besteiros, Pero Bedoido, e frei
+Garcia.
+<br />
+
+<br />
+
+As passadas do alcaide soavam mais alto do que
+as poucas palavras que toda aquella gente trocava entre
+si, e visivelmente preoccupava-o negocio, que n&atilde;o
+era para os outros estranho, a n&atilde;o enganar o modo
+porque de tempos a tempos se fitavam e a
+medita&ccedil;&atilde;o
+que se seguia. Duas pessoas se subtrahiam &aacute; influencia
+geral, a castell&atilde; e o irlandez: se se calavam
+era, ella para amimar uma galga branca, que se enroscava
+sobre um escabello, elle para com a vista
+percorrer a la&ccedil;aria e pendur&oacute;es do tecto.
+<br />
+
+<br />
+
+Segredos e silencio, aquelles olhares e gestos
+tinham um todo mysterioso, que houve por bem quebrar
+Ayres Gon&ccedil;alves.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que me dizeis, senhores? exclamou, estacando
+no meio do passeio, como a procurar alvitre que
+viesse p&ocirc;r termo &aacute; sua
+irresolu&ccedil;&atilde;o, parecer que se
+conformasse com o que tinha na mente.
+<br />
+
+<br />
+
+Ninguem respondeu, por&eacute;m, e o castell&atilde;o,
+lan&ccedil;ando
+&aacute; volta de si um olhar de quem queria l&ecirc;r
+<span class="pagenum">[44]</span>
+nas physionomias dos hospedes as suas inten&ccedil;&otilde;es,
+proseguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sua senhoria quer em volta de si todas as
+lan&ccedil;as do reino, e n&atilde;o se lembra, ou
+n&atilde;o se quer lembrar
+de que fica desguarnecida uma terra t&atilde;o importante
+como esta, e cercada por tantos senhores que levantaram
+voz pela rainha D. Beatriz. Deixa a cidade
+aos pe&otilde;es, aos pe&otilde;es, que tracta como a gente de
+prol?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Em boa confus&atilde;o vae pondo as cousas! Um
+dia, veremos, sen&atilde;o lhes pozer cobro &aacute;s ousadias,
+vir arraya tomar-nos os solares; atalhou, abanando
+a cabe&ccedil;a com ar sentencioso, um velho fidalgo de
+Riba-Tua. Bem altaneiros andam j&aacute; burguezes e mesteiraes!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deixae, accudiu Affonso Darga, as encamizadas
+dos pe&otilde;es, que ter&atilde;o seu cabo. O Mestre precisa
+de sustentar a guerra, e lisongea por isso quanto
+mercador tem a arca bem provida de boas dobras,
+tornezes, gentis, florins e pilartes. Aos do Porto pede
+elle agora uma armada, mantimentos e dinheiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Armada que nos levar&aacute; a v&ecirc;r o rosto
+&aacute;s hostes
+de Castella; tornou Ayres Gon&ccedil;alves.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se se fizer.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O povo do Messias de Lisboa a arranjar&aacute;.
+N&atilde;o viram como os alvazires propozeram logo uma
+derrama, e juraram a Rui Pereira que teriam antes
+de um mez a nado algumas naus e outras se armariam
+dos melhores navios do commercio com Flandres?!
+Est&atilde;o inchados com o valimento que lhes d&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Por ahi se conhecem os vil&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; que d&atilde;o elles ao Mestre? Grande cousa!
+Em campo se ver&aacute; de que servem, e no campo &eacute; que
+a contenda tem de se decidir. Ir&atilde;o com b&eacute;stas,
+<span class="pagenum">[45]</span>
+virotes e azevans fazer frente &aacute;s lan&ccedil;as de
+Castella?
+Lingua teem elles; mas brio &eacute; que nem toda
+a algaravia desses mestres em leis e clerigos, que o
+regedor tomou para seus conselhos, esses falladores
+de Pisa e Bolonha, poder&aacute; metter nessa gente.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas nella se estriba D. Jo&atilde;o, disse, meneando
+a cabe&ccedil;a, um dos cavalleiros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para elles appella com boas palavras; a n&oacute;s
+manda-nos, n&atilde;o recado, mas ordem! exclamou o
+alcaide. &Eacute; dessas garnachas sahidas do nada que vem
+a desconsidera&ccedil;&atilde;o em que nos tem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Tempos do rei D. Fernando! suspirou Down-Patrick,
+recordando-se talvez de quando as hostes
+do duque de Lencastre faziam, entre os alliados portuguezes
+e os inimigos de Castella, de tudo roupa
+de francez.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Era um bom rei o que Deus tem! ajuntou
+frei Garcia, fazendo uma momice de piedade.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Rei, e creado como rei, bem sabia elle onde
+estava a for&ccedil;a e grandesa do reino e sua.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E melhor agasalho n&atilde;o nos fazem sempre no
+campo do marido da rainha D. Beatriz. Aos de sua
+casa aconselhou D. Leonor que fossem para o Mestre,
+que ao menos n&atilde;o era soffrego.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Com isso perdeu D. Jo&atilde;o: perdeu-o a altivez.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E ao Mestre n&atilde;o approveitar&atilde;o as
+merc&ecirc;s rastejadas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Elle n&atilde;o precisa de n&oacute;s, tornou o velho, o
+mais desappontado dos hospedes do alcaide, ao que
+perecia; faz cavalleiros a seu capricho do primeiro
+pe&atilde;o que se lhe antolha.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bons cavalleiros! observou, rindo, o mais mo&ccedil;o
+da reuni&atilde;o. Por l&aacute; andam montados em mulas
+<span class="pagenum">[46]</span>
+fazendo rir com os seus ares de importancia. N&atilde;o
+ser&aacute; preciso, para os derribar, erguer clava ou montante:
+andam t&atilde;o mal a geito com arnez e grevas, t&atilde;o
+abafados pelos elmos, os que os teem, que ao primeiro
+arranco das azes v&atilde;o ao ch&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Em se tractando de lan&ccedil;adas &eacute; comnosco que
+se haver&atilde;o, bem o v&ecirc;des, disse Ayres de
+S&aacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E ireis, senhor alcaide? interrogou Affonso
+Darga.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu, senhores, respondeu Ayres depois de
+alguma hesita&ccedil;&atilde;o, levantei voz pelo Mestre, mas
+recebi
+o castello do conde D. Gon&ccedil;alo: obedecerei a
+sua senhoria em tudo, mas s&oacute; abandonarei o castello...
+<br />
+
+<br />
+
+A phrase do alcaide n&atilde;o terminou. D. Catharina,
+approximando-se de seu marido, e impondo-lhe
+com um relance d'olhos a conveniencia de n&atilde;o proseguir,
+atalhou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Largos dias tendes para tomar conselho, cavalleiros;
+alegrae o sarau com outros contos. Cousas
+de tanta importancia n&atilde;o se devem tractar de salto: o
+tempo que se leva a pensar em casos taes n&atilde;o &eacute;
+perdido. Tomai exemplo de D. Gon&ccedil;alo Telles, ajuntou
+mais baixo, dirigindo-se ao esposo.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Catharina de Figueiredo era, at&eacute; certo ponto,
+uma dona prudente, como chama um historiador,
+por egual conselho fabiano, a Beatriz Gon&ccedil;alves
+de Moura, aia depois da excellente rainha D. Philippa.
+O exemplo do conde era um grande exemplo,
+pois era de homem que sabia, ou parecia ter de memoria
+o <em>Sic vos non vobis</em> de Virgilio, e
+dar-lhe o valor
+devido nas cousas do mundo. D. Gon&ccedil;alo fechara-se
+em Coimbra, jog&aacute;ra com sua irm&atilde; um
+jogo pouco
+leal e parecia aguardar que a sorte decidisse qual
+<span class="pagenum">[47]</span>
+dos pretendentes &aacute; cor&ocirc;a tinha raz&atilde;o e
+direito, ou
+for&ccedil;a e geito para a segurar na cabe&ccedil;a. O alcaide
+approveitou
+o conselho e abandonou o thema em que o lan&ccedil;&aacute;ra
+o mau humor causado pela mensagem de Ruy Pereira.
+<br />
+
+<br />
+
+Palestra sobre outro assumpto era naquella occasi&atilde;o
+difficil de sustentar. Os cavalheiros pouco a
+pouco deixaram a sala, e quando s&oacute; restavam o aventureiro,
+Henrique Fafes, o mais mo&ccedil;o dos da reuni&atilde;o,
+e frei Garcia, indicou este ultimo com o olhar
+o pagem quasi adormecido, tirando ao mesmo tempo
+da manga uma tira de pergaminho dobrada. Ayres de
+Figueiredo, sacudindo com violencia a crean&ccedil;a de
+quem o reverendo parecia recear a indiscrip&ccedil;&atilde;o, a
+poz,
+extremunhada, f&oacute;ra da porta, ordenando-lhe que se
+recolhesse, e em seguida percorreu com os olhos o
+escripto, que lhe appresentaram.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O alcaide de Monsaraz veio? disse elle terminando
+a leitura e dirigindo-se ao frade.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor, sim, veio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E n&atilde;o desconfiaram de nada?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Penso que de nada. As gal&eacute;s castelhanas
+n&atilde;o
+appareceram.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E de boa fonte houvestes esta proposta?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Do irm&atilde;o do arrabi-m&oacute;r, esse judeu a quem
+sua real senhoria acaba de fazer merc&ecirc;.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Misser Guilherme, senhor Henrique, disse o alcaide
+depois de fitar os dous por um momento, se pouco
+caso se faz de n&oacute;s em Lisboa, no campo dos que
+a sitiam teem-nos em apre&ccedil;o. D. Jo&atilde;o
+n&atilde;o &eacute; t&atilde;o soffrego
+como o pintavam, e a prova &eacute; este pergaminho.
+<br />
+
+<br />
+
+Down-Patrick fez uma visagem e soltou um &laquo;oh&raquo;
+guttural, que expressava a pouca admira&ccedil;&atilde;o que
+lhe
+causava o apre&ccedil;o em que o poderiam ter, como certo
+dos seus muitos merecimentos.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[48]</span>
+&#8213;Gon&ccedil;alo Rodrigues vos fallar&aacute; depois
+d'&aacute;manh&atilde;
+em S. Domingos, disse frei Garcia, attrahindo o alcaide
+para junto de uma das portas, a opposta &aacute;quella por
+onde sahira o pagem. E depois, accrescentando algumas
+palavras em voz baixa, sahiu pelo outro lado.
+<br />
+
+<br />
+
+Ayres de S&aacute;, chamando Henrique Fafes e o irlandez,
+seguiu-o.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando a sala ficou deserta, o reposteiro, junto
+do qual frei Garcia fall&aacute;ra com o alcaide de Gaya,
+oscillou e appareceu entre elle e a hombreira da porta
+um rosto, onde a curiosidade e a malicia se pintavam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mulher tem raz&atilde;o, disse, referindo-se
+&aacute;s
+palavras de D. Catharina, o curioso, depois de ter
+o ouvido &aacute; escuta por alguns segundos; o tempo que
+se gasta em certas cousas n&atilde;o se perde, e eu n&atilde;o
+perdi
+o meu. Ah! Garifa, minha pobre Garifa! exclamou
+em seguida, mudando de express&atilde;o e ajuntando
+&aacute; exclama&ccedil;&atilde;o um suspiro, de ti
+&eacute; que n&atilde;o apanho
+novas.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>IV.</h3>
+
+<h3>
+Dous namorados.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+... Donde amor se atraviesa<br />
+
+No hay padres reverenciados.
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="smallcaps signature">(romances de gazul.)
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando, chegando a casa, o melhor predio da
+rua dos Pellames, ao toque de Angelus, viu seu tio
+devorar com todo o appetite uma grande posta de
+carneiro e um tassalho de toucinho, capaz do p&ocirc;r em
+debandada um exercito mahometano, regado tudo com
+o summo da uva. Gon&ccedil;alo Domingues, se dava
+descan&ccedil;o
+<span class="pagenum">[50]</span>
+aos dentes, n&atilde;o o dava &aacute;
+lingua, pois incetou,
+ao <em>benedicite</em>, um serm&atilde;o,
+que, ao <em>gratias</em>, ainda
+n&atilde;o
+estava concluido. O velho fallou na crea&ccedil;&atilde;o do
+seu
+tempo, na obediencia da gente mo&ccedil;a &aacute; mais idosa
+em geral, e em especial &aacute;quella de quem se recebe
+o p&atilde;o do corpo e o p&atilde;o do espirito; discorreu
+sobre
+as passadas travessuras do sobrinho, e foi cahir na
+ultima, terminando pela amea&ccedil;a de um sev&eacute;ro
+castigo,
+em caso de reincidencia. Fernando, ao inverso do
+tio, n&atilde;o tocava sequer em uma mealha do p&atilde;o alvo,
+que a criada com um prato de figos passos servira por
+mimo, e, com os olhos fixos na toalha, n&atilde;o soltava
+uma palavra de desculpa. O bom velho, notando
+aquelle extraordinario fastio e sizudez, tomou tudo por
+effeito da sua eloquencia, convers&atilde;o e
+compun&ccedil;&atilde;o do
+rapaz, e por um triz esteve, no final, a addicionar
+ao serm&atilde;o um palliativo, tirando o exemplo de casa,
+pois que o podia fazer; mas a necessidade da disciplina,
+de conservar sempre perante o sobrinho um
+todo de soberania, um sobrecenho, que julgava indispensavel,
+embora n&atilde;o quadrasse com a affei&ccedil;&atilde;o
+que
+lhe tinha, o detiveram. Fernando era, segundo elle,
+um estouvado, um leviano como seu pae, do que d&eacute;ra
+j&aacute; provas exuberantes, abandonando, depois dos estudos,
+o convento de S. Francisco, ent&atilde;o extra-muros, para
+onde um outro parente o cham&aacute;ra, a fim de o metter
+na estrada do c&eacute;u e do mundo pela clausura. O que nisto
+amofinava mais o for&ccedil;ureiro era a boa
+disposi&ccedil;&atilde;o
+que mostrava o mancebo para as letras, a intelligencia
+desenvolvida, que nos primeiros tempos fizera dizer
+a frei Gumeado, grande sabedor para aquellas epochas,
+que bem podia vir a aspirar a grandes dignidades
+da egreja e do seculo, a ser geral, bispo, ou
+chanceller. Todo o rigor, pois, que empregasse era
+<span class="pagenum">[51]</span>
+pouco, e despediu-se do mancebo com toda a solemnidade,
+para dizer &aacute; cuvilheira que, como por seu
+voto e lembran&ccedil;a, lhe levasse ao quarto alguma cousa
+de comer.
+<br />
+
+<br />
+
+Se Gon&ccedil;alo Domingues soubera qual a
+atten&ccedil;&atilde;o
+que lhe dava o sobrinho, de certo n&atilde;o fizera semelhante
+recommenda&ccedil;&atilde;o. &Eacute; bem certo que os
+annos
+trazem, &aacute;s vezes, experiencia e algum saber; mas
+n&atilde;o &eacute; menos certo que &aacute;
+propor&ccedil;&atilde;o que v&atilde;o passando
+se esquece muita cousa egualmente: aos sessenta
+perde-se a memoria dos vinte, sen&atilde;o das
+ac&ccedil;&otilde;es
+praticadas, dos pensamentos havidos; um mancebo
+p&oacute;de muito bem avaliar o que n&atilde;o
+apreciar&aacute;, n&atilde;o
+conseguir&aacute; distinguir um homem a quem o inverno da
+vida tenha gelado o cora&ccedil;&atilde;o. A pr&eacute;dica
+entrava tanto
+na absorp&ccedil;&atilde;o de Fernando, como entrava a mensagem
+do Defensor: as palavras do tio eccoavam-lhe
+aos ouvidos como sons vagos, que se n&atilde;o reproduziam
+no machinismo regulador chamado intelligencia
+e outros nomes, segundo a face por onde &eacute; visto,
+porque sons diversos o impressionavam. As fallas de
+Irene, as inflex&otilde;es, os mais leves gestos preoccupavam-no:
+de uns e outros tirava esperan&ccedil;as agora,
+logo motivos de amofina&ccedil;&atilde;o; traduzia agora
+uma phrase,
+das poucas obtidas de Irene, por um modo que
+o cora&ccedil;&atilde;o trasbordava de alegria, e logo
+parecia-lhe
+que o timbre de voz, um nada sonhado lhe dava
+bem diverso valor; assignalava aquelle dia como
+o mais feliz da vida, e recordando-se do desfecho do
+colloquio, em seguida; entristecia-se e amaldi&ccedil;oava o
+tio, que o fizera descer do galho da arvore e dos
+bra&ccedil;os da felicidade. O pux&atilde;o de orelhas,
+sobretudo,
+doia-lhe, quando o recordava, mais do que lhe doera
+em Miragaya, julgando-se aos olhos da sua namorada
+<span class="pagenum"><a name="p52" id="p52">[52]</a></span>
+deshonrado... mais que deshonrado, ridiculo. Este
+combate entre o desejo e o receio, durou, trazendo
+<a href="#e3">a insomnia</a>, at&eacute; altas
+horas da noite; mas, a final,
+venceu
+o desejo, e a alegria espelhou-se-lhe no rosto.
+Fernando, nas azas da imagina&ccedil;&atilde;o; voava do
+passado
+ao futuro, e deste &aacute;quelle, amontoando as pedras do
+seu castello de felicidade. Deitando-se e apagando a
+luz sorria a todos os sonhos creados; sentia como
+nova vida a inflar-se no peito, e parecia querer affogar-se
+em ar, tanto era o que respirava de momentos
+a momentos. Junto com a imagem da linda filha de
+Jo&atilde;o Ramalho toda a natureza era risonha naquella
+miragem: as arvores reproduziam-se mais verdes, mais
+cheias de perfumes e mais bellas as flores; as aves
+nos cantos diziam todas&#8213;alegria; o c&eacute;u transparente
+deixava adivinhar al&eacute;m do manto azul uma segunda
+vida toda amor. O mancebo vira, bem o podem
+acreditar, bastantes vezes o c&eacute;u, as arvores e as
+flores, mas nunca se lhe tinham affigurado assim: como
+&aacute; estatua de Pygmali&atilde;o, faltava-lhe o fogo no
+peito. A lavareda ate&aacute;ra-se naquelle dia, posto que
+incubasse havia muito.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando Vasques amava Irene desde que a vira,
+e vira-a nessa edade em que se sente um vacuo
+no cora&ccedil;&atilde;o; a si mesmo confess&aacute;ra
+j&aacute; esse amor;
+mas definido, claro, s&oacute; ent&atilde;o
+rebent&aacute;ra: o v&aacute;cuo enchera-se,
+e a trasbordar, e para o encher talvez o amaldi&ccedil;oado
+pux&atilde;o de orelhas, a primeira grande contrariedade,
+entrasse por muito: &laquo;talvez&raquo; dizemos, e podiamos
+dizer &laquo;certamente.&raquo; O amor vive de contrariedades,
+de luctas, diz um phisiologista; e como um malicioso
+accrescentou que por isso s&oacute; elle nas mulheres
+se creava, saibam, acreditem as leitoras que
+todo o homem tem no cora&ccedil;&atilde;o o seu tanto ou quanto
+<span class="pagenum"><a name="p53" id="p53">[53]</a></span>
+de mulher, na mocidade sobretudo, e por isso n&atilde;o
+perde. As mulheres lucram menos com o que <a href="#e4">recebem</a>
+do homem em geral: n&atilde;o as compensamos.
+Como diziamos, por&eacute;m, deixando reflex&otilde;es, a
+correc&ccedil;&atilde;o
+de Gon&ccedil;alo Domingues, e ainda, se quizerem,
+as poucas palavras trocadas entre os dous namorados,
+tinham ateado a lavareda no peito do mancebo,
+e um dos effeitos della f&ocirc;ra, de fazer acordar
+homem quasi quem se deit&aacute;ra crean&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando, no dia seguinte, n&atilde;o era o mesmo
+rapaz; o tio notou aquella differen&ccedil;a e attribuio-a ao
+jejum da vespera, com a mesma prespicacia com que
+attribuira a causa delle &aacute; sua predica; e para contentar
+o rapaz, levou-o de manh&atilde;, depois de tractar dos seus
+negocios e da politica do dia, a visitar frei Gumeado,
+que o costumava regalar, apesar da sua deser&ccedil;&atilde;o,
+com gulodices, em que n&atilde;o tocou dessa vez, e de
+tarde, a passeio at&eacute; aos Carvalhos do monte, que
+assim se chamava o local onde o cabe&ccedil;udo parodiador
+do marquez de Pombal no Porto, o corregedor
+Almada, edificou um theatro. O effeito destas amabilidades
+&eacute; facil de adivinhar. O namorado de Irene,
+que, voltando com a luz da madrugada &aacute; lucta de
+esperan&ccedil;as e receios, anceava por occasi&atilde;o de ir
+buscar
+um desengano nos olhos da donzella, preso assim
+todo o dia, revoltou-se interiormente contra a
+tutella do tio e desappontou-o com desabrimentos.
+O velho pasmou, benzeu-se, e da compaix&atilde;o, do arrependimento
+da aspereza da vespera cahiu com um
+mau humor verdadeiro, tomando aquelle procedimento
+por <a href="#e5">ingratid&atilde;o,</a>
+protestou que a severidade, que
+at&eacute; ahi lhe ficava nos l&aacute;bios, ia ser posta em
+ac&ccedil;&atilde;o,
+e como assim se revolt&aacute;ra pelo leve castigo de uma
+travessura, elle trataria em primeiro logar de as impedir,
+<span class="pagenum">[54]</span>
+n&atilde;o lhe deixando uma hora para folias, nem
+arredar p&eacute; da loja de pellames; em segundo, se se
+furtasse &aacute; sua vigilancia, de passar al&eacute;m do
+pux&atilde;o de
+orelhas, dando causa verdadeira a amuos.
+<br />
+
+<br />
+
+No outro dia, um domingo, n&atilde;o se esqueceu do
+seu protesto o velho for&ccedil;ureiro, e o desespero do sobrinho
+augmentou, tanto quanto augmentava o receio
+de perder o amor da linda mo&ccedil;a; que, se at&eacute;
+ao dia em que conseguira trocar algumas palavras
+com Irene, muitos se passaram em que n&atilde;o descera
+a Miragaya, sem que tanto se amofinasse, aquella
+meia declara&ccedil;&atilde;o e o desfecho mud&aacute;ra as
+circumstancias:
+daquellas em que se encontrava bem
+podem fazer ideia as leitoras e os leitores, aos quaes
+a memoria ainda conserva vivas as paginas da mocidade.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois de jantar,
+por&eacute;m&#8213;refei&ccedil;&atilde;o que se tomava
+nessas epochas, mesmo entre aristocratas,
+desde as onze ao meio dia, exactamente &aacute; hora em
+que hoje almo&ccedil;a muita gente&#8213;quando Gon&ccedil;alo
+Domingues
+executava, dormindo a sesta, uma musica
+que se assemelhava a tempestade em chamin&eacute; na
+combina&ccedil;&atilde;o de assobios e notas de contrabasso,
+appareceu
+Luiz Geraldes, o mais respeitavel individuo
+da burguezia, a procural-o para irem a S. Domingos,
+onde se devia tractar do meio de corresponder
+&aacute; confian&ccedil;a que o mestre de Aviz
+deposit&aacute;ra nos bons
+cidad&atilde;os da terra, assumpto em que o alvitre do
+for&ccedil;ureiro era valioso, por se poder traduzir na linguagem
+sonora das boas dobras de el-rei D. Pedro;
+appareceu Luiz Geraldes e com elle a occasi&atilde;o que
+desde madrugada esperava e provoc&aacute;ra &aacute; sombra de
+todos os pretextos. Mestre Gon&ccedil;alo, pois, a sahir, e
+Fernando
+a procurar na arca o seu melhor gib&atilde;o e o
+<span class="pagenum">[55]</span>
+barrete, a alindar-se, e a bater com a porta da rua
+na cara da velha creada, que lhe recordava as ordens
+dadas pelo tio, avivadas segundos antes, e a trovoada
+que sobre elle e sobre ella descarregaria se ou o
+encontrasse na rua, ou o n&atilde;o achasse em casa, regressando.
+<br />
+
+<br />
+
+O namorado mo&ccedil;o deitou a correr; mas, como
+em certo apologo, a pressa foi causa de vagares. Tal
+era o estado daquella cabe&ccedil;a que tomou o caminho
+seguido por seu tio e o grande amigo do Mestre, e
+ao cabo da rua da Bainharia esbarrava com elles se
+um encontr&atilde;o de um homem d'armas o n&atilde;o obrigasse
+a uma pausa, e na pausa a um espadeiro, que se
+sentava em um desses balc&otilde;es ou mostradores que
+fechavam uma das portas das estreitas e escuras lojas,
+conservando nas ruas mais estreitas e n&atilde;o menos
+escuras os freguezes, n&atilde;o ouvisse dizer para um
+visinho que deitava a cabe&ccedil;a por uma adufa:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;L&aacute; vae em cata de mestre Gon&ccedil;alo, que dobrou
+agora mesmo para o terreiro, o sobrinho... o
+filho de Vasco, que Deus haja.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando, quiz retroceder; por&eacute;m, como o bom
+do espadeiro lhe gritasse que perto ia Gon&ccedil;alo Domingues,
+se o procurava, n&atilde;o teve remedio sen&atilde;o
+responder que ia a recado para as Aldas, e enfiar
+pelo arco de Sant'Anna, tomar caminho pelo lado da
+judearia e descer aos Banhos, onde lhe tolheu o passo
+o personagem que no capitulo antecedente vimos
+no castello de Gaya, surdir por entre o reposteiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vindes de S. Domingos? interrogou elle, pondo-se
+diante do mancebo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh! &eacute;s tu Jo&atilde;o Bispo! exclamou Fernando,
+depois de examinar o rosto do individuo, assombrado
+<span class="pagenum">[56]</span>
+por um farto capuz. Ha muitos dias que te n&atilde;o vejo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; verdade, redarguiu o recem-chegado, dando
+pelo nome, que ouvimos j&aacute; da bocca do pae dos velhacos.
+&Eacute; verdade, repetiu; e &aacute; palavra ajuntou um
+profundo suspiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que tens, tu? Est&aacute;s t&atilde;o triste como quando
+nos tinham no convento.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;D'onde nunca dev&ecirc;ra ter sahido! tornou Jo&atilde;o,
+soltando outro suspiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bem mudado est&aacute;s, meu foli&atilde;o, ou &eacute;
+isso momice
+nova?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Antes f&ocirc;ra, Fernando! antes f&ocirc;ra! mas finaram-se
+as alegrias.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas, ao que parece, a vida n&atilde;o te vae peor.
+Gib&atilde;o novo de barregana... boa adaga! disse o mancebo,
+medindo-o de alto a baixo. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vesti isto; mas embrulhade em almafega
+respirava
+melhor: o saio e as cal&ccedil;as riam-se por todas as
+costuras, mas eu tambem ria, e agora bem vedes....
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vejo que est&aacute;s sizudo como eremit&atilde;o, ou
+mestre em leis, &eacute; verdade... Mas onde assim te
+pozeram? d'onde vens?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Do castello.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Do castello? Tomaste l&aacute; moradia e servi&ccedil;o?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ou cousa parecida... que n&atilde;o se pode assim
+dizer de pra&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Segredo! Ora vejam Jo&atilde;o Bispo feito escriv&atilde;o
+da puridade do alcaide! exclamou o mancebo, sorrindo
+e dando alguns passos para seguir seu caminho.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o segurou-o por um dos bra&ccedil;os, e encolhendo
+os hombros respondeu &aacute; zombaria:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mofai, que a vez a todos chega. Algum dia haveis
+de querer bem a alguem....
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E por isso te amofinas, quando n&atilde;o tens quem
+<span class="pagenum">[57]</span>
+te empe&ccedil;a de a v&ecirc;r a todo o momento! redarguiu
+Fernando, que se n&atilde;o recordou naquelle instante de
+outro contratempo em amores, sen&atilde;o do que com elle
+se dava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;V&ecirc;l-a!... v&ecirc;l-a! exclamou, tornando a suspirar o
+vadio. Oh! minha pobre Garifa!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa, repetiu Fernando; Garifa... ora espera...
+Garifa n&atilde;o era aquella rapariga moura que
+vinha ao terreiro vender fructa?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo fez com a cabe&ccedil;a um aceno affirmativo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Uma rapariga sempre alegre, que na
+prociss&atilde;o
+de <em>Corpus</em> tangia pandeiro e
+dan&ccedil;ava com tanta
+desenvoltura, trazendo o vestido cheio de cascaveis?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que t&atilde;o bem cantava umas cantigas castelhanas?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois bonita era... pena que fosse moura! E
+tu, Jo&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu quero-lhe, quero-lhe como se em noite de
+S. Jo&atilde;o me fizessem feiti&ccedil;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E feiti&ccedil;o foi de certo; porque uma moura...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o sei se &eacute; grande peccado o querer-lhe
+bem; mas c&aacute; para mim tenho que n&atilde;o. Ella
+&eacute; moura,
+&eacute;; mas...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; por isso que t&atilde;o magoado te vejo? Querial-a
+christ&atilde;, e casavas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute;, n&atilde;o; &eacute; porque m'a
+roubaram!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Roubaram-ta?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Roubaram. Ha uma semana, no sabbado,
+estava eu na encosta do Olival, ao p&eacute; do regato,
+&aacute; espera
+della, e eis que vejo o pae, o velho Humeia, vir
+direito a mim. O pobre homem chorava como uma
+<span class="pagenum">[58]</span>
+crean&ccedil;a; as lagrimas eram como punhos pela cara
+abaixo e os solu&ccedil;os pareciam affog&aacute;l-o; cortava o
+cora&ccedil;&atilde;o!
+disse Jo&atilde;o Bispo, limpando com a manga do
+gib&atilde;o os olhos, sensibilisado ou pela
+recorda&ccedil;&atilde;o da
+scena, que narrava, ou pela desappari&ccedil;&atilde;o de
+Garifa.
+O velho proseguiu, quando p&ocirc;de come&ccedil;ar a fallar, a
+pedir-me a filha, dizendo que lh'a entregasse; que bem
+tinha visto andar-lhe no seguimento, e na vespera
+a encontr&aacute;ra ainda alli mesmo a fallar commigo.
+Olha, Fernando, fiquei como quando me vieram dizer
+que meu pae&#8213;Deus o tenha&#8213;era finado, e jurei
+&aacute;quelle pobre homem que n&atilde;o f&ocirc;ra eu que
+lhe tir&aacute;ra
+a filha... e commigo pela hostia consagrada jurei
+tambem descobrir-lhe a rapariga. O velho acreditou-me,
+e disse-me cousas, que n&atilde;o poderei repetir;
+que n&atilde;o sei bem o que foram; mas que pelo modo
+de as dizer me deram um n&oacute; na garganta: parecia
+que tinha engolido uma ma&ccedil;&atilde; inteira. Procurei
+Garifa.
+Dous homens foram vistos a passar o rio nessa
+noite com uma mulher, me disse um petintal, e corri
+tudo em Gaya; alistei-me no tro&ccedil;o de Pero Bedoido,
+para ter occasi&atilde;o de esquadrinhar todos os cantos do
+castello; mas v&ecirc;l-a... v&ecirc;l-a... ainda a
+n&atilde;o vi! Desconfio,
+por&eacute;m, que l&aacute; esteja, e se l&aacute; estiver,
+ai do
+rausador! Olhai, elles deram-me esta adaga, e eu trago-a
+bem afiada, os ouvidos attentos e os olhos abertos!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo, ao soltar estas ultimas palavras,
+baixou a voz e um veo sinistro lhe assombrou a fronte;
+por alguns instantes permaneceu calado, e proseguiu
+depois, vendo que o sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues
+parecia atterrado com semelhante confidencia:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A alegria n&atilde;o p&oacute;de durar sempre. Desde que,
+<span class="pagenum">[59]</span>
+morto meu pae, que por for&ccedil;a me queria v&ecirc;r
+tonsurado,
+fiz uma reverencia ao guardi&atilde;o, dei um cascudo
+no porteiro e me fiz velhaco, visto que no convento
+n&atilde;o apprendi officio e de sujei&ccedil;&atilde;o
+estava farto,
+bem vestido, mal vestido, mais trapo, menos trapo,
+barriga mais cheia ou menos, tinha quasi todo o
+santo dia os dentes &aacute; amostra; agora veio um revez...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute;s s&oacute; tu, Jo&atilde;o, que
+os tens; eu...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que lhe fizeram, atalhou o vadio; diga, que
+eu dou uma ensinadella, e...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; negocio em que nada podes. N&atilde;o sabes,
+Jo&atilde;o, disse o mancebo, pondo a m&atilde;o no hombro do
+seu antigo companheiro, e chegando-lhe a bocca perto
+do ouvido, como em segredo; n&atilde;o sabes... eu
+tambem quero a uma rapariga como &aacute;s meninas dos
+meus olhos. Oh! &eacute; mais bonita que a tua!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute;, disse Jo&atilde;o Bispo, com um meio sorriso.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Muito mais; por&eacute;m, meu tio, tenho eu para
+mim...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o quer? <br />
+
+<br />
+
+&#8213;Parece-me que n&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; pobre?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pobre!... repetiu Fernando Vasques, encolhendo
+os hombros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mestre Gon&ccedil;alo Domingues &eacute; rico, e...
+<br />
+
+<br />
+
+O namorado de Irene, ouvindo o nome do tio,
+lan&ccedil;ou em torno de si os olhos, como se receiasse
+que alli apparecesse; lembrou-se que passava o tempo
+e elle podia, de volta a casa, n&atilde;o o encontrar,
+se fosse grande a demora; recordou a causa do seu
+passeio, e fazendo um gesto de despedida, deu alguns
+passos em direc&ccedil;&atilde;o &aacute; porta da cidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se f&ocirc;r necessario o antigo companheiro das
+<span class="pagenum">[60]</span>
+folias, n&atilde;o o poupeis. Os meus trapos nunca vos fizeram
+voltar o rosto, quando nos encontramos, e hei
+de mostrar que n&atilde;o tendes feito mal, Fernando, disse o
+ex-novi&ccedil;o, estendendo ao mancebo um pulso que n&atilde;o
+era fraco. Ah! exclamou em seguida; n&atilde;o vindes
+do lado de S. Domingos?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nem pelo caminho vistes o alcaide de Gaya?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E que tens a v&ecirc;r com o senhor alcaide, meu
+velhaco? disse uma voz, que logo Jo&atilde;o Bispo reconheceu
+por ser de Tello Rabaldo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ah! sois v&oacute;s! murmurou o interpellado, visivelmente
+contrariado por aquella appari&ccedil;&atilde;o, em
+quanto Fernando deitava a correr pela rua abaixo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vosso servo, tornou o pae dos velhacos, tirando
+com ar zombeteiro o seu barrete e segurando
+pelo capuz a Jo&atilde;o Bispo. O fidalgo de certo que
+s&oacute;
+com fidalgos tem tracto e por elles procura; por&eacute;m
+como est&aacute; em behetria, para n&atilde;o haver
+desaguisado,
+pondo-o f&oacute;ra, dou-lhe companhia mais ch&atilde;; mas que
+lhe far&aacute; bom agasalho. Vamos! exclamou mudando
+de tom; para as tercenas j&aacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor Tello, por&eacute;m...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vais seccar a goella sem proveito.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor Tello, quizera fallar a Ruy Pereira.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Agora &eacute; com Ruy Pereira! Grandes s&atilde;o os
+negocios! Bravo! continuou o pae dos velhacos, medindo
+Jo&atilde;o Bispo de cima abaixo, como minutos antes
+fizera o sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues, e como
+elle admirando a mudan&ccedil;a que na roupa havia; bravo!
+Parece que vamos ter contas graves a ajustar!
+Cortaste bolsa, ou arrombaste a porta a mercador ou
+algibebe para vires assim garrido?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[61]</span>
+&#8213;Sou b&eacute;steiro do rei.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;B&eacute;steiro do rei desde quando, velhaco? desde
+que fugiste com a filha do velho Humeia?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Est&aacute; excommungado! cr&eacute;do! gritou uma velha
+do pequeno ajuntamento que se fizera &aacute; volta
+dos dous interlocutores. Ter contractos com aquella
+condemnada moura, aquella...!
+<br />
+
+<br />
+
+A mulher disse nome que lhe valeu de Jo&atilde;o
+Bispo um murro, que levava a for&ccedil;a proporcional &aacute;
+raiva que lhe caus&aacute;ra a abelhuda comadre, insultando
+Garifa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhem o maldito! gritaram duas companheiras
+da aggredida. Onde est&aacute; a justi&ccedil;a? Que faz o
+senhor bispo que o n&atilde;o manda a&ccedil;outar bem
+a&ccedil;outado?
+E attreve-se em rosto do senhor Tello...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Calem a bocca, serpentes! berrou o pae dos
+velhacos, fazendo um gesto e meneando o seu bast&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Serpentes? grunhiu a velha, segurando com
+a m&atilde;o os dentes que o socco pozera em vesperas de
+despedida.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Serpentes? pipilou uma das novas,
+esgani&ccedil;ando-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Serpentes? resmungou a outra, ferrando os
+pulsos nas ancas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Serpentes! gritaram, grunhiram e pipitaram
+entre gargalhadas e em todos os tons os garotos que
+j&aacute; embara&ccedil;avam o transito.
+<br />
+
+<br />
+
+Tello Rabaldo viu a sua dignidade compromettida,
+o que n&atilde;o poucas vezes acontecia, e tractou de
+a salvar pelos meios usados ainda hoje em embara&ccedil;os&#8213;pela
+for&ccedil;a; e como &aacute; m&atilde;o n&atilde;o
+tivesse se n&atilde;o a
+sua, foi dessa que se serviu. Segurando sempre o
+namorado da moura pela extremidade do capirote,
+<span class="pagenum">[62]</span>
+fez rodizo com o seu bast&atilde;o; tomando-o pela parte
+superior, e uma escala salteada de &laquo;ais&raquo; e
+&laquo;uis&raquo; sahiu
+dentre a roda de curiosos e curiosas, que augmentava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O senhor alcaide! Ahi vem Ayres Gon&ccedil;alves!
+gritaram duas vozes quasi ao mesmo tempo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Tolhido sejas tu, maldito! resmungou Jo&atilde;o
+Bispo, lan&ccedil;ado em apuros com semelhante
+appari&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor Pero! senhor Pero Bedoido! berrou o
+pae dos velhacos, para o capit&atilde;o de b&eacute;steiros,
+que, seguindo
+o alcaide de Gaya, se dispunha a embarcar
+para o castello, e desepparecia por um
+dos postigos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;J&aacute; nada fa&ccedil;o, disse comsigo o
+ex-novi&ccedil;o deitando
+o olho a v&ecirc;r se o capit&atilde;o accudia ao chamamento.
+A pelle corre-me agora grande risco, se
+desconfiam de mim. Com a bocca no pixel n&atilde;o os
+apanho j&aacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ol&eacute;, senhor Pero! sua merc&ecirc; n&atilde;o me
+diz se
+este velhaco tomou servi&ccedil;o? proseguiu Tello, querendo
+arrastar comsigo Jo&atilde;o Bispo, mais talvez para &aacute;
+sombra
+do capit&atilde;o dos b&eacute;steiros se fazer acatar, do que
+pela curiosidade de saber se o namorado de Garifa
+lhe mentira, ao que estava bastante affeito, para regular
+a sua justi&ccedil;a pelo humor em que o apanhavam e
+n&atilde;o por depoimentos e confiss&otilde;es. Em materia de
+confiss&otilde;es
+dava f&eacute; &aacute;s feitas em potro, ou de borzeguins,
+quando estava de boa fei&ccedil;&atilde;o, e felizmente
+n&atilde;o
+era isto raro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Grande velhaco! continuou, dirigindo a palavra
+ao seu prisioneiro; ainda ha pouco n&atilde;o tinhas
+que dizer a todos os fidalgos? Mais depressa se pilha
+um mentiroso do que um c&ocirc;xo.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[63]</span>
+Pero Bedoido, ouvindo a voz do pae dos velhacos,
+par&aacute;ra junto do postigo, que dava sobre a
+margem do rio, e retorcendo o bigode piscava os
+olhos para concentrar os raios visuaes afim de melhor
+reconhecer quem o chamava. Ayres de Figueiredo par&aacute;ra
+igualmente.
+<br />
+
+<br />
+
+Quem n&atilde;o deve n&atilde;o teme. Jo&atilde;o Bispo
+sentia
+os seus arripios pelos lombos, porque um pensamento,
+que o leitor experto, e que de certo se
+recorda do dialogo apanhado atraz do reposteiro, adivinhar&aacute;,
+o punha, na consciencia, em hostilidade com
+o nobre alcaide, e se na presen&ccedil;a delle Tello Rabaldo
+de novo se referisse &aacute; entrevista que pretendia ter
+com o tio de Nuno Alvares, a vida corria-lhe grave
+risco. Jo&atilde;o n&atilde;o tinha, por&eacute;m, cursado
+em v&atilde;o os estudos
+em S. Francisco e a eschola pratica de velhacarias
+dos terreiros, pra&ccedil;as e bitesgas da cidade da Virgem, para
+n&atilde;o achar um expediente bom ou mau com que se
+sahisse de apuros, momentaneamente que fosse. Tello
+segurava-o, tendo-o quasi esganado pela extremidade
+do capirote, e o cabe&ccedil;&atilde;o deste fechava no peito e
+garganta por meio de quatro grossos bot&otilde;es. Desabotoado
+estava livre.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor Tello, senhor D. Tello?! murmurou o
+rapaz, levando as m&atilde;os j&aacute; aos bot&otilde;es,
+e esgotando
+no submisso, no plangente da voz, e naquelle &laquo;dom&raquo;,
+o ultimo recurso oratorio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ah! perro, velhaco! Eu te...
+<br />
+
+<br />
+
+O pae dos velhacos n&atilde;o concluiu a phrase: um
+cascudo que preparava como paga da nobilita&ccedil;&atilde;o
+dada
+ao seu nome, deu-o no ar, e com o costado no
+mesmo momento apalpou o ch&atilde;o, depois de abalroar
+com as canellas de alguns curiosos.
+<br />
+
+<br />
+
+Um c&ocirc;ro formado de um unisono de
+gargalhadas
+<span class="pagenum">[64]</span>
+e de gritos ensurdeceu os visinhos que enchiam
+as janellas e atulhavam as portas. As gargalhadas provocara-as
+o desastre de Tello; os gritos soltaram-nos os
+que abriam caminho a Jo&atilde;o Bispo. O amante de Garifa
+deixando o capirote na m&atilde;o do pae dos velhacos,
+que perdera o equilibrio, mettera m&atilde;os &aacute; adaga
+e corria na direc&ccedil;&atilde;o da Ferraria.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao passar em frente do postigo um acontiado da
+behetria tomou um virote para lhe embargar o passo.
+<br />
+
+<br />
+
+Ayres Gon&ccedil;alves, ao mesmo tempo que Pero Bedoido,
+reconhecendo no fugitivo um dos seus homens,
+lhe sustava o arremesso, gritou em voz bem alta para
+chegar aos ouvidos de Jo&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Perro, vill&atilde;o, se tocas n'um dos meus homens!...
+<br />
+
+<br />
+
+E a m&atilde;o do fidalgo pousou como complemento
+de phrase no punho do estoque.
+<br />
+
+<br />
+
+O acontiado fez uma careta de despeito, baixou
+o virote, e quando o fidalgo voltou costas, deu com
+elle com uma for&ccedil;a tal d'encontro &aacute; parede, que o
+fez voar em hastilhas, resmungando:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Perros e vill&otilde;es... perros e vill&otilde;es! A nossa
+vez ha de chegar, traidores, scismaticos!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>V.</h3>
+
+<h3>
+Irene.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote0 intro">
+Ma son, mentre ella piange, i suoi lamenti<br />
+
+Rotti da un chiaro suon oh'a lei ne viene...
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">tasso</span>.
+Ger. lib.
+cant. VII.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+E a linda Irene, a filha de Jo&atilde;o Ramalho?
+<br />
+
+<br />
+
+Irene, das primeiras fallas trocadas com Fernando,
+colheu um resultado quasi igual ao que este
+obtivera. A impress&atilde;o primeira foi a da alegria. Deslembrada
+da appari&ccedil;&atilde;o de mestre Gon&ccedil;alo, quando
+foi ao encontro da cuvilheira, que a cham&aacute;ra, a physionomia
+<span class="pagenum">[66]</span>
+illumin&aacute;ra-se, reproduzindo toda a felicidade
+que l&aacute; ia por dentro naquelle cora&ccedil;&atilde;o.
+&Aacute; pergunta
+que lhe fizeram, mas n&atilde;o ouviu, respondeu
+com um abra&ccedil;o na velha, que, mal affeita, pela sua
+rabuje, a taes carinhos, abriu grandes olhos, e o
+espanto desta subiu ainda, levando-a a benzer-se,
+quando viu que, sem lhe prestar atten&ccedil;&atilde;o, a
+mo&ccedil;a
+come&ccedil;ou a entoar uma copla de amores, desses cavalheirescos
+amores da epocha. Aquella alma de virgem
+saudava o enfloramento da nobre paix&atilde;o que
+no seio lhe germin&aacute;ra, e a velha, como Gon&ccedil;alo
+Domingues
+a respeito de Fernando, nem se quer pensou
+que nessa exalta&ccedil;&atilde;o entrasse por alguma cousa
+o mancebo, de quem j&aacute; havia notado os passeios
+em frente da casa&#8213;o que a lev&aacute;ra a fazer-lhe carrancas
+de sobrecenho capazes de affugentar qualquer
+outro que n&atilde;o fosse um namorado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A menina Irene namorar! a menina que depois
+da morte da nossa ama tenho creado com todos
+os cuidados?! pensava ella com os seus bot&otilde;es,
+quando lhe vinham desconfian&ccedil;as, ou as visinhas,
+pela s&eacute;sta, no cavaco quotidiano que tinha depois
+de arranjados prateis, agomias, sart&atilde;, pucaros
+e mais aprestes de cosinha, notavam o volver d'olhos
+de um ou outro alindado da terra.
+<br />
+
+<br />
+
+A tia Genoveva tinha de si para si que o cora&ccedil;&atilde;o
+de Irene se abriria s&oacute; quando ella, ou o senhor
+Jo&atilde;o Ramalho muito bem quizessem.
+<br />
+
+<br />
+
+As tias Genovevas ainda hoje n&atilde;o s&atilde;o raras.
+<br />
+
+<br />
+
+A linda mo&ccedil;a, quando a deixou a cuvilheira, insensivelmente
+come&ccedil;ou a reflectir nas palavras de
+Fernando, e pouco a pouco no semblante e no
+cora&ccedil;&atilde;o
+come&ccedil;ou a tristeza a vencer. A pobre n&atilde;o sabia
+que o amor se n&atilde;o traduz bem em palavras, e
+<span class="pagenum">[67]</span>
+esmorecera pensando que podia n&atilde;o ser amada, ao
+passo que bem sentia definir-se-lhe no seio a paix&atilde;o;
+e quando, noite cabida, a velha trouxe para
+o quarto de trabalho um velador do qual pendia um
+gra&uacute;do candil, n&atilde;o respondeu &aacute;s
+&laquo;boas noites&raquo; dadas,
+possuida de sentimento bem diverso do que horas
+antes a distrahira. Ainda mais: a tia Genoveva, ao
+espiar a roca e terminar a ultima ave-maria da coroa
+que todas as noites rezava &aacute; Senhora da Silva, para a
+ter por sua intercessora; a tia Genoveva notou uma
+lagrima a balou&ccedil;ar-se nas cilias da linda joven, como
+aljofre matutino nos estames de uma flor.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque chora, menina? perguntou a velha
+criada tomando-lhe o rosto entre as m&atilde;os, para melhor
+se certificar de que n&atilde;o era illus&atilde;o sua aquelle
+pranto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Chorar... eu? murmurou Irene, limpando os
+olhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim, a menina. Ent&atilde;o n&atilde;o veem o espanto
+que faz?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; que eu n&atilde;o choro... Porque havia de chorar?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque? Ora sei eu o porque?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nem eu...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Credo! Anjo bento da minha guarda! Feiti&ccedil;o
+por certo lhe fizeram! De tarde a rir e a cantar
+como uma louquinha, e a fazer-me momices carendeiras;
+agora a choramingar sem que nem para
+que! &Eacute; quebranto, menina... &eacute;
+feiti&ccedil;aria; e bem far&aacute;
+em p&ocirc;r esta noite debaixo da almadraquexa um ramo
+de arruda.
+<br />
+
+<br />
+
+A velha atinava: que maior feiti&ccedil;aria que a do amor
+n&atilde;o p&oacute;de haver. S&oacute; elle tem o
+privilegio de dar a uma palavra ecco que, por vezes,
+dura at&eacute; com elle se casar j&aacute; bem fraco
+o das ultimas preces: de perpetuar
+<span class="pagenum"><a name="p68" id="p68">[68]</a></span>
+uma imagem ante os olhos at&eacute; que os cerre o
+frio osculo da morte.
+<br />
+
+<br />
+
+Pranto e risos, succedendo-se r&aacute;pidamente sem
+explica&ccedil;&atilde;o para quem os v&ecirc;, sem
+explica&ccedil;&atilde;o mesmo
+para quem os sente humedecer as faces, ou descerrar
+os l&aacute;bios, s&atilde;o em geral o resultado vulgar
+do toque da vara do grande feiticeiro: emquanto o
+feiti&ccedil;o conserva toda a for&ccedil;a, o pranto
+&eacute; como os
+chuveiros de Maio, que veem como para fazer <a href="#e6">ressaltar</a>
+o sol que lhes succede, ou como os orvalhos de
+Junho, que refrigeram as flores; quando o feiticeiro
+se ausenta, o riso &eacute; como o luar em noites de Fevereiro,
+quando tudo &eacute; silencio: contrista como elle,&middot;
+traz melancholia. As lagrimas da linda filha de Jo&atilde;o
+Ramalho eram chuveiros de Maio. Correndo &aacute; vontade
+sobre o travesseiro, em que n&atilde;o pozera a arruda,
+n&atilde;o lhe imprimiam nas faces a aridez; regavam,
+permitta-se mais esta imagem entre tantas, o
+amor que, como no sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues,
+repetimos, se definira naquella tarde.
+<br />
+
+<br />
+
+O amor na juventude, no sexo que chamamos fragil,
+porque n&oacute;s, que nos dobramos a todo o momento
+a seus p&eacute;s, lhe esmigalhamos o cora&ccedil;&atilde;o
+em
+um circulo de ferro chamado positivismo, realidade
+e conveniencia, quasi sempre nasce entre lagrimas,
+lagrimas das que chorava Irene quando repetia baixinho,
+comsigo, o nome de Fernando; lagrimas
+que rebentam espa&ccedil;adas, se demoram nas palpebras,
+e descem lentas pelo rosto.
+<br />
+
+<br />
+
+No outro dia muitas vezes correu a mo&ccedil;a namorada
+&aacute; janella da praia, muitas &aacute; que dava para
+o lado do monte, e impacientou-se e entristeceu-se
+quando viu cahir a tarde sem apparecer o sobrinho
+do for&ccedil;ureiro; no domingo, durante a missa do dia,
+<span class="pagenum">[69]</span>
+na velha igreja de S. Pedro, fez cochichar umas poucas
+de comadres, que lhe ficavam na rectaguarda,
+tantas foram as vezes que voltou, durante o officio,
+a cabe&ccedil;a para o lado da porta, e ainda mais se impacientou
+e entristeceu quando, feitas ante todas as
+imagens as esta&ccedil;&otilde;es que eram da
+devo&ccedil;&atilde;o da senhora
+Genoveva, regressou a casa sem v&ecirc;r uma sombra
+rastejando ao lado della (que olhar face a face, de
+perto, para Fernando, nunca a gentil menina olhara)
+sem ouvir certas passadas, que distinguia de todas
+as outras e lhe causavam uma impress&atilde;o nervosa
+agradavel.
+<br />
+
+<br />
+
+Neste descontentamento, sentada na varanda, que
+tentamos j&aacute; descrever, prestava
+atten&ccedil;&atilde;o a todos os
+ruidos, quando a velha criada com quem Jo&atilde;o Ramalho
+havia conferenciado depois de jantar, arrastando
+um tamborete de pau e umas contas com que
+se entretinha todas as vezes que n&atilde;o trabalhava ou
+dava &aacute; lingua, lhe veio fazer companhia. Genoveva
+engorolou um <em>pater</em> e tossiu;
+engorolou outro <em>pater</em>
+e tossiu outra vez; terceiro <em>pater</em> a
+meio e mais
+prolongada foi a tosse, e, ao findar, a esta juntou um
+arrastar de tamborete e um suspiro. Era evidente
+que rebentava por fallar; por&eacute;m a sua joven ama estava
+bastante distrahida para notar todos aquelles
+preparativos oratorios. A velha ainda se resignou a
+fazer passar mais algumas contas, a mudar o tamborete
+da direita para a esquerda e a passar na
+tosse do <em>piano</em> ao
+<em>forte</em>, do
+<em>moderato</em> ao
+<em>vivace</em> e at&eacute;
+&aacute; <em>furia</em>; mas vendo que
+era trabalho perdido, pousou
+o rosario, puchou a touca, crusou os bra&ccedil;os sobre
+a barriga e exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A menina que tem?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nada, respondeu Irene, olhando pela abertura
+<span class="pagenum">[70]</span>
+da zelozia para o c&eacute;u, que mostrava um azul
+soberbo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nada! Ent&atilde;o eu estou cega; ha dias que n&atilde;o
+sei o que tem... anda triste!...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Triste? atalhou Irene, com um desses sorrisos,
+que se denunciam como contrafeitos. Ainda
+esta manh&atilde; me disse que andava com a cabe&ccedil;a no
+ar, e achou que ria como louca... n&atilde;o sei quando...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim, sim: veja se me engana com esses risinhos
+s&ecirc;ccos, menina. Por mais que fa&ccedil;a n&atilde;o
+me
+faz acreditar que n&atilde;o est&aacute; magoada. Eu desconfio
+que...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;De que? interrogou Irene, fazendo-se vermelha,
+julgando ser do sentimento dominante no seu
+cora&ccedil;&atilde;o que lhe iam fallar.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nada, nada. O senhor seu pae n&atilde;o lhe fallou...
+n&atilde;o lhe deu a entender...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Meu pae, tornou a joven sobresaltada, n&atilde;o me
+disse cousa alguma...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; que... pensei...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O que, Genoveva? Que tinha meu pae a dizer-me?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nada, nada; respondeu a velha, recome&ccedil;ando
+de novo o rozario.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o, alguma cousa era! Diga, diga, Genoveva;
+meu pae est&aacute; de mal commigo?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;De mal! elle que n&atilde;o v&ecirc; outra cousa, que
+a traz nas palminhas das m&atilde;os, apesar daquelle modo
+assim de poucas palavras?! Se se amofina &eacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Acabe! supplicou a joven.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Triste j&aacute; est&aacute; a menina; para que a entristecer
+mais? disse a criada mastigando.
+&#8213;N&atilde;o me quer entristecer mais? Pois que ha?
+<span class="pagenum">[71]</span>
+exclamou a filha de Jo&atilde;o Ramalho, erguendo-se com
+a anciedade pintada no rosto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute;... nada, nada, redarguiu a velha. E baixo
+accrescentou, tornando a carregar a roca:&#8213;Cala-te, bocca.
+Ora, n&atilde;o ia eu j&aacute; dizer tudo?
+<br />
+
+<br />
+
+O &aacute;parte da cuvilheira, por uma mania que tinha
+de sempre dar &aacute; lingua para que a ouvissem,
+pareceu-se com todos os &aacute;partes do theatro, e mais
+anciosa ficou Irene.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus, Genoveva! Succedeu alguma cousa?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nada: &eacute; que...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Acabe por uma vez.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Como tem de ser... por&eacute;m, olhe, triste j&aacute; a
+menina est&aacute;, e quanto mais tarde...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Est&aacute; a fazer-me mal, minha boa Genoveva!
+exclamou Irene, juntando e erguendo as m&atilde;os em
+ac&ccedil;&atilde;o de supplica.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora vejam! mal &eacute; que eu lhe n&atilde;o queria
+fazer; mas visto que teima... sempre lhe digo: seu pae
+embarca por estes dias.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Embarca... disse a joven tornando a sentar-se.
+Julguei que fosse outra cousa. N&atilde;o estou j&aacute;
+affeita
+a v&ecirc;r partir meu pae, todos os annos, uma, duas
+e tres vezes para essas terras de Christo? Se pod&eacute;sse
+fazer com que n&atilde;o andasse sobre aguas do mar,
+exposto;
+por&eacute;m...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ao mar, atalhou Genoveva, j&aacute; o senhor
+Jo&atilde;o
+Ramalho est&aacute; affeito. Parece que tem todos os santos
+e santas por elle... e merece-o, que n&atilde;o ha
+tempestade
+que mal lhe fa&ccedil;a; e mais dizem que s&atilde;o bem
+m&aacute;s
+as da Inglaterra e Flandres! Mas n&atilde;o &eacute; agora
+s&oacute; o mar...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o que mais &eacute;, Genoveva?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute;... que... que volta a Lisboa... e...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! agora... que anda a guerra por l&aacute;!...
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[72]</span>
+&#8213;Deus ha de querer que nenhum mal lhe venha,
+e eu hei-de recommendal-o muito &aacute; Senhora
+da Silva e &aacute; Senhora do Amparo, as duas santas de
+mais valimento que ha no c&eacute;o... de maiores milagres
+pelo menos... ao Senhor S. Pedro, advogado da gente
+do mar, e &aacute;s almas milagrosas! redarguiu a senhora
+Genoveva, fazendo uma especie de mesura a
+cada nome dos beatos patronos que proferia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bem me dizia o cora&ccedil;&atilde;o que destas
+n&aacute;us e
+gal&eacute;s chegadas me viria mal, disse Irene recordando-se
+naquelle instante das palavras de Fernando.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mal... mal? Tenha f&eacute; em Deus, que &eacute; grande
+peccado descoro&ccedil;oar assim. O senhor Jo&atilde;o Ramalho,
+seu pae, se anda cuidadoso &eacute; por si, menina Irene: como
+est&aacute; j&aacute; uma mo&ccedil;a... eu c&aacute;
+me entendo... quer
+deixal-a bem amparada, em logar seguro; que nestes
+tempos revoltos, e nos que o n&atilde;o s&atilde;o, todo o
+cuidado &eacute; pouco. Como n&atilde;o vae lobo a redil nem
+raposa
+a gallinheiro sen&atilde;o quando acha a porta mal
+cerrada e n&atilde;o ha mastins para a&ccedil;ular, queria
+deixal-a
+em abrigo seguro, e lembrou-se de um convento.
+J&aacute; dei recado para uma prima, que tenho, sergente
+em Entre-Rios, a v&ecirc;r como poderei ir fazer companhia
+&aacute; menina...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, Genoveva, vamos para t&atilde;o longe! exclamou
+a linda mo&ccedil;a com voz magoada.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ainda n&atilde;o &eacute; de certo. &Eacute; precisa
+licen&ccedil;a do senhor
+D. Jo&atilde;o Affonso, e n&atilde;o sei que outras
+requestas...
+e como n&atilde;o &eacute; para j&aacute; o caso... por
+estes dias...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Genoveva! Genoveva! gritou do andar terreo
+o senhor Jo&atilde;o Ramalho, fazendo estacar a falladora
+cuvilheira, que incetando um Padre-nosso em um tom
+de voz que, sem offensa da boa da beata, se podia
+comparar ao rosnar de um c&atilde;o, desceu as escadas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[73]</span>
+&#8213;Virgem santa, valei-me! murmurou a joven
+fechando uma na outra as m&atilde;os, brancas e delicadas,
+e deixando sobre o seio pender o rosto, que n&atilde;o
+desfeiavam os assomos de tristeza.
+<br />
+
+<br />
+
+Irene assim permaneceu longo tempo, e quando
+ergueu os olhos orlava-lhe as palpebras uma c&ocirc;r
+mais rosada que de costume, e as lagrimas borbulhavam
+mais intensas do que as trazidas pela desconfian&ccedil;a
+de que Fernando Vasques n&atilde;o correspondesse
+ao affecto por ella consagrado. Eram mais intensas,
+porque junto com as arrancadas pelo amor
+filial&#8213;pois bemqueria a joven a seu pae, com um
+extremo inexplicavel, attenta a rudesa apparente do
+piloto, se &eacute; que uma for&ccedil;a occulta a
+n&atilde;o fazia corresponder
+ao sentimento por elle votado ao unico ente
+que na terra lhe restava, &aacute; imagem de uma esposa
+adorada com o fogo que empregam essas almas reconcentradas,
+os homens que jogam a vida sobre o
+mais terrivel dos elementos, e passam dias e noites
+seguidas a soletrar no livro da natureza a pagina do
+infinito, em circulo fachado por
+c&eacute;o e mar;&#8213;junto com
+as saudades e receios por seu pae, se ligavam penas
+avultadas pela sua imagina&ccedil;&atilde;o,
+suppondo-se j&aacute; separada,
+longe de Fernando, clausurada para a vida talvez;
+que no amor tudo &eacute; coado por um prisma que engrandece
+e multiplica os objectos.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s lagrimas do travesso mo&ccedil;o succedera a
+resolu&ccedil;&atilde;o:
+Fernando fizera-se homem; &aacute;s lagrimas de
+Irene succedia o anniquilamento: p&oacute;de-se dizer tambem
+que se fizera mulher a pobre menina porque:
+a coroa do seu sexo &eacute; formada por essas perolas nascidas
+no cora&ccedil;&atilde;o, perolas que resgatam a propria culpa
+e a alheia. Para o resgate da humanidade Deus,
+tornado homem, deu o seu sangue; para completar
+<span class="pagenum">[74]</span>
+essa regenera&ccedil;&atilde;o, para abrir &aacute;s
+mulheres as portas da
+vida, inflar-lhe no seio uma alma, verteu lagrimas
+uma virgem.
+<br />
+
+<br />
+
+Irene chorava pela segunda vez, depois que se
+apoder&aacute;ra do seu cora&ccedil;&atilde;o a imagem de
+Fernando,
+quando lhe veio ferir os ouvidos um som distante
+e confuso; confuso porque era grande o arruido
+que petintaes, espadeleiros e galeotes faziam na
+praia, sanctificando o dia do descan&ccedil;o com
+liba&ccedil;&otilde;es
+frequentes de verde e maduro, cidra e outras bebidas.
+Era o som de um toque de ca&ccedil;a, assobiado por
+um valente folego. A mo&ccedil;a estremeceu, quando se
+lhe afigurou reconhecel-o; estremeceu e a alegria repelliu
+naquella fronte as nuvens de tristeza com tanta
+ou mais rapidez de que nos leva a dar uma ideia
+dessa mudan&ccedil;a. Ergueu-se e correu ao extremo da
+varanda, encostou &aacute; adufa o ouvido attento a linda
+namorada; mas cal&aacute;ra-se a marcha, e os berros da
+chusma iam em um <em>rinforzando</em>
+prodigioso. Alguns
+minutos de anciedade assim passou, com o seio a arfar,
+os l&aacute;bios meio-abertos, deixando v&ecirc;r uma enfiada
+de dentes alvos como o fructo das camarinhas,
+com os olhos brilhantes, fixos, at&eacute; que com novo sibilo
+rompeu um grito da joven, um grito de alegria, e
+deixando a varanda subiu a assomar a cabe&ccedil;a por
+aquella historiada janella das flores, onde com ella
+travamos conhecimento.
+<br />
+
+<br />
+
+A cabe&ccedil;a appareceu e desappareceu logo.
+<br />
+
+<br />
+
+Irene soltou outro grito, porque os seus olhos
+encontraram os de seu pae, irados, em vez de outros
+que de certo procurava carinhosos.
+<br />
+
+<br />
+
+Junto com o sibilo, com os gritos, com o bater
+das adufas da varanda e portadas da janella&#8213;junto,
+<span class="pagenum">[75]</span>
+se p&oacute;de dizer, tal foi a rapidez da
+success&atilde;o&#8213;ouviu-se
+um grande fragor.
+<br />
+
+<br />
+
+A arvore do cercado oscill&aacute;ra e o muro da quelha
+f&ocirc;ra a terra.
+<br />
+
+<br />
+
+A filha de Jo&atilde;o Ramalho deixou-se cahir no estrado
+em que costumava costurar; o piloto soltou
+uma praga, e a cabe&ccedil;a da tia Genoveva, que da cosinha
+presence&aacute;ra parte desta scena, appareceu de
+bocca aberta no quarto da donzella, persignando-se
+e abanando a cabe&ccedil;a como um manequim, pintando
+em toda esta gesticula&ccedil;&atilde;o o seu pasmo, e
+terminando
+por entre dentes com esta phrase, que havia de
+ser, como j&aacute; f&ocirc;ra, repetida milhares de vezes:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora fiem-se l&aacute; nas innocencias deste tempo!
+O mundo vai perdido!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>VI.</h3>
+
+<h3>
+Causa publica e cousas particulares.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+A nenhu era ouvida rez&atilde;o,
+nem escuza, que por sua parte
+dar quizesse, mas como hum
+falava dizendo: que foh&atilde;o he
+delles; n&atilde;o havia cousa que
+lhe desse vida, nem justi&ccedil;a
+que o livrasse das suas m&atilde;os:
+e isto era especialmente contra
+os melhores e mais honrados,
+que havia nos logares, dos
+quaes muitos foram postos em
+grande caj&atilde;o de morte...
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">fern&atilde;o
+lopes.</span>&#8213;Chronic.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Em quanto Irene solu&ccedil;ava, Tello Rabaldo vociferava,
+sacudindo a poeira do gib&atilde;o, e Jo&atilde;o Bispo
+evitava na r&ecirc;de de b&ecirc;ccos e escadas do bairro a
+sanha
+do b&eacute;steiro e de alguns mesteiraes, que o suppunham
+r&eacute;o de crime grave, ou queriam nelle desacatar
+o alcaide, que viam, como a grande parte
+<span class="pagenum">[78]</span>
+dos nobres, com maus olhos, no terreiro de S. Domingos
+havia grande ajuntamento de povo, e na portaria
+do convento e claustro da igreja se reuniam os
+homens bons da cidade, burguezes e
+cavalleiros; que
+a ordena&ccedil;&atilde;o de D. Diniz era desattendida durante
+aquelles transtornos, como o tinha sido por vezes,
+e depois havia de ser.
+<br />
+
+<br />
+
+Ruy Pereira e a edilidade portuense combinavam
+os meios, j&aacute; o sabemos por via de Luiz Giraldes,
+de corresponder ao appello do Mestre, e corriam
+as cousas &aacute;s mil maravilhas. Affonso Eannes
+Pateiro e Alvaro da Veiga, bastante compromettidos
+com a acclama&ccedil;&atilde;o do novo governo, juntamente com
+o rico mercador que f&ocirc;ra despertar Gon&ccedil;alo
+Domingues
+sopravam em pequenos conciliabulos o enthusiasmo
+de amigos e conhecidos, e n&atilde;o perdiam o tempo.
+Os periodos mais ou menos bombasticos, mais
+ou menos curtos, tinham, depois de um ou outro commento,
+como ponto, a desloca&ccedil;&atilde;o de dous ou tres
+individuos,
+que se dirigiam a uma mesa cercada de tamboretes
+e cadeiras, onde dous homens vestidos de
+negro, um redondo, de nariz globuloso e vermelho,
+outro c&ocirc;r de pergaminho e de fei&ccedil;&otilde;es
+angulares, se
+viam ao par de alguns vereadores, afagando este
+com a rama da penna os l&aacute;bios ressecidos, abanando-se
+aquelle com um caderno de papel. Um dos
+patriotas segredava tres palavras ou quatro ao ouvido
+de um dos alvazires; os burguezes diziam outras
+tantas; os homens negros tra&ccedil;avam algumas letras
+e algarismos, que liam em voz alta, e de tudo
+isto sahia, p&oacute;de-se dizer, a Milheira, a Estrella
+e a Sangrenta, o levantamento do cerco e bloqueio
+de Lisboa, a dynastia de Aviz e&#8213;quem sabe?&#8213;a
+salva&ccedil;&atilde;o
+e civilisa&ccedil;&atilde;o da Europa. Se julgam paradoxal
+<span class="pagenum">[79]</span>
+a ultima parte, provem como sem os donativos daquelles
+bons homens se accudiria ao Mestre; se este
+n&atilde;o se veria obrigado a tornar real o fingido embarque
+para Inglaterra; se, simples Jo&atilde;o Pires, casaria
+com a exemplar filha de Jo&atilde;o de Ghaunt; se haveria
+quem formasse um viveiro de navegantes t&atilde;o destemidos,
+arrojados, para devassar a costa d'Africa
+e penetrar na Asia pelo Oceano, como o infante D.
+Henrique; como sem o c&oacute;rte dado naquellas paragens
+ao poder ottomano, se lhe sustaria a carreira
+victoriosa dos seus estandartes, que chegaram a tremular
+junto dos muros de Vienna, na costa da Italia,
+na Hungria e na Bohemia, que pendiam bafejados
+pelas t&eacute;pidas aragens de Aldjesireh, da Arabia, e
+a&ccedil;outavam
+os ares impellidos pelos ventos gelados na Polonia,
+se espalhavam nas aguas do Mediterraneo, no
+mar-Negro, no golfo Persico e no Oceano, e acobertavam
+os recebedores de pareas at&eacute; ao Dekan.
+<br />
+
+<br />
+
+Se algumas circumstancias concorreram tambem
+para este gigante resultado foram as narradas nos
+antecedentes capitulos, desde as dos namoros de Irene
+com Fernando e de Garifa com Jo&atilde;o Bispo, at&eacute;
+&aacute; daquelle
+virote quebrado.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o cuidem que um escriptor consciencioso escreva
+uma linha s&oacute; com o fim de encher papel; que
+invente um episodio por seu alto recreio: tudo aqui
+vem a pello desde o mais somenos facto ao de mais
+vulto, e os leitores phylosophos, que esquadrinham
+os fins moraes, procuram o succo de todo o livro e
+folheto, farejam uma ideia em cada letra impressa,
+achar&atilde;o neste romance demonstra&ccedil;&otilde;es de
+que grandes
+successos, que pasmam do mundo, s&atilde;o como os
+nev&otilde;es: um floco de neve, que rola do cimo dos Alpes,
+ao chegar &aacute;s fraldas destroe casas e plantios;
+<span class="pagenum">[80]</span>
+uns bigodes cortados em 1152, ainda no seculo em
+que viviam estes nossos heroes, destruia cidades, assim
+como as bagatellas acima apontadas salvavam
+este canto da terra de ser hoje em dia... um pachalik
+ou cousa peior.
+<br />
+
+<br />
+
+E Jo&atilde;o Bispo, Fernando Vasques, e at&eacute; para
+muita gente Jo&atilde;o Ramalho, Affonso Eannes, Alvaro
+da Veiga, Domingos Pires das Eiras, Luiz Giraldes e
+outros com quem o leitor tomar&aacute; ainda conhecimento,
+estavam no olvido?!
+<br />
+
+<br />
+
+Lamentemos esta m&aacute; sina de ingratid&atilde;o pelos
+grandes homens... que em vida n&atilde;o tiverem condados
+d'Ourem, nem terras do Alfeite; lamentemos, e vamos
+de novo para S. Domingos.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao passo que os burguezes davam que fazer a
+Gon&ccedil;alo Pires, escriv&atilde;o de chancellaria e ao seu
+companheiro,
+na casa do capitulo, bocejavam os poucos
+cavalleiros que tinham adherido, como hoje se diz, ao
+pronunciamento do Porto, por vontade, ou circumstancias.
+Dissemos que bocejavam; pois movimento,
+ac&ccedil;&atilde;o em poucos se notava, a n&atilde;o ser
+um alguns dos
+recem-chegados de Lisboa, dos quaes o mestre soubera
+captar a benevolencia com aquella largueza
+de m&atilde;os, que o deixaria rei das estradas de Portugal,
+se n&atilde;o fossem depois as garnachas, de que
+j&aacute; se queixavam ent&atilde;o, e em alguns pobres
+infan&ccedil;&otilde;es
+e simples cavalleiros. Ruy Pereira reunia
+em volta de si, os dous sobrinhos do rei de Castella,
+D. Pedro e Affonso Henriques de Transtamara,
+misser Manoel Pessanha, Jo&atilde;o Rodrigues Guaday,
+Ayres Pires de Cam&otilde;es, Affonso Furtado e os
+irm&atilde;os
+d'Alvalade, e em uma das extremidades da quadra segredavam,
+ou antes fallavam quasi por signaes o alcaide
+de Monsaraz, Affonso Darga, o irlandez Down-Patrick
+<span class="pagenum">[81]</span>
+e o velho fidalgo de Riba-Tua. Do resto, faziam
+uns retinir pelo sobrado os acicates dos seus sapatos
+de ferro, que vinham em traje de guerra n&atilde;o poucos,
+outros descan&ccedil;avam nas grandes cadeiras de espaldar,
+que os reverendos para alli tinham feito conduzir.
+De tempos a tempos um pagem ou um leigo entravam
+com recado para o tio do condestavel, ou este
+fallava a alguns dos seus homens, que estanceavam &aacute;
+porta, e elles partiam &aacute;s carreiras para diversos pontos.
+<br />
+
+<br />
+
+Ruy Pereira tractava de aproveitar o tempo o melhor
+possivel, como bom cabo de guerra e bom politico,
+depois de ter conferenciado com os influentes
+da cidade, conferencia que d&eacute;ra em resultado decidir-se
+que se chamasse ao partido do defensor o conde
+Gon&ccedil;alo, combina&ccedil;&atilde;o que n&atilde;o
+era mais do que
+uma lisonja aos bons burguezes: pois, soprada pelo
+mensageiro de sua senhoria a Domingos Pires, e por
+este appresentada, f&ocirc;ra j&aacute; decidida nos
+pa&ccedil;os de S.
+Martinho. D. Jo&atilde;o resolvera comprar o conde com os
+bens pertencentes &aacute; irm&atilde; desthronada, bens que
+j&aacute;
+tinham servido de engodo a outros. O escolhido para o
+ajuste do bals&atilde;o do nobre senhor, de quem tinham
+sido j&aacute; indagadas as ambi&ccedil;&otilde;es&#8213;que se
+iam encontrar
+com as de Nuno Alvares, felizmente bastante patriota
+para ceder &aacute;s circumstancias;&#8213;o escolhido f&ocirc;ra
+o alcaide de Monsaraz, Gon&ccedil;alo Rodrigues de Sousa,
+e devia seguir logo com alguns navios para a Figueira,
+emquanto outros iriam correr a costa da Galliza,
+inquietar em casa o inimigo, e nos seus barcos,
+pescarias e alfandegas procurar um refor&ccedil;o para as
+arcas exhaustas do thesouro.
+<br />
+
+<br />
+
+O movimento dos pagens, dos sergentes do convento,
+dos b&eacute;steiros e homens d'armas tinha produzido
+<span class="pagenum">[82]</span>
+o ajuntamento da pequena pra&ccedil;a ou terreiro,
+que ficava em frente do convento, e das tortuosas
+ruas visinhas. Na pra&ccedil;a, vistas do alto, as
+cabe&ccedil;as
+dos curiosos formavam uma massa, que ondeava como
+as espigas de trigo sazonado, impellidas pelo
+vento, e no meio de borborinho constante, especie
+de gemer de tempestade em praia cheia de recifes,
+surgiam ora estrepitosas gargalhadas, ora gritos, apodos
+e vivas. As gargalhadas eram provocadas pelo b&ocirc;bo
+da cidade. O Porto n&atilde;o era uma terra de pouca
+monta para n&atilde;o ter um b&ocirc;bo seu, como qualquer
+principe, mesmo no meio daquellas calamidades e
+sustos, e tinha-o at&eacute; que n&atilde;o ficava nada a dever
+aosque se importavam de Fran&ccedil;a, por aquellas epochas,
+com o mesmo cuidado com que se haviam de
+importar cabelleireiros&#8213;o que, entre parenthesis, n&atilde;o
+quer dizer que para escolha dos primeiros se expedissem
+t&atilde;o gordas personagens como para o dos segundos&#8213;.Voltando
+ao nosso caso, ao b&ocirc;bo da cidade:
+os leitores que comnosco fazem esta viagem ao seculo
+XIV e ao terreiro de S. Domingos, devem confessar
+que a verba votada no or&ccedil;amento municipal,
+verba insignificantissima, n&atilde;o devia ser chorada. D.
+Golias era uma raridade; uma creatura de seis palmos
+de alto, se tanto, comprehendendo esta medida
+uma desmarcada cabe&ccedil;a, cortada de lado a lado no
+ter&ccedil;o inferior por uma bocca, cousa unica que correspondia
+naquelle todo ao nome com que o tinham
+baptisado. D. Golias &aacute;quella bocca, mais do que ao
+inf&eacute;sado da estatura e uma mobilidade de
+fei&ccedil;&otilde;es extraordinaria,
+devia o seu emprego e a sua popularidade.
+Os mesteiraes e burguezes que o encontraram,
+vindo do acampamento, onde exercia as suas
+func&ccedil;&otilde;es,
+tinham-lhe feito um acolhimento brilhante,
+<span class="pagenum">[83]</span>
+uma ova&ccedil;&atilde;o, e elle, escarranchado sobre um
+v&aacute;dio
+espada&uacute;do e meio idiota, com o seu vestido
+variegado
+e o seu capirote, notavel por duas immensas orelhas
+asininas, correspondia a tanto extremo disparando,
+entre esgares e tregeitos, epygrammas para a
+direita e esquerda, na portaria do convento.
+<br />
+
+<br />
+
+Uns bons dous ter&ccedil;os destes gracejos, dos mais
+pesados, eram dirigidos a nobres senhores ou a alguns
+ricos burguezes, o que os fazia ser acolhidos com
+prazer pela gente da pra&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ol&eacute;, mossem Methusael, D. Methusael, tio
+Methusael! ginchou elle sacudindo os cascaveis do vestido
+e da palheta, dirigindo-se ao arrabi-menor, que
+por entre a multid&atilde;o abria caminho; o vinho que &aacute;
+socapa comprastes a mestre Manoel do Arco, subiu-vos
+&aacute; cabe&ccedil;a, ou foi exconjuro que vos trouxe aqui?!
+Mossem Methusael, as vossas dobras v&atilde;o tinir como
+a minha jornea, e o vinho vae desfazer-se em lagrimas!
+N&atilde;o &eacute; verdade, manos, que vai haver juderega
+dobrada e tresdobrada. Mossem Methusael antes quer
+que elles roubem a pequena Lea do que um punhado
+das boas barbudas da arca!
+<br />
+
+<br />
+
+O arrabi resmungou algumas pragas, que se perderam
+entre as risadas do povo, e appressou o passo,
+seguindo um cavalleiro, na direc&ccedil;&atilde;o da portaria,
+a
+fim de em tal companhia ter mais facil accesso.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Guarda! berrou o b&ocirc;bo, attravessando a palheta;
+guarda! Se queres entrar pede a frei Roque
+que te lave em agua-benta!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Tira a tua vara, tru&atilde;o, gritou o cavalleiro, ao
+pousar o p&eacute; no limiar da porta.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Arreda, Portugal! tornou Golias; arreda, que
+ahi vem Castella em peso! Passe l&aacute;, don cavalleiro;
+eu levanto o meu sceptro e arredo-me, porque n&atilde;o
+<span class="pagenum">[84]</span>
+quero tocar em scismaticos. Don cavalleiro, tornou,
+quando o fidalgo subia j&aacute; a escadaria, tendes novas
+do mano Garcia Manrique? Quando lhe ides dar a
+m&atilde;o?!
+<br />
+
+<br />
+
+E voltando-se para o leigo porteiro, que, depois
+de fazer uma grande reverencia ao nobre recem-chegado,
+o fitava, espantado da ousadia, proseguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eh! beguino de m&aacute; morte, se cuidas que te
+est&aacute;s a v&ecirc;r a espelho de Veneza, enganas-te: estas
+orelhas s&atilde;o do capirote. As tuas s&atilde;o mais
+compridas
+e mais felpudas!
+<br />
+
+<br />
+
+Estes e outros gracejos, que n&atilde;o &eacute; licito
+escrever,
+pois n&atilde;o curava o tru&atilde;o da polidez da linguagem,
+nem eram por esses tempos malsoantes palavras
+que o s&atilde;o hoje; estes e outros gracejos eram a
+pedra de toque da popularidade dos individuos a quem
+os dirigiam: a gargalhada e os assobios, as palmas,
+os grasnidos e murmurios que provocavam, diziam
+a conta em que eram tidos. Quando a vaia partia,
+e o povo se calava, n&atilde;o insistia o b&ocirc;bo, certo de
+que era a personagem aggredida estimada por aquella
+boa gente, e n&atilde;o teria, por isso, defensor, se algum
+syllogismo contundente fosse servir de censura
+&aacute;s suas burlescas reflex&otilde;es. Regulando por este
+thermometro,
+o piloto e mercador Jo&atilde;o Ramalho e Gon&ccedil;alo
+Domingues eram bemquistos na cidade da Virgem.
+O for&ccedil;ureiro, sahindo a&ccedil;odado pela porta do
+convento,
+esbarr&aacute;ra em cheio com o piloto que entrava,
+e do choque resultou a oscilla&ccedil;&atilde;o dos dous
+corpos,
+que procuravam o equilibrio, e um regougo abafado
+do burguez. A risada foi inevitavel, pois as pequenas
+desgra&ccedil;as teem sempre o riso por caudatario;
+mas um olhar do pae de Irene engasgou nas fauces
+de Golias o motejo.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[85]</span>
+Jo&atilde;o Ramalho n&atilde;o
+vinha para gra&ccedil;as.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao olhar sev&eacute;ro dirigido ao b&ocirc;bo seguiu-se outro
+lan&ccedil;ado a mestre Gon&ccedil;alo, que lhe estendia a
+m&atilde;o
+com a costumada lhaneza, e o piloto come&ccedil;ou, quasi
+sem tomar folego, uma lenga-lenga de
+recrimina&ccedil;&otilde;es,
+que fizeram abrir os olhos do burguez desmarcadamente.
+Porque se espantava um, adivinha-o o leitor,
+porque desabafava o outro a sua c&oacute;lera, se o n&atilde;o
+sabe, aventa-o: Fernando sahira contra ordem expressa
+da rua dos Pellames e f&ocirc;ra colhido em flagrante
+delicto de namoro, acompanhado das aggravantes circumstancias
+de escalada e destrui&ccedil;&atilde;o de um muro.
+O piloto deduzira de tanto ruido peccado mais gordo
+do que sonh&aacute;ra o mancebo, e, como este se lhe tinha
+salvado da furia, valendo-se da sua agilidade na carreira,
+avinha-se com o tio. Mestre Gon&ccedil;alo Domingues,
+se naquelle instante apanhasse a geito o travesso
+rapaz, de certo o punha em maus len&ccedil;oes, tal era a
+indigna&ccedil;&atilde;o e raiva, traduzidas nas faces em uma
+c&ocirc;r
+arroixada, que lhe incitava a narra&ccedil;&atilde;o deste
+successo,
+feita pelo rude marinheiro. O sangue subia-lhe &aacute;
+cabe&ccedil;a e amea&ccedil;ava-o com uma apoplexia. Sem o
+querer,
+applicou-lhe o pae de Irene o remedio; por&eacute;m,
+continuou a aggress&atilde;o t&atilde;o viva contra o travesso
+rapaz;
+chegou a taes amea&ccedil;as, que o for&ccedil;ureiro julgou
+dever fazer algumas observa&ccedil;&otilde;es a esse respeito,
+e
+as observa&ccedil;&otilde;es fizeram desviar o raio de uma
+cabe&ccedil;a
+para outra. A culpa daquelle attentado, t&atilde;o grave para
+o cego piloto, era de Gon&ccedil;alo Domingues, que n&atilde;o
+soubera morigerar o seu pupillo; que lhe d&eacute;ra largas
+illimitadas; que lhe deix&aacute;ra damnar alma e corpo
+com ruins paix&otilde;es. Quem ouvisse aquella
+recapitula&ccedil;&atilde;o
+de queixas e accusa&ccedil;&otilde;es tomaria o namorado
+de Irene por um D. Juan, se Tirso de Molina j&aacute;
+<span class="pagenum">[86]</span>
+tivesse modelado no <em>Burlador</em> o typo
+famoso, que,
+com um arrebique para aqui, uma limadella para
+acol&aacute;, um nariz de cart&atilde;o, uma cabelleira
+empoada,
+ou os tezos e cortantes colarinhos de um mylord tem
+servido a tanta e t&atilde;o boa gente. O bom do tio, posto
+que chofrado, e duvidando de tanto aggravo, julgou
+o caso de consciencia, comtudo, e mentalmente resolveu
+a quest&atilde;o por um dos lados; por onde a lei, se
+fossem veridicas as supposi&ccedil;&otilde;es do
+for&ccedil;ureiro, a resolveria,
+mesmo naquelle tempo, visto que n&atilde;o havia
+desigualdade de castas. O rico burguez n&atilde;o mettia
+em linha de conta a vaidade do piloto, n&atilde;o se recordava
+tambem de que o commercio e industria com
+que se locupletara eram marcados com despreso tradicional,
+despreso ecclipsado para as maiorias pelo
+brilho das dobras, &eacute; verdade; por&eacute;m
+n&atilde;o de todo
+para os mais pechosos. Jo&atilde;o Ramalho, &aacute; primeira
+phrase em que o for&ccedil;ureiro dava a entender a sua
+resolu&ccedil;&atilde;o, feriu-o vivamente no fraco, e
+emcambulhando-se
+as palavras em dialogo alternado, a voz
+do tio de Fernando chegava ao diapas&atilde;o da do pae da
+linda namorada deste, quando arruido maior lhes abafou
+as vozes, e uma onda de povo os separou, lan&ccedil;ando
+um para um lado, outro para outro.
+<br />
+
+<br />
+
+Para explicar esse alvoro&ccedil;o voltemos outra vez
+&aacute;s assoadas de D. Golias, o b&ocirc;bo da cidade.
+<br />
+
+<br />
+
+Como em baile de etiqueta annunciava o maninelo
+quanto individuo de seu conhecimento se approximava
+do mirante semovente, em que se empoleirara,
+quando um claro se fez do lado do arco,
+que dava serventia para as Cangostas, rua que n&atilde;o
+desmente ainda hoje o nome posto, para a Bainharia
+e almuinhas, e appareceu a&ccedil;odado o nosso conhecido
+Jo&atilde;o Bispo. Se a pressa, que mostrava trazer,
+<span class="pagenum">[87]</span>
+e o conservar na m&atilde;o a adaga n&atilde;o fizessem notada
+a pessoa do ex-subordinado de Tello, chamariam sobre
+elle a atten&ccedil;&atilde;o os gritos de Golias.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Upa! acima sineiros da maldi&ccedil;&atilde;o, berrava
+elle. Os sinos n&atilde;o tangem? Beguino, frei velhaco!
+campas e sino grande, tudo a chocalhar! Venha toda
+a monjaria de cruz al&ccedil;ada, que chega o senhor bispo,
+o bispo Jo&atilde;o! Sua merc&ecirc; traz pressa; mas nem
+por isso deve ser recebido sem as honrarias de usan&ccedil;a.
+V&aacute;: deitem-lhe agua benta aos olhos, para que n&atilde;o
+veja por ahi moura perdida pelas celas!
+<br />
+
+<br />
+
+E terminando a exclama&ccedil;&atilde;o imitava com a bocca
+o repique de sinos, baloi&ccedil;ando-se sobre os hombros
+do espadaudo vadio, em quanto este, que n&atilde;o
+tinha a insensibilidade de campanario, grunhia incommodado
+pelo revolver dos p&eacute;s do b&ocirc;bo ante os
+olhos, e arrepel&otilde;es dados na hirsuta cabelleira.
+<br />
+
+<br />
+
+A cidade ficava de certo sem o importante Golias;
+pois que o vadio estava j&aacute; disposto a sacudil-o
+no lagedo, como o besoiro, que lhe fizesse cocegas
+no cacha&ccedil;o, e de certo o estatelava, sen&atilde;o se
+ouvissem
+gritos no meio da pra&ccedil;a, e o novo b&eacute;steiro
+de Gaya se n&atilde;o viesse embara&ccedil;ar, tentando
+penetrar na
+portaria, nas pernas da victima do b&ocirc;bo, ao mesmo
+tempo quasi que o acontiado do municipio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Castelhano! gritou este, deitando as m&atilde;os
+ao namorado de Garifa, castelhano, aqui n&atilde;o te valem
+os fidalgos traidores!
+<br />
+
+<br />
+
+O homem do virote, que sentira subir-lhe o
+sangue &aacute; cabe&ccedil;a com a amea&ccedil;a de Ayres
+Gon&ccedil;alves,
+correra, mal este embarc&aacute;ra, a procurar desafogo
+em Jo&atilde;o Bispo, e mais desesperado pela velocidade
+da carreira deste e pelo emmaranhado dos beccos
+por onde seguira, quando o encontrou, ao dobrar o
+<span class="pagenum">[88]</span>
+arco, sentiu o despeito renascer; o nosso b&eacute;steiro,
+por&eacute;m, deitou-o no ch&atilde;o com um cambap&eacute;
+e seguiu
+caminho. A vontade de tirar desfor&ccedil;o do novo
+desappontamento trouxe aos l&aacute;bios do homem do
+virote aquella palavra &laquo;castelhano&raquo;.
+Jo&atilde;o Bispo correra
+menos risco quando lhe chamaram ladr&atilde;o, entre
+os bons burguezes, na baixa, do que baptisado com
+semelhante nome.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Castelhano?! exclamaram alguns mesteiraes
+correndo para junto dos dous soldados, emquanto
+Jo&atilde;o se desembara&ccedil;ava do seu aggressor.
+<br />
+
+<br />
+
+E um sussurro indicador de que a tempestade,
+as iras populares estavam eminentes se levantava no
+terreiro, ao passo que a portaria era invadida.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mata, mata! gritaram em seguida alguns garotos
+do outro extremo da pra&ccedil;a; mata o castelhano!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo sentiu um suor frio correr-lhe pelo
+corpo todo, e murmurou dando um salto, encostando-se
+a uma das hombreiras da porta, e cobrindo o
+peito com a adaga:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Castelhano... castelhano? Quem falla aqui em
+castelhano? Affastar, proseguiu em voz mais forte,
+affastar! Em castelhanos vou eu p&ocirc;r o dedo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mata, mata! berraram com os garotos alguns
+dos homens mais esfarrapados da chusma; e
+uma pedra veio ferir fogo nos umbraes do convento.
+<br />
+
+<br />
+
+O amante de Garifa, metteu a m&atilde;o no seio e tirou
+uma pequena tira de pergaminho, ao passo que
+o b&ocirc;bo, atterrado com o arremesso de projectis em
+semelhante direc&ccedil;&atilde;o, julgava dever intervir:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S&uacute;s, boa gente; quem chama castelhano a
+Jo&atilde;o Bispo? Frei Jo&atilde;o n&atilde;o foi sagrado
+pelo papa
+dos scismaticos... foi pelo papa dos velhacos.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[89]</span>
+&#8213;Oh! &eacute; Jo&atilde;o Bispo? perguntaram duas ou tres
+vozes d'entre a chusma.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jo&atilde;o Bispo, ou o bispo Jo&atilde;o, tornou o
+b&ocirc;bo,
+fazendo mesuras ao publico, ao qual soubera modificar
+as iras com o seu gracejo.
+<br />
+
+<br />
+
+O homem do virote via de novo escapar-se-lhe
+a victima.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;V&ecirc;de, v&ecirc;de, gritou elle apontando para o
+pergaminho,
+que o b&eacute;steiro segurava na m&atilde;o, e tentando
+apoderar-se delle: v&ecirc;de como quer esconder aquillo.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo levantou o bra&ccedil;o para furtar o
+escripto,
+que trazia a Ruy Pereira, &aacute; m&atilde;o do
+b&eacute;steiro
+do municipio, ao mesmo tempo que Golias estendia
+o bra&ccedil;o e o apanhava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ui que esgaravunhos! pipitou elle desenrolando
+a tira. Isto &eacute; esconjuro de bruxa, ou pacto de
+venda de alma de judeu?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ou mensagem para os do arcebispo! resmungou
+um dos mesteiraes.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mensagem para os do arcebispo... disseste a
+verdade, mal-cuidando! accudiu o b&eacute;steiro de Gaya,
+soltando ao mesmo tempo uma praga, e com a raiva
+pintada no rosto dando um salto para rehaver o
+pergaminho.
+<br />
+
+<br />
+
+O escripto voou das m&atilde;os do tru&atilde;o assustado
+para junto de Jo&atilde;o Ramalho, que, levantando-o,
+passou pelos olhos as primeiras linhas:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Traidor, Gon&ccedil;alo de Sousa?! exclamou elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Traidor, sim, disse Jo&atilde;o Bispo; e ainda ha
+pouco aqui tramou n&atilde;o sei que outras villanias! Estes
+c&atilde;es que trouxe &aacute;s pernas n&atilde;o me
+deixaram...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o n&atilde;o proseguiu. O alcaide de Monsaraz
+desembocava
+no pateo, acompanhado de Affonso Darga,
+vindo do lado da casa do capitulo. Entre os mesteiraes
+<span class="pagenum">[90]</span>
+entrados na portaria reinava profundo silencio. O
+joven cavalleiro fallava com o commandante da flotilha
+enviada pelo Mestre de Aviz &aacute;s aguas do Douro:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor Gon&ccedil;alo de Sousa...
+<br />
+
+<br />
+
+Como Jo&atilde;o Bispo n&atilde;o acab&aacute;ra a phrase
+n&atilde;o a acabou
+tambem Affonso Darga. Jo&atilde;o Ramalho dirigira-se
+para o alcaide, e batendo-lhe com uma das m&atilde;os
+no hombro, appresentou-lhe o escripto. Aquelle pergaminho
+apanhara-o o ex-novi&ccedil;o ao
+capell&atilde;o de Ayres
+Gon&ccedil;alves. Scismando nas palavras ouvidas atraz do
+reposteiro, quando, ao regressar de uma visita &aacute; ucharia,
+se perdera nos lan&ccedil;os de escada e corredores dos
+pa&ccedil;os de Gaya, pensou que no aposento do frade
+lhe acharia a explica&ccedil;&atilde;o. A prova de que
+n&atilde;o pensou
+mal era o ter encontrado alguma cousa, e essa cousa&#8213;o
+pergaminho&#8213;fizera perder a c&ocirc;r ao alcaide de
+Monsaraz.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; pallidez, seguiu-se o rubor, e depois de novo
+a pallidez. Gon&ccedil;alo de Sousa sacudiu a m&atilde;o do
+mercador, como se fosse um reptil, que lhe tivesse
+pousado nos hombros; quiz fallar e a voz prendeu-se-lhe
+na garganta; a espuma produzida por um accesso
+de bilis appareceu-lhe aos cantos da bocca. O
+nobre senhor, nesse instante, temia menos as iras das
+turbas, sentia menos a deshonra, se deshonra via na
+sua trai&ccedil;&atilde;o, do que a ousadia do homem do povo,
+que
+assim se arvorava em seu juiz.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Arreda, vill&atilde;o! gritou, mal a voz se
+desembara&ccedil;ou.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vill&atilde;o! repetiu Jo&atilde;o Ramalho, refece
+&eacute; quem
+assim atrai&ccedil;oa a terra que o viu nascer; n&atilde;o
+&eacute;, senhor
+alcaide?
+<br />
+
+<br />
+
+A voz do piloto tremia; mas n&atilde;o de susto. Gon&ccedil;alo
+Rodrigues de Sousa arrancou-lhe das m&atilde;os o
+<span class="pagenum">[91]</span>
+pergaminho, e rasgando-o, lan&ccedil;ou-lhe os peda&ccedil;os
+ao
+rosto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quereis resposta? disse elle com um sorriso
+nervoso, symptoma de um excesso de raiva;
+quereis uma resposta? Eil-a... Outra s&oacute; a darei
+quando o meu accusador n&atilde;o f&ocirc;r da tua
+ral&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+O punhal de Jo&atilde;o Ramalho lampejou no ar. O
+alcaide de Monsaraz cont&aacute;ra aquella hora como a
+ultima da vida, se uns poucos de mesteiraes e b&eacute;steiros
+do municipio n&atilde;o fizessem o mesmo, lan&ccedil;ando-se
+sobre elle, embara&ccedil;ando-se uns aos outros.
+<br />
+
+<br />
+
+A onda popular, levantada pelas primeiras palavras
+do homem do virote, pela accusa&ccedil;&atilde;o feita ao
+namorado
+de Garifa, crescera furiosa, estuara no meio
+dos gritos de &laquo;morra o traidor, o castelhano&raquo;. A
+portaria
+do convento f&ocirc;ra invadida, esmagado quasi o
+porteiro, apeiado e pisado o pobre D. Golias, e azevans,
+ascumas e agomias luziam amea&ccedil;adoras por
+cima daquellas cabe&ccedil;as inquietas, como na crista das
+vagas os flocos de espuma feridos pelos raios do
+sol. Quatro bra&ccedil;os possantes seguraram o alcaide,
+mais j&aacute; lembrado de que era homem do que fidalgo:
+Affonso Darga e uns dous monges, que o quizeram
+cobrir com o corpo, foram repellidos em um
+abrir e fechar d'olhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ao pelourinho, ao pelourinho! gritou um dos
+mesteiraes arvorados em justiceiros. A&ccedil;outado e
+enforcado!...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! gritou o dominico, tentando salvar
+Gon&ccedil;alo Rodrigues; Jesus! o que ides fazer &eacute; um
+homizio,
+e o sangue...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vamos fazer justi&ccedil;a. A traidor como a traidor!
+Pe&otilde;es, n&atilde;o temos cepo nem cutello; mas temos
+boas cordas de canave.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[92]</span>
+&#8213;Ao pelourinho, ao pelourinho!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os traidores!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;B&eacute;steiros, a mim b&eacute;steiros! gritou o alcaide
+de Monsaraz, vendo apparecer do lado do claustro
+dous acontiados da esquadra.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem &eacute; aqui por traidores?! exclamou um
+dos que empunh&aacute;ra o alcaide.
+<br />
+
+<br />
+
+Os b&eacute;steiros n&atilde;o se moveram. A celeuma na
+pra&ccedil;a crescia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Por Christo crucificado! tornou o dominico
+pacificador, erguendo a cima da cabe&ccedil;a a imagem
+do Redemptor. Quem com ferro matar, morrer&aacute; pelo
+ferro...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ide-vos, homem de Deus; ide-vos, sen&atilde;o
+quereis que vos tomem por traidor.
+<br />
+
+<br />
+
+A voz de Ruy Pereira, avisado do risco em que
+estava Gon&ccedil;alo de Sousa, trovejou por cima daquella
+celeuma:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem falla aqui em trai&ccedil;&otilde;es? Traidores, se
+os ha, deixai-os &aacute; justi&ccedil;a do regedor. D.
+Jo&atilde;o vol-a
+far&aacute; boa e prompta, bons homens! Senhor meirinho,
+senhor meirinho!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O povo do Porto sabe fazel-a t&atilde;o bem e t&atilde;o
+boa como o de Lisboa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor meirinho, senhor meirinho, gritava
+o tio de Nuno Alvares, barafustando para se approximar
+do commandante das gal&eacute;s do Mestre, e procurando
+com o vista o meirinho da cidade, que abafava
+entre os mesteiraes.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ao pelourinho! vozeavam estes.
+<br />
+
+<br />
+
+Um b&eacute;steiro neste momento atravessava o terreiro,
+soffreando o cavallo em que montava, para
+n&atilde;o pisar o povo, nessa occasi&atilde;o soberano em
+verdade.
+Conhecido de alguns dos amotinados, abaixara-se
+<span class="pagenum">[93]</span>
+a fallar-lhes, e pouco e pouco, &aacute;
+propor&ccedil;&atilde;o que
+se approximava da portaria do convento, ao berreiro
+de &laquo;morras&raquo; succedia um borborinho destas palavras
+trocadas em voz baixa:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Os gallegos! os gallegos!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Os gallegos! exclamou o mesteiral que segurava
+o alcaide e parecia ter grande influencia nos
+seus companheiros; os gallegos veem? Boa id&eacute;a:
+mandar-lhe-hemos este bom cavalleiro para o arraial.
+As machinas que est&atilde;o do lado das Hortas podem
+com pesos maiores. &Eacute; uma boa lan&ccedil;a que enviamos
+aos do arcebispo. N&atilde;o &eacute; para elles que se queria
+partir?
+<br />
+
+<br />
+
+Uma gargalhada saudou a lembran&ccedil;a, apesar de
+n&atilde;o ser original.
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Rodrigues de Sousa estava salvo com
+aquelle addiamento das vingan&ccedil;as populares.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>VII.</h3>
+
+<h3>
+Recontro de Le&ccedil;a.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+Todo oro que se afina<br />
+
+Es de mas fina valia,<br />
+
+Porque tiene mejoria<br />
+
+De cuando estaba en la mina,<br />
+
+Ansi se apura y retina<br />
+
+El hombre y cobra valor<br />
+
+En la fragoa del amor.
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature smallcaps">gil vicente.&#8213;fragoa
+d'amor.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bof&eacute;, por aqui?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; verdade, Jo&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas como? Se o n&atilde;o vira com estes olhos
+que a terra ha de comer...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois eu sou.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Como S. Thom&eacute;, parece-me que ser&aacute;
+preciso
+<span class="pagenum">[96]</span>
+tocar-vos para cr&ecirc;r. E como vindes armado! Nem
+mo&ccedil;o escudeiro vos leva as lampas! Mas ainda o
+n&atilde;o
+posso acreditar. E mestre Gon&ccedil;alo?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Meu tio...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim! O bom do velho veio tambem na arrancada.
+&Eacute; o que faltava v&ecirc;r... elle que n&atilde;o
+&eacute; para
+estas cousas, apesar de bom portuguez. Mas, em fim,
+est&aacute; ahi o Porto em peso; velhos e cachopos...
+at&eacute;
+mouros. Por pouco vinham as mulheres! Ala f&eacute;,
+mestre Gon&ccedil;alo Domingues...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Meu tio n&atilde;o veio...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ai, Jo&atilde;o, se souberas?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O que?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Estou como tu; sem leira nem beira.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Jorge e todos os santos batalhadores sejam
+commigo! Que foi o que vos succedeu, Fernando?
+Morreu mestre Gon&ccedil;alo?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o morreu, n&atilde;o... nem Deus queira
+tal.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, que foi?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ai, Jo&atilde;o, hontem foi um dia bem de mau
+sestro!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para mim tambem: por um argueiro duas
+vezes escapei &aacute; morte!... Pois n&atilde;o vi, ao sahir
+de Gaya,
+nem gato preto, nem chapim de sola para o ar, nem
+velha varrendo lixo: nem ouvi piar a coruja, nem
+uivar os c&atilde;es! Valeu-me o anjo da Guarda...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mim n&atilde;o me quizeram matar; mas... parece-me
+que me foi peior...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Peior?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim, Jo&atilde;o: lembras-te de me encontrares nos
+Banhos, e de te fallar em certos amores? ..... Fui
+v&ecirc;l-a.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[97]</span>
+&#8213;Ah! fostes v&ecirc;r a tal menina, e estava arrufada...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o, Jo&atilde;o; Irene...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Irene? chama-se Irene? &eacute; um nome que n&atilde;o
+&eacute; feio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E ella &eacute; mais linda; mas, como te ia contando,
+fui vel-a. Ia a subir a um muro do lado do
+quintal para lhe fallar&#8213;queria tirar um peso que
+tinha no cora&ccedil;&atilde;o; dizer-lhe que, apesar de meu
+tio
+ralhar, lhe havia de querer muito e... nem eu sei
+o que mais; mas queria-lhe fallar, vel-a&#8213;ia a subir
+ao muro, e o muro... zas... no meio do ch&atilde;o,
+e cara a cara dou com o pae...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora! E por tal &eacute; essa amofina&ccedil;&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhe, Jo&atilde;o, que n&atilde;o &eacute; o caso para
+folgar!
+Como n&atilde;o ralharia elle &aacute; minha pobre Irene, elle,
+que n&atilde;o tem ar de palavras de mel, e ficou com
+um senho... que descarregou nella... de certo...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Isso de nada vale, Fernando.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ainda n&atilde;o ficou ahi o mal. Deitei a correr...
+eu sei l&aacute; para onde! Quando me lembrei de voltar
+para casa era tarde; pouco faltava para o sol
+posto. Appressei o passo, lembrado de que se meu
+tio me n&atilde;o encontrasse nos Pellames, elle, que me
+guardava m&aacute; ten&ccedil;&atilde;o por me haver
+encontrado j&aacute; na
+maldita arvore, faria de sorte que eu n&atilde;o tornaria a
+p&ocirc;r p&eacute;s na rua. Ao chegar quasi a S. Domingos,
+havia uns alaridos, um grande vozear, e parara ao
+p&eacute; do arco, quando mestre Duarte, o nosso visinho,
+veio aonde eu estava, e contou que vira o pae
+de Irene fallar com meu tio, e que ambos esbravejavam,
+por palavras que lhes ouvira, contra mim.
+Voltei a Miragaya...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para que?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[98]</span>
+&#8213;Nem o sei dizer. Receiava de meu tio... e
+n&atilde;o receiava. Quando de novo me dirigi &aacute; porta da
+cidade estava fechada. Do lado da Esnoga via-se um
+grande clar&atilde;o, e continuava o alarido...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Era a chamusca da casa de mossem Moys&eacute;s,
+o irm&atilde;o de D. David Algaduxe; era o escote dos
+judeus.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Assim me disseram de manh&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Passastes a noite ao relento?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Passei, Jo&atilde;o, e se visse sequer uma luz &aacute;
+janella, parece-me que ficava consolado. Ao alvorecer,
+como depois daquella noite assim corrida maiores
+raz&otilde;es tivesse para n&atilde;o voltar aos Pellames, subi
+a encosta em cata de mestre Pedro, e, como o
+n&atilde;o encontrei, fui pelas Hortas. No campo, a chusma
+das gal&eacute;s, os acontiados da cidade, e a gente de
+armas dos ricos homens vindos de f&oacute;ra, estava tudo
+em movimento; chegava povo a todos os momentos
+e sahia no meio de vivas; ao p&eacute; da torre, junto &aacute;
+porta, do lado de dentro, distribuiam armas. Um
+anadel deu-me um encontr&atilde;o, e disse-me que fosse
+buscar tambem alguma cousa, e fui; pozeram-me a
+caminho para aqui, e puz-me a caminho tambem...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Amores! amores! E agora que ides fazer?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Boa pergunta, disse, erguendo e cabe&ccedil;a com
+certo enthusiasmo, o namorado de Irene, Fernando
+Vasques, de certo j&aacute; reconhecido, bem como Jo&atilde;o
+Bispo desde as primeiras linhas deste dialogo; agora
+&eacute; batalhar, e ou ficar para ahi, ou fazer
+ac&ccedil;&atilde;o
+de fama; e depois...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E depois ides p&ocirc;r a espada aos p&eacute;s da vossa
+dama, como naquelle conto da Tavola-Redonda ou
+naquell'outro que tinha frei Gumado... Ama... Ama...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Amadis, queres dizer?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[99]</span>
+&#8213;Isso &eacute;: um em que havia combates de gigantes
+e uma princeza muito formosa: deixai v&ecirc;r se
+me lembra o nome... Oriana!...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A dama de Amadis.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bonitos contos, Fernando, esses de cavallerias
+e amores; pena &eacute; que hoje nada succeda assim
+de geito.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pena que n&atilde;o haja quem tenha a vontade
+de boas ac&ccedil;&otilde;es e famosas! O senhor Nun'Alvares,
+tem-se, ainda assim, havido como alguns dos mais
+pintados, e ouvi contar a meu tio, que o viu simples
+pagem, acompanhando a rainha Leonor, pela
+qual depois foi armado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Tomou o le&atilde;o para o fazer lebreo de estrado;
+mas elle, mal chegou a idade, mostrou-lhe os
+dentes todos, e foi para o monte a monteal-a. Desde
+nado trouxe boa sina Nuno Alvares. Mestre Thomaz,
+grande astrologo, que andava em casa de seu pae,
+leu nas estrellas, e viu que empresa em que se mettesse
+seria boa, e elle sahiria vencedor, se fosse para
+bem sua ten&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Por isso deixou elle a rainha Leonor; pois
+em servi&ccedil;o della n&atilde;o andava bem, e podia-se
+quebrar
+o encanto com que foi fadado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mim tambem me leram a sina; por&eacute;m a maldita
+da moura que o fez disse uma tal embrulhada,
+de que s&oacute; percebi que havia de entrar em grandes
+batalhas, e salvaria um rei...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o ouvis? atalhou Fernando, sobresaltado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ou&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Al&eacute;m do rio...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Um como tropear de gente, e quebrar de
+ramos. Estas fogueiras n&atilde;o deixam v&ecirc;r bem. As
+vigias dormir&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[100]</span>
+&#8213;N&atilde;o... olha, n&atilde;o v&ecirc;s alli ao
+p&eacute; daquelle fraguedo,
+onde bate o luar, aquella que se move? est&aacute;
+bem desperta. Ainda ha pouco se recolheu uma rolda,
+a que acompanhou frei Patinho.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Escutai, tornou Jo&atilde;o Bispo, deitando-se no
+ch&atilde;o para melhor distinguir a direc&ccedil;&atilde;o
+do rumor,
+depois de retesada a corda da sua besta.
+<br />
+
+<br />
+
+A noite descera havia muito; os galos de algumas
+cho&ccedil;as visinhas tinham j&aacute; annunciado que ia
+alta, a meio do seu curso, e a lua erguia-se redonda,
+avermelhada, semelhando um escudo candente,
+por entre as ramas dos pinheiros, que fechavam
+ao nascente o horisonte, fazendo destacar a uns
+por contornos negros, cobrindo de uma luz phantastica
+os curutos de outros, e projectando sombras
+immensas pelas clareiras. &Aacute; propor&ccedil;&atilde;o
+que
+ella minguava no c&eacute;u, tornavam-se mais vivos os
+reflexos azulados com que tingia alguns objectos,
+fazendo contraste com os fogos dos dous acampamentos
+&aacute;quem e &aacute;lem de Le&ccedil;a&#8213;fogos que em
+pontos
+ainda se mostravam vivos, fazendo ressaltar vultos
+negros, tocados, sobretudo nos arnezes, bra&ccedil;aes e
+grevas dos homens d'armas, de linhas ardentes, vermelhas
+quasi; em outros quasi extinctos, mostrando, atrav&eacute;s
+de uma luz vaga, f&oacute;rmas indecisas, movendo-se,
+tregeitando. Aqui o ferro de uma azevan, volteando,
+espelhava um raio da lua, e imitava os fogos f&aacute;tuos;
+acol&aacute; o bacinete polido de um b&eacute;steiro de
+pol&eacute; lampejava,
+ao cruzar r&aacute;pido por p&eacute; dos fogos das vigias.
+De vez em quando o relincho dos cavallos se reproduzia
+nos eccos; as vozes das roldas se alteava;
+erguia-se aqui uma risada, alli um clamor, e depois
+recahia tudo em um silencio, que s&oacute; interrompia,
+<span class="pagenum">[101]</span>
+alguma conversa a meia voz, como a que cortaram
+os nossos dous namorados.
+<br />
+
+<br />
+
+Pela bocca de um delles j&aacute; todos sabem que os
+combatentes de que podia disp&ocirc;r a cidade da Virgem,
+homens e rapazes se tinham nessa dia de madrugada
+posto a caminho de Le&ccedil;a, e se est&atilde;o lembrados
+da noticia dada pelo b&eacute;steiro em S. Domingos,
+noticia que tirou Gon&ccedil;alo Rodrigues das m&atilde;os
+dos populares e o entregou &aacute; justi&ccedil;a, que lhe fez
+grande
+favor em o reter preso em Gaya; se se lembram
+de que D. Jo&atilde;o Manrique, arcebispo de Santiago,
+abal&aacute;ra de Braga com setecentas lan&ccedil;as e dous mil
+infantes, portuguezes, partidarios de D. Beatriz, e gallegos,
+e quando cheg&aacute;ra a mensagem do Mestre acampava
+perto da cidade, atinar&atilde;o qual o intento que ahi
+os levava. Alguns corredores do bando inimigo tinham,
+ao tempo que pecuniariamente se salvava a
+patria, chegado a Paranhos, alarmando os poucos
+camponezes n&atilde;o recolhidos &aacute; cidade, e os bons
+burguezes,
+que j&aacute; os tinham esperado duas vezes sem
+verem apparecer uma s&oacute; lan&ccedil;a, haviam resolvido
+affugentar
+estes hospedes importunos.
+<br />
+
+<br />
+
+Seis a sete mil homens, pois, acampavam &aacute;quem
+do Le&ccedil;a, occupando uma extensa linha.
+<br />
+
+<br />
+
+Esta tropa, superior &aacute; do arcebispo em numero,
+era, encarada por outro lado, talvez inferior. Dos nobres
+que com os seus homens d'armas tinham seguido
+as hostes populares, em alguns n&atilde;o eram firmes as
+cren&ccedil;as de partido, como vimos; nos outros, em geral,
+havia certa m&aacute; vontade por v&ecirc;rem ao seu lado
+cavalleria
+burgueza, para a qual olhavam pouco mais ou menos
+com os mesmos olhos com que ainda hoje, no seculo
+XIX, olha o militar para o miliciano que marcha
+ao seu lado. Os b&eacute;steiros da behetria, trezentos ao
+<span class="pagenum">[102]</span>
+todo, era gente de animo resoluto, por&eacute;m fracos atiradores,
+e os quinhentos, tirados da esquadra e de Gaya,
+tinham os outros quasi na mesma conta que &aacute;s
+lan&ccedil;as
+que rodeavam a bandeira onde entre torres a
+Virgem apparecia mostrando Jesus inda menino, aquelles
+que seguiam bals&otilde;es historiados, e mesmo
+ainda ao mais historiado labaro, museu de imagens santas
+ideado pelo futuro condestavel.
+<br />
+
+<br />
+
+Cinco mil homens, exceptuando a chusma da armada,
+pertenciam a essa gente que parecia entregue
+a uma mascarada, quando levamos o leitor aos adarves
+que tinham vista para Miragaya. Eram por&eacute;m estes,
+era o povo e os acontiados do municipio que tinham
+de fazer retirar os muito esfor&ccedil;ados cavalleiros
+Lopo de Lira, Fern&atilde;o Gomes da Silva, Martim
+Gon&ccedil;alves de Athaide, Gon&ccedil;alo Pires Coelho e
+outros
+nobres, que seguiam com elles o arcebispo de Santiago.
+As ascumas e os mangoaes affaziam-se, a passar
+aquellas entre o gorjal e a barbuda, a malhar
+estes em cimeiras; amestravam-se para a grande tarefa
+de Aljubarrota.
+<br />
+
+<br />
+
+Como dissemos, os defensores do Mestre estendiam-se
+na margem do Le&ccedil;a por bom espa&ccedil;o. Jo&atilde;o
+Bispo e Fernando Vasques encontravam-se em uma
+das extremidades da linha, ou acampamento, quando
+extranho ruido vindo de uma mata visinha os
+fez interromper o dialogo que ahi fica exarado. O
+amante de Garifa, depois de se conservar por alguns
+segundos deitado, com o ouvido attento, ergueu-se,
+fez um signal ao seu companheiro, e, empregando
+o maior cuidado possivel para n&atilde;o fazer rumor,
+dirigiram-se ambos para o lado do poente, onde
+de novo se pozeram a escutar.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S&atilde;o os nossos, disse o b&eacute;steiro novel a
+Fernando;
+<span class="pagenum"><a name="p103" id="p103">[103]</a></span>
+s&atilde;o os nossos, que est&atilde;o abrindo caminho
+no
+bosque.
+<br />
+
+<br />
+
+Palavras n&atilde;o eram ditas, um grito sahia da selva,
+e um b&eacute;steiro levantava quasi debaixo da cara
+do sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues a sua besta armada,
+mirando-o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eh! Gil! abaixa l&aacute; isso, gritou Jo&atilde;o Bispo:
+guarda os teus virotes para os <a href="#e1">gallegos!</a>
+Que
+desbravar
+de matto &eacute; esse?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eram&aacute;! est&aacute;s ahi, Jo&atilde;o? tomei-vos
+por esculcas
+desses condemnados! Abrimos caminho na mata,
+e vamos passar o rio. Jo&atilde;o Ramalho est&aacute;
+l&aacute; em
+baixo com trezentos dos da cidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Come&ccedil;a o folguedo?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Boa festa! Vamos fazer dan&ccedil;ar os do arcebispo
+ao som de assobiar de virotes, e ranger de
+pol&eacute;s e garruchas. Os malditos deste lado dormem,
+ao que parece, e n&atilde;o &eacute; mau despertal-os.
+<br />
+
+<br />
+
+O amante de Garifa deu alguns passos para se
+internar na mata. Fernando reteve-o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Espera, Jo&atilde;o, eu sei um sitio onde se p&oacute;de
+passar melhor do que ahi.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sabes?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Al&eacute;m, abaixo daquelle casal que est&aacute; a alvejar,
+pelo a&ccedil;ude.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bom discorrimento teve o cachopo! exclamou
+o b&eacute;steiro, com um sorriso de escarneo. V&atilde;o
+l&aacute; passar
+pelo a&ccedil;ude! &Eacute; o mesmo que fazer caminho para o
+outro mundo. Dous homens na outra margem tragam-vos
+uma hoste, como a uma tigella de migas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E se de l&aacute; n&atilde;o houver ninguem?
+<br />
+
+<br />
+
+O b&eacute;steiro, como unica resposta, voltou as costas,
+encolhendo os hombros; Jo&atilde;o Bispo, depois de curta
+<span class="pagenum">[104]</span>
+reflex&atilde;o, tomando a m&atilde;o do seu companheiro,
+exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;V&aacute;mos ao a&ccedil;ude!
+<br />
+
+<br />
+
+O desbaste do arvoredo continuou com affinco,
+e uma hora passada, havia uma soffrivel clareira
+aberta, onde tinham j&aacute; penetrado alguns homens
+d'armas. No campo inimigo, em frente, n&atilde;o se ouvia
+sen&atilde;o o ciciar da aragem. Um tro&ccedil;o de
+b&eacute;steiros e
+populares, armados estes com toda a sorte de armas,
+desde o montante farpeado e o machado, a ma&ccedil;a de
+puas, at&eacute; ao chu&ccedil;o e mangoal,
+come&ccedil;aram a passar
+o pequeno rio pouco abaixo do mosteiro dos Hospitaleiros.
+Cem homens teriam tomado p&eacute; na outra margem,
+quando um sibilo se ouviu, e um virote se veio
+cravar em um velho roble, ao p&eacute; do qual Jo&atilde;o
+Ramalho
+dava ordens aos acontiados da cidade. Em seguida,
+a outro sibilo juntou-se um grito, o som da
+queda de um corpo na agua, e logo um alarido immenso.
+B&eacute;steiros de p&eacute; e a cavallo, burguezes e
+mesteiraes,
+que se tinham lan&ccedil;ado ao Le&ccedil;a, recuaram.
+<br />
+
+<br />
+
+Do campo do arcebispo haviam notado o movimento
+da gente do Mestre, e o silencio guardado f&ocirc;ra
+alliciente para os chamar al&eacute;m.
+Cem homens estavam
+na outra margem prisioneiros, se o grosso da for&ccedil;a
+n&atilde;o avan&ccedil;asse.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Santiago! Santiago! gritaram os castelhanos;
+e a margem appareceu como por encanto coberta de
+frecheiros, e d'ahi a momentos o relinchar dos ginetes
+e o som das trombetas eccoava pelos valles.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Jorge e Portugal! gritou Jo&atilde;o Ramalho,
+arrebatando a bandeira da cidade das m&atilde;os de um
+cavalleiro do municipio, e lan&ccedil;ando-se ao rio.
+&Aacute;vante,
+filhos, &aacute;vante!
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[105]</span>
+Um tro&ccedil;o de mesteiraes lan&ccedil;ou-se em seguida
+do caudilho popular; por&eacute;m recuou de novo.
+<br />
+
+<br />
+
+As folhas das arvores cahiam, como varejadas,
+e os troncos lascavam aqui e alli, que os b&eacute;steiros
+de Garcia Manrique faziam a sua obriga&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Assim deixaes os vossos nas m&atilde;os daquelles
+perros?! exclamou Nicolau Domingues, apontando
+para a outra margem onde havia um concerto de
+pragas, vivas e morras. B&eacute;steiros! b&eacute;steiros,
+pela
+Virgem de Vandoma, &aacute;vante!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Aacute;vante! responderam alguns mesteiraes e
+acontiados, seguindo o exemplo de Jo&atilde;o Ramalho.
+<br />
+
+<br />
+
+A lucta travada al&eacute;m do Le&ccedil;a era uma temeridade.
+O luar alto j&aacute;, allumiava o necessario para o
+inimigo v&ecirc;r o inimigo que tinha junto de si, para
+uma lucta quasi corpo a corpo; e os homens d'armas do
+arcebispo, avan&ccedil;ando sobre o ponto invadido, iam dar
+cabo dos attrevidos portuenses; demais, os fundibularios
+e b&eacute;steiros d'aquem temiam ferir os seus,
+ao passo que os gallegos, prolongando-se de lado opposto
+pela margem, enviando tiros mesmo ao acaso,
+difficultavam a passagem. Martim Correia, o escriv&atilde;o
+da chancellaria, Gon&ccedil;alo Pires, e o filho do Mestre
+de Santiago, D. Pedro de Transtamara, com alguns
+escudeiros e um tro&ccedil;o de cavalleria da cidade,
+forcejavam em v&atilde;o por enfiar mais al&eacute;m a estreita
+ponte, ainda hoje existente naquellas paragens. O
+grosso dos homens d'armas e cavalleiros embara&ccedil;avam-se
+uns e outros, nos vallos, fraguedos e silvados,
+pelos sitios onde tinham acampado, alarmados pelo
+rebate extemporaneo.
+<br />
+
+<br />
+
+No rio, se se ouvia o chapejar, era o de um ou outro
+burguez fugitivo; no bosque o estallar dos ramos,
+o rumorejar dos fetos n&atilde;o era s&oacute; produzido pela
+<span class="pagenum">[106]</span>
+queda de virotes; era tambem pela queda de homens.
+Nicolau Domingues gritava a bom gritar; mas a chusma
+da esquadra, vinda de refor&ccedil;o, n&atilde;o se resolvia a
+ir juntar-se aos acontiados do Porto, quando um sucesso
+inesperado deu um fim brilhante ao que at&eacute;
+ent&atilde;o n&atilde;o se podia dizer mais que uma imprudencia
+do pae de Irene, e da sua gente.
+<br />
+
+<br />
+
+O mosteiro dos Hospitaleiros appareceu illuminado
+por uma luz avermelhada: nas ameias da egreja
+e das torres veria quem dellas se approximasse
+vultos negros correndo de um para outro lado a&ccedil;odados,
+e um alarido immenso se casava ao fragor
+do combate da margem.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando Vasques e Jo&atilde;o Bispo tinham passado
+o a&ccedil;ude e approximado, fazendo um rodeio, do acastellado
+mosteiro, pelo lado do norte, lado desguarnecido,
+e bastante cust&aacute;ra ao namorado da filha do
+velho Humeia a suster o seu companheiro, que na
+effervescencia do seu amor, cheio de enthusiasmo,
+imbuido de mais na leitura dos livros de cavallerias,
+para conquistar renome se dispunha a commetter
+temeridades, que serviriam apenas para alarmar
+os castelhanos e arriscar a vida. Jo&atilde;o persuadiu-o
+a voltar &aacute; outra margem, a procurar refor&ccedil;o
+para uma ideada surpresa, e n&atilde;o tinham do lado de
+&aacute;quem dado muitos passos quando lhes chegou aos
+ouvidos um vozear confuso, e toparam com uma mulher,
+que, solu&ccedil;ando, com os olhos arrasados de lagrimas,
+conduzia pela m&atilde;o uma crean&ccedil;a, chorosa tambem.
+Guiados por essa mulher, a quem Fernando,
+condoido, pergunt&aacute;ra a causa daquelle pranto, foram
+ter a um casal. As portas todas da casa estavam arrombadas:
+por uma sahia um grande clar&atilde;o. Uma velha
+arca e outros trastes ardiam ao canto de uma
+<span class="pagenum">[107]</span>
+adega, e &aacute; volta das pipas tripudiava um tro&ccedil;o de
+b&eacute;steiros.
+O vinho derramado em uma grande celha de
+pau, e que, trasbordando, se esbanjava pelo ch&atilde;o, mostrava
+em que estado tinham as cabe&ccedil;as, e mais ainda
+o modo porque recebiam as admoesta&ccedil;&otilde;es de micer
+Guilherme: dan&ccedil;avam, tregeitavam, grunhiam e berravam
+em v&aacute;rias linguas e dialectos, chegando alguns
+dos que se mostravam menos firmes nas pernas ao
+nariz do nobre aventureiro uma escudella a trasbordar.
+Para bem da verdade deve-se dizer que o irlandez,
+pretendendo conter os seus patricios, os inglezes,
+escocezes, gasc&otilde;es e normandos, que, recrutados
+pelo chanceller em Londres, tinham vindo nas
+gal&eacute;s, deitava &aacute; escudella um olhar
+t&atilde;o terno, que
+n&atilde;o era para delle esperar grande sanha contra os
+indisciplinados, nem grande vontade de se metter &aacute;
+agua.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo via no meio de gargalhadas e motejos
+desfazer-se o plano combinado com o sobrinho
+de Gon&ccedil;alo Domingues, quando este se lembrou de
+notar aos nossos fieis alliados por palavras e gestos
+que o vinho dos cavalleiros de S. Jo&atilde;o devia de ser
+cousa muito superior ao de pobre lavrador. Um hurrah
+saudou Fernando, e, cambaleando, a turma tomou
+o caminho do a&ccedil;ude, apesar dos protestos de
+Down-Patrick.
+<br />
+
+<br />
+
+Vinte homens, se tanto, seguiam aos dous namorados:
+uma duzia de archeiros de Gilles de Montferrand
+e alguns subordinados de Tello Rabaldo, encontrados
+tambem na adega do casal: os demais, embriagados,
+tinham ficado pelo caminho, e uns dous
+ou tres afogados no Le&ccedil;a. B&eacute;steiros e
+v&aacute;dios penetraram
+na cerca com o maior silencio em quanto Jo&atilde;o e Fernando
+rodeavam um p&aacute;teo junto da igreja, onde os
+<span class="pagenum">[108]</span>
+do arcebispo tinham amontoada bagagem, carros e
+grande por&ccedil;&atilde;o de escadas, com que
+amea&ccedil;avam um
+assalto &aacute; cidade. A sentinella, posta desse lado, dormia,
+cabeceando, encostada &aacute; lan&ccedil;a, quando Fernando
+deitou m&atilde;o de uma das escadas para a encostar
+ao muro. O pobre archeiro, extremunhado, abriu os
+olhos, esgaziados logo pelo terror, e a bocca para
+dar o signal de alarme; por&eacute;m aquelles embaciaram,
+e desta sahiu apenas uma golphada de sangue; deu
+umas outras duas passadas, cambaleando, estendendo
+as m&atilde;os como a procurar appoio, e cahiu no ch&atilde;o
+soltando um som rouco e um assobio, como de homem
+que desperta de pezadello. O castelhano, n&atilde;o
+despertava; adormecia para sempre: aquelle estertor
+sahia pela garganta e feridas abertas no peito por
+Jo&atilde;o Bispo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Jorge e Portugal! exclamou o namorado de
+Irene,
+abra&ccedil;ando-se &aacute;s ameias do eirado, e arrancando
+a bandeira dos partidarios de D. Beatriz, que tremulava
+ao p&eacute; da vermelha dos cavalleiros. S. Jorge e
+Portugal!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Estamos perdidos! resmungou Jo&atilde;o, ouvindo o
+grito do mancebo; e estropeando o nome do aventureiro
+irlandez, gritou: Micer D. Patrico! micer D.
+Patrico, por aqui! por aqui! A mim, b&eacute;steiros!
+<br />
+
+<br />
+
+Nas torres ergueu-se um alarido immenso: alguns
+penedos cahiram do eirado no p&aacute;teo, e uma nuvem
+de virotes sibilava nos ares. Ao chamamento
+de Jo&atilde;o apenas tinham acudido Pedro Choca e tres
+v&aacute;dios. O sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues, com a
+haste
+da bandeira defendia-se dos castelhanos, que, alarmados,
+mais tratavam de lan&ccedil;ar a escada a terra do que
+de se desfazerem do temerario inimigo.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[109]</span>
+&#8213;Abaixo, Fernando, abaixo! gritou Jo&atilde;o; e no
+alto das torres appareceram algumas luzes.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva o Mestre de Aviz! gritou o mancebo quasi
+ao mesmo tempo que lhe fugia a escada debaixo dos
+p&eacute;s, deixando-o suspenso das ameias e estribado
+em uma enorme salamandra de granito, que servia de
+goteira ao eirado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ahi vem ginetes, disse Pedro Choca, fazendo
+um esgar. Recommendemos a alma a Deus!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se elle t'a quizer! redarguiu um dos v&aacute;dios
+soprando a uns ti&ccedil;&otilde;es alli deixados em rescaldo,
+que
+embrulh&aacute;ra em uma pouca de palha.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Fernando! exclamou Jo&atilde;o Bispo, encostando
+outra escada ao muro, apesar dos arremessos; afferra-te,
+Fernando, que eu sou comtigo. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Jorge! S. Jorge! se ouviu do outro lado
+do mosteiro em altas vozes. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mim, b&eacute;steiros, a mim! tornou Jo&atilde;o Bispo,
+em quanto o seu amigo se defendia na goteira,
+procurando saltar no eirado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Hurrah! S. Jorge!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Malditos! aquelles odres onde estar&atilde;o! Micer
+D. Patrico!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Arriba, Jo&atilde;o, arriba! accudiram os v&aacute;dios,
+marinhando
+pela escada, que de novo tinham erguido.
+Aquelle endemoninhado cachopo vai morrer!
+<br />
+
+<br />
+
+Uma grande lavareda, de repente, illuminou a
+lucta travada entre Fernando Vasques, os seus companheiros
+e alguns homens d'armas do eirado. Pedro
+Choca tinha lan&ccedil;ado fogo a uns carros de palha,
+e este ateava-se aos enormes pavezes de vime,
+proprios para assalto, amontoados entre as escadas
+e bagagens. Era uma fogueira soberba que
+dentro em pouco faria estalar o travejamento dos aposentos
+<span class="pagenum">[110]</span>
+de D. Mafalda, ao mesmo tempo que os
+castelhanos abandonavam o eirado da egreja.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Os do Mestre! os do Mestre! se ouvia
+por todos os lados; e nas torres, besteiros e fundibularios
+perdiam os seus tiros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Hurrah! continuavam, j&aacute; roucos, a berrar,
+do outro lado da cerca, os inglezes.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Jorge e Portugal! gritaram algumas vozes,
+com boa clara, pronuncia portugueza, do lado
+do rio, apparecendo por entre os castanheiros, retirando
+os homens d'armas de Garcia Manrique.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ter! gritou um dos seus caudilhos, amea&ccedil;ando
+com o estoque os mais medrosos; ter, rapazes!
+N&atilde;o se diga que retiramos diante de meia duzia de
+vill&otilde;es!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ter, ter! exclamou o guerreiro arcebispo, apparecendo
+no meio dos fugitivos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Os do Mestre est&atilde;o no bailiado! disse uma
+voz d'entre a multid&atilde;o. V&ecirc;de, o mosteiro
+est&aacute; a arder,
+e foi derribada a bandeira!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Por Sanctiago! tornou o arcebispo para os
+seus companheiros, espantado da audacia dos portuenses,
+embrulhados j&aacute; com os gallegos, e suppondo-se
+cortado por for&ccedil;as immensas; estes excommungados
+est&atilde;o decididos a morrer, e trazem comsigo
+o poder do mundo. A caminho de Braga, senhores!
+Temos tempo sobejo para desforra.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Covarde! resmungou Jo&atilde;o Rodrigues Portocarreiro,
+esporeando o seu ginete para se lan&ccedil;ar
+sobre os do Mestre. Covarde! repetiu; e o fogoso
+animal, ferido nos peitos por um virot&atilde;o, ergueu-se
+com as m&atilde;os no ar, e cahiu, arrojando com
+ruido o portuguez rebelde a alguns passos de distancia,
+<span class="pagenum">[111]</span>
+abollando-lhe a armadura e o capacete e fracturando-lhe
+o craneo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Covarde! repetiu tambem o arcebispo com um
+sorriso de mofa, voltando-se para um dos seus capit&atilde;es,
+e designando o fidalgo portuguez: temeridades
+n&atilde;o aproveitam.
+<br />
+
+<br />
+
+A ponte tinha sido for&ccedil;ada ao mesmo tempo
+quasi, e a cavallaria de D. Pedro de Transtamara
+cortava j&aacute; pelo meio dos gallegos, atterrados.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A caminho de Braga! tornou a gritar o arcebispo
+D. Jo&atilde;o, que, lan&ccedil;ando-se na estrada partiu, a
+galope,
+seguido de grande por&ccedil;&atilde;o de cavalleiros, e pouco
+depois de todo o exercito, deixando os apprestes
+d'assalto, viveres e bagagens nas m&atilde;os dos burguezes
+do Porto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor conde, senhor conde, aqui est&aacute; a bandeira
+de Castella, exclamava momentos depois, attravessando
+no meio de vivas por entre as hostes do
+Mestre, o sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues, com as
+m&atilde;os cheias de sangue, de feridas do corpo e da
+cabe&ccedil;a,
+mas t&atilde;o contente, que nada lhe doia naquelle
+instante, e, em vez do perigo corrido, se recordava
+t&atilde;o s&oacute;mente de Irene, alegrava-se por saber que o
+seu nome lhe havia de chegar aos ouvidos na historia
+daquelle recontro.
+<br />
+
+<br />
+
+Era um heroe feito pelo
+amor&nbsp;.............................................................<br />
+
+<br />
+
+<div class="dots"></div>
+
+<br />
+
+O mosteiro dos Hospitalarios tinha sido abandonado,
+mal o incendio mostrou aos seus guardas as
+hostes portuenses al&eacute;m j&aacute; do Le&ccedil;a,
+abatida a bandeira
+e em fuga Garcia Manrique. No entanto, ainda
+do lado da cerca, sol j&aacute; nascido, as mesmas vozes
+roucas gritavam:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Hurrah! S. Jorge!
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[112]</span>
+&#8213;Onde demonio estar&atilde;o estes bargantes? perguntou
+o namorado de Garifa, procurando o sitio
+donde sahia aquelle vozear.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma gargalhada estrondosa se seguia, pouco depois,
+&aacute; pergunta. Os besteiros encontrados no casal,
+n&atilde;o se esqueceram, chegados ao mosteiro dos cavalleiros
+de S. Jo&atilde;o, que vinham para humedecer a
+garganta com bom vinho, e foi a adega a primeira
+cousa que procuraram. Era de l&aacute; que tinham, com
+os seus hurrahs, ajudado a alarmar os gallegos.
+<br />
+
+<br />
+
+Desta vez micer Guilherme Down-Patrick n&atilde;o
+resistira &aacute; tenta&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>VIII.</h3>
+
+<h3>
+Torneio.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+E elles no Porto por ledice
+de sua vinda ordenar&atilde;o hum
+torneo vespora de S. Ioh&atilde;o,
+que era em que os moradores
+daquella cidade costumavam
+fazer gram festa.
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature">(<span class="smallcaps">fern&atilde;o
+lopes.</span> <em>Chronic.</em>)</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Por uma tarde de mez de Junho, pouco mais
+de uma hora seria, caminhavam em direc&ccedil;&atilde;o
+&aacute;s Hortas,
+no meio de extraordinario concurso, mestre Gon&ccedil;alo
+Domingues e Fernando Vasques. O feito de Le&ccedil;a,
+tornando um heroe, entre os patriotas da terra,
+o mo&ccedil;o namorado, os gabos por elle publicamente
+<span class="pagenum">[114]</span>
+recebidos de Martim Correa e do conde D. Pedro, a
+ova&ccedil;&atilde;o feita pelos populares, que em charola, o
+conduziram,
+quando perdidas as for&ccedil;as, pelo sangue derramado,
+cahira ao voltar do recontro; tudo fizera passar
+por alto ao bom tio a fuga da loja. O velho abra&ccedil;ou-o
+enthusiasmado tambem, com o riso nos labios
+e ao mesmo tempo umas duas lagrimas nos olhos
+e s&oacute; se lembrou de fazer algumas reflex&otilde;es sobre
+as imprudencias da mocidade, quando em casa
+notou a necessidade de chamar um medico, ou physico,
+como ent&atilde;o se dizia.
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Domingues tinha, como muita gente, na
+cabe&ccedil;a uma boa d&oacute;se de ideas em
+opposi&ccedil;&atilde;o com
+as inspira&ccedil;&otilde;es e sentimentos do
+cora&ccedil;&atilde;o, sobretudo a
+respeito de seu sobrinho. Se dissessemos que queria
+ao mancebo tanto como &aacute;s suas dobras, diriamos
+que lhe tinha affei&ccedil;&atilde;o de pae; por&eacute;m,
+ia mais
+longe o velho: queria-lhe mais; pois bom dinheiro
+sem d&oacute; com elle tinha dispendido. E comtudo dava-se
+de vez em quando a perros por causa de certas
+travessuras e inclina&ccedil;&otilde;es do filho de seu
+irm&atilde;o, sobre
+as quaes fazia observa&ccedil;&otilde;es muito sisudas, cheias
+de um positivismo tal, que obrigava a dizer aos que o
+ouviam que elle era um homem de grande tino e prudencia.
+Reflex&otilde;es e ralhos, terminavam quasi sempre
+por aquelle sorriso que lhe viram os leitores quando
+elle voltava de Miragaya.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando vinha ainda alguma cousa p&aacute;llido, debilitado,
+ao que no corpo mostrava; por&eacute;m nos olhos
+havia um fogo extraordinario, uma alegria pintada
+em todo o semblante, e nos movimentos uma for&ccedil;a,
+uma rapidez, que n&atilde;o parecia de quem entr&aacute;ra
+pouco
+havia em convalescen&ccedil;a. O tio bem lhe dizia que
+moderasse o passo, pois lhe fazia mal aquella violencia,
+<span class="pagenum">[115]</span>
+e elle mesmo a custo o poderia seguir sem
+correr; mas o mancebo, se o affrouxava, era por instantes.
+<br />
+
+<br />
+
+O sol, ainda quasi a prumo, podendo, dardejar
+os raios por entre as esguias e altas edifica&ccedil;&otilde;es
+das
+estreitas ruas, que percorriam, rarefazia o ar, appresentando
+nos terreiros &aacute; vista a illus&atilde;o de um como
+doudejar de &aacute;tomos no ambiente, um tremor que fere
+os olhos; por&eacute;m Fernando nada sentia. Ia v&ecirc;r
+Irene,
+Irene que n&atilde;o vira desde o esboroamento fatal do
+muro; Irene, que Jo&atilde;o Ramalho, em vesperas de se
+fazer de v&eacute;la para a Figueira, d'onde seguiria para
+Lisboa, recolhera ao castello de Gaya, recommendando-a
+a D. Catharina. A nobre senhora era
+bastante astuciosa para n&atilde;o affagar em quanto fosse
+conveniente um homem popular como o piloto
+mercador, e fallando elle em metter a joven em um
+convento, em quanto ia servir o Mestre, para a guardar
+dos riscos a que a idade a expunha, se offerecera
+para a tomar como donzella sua &laquo;e tel-a como filha&raquo;
+palavras della. D. Catharina devia ir ao campo
+das Hortas nessa tarde, e por Jo&atilde;o Bispo soubera o
+mancebo que &aacute; sua namorada f&ocirc;ra concedida a honra
+de formar parte do seu cortejo. Em logar do sol
+que fazia, podia queimar o dos tropicos, que o mancebo
+o sentiria tanto como a aragem fagueira por
+sesta do outomno, ou a gellos de hinverno.
+<br />
+
+<br />
+
+O recontro de Le&ccedil;a deix&aacute;ra desassombrada a
+cidade,
+e os bons burguezes entregaram-se todos aos
+cuidados de aprestar as embarca&ccedil;&otilde;es e mais
+soccorros
+pedidos pelo Mestre de Aviz, posto em apuros
+pelo aperto do sitio e bloqueio. Em quanto o abbade
+de Pa&ccedil;o de Sousa se dirigia a Coimbra, transtornada,
+como vimos, a embaixada do alcaide de Monsaraz,
+<span class="pagenum">[116]</span>
+as gal&eacute;s vindas de Lisboa e outras do Porto,
+j&aacute; prestes, para n&atilde;o perderem tempo
+tinham-se feito
+de v&eacute;la pela costa da Galliza, capitaneadas pelo conde
+D. Pedro, lan&ccedil;ando contribui&ccedil;&otilde;es aos
+povos que
+n&atilde;o queriam experimentar o nosso ferro. Destruido
+completamente o Ferrol e queimadas algumas naus,
+pelos fins de Junho de novo a frota appareceu nas
+aguas do Douro, rebocando umas sete presas, e carregada
+de despojos.
+<br />
+
+<br />
+
+Os sinos de todas as torres da cidade balou&ccedil;aram-se,
+atroando os ares; berrou-se em todas as
+escalas os vivas do costume, e os edis, no fogo do
+enthusiasmo, decretaram uma festa esplendida, como
+appensa &aacute; de S. Jo&atilde;o, santo sempre popular e mais
+nessa quadra, por ser o do nome do Mestre, que o
+povo tinha por um Messias, como diziam os partidarios
+de D. Beatriz. A vespera da commemora&ccedil;&atilde;o
+do nascimento do Baptista, morto por ter desdenhado
+da dan&ccedil;a, devia ser celebrada com dan&ccedil;as,
+guinolas,
+touras, momos e por um vistoso torneio, que
+tinha de ser o assombro da terra, pouco affeita a t&atilde;o
+gra&uacute;dos folguedos.
+<br />
+
+<br />
+
+Desde o amanhecer do dia 23 o campo das
+Hortas estava cheio de gente embasbacada para o tablado
+levantado na vespera, que alguns operarios cobriam
+com tape&ccedil;arias, em quanto outros davam a ultima
+dem&atilde;o ao circo, ou estacada, adornando-a com
+bandeiras, panoplias e fest&otilde;es de ramagem.
+<br />
+
+<br />
+
+Aos gritos e cantigas dos trabalhadores, aos commentos
+dos curiosos, &aacute;s risadas pouco e pouco se
+juntavam os preg&otilde;es das vendilhonas de fructa, dos
+taberneiros, fritadeiras e padeiras, que assentavam
+as suas mezas, as suas tendas, ou os carros enramados
+por todos os lados, que o circo deixava devolutos,
+<span class="pagenum">[117]</span>
+e pouco antes do meio-dia era j&aacute; difficil
+mover-se
+no campo, apinhando-se al&eacute;m disso um gentio
+immenso nos adarves e torres da cidade, por aquelle
+lado, e na encosta dos dous montes do Olival
+e Batalha. Se at&eacute; ahi os bons burguezes tinham
+aberto a bocca para as tape&ccedil;arias onde a agulha ou
+a lan&ccedil;adeira tra&ccedil;ara os episodios dos contos de
+cavallerias,
+mostrando o rei Arthur, Amadis, Lisuarte,
+Galaor, a duqueza Iguerna, Mabilia, Oriana, Urganda,
+Brisena e outras muitas personagens, que para maior
+illucida&ccedil;&atilde;o dos seus feitos e ditos tinham a
+sahir pela
+bocca o texto da
+&laquo;illustra&ccedil;&atilde;o&raquo;; se ficavam
+embellesados
+nos grandes pannos de ouro, trazidos da cathedral
+para enfeitar o esperavel do estrado das
+damas, nos estandartes, onde havia divisas de toda
+a sorte, bordadas ou pintadas, mais pasmaram quando
+come&ccedil;aram a apparecer os mantenedores das justas,
+os improvisados arautos, mestres e juizes de campo,
+passavantes, sergentes, menestreis e trovadores,
+que para a festa tinham sido igualmente apenadas as
+musas.
+<br />
+
+<br />
+
+O Porto, behetria havia muito, entregue todo ao
+commercio, quando n&atilde;o se divertia a jogar as cristas
+com os seus bispos e a pugnar pelas suas liberdades,
+o Porto tinha visto passar os cortejos de alguns
+reis e principes; mas de fugida, meios envergonhados,
+como o de D. Fernando, ou em som de guerra, e
+em devota romagem e peregrina&ccedil;&atilde;o: cortejo assim,
+festa egual nunca se d&eacute;ra, pois nunca, como
+ent&atilde;o,
+se reuniram de muros a dentro tantos e taes elementos:
+tinha uma c&ocirc;rte de seu. Os mesteiraes e os
+burguezes nesse dia, t&atilde;o enlevados estavam nas
+lou&ccedil;anias
+que se desenrolavam, que abriam caminho com a
+melhor vontade aos cavalleiros, e alguns mesmo suspiravam
+<span class="pagenum">[118]</span>
+por que fosse levantado o interdicto a quem
+com tanto garbo soffreava um ginete, vestia t&atilde;o airosamente,
+e fazia t&atilde;o acabadas mesuras.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinham as corpora&ccedil;&otilde;es apparecido com as suas
+bandeiras, precedidas pelas figuras que davam para
+abrilhantar o acto, como na prociss&atilde;o de Corpus:
+tinham-se
+reunido, amontoado os trajes mais variados, desde
+as vestes negras, compridas dos juizes, alvazires e
+meirinhos, as jorneas partidas, de panno bristol, de
+seda e velludo, os briaes blasonados, as marlotas dos
+mouros dan&ccedil;arinos, as olandilhas, as opas dos
+foli&otilde;es
+e jograes, os arnezes polidos, espelhando o sol,
+adamascados ou tingidos de vivas cores, os vestidos
+de brocado, de panno de ouro e prata, os arminhos
+e zibelinas das damas e donzellas, a almafega e o
+burel de certos momos; casavam-se os preludios de
+todos os instrumentos; o arrabil e o tiorba, a charamela
+e o clarim, o tambor e o pandeiro, estrugiam,
+chiavam, rangiam; mas tudo aquillo dava vida e
+anima&ccedil;&atilde;o,
+afinava, no meio da sua desafina&ccedil;&atilde;o, permitta-se
+dizer, com o ressalte das c&ocirc;res, que como
+em braz&atilde;o pareciam postas, com os alaridos, as risadas
+e os vivas, quando Fernando penetrou no palanque,
+onde seu tio, como notabilidade da terra,
+conseguira bom logar.
+<br />
+
+<br />
+
+O mancebo, mal entrou, estendeu a cabe&ccedil;a, a
+procurar com a vista n&atilde;o os arautos improvisados,
+que se pavoneavam de ambos os lados da li&ccedil;a, vistosamente
+trajados de branco e azul, com as armas
+da cidade bordadas no peito, nem os mestres de
+campo, montados j&aacute; em bem ajaesados corceis, e correndo
+de um para o outro lado: foi para o estrado
+ou cadafalso das damas. Estava por&eacute;m cerrada a cortina,
+e, que n&atilde;o estivesse, no palanque era tal o
+reboli&ccedil;o,
+<span class="pagenum"><a name="p119" id="p119">[119]</a></span>
+tanta gente estava de p&eacute;, que
+n&atilde;o seria facil
+descobrir l&aacute; alguem, a n&atilde;o estar em logar
+eminente.
+Mestre Gon&ccedil;alo Domingues, parte por natural <a href="#e8">curiosidade</a>,
+parte por desejo de ostentar perante os visinhos,
+como os paes costumam, quando se embellesam
+nas prendas dos filhos, inquiria a significa&ccedil;&atilde;o
+de todas aquellas tape&ccedil;arias, e amofinava-se por ver
+que o sobrinho mal lhe prestava atten&ccedil;&atilde;o,
+respondendo
+de tal sorte, que facil era ver que nem sequer
+olhava para o sitio indicado.
+<br />
+
+<br />
+
+De repente notou-se um marulhar de cabe&ccedil;as, e
+&aacute; algazarra succedeu o silencio. Os alvazires appareceram
+no estrado para elles preparado, e em outro,
+contiguo ao das damas, os juizes do campo&#8213;Ruy
+Pereira e Ayres Gon&ccedil;alves de Figueiredo.
+<br />
+
+<br />
+
+As trombetas soaram; alvazires e juizes tomaram
+assento, e depois de feitas as costumadas ceremonias,
+um dos trovadores ergueu-se, desenrolou
+um pergaminho cheio de illuminuras, e come&ccedil;ou em
+voz alta a recitar o seu poema, que era nada menos
+que um elogio aos guerreiros da espedi&ccedil;&atilde;o
+maritima.
+A poesia nessa epocha era tida em grande conta, e
+as atten&ccedil;&otilde;es, por tanto, da assemblea voltaram-se
+todas
+para o bardo. Uma cabe&ccedil;a, uma s&oacute; se volvia
+attenta
+para outro lado, e esta cabe&ccedil;a era a de Fernando.
+<br />
+
+<br />
+
+A cortina de cadafalso das damas fora corrida
+por dous pagens, e D. Catharina e mais umas
+oito damas da nobresa das visinhan&ccedil;as da cidade
+tinham apparecido rodeadas pelas suas donzellas.
+<br />
+
+<br />
+
+Os trovadores podiam dizer bocados de ouro sobre
+fa&ccedil;anhas militares, que as palavras eccoavam como
+sons vagos aos ouvidos do namorado mo&ccedil;o; os
+versos de amores, esses, como se affinados pelo sentimento
+que o dominava, ligados por uma corrente
+<span class="pagenum">[120]</span>
+magnetica, faziam-no sorrir e c&oacute;rar, sem comtudo desviar
+os olhos do estrado.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois que as palmas de todos os lados, e as
+trombetas soaram, quando o vencedor proclamado, appresentando
+o seu manuscripto a Gon&ccedil;alo Pires, escriv&atilde;o
+da chancellaria, com uma cor&ocirc;a de louros, recebeu
+em soberba bandeja um bonito sacco de argempel,
+rico pelo bordado, e mais ainda pelas boas dobras
+que o pejavam, premio votado pela municipalidade,
+segundo antigas usan&ccedil;as, appareceu no meio
+da li&ccedil;a o mantenedor das justas.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Pedro de Transtamara vinha, sobre garrido,
+aprimorado, formoso.
+<br />
+
+<br />
+
+Bem fraca figura fazem hoje nas nossas festas
+e folguedos, com a esguia casaca preta e a gravata
+branca de rigor, os alindados do seculo XIX &aacute; vista
+da que faziam os nossos av&oacute;s. Para o namorado de
+hoje em dia no baile n&atilde;o ha meio de se distinguir,
+de lisongear o amor da sua dama,
+como ent&atilde;o nos
+torneios, nos jogos de cannas e argolas, nos bafurdios
+e cavalgadas; n&atilde;o apparecem hoje os vistosos
+trajes de seda, ouro e prata, as mangas bordadas,
+de honra, as charpas ou bandas, nas quaes em cores
+preferidas pela donzella querida se via a ten&ccedil;&atilde;o
+ou divisa, que recordava a ambos um protesto,
+uma confidencia, ou descobria um pensamento. O
+amor tinha, sobretudo no cavalheiresco seculo a que
+transportamos o leitor, um culto, que hoje n&atilde;o tem,
+hoje em que arrancaram a aljava a Eros, o facho ao
+Hymeneo, e a ambos deram por distinctivo um saquitel
+de lona, como a imagem globulosa de bemfeitor
+de confraria. (Entre parenthesis, fa&ccedil;o aqui
+excep&ccedil;&atilde;o
+dos meus leitores: os que s&atilde;o casados, o s&atilde;o
+por amor, e os solteiros e as solteiras ainda n&atilde;o deram
+<span class="pagenum"><a name="p121" id="p121">[121]</a></span>
+um sorriso, um olhar a dote algum de boa somma,
+simplesmente pelo dote e nada mais. S&atilde;o a nata
+das creaturas.)
+<br />
+
+<br />
+
+O conde D. Pedro vestia sobre ricas armas de
+Toledo cheias de relevos, esmaltes e <a href="#e9">embutidos</a>,
+um
+brial c&ocirc;r de cereja, onde, em vez do bras&atilde;o
+proprio,
+havia bordadas chammas de ouro, e no escudo, esmaltado
+da mesma c&ocirc;r rubra, e taxeado de ouro,
+lia-se a palavra
+&laquo;<em>Cuydado</em>&raquo; entre
+duas palmas, que
+enramavam um sol feito de espadas. Um malicioso
+notou que o desenho do escudo podia figurar a roda
+de navalhas de Santa Catharina, e que a esposa de
+Ayres Gon&ccedil;alves trajava um corpete de tela, da c&ocirc;r
+favorita do mantenedor do torneio, adornado com
+um peitilho e fraldilhas de arminho; todos poderiam
+notar egualmente que, quando, ao fazer caracolar o
+seu ginete, o conde deu uma volta &aacute; roda do circo,
+antes de tomar das m&atilde;os do escudeiro que o seguia
+o elmo, a lan&ccedil;a e o escudo, entre elle e a nobre
+castell&atilde; se cruz&aacute;ra um olhar expressivo;
+por&eacute;m,
+o governador de Gaya mostrava-lhe um sorriso de
+agrado, e eram t&atilde;o sabidos os recentes amores, que
+o tinham feito abandonar a c&ocirc;rte de seu tio, que a
+maledicencia achava-se um pouco embara&ccedil;ada nos
+v&ocirc;os.
+<br />
+
+<br />
+
+O mantenedor do campo foi saudado com tanto
+enthusiasmo ou mais que o trovador, e da mesma
+sorte foram acolhidos, em seguida, os contendedores,
+que se appresentaram: Vasco Martins de Mello,
+Gil Esteves, Affonso Darga, Henrique Fafes, um dos
+irm&atilde;os Alvalade, micer Manoel Pessanha, Affonso Henriques
+de Transtamara, e outros mancebos, todos t&atilde;o
+adornados e vistosos, que &aacute; multid&atilde;o iam-se-lhe
+os
+olhos nelles, n&atilde;o sabendo a qual dar primazia. Depois
+<span class="pagenum">[122]</span>
+das ceremonias do costume e de um bafurdio,
+jogo em que cada um mostrava a destreza no arremesso
+das lan&ccedil;as, divers&atilde;o tomada dos arabes,
+come&ccedil;ou
+o combate. Vasco Martins, Henrique Fafes e
+Alvalade perderam a sella, n&atilde;o supportando o embate
+das lan&ccedil;as; micer Manoel, como mais affeito ao mar
+que &aacute; terra, ao dar a volta em um dos extremos da
+li&ccedil;a, para arremetter contra o seu antagonista, o fez
+de sorte, que, ro&ccedil;ando pela barreira com o cavallo, o
+arremessou este para o outro lado, deixando-o menos
+maltractado que a uns dous burguezes, que lhe amacearam
+a queda com o corpo.
+<br />
+
+<br />
+
+As damas debru&ccedil;avam-se curiosas na balaustrada
+do cadafalso, e mais curiosas do que as damas as
+donzellas de honra e as burguesas, para quem tudo
+aquillo era inteiramente novo e de fortes impress&otilde;es,
+como hoje se diria. D. Catharina de Figueiredo, entre
+as do seu sexo, era a excep&ccedil;&atilde;o, como Fernando
+entre
+os homens. Alguma cousa lhe prendia a atten&ccedil;&atilde;o,
+e essa cousa ficava perto da bancada onde estava
+o mancebo. Seguindo a direc&ccedil;&atilde;o dos olhares
+frequentes da bella dama, encontrar-se-hiam as vistas
+do sobrinho do for&ccedil;ureiro, e ao primeiro relance
+dir-se-hia que se provocavam e comprehendiam.
+D. Catharina notara Fernando; notara nos olhos
+os reflexos do incendio ateado no cora&ccedil;&atilde;o, e
+illudira-se,
+como se poderia illudir muita gente. Extranhar
+a audacia a principio, podia-a extranhar; por&eacute;m,
+mulher, havia de achar-lhe indulgencia, por virtuosa
+que fosse. N&atilde;o o era. De sangue ardente, fogosa
+por temperamento pertencera, demais, &aacute; corte de
+Leonor Telles; era uma das damas com que a astuta
+rainha jogara, para formar partido, cativar a benevolencia
+dos cavalleiros a principio um pouco do parecer
+<span class="pagenum">[123]</span>
+do povo que apedrejara os pa&ccedil;os de apar S. Martinho,
+e n&atilde;o desdissera depois da esc&oacute;la em que se
+criara. Nos seus galanteios n&atilde;o encontrara nunca um
+olhar de adora&ccedil;&atilde;o como o que interceptava;
+Fernando
+Vasques fizera-lhe mesmo uma impress&atilde;o mais
+que extraordinaria: fizera-lhe n&atilde;o s&oacute;, alli,
+esquecer
+o conde; mas, depois, ainda mais, a distancia em que
+estava ella, dama de alta linhagem, de um simples
+burguez, um pe&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+A illustre dama n&atilde;o contava com Irene, que se
+occultava, c&oacute;rando, atraz da poltrona em que se sentava:
+o filho do mestre de Santiago n&atilde;o contava tambem
+com o sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues; mas
+via claramente que as c&ocirc;res e divisas que tomara
+podiam ser taxadas de vaidade, presump&ccedil;&atilde;o e nada
+mais.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando um novo contendor entrou na li&ccedil;a, estava
+t&atilde;o preoccupado o nobre mantenedor, a procurar
+quem lhe podia roubar completamente as atten&ccedil;&otilde;es,
+que n&atilde;o reparou que era esse o mais destro de
+todos, affeito aos jogos dos arabes de Granada, a
+medir-se com os cavalleiros da Africa ao servi&ccedil;o dos
+Alhamarides; que era seu proprio irm&atilde;o, Affonso Henriques.
+O mo&ccedil;o castelhano, passando junto do conde
+guiou t&atilde;o destramente o cavallo, que lhe ro&ccedil;ou
+pelas
+joelheiras, e dando um geito &aacute; lan&ccedil;a, na
+carreira,
+desviou completamente a do seu antagonista
+e tocou com a sua no escudo de tal sorte, que o
+bra&ccedil;o que o segurava, estendeu-se; a m&atilde;o abriu-se
+e aquella arma defensiva foi ao ch&atilde;o. D. Pedro, ao
+ouvir os applausos levantados a seu irm&atilde;o, e com a
+cabe&ccedil;a perdida pela distrac&ccedil;&atilde;o da sua
+dama, ergueu-se
+furioso nos estribos e arremetteu contra elle.
+A sua lan&ccedil;a desfez-se desta vez em hastilhas no
+<span class="pagenum">[124]</span>
+arnez do mancebo; por&eacute;m este n&atilde;o saltou da sella,
+e em poucos instantes estava outra vez em frente
+do conde. A lucta tornou-se ent&atilde;o um verdadeiro
+duello, e as regras do cartel apresentado no principio,
+consentindo tudo que fosse destresa, e mandando
+parar ao primeiro ferimento ou queda, pois
+que n&atilde;o era justo que grande m&aacute;goa enlutasse
+t&atilde;o
+grande festejo, foram despresadas. O conde tinha sido
+desappontado nos seus galanteios como homem, e nos
+seus brios como cavalleiro. &Aacute;s lan&ccedil;as succedeu a
+espada; e as espadas como a lan&ccedil;a quebraram, amolgando
+os elmos, disjuntando e torcendo pe&ccedil;as dos
+bra&ccedil;aes. Tomaram um a ma&ccedil;a, outro o machado, e
+furiosos correram um para outro.
+<br />
+
+<br />
+
+O tio de Nuno Alvares Pereira e Ayres Gon&ccedil;alves
+de Figueiredo, estavam tomados de assombro para
+intervirem na lacta; os mestres de campo, que a
+principio haviam tentado manter com os arautos as
+condi&ccedil;&otilde;es do cartel, tinham-se,
+embara&ccedil;ados, por novi&ccedil;os,
+retirado para junto das bancadas, e olhavam
+uns para os outros e para os juizes, procurando
+conselho, que n&atilde;o viam nos olhos de ninguem. Os
+espectadores, homens e mulheres, esses applaudiam
+os epysodios da lucta.
+<br />
+
+<br />
+
+A massa ressoou na armadura de Affonso Henriques,
+e a um rugido, um regougo seguiu-se um
+fio de sangue a correr por entre as fendas do gorjal
+sobre o arnez. Os contendores tinham-se esquecido
+de que eram irm&atilde;os. D. Pedro, sobretudo,
+estava cego. O brial do conde fez-se em farrapos,
+enrodilhado pela machadinha; o ginete em que montava
+D. Affonso, ferido na cabe&ccedil;a, apesar de acobertado
+de ferro, cahiu na arena levando o cavalleiro.
+<span class="pagenum">[125]</span>
+Os gritos da multid&atilde;o, como nos circos romanos,
+eccoaram pelos montes visinhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A p&eacute;, a p&eacute;! gritaram alguns cavalleiros
+enthusiasmados,
+exigindo a egualdade de combate.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o foi preciso repetir a exigencia: ou melhor
+f&ocirc;ra ella escusada: o conde de Transtamara
+lan&ccedil;ara-se
+abaixo do cavallo, e corria direito para o irm&atilde;o, que,
+j&aacute; erguido, com o machado no ar o esperava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Cavalleiros, cavalleiros! exclamou Ruy Pereira
+ao mesmo tempo que Ayres Gon&ccedil;alves, querendo
+sustar o combate.
+<br />
+
+<br />
+
+Os passavantes e o mestre de campo correram para
+a arena, por&eacute;m quando chegaram junto dos irm&atilde;os,
+um delles, D. Pedro, solt&aacute;va um grito doloroso,
+e cahia com todo o peso do corpo, fazendo
+ranger e estallar todas as pe&ccedil;as da armadura.
+<br />
+
+<br />
+
+O guante de ferro que lhe guarnecia a m&atilde;o direita
+estava despeda&ccedil;ado, e despeda&ccedil;ado o pulso. O
+sangue tingiu a areia da li&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! se ouviu do lado das damas e depois
+uma borborinha correu pela assemblea; pois a queda
+do sobrinho do rei de Castella, tomada como o baquear
+extremo, produzira no povo uma impress&atilde;o desagradavel.
+<br />
+
+<br />
+
+Aquelle rumor e assombro fizeram cahir em si
+Affonso Henriques.
+<br />
+
+<br />
+
+Os momos que se seguiram ao torneio foram sem
+interesse para os espectadores entretidos a commentar
+o combate extraordinario dos dous nobres castelhanos.
+Se recrearam alguem foi a Fernando Vasques
+e a Irene, e pela dura&ccedil;&atilde;o; n&atilde;o por
+outra cousa.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Catharina n&atilde;o havia tambem despregado os
+olhos do mancebo. Ao cavalleiro que a invoc&aacute;ra no
+torneio, se concedera um olhar, f&ocirc;ra de curiosidade.
+<span class="pagenum">[126]</span>
+Quando este torn&aacute;ra a si do desmaio em que a d&ocirc;r
+e o sangue perdido o haviam feito cahir, passando
+junto delle, ao entrar para as andas em que viera
+de Gaya, teve algumas palavras; mas ainda, se n&atilde;o
+dirigidas, allusivas ao sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues,
+que trat&aacute;ra de seguir Irene, apesar das
+exclama&ccedil;&otilde;es
+do velho for&ccedil;ureiro, pouco amigo de se metter em
+apertos, lembrado do desembarque de Ruy Pereira.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bello pagem se fizera daquelle mancebo... se
+f&ocirc;ra de linhagem! N&atilde;o &eacute; certo, micer
+Guilherme? disse
+ella.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bello pagem! disse o irlandez, que de certo
+devia ter achado a festa menos divertida que o recontro
+de Le&ccedil;a, e sem mesmo olhar para o joven que
+D. Catharina designava com a vista.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando, perto da linda filha de Jo&atilde;o Ramalho,
+mais formosa agora e esbelta com as galas que lhe
+consentira a castell&atilde;, embellecido o rosto pelo amor;
+Fernando n&atilde;o ous&aacute;ra erguer os olhos, e
+sustent&aacute;ra
+assim a illus&atilde;o para a antiga donzella de Leonor Telles,
+que repetio:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bello pagem!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>IX.</h3>
+
+<h3>
+Garifa.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+Cade in tanto dolor, che si dispone<br />
+
+Allora allora di voler morire......
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature"><em>Ariosto</em>&#8213;Orland.
+fur. cant. V.</div>
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">Maravilhou a todos o spectaculo<br />
+
+Inesperado...<br />
+
+Que ser&aacute;? disse emfim um rumor surdo<br />
+
+De vozes dos que tremulos pararam...
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature"><em>Garrett</em>&#8213;D.
+Branca&#8213;cant. I.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para longe o agouro! Ora esta! dizia, horas
+depois do torneio, em Gaya, junto da fonte do rei
+Ramiro, a mulher de um galeote.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois que &eacute;, tia Dordia? interrogava outra.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que ha de ser? Vindo &aacute;s vozes do lado do
+monte, ouvi fallar em affogado, e bem sabe que o
+meu Manoel anda por esses mares!
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[128]</span>
+&#8213;Para longe o agouro, repetiu a outra mulher.
+Isto de agouros nem sempre s&atilde;o certos. F&eacute; em
+Deus,
+que elle far&aacute; as cousas pelo melhor.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;F&eacute; em Deus tenho eu; mas bem mau &eacute; que em
+noite de S. Jo&atilde;o se ou&ccedil;am cousas destas! A velha
+Mafalda, o anno passado, ouviu, ao passar ao arco de
+S. Domingos, fallar em um justi&ccedil;ado, e bem sabe o
+que aconteceu ao filho.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S&atilde;o signaes que cada um traz ao nascer.
+Mas ainda n&atilde;o &eacute; meia-noite, proseguiu a mulher,
+querendo
+consolar a senhora Dordia da cren&ccedil;a ainda hoje
+existente junto da foz do Douro, de que, quando, vespera
+de S. Jo&atilde;o, ao cahir da meia-noite, se procura
+um prognostico, ou noticias da sorte de pessoa ausente,
+as d&atilde;o as primeiras palavras de qualquer conversa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deus a ou&ccedil;a, visinha... Deus a ou&ccedil;a; mas
+parece-me
+que j&aacute; ser&aacute;: o sete-estrello vai alto!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute;, n&atilde;o.
+&Oacute;l&aacute;, Jo&atilde;o Canhoto, meia-noite
+ser&aacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute;, tia Luiza. Quer ir saltar as fogueiras?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu n&atilde;o: for&ccedil;as para tal Deus as
+d&eacute;ra. O meu
+tempo j&aacute; passou. Quando rapariga!...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o deitou ovo em escudella?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para que?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A v&ecirc;r se lhe sahe arco de egreja, respondeu
+o homem, que dava pelo nome de Jo&atilde;o Canhoto,
+rindo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mim agora s&oacute; se me sahir tumba. Isso &eacute;
+bom para cachopas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vamos, vamos, tia Luiza; ainda est&aacute; f&eacute;ra,
+rija como um virote, e um noivo agora era mel pelos
+bei&ccedil;os.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[129]</span>
+&#8213;Seu bargante! exclamou a velha, mostrando
+no rosto que a mofa do galeote n&atilde;o era inteiramente
+recebida como tal.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, ainda n&atilde;o &eacute;
+meia-noite? tornou a perguntar
+a senhora Dordia, bastante impressionada pelo
+agouro tomado, para delle tirar o sentido, n&atilde;o obstante
+os gracejos dirigidos pelo galeote &aacute; sua amiga.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Qual meia-noite! Ao cantar do gallo toda
+a chusma, que anda por ahi, ha de vir em descante.
+&Eacute; uma festa de estrondo c&aacute; da gente.
+Ver&aacute; se l&aacute; os
+da cidade nos levam as lampas! S&oacute; violas &eacute; uma
+meia
+duzia, e os rapazes que as tangem s&atilde;o mestres acabados.
+&Eacute; de se abrir a bocca. E o Safio? Se ha por
+ahi quem saiba deitar uma cantiga como elle, que
+eu beba agua toda a minha vida! O Safio vem no
+rancho.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, temos grande descante? interrogou uma
+outra mulher.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; esperar para ver.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O sitio n&atilde;o &eacute; l&aacute; dos melhores.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Dizem que por aqui...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O que?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que em noite de S. Jo&atilde;o apparece na fonte
+uma moura encantada... Ora uma moura de n&atilde;o sei
+que rei...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;B&ocirc;a, b&ocirc;a! exclamou o galeote. As mouras
+n&atilde;o se vem metter assim com um homem do mar,
+por mais tresloucadas que andem. Se ella quizesse
+bailar na festa...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Credo! N&atilde;o diga isso, que o p&oacute;de ella ouvir!
+exclamaram duas ou tres mulheres ao mesmo
+tempo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ai, senhor Jo&atilde;o, bem se v&ecirc; que
+n&atilde;o &eacute; da
+terra, e n&atilde;o sabe que &eacute; certo o apparecer
+&aacute;s vezes ahi
+<span class="pagenum">[130]</span>
+a maldicta. Minha av&oacute;, que Deus haja, quando era
+rapariga, viu-a, disse a tia Luiza.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E vi-a eu, vai em tres annos, com estes que
+a terra ha de comer, accudiu a tia Dordia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E eu, disse outra.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E eu, exclamaram em seguida mais cinco ou
+seis.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, como &eacute; a moura?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora como ha de ser a moura? &Eacute; uma figura
+branca, toda branca, muito branca, com os cabelos,
+nem fios de ouro, soltos pelas costas; e apparece
+a bailar na agua de um para o outro lado...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Hoje quebra-se-lhe o encanto, atalhou o galeote,
+que era para o seu tempo um grande incredulo ouvindo
+um desfinar de instrumentos do lado da povoa&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Alli vem a festa! Lenha para ahi! exclamou
+em seguida, dirigindo-se a um rancho de crean&ccedil;as de
+ambos os sexos, que saltavam por cima do brazido
+deixado pela fogueira.
+<br />
+
+<br />
+
+A festa annunciada n&atilde;o tardou com effeito a apparecer.
+Uma grande por&ccedil;&atilde;o de galeotes, petintaes
+e espadeleiros de Gaya e Villa Nova arranhavam em
+violas, tocavam tamboril, ou cantavam, fazendo coro, a
+can&ccedil;&atilde;o entoada por um rapaz alto e de ar jovial,
+que era nem mais nem menos o Safio apregoado por
+Jo&atilde;o Canhoto. Para se dizer toda a verdade, deve-se
+accrescentar que a desafina&ccedil;&atilde;o dos instrumentos
+n&atilde;o destoava das vozes, um pouco roucas, como as de
+todos os embarcadi&ccedil;os, e demais ressentindo-se de
+brodio feito em tasca.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma voz cantava:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+Em noite de S. Jo&atilde;o<br />
+
+At&eacute; no mar trai&ccedil;oeiro<br />
+
+<span class="pagenum">[131]</span>
+Accendem anjos ou fadas<br />
+
+Em cada vaga um luzeiro.
+<br />
+
+<br />
+
+E, velas de seda ao vento,<br />
+
+Passa a gal&eacute; encantada;<br />
+
+Remos de ouro batem n'agua<br />
+
+Ao som de branda toada.
+<br />
+
+<br />
+
+No ceo bailam as estrellas<br />
+
+Bailam as mouras nas fontes...<br />
+
+...........................................
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! exclamou uma mulher, pallida, com os
+olhos espantados, lan&ccedil;ando-se a tremer no meio da
+festa.
+<br />
+
+<br />
+
+As violas calaram-se, o cantor, que desta vez
+dizia versos, que n&atilde;o eram de sua lavra; os coros,
+que repetiam no fim de cada estrophe um estribilho
+maritimo, calaram-se tambem; os rostos tornaram-se
+de finados, como se tornara o da mulher. Esta,
+com o bra&ccedil;o estendido, designava a fonte de D. Ramiro.
+<br />
+
+<br />
+
+Se v&oacute;s, leitora, que talvez por mais de uma
+vez apregoastes que n&atilde;o credes em muita cousa natural,
+quanto mais nas que o n&atilde;o s&atilde;o, visseis o
+que Safio e os festeiros de Gaya estavam vendo, a
+c&ocirc;r do rosto vos fugira, como a elles lhes fugiu, e
+talvez, como a vossa organisa&ccedil;&atilde;o n&atilde;o
+&eacute; a de qualquer
+petintal, um desmaio vos tirasse de sustos.
+<br />
+
+<br />
+
+A lua no extremo da sua carreira, redonda, mergulhava
+no mar, marcando nas aguas uma esteira
+tremula, de um brilho duvidoso. O disco, meio embaciado
+pelos vapores do occeano, podia servir para
+uma imagem funebre: dir-se-hia que era o espectro
+<span class="pagenum"><a name="p132" id="p132">[132]</a></span>
+do sol. Na outra margem, para o lado da cidade, por
+entre fogos vermelhos, appareciam e desappareciam
+figuras negras, como possuidas de uma vertigem, de
+frenesi, e a aragem trazia nas azas humidas pelo
+orvalho, um concerto de rizadas em todas as notas
+possiveis da escala, e uma discordancia de instrumentos,
+como em ronda de feiticeiras. O rosto tornava-o
+negro uma immensa fogueira feita na praia. Os reflexos
+da luz davam ao rosto dos marinheiros de Gaya,
+tomados de assombro, um todo phantastico, assustador.
+Toda esta scena momentos antes era alegre.
+Uma s&oacute; cousa bast&aacute;ra para a transtornar. Entre o
+fundo escuro em que se mergulhava a margem opposta,
+em consequencia da fogueira que fizera avivar Jo&atilde;o
+Canhoto, e o lan&ccedil;o do rio tocado pelos derradeiros
+raios da lua, junto da fonte, &aacute; beira da agua, via-se
+uma figura branca, indefinida em tudo que n&atilde;o era o
+contorno, movel, conforme as oscilla&ccedil;&otilde;es e
+intensidade
+dos fogos, accesos que parecia, mais do que a pousar
+na terra, suspensa do ar, baloi&ccedil;ada por fio invisivel.
+<br />
+
+<br />
+
+Aquella appari&ccedil;&atilde;o, como transtorn&aacute;ra o
+aspecto da
+scena, como d&eacute;ra aos cantos e aos risos um tom sobrenatural,
+torn&aacute;ra immoveis quasi os collegas de Safio.
+Se n&atilde;o fosse o movimento que faziam para se
+aconchegar uns aos outros, dir-se-hia que ella os havia
+petrificado. O suor innundara-lhes a fronte, e o frio
+corria-lhes pela espinha dorsal.
+<br />
+
+<br />
+
+A campa do convento de Corpus-Christi dobrou
+compassada marcando a meia-noite, e ao mesmo tempo
+quasi uma nota plangente vibrou no ar. Marinheiros,
+que tinham affrontado a tempestade com <a href="#e10">o&nbsp;cora&ccedil;&atilde;o</a>
+sereno, que nas gal&eacute;s reaes ouviram <a href="#e11">sibilar
+os pelouros</a>, sentiram perto do craneo o embate do machado
+<span class="pagenum">[133]</span>
+no machado tremeram como as folhas dos alamos.
+Das mulheres nem fallamos. Todas as ora&ccedil;&otilde;es,
+todas as f&oacute;rmas de esconjuros se lhes embaralhavam
+na memoria, e os l&aacute;bios negavam-se a pronuncial-as.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Meia-noite, tartamudeou Jo&atilde;o Canhoto, momentos
+antes emprazador de phantasmas, e fazendo
+ao soar a ultima badalada o signal da cruz &aacute;s avessas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Valham-me os santos e santas do c&eacute;u!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! bento nome de Jesus!
+<br />
+
+<br />
+
+O silencio que estas exclama&ccedil;&otilde;es interrompiam
+era tal que se ouvia o respirar n&atilde;o muito
+desembara&ccedil;ado
+daquella boa gente, e o terror tambem
+era tamanho, que as passadas e mesmo a appari&ccedil;&atilde;o
+de um homem junto do rancho dos festeiros n&atilde;o foi
+por elles notada. Daquelle pasmo pasmou o recem-chegado,
+mas n&atilde;o por muito tempo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ui, Canhoto, exclamou elle; que mau olhado
+vos deu, e em toda essa gente, que tendes cara de
+quem viu o tr&ecirc;po em encruzilhada?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! bento nome de Jesus! repetiram as
+mulheres, deitando a correr para o lado da
+povoa&ccedil;&atilde;o,
+como se a presen&ccedil;a daquelle homem quebr&aacute;ra
+o encanto de terror em que estavam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ui! tornou elle, que demonio se lhes metteu
+no corpo?! Nem bando de cotovias que farejaram
+besta armada. Eh! Canhoto, que feio esgar que
+est&aacute;s a fazer! Est&aacute;s mudo, homem? Aquelles
+pergaminhos
+velhos de saias que fugiram a grasnar eram
+bruxas? Em noite de S. Jo&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo, pois era o nosso conhecido o recem-chegado
+calou-se, e recuou espantado, fitando
+um gesto dos galeotes de Gaya a appari&ccedil;&atilde;o
+phantastica
+que os atemoris&aacute;ra, e quasi ao mesmo tempo
+<span class="pagenum">[134]</span>
+dous gritos se confundiram com o baque de um
+corpo no rio. O phantasma branco, a moura encantada
+durante a enfiada de perguntas de Jo&atilde;o Bispo,
+approximara-se da margem do Douro, erguera os
+bra&ccedil;os ao c&eacute;o, como em supplica, e precipitara-se
+na
+corrente. Durante este movimento o b&eacute;steiro reconhecera
+naquelle vulto um ente querido, e ao grito,
+soltado como em adeus extremo ao mundo, juntara-se
+outro de angustia tambem. O pasmo produzido
+pelo reconhecimento feito em taes circumstancias n&atilde;o
+foi longo, por&eacute;m; ao baque na agua do corpo da
+moura seguiu-se outro, o do b&eacute;steiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jo&atilde;o! Jo&atilde;o! exclamaram alguns galeotes
+perplexos;
+sem saber como traduzir na sua intelligencia
+o passo do condiscipulo de Fernando.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o n&atilde;o ouviu sequer aquelles gritos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A moura saltou ao rio! disse um espadeleiro,
+que se attrevera a procurar com a vista a causa do
+terror geral.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Foi para casa de <em>Brazabu</em>!
+redarguiram dous
+ou tres, tomando de um folego o ar necessario para
+cem homens, e limpando com as costas da m&atilde;o
+o suor frio que lhe banhava o rosto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jo&atilde;o! Jo&atilde;o! tornaram os que mais perto estavam
+da praia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Arrastou-o a maldita. N&atilde;o viram os olhos que
+ella deitava. Eram dous luzeiros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Guay delle! Aquillo n&atilde;o era moura; era o
+tinhoso, resmungou o espadeleiro, fazendo o signal
+da cruz, o vigessimo talvez nessa noite.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A modo que sim, tio Vasco. Cheira aqui a
+n&atilde;o sei que.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhem! olhem! disse com voz abafada outro
+marinheiro, que se attrevera a approximar-se da margem,
+<span class="pagenum">[135]</span>
+e de novo recu&aacute;ra atterrado. Olhem! olhem!
+N&atilde;o veem na agua aquelle marulhar? A moura filou
+o b&eacute;steiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A Virgem santa seja com elle! murmuraram
+tres ou quatro a um tempo, dando o nosso homem
+como perdido de corpo e alma.
+<br />
+
+<br />
+
+No rio, mesmo na esteira que prateava a lua,
+com effeito apparecia e desapparecia, para de novo
+surgir &aacute; flor d'agua, um vulto, a bracejar. De uma
+das vezes n&atilde;o veio s&oacute;. O vestido da moura
+alvejou,
+tocado por um raio de luz, e a cren&ccedil;a, dos marinheiros,
+de que Jo&atilde;o Bispo era arrastado por um espirito
+ou pelo demonio, mais se confirmou, levando-os
+a novos esconjuros. O b&eacute;steiro sobra&ccedil;ando o
+corpo e segurando com os dentes as vestes da infeliz,
+embara&ccedil;ado nos movimentos, luctava com a corrente
+afim de alcan&ccedil;ar a margem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mim! a mim! gritou elle de uma das vezes
+em que veio ao lume d'agua; por&eacute;m os marinheiros
+olhando espantados uns para os outros n&atilde;o
+se moveram em seu auxilio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Pedro seja com sua alma, murmurou o velho
+Vasco, recuando ao passo que o b&eacute;steiro se approximava
+da margem, um pouco escarpada naquelle
+sitio e ent&atilde;o mais do que hoje. Que se apegue com
+a Virgem, n&atilde;o com a gente, que nada p&oacute;de com
+encantos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh de terra! soccorro, por Deus, que se me
+fina esta desgra&ccedil;ada! tornou Jo&atilde;o Bispo com uma
+inflex&atilde;o
+de voz, que denotava o desespero que ia naquelle
+cora&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Safio e Canhoto, por um impulso sobre o qual
+nem tempo tiveram de reflexionar, correram &aacute;
+praia. Safio approximou-se da rocha junto da qual
+<span class="pagenum">[136]</span>
+o b&eacute;steiro se debatia, segurando sempre a mulher
+de branco.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Uma m&atilde;o a esta pobre, que j&aacute; mal respira.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; uma rapariga! exclamaram os dous marinheiros,
+estendendo os bra&ccedil;os a segurar aquella que,
+momentos antes, tomavam todos por um ente sobrenatural.
+<br />
+
+<br />
+
+Os petintaes, galeotes e mais festeiros pouco a
+pouco se tinham approximado, ouvida esta
+exclama&ccedil;&atilde;o,
+e vendo que se n&atilde;o tratava de mais do que
+de arrancar &aacute; morte uma creatura, o exemplo de Safio
+e Canhoto foi seguido, e, instantes depois, Jo&atilde;o Bispo
+a depositava em terra a sua preciosa carga.
+<br />
+
+<br />
+
+De novo reinou o silencio. Os marinheiros atordoados
+com as sensa&ccedil;&otilde;es diversas experimentadas em
+t&atilde;o curto espa&ccedil;o de tempo, formaram roda ao corpo
+da mulher, que inane, desmaiada haviam conduzido
+para junto de uma fogueira, e deitado sobre um
+monte de trevo, alfombra improvisada das mo&ccedil;as da
+terra, dispersas pouco havia. Jo&atilde;o Bispo com o olhar
+fixo, espantado, as m&atilde;os pendentes, os l&aacute;bios
+entreabertos
+contemplava o rosto da moura, pois moura era
+a desfallecida. Parecia ter-se-lhe apagado completamente
+da memoria o que acabava de se passar: o
+corpo alli prostrado era uma surpresa. De repente
+deu um grito; lan&ccedil;ou-se de joelhos junto da moura,
+tomou-lhe a cabe&ccedil;a no rega&ccedil;o, e palpou-lhe as
+faces
+e o seio, a v&ecirc;r se encontrava o calor da vida, e,
+curvando-se, entre carinhos, como se com elles a
+quizesse acordar daquelle lethargo, exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa! Garifa!
+<br />
+
+<br />
+
+Garifa n&atilde;o respondeu. Os l&aacute;bios contrahidos,
+lividos, perdido o fogo que animava aquelle rosto moreno,
+quando, pelas grandes festas, nas dan&ccedil;as e
+<span class="pagenum">[137]</span>
+folias, com que as da sua ra&ccedil;a contribuiam, fazia
+girar sobre a cabe&ccedil;a o adufe, ou agitava os cascaveis
+que lhe adornavam o curto saio; os olhos cerrados;
+as longas cilias cheias de gotas d'agua, como se a
+morte a surprehendesse entre prantos, nem um suspiro
+desprendia; nem um movimento, por leve que
+fosse, se lhe notava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morta! tornou a meia-voz, atterrado, o b&eacute;steiro,
+tirando do cinto o punhal, e chegando-lhe a
+folha aos l&aacute;bios depois de a ter limpado.
+<br />
+
+<br />
+
+Um raio de luz, um raio de alegria passou pelos
+olhos do magoado amante, quando o fraco alento da
+mo&ccedil;a formou uma mancha na folha luzidia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa! Garifa! tornou elle a exclamar.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; viral-a de cabe&ccedil;a para baixo! resmungou
+o velho Vasco; &eacute; a m&eacute;sinha dos afogados.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa... minha pobre Garifa! murmurava o b&eacute;steiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Safio, chega-lhe vinho; um trago n&atilde;o lhe far&aacute;
+mal, gritou Jo&atilde;o Canhoto; e em seguida, tomando o
+pichel que o seu companheiro trazia &aacute; cinta, derramou
+algumas gotas sobre os l&aacute;bios da desfallecida
+mo&ccedil;a, ao passo que este resmungava, vendo correr
+o lic&ocirc;r a que n&atilde;o parecia
+desaffei&ccedil;oado:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Boa cera com ruins defuntos!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo lan&ccedil;ou-lhe um olhar terrivel,
+e fez
+um movimento, como se tentasse desafogar em c&oacute;lera
+contra o imprudente marinheiro todo o peso do
+cora&ccedil;&atilde;o, e estallar, quando Garifa moveu os
+l&aacute;bios
+fazendo um gesto de repugnancia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Basta, Canhoto, basta! acudiu Safio, que n&atilde;o
+reparara no b&eacute;steiro; vais fazer perder a alma &aacute;
+rapariga.
+No c&eacute;u dos mouros... que &eacute; o inferno,
+accrescentou por entre dentes... n&atilde;o entra quem prova
+do sumo da uva, ouvi dizer.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[138]</span>
+O b&eacute;steiro arred&aacute;ra
+Canhoto, e, com um bra&ccedil;o
+debru&ccedil;ando-se sobre o corpo da sua namorada, tomava-lhe
+as m&atilde;os entre as suas, quando ella abriu
+os olhos, murmurou algumas palavras inintelligiveis,
+e tornou a fech&aacute;l-os, soltando um suspiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa! Garifa! tornou a exclamar o amigo
+de Fernando.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem me chama? perguntou a moura, como se
+acord&aacute;ra de um somno, com voz fraca, descerrando de
+novo as palpebras, e fazendo um esfor&ccedil;o para se erguer.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu, eu, Garifa! acudiu Jo&atilde;o Bispo cheio da alegria.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque me n&atilde;o deixaram morrer? murmurou a
+filha de Humeia cobrindo o rosto com as
+m&atilde;os.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morrer, Garifa?! E que querias depois que
+eu fizesse no mundo! exclamou o mancebo affastando-lhe
+com brandura as m&atilde;os do rosto. Que faria
+eu? proseguio... Morrer... morrer tambem!
+<br />
+
+<br />
+
+A moura meneou a cabe&ccedil;a; fixou a vista, como
+admirada no besteiro; estremeceu toda, e dos olhos
+rebentou-lhe o pranto ao mesmo tempo que os solu&ccedil;os
+do peito. Jo&atilde;o Bispo, que, em alguns minutos
+apenas experimentara os mais contrariados affectos,
+a extrema d&ocirc;r e a alegria, redobrou os seus carinhos,
+as palavras affectuosas; mas as lagrimas continuavam
+a correr em fio dos olhos de Garifa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa, minha Garifa, porque choras? Deixa
+esse pranto com que me amofinas. Eu estou aqui,
+Garifa, e ninguem nos ha de agora separar. Tu cumpres
+a tua promessa... e teu pae, que n&atilde;o espera j&aacute;
+v&ecirc;r-te...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh, meu pae, exclamou a mo&ccedil;a interrompendo-o,
+e de novo cobrindo as faces; com que rosto
+lhe poderei eu apparecer?!...
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum"><a name="p139" id="p139">[139]</a></span>
+&#8213;Elle perdoar&aacute; tudo, Garifa; esquecer&aacute; tudo...
+e que n&atilde;o perd&ocirc;e, eu...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nem elle, nem tu; Jo&atilde;o... Oh! porque me n&atilde;o
+deixaram morrer!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu? Garifa? Eu n&atilde;o te entendo... <a href="#e12">Que
+mal</a>
+me fizestes? porque te hei de malquerer?...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo estacou, e de um salto ficou de p&eacute;.
+O que se passara causara-lhe um violento abalo, para
+dar logar a reflex&otilde;es, e esquecera-se de que a mulher,
+que assim tentava p&ocirc;r termo &aacute; vida, tinha, duas
+semanas havia, desapparecido; esquecera-se do que
+lhe dissera o petintal e das suspeitas que o levaram ao castello de
+Gaya. Tudo, por&eacute;m, resumido em uma idea
+unica acab&aacute;ra de lhe passar pela mente.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Rausada?! exclamou, abaixando-se a arredar-lhe
+de novo as m&atilde;os das faces, procurando v&ecirc;r
+se dos olhos mais depressa do que dos l&aacute;bios obtinha
+uma resposta.
+<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a s&oacute; redarguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque me trouxeram &aacute; vida... porque?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Rausada! tornou Jo&atilde;o, passando uma das
+m&atilde;os pela fronte, em quanto com a outra apertava
+o cabo do punhal. O nome desse homem, e pela hostia
+consagrada juro que dentro em dias o repetir&atilde;o
+em resa de finados. Falla, Garifa: o nome desse homem?
+Vil&atilde;o ou cavalleiro que seja, eu me pagarei em
+sangue de quanto elle me roubou. Garifa, Garifa!
+<br />
+
+<br />
+
+Solu&ccedil;os e lagrimas foi a resposta que obteve da
+filha de Humeia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa, n&atilde;o respondes? Dize... dize que n&atilde;o
+te pozeram m&atilde;o, dize, proseguiu o mancebo f&oacute;ra de
+si; livra-me desta idea que me faz perder a cabe&ccedil;a;
+livra-me della ou aponta-me um homem em quem
+desafogue todo o desespero que sinto. Tu n&atilde;o me
+<span class="pagenum">[140]</span>
+atrai&ccedil;oaste, n&atilde;o; n&atilde;o era possivel...
+Empregaram a
+for&ccedil;a; empregarei a for&ccedil;a, e hei-de esmagar quem
+quer que seja o rausador. Garifa, n&atilde;o respondes?
+Uma palavra!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que queres que te diga, Jo&atilde;o? Esmagaram
+o nosso amor, tornando-me indigna de ti: a filha de
+Humeia n&atilde;o p&oacute;de mais apparecer com a face
+descoberta!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E o refece, o maldito?! gritou o b&eacute;steiro
+apertando com violencia os pulsos da moura.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A aguia v&ocirc;a t&atilde;o alto que n&atilde;o a
+alcan&ccedil;a a garrocha,
+murmurou meneando a cabe&ccedil;a, depois de alguns
+instantes de silencio, a namorada de Jo&atilde;o Bispo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem foi, Garifa, quem foi?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deixa-me, Jo&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O nome desse homem!... o nome desse homem!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o, n&atilde;o posso.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o p&oacute;des?...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o, n&atilde;o posso: dizer-te o nome era fazer-te
+a&ccedil;outar &aacute;manh&atilde; no pelourinho... era
+matar-te...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ayres Gon&ccedil;alves... Henrique Fafes!... gritou
+Jo&atilde;o Bispo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o... n&atilde;o m'o perguntes...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Qual delles, Garifa; qual delles? Affonso Darga?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ninguem!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ninguem?! O nome desse homem, ou tu &eacute;s
+t&atilde;o vil como elle!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Serei, Jo&atilde;o... sou. A moura do Olival, que te
+queria tanto como &aacute; luz dos olhos, morreu no dia
+em que lhe pozeram uma morda&ccedil;a na bocca e ataram
+os pulsos: atiraram depois o corpo ao monturo...
+como de moura que era. Garifa morreu, Jo&atilde;o:
+<span class="pagenum">[141]</span>
+o que aqui est&aacute; &eacute; uma desgra&ccedil;ada
+corrida por palafreneiros...
+a quem a lan&ccedil;aram...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Calai-vos, calai-vos! exclamou o mo&ccedil;o b&eacute;steiro,
+pondo a m&atilde;o na bocca da sua namorada. N&atilde;o
+p&oacute;de ser... &eacute; impossivel!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Antes f&ocirc;ra!... murmurou Garifa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Em m&aacute; hora vim ao mundo!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo calou-se e deixou pender a cabe&ccedil;a
+sobre o peito. Quando de novo a ergueu, as palpebras
+estavam vermelhas, mas seccas; os olhos vagavam-lhe
+incertos; o rosto estava p&aacute;llido, e uma
+contrac&ccedil;&atilde;o
+nervosa dos musculos parecia emagrecer-lhe,
+avelhentar as fei&ccedil;&otilde;es. O amigo de Fernando
+Vasques,
+occultava sob as vestes grosseiras um grande
+cora&ccedil;&atilde;o,
+cheio de fogo, de energia, e toda essa energia empreg&aacute;ra-a
+no amor da filha de Humeia. A moura
+do Olival era tambem a unica mulher que top&aacute;ra no
+seu trilho capaz de n&atilde;o esfriar essa paix&atilde;o.
+N&atilde;o prendia,
+n&atilde;o captivava s&oacute;mente com a bellesa do corpo;
+captivava com os dotes do cora&ccedil;&atilde;o, da
+intelligencia.
+Garifa tivera na infancia faixas bem superiores &aacute;s
+telas grosseiras dos vestidos que trajava no Porto.
+Para corresponder &aacute; exalta&ccedil;&atilde;o, que a
+vida ociosa e
+ao mesmo tempo cheia de sobresaltos e de incertesas
+produzia na mente do escolar de S. Domingos,
+era necessaria a exalta&ccedil;&atilde;o do sangue arabe,
+fervente
+nas veias de Garifa. &Eacute; facil de avaliar qual o abalo
+que o mancebo recebeu no caes de Gaya. Aquella
+desventura, receara-a, temera-a; mas n&atilde;o se afizera
+&aacute;
+idem de que se realis&aacute;sse; ach&aacute;ra sempre a
+providencia
+a estender a m&atilde;o &aacute; sua namorada, a protegel-a.
+Na mar&eacute; mais negra seguindo-a com o pensamento,
+depois que ella desapparecera do Olival vira-a morta;
+mas se encontrasse no Douro o seu cadaver, a m&aacute;goa
+n&atilde;o f&ocirc;ra tamanha como a que sentia.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[142]</span>
+Mesteiraes e marinheiros fitavam commovidos
+os dous amantes, que se conservavam mudos affastando
+as vistas um do outro: Jo&atilde;o de p&eacute;, sombrio,
+pensativo; Garifa de joelhos, lacrimosa, tremulla, branca
+como a roupa que vestia por baixo do roto gab&atilde;o, que
+um marinheiro lhe lan&ccedil;ara aos hombros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Rausada! murmurou passados momentos o
+mancebo, sacudindo a cabe&ccedil;a, como se assim podesse
+repellir aquella ideia.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, estendendo a m&atilde;o &aacute; pobre moura, ajuntou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vem, Garifa; j&aacute; n&atilde;o sou tambem o mesmo que
+era. Vem commigo.
+<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a, levada pela solemnidade da voz e do
+gesto do mancebo, e ajudada por elle, levantou-se
+machinalmente, e com passos mal seguros, seguiu-o,
+perdendo-se os dois na escurid&atilde;o da estreita rua
+que guiava ao povoado.
+<br />
+
+<br />
+
+Os marinheiros ficaram olhando uns para os outros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pobre rapaz! murmurou um delles.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A rapariga era a que chegou a noite passada,
+quasi nua e toda magoada &aacute; taberna do tio Pero,
+e que elle abrigou por caridade, e livrou de dous
+mal encarados que a seguiam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deu-me os seus ares della.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Era a mesma, sem tirar nem p&ocirc;r.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mal a puzeram em terra, conheci-a: era a
+moura do Olival.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Coitado do Bispo, resmungou o velho Vasco.
+Bem enfeiti&ccedil;ado o traz a tal moura. Estas condemnadas
+teem taes artes, que, se vos lan&ccedil;am olhado,
+fica-se perdido de todo. Teem feiti&ccedil;os para tudo.
+Um rapaz conheci eu no meu tempo, que se myrrou
+<span class="pagenum"><a name="p143" id="p143">[143]</a></span>
+de todo, e morreu por causa de uma destas maldictas.
+Em casa da rapariga, uma moura, e linda at&eacute;
+alli, encontraram uma figura de cera feita a imagem
+d'elle com os olhos pregados, e um alfinete enterrado
+no sitio do cora&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Qual feiti&ccedil;o, nem meio feiti&ccedil;o! resmungou
+Jo&atilde;o Canhoto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o acreditas! accudiu outro mesteiral. As
+mouras todas sabem de feiti&ccedil;aria, e quando querem
+querem que um <a href="#e13">homem</a> lhes queira,
+a ellas ou
+a quem isso lhe pede, apanham um sapo, e cozem-lhe
+os olhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o digo que se n&atilde;o fa&ccedil;am desses
+maleficios;
+mas a rapariga do Bispo...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Homem, &eacute; moura e basta.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Moura ou christ&atilde;, se enfeiti&ccedil;ava, era com os
+olhos. N&atilde;o precisava de outra cousa, accudiu Jo&atilde;o
+Canhoto. A b&ocirc;a gente vi ficar de bocca aberta para
+ella, este anno ainda na prociss&atilde;o de Corpus, e depois
+n&atilde;o tem sido nem a um, nem a dous senhores
+de alta linhagem que tenho visto seguil-a, todos requebrados.
+A um dos que est&aacute; no castello ainda
+ha semanas encontrei em seu alcance pela aljama,
+era j&aacute; noite cahida. N&atilde;o disse nada ao Bispo, por
+que elle faria alguma!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Feiti&ccedil;os, feiti&ccedil;os, para nos perder a alma,
+resmungou o velho.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora, mestre Vasco! Tambem enfeiti&ccedil;ou ella a
+quem o poz naquelle estado? A pobre, que se queria
+finar por se v&ecirc;r assim, &eacute; porque n&atilde;o
+foi por sua
+vontade que a tiraram de casa. Christ&atilde;s conhe&ccedil;o
+eu,
+como as palmas das m&atilde;os, que n&atilde;o a valem. Se
+mestre Vasco estivesse mais novo, e ella lhe dissesse
+palavras de bem querer...
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum"><a name="p144" id="p144">[144]</a></span>
+&#8213;Credo! era um peccado!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deus me perd&ocirc;e; mas eu n&atilde;o o tenho por
+peccado; se o &eacute;, muita gente pecca.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Canhoto n&atilde;o deixava de dizer a verdade:
+as mouras por aquelles tempos roubavam &aacute;s
+christ&atilde;s
+bastantes cora&ccedil;&otilde;es, tanto de nobres, como de
+pe&otilde;es,
+o que as obrigava a cr&ecirc;r em poderes occultos, para
+n&atilde;o se confessarem derrotadas nos encantos. Nos
+pa&ccedil;os
+dos cavalheiros e ricos-homens, muita descendente
+de Agar, forjava dos ferros que lhes lan&ccedil;&aacute;ra a
+escravid&atilde;o
+cadeias para os seus senhores: nas cidades
+as mais jovens e formosas eram como Garifa for&ccedil;adas
+quasi a mostrarem as suas gra&ccedil;as em publico
+nas grandes solemnidades: eram as bailarinas da epocha,
+e as bailarinas teem feito dan&ccedil;ar muita cabe&ccedil;a
+desde Herodiade at&eacute; aos nossos dias. Os escrupulos
+do velho Vasco n&atilde;o eram partilhados sen&atilde;o pelos
+que
+se viam no seu estado. Os legisladores, entretendo-se
+a impedir rela&ccedil;&otilde;es ou
+liga&ccedil;&otilde;es entre as duas ra&ccedil;as com
+penas mais ou menos sev&eacute;ras, n&atilde;o quizeram, ao que
+parece, mais do que deixar prova de que ellas eram
+um pouco frequentes, e que j&aacute; ent&atilde;o se faziam
+leis
+para ficarem letra morta, salva uma ou outra
+excep&ccedil;&atilde;o
+feita com algum pobre de Christo. Nos <a href="#e14">principios
+do</a>
+seculo XVI ainda apparecem trovadores, que,
+apregoando o seu affecto por descendentes de Azharat
+e de Shobeia, n&atilde;o nos deixam ficar por mentiroso.
+<br />
+
+<br />
+
+Para cr&eacute;dito das nossas av&oacute;s christ&atilde;s,
+attribuamos
+a maior recato dellas, as conquistas das mo&ccedil;as
+do Islam. O leitor, comtudo, n&atilde;o fique pensando
+que estas n&atilde;o tinham sobre a virtude, sobre o
+<a href="#e15">pudor</a> e sobre o amor ideas <a href="#e16">identicas</a> &aacute;s professadas
+por aquellas. Garifa n&atilde;o era uma
+excep&ccedil;&atilde;o unica feita
+<span class="pagenum">[145]</span>
+para Jo&atilde;o Bispo: as ideas com que hoje s&atilde;o
+creadas
+as mulheres no Oriente, n&atilde;o eram as das mulheres
+arabes de Hespanha. Com pequenas excep&ccedil;&otilde;es, o
+amor
+no seculo XIV tinha em Granada as mesmas leis que
+na c&ocirc;rte da condessa de Champagne.
+<br />
+
+<br />
+
+O leitor poder&aacute; agora dizer-nos o mesmo que Safio
+a Vasco e Jo&atilde;o Canhoto:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deixemo-nos dessas cousas.
+<br />
+
+<br />
+
+O marinheiro accrescentou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vamos: a noite de S. Jo&atilde;o &eacute; para descantes
+e folias! Venham as mo&ccedil;as para o terreiro. Eia!
+m&atilde;os &aacute; obra: avivar as fogueiras e tanger as
+violas, que
+as cachopas acudir&atilde;o! Ehuh! Mafalda! Joanna!
+<br />
+
+<br />
+
+Pouco depois ninguem diria que na praia da velha
+Cale se tinha passado uma scena de lagrimas; que uma
+pobre rapariga tent&aacute;ra p&ocirc;r termo aos seus dias;
+que um
+cora&ccedil;&atilde;o se despeda&ccedil;&aacute;ra. Um
+bando de raparigas, de marinheiros
+e mesteiraes, dando as m&atilde;os uns aos outros,
+dan&ccedil;avam, ou melhor, giravam, formando circulo,
+em volta de uma grande fogueira, e entoavam todos
+esta cantiga, que os musicos da festa faziam por
+acompanhar:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+&laquo;Todas as hervas s&atilde;o bentas<br />
+
+Em noite de S. Jo&atilde;o<br />
+
+S&oacute; o trevo, coitadinho!<br />
+
+Anda a rasto pelo ch&atilde;o.&raquo;
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+E o sol, nascendo, ainda os encontrava no mesmo
+local.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>X.</h3>
+
+<h3>
+Uma idea.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+N&atilde;o falta com raz&otilde;es quem desconcerte<br />
+
+Da opini&atilde;o de todos na vontade.<br />
+
+Em quem o esfor&ccedil;o antigo se converte<br />
+
+Em desusada e m&aacute; deslealdade.
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Cam&otilde;es.</span>
+<em>Lusiad.</em> Cant. IV.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Os burguezes do Porto tinham desempenhado a
+sua palavra: os navios promettidos estavam a nado
+nos aguas do Douro, promptos para dar &aacute; v&eacute;la. Os
+cavalleiros e ricos-homens nem todos procediam do
+mesmo modo; o fogo do amor da patria era em alguns,
+tibio, em outros nullo. Ayres Gon&ccedil;alves de Figueiredo
+<span class="pagenum">[148]</span>
+era deste numero. Approveitara os conselhos
+de sua mulher, e fazia todo o possivel por aguardar
+que a situa&ccedil;&atilde;o se definisse para entrar com
+seguran&ccedil;a
+na contenda. Martim Gil, mandado pelos portuenses,
+ao conde D. Gon&ccedil;alo, delle recebera uma resposta favoravel,
+depois de feita, entende-se, a concess&atilde;o das
+terras da rainha D. Leonor a sua merc&ecirc;, e a das de
+Lordello e Bou&ccedil;as seu filho D. Martinho, f&oacute;ra
+outras miudesas, taes como dinheiro e pe&ccedil;as de panno;
+por&eacute;m o conde adiava, sob pretexto de aprestes, a
+sua partida, quanto lhe era possivel. O Mestre lembrava
+continuamente os apuros em que estava a sua boa
+cidade de Lisboa; mas os nossos homens n&atilde;o se queriam
+metter tambem nelles, sem a certesa de bom resultado.
+Ayres Gon&ccedil;alves tinha os olhos no conde de Neiva;
+Affonso Darga e outros cavalleiros aguardavam a
+resolu&ccedil;&atilde;o
+do alcaide de Gaya. Ruy Pereira, no entanto,
+enfastiara-se de tanta delonga, e tendo Alvaro
+da Veiga, Luiz Giraldes e Domingos Pires lembrado
+que se enviasse a armada receber o conde &aacute;
+Figueira, o alvitre f&ocirc;ra acceite, com grande
+amofina&ccedil;&atilde;o
+dos Fabios politicos, que trataram logo de procurar
+embara&ccedil;os &aacute; sua realisa&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma circumstancia os favoreceu.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando, pouco depois do S. Jo&atilde;o, a municipalidade
+tratava n&atilde;o s&oacute; de abastecer as gal&eacute;s,
+mas at&eacute; de enviar
+alguns viveres para os sitiados, como f&ocirc;ra requerido,
+alguns companheiros de Fernando Affonso de Zamora,
+deslembrados da li&ccedil;&atilde;o dada em Santo Thyrso, ou
+outros aventureiros similhantes appareceram nas visinhan&ccedil;as
+da cidade. Mal a noticia se espalh&aacute;ra, frei
+Garcia fora ter com Pedro Choca, e caus&aacute;ra
+nas tercenas um alvoro&ccedil;o extraordinario, pintando
+as cousas o mais feias possivel. Este alvoro&ccedil;o,
+gra&ccedil;as
+<span class="pagenum">[149]</span>
+a outros individuos, se tornou contagioso; o temor
+calou nos animos fracos, e na tarde desse mesmo
+dia nas ruas, terreiros e pra&ccedil;as
+lamenta&ccedil;&otilde;es
+n&atilde;o faltavam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eis de novo esses malditos gallegos! m&aacute;s
+ter&ccedil;&atilde;es
+os colham! dizia um mercador. N&atilde;o nos deixam tomar
+folego os hereges, e em bem mau estado v&atilde;o j&aacute; os
+negocios. O tempo vai bom para espadeiros; que os
+outros n&atilde;o veem pogea. Tudo s&atilde;o guerras, agora, e
+desordens. Dantes n&atilde;o era assim. No tempo do rei
+D. Pedro!... suspirou o bom homem, e concluiu meneando
+a cabe&ccedil;a, e fitando os olhos no tecto da loja.
+<br />
+
+<br />
+
+Este gesto queria dizer que no tempo do pae do
+Defensor a paz florescia na terra, e era, talvez, copiado
+de outro identico, feito pelo senhor seu progenitor
+quando o amante de Ignez de Castro talava o Douro e
+o Minho, e mesmo de algum feito por seu av&ocirc;, affectado
+pelas desaven&ccedil;as de D. Diniz com o pae do rei
+D. Pedro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o foram bem sangrados, e veem por mais
+esses castelhanos ou acastelhanados, redarguia um visinho;
+pois ter&atilde;o o seu escote, como o teve o de Zamora
+e o arcebispo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mal haja quem mal faz!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ruy Pereira, Ayres Gon&ccedil;alves, ou qualquer
+os receber&atilde;o como merecem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Assim creio; e por isso, como me dizia ha
+pouco mestre Louren&ccedil;o, &eacute; que n&atilde;o acho
+muito acertado
+mandarem para Lisboa quanta b&ocirc;a lan&ccedil;a ha por ahi.
+&Eacute; dever acudir ao proximo; mas em primeiro logar
+est&atilde;o os da casa.
+<br />
+
+<br />
+
+Quasi todos os dialogos, travados em diversos
+pontos appresentavam, espremidos, o mesmo succo
+que o do bom mercador quando pelo lado das
+<span class="pagenum">[150]</span>
+Hortas entrava uma grande manada de bois, e rebanhos
+de ovelhas e cabras, destinados ao abastecimento
+das gal&eacute;s. Alguns ociosos, encontrando-se com
+a manada fizera-lhe cortejo; alguns mesteiraes, vendo
+os ociosos, pousaram a ferramenta e engrossaram-no;
+os garotos, que possuem o faro dos grandes
+ajuntamentos, conhecendo que se formava um,
+surdiram de todos os b&ecirc;cos, para o completar. Ao
+chegar o gado a S. Domingos, caminho das tercenas,
+onde deviam os carniceiros preparar as carnes,
+a prociss&atilde;o era solemne pelo numero. A ideia
+que presidia a todas as lamenta&ccedil;&otilde;es ia ser
+formulada de
+outra sorte: frei Garcia e alguns outros apaniguados
+do alcaide, achavam-se entre as turbas; Pedro Choca,
+desemboc&aacute;ra do lado da Esnoga, sahido de uma taberna,
+onde, junto com individuos que deviam estar
+debaixo da jurisdi&ccedil;&atilde;o de Tello Rabaldo, tinha
+enxugado
+algumas medidas de vinho, e n&atilde;o era pelo menos
+destituido da manha necessaria para certas empresas.
+<br />
+
+<br />
+
+Se o concurso era grande, tambem era ruidoso.
+Os conductores da manada gritavam, vendo que uma
+ovelha tresmalhava, picada por algum rapaz travesso, ou
+um boi estacava, atemorisado por nega&ccedil;as; os homens
+d'armas da escolta praguejavam no meio de
+tantos embara&ccedil;os; aqui uma mulher queixava-se de
+que a pizavam; al&eacute;m alguns homens altercavam com
+os b&eacute;steiros, que os repelliam do transito; mais longe
+chorava uma crean&ccedil;a. Os garotos e os v&aacute;dios
+praguejavam,
+gritavam, riam-se, assobiavam, cantavam e
+imitavam o balido de ovelhas e cabras, e o mugido
+dos bois, como se os animaes se recusassem a tomar
+parte naquelle concerto.
+<br />
+
+<br />
+
+Entrando no terreiro a multid&atilde;o, crescera a algazarra.
+<span class="pagenum"><a name="p151" id="p151">[151]</a></span>
+Uma chusma de homens cobertos de andrajos,
+bem similhante &aacute; que estacionava no Olival,
+no dia da chegada da mensagem, correra para as boccas
+das ruas que iam dar ao rio, obstruindo-as
+completamente. Quando os guardas dos rebanhos quizeram
+abrir caminho para as tercenas, os vadios <a href="#e17">demonstraram</a>
+a sua m&aacute; vontade com apodos a que responderam
+os acontiados da behetria com os contos
+das azevans, ou as b&eacute;stas, manejadas em ar de clava.
+Nesta destribui&ccedil;&atilde;o de pancadas foram, como
+succede muita vez em casos taes, contemplados bastantes
+innocentes. Um b&eacute;steiro, querendo chegar a
+um velhaco, feriu no rosto uma mulher, levada para
+o centro do motim pelas ondas de povo. O sangue,
+correndo pelas faces da <a href="#e18">pobre creatura</a>,
+indignou alguns
+circumstantes, que s&oacute; a curiosidade alli trouxera.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Fazei pra&ccedil;a, exclamou d'entre elles um burguez,
+fazei pra&ccedil;a, mas com tento. Guardai os virotes para
+castelhanos
+escismaticos. Em recontro ou batalha talvez o
+bra&ccedil;o n&atilde;o ande t&atilde;o destro.
+<br />
+
+<br />
+
+O acontiado fez um gesto como de quem ia empregar
+syllogismo contundente; mas a prudencia o aconselhou
+melhor, e contentou-se com redarguir:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Cuidai no vosso mester, bom homem, e deixae-me.
+Onde pozeram a mira estes velhacos sei eu.
+N&atilde;o lhes passa ha mezes pelas goelas bocado de cabrito,
+e querem fazer b&ocirc;do com algum que filem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olha o outro! gritou um petintal. Se n&atilde;o
+comemos cabrito todos os dias, comemos p&atilde;o; mas
+amassamol-o com o nosso suor: n&atilde;o o vamos roubar
+pelas padeiras. Os tagantes do aljube ainda teem
+a pelle de dous dos vossos! N&oacute;s n&atilde;o nos servimos
+das adagas para cortar escarcellas de mercadores
+encontrados f&oacute;ra d'horas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[152]</span>
+&#8213;Muito nos custa a viver! acudiu uma g&ocirc;rda
+cidad&ocirc;a,
+e mais custar&aacute; agora que levam todo isso para
+Lisboa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E n&atilde;o parar&aacute; ahi, disse um dos companheiros
+de Pedro Choca do meio da turba: vai quanto
+mantimento se encontra pela redondesa e ha na
+cidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se os de Lisboa est&atilde;o cercados pelos de Castella,
+que fa&ccedil;am como fizemos em Le&ccedil;a: se por
+l&aacute;
+est&atilde;o minguados de mantimentos, tambem n&atilde;o nos
+sobejam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E os do arcebispo ainda n&atilde;o foram desta
+t&atilde;o malferidos, que n&atilde;o possam voltar, disse uma
+voz.
+Alguns corredores teem sahido de Braga.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; verdade, &eacute; verdade! berraram ao mesmo
+tempo dez ou doze mesteiraes. Os de Lisboa que se
+avenham como poderem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Teem bra&ccedil;os como n&oacute;s.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E n&atilde;o havemos de finar-nos &aacute; mingua. Os
+mercadores mandam boas dobras.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E a prata da S&eacute; vai tambem!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;J&aacute; os alvazires carregaram uma gal&eacute; de armas,
+e de Coimbra e Montem&oacute;r vieram outras.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que se contentem com isso, e com o biscouto
+e farinha que embarcaram!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deixai que n&atilde;o faltar&aacute;, louvado Deus,
+mantimento
+na cidade, embora levem tudo isso ao Mestre.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Fallais assim redarguiu um dos queixosos,
+voltando para o ordeiro, que proferira estas ultimas
+palavras, porque se um p&atilde;o de pra&ccedil;a vos custar
+dous reaes brancos, tendel-os na arca! Nem mealha
+deixaremos embarcar.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nem mais tanto como uma unha negra!
+<br />
+
+<br />
+
+Este dialogo, ou esta scena, que se passava ao
+<span class="pagenum">[153]</span>
+p&eacute; do arco, como nas tragedias antigas tinha o seu
+c&ocirc;ro n'uma gritaria descompassada de que seria difficil
+dar uma ideia. O que sobresahia no meio de
+tudo, eram os <em>vivas</em> e os <em>morras</em>.
+Se se perguntasse
+a cada um dos coristas em separado porque
+davam essas vozes, nenhum talvez vol-o diria,
+a n&atilde;o ser que confessassem que sentiam a necessidade
+de gritar, e que na falta de melhor cousa,
+aquellas palavras serviam perfeitamente para tudo:
+enthusiasmavam, animavam o tumulto, e de mais
+apregoavam que eram muitos bons patriotas. Os
+vivas eram ao Mestre; os morras aos scismaticos:
+levar a mal aquella berraria, ninguem podia levar.
+<br />
+
+<br />
+
+Do lado opposto a algazarra era a mesma, com
+pequenas variantes.
+<br />
+
+<br />
+
+Os conductores de gado e os guardas embrulhados
+pela chusma n&atilde;o tratavam j&aacute; sen&atilde;o de
+se deslimdarem
+della, e de acudir aos rebanhos.
+<br />
+
+<br />
+
+Alguns amotinados tinham, para desembara&ccedil;ar
+o terreiro, conduzido a maior parte do gado gra&uacute;do
+para as azenhas: ovelhas e cabras, essas corriam
+em todas as direc&ccedil;&otilde;es. Para cumulo da
+confus&atilde;o,
+quando Pedro Choca e os seus companheiros persuadiam
+o povo a que se dirigissem ao pa&ccedil;o episcopal
+ou &aacute; casa do municipio, dous touros, enfurecidos ou
+assustados pelo ruido e nega&ccedil;as d'alguns garotos, tinham
+aberto caminho para o lado da Esnoga, derribando
+e maltractando algumas crean&ccedil;as e mulheres.
+A culpa do desastre era dos amotinados; mas
+todos elles &aacute; uma tinham procurado origem mais remota,
+e lan&ccedil;aram aos vereadores e bons homens que
+tinham ordenado a remessa dos mantimentos. Um velhaco
+lembrara-se de juntar aos &laquo;morras&raquo; da ordem
+um aos &laquo;alvazires, que queriam matar o povo &aacute;
+fome&raquo;
+<span class="pagenum">[154]</span>
+e entre multid&atilde;o, mesteiraes, que horas antes teriam
+dado a sua ultima pogea, se para sua senhoria
+lh'a pedissem, repetiram aquelle grito.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma voz ampliou-o:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os traidores, que querem dar cabo da
+arraia miuda para entregar a cidade aos de Castella!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os traidores! uivou a chusma.
+<br />
+
+<br />
+
+E apparecia j&aacute; o alvitre de se ir em procura de
+alguns alvazires, e at&eacute; mesmo de os tractarem como
+ao arrabi-menor, quando dois daquelles appareceram
+no terra&ccedil;o do arco de S. Domingos. Ruy Pereira, que
+vira rebentar o alvoro&ccedil;o, mandara-os chamar e a alguns
+bons homens para que socegassem os animos
+como podessem. O tio de Nuno Alvares, a principio
+tivera, ao ouvir o arruido, vontade de baixar ao terreiro
+e cortar naquella villanagem, que de cabe&ccedil;a
+t&atilde;o levantada, insolente e turbulenta trazia o Deffensor;
+mas, apenas mandara sellar o seu cavallo,
+a reflex&atilde;o lembrou-lhe a inconveniencia de um tal passo,
+e a reminiscencia poz-lhe diante dos olhos os tumultos
+de Lisboa e Evora e tantas outras terras do
+reino. O mensageiro do mestre, contentou-se, pois,
+em desabafar em pragas, em dar duas grandes punhadas
+sobre a mesa, e desappareceu pelo lado da cerca
+do convento onde pousava, para n&atilde;o se ver obrigado
+a aturar o bom povo, deixando as authoridades
+municipaes em apuros. N&atilde;o eram fortes em rhetorica
+os bons homens, e a pouca que lhes concedera
+a natureza fugira assustada.
+<br />
+
+<br />
+
+Os velhacos, dando por elles saudaram-nos
+com uma ladainha de ap&ocirc;dos que faria pasmar
+ao leitor pela quantidade e pelo desusado.
+<br />
+
+<br />
+
+A arraia do terreiro tinha grande vantagem sobre
+<span class="pagenum">[155]</span>
+os burguezes do arco: para o attaque bastavam
+palavras soltas, ou mesmo gritos inarticulados; para
+a defesa, para satisfazer as exigencias de Ruy Pereira,
+era necessario um discurso, pequeno ou grande,
+mas um discurso.
+<br />
+
+<br />
+
+Os alvazires e mais cidad&atilde;os que os acompanhavam,
+depois de se empuxarem e acotovellarem uns
+aos outros, por bom espa&ccedil;o de tempo, tinham resolvido,
+ou antes for&ccedil;ado o mais bojudo e o mais
+endinheirado d'entre elles a tomar a palavra, e o nosso
+homem depois de um gesto bastante solemne feito
+ao bom povo; depois de tossir e escarrar, como o
+faria, ao encetar um serm&atilde;o, o frade mais sabedor do
+convento de a p&aacute;r, balbuci&aacute;ra uma ou duas duzias
+de
+palavras. &Eacute; de cr&ecirc;r que fossem boccados de ouro;
+mas
+assever&aacute;l-o ninguem, a n&atilde;o serem os collegas, o
+poderia
+fazer, pois, quasi nada perceberam no terreiro os que
+lhe quizeram prestar atten&ccedil;&atilde;o. Uma grande parte
+n&atilde;o
+lh'a dava, e continuava a formular as suas queixas
+ou accusa&ccedil;&otilde;es.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Querem dar cabo do povo, e entregar a cidade
+aos de Castella!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os traidores!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os scismaticos.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Amigos, tornou o alvazir levantando a voz,
+logo que a tempestade popular serenou mais; o Mestre
+nosso regedor e defensor se encomendou &aacute;s vossas
+boas lealdades, e vos mandou dizer que, como este
+reino andava todo revolto com desvairadas
+ten&ccedil;&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E bem desvairadas s&atilde;o as que tendes! exclamou
+cortando a palavra ao orador, um amotinado,
+pouco reverente para com o plagio da mensagem de
+Ruy Pereira, de que em apuros aquelle se valera.
+<br />
+
+<br />
+
+O pobre homem, olhou em torno de si espantado;
+<span class="pagenum">[156]</span>
+limpou o suor, que lhe corria em bagas pela
+fronte; tossiu de novo; poz a m&atilde;o no peito para tomar
+um ar mais solemne, e come&ccedil;ou novo aranzel:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Todos v&oacute;s sabeis que esta cidade levantou
+voz pelo Mestre...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva o Mestre! Alcacere por sua senhoria!
+gritou a chusma...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Todos v&oacute;s sabeis, repetiu o alvazir, que esta
+cidade deu voz pelo Mestre, que jurou defender-nos
+e amparar-nos, e tambem sabeis que el-rei de Castella
+veio sobre Lisboa com toda a sua gente...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os castelhanos! gritaram do terreiro.
+<br />
+
+<br />
+
+O illustre orador, como hoje lhe chamariam, se
+ele vivesse, as gazetas, org&atilde;os ou respiradouros do
+partido em que se tivesse lan&ccedil;ado; o illustre orador,
+vendo que n&atilde;o havia com tal gente meio de atar
+duas phrases sem uma interrup&ccedil;&atilde;o, tratou,
+j&aacute; desesperado,
+de resumir o seu discurso:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O regedor mandou pedir a esta boa cidade
+que lhe enviassem todas as gal&eacute;s e barcos que fosse
+possivel armar e equipar, e bem assim mantimentos
+e dinheiros, os quaes&#8213;ajuntou o bom do alvazir, como
+se entre os amotinados houvesse alguem que com
+tal se importasse&#8213;como filho de el-rei que &eacute;, por
+toda a sua verdade jurou pagar muito bem...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E ressuscita os que tiverem morrido &aacute; fome?
+perguntou um velhaco, que subira acima de um
+poial, arrimado ao arco, e de bra&ccedil;os cruzados, com
+gesto zombeteiro encarava o orador.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os traidores!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O regedor n&atilde;o quer que matem o povo!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva o Mestre!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Fora os alvazires, gritou Pedro Choca.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[157]</span>
+&#8213;Fora, fora! vozearam d'entre a multid&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+O orador tornou a limpar o suor, que se tornava
+copioso e frio cada vez mais, e ainda tentou proseguir;
+mas a sua m&aacute; estrella quiz que ao examinar o
+seu auditorio d&eacute;sse de novo com os olhos no velhaco
+do poial. O maldito riu-se, e fez-lhe um esgar;
+e risada e esgar seccaram-lhe completamente a prosa
+na garganta. O bojudo cidad&atilde;o bateu com a lingua
+nos dentes, soltou dous ou tres sons, estendeu os
+bra&ccedil;os, e meneou-os, como se pertencesse &aacute; seita
+dos mestres pedreiros que, pouco havia, tinham concluido
+os muros da cidade, ou quizesse nadar em
+secco; mas nem uma palavra mais conseguiu formular,
+nem com todos aquelles tregeitos exprimir uma
+ideia.
+<br />
+
+<br />
+
+A atrapalha&ccedil;&atilde;o do orador deu incremento ao
+alvoro&ccedil;o, e os bons-homens que tentaram substituir
+aquelle na tribuna, n&atilde;o conseguiram um momento
+de atten&ccedil;&atilde;o. Era este o estado das cousas,
+quando Gon&ccedil;alo Domingues e Fernando, appareceram
+no terreiro, vindos do lado do Palmeirim. Mestre Gon&ccedil;alo
+e o compadre, que j&aacute; encontramos no campo do
+Olival, tinham sido os encarregados de arranjar o gado,
+e portanto a sua appari&ccedil;&atilde;o trouxe
+&aacute;quellas cabe&ccedil;as desorientadas a ideia de que uma
+boa parte da culpa
+dos males que receiavam, delles provinham. O acolhimento
+foi pois o menos amavel possivel. As rela&ccedil;&otilde;es
+de mestre Gon&ccedil;alo com o judeu Moyses, em quem
+o povo j&aacute; fizera justi&ccedil;a a seu modo, foi a
+primeira
+pecha que lembrou a alguns dos amotinados, e mal
+lhes lembrou, logo foi lan&ccedil;ada em rosto. A chusma
+fez c&ocirc;ro, como fazia a todas as lembran&ccedil;as, e o
+bom
+burguez ficou perplexo: fez-se vermelho e fez-se amarello
+quasi ao mesmo tempo, e o caso n&atilde;o era para
+menos. Quem n&atilde;o respeitava nem bispos, nem abbadessas,
+<span class="pagenum">[158]</span>
+n&atilde;o era muito que desacatasse um
+for&ccedil;ureiro,
+por mais endinheirado que fosse. N&atilde;o era mesmo
+naquellas circumstancias o dinheiro carta de seguro;
+bem pelo contrario: era mais uma raz&atilde;o para temores.
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Domingues, impallidecendo, agarrou-se ao
+bra&ccedil;o do sobrinho e quiz retroceder; mas a rectaguarda
+estava-lhe j&aacute; cortada, e entre amea&ccedil;as foi levado
+pela
+multid&atilde;o at&eacute; junto do paiol, onde se
+empoleir&aacute;ra o vadio
+que secc&aacute;ra a eloquencia ao orador do arco. Fernando
+tomado de assombro seguiu o tio. O sangue
+do mancebo, por&eacute;m, n&atilde;o era o do velho, e a
+vozearia,
+os insultos bem depressa o fizeram ferver. O
+primeiro impulso do namorado de Irene, recuperada
+a exalta&ccedil;&atilde;o que o dominava desde o recontro de
+Le&ccedil;a, e levado por assomos de cholera foi o de se
+lan&ccedil;ar contra os amotinados.
+Desembara&ccedil;ando-se das
+m&atilde;os de seu tio, atirou-se a um mesteiral, que junto
+do rosto daquelle erguera o punho cerrado, e ia
+ser victima talvez dos seus brios, quando dous bra&ccedil;os
+musculosos seguraram o seu antagonista, e uma
+voz, que devia ser conhecida de alguns dos que se
+mostravam mais enfurecidos contra mestre Gon&ccedil;alo,
+exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ter m&atilde;o rapazes!
+<br />
+
+<br />
+
+Pedro Choca vira Fernando Vasques amea&ccedil;ado
+e correra em seu auxilio. O velhaco, apesar de tudo,
+n&atilde;o deixava de ser um bom patriota, de ter o seu
+enthusiasmo pelos defensores da arraia meuda. Conhecia
+Fernando do assalto ao bailiado, e o denodo
+do mancebo fizera com que elle o tivesse na conta
+de um heroe, contra o qual n&atilde;o levant&aacute;ra
+m&atilde;o, nem
+consentira que se levantasse por todo o dinheiro que
+lhe dessem.
+<br />
+
+<br />
+
+As suggest&otilde;es e os tornezes do capell&atilde;o de
+<span class="pagenum">[159]</span>
+Ayres Gon&ccedil;alves, e mesmo o prazer de fazer arruido
+n&atilde;o eram as unicas causas que o tinham feito
+estafar os pulm&otilde;es; frei Garcia gast&aacute;ra tempo e
+algumas
+malgas de vinho para o convencer de que entre
+os alvazires havia partidarios de Castella, que tinham
+tido o negregado pensamento de se vingarem
+do povo, por meio da fome, fingindo que serviam ao
+mestre. Que Fernando pactuasse com traidores n&atilde;o acreditava
+por&eacute;m, o velhaco, e por isso repetiu com ar
+amea&ccedil;ador, vendo que alguns animos ainda se mostravam
+hostis ao mancebo:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que ninguem lhe toque em um cabello da
+cabe&ccedil;a, sen&atilde;o commigo tem de se haver!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A traidor, como a traidores! gritou o mesteiral,
+querendo desembara&ccedil;ar-se da pris&atilde;o em que
+estava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Traidor, quem tomou uma bandeira aos gallegos,
+quem eu vi atirar-se a esses perros como se
+os virotes fossem palheiras?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se n&atilde;o &eacute; traidor, &eacute; por elles, que
+vale o mesmo.
+Que tem elle com esse for&ccedil;ureiro de m&aacute; morte!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que enriqueceu furtando ao peso.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E mais sabe Deus se era cabrito ou c&atilde;o o
+que dantes vendia!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E agora comprou o gado todo, para nos deixar
+&aacute; fome!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mentis! exclamou Fernando, respondendo a
+estes capitulos de accusa&ccedil;&atilde;o; mentis!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ahi o tendes! ponde a m&atilde;o no fogo por
+elle! resmungou um dos vadios, dirigindo-se a Pedro
+Choca.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se t&atilde;o bom &eacute; um como o outro! ajuntou uma
+mulher. O rapazelho &eacute; filho, ou cousa que o valha do
+for&ccedil;ureiro.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[160]</span>
+Pedro Choca co&ccedil;ou a cabe&ccedil;a, e olhou para Fernando
+com ar indeciso, mas logo formulou este raciocinio:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O mancebo era incapaz de pactuar com os inimigos
+do Defensor, e protegia Gon&ccedil;alo Domingues
+logo a n&atilde;o quadrava tambem o appellido de traidor.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se &eacute; pae do meu homemsinho &eacute; outro caso,
+exclamou em seguida, voltando-se para os circumstantes.
+Deve ser dos nossos.
+<br />
+
+<br />
+
+[**P1 texto reconstitu&iacute;do a partir do original do Google]
+Gon&ccedil;alo Domingues, vendo que alguem mais de
+que o sobrinho vinham em seu auxilio, tartamudeou.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Domingues Pires ou Affonso Eannes, se aqui
+estivessem vol-o diriam!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que resmunga elle?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Acoberta-se com o trato que tem com Domingues
+Pires?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim, sim; mas tambem era dos amigos do
+perro Moyses! se ouviu dentre a multid&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+A arraia meuda, como se baptis&aacute;ra o povo naquella
+quadra, tresvairada, estreit&aacute;ra o circulo formado
+&aacute; volta do burguez e as suas inten&ccedil;&otilde;es
+pareciam
+ser bem pouco pacificas, quando Fernando,
+saltou acima do poial, abandonado pelo companheiro
+de Pedro Choca. A vis oratoria, molestia que se
+d&aacute; em quadras revoltas como sez&otilde;es em terrenos
+alagadi&ccedil;os, acommettera tambem o namorado de Irene.
+O rapaz emprehendia tarefa espinhosa, como os
+respeitaveis edis o podiam attestar, commettia, pode-se
+avan&ccedil;ar uma loucura; mas &eacute; sabido que neste
+mundo por vezes as loucuras aproveitam mais do
+que as cousas pensadas. Fernando tivera uma idea,
+que vos far&aacute; rir talvez leitor, e que podia ter entre
+os amotinados o mesmo, ou peior acolhimento;
+<span class="pagenum">[161]</span>
+porem que foi agua em fervura, como diz o povo.
+Fora uma idea feliz, uma idea luminosa a do mancebo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Metteram-vos em cabe&ccedil;a que vos queriam
+matar &aacute; fome... porque se embarca alguma carne
+na esquadra! exclamou elle: mas n&atilde;o se lembrou ninguem
+de que todos os miudos c&aacute; ficam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; verdade?! acudiu com outros Pedro Choca,
+que desfazia agora, por causa do seu heroe, a obra
+para que concorrera; &eacute; verdade!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E depois? interrogou um mesteiral, embasbacado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E depois com tanta for&ccedil;ura, com tanta miudagem
+de todo esse gado n&atilde;o se morre &aacute; fome.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E a carne n&atilde;o &eacute; cousa que engasge a arraia
+muita vez no anno! observou o vadio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Demais, proseguiu o mancebo, aos corredores
+gallegos n&oacute;s os ensinaremos, e haver&aacute; ahi
+mantimentos
+de sobra. Para dez scismaticos basta um portuguez.
+A gente que foi a Le&ccedil;a e Santo Thyrso est&aacute; ahi,
+e antes da chegada das gal&eacute;s os do Porto esperaram
+a p&eacute; quedo os do arcebispo, sem que elles se atrevessem
+a vir &aacute;s m&atilde;os comnosco. Deixai ir as
+gal&eacute;s...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem as quita? exclamou um mesteiral, a
+quem aquellas palavras tinham inflamado o orgulho
+patrio. Se os de Lisboa carecem de n&oacute;s, n&oacute;s
+n&atilde;o carecemos
+delles. N&atilde;o nos atrai&ccedil;oem os de casa...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;De casa... aqui neste boa cidade n&atilde;o ha traidores,
+atalhou o namorado de Irene; aqui, ninguem
+p&otilde;e o seu bra&ccedil;o em almoeda: as lan&ccedil;as
+e ascumas dos
+populares n&atilde;o teem pre&ccedil;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Como certas espadas.
+<br />
+
+<br />
+
+O mancebo apesar das interrup&ccedil;&otilde;es, de
+approva&ccedil;&atilde;o
+agora, n&atilde;o se calou. Surprehendendo, como
+<span class="pagenum">[162]</span>
+vimos, os amotinados com a primeira lembran&ccedil;a que
+tivera, lan&ccedil;ando por instincto m&atilde;o dos argumentos
+melhores em taes circumstancias, proseguiu appellando
+para os brios do povo, appellando com a convic&ccedil;&atilde;o
+de ser attendido, e o rumor levantado pouco
+a pouco em torno de si provar-lhe-hia, se a isso
+d&eacute;sse atten&ccedil;&atilde;o, se elle mesmo
+n&atilde;o se enthusiasmasse
+com as suas palavras, que sen&atilde;o havia enganado. Quando
+terminou o descontentamento da arraia, estava convertido
+em abnega&ccedil;&atilde;o civica, em enthusiasmo patriotico.
+O povo tem, como o oceano, destas mudan&ccedil;as
+repentinas. Pedro Choca, cuja bossa decididamente
+era a de vivorio, encarregou-se de dar expans&atilde;o aos
+sentimentos que o agitavam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva Fernando Vaz! que... gritou elle; mas n&atilde;o
+p&ocirc;de proseguir, porque o distrahiu e engasgou uma
+pancada em um hombro e uma voz zombeteira, que
+lhe dizia ao ouvido:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Assim &eacute; que sua merc&ecirc; trabalha nas tercenas?
+<br />
+
+<br />
+
+O impulso estava por&eacute;m dado, e Choca, desapparecendo,
+pois bem reconhecera pela amabilidade da
+pancada e da voz a presen&ccedil;a do pae dos velhacos,
+deixava de novo o rico for&ccedil;ureiro em suores nos
+apertos da ova&ccedil;&atilde;o do sobrinho. O nome de Fernando
+Vasques era bastante popular desde o recontro de
+Le&ccedil;a... pelo que demonstravam os successos, mais do
+que a pessoa.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando Pedro se eclypsava com os seus companheiros,
+os acontiados do municipio, ha pouco apupados,
+arrebanhavam sem a menor opposi&ccedil;&atilde;o o gado
+que se espalh&aacute;ra pelos campos das azenhas. Os planos
+de Ayres Gon&ccedil;alves goravam completamente, gra&ccedil;as
+sobretudo ao namorado de Irene. O rapaz, tivera,
+<span class="pagenum">[163]</span>
+repetimos, uma ideia feliz, e soubera tocar no fraco dos
+amotinados melhor do que os alvazires, que no convento
+ainda discutiam, embara&ccedil;ados, a maneira de darem
+conta da sua miss&atilde;o. Falho o expediente do alcaide
+de Gaya, as indecis&otilde;es dos seus nobres companheiros
+tinham de ser cortadas pela emula&ccedil;&atilde;o dos
+caudilhos.
+<br />
+
+<br />
+
+Os portuenses davam o primeiro passo para
+obterem em chrisma uma alcunha que tinha de durar
+seculos; mas a honra da cidade estava salva. O
+pae dos velhacos capitaneava os vadios, que, juntos
+com os besteiros, levavam o gado &aacute;s tercenas, e os
+mesteiraes,
+que momentos antes t&atilde;o descontentes se mostravam
+acompanhavam-nos, berrando:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva o Mestre de Aviz! Viva a arraia meuda
+do Porto!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>FIM</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">PRE&Ccedil;O 300
+REIS.
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">LIVRARIA DE IGNACIO
+CORREA,<br />
+
+<em>Rua de Bellomente, n.&ordm; 65 e
+66&#8213;Porto.</em>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>Louzada.</b>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">Rua Escura&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Na Consciencia&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>Camillo C. Branco</b>
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">
+Anathema, 2.&ordf;
+edi&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Duas
+Epochas da vida,
+poesias&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">600</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Duas
+horas de leitura&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Espinhos
+e flores.&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">300</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Lagrimas
+aben&ccedil;oadas&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Livro negro&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Marquez (O) de Torres Novas,
+drama&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Mysterios de Lisboa&#8213;2
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">1$000</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Neta do Arcediago (A)&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Onde est&aacute; a felicidade?&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Purgatorio e Paraizo, drama&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">300</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Que (O) fazem mulheres&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Scenas Contemporaneas, contendo a
+&laquo;Poesia e dinheiro&raquo; drama, e outros&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right; vertical-align: bottom;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Scenas da Foz&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Um homem de brios&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Um Livro, poesias&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">360</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>
+Vingan&ccedil;a&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>A. Gama</b>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">
+Genio do Mal (O)&#8213;4 vol.
+8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">1$920</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Honra ou Loucura
+8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Poesias e
+Contos&#8213;8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">800</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>E. Sue</b>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">
+Avareza (A)&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">300</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Gula (A)&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">240</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Inveja (A)&#8213;3
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">720</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Ira
+(A)&#8213;in-12.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">300</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Judeu Errante (O)&#8213;10 vol.
+8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">2$000</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Luxuria (A)&#8213;2 vol.
+in-12.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">480</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Martim o Engeitado&#8213;6 vol.
+8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">1$600</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>
+Pregui&ccedil;a
+(A)&#8213;in-12.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">240</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Soberba (A)&#8213;4 vol.
+in-12.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">960</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>Souza Lobo</b>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">
+O Emparedado,
+drama&#8213;8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">300</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>A Cigana,
+drama&#8213;8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">200</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>A Moura,
+drama&#8213;8.&ordm;&nbsp;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">200</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Os
+tres dramas
+reunidos</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+&nbsp; <br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>P. J.
+Concei&ccedil;&atilde;o</b>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">Mysterios do Porto.&#8213;2
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">480</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Amante e
+Irm&atilde;&#8213;drama</td>
+
+ <td style="text-align: right;">200</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="fbox">
+<h2>Lista de erros corrigidos</h2>
+
+<div style="text-align: center;">Aqui encontram-se
+listados todos os erros encontrados e corrigidos:</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="width: 80%; text-align: left; margin-left: auto; margin-right: auto;" border="0" cellpadding="4" cellspacing="4">
+
+ <tbody>
+
+ <tr align="right">
+
+ <td style="width: 61px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 121px;">Original</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 135px;">Correc&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"><a name="e1" id="e1"></a><a href="#p11">#p&aacute;g.
+11</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">presonagens</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">personagens</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"><a name="e2" id="e2"></a> <a href="#p13">#p&aacute;g.
+13</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">edificap&otilde;es</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">edifica&ccedil;&otilde;es</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e3" id="e3"></a> <a href="#p52">#p&aacute;g.
+52</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">o insomnia</td>
+
+ <td>...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">a insomnia </td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; vertical-align: top;"><a name="e4" id="e4"></a><a href="#p53">#p&aacute;g.
+53</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">rebem</td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">recebem</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e5" id="e5"></a> <a href="#p53">#p&aacute;g.
+53</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">ingratid&atilde;o,;</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">ingratid&atilde;o,</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e6" id="e6"></a> <a href="#p68">#p&aacute;g.
+68</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">resesaltar</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">ressaltar</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e7" id="e7"></a> <a href="#p103">#p&aacute;g.
+103</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">gallegos?</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">gallegos!</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e8" id="e8"></a><a href="#p119">#p&aacute;g.
+119</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">curiosidadade</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">curiosidade</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e9" id="e9"></a><a href="#p121">#p&aacute;g.
+121</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">embtuidos</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">embutidos</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e10" id="e10"></a><a href="#p132">#p&aacute;g.
+132</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">o
+ocora&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">o
+cora&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e11" id="e11"></a><a href="#p132">#p&aacute;g.
+132</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">?ibilar ?s pelouros</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">sibilar os pelouros</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e12" id="e12"></a><a href="#p139">#p&aacute;g.
+139</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">Que ma?</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">Que mal</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e13" id="e13"></a><a href="#p143">#p&aacute;g.
+143</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">hemem</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">homem</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e14" id="e14"></a><a href="#p144">#p&aacute;g.
+144</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">principiosdo</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">principios do</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e15" id="e15"></a><a href="#p144">#p&aacute;g.
+144</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">prdor</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">pudor</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e16" id="e16"></a><a href="#p144">#p&aacute;g.
+144</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">id
+enticas</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">identicas</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e17" id="e17"></a><a href="#p151">#p&aacute;g.
+151</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">demonstaram</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">demonstraram</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e18" id="e18"></a><a href="#p151">#p&aacute;g.
+151</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">pobrecreatura</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">pobre creatura</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+</div>
+
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Os tripeiros, by António José Coelho Lousada
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS TRIPEIROS ***
+
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+
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+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
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+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
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+
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+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
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+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
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