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+The Project Gutenberg EBook of Contos escolhidos de D. Antonio de Trueba, by
+António de Trueba
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Contos escolhidos de D. Antonio de Trueba
+
+Author: António de Trueba
+
+Commentator: Inácio de Vilhena Barbosa
+
+Translator: F. de Castro Monteiro
+
+Release Date: May 25, 2008 [EBook #25593]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS ESCOLHIDOS DE D. ANTONIO ***
+
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+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
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+
+PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA
+
+CONTOS ESCOLHIDOS
+
+DE
+
+D. ANTONIO DE TRUEBA
+
+TRADUZIDOS LIVREMENTE
+
+POR
+
+F. DE CASTRO MONTEIRO
+
+com uma introducção
+
+POR
+
+I. DE VILHENA BARBOSA
+
+
+PORTO
+Imprensa Portuguesa--Editora
+1872
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+PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA
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+PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA
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+DE
+
+D. ANTONIO DE TRUEBA
+
+TRADUZIDOS LIVREMENTE
+
+POR
+
+F. DE CASTRO MONTEIRO
+
+com uma introducção
+
+POR
+
+I. DE VILHENA BARBOSA
+
+
+PORTO
+Imprensa Portuguesa--Editora
+1872
+
+
+
+
+AO SEU PREZADO AMIGO
+
+I. DE VILHENA BARBOSA
+
+SOCIO CORRESPONDENTE DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS
+
+Como testemunho de gratidão
+
+Offerece
+
+ _O traductor._
+
+
+
+
+
+_Meu querido Vilhena Barbosa._[1]
+
+A grata recordação das lições que de ti recebi, quando no meu espirito
+começava a desenvolver-se o gosto pelo estudo da litteratura; os salutares
+conselhos, que me dispensaste, nos primeiros annos da minha adolescencia,
+apontando-me a escolha dos auctores, que deveriam formar o meu estylo, e
+robustecer as minhas tendencias litterarias; aquellas nossas conversas, de
+tamanho interesse para mim, em que as luzes do teu illustrado entendimento
+tentavam dissipar as trevas da minha ignorancia, conversas que, pouco a
+pouco, e no decurso d'alguns annos de convivencia intima, iam subindo
+d'alcance, á medida que, pelo estudo, eu me habilitava a comprehender-te e
+a discutir comtigo, seriam já, de per si, sobejo motivo para que eu te
+dedicasse este livrinho, se não houvesse ainda razões de entranhadissimo
+affecto, razões todas do coração, e completamente alheias á cultura das
+letras, que a isso me obrigam, com força de irresistivel encanto.
+
+A minha vida está, desde os mais verdes annos, ligada, por laços
+indissoluveis, a essa dedicação illimitada que sempre me votaste.
+
+Era eu bem creança, e já tu me franqueavas os arcanos da tua vasta
+erudição. Não sei que confiança era a tua na mediocridade da minha esphera
+intellectual. Eram horas esquecidas d'instructiva palestra, em que a
+historia patria, a philosophia da historia, as sciencias naturaes, e a
+litteratura constituiam um thema variado, que me deleitava e instruia,
+animando-me a procurar nos livros cabedal de conhecimentos com que podesse
+corresponder ao teu paternal intento de me tornar util a mim e á sociedade.
+
+Oh! que saudosos tempos, de feliz memoria, são esses para mim!
+
+Quando nos separavamos, continuavas tu, de longe, a indicar-me os bons
+modelos, e a apontar-me um futuro, que a tua céga amisade antevia para mim,
+mas que, _erat scriptum_, eu não deveria attingir.
+
+Nunca me abandonaste; e, se foi baldado o teu intento, ao menos da
+constancia do teu affecto tiro eu motivo de muito orgulho, e isso basta
+para me consolar.
+
+Nos primeiros mezes de 1860, época de terrivel amargura para o meu coração,
+revelou-se a tua amisade por mim pela prova mais grandiosa, que póde
+aquilatar os sentimentos d'alma.
+
+Em dezembro, tinha eu vindo de Coimbra ao Porto, a férias. Entrava em casa
+com aquelle alvoroço, que tu por vezes presenciaste, e que sempre me
+dominava, ao acercar-me de meus paes e de minha irmã. Minha mãe chorava de
+alegria, cingindo-me n'um amoroso e prolongado abraço, e eu correspondia ao
+seu carinho com todo o affecto, que me inundava o coração. Sabes como eu a
+amava. Por mais d'uma vez te achaste ao nosso lado, no momento de nos
+separarmos.
+
+Eram os transportes de duas almas enamoradas, em presença da amarga e
+tyrannica necessidade da ausencia.
+
+Assim tambem, quando as ferias se avisinhavam, contavamos ambos as horas e
+até os instantes, que faltavam para a nossa approximação, com frenetica
+impaciencia.
+
+N'essas emoções encontradas, por entre riso e lagrimas, se deslisaram os
+primeiros annos da minha mocidade.
+
+Punge-me recordar esse tempo de tão acerba saudade; enlucta-se-me a alma,
+quando se me retrata na mente a imagem de minha piedosa mãe; e a ti sei eu
+que hade offender-te a notavel modestia, que é um dos ornamentos do teu
+nobre caracter, este publico testemunho, que te offereço, da minha
+gratidão.
+
+Mas ainda que o coração se me despedace ao escrever estas linhas, e a
+despeito da contrariadade, que possa levantar no teu espirito, proseguirei
+no meu intento.
+
+Tem paciencia, e ouve o que talvez a tua consciencia nunca te mostrasse em
+relevo, por causa d'esse sentimento elevadissimo, que esconde aos olhos do
+homem a nobreza das suas proprias acções.
+
+Poucos dias depois da minha chegada ao Porto, adoeceu minha mãe; e com tal
+violencia se apresentou a molestia, que foram infructiferos todos os
+esforços, que a medicina fez para a salvar.
+
+A 22 de Janeiro voou aquella alma angelica, a abrigar-se no seio de Deus.
+
+Passarei um véo por sobre o abysmo de insondavel martyrio, em que esse
+angustiosissimo lance me sepultou!
+
+Decorrido um mez, lembrou-me meu pae a necessidade de voltar para Coimbra.
+
+Acordei então do lethargo em que caíra, depois do fatal acontecimento;
+comprehendi quanto havia de justo e paternal n'aquella indicação, e parti.
+
+Quando me encerrei no meu quarto escolastico, e que meditei na
+transformação, que, em tão breve lapso de tempo, se operára na minha vida
+moral, senti-me succumbir; arrastei-me para junto da janella, que olhava
+para o Mondego, e alongando a vista por aquelle formoso quadro, tão poetico
+e tão melancolico, deixei-me dominar completamente pela vehemencia da
+saudade, que me opprimia, e assim permaneci por espaço de muitas horas.
+
+Nos dias que se seguiram, foi sempre calando, mais e mais, no meu
+coração, aquella profunda tristeza, que nada podia dissipar.
+
+Os meus companheiros de casa, moços distinctissimos, os quaes ainda hoje
+amo como irmãos, envidavam todos os seus recursos para me fazer saír
+d'aquelle estado de depressão de espirito, que me senhoreava; mas nada
+podiam conseguir.
+
+Por espaço de muitos dias, quando chegava o correio, erguia-me de subito,
+machinalmente, para correr ao seu encontro; mas logo, lembrando-me que já
+não existia aquella santa, que diariamente me confortava e fortalecia o
+espirito, com o balsamo salutar do seu carinhoso affecto, caía novamente na
+minha tristeza habitual.
+
+Tão dolorosa e renitente enfermidade moral, não podia deixar de
+transmittir-se ao corpo.
+
+Adoeci.
+
+Os progressos da doença foram rapidos e assustadores!
+
+Eu delirava, e no meu delirio, evocava o nome de minha mãe.
+
+A sciencia deu á molestia um nome; mas o meu coração dava-lhe outro.
+
+Os médicos chamavam-lhe pneumonia... mas eu chamava-lhe _Saudade_!
+
+Todos os meus companheiros, á porfia, se esforçavam por me provar a sua
+amisade. D'elles porém havia um, a quem todos respeitavamos, que logo se
+collocou á cabeceira do meu leito, servindo-me regularmente de enfermeiro.
+
+Não referirei aqui o seu nome por lhe não ferir a modestia, que a tem,
+em tão subido gráo como tu, e a qual eu não ouso devassar.
+
+Recordo-me d'elle com muita saudade e muito reconhecimento.
+
+E nunca mais nos encontramos!
+
+Uma noite acordei e vi um vulto ajoelhado junto do meu leito;
+sobresaltou-me, porque me parecia um padre! Era elle, vestido de batina,
+e que resava no seu livro de orações!
+
+Ergueu-se rapidamente e disfarçou para me não assustar.
+
+Eu dissimulei; fingi que o não vira, e nunca lhe fallei d'esta scena
+edificante, que ha de sempre permanecer gravada no meu coração.
+
+Este livro deve chegar um dia ás mãos d'esse nobre mancebo, de quem o
+destino me separou; que elle se recorde de mim com saudade, ao lêr estas
+palavras, e veja n'ellas a expressão do muito reconhecimento, que tambem
+lhe consagro.
+
+A molestia aggravara-se, e ao terceiro dia, apresentava-se temerosa!
+
+Eu sentia-me isolado, á mingua do conforto da familia; mas prohibira
+expressamente, que avisassem meu extremoso pae da gravidade da minha
+situação.
+
+Este, ignorando a verdade, e presa de muitos trabalhos domesticos, não
+foi ter commigo a Coimbra; mas escreveu-te para Lisboa, avisando-te de
+que eu me achava enfermo.
+
+No dia em que recebeste a sua carta, dirigiste-te a um dos meus
+companheiros de casa, e este fallou-te com franqueza.
+
+Isto soube-o eu mais tarde.
+
+Vinte e quatro horas depois de teres lido a resposta, a que alludo,
+dispertava eu d'um somno angustioso, e vi-te ao meu lado.
+
+Quiz erguer-me e lançar-me nos teus braços, mas não pude.
+
+Fizeste por me serenar o espirito, sobreexcitado pela tua presença alli,
+e começaste a dispensar-me os thesouros do teu acrisolado affecto.
+
+A molestia teve-me baloiçado entre a vida e a morte; e por fim, graças á
+bondade do Altissimo, que me julgou talvez novo para deixar o mundo, e
+que me proporcionou os desvelos do teu carinho, começou a declinar.
+
+Foi longa a convalescença.
+
+Quando, no decurso d'ella, eu me conservava ainda de cama, tu, sentado á
+minha cabeceira, lias alto para me distrahir, ou divagavas sobre
+aquelles assumptos, que sabias me eram mais gratos.
+
+Ministravas-me cuidadosamente os remedios e as comidas, temperadas pela
+tua propria mão, e informavas diariamente a minha familia das
+progressivas melhoras, que eu experimentava.
+
+Afinal, ergui-me da cama, e, poucos dias depois, comecei a dar alguns
+passeios, pelo teu braço.
+
+Ficava a minha casa proxima ao Jardim botanico, e era para ahi que
+sempre nos dirigiamos.
+
+Estavamos então entrados na primavera, essa estação encantadora, em que
+o coração se retempera no ar embalsamado que nos rodeia; essa _gioventù
+del anno_, como lhe chama o poeta, em que toda a natureza nos sorri, com
+ineffavel magia.
+
+Eu sentia-me _renascer_; parecia-me participar da qualidade dos arbustos
+e das plantas, que nos cercavam; corria-me nas veias uma nova seiva, e
+impressionava-me em extremo o grandioso espectaculo, que se offerecia a
+meus olhos.
+
+Depois de darmos algumas voltas por aquellas frondosas avenidas,
+sentavamo-nos n'um banco do jardim, e um ao outro communicavamos as
+impressões, que recebiamos d'aquelle panorama encantador das «saudosas
+margens do Mondego», que d'alli se observa em todo o esplendor da sua
+belleza.
+
+Depois, quando o sol, declinando, nos aconselhava a regressar a casa,
+levantavamo-nos e deixavamos vagarosamente aquella mansão deliciosa.
+
+Os extremos da tua amisade tinham-me furtado talvez a uma prematura
+morte, mas não lograram desanuviar-me o coração da magoa, que o suffocava.
+
+Deixava-me por vezes dominar de profunda tristeza, e assim me conservava
+por largas horas, alheiado completamente do mundo exterior, e só
+entregue a amargas cogitações.
+
+Um dia entraste no meu quarto, e disseste-me que era preciso saír de
+Coimbra; que tinhas conversado largamente com o medico, e que este fôra
+de parecer de que a distracção era o unico remedio que podia completar o
+meu restabelecimento.
+
+Sobresaltou-me a lembrança de que teria de me separar logo de ti.
+
+Era uma injustiça que fazia á devoção do teu affecto; mas confesso-te
+que não suppunha que tu levasses a tua generosa dedicação por mim, até
+entrares commigo na casa paterna.
+
+Sabia que a ausencia de Lisboa era em extremo prejudicial aos teus
+interesses, e por isso imaginava que tu darias por terminada a tua
+caridosa missão, com a minha partida para o Porto.
+
+Quanto me enganava!
+
+Eu estava ainda muito falto de forças e mal podia entender nos aprestos
+da viagem; tu porém a tudo proveste com paternal cuidado.
+
+Afinal, por uma aprazivel manhã, saímos de Coimbra.
+
+Alugaramos uma carruagem, a melhor que se pôde encontrar, e por essa
+bella estrada, que o mau fado da nossa administração publica, devia,
+poucos annos depois, tornar quasi deserta, admirando o formosissimo paiz
+que ella atravessa, formosissimo pela luxuriante vegetação que o cobre,
+e pela extensão dos seus variadissimos panoramas, seguimos
+agradavelmente até á primeira paragem, onde deviamos pernoitar.
+
+Se bem me recordo era a estalagem d'Albergaria, esse covil immundo, da
+qual ainda hoje me não lembro, que não sinta logo pelo corpo, um certo
+pruído, que me excita horrorosamente os nervos.
+
+No dia immediato continuamos a nossa jornada, mas não com tanta
+felicidade como na vespera.
+
+Levantára-se muito vento, e parece-me que te estou vendo, meu bom
+Ignacio, receioso de que o frio prejudicasse o regular andamento da
+minha convalescença, repartindo-me em mil cuidados, para me pôr a salvo
+d'uma recaída!
+
+E agora me lembra um episodio d'essa saudosa jornada, que tem relação
+com o que levo dito, e que é mais um attestado do conforto e da
+commodidade das taes locandas da antiga estrada coimbrã.
+
+Quando chegamos a S. João da Madeira, saímos da carruagem, e entramos na
+hospedaria, para jantar.
+
+Depois que démos as nossas ordens, na cosinha, subimos para a sala, onde
+deviamos esperar que nos servissem; mas era tal a _ventania_, que
+entrava pelos buracos dos vidros, e pelas fendas do telhado, que, não
+querendo voltar logo para a carruagem, de que já estavamos fartos,
+tomamos o partido de nos sentarmos a um canto, e abrir os chapéos de
+sol, a vêr se d'este modo podiamos afrontar a intemperie.
+
+Pouco tempo porém estivemos n'essa posição caricata; afinal entendemos
+que o mais acertado era jantarmos dentro da carruagem, e assim o fizemos.
+
+Ainda hoje me rio, quando me acode á ideia essa scena de comedia, que
+acabo de descrever.
+
+D'ahi por algumas horas chegavamos aos Carvalhos, onde nos esperavam,
+meu pae e minha irmã, e todos juntos seguimos para o Porto.
+
+Com a viagem, que descrevi com leves traços, termina esse episodio da
+nossa vida, em que se patenteia bem a elevação do teu caracter, e a
+dedicação que te devo; mil annos que eu vivesse, nunca esta pagina da
+minha mocidade, se me apagaria da memoria.
+
+Sei, e já o disse no principio d'esta carta, que vou offender a tua
+modestia, tornando publico esse exemplo que déste da nobreza dos teus
+sentimentos.
+
+Não importa. És tu geralmente apreciado como homem de letras, quero que
+todos te apreciem tambem como homem de coração;--como exemplo do amigo
+dedicado.
+
+Porto, 12 de janeiro de 1872.
+
+ F. de Castro Monteiro.
+
+ [1]Vilhena Barbosa só terá conhecimento d'esta carta, quando lhe chegar
+ á mão o meu livro. O respeito que me merece a sua proverbial modestia
+ obriga-me a deixar aqui esta declaração.
+
+
+
+
+INTRODUCÇÃO
+
+
+I
+
+As letras e as artes têm muitos pontos de affinidade. Ambas filhas
+predilectas da civilisação; caminhando a par na via dos progressos
+humanitarios; auxiliando-se e concorrendo mutuamente para o seu commum
+desenvolvimento e esplendor; cabendo-lhes egual quinhão de gloria nos
+aperfeiçoamentos, grandeza e prosperidade de qualquer nação; tem
+identico valor e significação para se aquilatar por ellas a cultura de
+um povo; e, finalmente, ambas são um como espelho em que a humanidade se
+retrata, tal qual é, segundo as epochas da sua historia.
+
+Nas artes é, principalmente, a architectura, pelas intimas relações que
+tem com a sociedade, a que resume em si, com maior exactidão, as idêas,
+as crenças, as aspirações, as necessidades, em fim, a vida moral e
+physica dos povos.
+
+Nas letras o romance, a meu vêr, como nas artes a architectura, é qual
+lamina em que se espelham, com fidelidade, os pensamentos, a indole e os
+costumes da sociedade para a qual foram escriptos.
+
+Na traça mesquinha ou grandiosa de um monumento; nas suas fórmas
+acanhadas ou esveltas; na ornamentação pesada e mal disposta, ou ligeira
+e graciosamente distribuida; na esculptura dos ornatos grosseiros e sem
+significação ideal, ou delicados e expressivamente symbolicos, escreveu
+o architecto, sem attentar em tal, uma pagina da historia dos seus
+contemporaneos, eloquentissima na sua mudez, e cheia de verdade, porque
+a mão do seu auctor era dirigida, não por paixões ou respeitos humanos,
+mas unicamente pelo amor da arte. E julgando o artista que a movia em
+cega obediencia aos preceitos da mesma arte, a sua dextra seguia tambem
+os impulsos da sua imaginação, que não podia eximir-se á despotica
+influencia das idêas e costumes dominantes; e além d'isso, no desempenho
+da sua missão, tinha de satisfazer as exigencias e necessidades
+publicas, que são sempre determinadas pelo movimento intellectual e pela
+successiva modificação dos costumes.
+
+O romancista quer que o seu livro corra mundo, e seja lido com prazer.
+Para alcançar este _desideratum_, procura deleitar, e para este fim tem
+de vasar a sua obra nos moldes do gosto publico; isto é, tem de a
+accommodar ás idêas e costumes em voga n'essa epocha. E ainda que
+consideremos o escriptor, pegando da penna, sem que o mova o interesse
+pecuniario, forçosamente ha de escrever sob a mesma poderosa influencia
+das idêas e costumes publicos.
+
+
+II
+
+Quando as cruzadas, minando pela base o feudalismo, crearam o espirito
+cavalleiroso, que, d'envolta com o sentimento religioso, foi adoçando
+pouco a pouco a fereza da edade media, e, ao mesmo tempo, abrindo a
+porta á illustração do seculo, surgiu o romance, como guarda avançada
+das letras; cruzada não menos santa, preparada no remanso do gabinete
+pelos primeiros chronistas, annunciada e apregoada pelos antigos
+trovadores.
+
+O romance mostrou-se desde logo o retrato fiel da sociedade, em todas as
+phases da sua vida moral e physica.
+
+Pois que n'essas eras se manifestavam e expandiam o sentimento religioso
+em guerras contra os infieis, e o do prazer em justas, torneios e
+caçadas, ou em saraus, onde os trovadores cantavam, ao som do alaúde,
+amores e guerras; pois que a justiça humana chamava amiudadas vezes os
+delinquentes ao campo dos combates judiciarios; pois que as moradas da
+nobreza eram castellos, cercados de fossos, e eriçados de ameias; as
+espadas, as lanças e as armaduras os melhores ornamentos das suas salas;
+a montearia, a diversão predilecta das illustres castellãs; o romance,
+reproduzindo todas estas feições sociaes, tomou a fórma de novellas de
+cavallaria. Amores e guerras constituiam, portanto, o assumpto obrigado
+d'essas composições. A honra, o valor, a coragem, a dedicação
+desinteressada, a fé e a esperança estreitamente unidas, todos estes
+dotes de um perfeito cavalleiro, todas estas idêas, que então occupavam
+os espiritos quasi exclusivamente, até dos que não possuiam tão nobres
+qualidades, sobresaíam e brilhavam com tanto fulgor nas paginas d'essas
+novellas, como as estrellas que scintillam no manto negro da noute.
+
+
+III
+
+Em quanto as cruzadas, attrahindo a um campo commum as differentes
+nações da Europa, e pondo em contacto o Occidente com o Oriente, faziam
+raiar a aurora de uma nova civilisação, travavam encarniçada lucta a
+realeza e o feudalismo. Aquella, soccorrendo-se ao principio popular,
+acabou por triumphar do seu poderoso adversario. Porém, durante a pugna,
+o poder real teve de arcar com o poder theocratico, o qual, a seu turno,
+alcançára victoria sobre a propria realeza.
+
+A influencia dos pontifices no regimen dos estados, que tão benevola e
+providencial se ostentou, em quanto serviu de medianeira entre os
+opprimidos e os oppressores, estendendo sobre os mais fracos a égide do
+poder espiritual, veiu a tornar-se oppressiva e intoleravel, desde que,
+abusando da sua intervenção nos negocios temporaes das nações, converteu
+em tyrannia aquella missão paternal.
+
+A supremacía dos papas, actuando na politica dos governos e nas idêas e
+costumes populares, imprimiu uma grande modificação no viver da
+sociedade. Essa modificação não tardou a estampar-se no romance,
+despojando-o dos esplendores e galanteria, com que até alli se ataviára,
+e fazendo-lhe vestir a roupagem, modesta e singela, mas não falta de
+poesia, das lendas religiosas, que lá foram aninhar-se nas chronicas
+monasticas, parecendo fugir ás impurezas do seculo.
+
+A fé viva, sugeitando a razão além do dogma; a esperança vivissima em
+uma eternidade de gloria e de suprema ventura na outra vida, como
+recompensa do refreamento das paixões e das abstinencias, e como
+compensação das grandes dôres; o curso geral das cogitações e
+controversias dos sabios para as materias theologicas; as diversões
+populares restringindo-se, quasi exclusivamente, ás procissões, nas
+quaes eram admittidas dansas, e toda a sorte de exhibições phantasticas
+e burlescas, aos arraiaes e outras festividades religiosas, e,
+finalmente, aos autos sacros, que constituiam o theatro na infancia,
+depois do seu renascimento; as provas do fogo, do ferro em brasa, e da
+agua fervente, denominadas _juizo de Deus_, aceites nos tribunaes de
+justiça como testemunhos irrecusaveis da innocencia ou da culpabilidade:
+todo este pensar e este viver reflectiam-se nas lendas religiosas com a
+mesma exactidão e vigor, com que o sol reflecte na superficie das aguas
+a sua fronte luminosa.
+
+
+IV
+
+Não é meu intento traçar a historia d'este ramo de litteratura. Direi,
+todavia, que d'aquelle modo continuou o romance, em todos os tempos, e
+sob todas as fórmas, a reproduzir em si, com mais ou menos naturalidade
+e viveza de côres, as mudanças que se vão operando nas idêas e nos
+costumes.
+
+D'est'arte se revestiu das fórmas classicas, quando, sob a influencia
+dos sabios e dos artistas, foragidos de Constantinopla, ao desmoronar do
+imperio do Oriente, se operou nas letras, nas artes, e no proprio viver
+da sociedade, a grande revolução denominada _renascença_, a qual foi
+inspirar-se nas obras grandiosas da antiga Grecia.
+
+Do mesmo modo assumiu o romance a gravidade philosophica, quando
+Voltaire, Rousseau, e outros grandes pensadores do seculo passado,
+proclamando verdades, que faziam estremecer em seus thronos os monarchas
+despoticos, convidavam os estadistas a meditarem nos problemas sociaes,
+cuja semente assim lançavam á terra; e excitavam os povos a reflectir na
+significação e importancia dos direitos do homem.
+
+Assim o romance se tornou historico, logo que a sociedade, sentindo o
+mal estar de uma organisação que os progressos da civilisação iam
+fazendo caducar, recorria ao passado, como que procurando nos archivos
+da historia o elixir para se rejuvenescer; isto é, estudando nas antigas
+sociedades as fórmas governativas, que mais lhe quadrariam sob a
+revolução que se preparava.
+
+Quando, em nossos dias, a applicação do vapor á locomoção e ás machinas
+industriaes, bem como a telegraphia electrica, pondo em facil e rapida
+communicação todos os povos do globo, estabeleceram novas condições de
+existencia social, que hão de operar forçosamente, em maior ou menor
+espaço de tempo, uma transformação completa, não só no modo de viver,
+mas tambem na organisação da sociedade; quando a attenção dos homens
+pensadores começava a fixar-se na grande revolução prevista, e a meditar
+nos difficeis problemas que ella em breve deveria offerecer á resolução
+dos philosophos e dos estadistas; quando a attenção geral dos povos,
+desapegada das tradições do passado, se absorvia inteiramente na
+contemplação do presente, admirando as maravilhas do progresso, anciando
+saciar-se dos gosos, que elle gera com mão fecunda e prodiga, o romance,
+deixando tambem em repouso os archivos da historia, começou a
+inspirar-se nas scenas da vida actual. E ao passo que retratava a
+sociedade, dando colorido e relevo a cada uma das suas feições, lançava
+á arena da discussão as novas e grandes questões sociaes.
+
+Porém, partindo do mesmo ponto, movidos por egual impulso, os
+romancistas contemporaneos, que se dedicaram a descrever os costumes e
+praticas da actualidade, dividiram-se em duas turmas, seguindo caminho
+differente. Uns, impellidos por uma idêa elevada e generosa, pintaram
+com côres negras, mas verdadeiras, todas as angustias e miserias da
+sociedade moderna, estudando-lhes as causas, apontando os perigos
+futuros, fazendo avultar os defeitos e defficiencias das instituições;
+chamando, em fim, a solicitude dos poderes publicos para o horrivel
+cancro, que vae corroendo o corpo social. Á frente d'estes illustrados
+romancistas colocára-se Eugenio Sue.
+
+Infelizmente, muitos discipulos d'esta eschola, esquecendo ou
+despresando os intuitos philosophicos do mestre, trataram sómente de
+deleitar; e reconhecendo as tendencias do seculo para os gosos sensuaes,
+e para os grandes sobresaltos do espirito e do coração, puzeram em acção
+todas as paixões violentas, e todos os instinctos ferozes da humanidade.
+Compozeram d'est'arte, é bem certo, quadros grandiosos, cheios de vida e
+de animação, scintilantes de fogo e de energia, em que se succedem uns
+aos outros os episodios dramaticos, e as scenas tragicas. Mas, atravez
+das galas da poesia, com que os adornaram, e sob o brilho seductor dos
+ouropeis com que se esforçam por atenuar, senão santificar, a hidiondez
+de torpezas e devassidões repugnantes, transparece o virus da corrupção
+da alma, ministrado em taça de ouro á mocidade inexperiente e ávida de
+commoções fortes.
+
+A outra turma de romancistas tem trilhado mais nobre senda, no
+desempenho de uma missão civilisadora e santa.
+
+Os seus romances não deslumbrarão, talvez, o espirito com o esplendor
+das imagens; não o sobresaltarão com a rapida successão de casos
+extraordinarios; não subjugam a razão, nem expõem o coração a contínuo
+tremor com o longo encadeamento de commoções violentas.
+
+Como o prado, que, sob o sol da primavera, se veste de verdores, que vae
+matisando pouco a pouco de flores singelas, mas rescendendo de suaves
+aromas, resplandecentes e encantadoras pela viveza e variedade das
+côres; e que no inverno troca as alegrias em tristezas, as galas em
+miseria, para outra vez folgar e enriquecer-se sob o novo sceptro de
+Flora; assim nas producções d'estes romancistas alternam-se as scenas
+meigas e suaves da familia com os tristes acasos da sorte, com as
+tribulações da desventura, emfim, com as tempestades da vida. N'estes
+quadros avultam tambem os contrastes, como na natureza; os toques de luz
+e de sombra, colhidos nas vicissitudes da fortuna e no tumultuar das
+paixões. Figuram ahi alguns dos vicios e crimes, que são no mundo moral
+a imagem das forças destruidoras no mundo physico. Mas apresentam-se,
+não com o semblante vellado, embora por véo transparente, que mal deixa
+distinguir-lhes a fealdade; não com as feições embellesadas e
+disfarçadas com arrebiques e louçainhas, que fascinem e lhes conciliem
+as sympathias das almas ingenuas e credulas, mas sim taes quaes são, na
+sua completa nudez, em toda a sua asquerosa deformidade.
+
+Finalmente, d'esta lucta entre o bem e o mal, figurada n'estes romances,
+sáe a virtude ou o arrependimento coroado pela felicidade, e o crime ou
+o vicio punido pela justiça dos homens, ou pela de Deos, que dos
+proprios vicios e crimes fez gerar o castigo que os pune na terra.
+
+A esta turma de romancistas, a que pertence a eschola allemã, veiu
+associar-se uma outra, ainda mais singela e modesta, talvez, mas tambem
+guiada pelo mesmo impulso generoso de deleitar, moralisando. Compõe-se
+esta de um certo numero de auctores de contos e tradições populares,
+entre os quaes occupa logar de honra D. Antonio de Trueba.
+
+
+V
+
+Nascido na Biscaya em 1821, uma das provincias da romantica e
+cavalleirosa Hespanha, tão original no curso e transformações do seu
+longo viver; nascido na Biscaya, repetimos, onde se tem conservado mais
+arraigado o respeito ás tradições do passado, o amor aos antigos fóros
+populares, e o apego aos velhos costumes, D. Antonio de Trueba não podia
+eximir-se a essa triplice e poderosa influencia. Bebendo com o leite
+aquelle respeito; bafejado desde o berço por aquelle amor; preso
+áquelles costumes pelas mais doces recordações da infancia, o seu
+espirito difficilmente poderia deixar de revoltar-se contra o progresso,
+que tudo nivela, abatendo o que era grande, e exaltando o que era
+humilde; contra as idêas do seculo, que mofam das crenças do passado;
+que despojam de poesia as tradições; que parecem tender a materialisar a
+vida á força de commodidades e gosos, creados para deleite dos sentidos.
+
+Resuscitando, pois, as tradições das antigas eras, empenhou-se em fazer
+reviver, com todo o brilho d'outr'ora, as santas crenças de seus maiores.
+
+Pondo em parallelo, em alguns dos seus contos populares, os costumes da
+velha sociedade com os que se vão modificando e surgindo no meio do
+desenvolvimento do espirito humano, insurge-se, é certo, contra o
+progresso, e, apontando para a corrupção que elle gera e alimenta, deixa
+expandir-se a sua indignação.
+
+Mas, quando se pensa em que o auctor d'esses contos e tradições foi
+creado no remanso e singeleza da vida campestre; quando se considera em
+que os dias da infancia e da adolescencia se lhe deslisaram tranquillos
+e alegres no seio da familia, sem que viessem perturbar-lhe o repouso,
+desvairar-lhe as idêas e corromper-lhe o coração, o bulicio das cidades,
+o tumultuar das paixões e a seducção dos vicios; quando se reflecte em
+que os verdores, e as suaves harmonias, e os contrastes pittorescos do
+seu valle natal lhe infundiram n'alma a doce poesia da natureza; e que
+os carinhos e maximas moraes de uma extremosa mãe e virtuosa perceptora
+lhe fizeram o espirito meigo, franco, recto e eminentemente religioso;
+quando se attenta em tudo isto, comprehende-se, acha-se natural, e
+desculpa-se aquella insurreição contra os progressos do seculo.
+
+Qual mimosa sensitiva, que se contráe e desfallece ao simples contacto
+da mão indiscreta ou bemfazeja, como se a ferisse duro e traiçoeiro
+golpe; assim Trueba se confrangiu logo que, transpondo as montanhas do
+seu pacifico valle, e achando-se de improviso face a face com a
+sociedade, que desconhecia, viu, como que offuscando o brilho das
+grandes idêas do progresso, os sentimentos nobres e patrioticos, e as
+aspirações elevadas e generosas do coração humano, luctando por toda a
+parte, e quasi sempre vencidas pela ambição do poder e das honras, pela
+cubiça do ouro, pela sêde dos gosos e dos prazeres, pela fortuna dos
+mais atrevidos, e pela inveja dos menos felizes. Irritou-se, vendo as
+conveniencias partidarias e individuaes supplantarem muitas vezes o
+interesse publico; vendo as leis severas e inexoraveis para com os
+fracos e desvalidos, e frouxas e flexiveis para com os poderosos ou
+protegidos; vendo elevaram-se homens, que a falta de merito condemnava á
+obscuridade, emquanto ficavam esquecidos e occultos, nas sombras da
+modestia e da humildade, muitos cidadãos dos mais prestantes; ouvindo
+apregoar maximas e alardear virtudes e serviços, que os exemplos e os
+factos desmentiam; indignou-se, reconhecendo no curso da civilisação as
+tendencias do seculo para converter nos gelos da descrença e do egoismo
+o ardor da fé, a luz benefica da esperança, o fogo santo da abnegação,
+do amor do proximo e da patria!
+
+Na confrontação do presente com o passado o seu juizo não podia deixar
+de ser desfavoravel ao primeiro, porque tudo o que via e ouvia,
+annuviando-lhe os verdadeiros resplendores do progresso, contrariava as
+suas idêas e os seus habitos, e derrocava pela base os poeticos e
+formosos castellos, que phantaseara nos sonhos dourados da adolescencia.
+
+E a sua rapida passagem da estreiteza de apertado valle, segregado por
+assim dizer, do resto da Hespanha, para a amplidão dos grandes centros
+industriaes, para o seio da turbulenta e voluptuosa Madrid,
+offuscando-lhe a vista, como se sahira de improviso das trevas para a
+claridade, forçosamente lhe havia de obstar a que visse n'essa anarchia
+das ideias, n'esse desenfreamento das paixões, n'essa relaxação dos
+costumes, emfim, n'essa corrupção moral, que tanto o escandalisavam, as
+consequencias naturaes da grande e inevitavel revolução social, que
+estamos presenceando.
+
+Não lhe deixaria attentar em que este acontecimento é o resultado dos
+maravilhosos descobrimentos do seculo XIX, os quaes acabando com as
+distancias, pondo em intimas e faceis relações todos os povos do globo,
+e na presença uns dos outros todos os cultos religiosos, as locubrações
+dos sabios de todo o mundo, todos os productos da terra e da industria
+humana, haviam de produzir, por effeito de uma força irresistivel, o
+duro embate das velhas idêas e dos interesses á sombra d'ellas creados,
+com as idêas e interesses, que os progressos humanitarios iam gerando e
+desenvolvendo. Não lhe permittiria reconhecer que d'aquelle embate havia
+de nascer a lucta a todo o transe; da lucta o exacerbamento das paixões;
+d'estas o affrouxamento dos vinculos sociaes e dos proprios laços de
+familia; e de tudo isto a desordem nas idêas e a corrupção geral nos
+costumes.
+
+É este o triste apanagio das revoluções, que tendem, não a derrubar um
+throno, ou a mudar uma ou outra instituição, mas sim a assentar em bases
+inteiramente novas o edificio social. A nossa época é, infelizmente, um
+d'esses periodos de desmoronamento, e por conseguinte de transição, que
+apparecem de seculos a seculos na historia geral das nações, como
+gigantescos e temerosos marcos, erguidos no caminho por onde a
+Providencia impelle a humanidade, para assignalarem e separarem as
+grandes phases da civilisação.
+
+Portanto essa condemnação dos progressos do seculo, que apparece em
+alguns dos contos de Trueba, em rasão dos motivos que lhe dão origem,
+não deslustra, antes pelo contrario honra o seu coração bondoso e o seu
+caracter justo e leal. Mas se alguem, mais severo, ou menos attento ao
+que expendi em seu abono, quizer lançar-lhe em rosto as suas opiniões
+reaccionarias, leve-lhe em conta a belleza dos quadros que traça com
+suavissimo pincel; a singelesa e elegancia do estylo, com que dá relevo
+e vida ás meigas scenas de familia e aos risonhos paineis da natureza,
+e, finalmente, a moralidade que ressumbra de todas as paginas dos seus
+livros.
+
+
+VI
+
+D'este juizo das obras de Trueba, que se me affigura imparcial, deduz-se
+naturalmente um pensamento de louvor a quem promove entre nós a
+vulgarisação d'estas boas producções. Em uma quadra, como esta, em que a
+litteratura portugueza está sendo a todo o momento, não enriquecida, mas
+sim invadida por traducções de romances que, na maior parte dos casos,
+não a honram pela pureza da linguagem, e a desauthorisam pela
+licenciosidade dos costumes, que põem em seductora exposição; presta o
+traductor um bom serviço ás letras e á moral publica.
+
+Auctores como Trueba illustram e ennobrecem a litteratura que os adopta
+e perfilha. Livros, como os seus, podem ser offerecidos á mocidade por
+leaes conselheiros e guias seguros nos escabrosos caminhos da vida.
+
+Na versão prestou o traductor verdadeiro culto aos preceitos e
+exigencias da lingua materna, conservando aos pensamentos e ás imagens
+originaes toda a sua elevação e vigor, todo o seu brilho e poesia.
+
+A litteratura hespanhola é tão rica e variada em todos os ramos do saber
+humano, quão mal conhecida, infelizmente, em o nosso paiz, n'estes
+tempos modernos. Desde o principio d'este seculo temo-nos quasi
+restringido a cultivar a litteratura franceza, dedicando-lhe a nossa
+exclusiva admiração, em prejuizo de outras não menos opulentas e
+brilhantes. Por conseguinte tambem por este lado o distincto traductor
+dos contos de Trueba bemmerece dos seus concidadãos. O seu talento, já
+provado nas lides de escriptor publico, apresenta agora n'este ensaio a
+amostra do que vale no difficil genero, que encetou; difficilimo, sem
+duvida, quando se quer verter em linguagem de lei os pensamentos de
+auctor estranho com toda a belleza e vigor da inspiração original.
+
+ I. DE VILHENA BARBOSA.
+
+
+
+
+CONTOS DE TRUEBA
+
+
+
+
+NOSTALGIA--O MADEIRO DA FORCA--A NECESSIDADE--A PORTARIA DO CEU--O
+PRESTE JOÃO DAS INDIAS
+
+
+
+
+NOSTALGIA
+
+
+I
+
+Mães que tendes filhos e que fundaes a sua felicidade e a vossa em
+mandal-os para Madrid ou para a America; lêde este conto, que para vós o
+escrevo.
+
+Não penseis que é invenção minha o que vou narrar-vos; começa esta
+historia no dia 10 de novembro de 1836, época em que Madrid era, _peor_
+e _melhor_ do que hoje. Quem não entender o que deixo dito lembre-se do
+que succede com a baixella de prata, que, quanto mais a esfregam, mais
+brilha e menos peza.
+
+Havia em Madrid um frio intensissimo: nevára na véspera, e antes que a
+neve tivesse tido tempo de derreter nas ruas, sobreviera uma geada
+fortissima, o que junto ao vento de Madrid, que mata um homem e não
+apaga um _candil_, dava á temperatura d'aquella heroica cidade o
+caracter e a temperatura da Siberia.
+
+D. João Quijano, rico banqueiro que morava na rua de Toledo, estava no
+seu escriptorio, situado nos baixos da casa, com seu sobrinho D. Lucas,
+e n'uma sala contigua trabalhavam em silencio, sentados ás suas
+carteiras, dois caixeiros encarregados da contabilidade e da
+correspondencia. O gabinete do banqueiro tinha um postigo com vidraça
+que dava para o escriptorio geral, e pelo qual o tio e o sobrinho
+espreitavam amiudadas vezes, no intuito de se certificarem se os
+caixeiros cumpriam as suas obrigações; phrase de que D. Lucas se servia
+para os fazer trabalhar, quando os ouvia fallar em cousas alheias aos
+assumptos commerciaes da casa.
+
+D. João era homem de cincoenta annos, pouco mais ou menos, córado,
+robusto, de nariz grande e cabelleira tão bem arranjada e composta, que
+os proprios caixeiros não teriam dado por ella, se não fôra o genio de
+sua mulher D. Joanna, que, nos seus accessos de cólera, lh'o lançava em
+rosto, chamando-lhe «tio _cabelleira_».
+
+D. Lucas devia ter os seus vinte oito a trinta annos; era pouco mais
+alto que um cão sentado, e nem a sua phisionomia, nem as suas palavras
+revelavam talento ou bondade de coração. Não obstante isso tolerava-lhe
+o tio os defeitos, e até sentia estima por elle, não só por ser
+empregado antigo da casa, mas tambem porque podia dizer-se que era D.
+Lucas quem carregava com todo o peso do estabelecimento.
+
+--Veja lá, tio, disse D. Lucas a D. João, levantando os olhos para um
+relogio, que estava collocado na parede, em frente da escrevaninha do
+banqueiro,--se tem de ir á Bolsa, não se descuide que são quasi duas horas.
+
+--Parece-me que não vou lá hoje, respondeu D. João; quem ha de saír de
+casa por um tempo d'estes? A vida é curta, e se eu morrer... tocam os
+sinos a defuncto, e está tudo acabado... Demais deve estar por ahi a
+chegar o pequeno e tenho desejos de o vêr. Recebi pelo correio uma carta
+de meu irmão Martinho, na qual este me diz que o rapaz saíu de lá no
+primeiro do mez, na carroça de Chomin, e segundo o meu calculo, temol-o
+por ahi hoje. Talvez não fosse mau mandar o Toribio á estalagem.
+
+--Não sei para que; quando elle chegar, cá virá ter.
+
+--O pobre pequeno deve vir tolhido de frio.
+
+--Não lhe dê isso cuidado; não inspira compaixão quem vem como elle para
+Madrid, comer bom pão e boa carne, em vez de comer brôa e batatas n'uma
+aldeia da Biscaya.
+
+--Pois apesar d'isso estou bem certo de que preferiria encontrar hoje,
+ao apear-se da carroça, a cosinha de seus pães, com a sua priguiceira e
+um bom fogo de rama de pinheiro, a entrar n'esta habitação ricamente
+mobilada e com chaminé á franceza.
+
+--Parece-lhe que o empreguemos em compras e recados?
+
+--Não foi essa por certo a ideia de seus paes quando resolveram mandal-o
+para Madrid. É preciso collocal-o no escriptorio a fim de que, pouco a
+pouco, se vá instruindo e orientando no negocio.
+
+--Pouco a pouco! Verá como antes de um mez o faço saber mais do que
+Merlin. _A letra com sangue entra_...
+
+--Não concordo comtigo, Lucas. Toma conta, não lhe ponhas sequer a mão;
+não quero que aconteça com este o que aconteceu com outros, que á força
+de maus tratos, os entonteceste, e tive que os mandar para a terra...
+
+Dispunha-se D. Lucas a tomar a defesa do seu barbaro systema d'educação,
+quando tocou a campainha;--calaram-se de subito, tio e sobrinho,
+applicando o ouvido na direcção do portal.
+
+--Elle ahi está! exclamaram ambos a um tempo, ao ouvirem no patamar a
+voz do pequeno que saudava o creado que fôra abrir-lhe a porta.
+
+--Senhor, disse este com sorriso d'escarneo, apparecendo á entrada do
+escriptorio, está aqui Chomin com o _rocim-chegado_.
+
+D. João franziu as sobrancelhas como descontente de que o creado se
+atrevesse a proferir o estupido equivoco que vae escripto em italico, ao
+passo que o sobrinho soltou uma estrondosa gargalhada em honra da graça
+de Toribio, que era um asturiano tonto com pretenções a faceto:
+
+--Que entrem, respondeu D. João.
+
+Com effeito Chomin, que era um dos recoveiros das provincias
+Vascongadas, entrou no escriptorio, acompanhado d'um menino de doze a
+treze annos.
+
+
+II
+
+Não se tinha enganado D. João, suppondo que a pobre creança chegaria
+gelada.
+
+Angelo (era assim que se chamava o novo caixeiro dos snrs. Quijano e
+Sobrinho) estava a tiritar com frio; tinha as mãos e a cara lividas e os
+seus olhos indicavam que, na noite antecedente, em vez de se terem
+fechado para o somno, se tinham aberto para o pranto. O pobre rapazinho
+parou á porta do escriptorio, com o chapéu na mão, de cabeça baixa, e
+mal pôde articular um cumprimento.
+
+--Ora aqui o tem, disse Chomin, depois das saudações do estylo. Desde
+que saímos da aldeia, ainda não cessou de chorar com saudades das suas
+vaccas e das suas cabras.
+
+--Pobre pequeno! exclamou D. João, afagando Angelo.
+
+--Deixe lá, atalhou o almocreve, que o pão trigo de Madrid faz esquecer
+de prompto a brôa de Biscaya. Bem diz o provérbio que «_de Madrid só
+para o céo_».
+
+D. João acercou-se de Angelo, e disse-lhe, correndo-lhe a mão pela cabeça:
+
+--Vamos, homem, então, que tal achas Madrid? Parece-te melhor que a tua
+aldeia?
+
+--Não, senhor, respondeu o pequeno com os olhos arrasados de lagrimas.
+
+--Dizes bem, dizes! exclamou D. João, pondo-se a rir e fazendo uma nova
+caricia ao rapazinho. Devem ser assim os homens; a melhor terra é sempre
+aquella que nos viu nascer.
+
+--Sim, sim, ria-se tio, disse D. Lucas, fazendo um gesto de enfado;
+ria-se da sandice d'esse bruto. Não ha duvida, o rapaz promette! Mas
+deixa estar que caíste em mãos de quem te sabe ensinar!
+
+--Não se afflija, snr. D. Lucas; o _rapazelho_ põe-se fino com um bom
+par de açoites todos os dias.
+
+--Isso fica por minha conta, respondeu D. Lucas.
+
+--Valha-me Deus; não sejam assim, replicou o banqueiro; que admira que o
+pequeno tenha saudades de seus paes, se nunca se separou d'elles? E
+accrescentou, dirigindo-se a Angelo: deves trazer vontade de comer?
+
+--Não, senhor, respondeu o menino, lavado em lagrimas.
+
+--Não chores, disse D. João; chega-te para o lume e aquece-te, emquanto
+não chamam para o jantar, e logo tomarás conta do teu serviço e verás
+como antes de um anno te tornas um verdadeiro negociante.
+
+O pequeno approximou-se da chaminé com o chapéu na mão; mas como o
+cegavam as lagrimas, tropeçou n'uma cadeira e lançou por terra uns
+papeis que estavam sobre ella.
+
+--Desastrado! não vês por onde andas? exclamou D. Lucas, agarrando-lhe
+n'um braço e sacudindo-o com violencia.
+
+De repente effectuou-se no animo do menino uma reacção inesperada. Elle
+que, um momento antes, mal se atrevia a levantar os olhos, ou a
+pronunciar uma palavra, ergueu a fronte com altivez, e virando-se para
+D. Lucas, disse-lhe:
+
+--Expulse-se-me de sua casa, mas não me maltrate. Aqui maltratam-me,
+emquanto na minha aldeia me choram. Como quer então o senhor que eu
+goste mais d'esta terra do que da minha?! E accrescentou, dirigindo-se
+ao almocreve:
+
+--Já não quero aqui ficar; volto comsigo para a Biscaya.
+
+Estas palavras, bem longe de commoverem D. Lucas e o almocreve, fizeram
+rir este e encolerisar aquelle, que murmurou, levantando o punho fechado
+sobre a cabeça da creança:
+
+--Se fosses meu filho abria-te a cabeça com um murro!
+
+D. João, porém, saíu em defeza do pobre rapaz, arredando d'elle com
+violencia seu sobrinho, e exclamando:
+
+--Lucas, já te disse que não consinto que lhe ponhas a mão. Se o achas
+rude e acanhado, se está commovido e saudoso, recorda-te de como eras
+tambem, e do modo como te apresentaste quanto vieste para Madrid. E
+Vm.^ce, snr. carroceiro, fique sabendo que não se tratam os racionaes
+como as mulas.
+
+--Não faça caso, snr. D. João; isto em mim não passa de um gracejo, e
+senão elle que diga a maneira como eu o tratei pelo caminho.
+
+--Carregando-me de lenços de contrabando! O que me valeu foi não me
+revistarem á entrada das portas; do contrario estaria a estas horas na
+cadeia!
+
+--Não está mau modo de cuidar da innocente creança, que foi confiada á
+sua guarda! exclamou D. João, olhando com indignação para o almocreve.
+Retire-se já da minha presença, que me estão dando tentações de dar uma
+parte de si á policia.
+
+--Ora, snr. D. João!... Então o senhor faz caso do que dizem creanças?
+
+--Já lhe disse que se retire da minha presença.
+
+--Está bem, snr. D. João; mas...
+
+--Não ha aqui mas, nem meio mas. Tenho dito, ponha-se no andar da rua.
+
+O carroceiro não se atreveu a replicar e retirou-se murmurando não sei
+que insolencia.
+
+D. João arrastou uma cadeira para junto do fogão, e sentou-se ao lado de
+Angelo que tinha cessado de chorar. O pobre pequeno estava já um tanto
+mais satisfeito por ver que nem todos n'aquella casa o tratavam com
+aspereza, e que se havia ali quem o maltratasse, tambem tinha quem o
+defendesse e lhe proporcionasse consolações e affagos, que lhe faziam
+lembrar os que deixára no lar domestico.
+
+D. Lucas despeitado por vêr que o tio tomava as dôres pelo
+recem-chegado, a ponto de o reprehender a elle pela sua falta de
+humanidade, tinha-se retirado para o escriptorio, e por conseguinte
+ficaram sós, Angelo e D. João.
+
+Era este natural da aldeia do pequeno, e posto tivesse ido para a côrte
+de tenra edade, e absorvessem de ordinario todos os seus pensamentos e
+acções os assumptos commerciaes, nem por isso havia renegado o paiz
+natal, nem esquecido os seus parentes.
+
+--Vamos, Angelo, disse elle ao rapazinho com modo carinhoso, dando-lhe
+uma palmada no hombro; conversemos um bocado ácerca da nossa aldeia;
+venham de lá algumas noticias frescas d'aquella boa gente. Então de quem
+te despediste tu antes de partir?
+
+--Despedi-me de todos os meus parentes e vizinhos.
+
+--Muito bem! N'esse caso havias de vêr meu irmão, não é verdade?
+
+--Sim, senhor, recommendou-me que lhe désse muitas lembranças, e bem
+assim á senhora D. Joanna, e a D. Lucas... mas a este é que eu as não dou.
+
+--Não sei porque não, filho.
+
+--Porque me trata muito mal.
+
+--Não faças caso, homem. Com que então deram-te lembranças para mim?
+
+--Sim, senhor, e especialmente o snr. abbade.
+
+--Deve estar muito velho, o bom do padre! coitado!
+
+--Não, senhor; se o visse andar por aquelles montes ficava admirado.
+Ninguem dirá que tem mais de quarenta annos. Como não ha, lá na aldeia,
+quem não reze a Deus todos os dias para que lhe dê saude, não tem nem
+uma dôr de cabeça.
+
+O colloquio de D. João e Angelo, interessantissimo para ambos elles, foi
+interrompido logo em começo pela entrada do asturiano, que tinha chamado
+ao menino _rocim-chegado_.
+
+--Senhor, disse o creado, manda dizer a senhora que está a _mesa na sôpa_.
+
+O banqueiro riu-se d'esta troca de palavras e encaminhou-se para o
+primeiro andar.
+
+
+III
+
+Não estava a mesa na sôpa, mas estava a sôpa na mesa, e D. Joanna, a
+esposa de Quijano, aguardava com impaciencia a chegada do marido, não
+porque tivesse o estomago vazio, mas sim porque o seu caracter irascivel
+e dominador não supportava que a fizessem esperar.
+
+D. Joanna, que entrára como creada e acabára por ser ama em casa de D.
+João Quijano, tinha o relogio atrazado, pois assegurava ter trinta
+annos, ao passo que a sua physionomia, e o que ainda é mais, a certidão
+do baptismo, lhe davam quarenta.
+
+Deter-me-hei pouco na descripção dos seus dotes physicos; direi apenas
+que as creadas, que despedia todas as semanas, a mimoseavam, ao descerem
+pela ultima vez as escadas, com os epithetos de: _dentes de cavallo_,
+_estafermo_, e _olhos de gato_.
+
+Quanto ao moral era D. Joanna a personificação da antithese;
+alternavam-se n'ella a vaidade e a modestia, a avareza e a liberalidade,
+a crueldade e a compaixão, a elegancia e a falta de gosto no vestir.
+
+Se um dia fazia gala, em uma reunião de pessoas distinctas, de não ter
+gasto até a edade de quatorze annos, outro calçado que não fosse o do
+seu _proprio coiro_, despedia, no dia seguinte, uma creada por a pobre
+rapariga pedir, na sua innocencia, ao carteiro, que lhe lêsse uma carta
+do seu noivo, por isso que sua ama não sabia lêr; agora despedia um
+mendigo com a seguinte blasphemia: «Vá pedir a S. Bernardino», que na
+bôca dos que podem e não querem dar, substitue a _supplica_--«queira
+perdoar, irmãosinho, não póde ser agora»--que costumam usar os que
+querem e não podem; e logo, sabendo que qualquer vizinho estava doente e
+precisado de meios, era muito capaz de lhe mandar uma boa esmola. Pela
+manhã dava uma _tarêa_ ao cão por este ter mordido o gato, e de tarde
+dava outra ao gato por ter arranhado o cão; na quarta feira ia passear
+ao Prado, de vestido de velludo, e na quinta apresentava-se no mesmo
+sitio de vestido de chita.
+
+Se sou tão minucioso e até prolixo, é porque não quero que alguem
+critique e censure no pintor as inconsequencias do original.
+
+D. Joanna dominava por tal arte o marido, que a vontade d'elle estava
+sempre subordinada á sua. D. João tremia diante d'um gesto ameaçador da
+mulher, e por mais d'uma vez teve ella um accesso medonho de cólera só
+porque o honrado banqueiro entrou em casa ás dez horas em vez de se
+recolher ás nove.
+
+--Ora, com effeito, disse D. Joanna, quando D. João entrou na sala do
+jantar, já julgava que seria preciso metter-lhe empenhos, e dirigir-lhe
+algum requerimento para que o senhor se resolvesse a vir jantar. Se se
+persuade que eu estou para aturar as suas grosserias, está muito enganado.
+
+--Sempre tens muito mau genio, Joanninha! disse o banqueiro, esfregando
+as mãos e com um sorriso affavel nos labios.
+
+Sentou-se D. João á mesa, encheu um prato de sopa e passou-o a sua
+mulher; esta porém empurrou-o com tal violencia, que todo o seu conteúdo
+se entornou na toalha.
+
+--Tambem tenho mãos para me servir.
+
+--Como gostares mais, Joanninha, disse D. João humildemente.
+
+Principiaram a jantar, e por mais que o banqueiro dirigisse a palavra a
+sua mulher, em tom agradavel e risonho, não foi possivel quebrar-lhe o
+silencio.
+
+Por fim resolveu-se D. Joanna a fallar, perguntando ao marido:
+
+--Então que negocios tão importantes foram esses que o obrigaram a
+deixar-me esperar por si meia hora?
+
+--Meia hora! Não sei como não disseste uma, filha!
+
+--Faça o favor de me não contradizer! exclamou D. Joanna, com um gesto
+terrivel. Eu fallo mais verdade do que você e toda a sua geração.
+
+--Então! Não vale a pena alterares-te por tão pouco! A dizer a verdade,
+nem por isso eram lá muito grandes os negocios que me prendiam;--estava
+conversando com o pequeno.
+
+--Com que pequeno?
+
+--Com Angelo.
+
+--Pois elle já chegou?
+
+--Chegou, sim. Ainda o não sabias?
+
+--Não, senhor, ninguem me disse nada. N'esta casa sou eu sempre a
+_ultima palavra do credo_... Pois não devia ser assim, e d'hoje para o
+futuro, eu lhe protesto que não tornará a acontecer uma coisa d'estas,
+porque, no fim de contas, eu é que sou a dona d'esta casa; entende o
+senhor?
+
+E dizendo isto, D. Joanna atirou o trinchador com tal furia, que fez um
+prato em pedaços.
+
+--Oh! menina!... por quem és, Joanninha.
+
+--Deixe-me... não me diga uma palavra, quando não...
+
+O banqueiro fez um movimento para traz, porque a mulher tinha pegado
+n'uma faca e agitava-a convulsivamente.
+
+A final o silencio e a humildade do marido desarmaram aquella megera.
+
+--Então, quando veiu o pequeno? perguntou ella.
+
+--Haviam de ser duas horas, filhinha; eu suppunha que o creado t'o teria
+dito.
+
+--Não me disse nada. Aquelle Toribio é um bruto, que ha de ir hoje mesmo
+para o meio da rua. E que me diz tambem ao mono do rapaz, que não soube
+subir para me vir cumprimentar?!
+
+--Bem vês que elle, coitado, não sabe...
+
+--Pois tem obrigação de saber que sou eu a dona d'esta casa.
+
+--Em primeiro logar o pobre pequeno chegou meio morto de frio, e depois
+aquelle excommungado de Lucas começou a embirrar com elle, de modo que a
+creança ficou logo sem saber de que freguezia era.
+
+--Eu me encarrego de o pôr fino com umas correias que alí tenho.
+
+--Não digas isso, Joanninha; para o pôr fino, como tu dizes, requerem-se
+carinhos e não correias. Já disse a Lucas, que comigo tem de se haver,
+se lhe puzer a mão. A ti não é preciso repetir a mesma coisa, porque
+tens melhor coração do que o meu sobrinho, e estou até convencido de que
+has de ser para Angelo uma segunda mãe. Afianço-te que está morto por te
+vêr; a primeira coisa que fez, quando chegou, foi perguntar por ti.
+
+Esta mentira do banqueiro foi o bastante para reconciliar Angelo com D.
+Joanna, que disse:
+
+--Mas o que faz essa creatura no escriptorio? Porque o não mandaste
+subir, logo que chegou, para tomar alguma coisa? Provavelmente está
+ainda em jejum, molhado, cheio de frio...
+
+--Nada, não, elle disse-me que não tinha vontade de comer; e quanto a
+aquecer-se, está no meu gabinete, sentado ao fogão.
+
+--E porque foi, então, que Lucas o tratou mal?
+
+--Que queres? coisas d'elle! Por ter dito que gostava mais da sua terra
+do que de Madrid.
+
+--Santo Deus! Pois isso era motivo para ralhar com a creança? Aqui estou
+eu a quem, graças a Deus, não falta nada, e no entanto, morro pela minha
+aldeia...--Toribio! accrescentou D. Joanna, chamando pelo creado dos
+trocadilhos, dize ao rapazinho, que está no gabinete do senhor, que suba.
+
+--Quem, o _rocim-chegado_? perguntou o asturiano com um sorriso malicioso.
+
+--Atrevido! exclamaram, a um tempo, D. Joanna e o banqueiro; se tornares
+a divertir-te á custa d'Angelo, vaes immediatamente para o andar da rua.
+
+O asturiano baixou a cabeça, pouco satisfeito com o exito do seu
+gracejo, e um instante depois subia com o pequeno.
+
+Angelo saudou D. Joanna com bastante desembaraço, e depois que ella lhe
+chegou um prato de bolos, acabou de perder todo o seu acanhamento, e
+respondeu com vivacidade ás mil perguntas que por largo espaço de tempo
+lhe dirigiram os dois esposos.
+
+--Tens muitas saudades de tua mãe? lhe perguntou D. Joanna.
+
+--Muitissimas, respondeu o pequeno.
+
+--Pois, se fôres bom rapaz, hei-de estimar-te e cuidar tanto de ti, como
+se fôra ella propria.
+
+--Muito obrigado, minha senhora!... disse o menino; e arrazaram-se-lhe
+os olhos de lagrimas... lagrimas d'alegria e de agradecimento.
+
+O banqueiro e sua mulher levantaram-se da mesa.
+
+--Deixa-te estar aqui, filho, disse D. Joanna a Angelo; espera que vaes
+tu agora tambem comer e os teus companheiros.
+
+
+IV
+
+Pouco depois entraram na sala do jantar D. Lucas e os caixeiros e
+sentaram-se á mesa. Angelo porém conservou-se n'um canto, de cabeça
+baixa, receioso, e sem se atrever a levantar os olhos para D. Lucas.
+
+--Chega-te para a mesa, selvagem, disse-lhe o sobrinho de Quijano.
+Parece-me que seria melhor ires outra vez guardar cabras lá para a tua
+terra.
+
+Alegrou-se o menino e sentiu-se ao mesmo tempo ferido no coração, ao
+ouvir estas palavras; regosijou-o a lembrança de voltar para a sua
+aldeia e enluctou-se-lhe a alma com o novo insulto que acabava de lhe
+ser dirigido.
+
+Approximou-se timidamente da mesa, mas não se chegou tanto, como devia,
+segundo a opinião de D. Lucas; este dando-lhe um murro nas costas exclamou:
+
+--Chega-te mais, bruto! A culpa tem quem não deixa ficar estes animaes a
+pastar no campo, ou os não faz comer, quando muito, n'uma manjadoura em
+logar de mesa!
+
+Todos os caixeiros do banqueiro desataram a rir em honra do chiste de D.
+Lucas.
+
+O pobre Angelo derramava entretanto uma torrente de lagrimas, e
+comparava as caricias da sua familia com aquellas offensas barbaras e
+grosseiras.
+
+--Então, comes ou não comes? perguntou D. Lucas.
+
+--Não tenho vontade, respondeu Angelo.
+
+--Tanto melhor; d'esse modo não corres perigo de agarrar alguma
+indigestão, e hão de abater essas bochechas de _frade Bernardo_.
+
+Por unica resposta continuou Angelo a chorar e a suspirar pelos paes,
+pelos irmãos, pelos seus companheiros d'infancia e pelas queridas
+montanhas de Biscaya, onde até ali tinha vivido tão livre, tão estimado
+de todos e tão feliz!
+
+E os caixeiros de Quijano a escarnecerem-n'o, a rirem-se d'elle, sem a
+mais leve sombra de compaixão, como se a pobre creança fosse um corpo
+sem alma, como se a considerassem sem coração para sentir!
+
+É na verdade uma coisa que indigna e irrita as pessoas sensiveis, e que
+até revolta o animo, a falta d'humanidade com que são, de ordinario,
+tratados nos grandes centros, e particularmente em Madrid, os rapazes
+que para ali são mandados das aldeias!
+
+Chega uma pobre creança, que nunca saíu do seio da sua familia, onde, se
+a não cercavam riquezas e commodidades, lhe sobravam carinhos e ternos
+cuidados; chega ordinariamente cheia de frio, extenuada de fadiga,
+muitas vezes até com fome, e sempre saudosa e triste, e em logar de a
+confortarem e de lhe proporcionarem carinhos, de que necessita então
+mais do que nunca, todos a escarnecem, todos zombam da sua innocencia e
+da sua humildade, das suas lagrimas e da sua linguagem.
+
+Ai! não accuseis o auctor d'este livro de se entregar a falsas
+declamações; a justificação d'essas palavras conserva-a elle impressa na
+sua memoria propensa a recordar, e no intimo do seu coração sempre
+disposto a perdoar, para nunca mais saír d'ali.
+
+Durante a primeira tarde, que passou em casa de D. João Quijano, foi
+Angelo victima da selvageria, que estou condemnando. Abusaram
+indignamente da sua natural simplicidade e prudencia, obrigando-o a
+praticar um certo numero de coisas, que repugna enumerar; por ultimo
+fizeram-n'o persuadir de que todas as pessoas que entravam pela primeira
+vez em Madrid, careciam de ser pesadas a fim de pagarem uns certos
+direitos proporcionaes ao peso que tivessem.
+
+Puzeram-n'o em cima d'uma balança, e ali o conservaram por tanto tempo,
+que a pobre creança já tinha o corpo quasi desconjuntado; quando
+terminou aquella experiencia de martyrio, que faz lembrar os tormentos
+inventados por Diocleciano e Torquemada, teve elle de soffrer outro
+talvez mais doloroso ainda, qual o das mofas e zombarias dos seus
+verdugos, que desapiedadamente lhe retalhavam o coração!
+
+E os caixeiros do banqueiro, homens barbados, que, como taes, estavam
+constituidos na obrigação de proteger o fraco e de consolar o triste;
+que eram chamados a desempenhar graves e sagrados deveres na sociedade,
+mostravam-se contentes com a sua obra, e imaginavam-se, talvez, cheios
+de talento e de graça por haverem illudido e martyrisado uma creança,
+que, pela primeira vez na sua vida, vertia lagrimas de desespero, longe
+de seus paes que a idolatravam, e das queridas montanhas da sua patria!
+
+Tudo soffreu a pobre creatura em silencio; nem sequer lhe restou o
+linitivo de se queixar a D. João dos barbaros tratos de que foi victima;
+prohibiram-lh'o os seus verdugos com ameaças que lhe infundiram novo
+terror e novo desalento.
+
+
+V
+
+Dormia toda a familia de Quijano no andar nobre da casa, á excepção do
+caixeiro mais moderno e dos cães, que se acommodavam no pavimento
+terreo, destinado quasi exclusivamente ao escriptorio e suas dependencias.
+
+Os dois cães, Moiro e Pomba, dormiam no gabinete do banqueiro, que
+estava ricamente mobilado, ao passo que o caixeiro se alojava n'um
+quarto pequeno e humido, alumiado apenas por uma especie de fresta ou
+gateira aberta na parede, situado n'um patamar constantemente varrido
+pelo vento que entrava da rua e pelo que vinha d'um pateo que havia nas
+trazeiras da casa; a mobilia d'esse mesquinho aposento consistia toda em
+um leito de pinho com colchão, dois lençoes, um cobertor, um travesseiro
+e um lanceiro ou cabide tôsco para pendurar o fato e... grandes
+cortinados de teias d'aranha pendentes do tecto.
+
+Em tempo dormia o caixeiro mais moderno (rapaz de tempo) n'um quarto
+excellente do andar nobre; D. Lucas porém havia disposto as coisas por
+outra fórma, muito antes da época a que me refiro; tinha lá umas ideias
+_suas_ d'hygiene, em virtude das quaes dizia que muitas vezes os
+caixeiros adoeciam por passarem repentinamente d'uma vida incommoda para
+uma vida commoda, d'um colchão duro para um colchão molle, d'um quarto
+mau para um quarto bom.
+
+Quiz o tio oppôr-se áquella estupida innovação, ponderando que o que
+fazia adoecer os rapazes que entravam para sua casa não era senão o
+pessimo tratamento que recebiam de D. Lucas; este porém, taes argumentos
+empregou em defesa da sua theoria, que, para se livrar de polemicas,
+teve o pacifico banqueiro de concordar com elle. Os rapazes continuaram
+a adoecer, mas D. Lucas afirmava ao tio que tudo aquillo era fingimento
+e impostura para que os deixassem dormir no andar de cima, e o bom do
+banqueiro, que já não tinha pequena cruz nas teimas e ralhações de sua
+mulher, não quiz continuar em divergencia com o sobrinho, e acabou por
+admittir o seu barbaro systema penitenciario.
+
+Patrões e caixeiros ceavam quasi simultaneamente, sendo as sóbras da
+mesa dos primeiros servidas aos segundos. D. Lucas comia de ordinario
+com estes, excepto porém nos dias sanctificados e á noite, que fazia
+companhia aos tios. Não podia o sobrinho do banqueiro tolerar que os
+caixeiros fumassem, e não obstante tinha uma paixão desmedida pelo
+tabaco; mas diante do tio não era capaz de fumar, e isto explica-se
+facilmente. D. Lucas começou a fumar quando, pela sua pouca edade,
+carecia para o fazer de occultar-se do banqueiro; e mais tarde, quando
+já eram escusadas essas precauções, continuou a matar o vicio ás
+occultas, talvez por habito, e talvez tambem por não dar o seu braço a
+torcer, por isso que em tempo tinha jurado e tornado a jurar ao tio que
+bastava o cheiro do tabaco para o transtornar completamente.
+
+Erguia-se da mesa, ainda com o bocado na bocca, e entrando na cosinha,
+onde comiam os caixeiros, apertando o seu cigarro, que se não atrevia a
+accender, com medo de que na sala se presentisse o cheiro, pegava n'um
+castiçal e dava a voz de _deitar_ ao _rapaz de tempo_. Achava-se este
+ainda em meio da ceia, por isso que os outros lhe levavam sempre um
+prato de vantagem, mas D. Lucas estava desesperado por fumar, de maneira
+que o pobre rapaz não tinha outro remedio senão levantar-se da mesa, dar
+as boas noites a toda a familia, começando pelos caixeiros, e seguir a
+D. Lucas, que já pelas escadas abaixo tirava cada fumaça que valia bem
+um dobrão.
+
+Em quanto o pequeno se deitava, alumiado pela vela collocada no
+corredor, em frente da porta do quarto, acabava D. Lucas de fumar o seu
+cigarro, pegava no castiçal, fazia quatro festas aos cães, deitados n'um
+colchãosinho muito fôfo, e em seguida subia as escadas a fim de passar
+um bocado da noite na companhia dos donos da casa.
+
+Se D. João tivesse um hospede e este lhe perguntasse a razão porque o
+sobrinho descia ao escriptorio, ainda bem não tinha acabado de cear,
+seria esta a resposta do banqueiro:
+
+--Vae deitar os cães e o pequeno, dar uma vista d'olhos lá por baixo,
+vêr se está tudo bem fechado, e demora-se até poder trazer para cima a
+luz, porque aqui em Madrid é preciso muito cuidado com os fógos. Como
+estes rapazes são em geral muito _dorminhocos_ e Lucas entende que por
+nós gostarmos de palestrar o nosso bocado, não se segue que o pequeno
+esteja para ahi a turrar com somno, dá-se pressa em o levar para a cama.
+
+Succedeu a Angelo nem mais nem menos do que aos seus antecessores, com a
+differença, porém, de que á pobre creança lhe foi dobradamente mais
+custoso deitar-se a meia ração, por isso que todo o dia estivera fazendo
+cruzes na bocca, e quando o chamaram para a ceia tinha fome canina.
+
+Uma pessoa adulta, oppressa pelo peso de tão profundo desgosto como era
+o d'elle, teria olhado para a comida com repugnancia, ainda que
+estivesse a caír de fraqueza; mas é que uma pobre creança, se acontece
+perder o appetite por espaço d'algumas horas, prompto o recupera, por
+mais acerbos e cruciantes que sejam os seus desgostos.
+
+Angelo deitou-se e Dom Lucas despediu-se d'elle do seguinte modo:
+
+--Ora queira Deus que pela manhã não haja preguiça! Aqui não se trata só
+de comer e dormir. Ás seis horas _varrer_ bem o escriptorio.
+
+Dom Lucas, como temos visto, usava muito d'essa especie de linguagem
+impessoal inventada pelos lacaios com o fim de se esquivarem a dar
+tratamento.
+
+
+VI
+
+Angelo, com a solidão do seu aposento, deu-se por compensado da parte da
+ceia de que a maldade de D. Lucas o privára. Alí podia sequer chorar
+desafogadamente, podia rogar a Deus que o restituisse ás suas montanhas,
+invocar o nome de seus paes, e execrar até os seus algozes, sem que uma
+gargalhada de despreso, um dito humilhante ou uma pancada fossem
+perturbal-o nas suas cogitações.
+
+Ai! muito chorou a pobre creança, n'aquella noite!
+
+--Como é triste viver em Madrid! pensava elle. E dizerem na minha terra
+que--_de Madrid só para o céo!_--As pessoas que dizem isso de certo
+nunca estiveram aqui! As ruas e as praças estão convertidas em lodaçaes
+immundos; a gente anda toda aos encontrões; as carruagens e os cavallos
+atropellam e cobrem de lama os transeuntes; as goteiras alagam os
+individuos que seguem pelos passeios; e o vento que sopra das portas faz
+rebentar o sangue nas mãos e na cara!
+
+É bem differente d'isto o meu querido paiz, os campos amenos da Biscaya!
+
+Lá alveja a neve lisa e pura por sobre a relva e as penhas, nas arvores
+e nos telhados, e quando o sol ou a chuva a derretem não é em lodo que
+se converte, mas sim em cristallinos arroios; lá não se apinhôa,
+confunde e atropella a gente, o gado e os carros, que a todos Deus
+concedeu campo e largueza por onde se espalhem á vontade; e se tambem
+ali sopra o ar frio do inverno, é ar que dá saude em vez de tiral-a.
+
+Ai! quão differente teria corrido para mim o dia, se o passasse na minha
+aldeia! Se lá estivesse, andaria no campo a patinhar no gelo; teria
+feito grandes bólas de neve no alto da montanha, para as vêr
+despenhar-se no valle; em seguida voltaria a casa, e depois de ter
+almoçado junto do lume, subiria á trapeira para apanhar os passaros, que
+ali vão abrigar-se do mau tempo e procurar o sustento que não encontram
+nos campos cobertos de neve; e á noite, em quanto minha mãe estivesse
+preparando a ceia, contar-me-hia meu avô as suas façanhas da guerra da
+independencia. No fim da ceia iria para a cama acompanhado por minha
+mãe, que depois de me cobrir e agasalhar cuidadosamente, se despediria
+de mim, como de costume, com um dôce beijo. Ai! que differença! assim
+não estaria, como agora estou, acordado e a chorar, mas dormiria
+tranquillo e socegado até que, com outro beijo, fosse despertar-me pela
+manhã!
+
+Entregue a tão saudosos pensamentos passou Angelo em claro quasi toda a
+noite. Já se ouviam na rua os pregões dos vendilhões e fornecedores da
+cidade, o barulho dos carros e os passos dos transeuntes, quando,
+vencido pela vigilia, e tomado do cansaço do corpo e do espirito, caíu
+n'um benefico somno.
+
+Adormeceu profundamente; rosaram-se-lhe as faces, e a posição em que
+ficára e a sua respiração serena e plácida, revelavam uma dulcissima
+tranquillidade d'espirito; entreabria-lhe os labios aprasivel sorriso,
+e, de vez em quando, soltava d'elles os nomes de _pae_, _mãe_, e outros
+como estes saudosos e gratos ao coração da desventurada creança.
+
+Agora sonhava que se achava na aldeia, cercado da sua familia ou
+brincando com os seus companheiros de infancia; depois, que trepava ao
+cimo das arvores em busca d'um ninho de rôla, ou de pombo torcaz;
+derribava ás pedradas as maçãs e as nozes; corria ao bosque a fazer
+assobios da casca do castanheiro, ou ao ribeiro para construir moinhos
+de junco; logo subia ao alto da montanha, coroada por uma ermida, em
+roda da qual andava o tambor chamando para a romaria. Por ultimo sonhava
+que era noute de S. João, que todo o valle estava illuminado pelas
+fogueiras accesas nos oiteiros, e o inundavam d'alegria o repique dos
+sinos, os morteiros, as cantigas e os gritos de jubilo, que acompanham
+sempre aquella festa classica e essencialmente infantil!
+
+Embalado n'estes sonhos deliciosos, que lhe representavam todos os
+encantos do seu paiz natal, sonhos que melhor do que ninguem póde
+adivinhar o auctor d'este livro, porque tambem chorou e sonhou como
+Angelo, não ouviu o pobre menino as sete horas que bateram compassadas
+no relogio do escriptorio.
+
+
+VII
+
+Manoel e Marianno (eram estes os nomes dos dois caixeiros do banqueiro)
+desceram as escadas, e vendo que Angelo se não tinha ainda levantado,
+dirigiram-se para o seu aposento.
+
+--É melhor acordal-o, dizia Manoel, porque se chega D. Lucas e o
+encontra a dormir não deixa de lhe fazer a operação do costume.
+
+--E que tem lá isso? replicou Marianno, para nós é até um divertimento.
+A pena que me resta é não haver aqui á mão um bom molho de ortigas.
+
+--Não tenhas mau coração. Já não soffreu pouco hontem o pobre pequeno,
+principalmente com a historia da balança.
+
+--E que tem que soffresse?! Tambem nós soffriamos quando eramos como elle.
+
+--Pois por isso mesmo que a nós nos trataram mal é que eu entendo, que
+devemos tratar agora bem os que se acham em identicas circumstancias.
+
+E dizendo isto, approximou-se da cama de Angelo, e principiou a abanal-o
+e a chamar por elle; mas o menino estava tão ferrado no somno, que
+continuava a dormir profundamente.
+
+--Que é lá isso, perguntou D. Lucas, apparecendo á porta do quarto.
+Então esse estupido ainda está na cama?!
+
+--Está, sim, senhor, respondeu Marianno.
+
+D. Lucas proferiu uma praga e accrescentou, dirigindo-se a Marianno:
+
+--Vaes vêr como esperta n'um instante. Traz-me lá de cima, da talha, uma
+bilha d'agua para se lhe applicar o remedio.
+
+Marianno, que parecia feito á similhança de D. Lucas, obedeceu de
+prompto, e largou pelas escadas acima, esfregando as mãos de contente.
+No primeiro andar, e debruçado n'uma varanda de ferro que dava para o
+pateo interior da casa, coberto por um tolde, estava Toribio, escutando
+o que se passava em baixo, pois d'alli se ouvia tudo perfeitamente.
+
+--Que temos, snr. D. Marianno, perguntou elle ao caixeiro.
+
+--Vou buscar uma bilha d'agua para fazermos a _operação_.
+
+--Ao _rocim-chegado_?
+
+--Nem mais nem menos; vem d'ahi, se te queres rir.
+
+--Isso já a mim me palpitava, que se lhe havia de fazer o _remedio_. Mas
+a agua não deve ser da talha; essa está pouco fria por causa da
+proximidade do fogão. Temos aqui um bom jarro d'ella, que, de proposito,
+deixei ficar de noite sobre o alpendre.
+
+--És um rapaz de talento, Toribio! exclamou, rindo, Marianno, em quanto
+o bruto do creado pegava no jarro da agua.
+
+--Deve estar excellente! accrescentou, vendo-a coberta d'uma espessa
+crusta de gelo, que foi quebrando com os nós dos dedos, á maneira que
+descia os degraus da escada.
+
+Toribio não quiz privar-se do barbaro goso de assistir ao martyrio que
+ia soffrer a pobre creança, e correu, todo alvoroçado, atraz de Marianno.
+
+Dom Lucas pegou no jarro, e afastando para o lado a roupa que cobria o
+menino até ao pescoço, despejou-lhe de golpe toda a agua por sobre o
+peito, com grande satisfação de Marianno e Toribio. Manoel, esse,
+coitado, estava compungido da sorte do rapazinho. Angelo soltou um grito
+e ergueu-se de subito, ao sentir no corpo a agua gelada.
+
+--Isto é para vêr se acordas! disse D. Lucas, e completou a phrase com
+uma nova praga.
+
+O menino não replicou, nem tratou sequer de desculpar-se. Atirou
+immediatamente comsigo da cama abaixo, e vestiu-se sem proferir uma
+palavra. Os seus olhos não derramavam lagrimas, mas derramava sangue o
+seu coração! Tinha á cabeceira da cama uma estampa, já enegrecida pelo
+tempo, representando Jesus crucificado. Ergueu os olhos para a divina
+imagem e exclamou no intimo de sua alma afflicta:
+
+--Senhor, levae-me já para o céo ou para as minhas montanhas!
+
+
+VIII
+
+Do seio d'aquella nuvem de tristeza que o cercava, luziu para o pobre
+Angelo um raio de esperança. Pelas conversas que ouviu, de D. Lucas e
+dos seus companheiros, veiu no conhecimento de que os caixeiros do
+banqueiro tinham licença de saír nos dias santificados e para logo
+concebeu a esperança de gosar tambem d'esse prazer, libertando-se da
+tristeza e da oppressão de toda a semana, n'aquelle dia de folga e de
+liberdade.
+
+De quantas necessidades experimentava era por certo a maior a de
+respirar por algum tempo livremente, vendo o céo e o sol, as arvores e
+os campos.
+
+Manoel era o unico que dirigia a palavra a Angelo sem aquella aspereza e
+zombaria com que sempre lhe fallavam D. Lucas e Marianno. Por isso,
+depois de dois dias de hesitação, abalançou-se o menino a perguntar-lhe
+se tambem lhe dariam, a elle, licença para saír ao domingo para o campo..
+
+--De certo, isso nem se pergunta, respondeu Manoel.
+
+Esta resposta, que a outro qualquer pareceria em extremo laconica, fez
+verter lagrimas de agradecimento e de alegria a Angelo; de agradecimento
+porque encerrava em si um thesouro d'indulgencia, comparada com as que
+todos os dias recebia n'aquella casa, e de alegria por lhe vir confirmar
+as fagueiras esperanças que nutrira.
+
+As palavras de D. Lucas já não pareciam á innocente creança sêccas e
+desabridas, nem tão pouco se lhe afiguravam crueis os motejos de
+Marianno e de Toribio; já não julgava insupportavel o trabalho a que o
+submettiam desde pela manhã até altas horas da noite, e até o quarto em
+que dormia, humido e frio, triste e isolado, lhe parecia confortavel e
+alegre desde que n'elle sonhava com os prazeres do domingo, embalado nas
+risonhas esperanças de disfructar, ao menos um dia na semana, gosos
+similhantes áquelles, que diariamente o deleitavam nos campos do seu
+paiz natal.
+
+--Se os bosques e os prados da minha terra são tão formosos, pensava
+elle, como não hão de ser encantadores os d'aqui, se até por elles
+passeiam os reis e a sua côrte? E quando as caçadas, lá nos meus sitios,
+são tão divertidas, o que não acontecerá em Madrid, onde tudo deve
+participar da grandeza da capital?
+
+E os aprestes de caça de D. Lucas! Como são ricos! a espingarda e o
+polvarinho marchetados de prata, e as polainas e os correões bordados a
+sêda! Muito me hei de divertir! Parece-me que já estou a atravessar
+espessos bosques de carvalhos e castanheiros seculares, a passar regatos
+cristallinos, e torrentes espumosas, e a vêr, a meu salvo, do alto d'uma
+fraga, do cimo d'uma collina ou da copa d'uma arvore, o javalí e o veado
+perseguidos pelos cães. Por fim, ao caír da tarde, quando tivermos
+reunido uma boa porção de formosas rezes, iremos descançar debaixo das
+ramadas ou das nogueiras que fazem sombra aos casaes, onde não deixarão
+de nos offerecer excellente leite e fructa saborosa. E quando entrarmos
+na cidade! Com que orgulho, com que alegria não atravessaremos nós essas
+ruas, com grandes enfiadas de perdizes ás costas, e trazendo á arreata
+uns poucos de burros carregados de javalís e lebres!
+
+Chegou finalmente o domingo tão desejado. O céo appareceu limpido e
+puro; despontou o sol mais formoso que nunca, e um vento forte, que
+soprára toda a noite, tinha seccado completamente o solo. Tudo
+contribuia para aformosear e revestir de galas o dia destinado a
+compensar Angelo dos desgostos e maus tratos que soffrera até ali.
+
+Na véspera á noite tinha dito D. Lucas aos caixeiros, em presença dos
+donos da casa, que eram fieis observadores dos preceitos religiosos:
+
+--Amanhã _levantar_ cedo para ouvir missa antes de partir para o campo.
+
+Os caixeiros, e bem assim D. Lucas, levantaram-se effectivamente muito
+cedo, mas não foi para ouvir missa.
+
+Bem se importava D. Lucas com a missa, quando se tratava de caça que era
+o seu divertimento favorito!
+
+O sobrinho de Quijano marcou tarefa a cada um dos rapazes. Angelo foi
+encarregado de fazer varetas de junco, Manoel de encher de polvora os
+polvarinhos e de chumbo as bolsas dos correões, e Marianno de fazer
+provisão de fulminantes.
+
+Soou finalmente a hora da partida; D. Lucas, Manoel e Marianno calçaram
+botins muito grossos, afivelaram vistosas polainas bordadas a seda de
+differentes côres, lançaram ás costas grandes saccos de caça e
+armaram-se não só de espingardas de dois canos, como tambem de facas de
+matto; por ultimo tiveram o cuidado de metter para os bolsos um bom
+punhado de balas.
+
+Angelo olhava para aquelles preparativos com indizivel satisfação, e
+dizia com os seus botões:
+
+--Estas polainas, estes enormes saccos de caça, estas facas de matto e
+estas balas indicam que vamos correr montes espessos e escabrosos, que a
+caça deve ser abundante e que de certo nos temos de haver com javalís
+ferozes, e talvez até com ursos e lobos.
+
+O que porém dava que entender a Angelo era vêr que D. Lucas se dispunha
+a levar comsigo os dois cãesitos de casa do banqueiro, que não podiam
+ter forças para arrostar com os perigos e fadigas d'uma caçada como a
+que elle phantasiava na sua infantil imaginação.
+
+Saíram a final, e tomaram pela rua abaixo; «muito barata ha de estar
+ámanhã a caça!» diziam algumas pessoas ao verem-n'os passar.
+
+E Angelo, que não comprehendia a ironia que se continha n'estas
+palavras, cada vez se confirmava mais na ideia que tinha formado da caçada.
+
+
+IX
+
+Quando avistaram a porta de Toledo, ficou Angelo a pular de contente;
+mais alguns passos apenas e estavam no campo, onde ia recrear a vista na
+contemplação d'uma perspectiva encantadora; era esse o juizo que
+formava, e que tinha como certo.
+
+Se tanto o deleitavam as ridentes paisagens do seu paiz, com mais razão
+entendia a pobre creança que o haviam de captivar as dos arredores de
+Madrid, a capital da Hespanha onde tudo devia ser magnifico e admiravel.
+
+Lá, na frente, pensava elle, hão de avistar-se talvez grandes montanhas
+cobertas de frondoso arvoredo; a um lado elevar-se-ha uma verde colina
+coroada pelas ruinas d'um castello mysterioso e sombrio; do lado opposto
+erguer-se-hão ás nuvens penhas alcantiladas, por entre as quaes se
+despenharão com rouco bramido impetuosas torrentes, e pelas faldas dos
+montes ha de estender-se por certo uma veiga deliciosa, semeada de
+casinhas brancas, e regada por um rio caudaloso, em cujas ribas estarão
+collocados, destacando no horisonte, inumeros moínhos, completando a
+paisagem com os seus tectos elegantes e pittorescos...
+
+É este o espectaculo grandioso, que vae, n'um momento, offerecer-se aos
+meus olhos!
+
+E vendo que estavam quasi a chegar á porta, desceu Angelo a vista com o
+proposito firme de a não levantar, em quanto não sentisse debaixo dos
+pés a herva do campo, para assim poder abranger a um tempo e de repente,
+o formoso panorama, que se lhe desenhava na mente.
+
+A areia e a brisa subtil do Guadarrama, e não esse tapete de mimosa
+relva, que sonhára, lhe fizeram conhecer que já se achava fóra de Madrid.
+
+Ergueu de subito os olhos e abarcou ancioso com a vista a paisagem, que
+tinha diante de si.
+
+Ai! que differença entre o panorama, que se lhe apresentava e aquelle
+que phantasiára na sua pueril imaginação!
+
+Em frente limitavam o horisonte os cêrros escalvados e agrestes de Santo
+Izidro, coroados não de arvores formosas e de castellos mysteriosos, mas
+sim de telhados denegridos pelo fumo e de lugubres cemiterios,
+circumdados de muros de terra. Do lado esquerdo uma planicie estéril e
+monótona, da qual os accidentes mais bellos são o cêrro dos Anjos e o
+cêrro Negro. Á direita as vendas ou retiros miseraveis e as aridas
+encostas, que dominam a ponte de Segovia; e em baixo, na planicie, o
+triste Manzanares, arrastando-se penosamente por entre muladares e
+lavadouros!...
+
+Um cruel desalento e uma profunda melancholia se apoderaram para logo de
+Angelo; comtudo não perdeu de todo a esperança de deparar com o paraiso
+dos seus sonhos.
+
+--Quem sabe? pensava elle, talvez que ao transpor aquellas imminencias
+se descubra uma paisagem menos arida e triste do que esta que d'aqui se
+observa. E seguindo os seus companheiros, atravessou o Manzanares pela
+ponte de Santo Izidro. De repente D. Lucas parou, recommendando, por
+signaes, aos outros que não fizessem bulha. Todos obedeceram, e elle
+então adiantou-se, nas pontas dos pés, agachando-se cautelosamente, e
+com os perros da espingarda levantados.
+
+Angelo suppoz que D. Lucas teria avistado alguma lebre, ou pelo menos um
+bando de perdizes. Por fim o grande caçador de Madrid disparou a arma, e
+exclamou cheio de alegria:
+
+--Lá caíu, lá caíu! Áquelle já ninguem lhe vale!
+
+E desappareceu por entre os choupos da margem do rio. Alguns momentos
+depois tornou a apparecer, mostrando triumphante um passaro _ribeirinho_
+que acabava de matar!
+
+As illusões de Angelo soffreram um novo golpe. Que caçada era aquella em
+que os caçadores se alvoroçavam tanto com a morte d'um passarito? Para
+que serviam então tantas balas, tantas facas de matto e tantos saccos e
+correões de caça?!
+
+Os caçadores treparam aos cêrros de Santo Izidro, e Angelo dirigiu a
+vista para o novo horisonte. Alli, como na porta de Toledo, não via para
+todos os lados para onde olhava, senão áridas serranias, collinas
+escalvadas, umas poucas d'arvores rachiticas, e alguns silvados e
+espinhaes, contornando o regato de Luche.
+
+D. Lucas não desanimava como Angelo. Atravessando campos semeados, atraz
+d'um pardal ou d'uma cotovia, foi-se affastando, poupo e pouco, seguido
+pelos seus companheiros. Angelo já se sentia fatigado, e outro tanto
+acontecia aos dois _improvisados_ cães de caça. Sentou-se por fim n'uma
+pedra, e os cãesitos, vencidos egualmente de cançaço, deitaram-se n'um
+rego do campo; D. Lucas, porém, vendo isto, deu um empurrão á pobre
+creança, e affagando os cães, obrigou-a a carregar com elles.--«Tu que
+não pódes leva-me ás costas.»
+
+Como D. Lucas seguisse a margem do ribeiro de Luche, saltou-lhe um
+coelho de entre os pés. D. Lucas disparou-lhe um tiro a corta-matto,
+porém o coelho proseguiu no seu caminho sem ter soffrido o _mais leve
+incommodo_.
+
+O caçador soltou uma praga e affirmou aos seus companheiros, que o
+coelho ia ferido, e que se não tinha morrido logo ali, a culpa não era
+sua, mas sim da polvora, que não prestava para nada. E o pobre Angelo
+que já não podia com o corpo, e menos ainda com a alma, continuava a
+seguil-os, carregado com os cães.
+
+Com estas e outras proezas foi passando o tempo, e os caçadores tomaram
+por ultimo o caminho de Madrid, levando nos correões meia duzia de
+passaritos.
+
+De vez em quando Angelo ficava para traz, e o sobrinho do banqueiro
+ajudava-o então a andar, proferindo uma praga, ou dando-lhe um pontapé.
+
+Junto á porta de Toledo, encontraram um caçador, que levava quatro coelhos.
+
+--Olá, tio Lobo! disse D. Lucas; pelo que vejo não lhe correu mal, hein?
+
+--Assim, assim, snr. D. Lucas; e o senhor, que tal?
+
+--Ora deixe-me, homem, estou desesperado com esta maldita polvora.
+
+--Então que tem? está humida, talvez?
+
+--Nada, humida não está; mas não sei o que tem, que não presta para
+nada; dei hoje mais de vinte tiros, e vi fugir todas as peças de caça
+feridas.
+
+--Pois a mim é que isso não acontece; a caça que me fugir preguem-m'a na
+testa. Tenho uma polvora de contrabando, que não quero que haja melhor.
+
+--Homem, vende-me vocemecê uns poucos d'arrateis?
+
+--Com muito gosto, snr. D. Lucas; qualquer dia d'estes lá lh'os levo a
+casa.
+
+--Muito bem. Vamos agora a vêr esses _bicharôcos_.
+
+--Póde vêr á vontade, que são quatro peças de caça aceiadas.
+
+--Isso vejo eu. Provavelmente são para vender na praça?...
+
+--Está bem de ver, nem a gente vive d'outra coisa.
+
+--Pois, n'esse caso, fico eu com os coelhos.
+
+--Estão ás suas ordens, snr. D. Lucas.
+
+--E quanto lhe hei de dar por elles?
+
+--Dá-me aquillo que o senhor quizer.
+
+--Está bom, ahi tem um duro, serve?
+
+--Muito obrigado, snr. D. Lucas. O que eu desejo é que os senhores os
+comam com saúde. Até outra vez, se Deus quizer.
+
+--Adeus, tio Lobo.
+
+O _verdadeiro_ caçador tomou a dianteira aos caixeiros de Quijano. D.
+Lucas tratou logo de enfeitar o seu correão com os quatro coelhos, e
+pouco depois entrava em Madrid, tão inchado que não cabia na rua de
+Toledo, e causando inveja áquelles que ainda pela manhã tinham zombado
+d'elle.
+
+
+X
+
+Dois ou tres dias depois da famosa caçada, estavam no gabinete de D.
+João Quijano, palestreando junto do fogão, o banqueiro, seu sobrinho D.
+Lucas e quatro ou cinco amigos intimos da casa.
+
+Fóra, no escriptorio, trabalhavam em silencio os caixeiros e com elles
+Angelo, cujas côres rosadas iam pouco e pouco desapparecendo, e cuja
+tristeza era cada vez mais profunda.
+
+--Como vamos nós de caça, D. Lucas? perguntou um dos amigos.
+
+--Ás mil maravilhas, respondeu D. Lucas.
+
+--Meu sobrinho, acudiu o banqueiro, está sendo o rei dos caçadores! Pois
+não sabem que, domingo, teve a habilidade de se apresentar aqui com
+quatro coelhos, que pareciam quatro bezerros?!
+
+--Que nos diz, homem?
+
+--Nem mais nem menos, é como lhes conto. Aprendam como elle a matar
+coelhos onde ninguem os costuma matar, nos suburbios de Madrid.
+
+--Sempre queria saber como isso foi, disse um dos interlocutores.
+
+--Tem pouco que saber, disse D. Lucas. Matei domingo quatro coelhos,
+junto ao ribeiro do Luche. Aquillo foi n'um abrir e fechar d'olhos, e é
+preciso advertir que a polvora não prestava para nada.
+
+--Não sei como isso se faz; eu cá, por mais voltas que dou, não sou
+capaz de levantar um coelho por estas visinhanças.
+
+--É porque os senhores são caçadores das duzias! Eu por mim, nem sequer
+preciso de cão; havendo coelho, está prompto; faço-o saltar, e depois de
+lhe atirar, nem todos os santos lhe valem, porque onde eu puzer a vista
+ponho o tiro. Pum! coelho a terra!... Os quatro de domingo foi um
+momento em quanto caíram.
+
+--Pois, senhor, não tem que vêr, é um bom caçador!
+
+D'isso está elle convencido. A caçada de domingo ha de ser apregoada por
+toda a cidade; não falla d'outra cousa a quantas pessoas aqui entram!
+
+Estava ainda o sobrinho do banqueiro narrando, com toda a miudeza, como
+matára os quatro coelhos, quando entrou no escriptorio o tio Lobo, que
+ia levar a D. Lucas os dois arrateis de polvora de contrabando, que este
+lhe encommendára.
+
+--Esta ahi o snr. D. Lucas? perguntou o caçador aos caixeiros.
+
+--Sim, senhor, respondeu Angelo.
+
+--Pois faça favor de lhe dizer que está aqui fóra o tio Lobo, que o
+procura.
+
+O pequeno entrou no gabinete.
+
+D. Lucas, que ainda não tinha acabado de contar como matára os quatro
+coelhos, ficou logo furioso por lhe interromperem a historia, e antes
+que o pequeno tivesse tido tempo de fallar, perguntou-lhe, com aquella
+amabilidade que lhe era propria:
+
+--Que queres tu d'aqui, borrego?
+
+--É que está ali fora o Lobo, respondeu Angelo.
+
+Desataram todos a rir, vendo a relação casual, que havia entre a
+pergunta e a resposta.
+
+Não era para admirar que Angelo omitisse a denominação de _tio_, que
+costumava preceder o nome do caçador, porque esse tratamento, que é tão
+vulgar em quasi toda a Hespanha, não se usava nem se usa, na sua
+provincia, senão quando o justificam os laços de consanguinidade.
+Julgando por tanto que se riam por não se haver explicado bem, ficou
+corrido de vergonha, e tratou de se fazer comprehender melhor.
+
+--Parece-me que é assim que tenho ouvido chamar-lhe; e accrescentou, «é
+aquelle caçador a quem o senhor comprou domingo os quatro coelhos junto
+á porta de Toledo.»
+
+Estas palavras de Angelo foram acolhidas com uma gargalhada ainda mais
+ruidosa do que a anterior, porém menos inoffensiva; uma gargalhada de
+mofa, insultante, sangrenta, e isto porque os caçadores têm dois grandes
+defeitos; são geralmente embusteiros e invejosos, e assim como não
+perdem a occasião de mentir, tambem não perdem nunca o ensejo de
+humilhar os que caçam, ou suppõem caçar mais do que elles.
+
+D. Lucas ficou por espaço d'um segundo immovel, envergonhado e corrido;
+porém, de repente, injectaram-se-lhe os olhos de sangue,
+engorgitaram-se-lhe as veias, e tornou-se completamente livido e
+desfigurado.
+
+Arremeçou-se como um tigre sobre a pobre creança, vociferando e
+praguejando como possesso, e lançando-lhe as mãos ao pescoço, levou-a
+d'encontro á parede e começou a descarregar-lhe furiosas patadas no
+estomago, antes que D. João e as outras pessoas, que se achavam
+presentes, tivessem tido tempo para se interpor entre aquella fera e o
+innocente cordeiro, que, por unica defesa, invocava o nome de sua mãe.
+
+Oh! tu, Fernan Caballero, nobre e generoso cantor do nosso bom povo
+hespanhol, amigo dos pobres d'espirito e dos ricos de coração, que tens
+cabeça d'homem para pensar e alma de mulher para sentir; tu que és o
+amigo por excellencia dos meninos e das mães, dos fracos e dos
+attribulados; tu que buscas e encontras as dôres e as afflicções do
+proximo, onde as almas vulgares as não descobrem, e que, com tanto
+sentimento e caridade, as prantêas, dize-me, meu bom Fernando, não achas
+que os sabios legisladores da humanidade tem sido extremamente crueis e
+ignorantes, pondo os meninos debaixo da salvaguarda do codigo, que
+protege os homens, em vez de os acobertar com a égide celeste do codigo
+que protege os anjos?!
+
+
+XI
+
+Alguns mezes haviam já decorrido depois do dia em que Angelo escapou,
+por milagre, de morrer ás mãos de D. Lucas.
+
+Era por uma aprazivel manhã de primavera. A sala de jantar de D. João
+Quijano tinha uma janella, que olhava para o norte. Em quanto o
+banqueiro e sua mulher tomavam chocolate na sala, Angelo fôra para a
+varanda, e ali se conservava, com a vista immovel e fixa na direcção do
+seu paiz.
+
+O pobre pequeno estava mais alto do que quando chegára das montanhas de
+Biscaya, porém tinha emagrecido consideravelmente. Cobria-lhe o rosto
+uma pallidez mortal, e nos seus bellos olhos, tão meigos e sympathicos,
+retratava-se-lhe a profundissima tristeza que lhe ia n'alma.
+
+--O que fazes tu ahi, Angelo? perguntou carinhosamente D. Joanna.
+
+O menino não respondeu.
+
+--Oh! meu Deus! O que terá esta creança?! accrescentou a mulher do
+banqueiro, com verdadeira afflicção.
+
+--Não sei o que elle tem, Joanna, mas ninguem me tira da cabeça que está
+doente desde que Lucas lhe bateu, apesar do medico dizer, passados
+quinze dias, que o considerava completamente restabelecido.
+
+--Queira Deus que Lucas lhe não tornasse a pôr a mão.
+
+--Não, filha; por isso fico eu. Mas vejo-o tão abatido e melancholico,
+que receio muito pela sua existencia.
+
+--Ai! Nossa Senhora permitta que te enganes. Angelo se chama e foi elle
+na verdade um anjo que trouxe a paz e a harmonia á nossa casa; porque,
+desde que para aqui veiu esse menino, nós que sempre andavamos de rixa,
+estamos inteiramente mudados, e tenho fé em que elle ha de acabar por
+abrandar e adoçar por uma vez este meu maldito genio.
+
+--Assim é, Joanninha, exclamou o banqueiro commovido; sempre esperei que
+quando tivesses um filho, se operaria em ti uma grande mudança. Não quiz
+Deus conceder-nos essa ventura, mas enviou-te em compensação essa
+criança, a quem queres hoje quasi tanto como se fôras sua mãe.
+
+--Quem sabe se o que tem o pequeno é um desejo ardente de voltar para a
+sua aldeia... suspirava tanto por isso, a principio...
+
+--Tambem me não parece que seja essa a causa do seu soffrimento. Desde
+que os paes lhe disseram n'uma carta, que era elle o unico amparo com
+que contavam para a velhice, e que, se voltasse para a terra, nada
+poderia fazer em beneficio d'elles, não cessa de dizer que está
+satisfeito em Madrid, e até quando alguma vez se encontra de bom humor,
+costuma repetir o proverbio «_de Madrid só para o céo_».
+
+--Pois é preciso mandar chamar o medico, porque se não cuidarmos d'elle
+váe cada dia a peior. Angelo, accrescentou D. Joanna, chamando novamente
+pelo menino.
+
+Este deixou como assustado a immobilidade em que estava, olhou novamente
+com ineffavel languidez para o norte, e entrou na sala.
+
+--Que tens tu, meu filho? perguntou-lhe com ternura D. Joanna,
+correndo-lhe a mão pela cara.
+
+--Não tenho nada, respondeu Angelo.
+
+--O que fazias na varanda?
+
+--Nada; estava a vêr o sol.
+
+--Vamos, senta-te aqui, e toma chocolate comnosco.
+
+--Não me appetece.
+
+--Mas o que é isso? O que te falta? Não te quero eu como se fôra tua mãe?
+
+O menino não respondeu; arrasaram-se-lhe os olhos de lagrimas, e os de
+D. Joanna tambem.
+
+--Olha, accrescentou esta, não vás outra vez para a varanda que te faz
+mal o sol; vae antes um bocado até ao escriptorio, não para trabalhar,
+mas para vêr se te distrahes com os teus companheiros.
+
+Angelo saíu da sala, e desceu a escada.
+
+Ás tres horas, subiram para jantar D. Lucas, e os dois caixeiros Manoel
+e Marianno.
+
+--Onde ficou Angelo? perguntou D. Joanna.
+
+--Não veiu cá para cima.
+
+--Virgem santissima! Onde estará então a pobre creança?!
+
+--Talvez se fosse deitar.
+
+--D. Joanna correu pressurosa ao quarto de Angelo, e foi encontral-o na
+cama.
+
+--O que quer isso dizer, filho? O que tens?.. Estás doente?
+
+--Sim, minha senhora, respondeu Angelo com voz sumida.
+
+--Então o que te dóe?
+
+--Não me dóe nada, mas sinto-me doente.
+
+--Toribio! Toribio! vae, corre chamar o medico, que está o menino
+doente, gritou da escada D. Joanna.
+
+Pouco depois chegou o medico. Tomou o pulso a Angelo, e fez um gesto de
+mau agouro.
+
+--É coisa grave? perguntaram a um tempo, e com anciedade, D. Joanna e o
+banqueiro.
+
+--Gravissima, respondeu o medico... e observando-o novamente,
+accrescentou, em voz baixa, dirigindo-se ao dono da casa;--está quasi a
+morrer.
+
+Angelo abriu por um momento os seus meigos olhos, cujo brilho estava já
+empanado pelo sopro da morte, volveu-os para a imagem do Senhor
+crucificado, como querendo expressar-lhe profunda gratidão, e fechou-os
+logo, para nunca mais os tornar a abrir.
+
+Todos proromperam em amargo pranto, á excepção de D. Lucas.
+
+--E de que morreu? perguntou este ao medico, que tinha antecipadamente
+interrogado a familia ácerca dos padecimentos de Angelo.
+
+--Morreu, lhe tornou o medico, de uma affecção moral, para cujo
+desenvolvimento contribuiram por certo padecimentos physicos. Os meninos
+são homens no sentimento, e creanças no vigor; por isso Deus amaldiçôa
+os seus oppressores. Este menino morreu da mais santa de todas as
+enfermidades; morreu de _Nostalgia_.
+
+FIM DA NOSTALGIA.
+
+
+
+
+O MADEIRO DA FORCA
+
+
+I
+
+A grande montanha de Colisa, que se ergue entre as Encartações[2] de
+Biscaya, e a demarcação juridica de Castella, era na edade media uma
+especie de Thebaida, onde faziam vida penitente alguns anachoretas, aos
+quaes se attribue a edificação do santuario que a corôa.
+
+Sendo eu creança, e caminhando com minha piedosa mãe por uma montanha
+das Encartações, paramos a descançar, ao descobrir o valle onde
+habitavamos.
+
+Era por uma tarde aprazivel de verão. O sol escondia-se por detraz dos
+montes, que recortavam o horisonte, e nas quebradas das serras ouviam-se
+os chocalhos do gado, que descia ao valle; em baixo, na planicie, saíam
+as raparigas das herdades, e pondo á cabeça as suas bilhas, dirigiam-se,
+cantado, á fonte do _Castanhal_, para que seus paes e irmãos achassem em
+casa agua fresca, quando, ao soar o toque da oração, lançando ao hombro
+as enxadas, e resando as Ave-Marias, se encaminhassem para o logar.
+
+Do cimo do outeiro coberto de fragrantes margaridas, brancas de neve,
+onde minha mãe e eu estavamos sentados, contemplando o nosso querido e
+formoso valle, em um de cujos extremos avistavamos, meia occulta por
+frondoso arvoredo, a nossa aldeia ainda mais querida e saudosa,
+descobria-se o santuario de Colisa.
+
+Entramos a fallar d'aquella ermida, e minha mãe, que tinha uma fé santa
+e cega nas tradicções religiosas, que brotam e vivem á sombra dos
+santuarios das montanhas, sem que possam os seculos alterar-lhes o viço
+e a frescura, prendeu-me a attenção, e commoveu-me devéras a alma
+contando-me o que, a meu turno, vou contar-vos.
+
+Vivia nas solidões de Colisa um santo ancião, chamado Cosme, que passava
+uma terça parte da sua existencia entregue á adoração e glorificação de
+Deus, e o restante guiando e soccorrendo os viajantes, que atravessavam
+aquellas montanhas; e isto pela razão de que, n'aquelle tempo, como as
+guerras de partidos ensanguentassem de contínuo os valles, fugiam
+d'elles os caminhantes, e transitavam pelos montes mais desertos, e
+afastados do commercio dos homens.
+
+Sempre que Cosme soccorria algum viandante extraviado, ou extenuado de
+fome e cansaço, ao soar o toque de Trindades na egreja de Valmaseda, que
+se avistava lá em baixo, no pé da montanha, apparecia-lhe um anjo, que
+lhe sorria amorosamente, e que logo se remontava ao ceu, deixando-o
+immerso em mystica alegria.
+
+Um dia, de manhã, estando os montes cobertos de mui densa névoa, saíu
+Cosme da miseravel choça, onde vivia vida penitente, e poz-se a divagar
+por aquelles bosques espessos e fragosos, a vêr se encontrava alguns
+caminhantes, que n'elles se houvessem extraviado, e, de repente, deu de
+cara com uns poucos de homens, que levavam outro manietado.
+
+--Porque vae preso esse infeliz? lhes perguntou elle.
+
+--Porque é um grande criminoso, a quem a justiça condemnou á morte, lhe
+responderam.
+
+--_Quem as faz paga-as_, disse o anachoreta, dando tregoas á sua compaixão.
+
+Os executores da justiça de Valmaseda detiveram-se mais acima, n'uma
+encrusilhada, pegaram n'um grande madeiro secco, que, havia muitos
+annos, estava estendido ao lado do caminho, fixaram as extremidades
+d'esse madeiro secco nos primeiros galhos de duas arvores parallelas,
+lançaram um laço ao pescoço do criminoso, e suspenderam-n'o d'aquella
+forca improvisada, voltando a Valmaseda apenas se certificaram de que
+elle tinha expirado.
+
+ [2] _Encartaciones_, as terras de Biscaya, que gosam de fóros e
+ regalias especiaes.
+
+
+II
+
+N'esse mesmo dia em que, por sentença do tribunal de Valmaseda, foi
+enforcado um grande criminoso, no caminho de Colisa, salvou Cosme da
+morte muitos viandantes, que, sem o seu auxilio, seriam devorados pelas
+féras, ou se teriam despenhado nos precipicios d'aquelles temerosos
+desvios, então mais temerosos do que nunca, por causa da espessura do
+nevoeiro.
+
+Recolheu-se á sua morada, agradecendo a Deus o haver-lhe dado forças
+para soccorrer os seus irmãos, e, apenas chegou, feriu-lhe o ouvido o
+toque da oração, que soou, lento e solemne, na longinqua torre da egreja
+de Valmaseda.--O anjo porém não lhe appareceu n'aquella noite!
+
+O santo ermitão encheu-se de terror, com a lembrança de que teria
+offendido a Deus, visto que o anjo se furtava aos seus olhos; mas por
+mais que pesou as palavras, que proferira, as suas obras e pensamentos
+de todo o dia, não lhe foi possivel atinar com o agastamento do Senhor.
+
+Aquella noite passsou-a toda em continua oração; chorou, macerou o
+corpo, pediu a Deus perdão e misericordia para as suas faltas, e logo
+que raiou a aurora, como a montanha se conservasse coberta de d'espessa
+névoa, saíu em auxilio dos caminhantes.
+
+De repente achou-se na encrusilhada, e ao vêr diante de si a forca, da
+qual pendia ainda o cadaver do criminoso, justiçado no dia antecedente,
+recuou cheio de repugnancia e movido d'espanto; e levantando a vista
+acima do cadaver, que estava preso da corda, viu o anjo poisado no
+madeiro da forca.
+
+O anjo, longe de lhe sorrir então amorosamente, como de costume,
+olhava-o com semblante severo e carregado.
+
+Cosme parou; e com quanto ignorasse qual fosse a sua culpa, lançou-se de
+joelhos, sobresaltado e cheio de terror, ergueu as mãos para o anjo, e
+implorou perdão e misericordia.
+
+--Cosme! disse-lhe então o anjo, incorreste no desagrado do Senhor e
+precisas fazer grande penitencia para recuperar a sua protecção. Hontem,
+em vez de confortar e consolar o desgraçado, que está pendente d'esta
+forca, escarneceste-o, e olhaste com indifferença para a sua tribulação.
+Desprende o seu cadaver da forca, sepulta-o em sagrado, e lançando em
+seguida esse madeiro aos hombros, leva-o pelo mundo, e seja elle o unico
+travesseiro, em que descances a cabeça.
+
+--E poderei eu ainda um dia obter o perdão da minha culpa? exclamou
+Cosme lavado em pranto de arrependimento.
+
+--Sim, lhe tornou o anjo. Quando d'esse madeiro brotar um ramo verde, é
+que o Senhor te perdoou.
+
+Dito isto, subiu o anjo ao ceu, cercado de musicas mysteriosas e de
+brilhantes resplendores.
+
+Cosme acercou-se animosamente do cadaver suspenso da forca, desprendeu-o
+e deu-lhe sepultura; pegando em seguida no madeiro, cujos extremos se
+apoiavam nos primeiros galhos de duas arvores fronteiras, foi com elle
+aos hombros pelo mundo, segundo as indicações, que o anjo lhe havia dado.
+
+
+III
+
+Andava Cosme pelo mundo com o madeiro da forca ao hombro, e toda a gente
+o escarnecia e fugia d'elle horrorisada.
+
+Uma noite, tendo perdido a esperança d'encontrar asylo entre os homens,
+penetrou n'um bosque, esperando encontral-o no meio das féras, e vendo
+uma luzinha atravez da espessura, encaminhou-se para ella, e deu comsigo
+á porta d'uma cabana, onde uma velhinha dormitava, junto do lume.
+
+--Santinha, disse elle á velha, com voz supplicante, deixe-me, pelo amor
+de Deus, passar aqui esta noite.
+
+--Não póde ser, lhe tornou a velha, porque tenho dois filhos, que são
+bandidos, e que devem chegar dentro d'uma hora; se aqui o encontrassem,
+com certeza o matavam.
+
+Cosme confiava piamente na promessa, que o anjo lhe tinha feito de que o
+senhor lhe perdoaria, e como visse que o madeiro da forca não tinha
+signaes, que indicassem que estava para rebentar, d'onde se deprehendia
+que vinha ainda longe o momento da sua morte, insistiu em pedir á velha
+que lhe désse pousada, no que ella, por ultimo, conveiu, esperando
+conseguir dos filhos que o não assassinassem.
+
+Estava Cosme exhausto de forças e, retirando-se para um canto da
+choupana, poisou no chão o madeiro da forca, e deitou sobre elle a cabeça.
+
+Condoida a velha de o vêr descançar em travesseiro tão duro,
+offereceu-lhe um feixe de cheirosa herva do monte, mas Cosme o recusou,
+dizendo:--offendi o Senhor, dizendo a um criminoso a quem levavam á
+forca: «_quem as faz, paga-as_», e para que o Senhor me perdôe, vou pelo
+mundo carregado com este madeiro, que deve ser o unico descanço da minha
+cabeça, até que d'elle brote um ramo verde, que será o signal de que o
+Senhor me perdoou.»
+
+--Ai! exclamou a velha, rompendo n'um choro inconsolavel, se é tão
+difficil para quem se arrepende e unicamente peccou por palavras o
+alcançar o perdão do Senhor, quanto o não será para esses infelizes,
+que, como os meus filhos, peccam todos os dias por palavras e obras, e
+não têm no coração um vislumbre sequer do arrependimento.
+
+O ancião adormeceu com a cabeça deitada no madeiro da forca.
+
+Uma hora depois, chegaram os bandidos, e ao verem-n'o, arrancaram dos
+punhaes para o assassinar.
+
+A mãe, porém, contou-lhes a historia d'aquelle ancião, e pediu-lhes de
+joelhos que, longe de o matarem, se arrependessem, como elle, das suas
+enormes culpas.
+
+--Pois bem, perdôe-se-lhe a vida, responderam os bandidos, fazendo
+entrar os punhaes na bainha, e accrescentaram, soltando uma gargalhada
+d'escarneo:
+
+--Quanto ao arrependimento, havemos de o ter quando brotar o tal ramo
+verde d'esse madeiro secco.
+
+Principiaram os bandidos a cêar. Quando acabaram, dirigiram a vista para
+o canto da cabana onde dormia o velho, e viram, com assombro, que do
+madeiro secco tinha brotado um ramo verde e mimoso! Romperam então em
+amargo pranto, rogando a Deus que lhes perdoasse as suas culpas.
+
+Ao som de taes vozes acordou Cosme, e ao vêr que do madeiro secco tinha
+brotado uma vergontea verde e louçã, expirou de alegria; e o anjo
+baixou, sorrindo amorosamente, a tomar conta da sua alma, e a leval-a
+comsigo para o ceu.
+
+FIM DO MADEIRO DA FORCA.
+
+
+
+
+A NECESSIDADE
+
+
+I
+
+Ainda hoje existe, junto á confluencia de dois rios, um formoso
+castanheiro, a cuja sombra eu me sento, sempre que por alli passo, haja
+ou não haja calor, e isto pela razão muito natural de que, sendo eu
+creança, costumavamos sentar-nos, minha mãe e eu, á sombra d'aquella
+mesma arvore, quando iamos a uma aldeiasinha, que ficava perto da nossa.
+A pequena distancia do castanheiro vêem-se ainda as ruinas d'um moínho,
+taes quaes eram nos tempos saudosos da minha infancia; e a lembrança de
+minha mãe, do castanheiro e das ruinas, faz-me recordar d'um conto, que
+ella me contou, em uma tarde de verão, ao pé da arvore frondosa, a cuja
+sombra, graças a Deus! ainda posso sentar-me.
+
+O ultimo moleiro, que habitou o moínho, era conhecido n'aquellas
+redondezas pelo appellido de Senéca; e vejam lá, não vão mudar para o
+primeiro o accento que puz sobre o segundo «_e_» d'este appellido, pois
+que o moleiro de quem estou fallando, e que minha mãe conheceu e tratou,
+era tão modesto, que ainda hoje no ceu se veria muito afflicto e
+contrariado, se o confundissem com o philosopho cordovez.
+
+Não tinha Senéca pretenções a philosopho, mas era-o até sem querer, e a
+isto devia elle indubitavelmente o seu appellido, em cuja applicação não
+podemos deixar de reconhecer uma philosophia muito profunda; se não,
+reparem os leitores, e digam-me se não é bem admiravel a do povo, que,
+com a mudança d'um simples accento, marca o abysmo, que separa o
+philosopho da natureza do philosopho do estudo! Tinha eu que fazer, se
+quizesse referir os muitos rasgos d'engenho e sã philosophia com que
+Senéca _illustrou_ a sua trabalhosa e modesta vida, e portanto
+limitar-me-hei a referir um dos que mais captivaram minha pobre mãe, de
+quem herdei o gosto que tenho pelas recordações da infancia.
+
+
+II
+
+Senéca não tinha outra familia senão um filho de dez annos, nem outras
+cavallarias senão um burro de vinte. Morreu-lhe a mulher, que era quem
+ficava no moínho, curando das moagens, emquanto elle andava com o burro,
+levando e trazendo folles por aldeias e casaes, e o pobre Senéca viu-se
+então em graves embaraços, porque os seus ganhos lhe não permittiam
+tomar uma creada, que substituisse sua mulher no moínho, nem um creado,
+que o substituisse a elle no transporte dos folles.
+
+--E como te has de tu arranjar agora? lhe perguntavam os visinhos,
+quando o viram viuvo, e sem outro auxilio mais que o do pequeno.
+
+--Não me dá isso cuidado, respondia Senéca, não faltará quem me ajude.
+
+--Isso é bom de dizer; mas quem te ha de ajudar?
+
+--Quem?... A Necessidade.
+
+Os visinhos punham-se a rir do bom humor de Senéca, porém sem
+comprehender o que elle queria dizer na sua.
+
+Uma certa manhã apparelhou Senéca o _burrico_, poz-lhe em cima um sacco,
+que continha quatro alqueires de farinha, e chamando o pequeno, disse-lhe:
+
+--Rapaz, toma o burro pela arreata, e leva-me esta carga á padaria de
+Somorrostro.
+
+O pequeno _desatou_ a chorar.
+
+--Que é lá isso, homem? perguntou-lhe o pae.
+
+--Que ha de ser de mim pelo caminho, se o burro cair, ou se espojar no
+chão! exclamou o rapazito, sem cessar de chorar.
+
+--Não te dê isso cuidado, disse Senéca; se tal acontecer, não faltará
+quem te ajude a levantar o burro.
+
+--E quem é que me ha de ajudar n'essas devezas tão solitarias, que não
+se encontra por ellas viva alma?!
+
+--Quem? A Necessidade. Se o burro caír, ou se deitar no chão e se não
+podér erguer, chama pela Necessidade, e verás como logo acode em teu
+auxilio.
+
+--Está bem, disse o pequeno, limpando as lagrimas com a manga da
+jaqueta; e pegando na corda do burro, tomou pela margem do rio, caminho
+de Somorrostro, que distava uma legua do moínho.
+
+--Ora, ora, ora! Sempre este Senéca tem coisas!... diziam os visinhos,
+ao verem o rapazito com o burro atraz de si. Com que então a
+Necessidade, com cujo auxilio contava Senéca, para levar e trazer os
+folles, era essa pobre creança?!... E o pequeno, quem é que o ha de ajudar?
+
+
+III
+
+Seguia o filho de Senéca com o seu burro á arreata ao longo dos
+carvalhaes, que assombram as margens do rio, que corre pelo valle
+profundo, que separa Somorrostro de Galdámes e Sopuerta, quando, ao
+chegar a um pequeno areal muito suave, fez o burro esta reflexão:
+
+--Ai! que bella cama para eu descansar um pouco!... e então, se eu
+podesse soltar esta maldita carga, que me vae amolando as costellas!
+
+E de repente, antes que o pequeno olhasse para traz, estirou-se ao
+comprido no meio do chão.
+
+--Ai! minha mãe!... exclamou o rapazinho aterrado;--porque convém saber
+que em Hespanha, e com especialidade na Biscaya, não só aos pequenos
+como tambem aos grandes, o primeiro auxilio que lhes occorre invocar nas
+maiores afflicções, é sempre o de sua mãe, ainda mesmo que já a tenham
+no ceu.
+
+E pegando n'uma vergasta começou a zurzir o burro sem dôr nem piedade;
+porém o animal, por mais esforços que fazia para se levantar, não o
+podia conseguir.
+
+Estava já o pequeno quasi a chorar, quando se lembrou do conselho, que o
+pae lhe havia dado, e, em vez de dar largas ao pranto, começou a gritar:
+
+--Necessidade! Necessidade! faz-me o favor de vir aqui ajudar-me a
+erguer este burro?!
+
+O pequeno bem olhava para todos os lados, a vêr se apparecia a
+Necessidade, mas não via ninguem. Já cansado de chamar e de esperar pela
+Necessidade, desatou o arrocho, que prendia o sacco ao apparelho do
+burro, e alliviou-o da carga; em seguida deu-lhe uma vergastada e o
+animal ergueu-se d'um salto. Então o pequeno tomou o burro pelo
+cabresto, levou-o para junto d'uma ribanceira, e rolando o sacco até lá,
+pôde, a muito custo, collocal-o em cima do animal; apertou-o bem com o
+arrocho, montou-se sobre a carga, atirou uma pancada ao burro, e
+proseguiu no seu caminho, mais alegre que umas paschoas.
+
+Passada uma hora chegava o rapaz ao moínho, cantando e fazendo trotar o
+seu _ginete_.
+
+--Olá, pequeno, disse-lhe o pae, apenas o avistou, como te foi pela tua
+viagem?
+
+--Muito mal, meu pae.
+
+--Então o que te aconteceu, homem?
+
+--Deitou-se o burro no caminho, e, por mais pancadas que lhe dei, não
+foi capaz de se levantar.
+
+--E então o que fizeste?
+
+--Desprendi a carga, levei o burro para o pé d'uma ribanceira, fui
+rolando o sacco até lá...
+
+--Bem, bem, já percebo. Quer isso dizer que chamaste pela Necessidade,
+não é assim?
+
+--Chamei, chamei; fartei-me até de chamar; mas não appareceu...
+
+--Rapaz, disse Senéca, vê como tu te enganas;--quem te levantou e
+carregou o burro não foi senão a Necessidade.
+
+Tinha razão Senéca, e tambem eu a tenho para dizer aqui que a
+necessidade presta tanto auxilio e tamanhos beneficios ao homem, que não
+sei como ainda lhe não deram a cruz de beneficencia.
+
+FIM DA NECESSIDADE.
+
+
+
+
+A PORTARIA DO CEU
+
+
+I
+
+O tio Paciencia era um pobre sapateiro remendão, o qual ganhava
+honradamente o pão de cada dia, mette que mette a sovella e puxa que
+puxa o fio, em um portal de Madrid, e devia o apellido por que era
+conhecido á resignação com que sempre tinha soffrido os muitos
+trabalhos, que o Senhor lhe havia dado.
+
+Ao tempo da constituição de 1820, era já rapaz dos seus quinze ou
+dezeseis annos, mas tinha a innocencia de uma creança de oito, e como
+ouvisse a cada passo dizer que todos os homens eram eguaes, perguntou ao
+mestre se aquillo seria verdade.
+
+--Não acredites n'essas cousas, lhe respondeu o mestre. Só no ceu é que
+os homens são eguaes.
+
+Sentiu o rapaz que não acontecesse outro tanto na terra, mas consolou-se
+com a idêa de que o eram no ceu, e quando algum freguez da loja
+convidava o mestre para beber uma pinga na taberna proxima, dizia com os
+seus botões o pobre aprendiz:
+
+--Pena é que não sejamos todos eguaes na terra, como succede no ceu,
+porque se assim fosse, por certo que o freguez me não differençaria do
+mestre, e, como elle, iria eu tambem agora á taberna beber a minha
+pinga; mas, acabou-se... paciencia... no ceu seremos todos eguaes.
+
+Passados dois annos, coube-lhe a sorte do recrutamento; então mais do
+que nunca teve elle motivo para lamentar que os homens não fossem eguaes
+na terra como no ceu, por isso que na sua companhia havia soldados
+distinctos, e cabos, sargentos e officiaes, que provavam ser verdade
+aquillo que o mestre lhe tinha dito ácerca da egualdade humana; porém
+consolava-se ainda o pobre rapaz, pensando que no ceu se acabariam as
+distincções, e todos seriam eguaes.
+
+Deixou de servir o rei, e aproveitando-se do pouco que sabia do officio
+de sapateiro, estabeleceu-se n'um portal, e alí passou o resto dos seus
+dias, conformando-se com as privações que soffria, na esperança de ir
+para o ceu e gosar então d'essa igualdade, que não encontrára na terra.
+
+No andar nobre da casa, cujo portal occupava, vivia um marquez, que por
+certo muito o houvera magoado com o espectaculo da sua opulencia, se não
+fôra um excellente homem, e a não ser tamanha a sua paciencia, e sobre
+tudo tão arreigada no seu coração a esperança de lhe poder dizer um dia
+no ceu: «meu amiguinho, aqui todos nós somos eguaes.»
+
+Não era porém só o marquez que lhe fazia sentir, que não fossem todos os
+homens eguaes na terra; até os seus amigos mais intimos queriam
+differençar-se d'elle. Estes amigos eram o tio Mamerto e o tio Macario,
+homens de tão boa conducta, que não podia o tio Paciencia viver sem a
+sua honrada companhia.
+
+O tio Mamerto tinha uma paixão desenfreada pelos toiros, e passava por
+ser muito entendido em materia tauromachica.
+
+Quando, no reinado de Fernando VII, se creou uma escóla para ensinar
+esta sciencia, esteve o bom do homem quasi a ser nomeado _lente
+cathedratico_ da faculdade, e este precedente era o bastante para que
+elle se considerasse superior ao tio Paciencia, o qual, reconhecendo
+esta superioridade, se consolava pensando que, se o seu querido amigo e
+elle não eram eguaes na terra, o seriam por certo no ceu.
+
+O tio Macario era muito feio, mas casou com uma mulher lindissima, porém
+levadinha da breca.
+
+Ao cabo de vinte annos d'um viver amargurado, morreu-lhe o demonio da
+mulher, e o pobre homem ficou tão descançado que lhe parecia ter entrado
+no ceu; passados tempos, enamorou-se d'outra rapariga, que não ficava a
+dever nada á primeira, e casou segunda vez, apesar de todos os esforços
+que o seu amigo, o tio Paciencia, fez para lhe tirar isso da cabeça.
+Ora, como o tio Paciencia nunca tinha conseguido que as mulheres se
+agradassem d'elle, ao passo que do tio Macario se agradavam aos pares,
+julgava este ter certa superioridade sobre o primeiro, que, da sua
+parte, não deixava tambem de a reconhecer, e que devéras se teria
+affligido com isso, se não fôra a lembrança de que o seu bom amigo e
+elle seriam eguaes no ceu, já que na terra o não podiam ser.
+
+O tio Mamerto era capaz de ir até ao fim do mundo para assistir a uma
+corrida de toiros; tanto assim, que até costumava dizer: «Parece-me que
+trocava de bom grado a gloria eterna por uma boa tourada», ao que o tio
+Paciencia replicava sempre, agastado: «Homem, não digas heresias, que
+não vá Deus castigar-te.»
+
+Um dia em que os passaros caíam das arvores, assados pelo sol, havia em
+Getafe uma corrida de garraios; o tio Mamerto, foi vêl-os, _á pata_,
+segundo o seu costume, e, de volta a casa, acamou com uma febre, que o
+levou d'esta para melhor vida.
+
+No mesmo dia estava muito mal, na cama, o tio Macario, por causa d'uma
+tremenda coça que a mulher lhe tinha dado, porquanto se a primeira
+mulher lh'as dava grandes, a segunda não lhe ficava atraz. A mulher, que
+nunca perdia a occasião de lhe communicar uma boa noticia, deu-se pressa
+em lhe participar, que o tio Mamerto tinha _esticado a canella_, e
+ouvindo isto, o pobre Macario, que já não estava para muitos sustos,
+_esticou_ tambem a sua.
+
+Como eu já disse, não podia o tio Paciencia viver sem os seus dois
+amigos, porque lhes queria muito. Estranhando que, em todo o dia, elles
+lhe não tivessem apparecido para palestrar um pouco e fumar um cigarro
+na sua companhia, quando á noitinha deixou o trabalho, foi procural-os,
+e soube então que ambos tinham morrido. Essa noticia causou-lhe um abalo
+enorme, e, n'aquella mesma noite, tomou atraz d'elles o caminho do outro
+mundo, com a grande consolação de que ia finalmente para onde todos os
+homens eram eguaes.
+
+Toda a visinhança sentiu muito a morte do tio Paciencia, pois todos
+depositavam tamanha confiança na sua honradez e no seu caracter docil e
+serviçal, que, quando careciam de trocar algumas notas do banco
+d'Hespanha, encarregavam d'isso o tio Paciencia, que era capaz de morrer
+arrebentado, para dar conta da incumbencia.
+
+Na manhã seguinte á morte dos tres amigos, o bruto do creado particular
+do marquez, quando entrou no quarto, teve a imprudencia de dizer a seu
+amo que o sapateiro do portal morrêra, ao saber que dois amigos seus
+tinham faltado quasi de repente. E como o marquez era um fidalgo muito
+apprehensivo, e corriam uns certos rumores de cholera em Madrid,
+assustou-se tanto com a saída de sendeiro do bruto do creado, que,
+poucas horas depois, era cadaver, com grande desgosto da pobreza do
+bairro. E por todas as partes se se ouvia dizer: «Estes homens, assim,
+nunca deviam morrer.»
+
+
+II
+
+O tio Paciencia emprehendeu a jornada do ceu, muito contente com a
+esperança de gosar da gloria eterna, de viver em um mundo onde todos os
+homens eram eguaes, e finalmente de encontrar ali os seus queridos
+amigos Mamerto e Macario. Com relação porém a este ultimo pensamento não
+deixava elle de ter suas duvidas, porque dizia lá para os seus botões:
+
+--E se lhe não querem abrir as portas do ceu?! Elles foram sempre homens
+de bem ás direitas; mas o demonio da paixão de Mamerto pelos toiros, e a
+tolice do Macario de casar segunda vez, tendo-se saído tão mal da
+primeira, fazem-me receiar que lhes dêem com a porta na cara.
+
+Para saír um tanto de duvida, perguntou a um viandante se tinha visto
+passar por alí dois sugeitos, com estes e aquelles signaes; e como elle
+lhe respondesse affirmativamente, proseguiu o tio Paciencia no seu
+caminho, mais alegre que umas paschoas.
+
+O caminho do ceu era escabroso e áspero, e essa era por certo a razão
+porque n'elle se não encontrava senão gente pobre e habituada á fadiga.
+
+Impressionado o tio Paciencia por não ver nenhum _figurão_, entre tantos
+caminhantes, dizia, de si para si:
+
+--Não admira que os homens ricos não façam esta viagem, porque teriam de
+fazel-a no cavallinho de S. Francisco. Se podessem emprehendel-a de
+carruagem, os diabos me levem, se não viamos por aqui mais trens do que
+no Prado e na Fonte Castelhana.
+
+O tio Paciencia interrompeu as suas reflexões ao vêr approximar-se,
+vindo do lado do ceu, um homem, que chorava como um bezerro, e dava
+mostras da maior desesperação. Era nada mais nem nada menos do que o tio
+Mamerto.
+
+O tio Paciencia sentiu uma pancada no coração, annunciando-lhe alguma
+desgraça, quando reconheceu o seu amigo.
+
+--O que tens tu, homem? perguntou elle ao tio Mamerto.
+
+--Que demonio hei-de eu ter! Se eu não fosse um bruto, como não ha
+segundo, não me fechavam para sempre as portas do ceu!
+
+--Mas então como foi isso? explica-te com a bréca, que me tens o coração
+em talas. Aposto que não foi senão por causa da maldita paixão pelos
+toiros.
+
+--Parece-me que concorreu.
+
+--Vamos, por quem és, conta-me o que se passou.
+
+--Cheguei á portaria do ceu, e encontrei alí uma porção de gente, que
+estava á espera de vez para entregar os passaportes para o outro mundo.
+O porteiro, que visava os papeis, com a sua grande calva _á mostra_, e o
+seu mólho de chaves na mão, levava a coisa com toda a pachorra, e
+moía-os com perguntas, primeiro que permittisse a entrada. Eu, que, como
+é bem natural, estava morto por me vêr lá dentro, disse com os meus
+botões:--Este velho, com os seus vagares, é capaz de me conservar aqui
+de fóra até á noite. Pois deixa estar, que se te pilho distraído, atiro
+commigo lá para dentro, ainda que depois me cortes uma orelha, como
+fizeste ao pobre Malco. Estava eu a pensar n'este expediente, quando
+vejo o porteiro armar uma questão com um pobre diabo, a quem não deixava
+entrar, com o pretexto de ter sido apaixonado de toiros. Ahi temos nós
+os toiros! disse eu, ao vêr aquillo. O velhote é capaz de me fazer
+esperar uma eternidade, e por fim, se chega a saber que tambem fui
+affeiçoado ás toiradas, nega-me a entrada, como aconteceu com o outro. E
+que faço eu? Assim que o porteiro deu uma volta: zás! _raspo-me_ lá para
+dentro. Já dava graças a Deus pela minha resolução, e vae senão quando o
+porteiro, dá-lhe na cabeça contar quantos estavam na portaria, e conhece
+que lhe falta um.
+
+«--Falta-me aqui um! grita enraivecido, e aposto uma orelha que não é
+senão o madrileno. Ou elle não fosse de Madrid, o maroto, que se escoou
+lá para dentro como um gato: deixa estar que já vamos ajustar contas!
+
+«--Ó meu senhor, disse da banda um adulador, que tinha assim geitos de
+cortezão, quer que eu lh'o saque de lá para fóra por uma orelha?
+
+«--Deixemos-nos d'orelhas, respondeu o velhote; e chamando uns musicos,
+a quem fallava com muito agrado, porque parece que lhe tinham sido
+recommendados por Santa Cecilia: Toquem lá a musica da saída do toiro!
+
+«Os musicos começam de tocar, e eu (sempre sou muito bruto!) ao ouvir
+aquelle toque, julgo que ha corrida de toiros na portaria, e sáio muito
+lépido a vêl-a; de repente, o porteiro fecha a porta e deixa-me ficar de
+fóra, com uma cara de palmo e meio, dizendo-me:
+
+«--Vá já para o inferno, seu meliante, que uma paixão por toiros como
+essa, não póde Deus perdoal-a.
+
+«E aqui tens tu, querido Paciencia, como eu vou caminho do inferno por
+causa da minha maldita mania pelas toiradas!»
+
+O tio Paciencia prorompeu em amargo pranto ao vêr a infelicidade do seu
+velho amigo, e esteve quasi a prégar-lhe um sermão, mas não o fez por se
+lembrar de que era prégar no deserto; ambos continuaram, por ultimo, o
+seu caminho; o tio Paciencia o do ceu, que era costa acima, e o tio
+Mamerto o do inferno, que era costa abaixo.
+
+--Querem vêr que tambem me acontece alguma na portaria? O tal senhor
+porteiro tem um geniosinho endemoninhado!
+
+Isto dizia o tio Paciencia, seguindo sempre o seu caminho, quando
+avistou outro homem, que vinha do lado do ceu. Este não se carpia, nem
+se arrepellava; trazia porém a cabeça baixa, e denotava profunda tristeza.
+
+--Esperem! disse o tio Paciencia. Os diabos me levem se aquelle não é o
+tio Macario! Pois que? Não é senão elle!
+
+Com effeito, o tio Macario era o da cabeça baixa.
+
+Os dois amigos abraçaram-se commovidos.
+
+--Tu por aqui, Paciencia! disse o tio Macario. Para onde vaes, homem?
+
+--Ora, para onde hei de eu ir? Vou para o ceu.
+
+--Duvido muito que lá entres.
+
+--Então porque?
+
+--Porque é difficilimo entrar lá.
+
+--E em que consiste a difficuldade?
+
+--Consiste em ser o porteiro o velho mais caturra, que eu tenho visto. E
+para prova, basta o que se deu commigo.
+
+--Conta depressa.
+
+--Uma frioleira! Chegamos, eu e outro, á porta; chamamos, e apparece-nos
+o porteiro, com a sua grande calva e o competente mólho de chaves na mão.
+
+«--Que é o que querem? pergunta elle.
+
+«--Essa não está má! o que havemos nós de querer senão entrar?
+
+«--Você é casado ou solteiro? pergunta o velho ao meu camarada.
+
+«--Casado, responde o tal sugeito.
+
+«--N'esse caso póde entrar, que basta essa penitencia para um homem
+ganhar o ceu; e isto por maiores que sejam os peccados, que haja
+commettido.
+
+«E o meu companheiro entrou lá para dentro.
+
+«--Caspite! disse eu com os meus botões; se aquelle ganhou o ceu por se
+ter casado uma vez, com mais razão o devo eu ter ganho por me haver
+casado duas. E larguei atraz do meu companheiro.
+
+«--Onde vae o senhor? perguntou o porteiro, detendo-me por uma orelha.
+
+«--Homem, o senhor deve estar farto de o saber! Vou para o ceu.
+
+«--É casado ou solteiro?
+
+«--Casado duas vezes á falta d'uma.
+
+«--Duas vezes?!
+
+«--Sim, senhor, duas vezes.
+
+«--Pois vá para as profundas do inferno, que tolos d'esse lóte não têm
+entrada no ceu.
+
+«E aqui vou eu, amigo Paciencia, caminho do inferno! São coisas que só a
+mim acontecem!...»
+
+--É bem feito, disse o tio Paciencia, entre compadecido e indignado da
+parvoice do seu amigo. Não te dizia eu que não podia obter perdão de
+Deus quem duas vezes se casasse?
+
+O tio Paciencia já não ia muito satisfeito e tranquillo, ao aproximar-se
+das portas do ceu, porque as noticias que recebera do geniosinho do tal
+porteiro, eram, na verdade, para intimidar o mais pintado.
+
+--Vamos, tio Paciencia, dizia elle, é preciso que não desmintas, n'esta
+occasião, o appellido que te puzeram, porque, se consegues catechisar o
+porteiro, cólas-te lá dentro, e depois é que já ninguem te dá volta. O
+velhote é exquisito de genio, caturra e curioso como todos os
+porteiros... Mas tambem, deve a gente lembrar-se de que o pobre do homem
+é tão velho, que já não póde com os calções, e devemos ser indulgentes
+para com os velhos como para com as creanças, porque os extremos
+tocam-se. Demais, a paciencia é uma virtude, que o proprio Jesus
+recommendava ao apostolo S. Pedro, como se vê da seguinte cantiga:
+
+ Era S. Pedro na calva
+ perseguido do mosquito,
+ e o Mestre lhe dizia:
+ --Tem paciencia, _Periquito_!
+
+Ao terminar estas reflexões, avistou o tio Paciencia as portas do ceu, e
+estremeceu d'alegria, lembrando-se de que estava já a meio kilometro de
+distancia do mundo onde todos os homens eram eguaes.
+
+Chegou finalmente á portaria, e viu que não havia lá viva alma, o que
+devéras lhe agradou, porque assim não se expunha a morrer arrebentado,
+como quando ia trocar notas ao banco d'Hespanha.
+
+Deu uma aldrabada pequena na porta, e um velho, que não tinha um pello
+na cabeça, abriu o postigo e perguntou-lhe:
+
+--O que quer você d'aqui?
+
+--Ora, o Senhor lhe dê muito boas noites, lhe tornou o tio Paciencia,
+com a maior humildade, tirando o chapeu. Como passou? Passou bem?
+
+--Muito bem, muito obrigado. Mas o que queria o senhor?
+
+--E a senhora e os meninos estão de saúde?
+
+--Homem, despache d'aí, diga o que quer.
+
+--O senhor não tem senão desculpar... mas... nada... eu... vinha vêr se
+o senhor me deixaria entrar.
+
+--Sente-se ahi, n'esse banco, e espere que venha mais gente, que não se
+póde andar sempre a abrir e a fechar esse maldito portão, que é mais
+pesado que um marido jogador.
+
+--Está bem, senhor, essa é boa; faça favor de perdoar.
+
+--Não ha de quê.
+
+O velhote fechou o postigo, e o tio Paciencia, a quem as ultimas
+palavras, que ouvíra, deram alma nova, sentou-se n'um banco, e começou o
+seguinte soliloquio, para passar o tempo:
+
+--O tal senhor porteiro é realmente um grande caturra. Quem diabo podia
+suppôr que o homem se esquentaria por eu o cumprimentar como Deus manda!
+Mas apesar de ter o genio um tanto assomado, bem se conhece que é um
+santo. Pois, senhor, esperemos aqui, no banco da paciencia.
+
+Estava o tio Paciencia entretido a apertar um cigarro, quando, ouvindo
+uma tremenda aldabrada na porta, que por pouco a fazia em hastilhas,
+ergueu a cabeça, e viu então que a pessoa, que com tanta arrogancia
+chamava, era nem mais, nem menos, que o seu visinho marquez.
+
+--É melhor bater com a cabeça! gritou de dentro o porteiro, ao ouvir
+aquelle barulho. Quem é o bruto que chama assim?
+
+--O excellentissimo senhor marquez de Pelusilla, grande d'Hespanha de
+primeira classe, cavalleiro de todas as ordens creadas e por crear,
+senador do reino, etc., etc.
+
+Mal isto ouviu, o porteiro abriu de par em par a porta, quebrando pelo
+espinhaço com muitas reverencias, e exclamando:
+
+--Perdoe v. exc.^a se o fiz esperar algum tempo, mas... é que eu não
+suppunha, que tivessemos por cá tamanha honra. Queira v. exc.^a entrar,
+que, pela _balburdia_ que lá vae por dentro, é de crêr que já tenha
+corrido a noticia de que temos por estes bairros o cavalheiro mais
+illustre e mais rico de toda a Hespanha.
+
+Com effeito o ceu estava alvoroçado com a chegada do marquez, para o
+qual começava a improvisar-se uma recepção esplendida. Repicavam os
+sinos, e os foguetes cortavam o ar em todas as direcções; já não havia
+uma varanda, nem uma janella d'onde não pendesse um cobertor de damasco,
+ou quando menos uma colcha de chita, modesta, mas vistosa. As imprensas
+vomitavam versos (ih! que nojo!) em louvor do marquez; os garôtos
+_esganiçavam-se_ todos a dar vivas a sua excellencia; as virgens
+largavam a costura, e vestindo-se de branco, e pondo na cabeça a sua
+grinalda de flores, lançavam mão da lyra, e tocavam e cantavam como
+desesperadas; desde as charangas das ruas até a orchestra do theatro
+real, todas as musicas faziam ouvir as suas harmonias; em summa, era
+tudo festa, jubilo e regosijo. Até o proprio porteiro, quando voltou a
+fechar a porta, deu um pulo de contente, exclamando:
+
+--Bravissimo! Hoje é dia de atirar uma cana ao ar!
+
+--Sim, como não atires a cabeça!... rosnou por entre os dentes o tio
+Paciencia, indignado com o que estava presenciando.
+
+Repetiam-se lá por dentro as manifestações d'alegria, e o estrondo dos
+festejos, e o tio Paciencia, que assistia áquelle enthusiasmo,
+continuava n'estes termos o seu soliloquio:
+
+--E esta!... Ainda me custa a acreditar o que por aqui vae com a chegada
+do marquez! Com que, passo toda a minha vida a soffrer com santa
+paciencia os trabalhos e humilhações da terra, imaginando que no ceu
+todos os homens são eguaes, e que, por conseguinte, me verei aqui livre
+de todos os meus pesares e apoquentações, e no fim de contas, chego ás
+portas do ceu e recebo logo a prova mais irritante de desegualdade, que
+póde imaginar-se! Com que então, aqui, como na terra, a mim, porque sou
+um pobre sapateiro, fazem-me estar, como um espantalho, á espera na
+portaria, e ao marquez, só porque é marquez e rico, e por vir carregado
+de cruzes e _calvarios_, abrem-se-lhe, de par em par, as portas, e
+recebem-n'o com repiques de sinos, com foguetes, musicas, versos, e
+colchas de seda nas janellas!... Isto realmente é para fazer ferver o
+sangue nas veias a um santo!... Porém, paciencia, snr. Paciencia!... Se
+consigo a final entrar lá para dentro, o que já me vae parecendo bem
+difficil, posso reputar-me feliz, porque alli deve passar-se
+divinamente, a julgar pelo pouco que vi, quando o velho deu passagem ao
+marquez, e pela baforada, que sae, quando abrem ou fecham a porta ou o
+postigo.
+
+O barulho que este fez ao abrir-se, tirou o tio Paciencia das suas
+meditações; fez-se vêr a calva do porteiro, o qual vinha examinar se já
+havia gente reunida, á espera, na portaria.
+
+--O que faz você ahi? perguntou o porteiro, reparando no tio Paciencia.
+
+--Senhor, respondeu humildemente o tio Paciencia, estava esperando...
+
+--Se as lebres esperassem tanto!...
+
+--Como o senhor não apparecia...
+
+--Tem razão, tem... são tantas as coisas em que tenho que pensar, que de
+todo se me varreu da idêa... Eu vou já abrir, amigo. Ora!... mas porque
+não chamou por mim, homem de Deus?!...
+
+--O senhor bem vê que... como sou um pobre sapateiro...
+
+--Qual sapateiro, nem qual cabaça! aqui no ceu todos os homens são eguaes.
+
+--Devéras?! exclamou o tio Paciencia, dando um salto d'alegria.
+
+--Pois, então!... Não faltava mais nada senão andarmos aqui com
+cathegorias! Isso é bom lá para a terra! Vamos, entre cá para dentro.
+
+O porteiro nem por isso abriu toda a porta, como quando entrou o
+marquez, mas o sufficiente para que podesse passar _um homem_. O tio
+Paciencia acercou-se da cancella, lançou um relancear d'olhos lá para
+dentro, e deteve-se ali, dolorosamente surprehendido. As virgens não
+largavam a costura, nem os rapazes saíam da escóla; não havia uma triste
+sineta que tocasse; os foguetes não rasgavam as nuvens; as musicas não
+deixavam ouvir as suas harmonias; nem sequer uma pobre colcha de chita
+adornava as janellas, nem tãopouco as imprensas vomitavam versos!...
+
+O porteiro, que não tinha nada de tolo, adivinhou o doloroso espanto do
+tio Paciencia, e acudiu a desvanecel-o, dizendo-lhe:
+
+--Que quer isso dizer, homem? Então fica para ahi pasmado, em vez de
+entrar cá para dentro?.
+
+--Não me disse o senhor, ainda ha pouco, que no ceu todos os homens eram
+eguaes?
+
+--Disse, sim senhor, e d'ahi?...
+
+--Então... como é que ao marquez...
+
+--Homem, você se não é tolo, parece-o! Pois não leu na sagrada
+escriptura, que é mais facil entrar um camello pelo buraco d'uma agulha
+do que um rico no ceu?...
+
+--Não, senhor, não sabia isso.
+
+--Pois póde acreditar que é a pura verdade. Sapateiros, ferreiros,
+lavradores, mendigos, gente, em summa, farta de trabalhar e de padecer,
+chega aqui a todo o instante, e não temos que estranhar a sua chegada.
+Já outro tanto não acontece com os ricos e os fidalgos; passam-se
+seculos sem vermos o _focinho_ a um figurão, como esse que veiu hoje, de
+modo que, quando algum nos apparece por cá, anda tudo n'uma poeira! Ora,
+venha, ande lá para dentro, que já é tempo de descançar.
+
+O tio Paciencia transpoz o limiar da porta, e não podendo com a alegria,
+que o dominava, caíu de joelhos, e exclamou, erguendo as mãos para o
+Senhor, que saía ao seu encontro:
+
+--Senhor! Bemdito sejaes vós, que daes a bemaventurança eterna aos que
+padecem na terra!
+
+FIM DA PORTARIA DO CEU.
+
+
+
+
+O PRESTE JOÃO DAS INDIAS
+
+
+I
+
+Não basta que os contos populares deleitem: é mister que, ao mesmo tempo
+que deleitam, ensinem.
+
+Este que vou contar não sei se satisfará á primeira condição; a segunda
+porém, ha de por certo preenchel-a, por isso que o leitor, que o levar a
+cabo, ficará sabendo quem era o Preste João das Indias, do qual todos
+fallam, e pouquissimos são os que o conhecem, a não ser de nome.
+
+Pois, senhores, havia nas Indias um rei mui poderoso, cujo unico
+successor directo era uma filha de tres ou quatro annos. Como o monarcha
+se sentisse muito mal, chamou todos os grandes do reino, e fallou-lhes
+do seguinte modo:
+
+--Ando tão adoentado, ha tempos a esta parte, que milagre será não
+esticar a canella antes de oito dias, e confesso que essa partida tão
+repentina para o outro mundo, me penalisa em extremo, por quanto
+desejava deixar casada a minha augusta filha; e no emtanto S. A. não
+passa por ora d'um _comecilho_. Asseguro-vos que pouco me importa
+morrer, porque para morrer todos nós nascemos, e demais, tanto faz
+morrer hoje como amanhã; porém o que eu não queria era que a pequena se
+casasse para ahi qualquer dia, em virtude de altas razões d'estado, com
+um principe, que não fosse muito do seu agrado.
+
+--Senhor, lhe tornou um dos homens politicos mais importantes do reino,
+faz V. M. muito mal em estar a affligir-se com essas coisas. Quando a
+princeza chegar á edade de tomar estado, ha de casar-se com o principe,
+que fôr mais do seu gosto; e se houver no reino quem se atreva a querer
+oppôr-se á liberrima escolha de S. A., esteja V. M. certo de que tem que
+se haver comnosco.
+
+--Ora, ora! Então cuidas tu que eu engulo essas _patranhas_? replicou o
+rei, traduzindo a sua incredulidade n'uma estrepitosa gargalhada. Nem
+que eu não soubesse o que são os partidos politicos! Aquelle que então
+estiver no poder apresentará a minha filha o seu candidato, e a pobre
+pequena terá de se aguentar, não com o marido que mais fôr do seu gosto,
+mas sim com aquelle que mais convier aos seus ministros, os quaes, só
+por satisfazerem mesquinhos interesses de partido, serão capazes de a
+obrigar a casar ainda que seja com o moiro Musa.
+
+--Mas, senhor, V. M. deve lembrar-se de que este paiz é um paiz
+essencialmente monarchico...
+
+--Isso é bom de dizer! Não estamos nós vendo, todos os dias, homens
+politicos, que nos concedem, a nós os reis, até o direito divino, e que,
+se um bello dia lhe não agradamos, nos chegam, inclusivamente, a negar o
+direito de pessoas decentes!
+
+--De accôrdo, mas é que esses são uns vilões que nunca deveram ter parte
+na luta dos partidos.
+
+--Mas o grande caso é que a têm no goso dos direitos constitucionaes.
+
+--Em summa, ordene V. M. o que lhe aprouver, e eu lhe assevero, que póde
+marchar tranquillo para o outro mundo, e sem o menor receio de que
+deixemos de cumprir rigorosamente as suas ordens.
+
+--Pois bem, n'esse caso escutae-me: quando minha augusta filha estiver
+em edade do tomar estado (e isso é coisa, que facilmente se conhece),
+deveis dar-lh'o a saber, tendo em vista todo aquelle recato com que se
+deve fallar d'essas coisas a uma donzella; em seguida fareis apregoar
+por todas as nações do mundo, que a vossa rainha e senhora resolveu
+casar-se, e dará a sua mão ao principe, que mais fôr do seu agrado.
+
+--Até ahi estamos bem; mas V. M. sabe que o mundo se divide
+principalmente em tres religiões, a saber: a religião christã, a
+mahometana e a judaica. Devo portanto suppôr que V. M. terá já formado o
+seu juizo, ácerca da religião a que deve de pertencer o seu augusto genro.
+
+--Homem, francamente, ainda nem tal coisa me passou pela cabeça.
+
+--Ah! pois isso é coisa muito séria!
+
+--Vae-te d'ahi com esses teus escrupulos de freira! Vós todos sabeis que
+no meu reino não ha religião alguma. A fallar a verdade, já por vezes
+tenho pensado sobre se conviria ou não que a houvesse, porque ha muito
+quem diga, que não póde haver sociedade sem o freio da religião; porém,
+no fim de contas, tenho acabado sempre por dizer cá para os meus botões:
+«deixar correr; quem me manda a mim metter a redemptor? Que religião
+póde haver n'um paiz tão desmoralisado como este, onde todos os dias se
+manda gente á forca?! Vá uma pessoa introduzir aqui, por exemplo, a
+religião christã, segundo a qual todos os homens são eguaes: haviam de
+marchar bem as coisas, desde o momento em que os escravos, que tiram os
+coches, soubessem que valem tanto como os senhores, que vão dentro
+d'elles, mui _repimpados_!»
+
+--Visto isso, entende V. M. que a melhor religião... é não ter religião
+nenhuma, não é verdade?
+
+--Não digo isso, homem; nem tanto ao mar, nem tanto á terra. O que eu te
+digo é que não tenho querido quebrar demasiado a cabeça, pensando em
+coisas tão delicadas. Que escolha, minha augusta filha, marido do seu
+gosto, e ainda mesmo que seja pêrro judeu...
+
+Assim terminou a conferencia do rei com os próceres da republica, e
+avisado andou S. M. em não a deixar para o dia seguinte, porque
+n'aquella mesma noite teve um ataque tão forte, que esticou a canella,
+sem ter tempo sequer para dizer «Jesus».
+
+
+II
+
+Como era natural, apenas o rei morreu, levantou-se a questão da escolha
+d'uma regencia, que devia tomar as rédeas do governo, durante a
+menoridade de sua excelsa filha, e então é que foram ellas!
+
+Sobre se a regencia devia ser de tres, ou d'um unico estadista, e se
+este deveria ser Pedro ou Paulo, levantou-se tamanha tempestade, que ia
+tudo pelos ares. Por ultimo optaram pela regencia _una_, e por então
+terminou a contenda; porém os partidos politicos, para os quaes vêr os
+seus contrarios no poleiro e vêr o diabo é tudo uma e a mesma coisa,
+começaram novamente a tecer os pausinhos. Era o regente um soldado
+destemido e honrado d'uma vez; porém como homem d'estado não passava
+d'um _simplorio_, que entendia tanto de governo como eu entendo de
+lagares d'azeite; os seus inimigos, aproveitando-se da inepcia com que
+elle dirigia a politica, não descançaram em quanto lhe não deram um
+pontapé, e o expulsaram do palacio.
+
+Nomeou-se novo regente. Este então era um passaro que cantava na mão,
+porém ao mesmo tempo, tão medroso, que apenas ouvia um tiro, era capaz
+de se metter cem braças pela terra abaixo; d'ahi resultava que cada dia
+havia um pronunciamento.
+
+Por effeito de um d'esses pronunciamentos, caíu o regente, e
+organisou-se então uma regencia composta de tres magnates.
+
+Até ali era um só a crear nichos para empregar os seus amigalhotes, um
+só a querer enriquecer á custa da nação, um só a monopolisar os favores
+da joven princeza, e um só a governar mal; multipliquem agora esse um
+por tres, e imaginem a poeira, que se levantou com a tal regencia trina!
+
+Conheceu finalmente a princeza que estava em edade de casar-se, e correu
+voz, por todas as nações, de que ella punha a sua mão a _concurso_ e a
+daria ao principe, que mais lhe agradasse.
+
+Os primeiros, que acudiram ao reclame, foram os judeus, os quaes
+trajavam rica e vistosamente, e tinham o cuidado de fazer tinir bem o
+dinheiro diante da princeza, suppondo talvez, que o vil _metal_ teria
+para ella tantos attractivos como para elles; e, emquanto os que iam á
+_mostra_ faziam sua côrte á princeza, andavam os rabinos pelos cêrros
+pedindo a Deus, que désse a algum dos da sua casta aquella boa pequena,
+que tão bello partido era.
+
+Chegaram em seguida os mahometanos, e era muito para se vêr, tantos
+moiros montados em cavallos, mais ligeiros que o vento, escaramuçando e
+jogando canas, a vêr se, assim, engodavam a princeza.
+
+Afinal appareceram os christãos, que, com suas justas e torneios, e o
+seu porte cheio de garbo e gentileza, sabiam encantar o coração das
+donzellas.
+
+--Então, em qual das tres religiões escolhe V. M. marido? perguntou o
+presidente do conselho de ministros á rainha.
+
+--Homem, nem sei o que te diga, respondeu a rainha. Bem se diz que quem
+tem que escolher tem que fazer. Se queres que te falle verdade, gosto de
+todos.
+
+--Vamos, mas V. M. precisa decidir-se por um.
+
+--Asseguro-te que sinto realmente devéras não poder decidir-me, sequer
+ao menos, por tres. Olha, que entre os christãos ha alguns rapazes bem
+guapos!... mas entre os judeus e os moiros... não te digo nada!...
+
+--Em summa, disse o presidente do conselho, isto não é sangria desatada;
+deixe-os V. M. penar, uns e outros, por espaço d'alguns mezes, e depois,
+então, poderá V. M. escolher, com perfeito conhecimento de causa; isto
+de escolha de marido é, para as raparigas, operação muito delicada...
+
+O presidente do conselho teve a honra de que S. M. seguisse o seu
+parecer, e christãos, mahometanos e judeus, continuarem a fazer as suas
+_zumbaias_ á real moça, cuja mão ambicionavam.
+
+Chegou noticia a Roma do que se passava nas Indias, e o Padre Santo
+ordenou que se fizessem preces, para que Deus inspirasse a rainha afim
+de que casasse com um christão, coisa que redundaria em gloria e
+augmento da christandade.
+
+Havia n'aquelle tempo em Roma um Preste ou sacerdote, ainda moço,
+conhecido pelo nome de Preste João, o qual era a admiração de toda a
+gente, em rasão do seu saber e virtudes, zelo religioso e galhardia.
+
+O Preste João apresentou-se ao Padre Santo, e disse-lhe:
+
+--Santissimo Padre, o que se está passando nas Indias é, quanto a mim,
+coisa mais seria, do que parece, á primeira vista. Aquillo é um paiz
+desgraçado, onde ninguem crê em Deus, nem em Santa Maria; onde todos são
+impios e atheus. Se a rainha se casa com algum pêrro judio, estamos bem
+aviados; vae tudo para o diabo. Se porém a rainha dér a mão de esposa a
+um christão, corto a cabeça, se todos os indios, dentro em poucos annos,
+não forem tão christãos como nós. Posto isto, vou pedir uma graça a
+Vossa Santidade.
+
+--Se fôr coisa que eu possa conceder-te...
+
+--Que V. S. me deixe ir ás Indias, para ver se faço entrar aquella gente
+no bom caminho.
+
+--Estás servido, filho; pódes partir quando quizeres.
+
+--Pois, n'esse caso, vou immediatamente tirar passaporte.
+
+--Toma cuidado, filho; vê lá que esses infieis te não preguem alguma
+peça... particularmente os judeus...
+
+--Isso não me mette medo, que por muito que saibam, sempre hei de saber
+mais do que elles.
+
+--Pois vae na graça de Deus, e leva comtigo a minha benção paternal.
+
+--Graças, Santissimo Padre!
+
+Foi dito e feito; o Preste João, acompanhado d'um luzidissimo séquito de
+sacerdotes, em cujo numero se contavam os melhores cantores de Roma, e
+munido de riquissimos paramentos e decorações d'egreja, inclusive um
+orgão, que era o melhor que, até então, se tinha visto n'aquelle genero,
+tomou o caminho das Indias.
+
+Felizmente os inglezes não eram, n'aquella época, tão philantropicos,
+como o são agora, do contrario não teriam deixado de lhe armar alguma
+ratoeira, na idêa em que estão, de que, para civilisar os cypaios, são
+mais eloquentes os seus canhões, carregados de metralha, do que os
+hyssopes dos missionarios catholicos, ensopados em agua benta.
+
+
+III
+
+Os judeus e os moiros souberam que o Preste João se dirigia para as
+Indias, e estavam atrapalhados da sua vida, porque havia muito tempo que
+a fama trombeteira lhes tinha levado noticia do saber, da virtude, do
+zelo religioso, e da extremada galhardia do Preste João.
+
+Chegou este, a final, com o seu séquito, e a rainha ficou enamorada da
+graciosa dignidade, com que elle a saudou, a ponto de não poder ter mão
+em si, que não dissesse, baixinho, ao presidente do conselho:
+
+--Olha que este christão não é _nenhuma asneira_!...
+
+Vendo o Preste João a rainha mui bem disposta em seu favor, aproximou-se
+de S. M., e disse-lhe:
+
+--Senhora, vejo que V. M. vacilla sobre se ha de casar-se com um
+christão, com um moiro, ou com um judeu. Creia V. M. que a religião de
+Christo é a unica verdadeira, grande e salvadora, e que as outras são
+umas _religiõesitas de tres ao vintem_, que nem com cem varas chegariam
+ao ceu, d'onde procede, e onde apoia sua augusta fronte o christianismo.
+E se V. M. se quer certificar de que isto que lhe digo é a pura verdade,
+não tem mais que ordenar, que nos reunamos, na sua presença, judeus,
+mahometanos, e christãos, a fim de discutirmos qual das tres religiões é
+a melhor, e, sobre tudo, qual é aquella, que mais favorece as mulheres,
+pois essa é a grande questão, nas circumstancias actuaes.
+
+--Com muito gosto; não tenho a menor duvida em acceder aos teus desejos,
+respondeu a rainha. Amanhã apresentar-vos-heis todos diante de mim, e
+veremos, então, quem é que leva a melhor.
+
+Com effeito, no dia seguinte, estava a rainha sentada no seu throno, e
+as tres religiões, representadas pelo Preste João, e pelos judeus e
+mahometanos mais sabios, dispostos a discutir na sua presença.
+
+--Está aberta a sessão, disse a rainha. E como era o Preste João quem
+tinha provocado aquelle certame, devia considerar-se como o primeiro, e
+por esse motivo que pedira a palavra, a rainha accrescentou: «Tem a
+palavra o Preste João.»
+
+Os judeus e os moiros começaram logo a murmurar, accusando de parcial a
+augusta presidente; esta porém fel-os entrar na ordem, a poder de muitas
+razões, e toques de campainha.
+
+--Senhores, disse o Preste João, trata-se de orientar a S. M. acerca
+d'um assumpto mui grave, qual é a escolha do homem a quem, de
+preferencia, deve ligar o seu futuro. Ora, o que mais interessa a S. M.,
+é saber o que mais lhe convém, se um marido christão, se mahometano, ou
+judeu; quanto a mim a questão está resolvida, para S. M., desde o
+momento em que esta augusta senhora, ou para melhor dizer, _senhorita_,
+souber qual é das tres religiões aquella, que mais protege e favorece os
+fracos em geral, e a mulher, em particular.
+
+«Comecemos pela religião judaica.
+
+«A mulher, no povo de Israel, era escrava submissa do homem, e não sua
+companheira. Quasi nas primeiras paginas, nos testemunha isso o velho
+Testamento, pois nos diz que Abrahão, marido de Sára, recebeu Agár por
+mulher, ainda em vida da primeira, e logo adiante nos conta que Esaú
+casou, ao mesmo tempo, com duas irmãs cananêas. O Decálogo, revelado
+mais tarde a Moysés, no alto do Sinai, dizia: «não desejarás a mulher do
+teu proximo»; mas não dizia: «terás uma unica mulher», e Salomão, que
+era o prototypo da sabedoria hebraica, teve milhares de concubinas.
+Pergunto eu agora a S. M. se está disposta a soffrer que o seu futuro
+marido lhe dê uma, ou mais substitutas?!
+
+--Substitutas! a mim!... exclamou a rainha indignada. Tenho bom genio
+para isso! Mais facil seria enterrarem-me viva!
+
+--Pois eu continúo....
+
+Aqui interrompem os judeus o orador, descontentes do caminho que leva a
+sua causa; a rainha porém fal-os entrar na ordem, á custa de repetidos
+toques de campainha, e com ameaça de os fazer expulsar do salão.
+
+O orador continúa:
+
+--Ficarei por aqui a respeito de judeus, os quaes, em verdade, me causam
+dó, ainda que não seja senão por os vêr condemnados a esperar o Messias,
+até á consummação dos seculos; com isso já não estão mal castigados por
+haverem crucificado a Christo, porque lá diz o rifão: «quem espera,
+desespera». Passemos agora aos mahometanos. Quem era o tal Mafoma?
+
+--O propheta de Deus! exclamam os mahometanos, pondo a mão no peito, e
+dobrando-se reverentemente.
+
+--Qual propheta, nem qual cabaça!...
+
+Aqui é que foram ellas! Dizer isto o Preste João, e arrancarem os
+_moiraços dos chanfalhos_, rugindo de cólera, foi tudo obra d'um
+momento; a rainha porém sacudiu a campainha, mandou entrar o piquete da
+guarda, e graças a esta energia da presidencia, accommodaram-se os
+perturbadores da ordem, e o orador pôde, a final, continuar:
+
+--Mafoma era um _sugeito_ que passava por sabio e grande, entre os seus
+compatriotas, pela razão muito simples de que na terra dos cégos, quem
+tem um olho é rei! Um dia, disse elle com os seus botões: Como hei de eu
+arranjar a dominar estes _barbaças_, que não tratam senão de se divertir
+com as moças?... como?... esperem lá... já sei. Engendro-lhes uma
+religião baseada no grosseiro sensualismo, e metto-lhes na cabeça, que
+ella me foi revelada por um anjo.» E dito e feito: arranjou o tal
+_alcorão_, segundo o qual, a mulher e o cavallo vem a ser, para o homem,
+uma e a mesma coisa, por isso que apenas servem para o divertir; e fez
+acreditar aos asnos dos seus compatriotas, que, no outro mundo, haviam
+de encontrar moças ás duzias, e obra desenganada.
+
+--E é que as havemos de encontrar! gritam furiosos os mahometanos.
+
+--Deixemos-nos de lerias!... que hão de vocês encontrar?! Só se forem
+alguns tições, que outra coisa não podem lá achar uns barbaros como
+vocês, que atravessam seculos e seculos, sem dar um passo na senda do
+progresso! Vamos porém agora a vêr o que é a mulher, segundo a religião
+estupida de Mafoma.
+
+--Lancem-se essas palavras na acta! gritam, afogados em cólera, os
+mahometanos.
+
+--Não é da minha real vontade! responde a rainha. Prosiga o orador no
+seu discurso, que eu cá estou para lhe manter o uso da palavra.
+
+--Pois bem, eu continúo: É para cortar o coração, e fazer caír a alma
+aos pés, a maneira como a mulher é tratada pelos musulmanos. Não se
+contentam estes senhores com ter duas ou tres mulheres; possuem centos
+d'ellas, encerradas em carceres, a que dão o nome de serralhos, ou
+haréns. Atravessa a gente as cidades mais populosas da Turquia, e não
+encontra uma mulher siquer para um remedio; e isto porque esses barbaros
+até as privam do ar e do sol, as duas coisas mais preciosas, que a
+natureza concede á creatura. Horror! cem vezes horror!! Negarem á
+mulher, esse formoso ser, todo amor e ternura, a quem todos nós temos
+dado o dulcissimo nome de mãe, o ar e o sol, que não negam aos mais
+immundos irracionaes! Maldição sobre essa lei impia, sobre o falso
+propheta, que a dictou, e sobre o povo barbaro e fanatico, que a segue!
+
+--Ah! perro christão!... gritam, a um tempo, todos os musulmanos, ao
+ouvir a energica apostrophe do Preste João; e, rugindo de raiva, mais
+furiosos ainda do que da primeira vez, lançam mão dos alfanges, com
+ameaça de acabar tragicamente com a discussão; a rainha porém, mandou
+entrar novamente o piquete da guarda, que os desarmou e os metteu na
+ordem, a poder de muita coronhada d'armas.
+
+Apasiguada que foi aquella rusga, continuou o Preste João o seu discurso:
+
+--Que differença entre o que a mulher deve á religião christã, e o que
+deve a qualquer das duas religiões, mahometana e hebraica! Maria, em
+cujas entranhas encarnou o Verbo Divino, senta-se, no ceu, ao lado do
+Filho de Deus, e juntamente com Jesus, lhe dão os homens o dulcissimo e
+santo nome de mãe. A religião christã glorifica a mulher, destinando-a a
+esmagar a cabeça da serpente do peccado, e Jesus proclama a egualdade de
+todas as creaturas humanas, e diz aos meninos que se acerquem d'elle,
+igualando, por tal forma, a mulher ao homem, e exaltando os fracos em
+cujo numero se conta a mulher. É pois a religião christã a unica que
+favorece a mulher; é aquella que a emancipa da escravidão e do
+opprobrio, a que a condemnam as religiões judaica e mahometana. Tenho
+dito; veremos agora se ha ahi alguem, que seja capaz de me contradizer.
+
+--Teem a palavra os judeus, disse a augusta presidente.
+
+--A religião de Moysés, replicou um rabino, já completamente desanimado,
+não carece de entrar em discussões, para provar a sua superioridade
+sobre todas as outras.
+
+--Ficamos _inteirados!_ disse a rainha, e accrescentou: Teem a palavra
+os doutores musulmanos.
+
+--Nós _cá_, os verdadeiros crentes, exclamou um turco, não discutimos
+senão d'alfange em punho.
+
+--Quer isso dizer, á bruta! exclamou a rainha indignada; e erguendo-se
+da cadeira, accrescentou: estando já a hora mui adiantada, e não havendo
+mais assumptos a tratar, está levantada a sessão.
+
+
+IV
+
+Ficou a rainha quasi resolvida a casar com um christão; porém, receiosa
+de que houvessem murmurações e commentarios que lhe fossem
+desagradaveis, lembrando-se de que alguem poderia dizer que ella obrára
+levianamente, determinou-se a tentar uma outra prova. Consistia essa
+prova em fazer com que os apostolos das tres religiões celebrassem, na
+sua presença, uma das cerimonias mais importantes dos ritos que
+professavam.
+
+Christãos, musulmanos e judeus, todos, com muito gosto, acceitaram a
+proposta de S. M., que logo fixou o dia para as cerimonias, que deviam
+verificar-se no mesmo salão, onde se tinha discutido qual era das tres
+religiões aquella a que mais devia a mulher.
+
+Os primeiros que saíram a terreiro foram os mahometanos, os quaes
+annunciaram que iam executar a _Zala_.
+
+Tinha a rainha grande curiosidade de presenciar esta cerimonia, que
+julgava ser magnifica, e que muito a divertiria; quando porém viu que a
+tal _Zala_ consistia tão sómente em cruzarem aquelles _ratões_ as mãos
+no peito, e fazerem reverencias e mais reverencias, ficou mais fria que
+o proprio gêlo.
+
+--Muito engraçados são os taes _moirinhos_! disse S. M., com riso
+disfructador; e ordenou, em seguida, que saíssem a campo os judeus, a
+vêr que tal se portavam.
+
+O grande rabino, com o seu barrete _enterrado_ até ás orelhas, como usam
+os seus correligionarios, sacou d'um livro, e immediatamente appareceram
+todos os judeus com os seus ripanços nas mãos. Ora, os taes livros
+seriam muito edificantes, mas tinham tanta côdea, que só com uma tenaz
+se lhes poderia pegar. O rabino principiou a entoar um psalmo, e todos
+os judeus o acompanharam; cantavam porém tão desentoadamente, e davam
+tão insoffriveis bérros, que a pobre da rainha não teve outro remedio
+senão tapar os ouvidos, e mandar a toda a pressa que cessasse tamanha
+algaravia.
+
+Cessou com effeito, e os christãos dispuzeram-se, por ultimo, a celebrar
+o santo sacrificio da missa, para o que o Preste João tinha tudo
+perfeitamente ordenado.
+
+Collocaram no salão um magnifico altar, accenderam uma grande quantidade
+de tochas, que faziam bellissima vista; puzeram o orgão n'um sitio, que
+tinha excellentes condições acusticas, tossiram e _aguçaram o pigarro_
+os cantores que haviam de officiar a missa, e que, como em principio
+dissemos, eram os melhores de Roma; e, em seguida, subiu o Preste João
+ao altar, magnificamente revestido, bem como os dois acólitos, que o
+acompanhavam. A missa foi solemnissima, e tanto os celebrantes, como os
+cantores e o organista fizeram prodigios, que deixaram de bôcca aberta a
+rainha e a sua côrte.
+
+Os mahometanos e os judeus olharam uns para os outros, e disseram por
+entre os dentes:
+
+--Derrotaram-nos em tudo e por tudo estes perros christãos!
+
+E na verdade não se enganaram, porque a rainha chamou, pouco depois, o
+Preste João, e disse-lhe:
+
+--Decididamente caso com um christão.
+
+--Louvado seja o Senhor! exclamou o Preste João, cheio de santa alegia.
+Agora só falta que V. M. escolha o christão, que deve ter a ventura de
+occupar o thalamo de tão formosa princeza.
+
+--Já está escolhido, disse a rainha das Indias, fazendo-se córada como
+uma romã.
+
+--E quem é esse feliz mortal?
+
+--Tu.
+
+--Eu!... V. M. não está em seu juiso!
+
+--Então! faz-te agora de manto de seda!...
+
+--Não, senhora; porém não sabe V. M. que eu sou padre, e que os padres
+catholicos não podem casar?...
+
+--Que me dizes, homem?
+
+--Digo-lhe isto, real senhora!
+
+--Pois, amigo; partiste-me o coração!
+
+--Então, porque?
+
+--Porque estou apaixonada por ti, e se não casar comtigo, não caso com
+ninguem.
+
+--Mas, senhora, entre os meus correligionarios ha moços mais bem
+parecidos do que eu.
+
+--Asseguro-te que nenhum me póde agradar tanto como tu.
+
+--Sinto isso bem; mas eu é que não posso casar.
+
+--Visto isso, não terei outro remedio, senão dar a mão d'esposa a algum
+d'esses moiros... que... diga-se a verdade, entre elles ha rapazes bem
+_tirados das canellas_, e o que me não agrada n'elles é apenas a
+religião, que professam...
+
+Quando o Preste João ouviu estas palavras, tremeu dos pés á cabeça,
+pensando, e com razão, que, pelo facto de a rainha casar com um
+mahometano, todas as Indias, povoadas de milhões e milhões de
+habitantes, abraçariam a seita detestavel de Mafoma, ao passo que, se
+casasse com um christão, toda aquella gente seguiria a religião de Christo.
+
+--Senhora, disse elle, por fim, á rainha, póde ser que consigamos
+harmonisar tudo. O Papa, que é o Vigario de Christo na terra, é o unico
+que póde auctorisar-me a casar com V. M. Vou já escrever-lhe, pelo
+correio d'hoje, pedindo-lhe a competente licença.
+
+--Oh! que feliz idêa! exclamou a rainha; e riam-se-lhe os olhos, de
+contente. Bem digo eu que és um rapaz de muitos recursos!
+
+O Preste João poz logo mãos á obra; escreveu ao Papa, contando-lhe,
+muito pelo miudo, o que se passava, e, na _volta do correio_, recebeu de
+Sua Santidade a dispensa para casar com a rainha das Indias.
+
+Celebraram-se, pouco tempo depois, as vôdas, com grandes festas e muito
+regosijo (bem entendido, depois da rainha se ter feito christã) e,
+passados annos, recebiam o baptismo todos esses milhões de milhões de
+indios, que os inglezes, nos nossos dias, se fartaram de metralhar, sem
+dó, nem piedade.
+
+Eis-ahi a historia do Preste João das Indias. Outros a contarão com mais
+graça do que eu, porém com melhor intenção por certo que ninguem a conta.
+
+FIM.
+
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Contos escolhidos de D. Antonio de
+Trueba, by António de Trueba
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS ESCOLHIDOS DE D. ANTONIO ***
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+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
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+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: Contos escolhidos de D. Antonio de Trueba
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+Author: António de Trueba
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+Commentator: Inácio de Vilhena Barbosa
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+Release Date: May 25, 2008 [EBook #25593]
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+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS ESCOLHIDOS DE D. ANTONIO ***
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+
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+<p>PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA
+<hr>
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+
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+
+<p><SMALL>POR</SMALL>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">F. DE CASTRO MONTEIRO
+
+<p><SMALL>com uma introducção</SMALL>
+
+<p><SMALL>POR</SMALL>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">I. DE VILHENA BARBOSA
+
+<hr style="width: 30%;">
+
+<P>
+<SMALL>PORTO</SMALL>
+<BR><SMALL>Imprensa Portuguesa&mdash;Editora</SMALL>
+<BR><SMALL>1872</SMALL>
+</div>
+
+<div class="centrado">
+<span class="pagenum"><a name="pag_I">[I]</a></span>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<p>PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA
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+<br>
+<span class="pagenum"><a name="pag_III">[III]</a></span>
+<div class="centrado">
+<p>PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA
+<hr>
+
+<p style="font-size: 2.5em;">CONTOS ESCOLHIDOS
+
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+<p style="font-size: 1.8em;">D. ANTONIO DE TRUEBA
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+
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+
+<p style="font-size: 1.2em;">F. DE CASTRO MONTEIRO
+
+<p><SMALL>com uma introducção</SMALL>
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+<p><SMALL>POR</SMALL>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">I. DE VILHENA BARBOSA
+
+<hr style="width: 30%;">
+
+<P>
+<SMALL>PORTO</SMALL>
+<BR><SMALL>Imprensa Portuguesa&mdash;Editora</SMALL>
+<BR><SMALL>1872</SMALL>
+</div>
+<span class="pagenum"><a name="pag_IV">[IV]</a></span>
+<br>
+<span class="pagenum"><a name="pag_V">[V]</a></span>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<div class="centrado">
+<p>AO SEU PREZADO AMIGO
+<br>
+<br>
+<P><BIG>I. DE VILHENA BARBOSA</big>
+<br>
+<br>
+<P><SMALL>SOCIO CORRESPONDENTE DA ACADEMIA REAL DAS
+SCIENCIAS</SMALL>
+<br>
+<br>
+<p>Como testemunho de gratidão
+
+<P><SMALL>Offerece</SMALL>
+</div>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<p class="direita"><em>O traductor.</em>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<span class="pagenum"><a name="pag_VI">[VI]</a></span>
+<br>
+<span class="pagenum"><a name="pag_VII">[VII]</a></span>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<p class="direita"><em>Meu querido Vilhena Barbosa.</em><A NAME="tex2html1"
+ HREF="#foot86"><sup>1</sup></A>
+
+<P>
+A grata recordação das lições que de ti recebi, quando no meu espirito
+começava a desenvolver-se o gosto pelo estudo da litteratura; os salutares
+conselhos, que me dispensaste, nos primeiros annos da minha adolescencia,
+apontando-me a escolha dos auctores, que deveriam formar o meu estylo,
+e robustecer as minhas tendencias litterarias; aquellas nossas conversas,
+de tamanho interesse para mim, em que as luzes do teu illustrado entendimento
+tentavam dissipar as trevas da minha ignorancia, conversas que, pouco
+a <span class="pagenum"><a name="pag_VIII">[VIII]</a></span> pouco, e no decurso d'alguns annos de convivencia
+intima, iam subindo d'alcance, á medida que, pelo estudo, eu me habilitava
+a comprehender-te e a discutir comtigo, seriam já, de per si, sobejo
+motivo para que eu te dedicasse este livrinho, se não houvesse ainda
+razões de entranhadissimo affecto, razões todas do coração, e completamente
+alheias á cultura das letras, que a isso me obrigam, com força de
+irresistivel encanto.
+
+<P>
+A minha vida está, desde os mais verdes annos, ligada, por laços indissoluveis,
+a essa dedicação illimitada que sempre me votaste.
+
+<P>
+Era eu bem creança, e já tu me franqueavas os arcanos da tua vasta
+erudição. Não sei que confiança era a tua na mediocridade da minha
+esphera intellectual. Eram horas esquecidas d'instructiva palestra,
+em que a historia patria, a philosophia da historia, as sciencias
+naturaes, e a litteratura constituiam um thema variado, que me deleitava
+e instruia, animando-me a procurar nos livros cabedal de conhecimentos
+com que podesse corresponder ao teu paternal intento de me tornar
+util a mim e á sociedade.
+
+<P>
+Oh! que saudosos tempos, de feliz memoria, são esses para mim!
+
+<P>
+Quando nos separavamos, continuavas tu, de <span class="pagenum"><a name="pag_IX">[IX]</a></span> longe, a indicar-me
+os bons modelos, e a apontar-me um futuro, que a tua céga amisade
+antevia para mim, mas que, <em>erat scriptum</em>, eu não deveria attingir.
+
+<P>
+Nunca me abandonaste; e, se foi baldado o teu intento, ao menos da
+constancia do teu affecto tiro eu motivo de muito orgulho, e isso
+basta para me consolar.
+
+<P>
+Nos primeiros mezes de 1860, época de terrivel amargura para o meu
+coração, revelou-se a tua amisade por mim pela prova mais grandiosa,
+que póde aquilatar os sentimentos d'alma.
+
+<P>
+Em dezembro, tinha eu vindo de Coimbra ao Porto, a férias. Entrava
+em casa com aquelle alvoroço, que tu por vezes presenciaste, e que
+sempre me dominava, ao acercar-me de meus paes e de minha irmã. Minha
+mãe chorava de alegria, cingindo-me n'um amoroso e prolongado abraço,
+e eu correspondia ao seu carinho com todo o affecto, que me inundava
+o coração. Sabes como eu a amava. Por mais d'uma vez te achaste ao
+nosso lado, no momento de nos separarmos.
+
+<P>
+Eram os transportes de duas almas enamoradas, em presença da amarga
+e tyrannica necessidade da ausencia.
+
+<P>
+Assim tambem, quando as ferias se avisinhavam, <span class="pagenum"><a name="pag_X">[X]</a></span> contavamos
+ambos as horas e até os instantes, que faltavam para a nossa approximação,
+com frenetica impaciencia.
+
+<P>
+N'essas emoções encontradas, por entre riso e lagrimas, se deslisaram
+os primeiros annos da minha mocidade.
+
+<P>
+Punge-me recordar esse tempo de tão acerba saudade; enlucta-se-me
+a alma, quando se me retrata na mente a imagem de minha piedosa mãe;
+e a ti sei eu que hade offender-te a notavel modestia, que é um dos
+ornamentos do teu nobre caracter, este publico testemunho, que te
+offereço, da minha gratidão.
+
+<P>
+Mas ainda que o coração se me despedace ao escrever estas linhas,
+e a despeito da contrariadade, que possa levantar no teu espirito,
+proseguirei no meu intento.
+
+<P>
+Tem paciencia, e ouve o que talvez a tua consciencia nunca te mostrasse
+em relevo, por causa d'esse sentimento elevadissimo, que esconde aos
+olhos do homem a nobreza das suas proprias acções.
+
+<P>
+Poucos dias depois da minha chegada ao Porto, adoeceu minha mãe; e
+com tal violencia se apresentou a molestia, que foram infructiferos
+todos os esforços, que a medicina fez para a salvar.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XI">[XI]</a></span> A 22 de Janeiro voou aquella alma angelica, a abrigar-se
+no seio de Deus.
+
+<P>
+Passarei um véo por sobre o abysmo de insondavel martyrio, em que
+esse angustiosissimo lance me sepultou!
+
+<P>
+Decorrido um mez, lembrou-me meu pae a necessidade de voltar para
+Coimbra.
+
+<P>
+Acordei então do lethargo em que caíra, depois do fatal acontecimento;
+comprehendi quanto havia de justo e paternal n'aquella indicação,
+e parti.
+
+<P>
+Quando me encerrei no meu quarto escolastico, e que meditei na transformação,
+que, em tão breve lapso de tempo, se operára na minha vida moral,
+senti-me succumbir; arrastei-me para junto da janella, que olhava
+para o Mondego, e alongando a vista por aquelle formoso quadro, tão
+poetico e tão melancolico, deixei-me dominar completamente pela vehemencia
+da saudade, que me opprimia, e assim permaneci por espaço de muitas
+horas.
+
+<P>
+Nos dias que se seguiram, foi sempre calando, mais e mais, no meu
+coração, aquella profunda tristeza, que nada podia dissipar.
+
+<P>
+Os meus companheiros de casa, moços distinctissimos, os quaes ainda
+hoje amo como irmãos, <span class="pagenum"><a name="pag_XII">[XII]</a></span> envidavam todos os seus recursos
+para me fazer saír d'aquelle estado de depressão de espirito, que
+me senhoreava; mas nada podiam conseguir.
+
+<P>
+Por espaço de muitos dias, quando chegava o correio, erguia-me de
+subito, machinalmente, para correr ao seu encontro; mas logo, lembrando-me
+que já não existia aquella santa, que diariamente me confortava e
+fortalecia o espirito, com o balsamo salutar do seu carinhoso affecto,
+caía novamente na minha tristeza habitual.
+
+<P>
+Tão dolorosa e renitente enfermidade moral, não podia deixar de transmittir-se
+ao corpo.
+
+<P>
+Adoeci.
+
+<P>
+Os progressos da doença foram rapidos e assustadores!
+
+<P>
+Eu delirava, e no meu delirio, evocava o nome de minha mãe.
+
+<P>
+A sciencia deu á molestia um nome; mas o meu coração dava-lhe outro.
+
+<P>
+Os médicos chamavam-lhe pneumonia... mas eu chamava-lhe <em>Saudade</em>!
+
+<P>
+Todos os meus companheiros, á porfia, se esforçavam por me provar
+a sua amisade. D'elles porém havia um, a quem todos respeitavamos,
+que logo se collocou á cabeceira do meu leito, servindo-me regularmente
+de enfermeiro.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XIII">[XIII]</a></span> Não referirei aqui o seu nome por lhe não ferir a modestia,
+que a tem, em tão subido gráo como tu, e a qual eu não ouso devassar.
+
+<P>
+Recordo-me d'elle com muita saudade e muito reconhecimento.
+
+<P>
+E nunca mais nos encontramos!
+
+<P>
+Uma noite acordei e vi um vulto ajoelhado junto do meu leito; sobresaltou-me,
+porque me parecia um padre! Era elle, vestido de batina, e que resava
+no seu livro de orações!
+
+<P>
+Ergueu-se rapidamente e disfarçou para me não assustar.
+
+<P>
+Eu dissimulei; fingi que o não vira, e nunca lhe fallei d'esta scena
+edificante, que ha de sempre permanecer gravada no meu coração.
+
+<P>
+Este livro deve chegar um dia ás mãos d'esse nobre mancebo, de quem
+o destino me separou; que elle se recorde de mim com saudade, ao lêr
+estas palavras, e veja n'ellas a expressão do muito reconhecimento,
+que tambem lhe consagro.
+
+<P>
+A molestia aggravara-se, e ao terceiro dia, apresentava-se temerosa!
+
+<P>
+Eu sentia-me isolado, á mingua do conforto da familia; mas prohibira
+expressamente, que avisassem meu extremoso pae da gravidade da minha
+situação.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XIV">[XIV]</a></span> Este, ignorando a verdade, e presa de muitos trabalhos
+domesticos, não foi ter commigo a Coimbra; mas escreveu-te para Lisboa,
+avisando-te de que eu me achava enfermo.
+
+<P>
+No dia em que recebeste a sua carta, dirigiste-te a um dos meus companheiros
+de casa, e este fallou-te com franqueza.
+
+<P>
+Isto soube-o eu mais tarde.
+
+<P>
+Vinte e quatro horas depois de teres lido a resposta, a que alludo,
+dispertava eu d'um somno angustioso, e vi-te ao meu lado.
+
+<P>
+Quiz erguer-me e lançar-me nos teus braços, mas não pude.
+
+<P>
+Fizeste por me serenar o espirito, sobreexcitado pela tua presença
+alli, e começaste a dispensar-me os thesouros do teu acrisolado affecto.
+
+<P>
+A molestia teve-me baloiçado entre a vida e a morte; e por fim, graças
+á bondade do Altissimo, que me julgou talvez novo para deixar o mundo,
+e que me proporcionou os desvelos do teu carinho, começou a declinar.
+
+<P>
+Foi longa a convalescença.
+
+<P>
+Quando, no decurso d'ella, eu me conservava ainda de cama, tu, sentado
+á minha cabeceira, lias alto para me distrahir, ou divagavas sobre
+<span class="pagenum"><a name="pag_XV">[XV]</a></span> aquelles assumptos, que sabias me eram mais gratos.
+
+<P>
+Ministravas-me cuidadosamente os remedios e as comidas, temperadas
+pela tua propria mão, e informavas diariamente a minha familia das
+progressivas melhoras, que eu experimentava.
+
+<P>
+Afinal, ergui-me da cama, e, poucos dias depois, comecei a dar alguns
+passeios, pelo teu braço.
+
+<P>
+Ficava a minha casa proxima ao Jardim botanico, e era para ahi que
+sempre nos dirigiamos.
+
+<P>
+Estavamos então entrados na primavera, essa estação encantadora, em
+que o coração se retempera no ar embalsamado que nos rodeia; essa
+<em>gioventù del anno</em>, como lhe chama o poeta, em que toda a natureza
+nos sorri, com ineffavel magia.
+
+<P>
+Eu sentia-me <em>renascer</em>; parecia-me participar da qualidade dos
+arbustos e das plantas, que nos cercavam; corria-me nas veias uma
+nova seiva, e impressionava-me em extremo o grandioso espectaculo,
+que se offerecia a meus olhos.
+
+<P>
+Depois de darmos algumas voltas por aquellas frondosas avenidas, sentavamo-nos
+n'um banco do jardim, e um ao outro communicavamos as impressões,
+que recebiamos d'aquelle panorama <span class="pagenum"><a name="pag_XVI">[XVI]</a></span> encantador das «saudosas
+margens do Mondego», que d'alli se observa em todo o esplendor da
+sua belleza.
+
+<P>
+Depois, quando o sol, declinando, nos aconselhava a regressar a casa,
+levantavamo-nos e deixavamos vagarosamente aquella mansão deliciosa.
+
+<P>
+Os extremos da tua amisade tinham-me furtado talvez a uma prematura
+morte, mas não lograram desanuviar-me o coração da magoa, que o suffocava.
+
+<P>
+Deixava-me por vezes dominar de profunda tristeza, e assim me conservava
+por largas horas, alheiado completamente do mundo exterior, e só entregue
+a amargas cogitações.
+
+<P>
+Um dia entraste no meu quarto, e disseste-me que era preciso saír
+de Coimbra; que tinhas conversado largamente com o medico, e que este
+fôra de parecer de que a distracção era o unico remedio que podia
+completar o meu restabelecimento.
+
+<P>
+Sobresaltou-me a lembrança de que teria de me separar logo de ti.
+
+<P>
+Era uma injustiça que fazia á devoção do teu affecto; mas confesso-te
+que não suppunha que tu levasses a tua generosa dedicação por mim,
+até entrares commigo na casa paterna.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XVII">[XVII]</a></span> Sabia que a ausencia de Lisboa era em extremo prejudicial
+aos teus interesses, e por isso imaginava que tu darias por terminada
+a tua caridosa missão, com a minha partida para o Porto.
+
+<P>
+Quanto me enganava!
+
+<P>
+Eu estava ainda muito falto de forças e mal podia entender nos aprestos
+da viagem; tu porém a tudo proveste com paternal cuidado.
+
+<P>
+Afinal, por uma aprazivel manhã, saímos de Coimbra.
+
+<P>
+Alugaramos uma carruagem, a melhor que se pôde encontrar, e por essa
+bella estrada, que o mau fado da nossa administração publica, devia,
+poucos annos depois, tornar quasi deserta, admirando o formosissimo
+paiz que ella atravessa, formosissimo pela luxuriante vegetação que
+o cobre, e pela extensão dos seus variadissimos panoramas, seguimos
+agradavelmente até á primeira paragem, onde deviamos pernoitar.
+
+<P>
+Se bem me recordo era a estalagem d'Albergaria, esse covil immundo,
+da qual ainda hoje me não lembro, que não sinta logo pelo corpo, um
+certo pruído, que me excita horrorosamente os nervos.
+
+<P>
+No dia immediato continuamos a nossa jornada, <span class="pagenum"><a name="pag_XVIII">[XVIII]</a></span> mas não
+com tanta felicidade como na vespera.
+
+<P>
+Levantára-se muito vento, e parece-me que te estou vendo, meu bom
+Ignacio, receioso de que o frio prejudicasse o regular andamento da
+minha convalescença, repartindo-me em mil cuidados, para me pôr a
+salvo d'uma recaída!
+
+<P>
+E agora me lembra um episodio d'essa saudosa jornada, que tem relação
+com o que levo dito, e que é mais um attestado do conforto e da commodidade
+das taes locandas da antiga estrada coimbrã.
+
+<P>
+Quando chegamos a S. João da Madeira, saímos da carruagem, e entramos
+na hospedaria, para jantar.
+
+<P>
+Depois que démos as nossas ordens, na cosinha, subimos para a sala,
+onde deviamos esperar que nos servissem; mas era tal a <em>ventania</em>,
+que entrava pelos buracos dos vidros, e pelas fendas do telhado, que,
+não querendo voltar logo para a carruagem, de que já estavamos fartos,
+tomamos o partido de nos sentarmos a um canto, e abrir os chapéos
+de sol, a vêr se d'este modo podiamos afrontar a intemperie.
+
+<P>
+Pouco tempo porém estivemos n'essa posição caricata; afinal entendemos
+que o mais acertado <span class="pagenum"><a name="pag_XIX">[XIX]</a></span> era jantarmos dentro da carruagem,
+e assim o fizemos.
+
+<P>
+Ainda hoje me rio, quando me acode á ideia essa scena de comedia,
+que acabo de descrever.
+
+<P>
+D'ahi por algumas horas chegavamos aos Carvalhos, onde nos esperavam,
+meu pae e minha irmã, e todos juntos seguimos para o Porto.
+
+<P>
+Com a viagem, que descrevi com leves traços, termina esse episodio
+da nossa vida, em que se patenteia bem a elevação do teu caracter,
+e a dedicação que te devo; mil annos que eu vivesse, nunca esta pagina
+da minha mocidade, se me apagaria da memoria.
+
+<P>
+Sei, e já o disse no principio d'esta carta, que vou offender a tua
+modestia, tornando publico esse exemplo que déste da nobreza dos teus
+sentimentos.
+
+<P>
+Não importa. És tu geralmente apreciado como homem de letras, quero
+que todos te apreciem tambem como homem de coração;&mdash;como exemplo
+do amigo dedicado.
+
+<P>
+Porto, 12 de janeiro de 1872.
+
+<div class="rodape">
+<p><a name="foot86"></a><A
+ HREF="#tex2html1"><sup>1</sup></A>
+Vilhena Barbosa só terá conhecimento d'esta carta, quando lhe chegar
+á mão o meu livro. O respeito que me merece a sua proverbial modestia
+obriga-me a deixar aqui esta declaração.</p>
+</div>
+
+<P class="direita">
+<span class="small-caps">F. de Castro Monteiro.</span>
+</P>
+
+<span class="pagenum"><a name="pag_XX">[XX]</a></span>
+<br>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XXI">[XXI]</a></span>
+
+<H1><A NAME="SECTION00010000000000000000">
+INTRODUCÇÃO</A>
+</H1>
+
+<br>
+
+<H2><A NAME="SECTION00011000000000000000">
+I</A>
+</H2>
+
+<P>
+As letras e as artes têm muitos pontos de affinidade. Ambas filhas
+predilectas da civilisação; caminhando a par na via dos progressos
+humanitarios; auxiliando-se e concorrendo mutuamente para o seu commum
+desenvolvimento e esplendor; cabendo-lhes egual quinhão de gloria
+nos aperfeiçoamentos, grandeza e prosperidade de qualquer nação; tem
+identico valor e significação para se aquilatar por ellas a cultura
+de um povo; e, finalmente, ambas são um como espelho em que a humanidade
+se retrata, <span class="pagenum"><a name="pag_XXII">[XXII]</a></span> tal qual é, segundo as epochas da sua historia.
+
+<P>
+Nas artes é, principalmente, a architectura, pelas intimas relações
+que tem com a sociedade, a que resume em si, com maior exactidão,
+as idêas, as crenças, as aspirações, as necessidades, em fim, a vida
+moral e physica dos povos.
+
+<P>
+Nas letras o romance, a meu vêr, como nas artes a architectura, é
+qual lamina em que se espelham, com fidelidade, os pensamentos, a
+indole e os costumes da sociedade para a qual foram escriptos.
+
+<P>
+Na traça mesquinha ou grandiosa de um monumento; nas suas fórmas acanhadas
+ou esveltas; na ornamentação pesada e mal disposta, ou ligeira e graciosamente
+distribuida; na esculptura dos ornatos grosseiros e sem significação
+ideal, ou delicados e expressivamente symbolicos, escreveu o architecto,
+sem attentar em tal, uma pagina da historia dos seus contemporaneos,
+<span class="pagenum"><a name="pag_XXIII">[XXIII]</a></span> eloquentissima na sua mudez, e cheia de verdade, porque
+a mão do seu auctor era dirigida, não por paixões ou respeitos humanos,
+mas unicamente pelo amor da arte. E julgando o artista que a movia
+em cega obediencia aos preceitos da mesma arte, a sua dextra seguia
+tambem os impulsos da sua imaginação, que não podia eximir-se á despotica
+influencia das idêas e costumes dominantes; e além d'isso, no desempenho
+da sua missão, tinha de satisfazer as exigencias e necessidades publicas,
+que são sempre determinadas pelo movimento intellectual e pela successiva
+modificação dos costumes.
+
+<P>
+O romancista quer que o seu livro corra mundo, e seja lido com prazer.
+Para alcançar este <em>desideratum</em>, procura deleitar, e para este
+fim tem de vasar a sua obra nos moldes do gosto publico; isto é, tem
+de a accommodar ás idêas e costumes em voga n'essa epocha. E ainda
+que consideremos <span class="pagenum"><a name="pag_XXIV">[XXIV]</a></span> o escriptor, pegando da penna, sem
+que o mova o interesse pecuniario, forçosamente ha de escrever sob
+a mesma poderosa influencia das idêas e costumes publicos.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION00012000000000000000">
+II</A>
+</H2>
+
+<P>
+Quando as cruzadas, minando pela base o feudalismo, crearam o espirito
+cavalleiroso, que, d'envolta com o sentimento religioso, foi adoçando
+pouco a pouco a fereza da edade media, e, ao mesmo tempo, abrindo
+a porta á illustração do seculo, surgiu o romance, como guarda avançada
+das letras; cruzada não menos santa, preparada no remanso do gabinete
+pelos primeiros chronistas, annunciada e apregoada pelos antigos trovadores.
+
+<P>
+O romance mostrou-se desde logo o retrato fiel da sociedade, em todas
+as phases da sua vida moral e physica.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XXV">[XXV]</a></span>Pois que n'essas eras se manifestavam e expandiam o sentimento
+religioso em guerras contra os infieis, e o do prazer em justas, torneios
+e caçadas, ou em saraus, onde os trovadores cantavam, ao som do alaúde,
+amores e guerras; pois que a justiça humana chamava amiudadas vezes
+os delinquentes ao campo dos combates judiciarios; pois que as moradas
+da nobreza eram castellos, cercados de fossos, e eriçados de ameias;
+as espadas, as lanças e as armaduras os melhores ornamentos das suas
+salas; a montearia, a diversão predilecta das illustres castellãs;
+o romance, reproduzindo todas estas feições sociaes, tomou a fórma
+de novellas de cavallaria. Amores e guerras constituiam, portanto,
+o assumpto obrigado d'essas composições. A honra, o valor, a coragem,
+a dedicação desinteressada, a fé e a esperança estreitamente unidas,
+todos estes dotes de um perfeito cavalleiro, todas estas idêas, que
+então occupavam os <span class="pagenum"><a name="pag_XXVI">[XXVI]</a></span> espiritos quasi exclusivamente, até
+dos que não possuiam tão nobres qualidades, sobresaíam e brilhavam
+com tanto fulgor nas paginas d'essas novellas, como as estrellas que
+scintillam no manto negro da noute.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION00013000000000000000">
+III</A>
+</H2>
+
+<P>
+Em quanto as cruzadas, attrahindo a um campo commum as differentes
+nações da Europa, e pondo em contacto o Occidente com o Oriente, faziam
+raiar a aurora de uma nova civilisação, travavam encarniçada lucta
+a realeza e o feudalismo. Aquella, soccorrendo-se ao principio popular,
+acabou por triumphar do seu poderoso adversario. Porém, durante a
+pugna, o poder real teve de arcar com o poder theocratico, o qual,
+a seu turno, alcançára victoria sobre a propria realeza.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XXVII">[XXVII]</a></span>A influencia dos pontifices no regimen dos estados,
+que tão benevola e providencial se ostentou, em quanto serviu de medianeira
+entre os opprimidos e os oppressores, estendendo sobre os mais fracos
+a égide do poder espiritual, veiu a tornar-se oppressiva e intoleravel,
+desde que, abusando da sua intervenção nos negocios temporaes das
+nações, converteu em tyrannia aquella missão paternal.
+
+<P>
+A supremacía dos papas, actuando na politica dos governos e nas idêas
+e costumes populares, imprimiu uma grande modificação no viver da
+sociedade. Essa modificação não tardou a estampar-se no romance, despojando-o
+dos esplendores e galanteria, com que até alli se ataviára, e fazendo-lhe
+vestir a roupagem, modesta e singela, mas não falta de poesia, das
+lendas religiosas, que lá foram aninhar-se nas chronicas monasticas,
+parecendo fugir ás impurezas do seculo.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XXVIII">[XXVIII]</a></span>A fé viva, sugeitando a razão além do dogma; a esperança
+vivissima em uma eternidade de gloria e de suprema ventura na outra
+vida, como recompensa do refreamento das paixões e das abstinencias,
+e como compensação das grandes dôres; o curso geral das cogitações
+e controversias dos sabios para as materias theologicas; as diversões
+populares restringindo-se, quasi exclusivamente, ás procissões, nas
+quaes eram admittidas dansas, e toda a sorte de exhibições phantasticas
+e burlescas, aos arraiaes e outras festividades religiosas, e, finalmente,
+aos autos sacros, que constituiam o theatro na infancia, depois do
+seu renascimento; as provas do fogo, do ferro em brasa, e da agua
+fervente, denominadas <em>juizo de Deus</em>, aceites nos tribunaes
+de justiça como testemunhos irrecusaveis da innocencia ou da culpabilidade:
+todo este pensar e este viver reflectiam-se nas lendas religiosas
+com a mesma exactidão e vigor, com<span class="pagenum"><a name="pag_XXIX">[XXIX]</a></span> que o sol reflecte
+na superficie das aguas a sua fronte luminosa.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION00014000000000000000">
+IV</A>
+</H2>
+
+<P>
+Não é meu intento traçar a historia d'este ramo de litteratura. Direi,
+todavia, que d'aquelle modo continuou o romance, em todos os tempos,
+e sob todas as fórmas, a reproduzir em si, com mais ou menos naturalidade
+e viveza de côres, as mudanças que se vão operando nas idêas e nos
+costumes.
+
+<P>
+D'est'arte se revestiu das fórmas classicas, quando, sob a influencia
+dos sabios e dos artistas, foragidos de Constantinopla, ao desmoronar
+do imperio do Oriente, se operou nas letras, nas artes, e no proprio
+viver da sociedade, a grande revolução denominada <span class="pagenum"><a name="pag_XXX">[XXX]</a></span> <em>renascença</em>,
+a qual foi inspirar-se nas obras grandiosas da antiga Grecia.
+
+<P>
+Do mesmo modo assumiu o romance a gravidade philosophica, quando Voltaire,
+Rousseau, e outros grandes pensadores do seculo passado, proclamando
+verdades, que faziam estremecer em seus thronos os monarchas despoticos,
+convidavam os estadistas a meditarem nos problemas sociaes, cuja semente
+assim lançavam á terra; e excitavam os povos a reflectir na significação
+e importancia dos direitos do homem.
+
+<P>
+Assim o romance se tornou historico, logo que a sociedade, sentindo
+o mal estar de uma organisação que os progressos da civilisação iam
+fazendo caducar, recorria ao passado, como que procurando nos archivos
+da historia o elixir para se rejuvenescer; isto é, estudando nas antigas
+sociedades as fórmas governativas, que mais lhe quadrariam sob a revolução
+que se preparava.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XXXI">[XXXI]</a></span>Quando, em nossos dias, a applicação do vapor á locomoção
+e ás machinas industriaes, bem como a telegraphia electrica, pondo
+em facil e rapida communicação todos os povos do globo, estabeleceram
+novas condições de existencia social, que hão de operar forçosamente,
+em maior ou menor espaço de tempo, uma transformação completa, não
+só no modo de viver, mas tambem na organisação da sociedade; quando
+a attenção dos homens pensadores começava a fixar-se na grande revolução
+prevista, e a meditar nos difficeis problemas que ella em breve deveria
+offerecer á resolução dos philosophos e dos estadistas; quando a attenção
+geral dos povos, desapegada das tradições do passado, se absorvia
+inteiramente na contemplação do presente, admirando as maravilhas
+do progresso, anciando saciar-se dos gosos, que elle gera com mão
+fecunda e prodiga, o romance, deixando tambem em repouso os archivos
+da historia, <span class="pagenum"><a name="pag_XXXII">[XXXII]</a></span> começou a inspirar-se nas scenas da vida
+actual. E ao passo que retratava a sociedade, dando colorido e relevo
+a cada uma das suas feições, lançava á arena da discussão as novas
+e grandes questões sociaes.
+
+<P>
+Porém, partindo do mesmo ponto, movidos por egual impulso, os romancistas
+contemporaneos, que se dedicaram a descrever os costumes e praticas
+da actualidade, dividiram-se em duas turmas, seguindo caminho differente.
+Uns, impellidos por uma idêa elevada e generosa, pintaram com côres
+negras, mas verdadeiras, todas as angustias e miserias da sociedade
+moderna, estudando-lhes as causas, apontando os perigos futuros, fazendo
+avultar os defeitos e defficiencias das instituições; chamando, em
+fim, a solicitude dos poderes publicos para o horrivel cancro, que
+vae corroendo o corpo social. Á frente d'estes illustrados romancistas
+colocára-se Eugenio Sue.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XXXIII">[XXXIII]</a></span>Infelizmente, muitos discipulos d'esta eschola, esquecendo
+ou despresando os intuitos philosophicos do mestre, trataram sómente
+de deleitar; e reconhecendo as tendencias do seculo para os gosos
+sensuaes, e para os grandes sobresaltos do espirito e do coração,
+puzeram em acção todas as paixões violentas, e todos os instinctos
+ferozes da humanidade. Compozeram d'est'arte, é bem certo, quadros
+grandiosos, cheios de vida e de animação, scintilantes de fogo e de
+energia, em que se succedem uns aos outros os episodios dramaticos,
+e as scenas tragicas. Mas, atravez das galas da poesia, com que os
+adornaram, e sob o brilho seductor dos ouropeis com que se esforçam
+por atenuar, senão santificar, a hidiondez de torpezas e devassidões
+repugnantes, transparece o virus da corrupção da alma, ministrado
+em taça de ouro á mocidade inexperiente e ávida de commoções fortes.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XXXIV">[XXXIV]</a></span>A outra turma de romancistas tem trilhado mais nobre
+senda, no desempenho de uma missão civilisadora e santa.
+
+<P>
+Os seus romances não deslumbrarão, talvez, o espirito com o esplendor
+das imagens; não o sobresaltarão com a rapida successão de casos extraordinarios;
+não subjugam a razão, nem expõem o coração a contínuo tremor com o
+longo encadeamento de commoções violentas.
+
+<P>
+Como o prado, que, sob o sol da primavera, se veste de verdores, que
+vae matisando pouco a pouco de flores singelas, mas rescendendo de
+suaves aromas, resplandecentes e encantadoras pela viveza e variedade
+das côres; e que no inverno troca as alegrias em tristezas, as galas
+em miseria, para outra vez folgar e enriquecer-se sob o novo sceptro
+de Flora; assim nas producções d'estes romancistas alternam-se as
+scenas meigas e suaves da familia com os tristes acasos da sorte,
+com as tribulações <span class="pagenum"><a name="pag_XXXV">[XXXV]</a></span> da desventura, emfim, com as tempestades
+da vida. N'estes quadros avultam tambem os contrastes, como na natureza;
+os toques de luz e de sombra, colhidos nas vicissitudes da fortuna
+e no tumultuar das paixões. Figuram ahi alguns dos vicios e crimes,
+que são no mundo moral a imagem das forças destruidoras no mundo physico.
+Mas apresentam-se, não com o semblante vellado, embora por véo transparente,
+que mal deixa distinguir-lhes a fealdade; não com as feições embellesadas
+e disfarçadas com arrebiques e louçainhas, que fascinem e lhes conciliem
+as sympathias das almas ingenuas e credulas, mas sim taes quaes são,
+na sua completa nudez, em toda a sua asquerosa deformidade.
+
+<P>
+Finalmente, d'esta lucta entre o bem e o mal, figurada n'estes romances,
+sáe a virtude ou o arrependimento coroado pela felicidade, e o crime
+ou o vicio punido pela justiça dos homens, ou pela de Deos, que <span class="pagenum"><a name="pag_XXXVI">[XXXVI]</a></span>dos proprios vicios e crimes fez gerar o castigo que os pune na terra.
+
+<P>
+A esta turma de romancistas, a que pertence a eschola allemã, veiu
+associar-se uma outra, ainda mais singela e modesta, talvez, mas tambem
+guiada pelo mesmo impulso generoso de deleitar, moralisando. Compõe-se
+esta de um certo numero de auctores de contos e tradições populares,
+entre os quaes occupa logar de honra D. Antonio de Trueba.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION00015000000000000000">
+V</A>
+</H2>
+
+<P>
+Nascido na Biscaya em 1821, uma das provincias da romantica e cavalleirosa
+Hespanha, tão original no curso e transformações do seu longo viver;
+nascido na Biscaya, repetimos, onde se tem conservado mais arraigado
+o respeito ás tradições do <span class="pagenum"><a name="pag_XXXVII">[XXXVII]</a></span> passado, o amor aos antigos
+fóros populares, e o apego aos velhos costumes, D. Antonio de Trueba
+não podia eximir-se a essa triplice e poderosa influencia. Bebendo
+com o leite aquelle respeito; bafejado desde o berço por aquelle amor;
+preso áquelles costumes pelas mais doces recordações da infancia,
+o seu espirito difficilmente poderia deixar de revoltar-se contra
+o progresso, que tudo nivela, abatendo o que era grande, e exaltando
+o que era humilde; contra as idêas do seculo, que mofam das crenças
+do passado; que despojam de poesia as tradições; que parecem tender
+a materialisar a vida á força de commodidades e gosos, creados para
+deleite dos sentidos.
+
+<P>
+Resuscitando, pois, as tradições das antigas eras, empenhou-se
+em fazer reviver, com todo o brilho d'outr'ora, as santas crenças
+de seus maiores.
+
+<P>
+Pondo em parallelo, em alguns dos seus contos populares, os costumes
+da velha sociedade <span class="pagenum"><a name="pag_XXXVIII">[XXXVIII]</a></span> com os que se vão modificando
+e surgindo no meio do desenvolvimento do espirito humano, insurge-se,
+é certo, contra o progresso, e, apontando para a corrupção que elle
+gera e alimenta, deixa expandir-se a sua indignação.
+
+<P>
+Mas, quando se pensa em que o auctor d'esses contos e tradições foi
+creado no remanso e singeleza da vida campestre; quando se considera
+em que os dias da infancia e da adolescencia se lhe deslisaram tranquillos
+e alegres no seio da familia, sem que viessem perturbar-lhe o repouso,
+desvairar-lhe as idêas e corromper-lhe o coração, o bulicio das cidades,
+o tumultuar das paixões e a seducção dos vicios; quando se reflecte
+em que os verdores, e as suaves harmonias, e os contrastes pittorescos
+do seu valle natal lhe infundiram n'alma a doce poesia da natureza;
+e que os carinhos e maximas moraes de uma extremosa mãe e virtuosa
+perceptora lhe fizeram <span class="pagenum"><a name="pag_XXXIX">[XXXIX]</a></span> o espirito meigo, franco, recto
+e eminentemente religioso; quando se attenta em tudo isto, comprehende-se,
+acha-se natural, e desculpa-se aquella insurreição contra os progressos
+do seculo.
+
+<P>
+Qual mimosa sensitiva, que se contráe e desfallece ao simples contacto
+da mão indiscreta ou bemfazeja, como se a ferisse duro e traiçoeiro
+golpe; assim Trueba se confrangiu logo que, transpondo as montanhas
+do seu pacifico valle, e achando-se de improviso face a face com a
+sociedade, que desconhecia, viu, como que offuscando o brilho das
+grandes idêas do progresso, os sentimentos nobres e patrioticos, e
+as aspirações elevadas e generosas do coração humano, luctando por
+toda a parte, e quasi sempre vencidas pela ambição do poder e das
+honras, pela cubiça do ouro, pela sêde dos gosos e dos prazeres, pela
+fortuna dos mais atrevidos, e pela inveja dos menos felizes. Irritou-se,
+vendo as conveniencias partidarias <span class="pagenum"><a name="pag_XL">[XL]</a></span> e individuaes supplantarem
+muitas vezes o interesse publico; vendo as leis severas e inexoraveis
+para com os fracos e desvalidos, e frouxas e flexiveis para com os
+poderosos ou protegidos; vendo elevaram-se homens, que a falta de
+merito condemnava á obscuridade, emquanto ficavam esquecidos e occultos,
+nas sombras da modestia e da humildade, muitos cidadãos dos mais prestantes;
+ouvindo apregoar maximas e alardear virtudes e serviços, que os exemplos
+e os factos desmentiam; indignou-se, reconhecendo no curso da civilisação
+as tendencias do seculo para converter nos gelos da descrença e do
+egoismo o ardor da fé, a luz benefica da esperança, o fogo santo da
+abnegação, do amor do proximo e da patria!
+
+<P>
+Na confrontação do presente com o passado o seu juizo não podia deixar
+de ser desfavoravel ao primeiro, porque tudo o que via e ouvia, annuviando-lhe
+os verdadeiros <span class="pagenum"><a name="pag_XLI">[XLI]</a></span> resplendores do progresso, contrariava
+as suas idêas e os seus habitos, e derrocava pela base os poeticos
+e formosos castellos, que phantaseara nos sonhos dourados da adolescencia.
+
+<P>
+E a sua rapida passagem da estreiteza de apertado valle, segregado
+por assim dizer, do resto da Hespanha, para a amplidão dos grandes
+centros industriaes, para o seio da turbulenta e voluptuosa Madrid,
+offuscando-lhe a vista, como se sahira de improviso das trevas para
+a claridade, forçosamente lhe havia de obstar a que visse n'essa anarchia
+das ideias, n'esse desenfreamento das paixões, n'essa relaxação dos
+costumes, emfim, n'essa corrupção moral, que tanto o escandalisavam,
+as consequencias naturaes da grande e inevitavel revolução social,
+que estamos presenceando.
+
+<P>
+Não lhe deixaria attentar em que este acontecimento é o resultado
+dos maravilhosos descobrimentos do seculo XIX, os quaes <span class="pagenum"><a name="pag_XLII">[XLII]</a></span>acabando com as distancias, pondo em intimas e faceis relações todos
+os povos do globo, e na presença uns dos outros todos os cultos religiosos,
+as locubrações dos sabios de todo o mundo, todos os productos da terra
+e da industria humana, haviam de produzir, por effeito de uma força
+irresistivel, o duro embate das velhas idêas e dos interesses á sombra
+d'ellas creados, com as idêas e interesses, que os progressos humanitarios
+iam gerando e desenvolvendo. Não lhe permittiria reconhecer que d'aquelle
+embate havia de nascer a lucta a todo o transe; da lucta o exacerbamento
+das paixões; d'estas o affrouxamento dos vinculos sociaes e dos proprios
+laços de familia; e de tudo isto a desordem nas idêas e a corrupção
+geral nos costumes.
+
+<P>
+É este o triste apanagio das revoluções, que tendem, não a derrubar
+um throno, ou a mudar uma ou outra instituição, mas sim a assentar
+em bases inteiramente novas <span class="pagenum"><a name="pag_XLIII">[XLIII]</a></span> o edificio social. A nossa
+época é, infelizmente, um d'esses periodos de desmoronamento, e por
+conseguinte de transição, que apparecem de seculos a seculos na historia
+geral das nações, como gigantescos e temerosos marcos, erguidos no
+caminho por onde a Providencia impelle a humanidade, para assignalarem
+e separarem as grandes phases da civilisação.
+
+<P>
+Portanto essa condemnação dos progressos do seculo, que apparece em
+alguns dos contos de Trueba, em rasão dos motivos que lhe dão origem,
+não deslustra, antes pelo contrario honra o seu coração bondoso e
+o seu caracter justo e leal. Mas se alguem, mais severo, ou menos
+attento ao que expendi em seu abono, quizer lançar-lhe em rosto as
+suas opiniões reaccionarias, leve-lhe em conta a belleza dos quadros
+que traça com suavissimo pincel; a singelesa e elegancia do estylo,
+com que dá relevo e vida ás meigas scenas de familia e aos risonhos
+<span class="pagenum"><a name="pag_XLIV">[XLIV]</a></span> paineis da natureza, e, finalmente, a moralidade que
+ressumbra de todas as paginas dos seus livros.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION00016000000000000000">
+VI</A>
+</H2>
+
+<P>
+D'este juizo das obras de Trueba, que se me affigura imparcial, deduz-se
+naturalmente um pensamento de louvor a quem promove entre nós a vulgarisação
+d'estas boas producções. Em uma quadra, como esta, em que a litteratura
+portugueza está sendo a todo o momento, não enriquecida, mas sim invadida
+por traducções de romances que, na maior parte dos casos, não a honram
+pela pureza da linguagem, e a desauthorisam pela licenciosidade dos
+costumes, que põem em seductora exposição; presta o traductor um bom
+serviço ás letras e á moral publica.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XLV">[XLV]</a></span>Auctores como Trueba illustram e ennobrecem a litteratura
+que os adopta e perfilha. Livros, como os seus, podem ser offerecidos
+á mocidade por leaes conselheiros e guias seguros nos escabrosos caminhos
+da vida.
+
+<P>
+Na versão prestou o traductor verdadeiro culto aos preceitos e exigencias
+da lingua materna, conservando aos pensamentos e ás imagens originaes
+toda a sua elevação e vigor, todo o seu brilho e poesia.
+
+<P>
+A litteratura hespanhola é tão rica e variada em todos os ramos do
+saber humano, quão mal conhecida, infelizmente, em o nosso paiz, n'estes
+tempos modernos. Desde o principio d'este seculo temo-nos quasi restringido
+a cultivar a litteratura franceza, dedicando-lhe a nossa exclusiva
+admiração, em prejuizo de outras não menos opulentas e brilhantes.
+Por conseguinte tambem por este lado o distincto traductor dos contos
+<span class="pagenum"><a name="pag_XLVI">[XLVI]</a></span> de Trueba bemmerece dos seus concidadãos. O seu talento,
+já provado nas lides de escriptor publico, apresenta agora n'este
+ensaio a amostra do que vale no difficil genero, que encetou; difficilimo,
+sem duvida, quando se quer verter em linguagem de lei os pensamentos
+de auctor estranho com toda a belleza e vigor da inspiração original.
+
+<P class="direita">
+I. DE VILHENA BARBOSA.
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<span class="pagenum"><a name="pag_XLVII">[XLVII]</a></span>
+<h1>CONTOS DE TRUEBA</h1>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<hr style="width: 20%;">
+
+<P class="centrado">
+<big><a href="#SECTION01000000000000000000">NOSTALGIA</a>&mdash;<a href="#SECTION02000000000000000000">O MADEIRO DA FORCA</a>&mdash;<a href="#SECTION03000000000000000000">A NECESSIDADE</a>&mdash;<a href="#SECTION04000000000000000000">A
+PORTARIA DO CEU</a>&mdash;<a href="#SECTION05000000000000000000">O PRESTE JOÃO DAS INDIAS</a></big>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_1">[1]</a></span>
+<br>
+<H1><a name="SECTION01000000000000000000"></a>
+<BR>
+NOSTALGIA
+</H1>
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_1">[2]</a></span>
+<br>
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_3">[3]</A></span>
+<H2><a name="SECTION01010000000000000000"></a>
+<BR>
+I
+</H2>
+
+<P>
+Mães que tendes filhos e que fundaes a sua felicidade e a vossa em
+mandal-os para Madrid ou para a America; lêde este conto, que para
+vós o escrevo.
+
+<P>
+Não penseis que é invenção minha o que vou narrar-vos; começa esta
+historia no dia 10 de novembro de 1836, época em que Madrid era, <em>peor</em>
+e <em>melhor</em> do que hoje. Quem não entender o que deixo dito lembre-se
+do que succede com a baixella de prata, que, quanto mais a esfregam,
+mais brilha e menos peza.
+
+<P>
+Havia em Madrid um frio intensissimo: nevára na véspera, e antes que
+a neve tivesse tido tempo de derreter nas ruas, sobreviera <span class="pagenum"><a name="pag_4">[4]</a></span>uma geada fortissima, o que junto ao vento de Madrid, que mata um
+homem e não apaga um <em>candil</em>, dava á temperatura d'aquella heroica
+cidade o caracter e a temperatura da Siberia.
+
+<P>
+D. João Quijano, rico banqueiro que morava na rua de Toledo, estava
+no seu escriptorio, situado nos baixos da casa, com seu sobrinho D.
+Lucas, e n'uma sala contigua trabalhavam em silencio, sentados ás
+suas carteiras, dois caixeiros encarregados da contabilidade e da
+correspondencia. O gabinete do banqueiro tinha um postigo com vidraça
+que dava para o escriptorio geral, e pelo qual o tio e o sobrinho
+espreitavam amiudadas vezes, no intuito de se certificarem se os caixeiros
+cumpriam as suas obrigações; phrase de que D. Lucas se servia para
+os fazer trabalhar, quando os ouvia fallar em cousas alheias aos assumptos
+commerciaes da casa.
+
+<P>
+D. João era homem de cincoenta annos, pouco mais ou menos, córado,
+robusto, de nariz grande e cabelleira tão bem arranjada e composta,
+que os proprios caixeiros não teriam dado por ella, se não fôra <span class="pagenum"><a name="pag_5">[5]</a></span>o genio de sua mulher D. Joanna, que, nos seus accessos de cólera,
+lh'o lançava em rosto, chamando-lhe «tio <em>cabelleira</em>».
+
+<P>
+D. Lucas devia ter os seus vinte oito a trinta annos; era pouco mais
+alto que um cão sentado, e nem a sua phisionomia, nem as suas palavras
+revelavam talento ou bondade de coração. Não obstante isso tolerava-lhe
+o tio os defeitos, e até sentia estima por elle, não só por ser empregado
+antigo da casa, mas tambem porque podia dizer-se que era D. Lucas
+quem carregava com todo o peso do estabelecimento.
+
+<P>
+&mdash;Veja lá, tio, disse D. Lucas a D. João, levantando os olhos para
+um relogio, que estava collocado na parede, em frente da escrevaninha
+do banqueiro,&mdash;se tem de ir á Bolsa, não se descuide que são quasi
+duas horas.
+
+<P>
+&mdash;Parece-me que não vou lá hoje, respondeu D. João; quem ha de saír
+de casa por um tempo d'estes? A vida é curta, e se eu morrer... tocam
+os sinos a defuncto, e está tudo acabado... Demais deve estar por
+ahi a chegar o pequeno e tenho desejos de o vêr. Recebi pelo correio
+uma carta <span class="pagenum"><a name="pag_6">[6]</a></span> de meu irmão Martinho, na qual este me diz que
+o rapaz saíu de lá no primeiro do mez, na carroça de Chomin, e segundo
+o meu calculo, temol-o por ahi hoje. Talvez não fosse mau mandar o
+Toribio á estalagem.
+
+<P>
+&mdash;Não sei para que; quando elle chegar, cá virá ter.
+
+<P>
+&mdash;O pobre pequeno deve vir tolhido de frio.
+
+<P>
+&mdash;Não lhe dê isso cuidado; não inspira compaixão quem vem como elle
+para Madrid, comer bom pão e boa carne, em vez de comer brôa e batatas
+n'uma aldeia da Biscaya.
+
+<P>
+&mdash;Pois apesar d'isso estou bem certo de que preferiria encontrar
+hoje, ao apear-se da carroça, a cosinha de seus pães, com a sua priguiceira
+e um bom fogo de rama de pinheiro, a entrar n'esta habitação ricamente
+mobilada e com chaminé á franceza.
+
+<P>
+&mdash;Parece-lhe que o empreguemos em compras e recados?
+
+<P>
+&mdash;Não foi essa por certo a ideia de seus paes quando resolveram mandal-o
+para Madrid. É preciso collocal-o no escriptorio <span class="pagenum"><a name="pag_7">[7]</a></span> a fim
+de que, pouco a pouco, se vá instruindo e orientando no negocio.
+
+<P>
+&mdash;Pouco a pouco! Verá como antes de um mez o faço saber mais do que
+Merlin. <em>A letra com sangue entra</em>...
+
+<P>
+&mdash;Não concordo comtigo, Lucas. Toma conta, não lhe ponhas sequer
+a mão; não quero que aconteça com este o que aconteceu com outros,
+que á força de maus tratos, os entonteceste, e tive que os mandar
+para a terra...
+
+<P>
+Dispunha-se D. Lucas a tomar a defesa do seu barbaro systema d'educação,
+quando tocou a campainha;&mdash;calaram-se de subito, tio e sobrinho,
+applicando o ouvido na direcção do portal.
+
+<P>
+&mdash;Elle ahi está! exclamaram ambos a um tempo, ao ouvirem no patamar
+a voz do pequeno que saudava o creado que fôra abrir-lhe a porta.
+
+<P>
+&mdash;Senhor, disse este com sorriso d'escarneo, apparecendo á entrada
+do escriptorio, está aqui Chomin com o <em>rocim-chegado</em>.
+
+<P>
+D. João franziu as sobrancelhas como descontente de que o creado se
+atrevesse a proferir o estupido equivoco que vae escripto <span class="pagenum"><a name="pag_8">[8]</a></span>em italico, ao passo que o sobrinho soltou uma estrondosa gargalhada
+em honra da graça de Toribio, que era um asturiano tonto com pretenções
+a faceto:
+
+<P>
+&mdash;Que entrem, respondeu D. João.
+
+<P>
+Com effeito Chomin, que era um dos recoveiros das provincias Vascongadas,
+entrou no escriptorio, acompanhado d'um menino de doze a treze annos.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION01020000000000000000">
+II</A>
+</H2>
+
+<P>
+Não se tinha enganado D. João, suppondo que a pobre creança chegaria
+gelada.
+
+<P>
+Angelo (era assim que se chamava o novo caixeiro dos snrs. Quijano
+e Sobrinho) estava a tiritar com frio; tinha as mãos e a cara lividas
+e os seus olhos indicavam que, na noite antecedente, em vez de se
+terem fechado para o somno, se tinham aberto para o pranto. O pobre
+rapazinho <span class="pagenum"><a name="pag_9">[9]</a></span> parou á porta do escriptorio, com o chapéu na
+mão, de cabeça baixa, e mal pôde articular um cumprimento.
+
+<P>
+&mdash;Ora aqui o tem, disse Chomin, depois das saudações do estylo. Desde
+que saímos da aldeia, ainda não cessou de chorar com saudades das
+suas vaccas e das suas cabras.
+
+<P>
+&mdash;Pobre pequeno! exclamou D. João, afagando Angelo.
+
+<P>
+&mdash;Deixe lá, atalhou o almocreve, que o pão trigo de Madrid faz esquecer
+de prompto a brôa de Biscaya. Bem diz o provérbio que «<em>de Madrid
+só para o céo</em>».
+
+<P>
+D. João acercou-se de Angelo, e disse-lhe, correndo-lhe a mão pela
+cabeça:
+
+<P>
+&mdash;Vamos, homem, então, que tal achas Madrid? Parece-te melhor que
+a tua aldeia?
+
+<P>
+&mdash;Não, senhor, respondeu o pequeno com os olhos arrasados de lagrimas.
+
+<P>
+&mdash;Dizes bem, dizes! exclamou D. João, pondo-se a rir e fazendo uma
+nova caricia ao rapazinho. Devem ser assim os homens; a melhor terra
+é sempre aquella que nos viu nascer.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_10">[10]</a></span>&mdash;Sim, sim, ria-se tio, disse D. Lucas, fazendo um gesto
+de enfado; ria-se da sandice d'esse bruto. Não ha duvida, o rapaz
+promette! Mas deixa estar que caíste em mãos de quem te sabe ensinar!
+
+<P>
+&mdash;Não se afflija, snr. D. Lucas; o <em>rapazelho</em> põe-se fino com
+um bom par de açoites todos os dias.
+
+<P>
+&mdash;Isso fica por minha conta, respondeu D. Lucas.
+
+<P>
+&mdash;Valha-me Deus; não sejam assim, replicou o banqueiro; que admira
+que o pequeno tenha saudades de seus paes, se nunca se separou d'elles?
+E accrescentou, dirigindo-se a Angelo: deves trazer vontade de comer?
+
+<P>
+&mdash;Não, senhor, respondeu o menino, lavado em lagrimas.
+
+<P>
+&mdash;Não chores, disse D. João; chega-te para o lume e aquece-te, emquanto
+não chamam para o jantar, e logo tomarás conta do teu serviço e verás
+como antes de um anno te tornas um verdadeiro negociante.
+
+<P>
+O pequeno approximou-se da chaminé com o chapéu na mão; mas como o
+cegavam as lagrimas, tropeçou n'uma cadeira <span class="pagenum"><a name="pag_11">[11]</a></span> e lançou por
+terra uns papeis que estavam sobre ella.
+
+<P>
+&mdash;Desastrado! não vês por onde andas? exclamou D. Lucas, agarrando-lhe
+n'um braço e sacudindo-o com violencia.
+
+<P>
+De repente effectuou-se no animo do menino uma reacção inesperada.
+Elle que, um momento antes, mal se atrevia a levantar os olhos, ou
+a pronunciar uma palavra, ergueu a fronte com altivez, e virando-se
+para D. Lucas, disse-lhe:
+
+<P>
+&mdash;Expulse-se-me de sua casa, mas não me maltrate. Aqui maltratam-me,
+emquanto na minha aldeia me choram. Como quer então o senhor que eu
+goste mais d'esta terra do que da minha?! E accrescentou, dirigindo-se
+ao almocreve:
+
+<P>
+&mdash;Já não quero aqui ficar; volto comsigo para a Biscaya.
+
+<P>
+Estas palavras, bem longe de commoverem D. Lucas e o almocreve, fizeram
+rir este e encolerisar aquelle, que murmurou, levantando o punho fechado
+sobre a cabeça da creança:
+
+<P>
+&mdash;Se fosses meu filho abria-te a cabeça com um murro!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_12">[12]</a></span>D. João, porém, saíu em defeza do pobre rapaz, arredando
+d'elle com violencia seu sobrinho, e exclamando:
+
+<P>
+&mdash;Lucas, já te disse que não consinto que lhe ponhas a mão. Se o
+achas rude e acanhado, se está commovido e saudoso, recorda-te de
+como eras tambem, e do modo como te apresentaste quanto vieste para
+Madrid. E Vm.<sup>ce</sup>, snr. carroceiro, fique sabendo que não
+se tratam os racionaes como as mulas.
+
+<P>
+&mdash;Não faça caso, snr. D. João; isto em mim não passa de um gracejo,
+e senão elle que diga a maneira como eu o tratei pelo caminho.
+
+<P>
+&mdash;Carregando-me de lenços de contrabando! O que me valeu foi não
+me revistarem á entrada das portas; do contrario estaria a estas horas
+na cadeia!
+
+<P>
+&mdash;Não está mau modo de cuidar da innocente creança, que foi confiada
+á sua guarda! exclamou D. João, olhando com indignação para o almocreve.
+Retire-se já da minha presença, que me estão dando tentações de dar
+uma parte de si á policia.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_13">[13]</a></span>&mdash;Ora, snr. D. João!... Então o senhor faz caso do que
+dizem creanças?
+
+<P>
+&mdash;Já lhe disse que se retire da minha presença.
+
+<P>
+&mdash;Está bem, snr. D. João; mas...
+
+<P>
+&mdash;Não ha aqui mas, nem meio mas. Tenho dito, ponha-se no andar da
+rua.
+
+<P>
+O carroceiro não se atreveu a replicar e retirou-se murmurando não
+sei que insolencia.
+
+<P>
+D. João arrastou uma cadeira para junto do fogão, e sentou-se ao lado
+de Angelo que tinha cessado de chorar. O pobre pequeno estava já um
+tanto mais satisfeito por ver que nem todos n'aquella casa o tratavam
+com aspereza, e que se havia ali quem o maltratasse, tambem tinha
+quem o defendesse e lhe proporcionasse consolações e affagos, que
+lhe faziam lembrar os que deixára no lar domestico.
+
+<P>
+D. Lucas despeitado por vêr que o tio tomava as dôres pelo recem-chegado,
+a ponto de o reprehender a elle pela sua falta de humanidade, tinha-se
+retirado para o escriptorio, e por conseguinte ficaram sós, Angelo
+e D. João.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_14">[14]</a></span>Era este natural da aldeia do pequeno, e posto tivesse
+ido para a côrte de tenra edade, e absorvessem de ordinario todos
+os seus pensamentos e acções os assumptos commerciaes, nem por isso
+havia renegado o paiz natal, nem esquecido os seus parentes.
+
+<P>
+&mdash;Vamos, Angelo, disse elle ao rapazinho com modo carinhoso, dando-lhe
+uma palmada no hombro; conversemos um bocado ácerca da nossa aldeia;
+venham de lá algumas noticias frescas d'aquella boa gente. Então de
+quem te despediste tu antes de partir?
+
+<P>
+&mdash;Despedi-me de todos os meus parentes e vizinhos.
+
+<P>
+&mdash;Muito bem! N'esse caso havias de vêr meu irmão, não é verdade?
+
+<P>
+&mdash;Sim, senhor, recommendou-me que lhe désse muitas lembranças, e
+bem assim á senhora D. Joanna, e a D. Lucas... mas a este é que eu
+as não dou.
+
+<P>
+&mdash;Não sei porque não, filho.
+
+<P>
+&mdash;Porque me trata muito mal.
+
+<P>
+&mdash;Não faças caso, homem. Com que então deram-te lembranças para mim?
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_15">[15]</a></span>&mdash;Sim, senhor, e especialmente o snr. abbade.
+
+<P>
+&mdash;Deve estar muito velho, o bom do padre! coitado!
+
+<P>
+&mdash;Não, senhor; se o visse andar por aquelles montes ficava admirado.
+Ninguem dirá que tem mais de quarenta annos. Como não ha, lá na aldeia,
+quem não reze a Deus todos os dias para que lhe dê saude, não tem
+nem uma dôr de cabeça.
+
+<P>
+O colloquio de D. João e Angelo, interessantissimo para ambos elles,
+foi interrompido logo em começo pela entrada do asturiano, que tinha
+chamado ao menino <em>rocim-chegado</em>.
+
+<P>
+&mdash;Senhor, disse o creado, manda dizer a senhora que está a <em>mesa
+na sôpa</em>.
+
+<P>
+O banqueiro riu-se d'esta troca de palavras e encaminhou-se para
+o primeiro andar.
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_16">[16]</A></span>
+<H2><a name="SECTION01030000000000000000"></a>
+<BR>
+III
+</H2>
+
+<P>
+Não estava a mesa na sôpa, mas estava a sôpa na mesa, e D. Joanna,
+a esposa de Quijano, aguardava com impaciencia a chegada do marido,
+não porque tivesse o estomago vazio, mas sim porque o seu caracter
+irascivel e dominador não supportava que a fizessem esperar.
+
+<P>
+D. Joanna, que entrára como creada e acabára por ser ama em casa de
+D. João Quijano, tinha o relogio atrazado, pois assegurava ter trinta
+annos, ao passo que a sua physionomia, e o que ainda é mais, a certidão
+do baptismo, lhe davam quarenta.
+
+<P>
+Deter-me-hei pouco na descripção dos seus dotes physicos; direi apenas
+que as creadas, que despedia todas as semanas, a mimoseavam, ao descerem
+pela ultima vez as escadas, com os epithetos de: <em>dentes de cavallo</em>,
+<em>estafermo</em>, e <em>olhos de gato</em>.
+
+<P>
+Quanto ao moral era D. Joanna a personificação da antithese; alternavam-se
+n'ella <span class="pagenum"><a name="pag_17">[17]</a></span> a vaidade e a modestia, a avareza e a liberalidade,
+a crueldade e a compaixão, a elegancia e a falta de gosto no vestir.
+
+<P>
+Se um dia fazia gala, em uma reunião de pessoas distinctas, de não
+ter gasto até a edade de quatorze annos, outro calçado que não fosse
+o do seu <em>proprio coiro</em>, despedia, no dia seguinte, uma creada
+por a pobre rapariga pedir, na sua innocencia, ao carteiro, que lhe
+lêsse uma carta do seu noivo, por isso que sua ama não sabia lêr;
+agora despedia um mendigo com a seguinte blasphemia: «Vá pedir a S.
+Bernardino», que na bôca dos que podem e não querem dar, substitue
+a <em>supplica</em>&mdash;«queira perdoar, irmãosinho, não póde ser agora»&mdash;que
+costumam usar os que querem e não podem; e logo, sabendo que qualquer
+vizinho estava doente e precisado de meios, era muito capaz de lhe
+mandar uma boa esmola. Pela manhã dava uma <em>tarêa</em> ao cão por
+este ter mordido o gato, e de tarde dava outra ao gato por ter arranhado
+o cão; na quarta feira ia passear ao Prado, de vestido de velludo,
+e na quinta apresentava-se no mesmo sitio de vestido de chita.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_18">[18]</a></span>Se sou tão minucioso e até prolixo, é porque não quero
+que alguem critique e censure no pintor as inconsequencias do original.
+
+<P>
+D. Joanna dominava por tal arte o marido, que a vontade d'elle estava
+sempre subordinada á sua. D. João tremia diante d'um gesto ameaçador
+da mulher, e por mais d'uma vez teve ella um accesso medonho de cólera
+só porque o honrado banqueiro entrou em casa ás dez horas em vez de
+se recolher ás nove.
+
+<P>
+&mdash;Ora, com effeito, disse D. Joanna, quando D. João entrou na sala
+do jantar, já julgava que seria preciso metter-lhe empenhos, e dirigir-lhe
+algum requerimento para que o senhor se resolvesse a vir jantar. Se
+se persuade que eu estou para aturar as suas grosserias, está muito
+enganado.
+
+<P>
+&mdash;Sempre tens muito mau genio, Joanninha! disse o banqueiro, esfregando
+as mãos e com um sorriso affavel nos labios.
+
+<P>
+Sentou-se D. João á mesa, encheu um prato de sopa e passou-o a sua
+mulher; esta porém empurrou-o com tal violencia, <span class="pagenum"><a name="pag_19">[19]</a></span> que todo
+o seu conteúdo se entornou na toalha.
+
+<P>
+&mdash;Tambem tenho mãos para me servir.
+
+<P>
+&mdash;Como gostares mais, Joanninha, disse D. João humildemente.
+
+<P>
+Principiaram a jantar, e por mais que o banqueiro dirigisse a palavra
+a sua mulher, em tom agradavel e risonho, não foi possivel quebrar-lhe
+o silencio.
+
+<P>
+Por fim resolveu-se D. Joanna a fallar, perguntando ao marido:
+
+<P>
+&mdash;Então que negocios tão importantes foram esses que o obrigaram
+a deixar-me esperar por si meia hora?
+
+<P>
+&mdash;Meia hora! Não sei como não disseste uma, filha!
+
+<P>
+&mdash;Faça o favor de me não contradizer! exclamou D. Joanna, com um
+gesto terrivel. Eu fallo mais verdade do que você e toda a sua geração.
+
+<P>
+&mdash;Então! Não vale a pena alterares-te por tão pouco! A dizer a verdade,
+nem por isso eram lá muito grandes os negocios que me prendiam;&mdash;estava
+conversando com o pequeno.
+
+<P>
+&mdash;Com que pequeno?
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_20">[20]</a></span>&mdash;Com Angelo.
+
+<P>
+&mdash;Pois elle já chegou?
+
+<P>
+&mdash;Chegou, sim. Ainda o não sabias?
+
+<P>
+&mdash;Não, senhor, ninguem me disse nada. N'esta casa sou eu sempre a
+<em>ultima palavra do credo</em>... Pois não devia ser assim, e d'hoje
+para o futuro, eu lhe protesto que não tornará a acontecer uma coisa
+d'estas, porque, no fim de contas, eu é que sou a dona d'esta casa;
+entende o senhor?
+
+<P>
+E dizendo isto, D. Joanna atirou o trinchador com tal furia, que fez
+um prato em pedaços.
+
+<P>
+&mdash;Oh! menina!... por quem és, Joanninha.
+
+<P>
+&mdash;Deixe-me... não me diga uma palavra, quando não...
+
+<P>
+O banqueiro fez um movimento para traz, porque a mulher tinha pegado
+n'uma faca e agitava-a convulsivamente.
+
+<P>
+A final o silencio e a humildade do marido desarmaram aquella megera.
+
+<P>
+&mdash;Então, quando veiu o pequeno? perguntou ella.
+
+<P>
+&mdash;Haviam de ser duas horas, filhinha; eu suppunha que o creado t'o
+teria dito.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_21">[21]</a></span>&mdash;Não me disse nada. Aquelle Toribio é um bruto, que ha
+de ir hoje mesmo para o meio da rua. E que me diz tambem ao mono do
+rapaz, que não soube subir para me vir cumprimentar?!
+
+<P>
+&mdash;Bem vês que elle, coitado, não sabe...
+
+<P>
+&mdash;Pois tem obrigação de saber que sou eu a dona d'esta casa.
+
+<P>
+&mdash;Em primeiro logar o pobre pequeno chegou meio morto de frio, e
+depois aquelle excommungado de Lucas começou a embirrar com elle,
+de modo que a creança ficou logo sem saber de que freguezia era.
+
+<P>
+&mdash;Eu me encarrego de o pôr fino com umas correias que alí tenho.
+
+<P>
+&mdash;Não digas isso, Joanninha; para o pôr fino, como tu dizes, requerem-se
+carinhos e não correias. Já disse a Lucas, que comigo tem de se haver,
+se lhe puzer a mão. A ti não é preciso repetir a mesma coisa, porque
+tens melhor coração do que o meu sobrinho, e estou até convencido
+de que has de ser para Angelo uma segunda mãe. Afianço-te que está
+morto por te vêr; a primeira coisa que fez, quando chegou, foi perguntar
+por ti.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_22">[22]</a></span>Esta mentira do banqueiro foi o bastante para reconciliar
+Angelo com D. Joanna, que disse:
+
+<P>
+&mdash;Mas o que faz essa creatura no escriptorio? Porque o não mandaste
+subir, logo que chegou, para tomar alguma coisa? Provavelmente está
+ainda em jejum, molhado, cheio de frio...
+
+<P>
+&mdash;Nada, não, elle disse-me que não tinha vontade de comer; e quanto
+a aquecer-se, está no meu gabinete, sentado ao fogão.
+
+<P>
+&mdash;E porque foi, então, que Lucas o tratou mal?
+
+<P>
+&mdash;Que queres? coisas d'elle! Por ter dito que gostava mais da sua
+terra do que de Madrid.
+
+<P>
+&mdash;Santo Deus! Pois isso era motivo para ralhar com a creança? Aqui
+estou eu a quem, graças a Deus, não falta nada, e no entanto, morro
+pela minha aldeia...&mdash;Toribio! accrescentou D. Joanna, chamando pelo
+creado dos trocadilhos, dize ao rapazinho, que está no gabinete do
+senhor, que suba.
+
+<P>
+&mdash;Quem, o <em>rocim-chegado</em>? perguntou o asturiano com um sorriso
+malicioso.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_23">[23]</a></span>&mdash;Atrevido! exclamaram, a um tempo, D. Joanna e o banqueiro;
+se tornares a divertir-te á custa d'Angelo, vaes immediatamente para
+o andar da rua.
+
+<P>
+O asturiano baixou a cabeça, pouco satisfeito com o exito do seu gracejo,
+e um instante depois subia com o pequeno.
+
+<P>
+Angelo saudou D. Joanna com bastante desembaraço, e depois que ella
+lhe chegou um prato de bolos, acabou de perder todo o seu acanhamento,
+e respondeu com vivacidade ás mil perguntas que por largo espaço de
+tempo lhe dirigiram os dois esposos.
+
+<P>
+&mdash;Tens muitas saudades de tua mãe? lhe perguntou D. Joanna.
+
+<P>
+&mdash;Muitissimas, respondeu o pequeno.
+
+<P>
+&mdash;Pois, se fôres bom rapaz, hei-de estimar-te e cuidar tanto de ti,
+como se fôra ella propria.
+
+<P>
+&mdash;Muito obrigado, minha senhora!... disse o menino; e arrazaram-se-lhe
+os olhos de lagrimas... lagrimas d'alegria e de agradecimento.
+
+<P>
+O banqueiro e sua mulher levantaram-se da mesa.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_24">[24]</a></span>&mdash;Deixa-te estar aqui, filho, disse D. Joanna a Angelo;
+espera que vaes tu agora tambem comer e os teus companheiros.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION01040000000000000000">
+IV</A>
+</H2>
+
+<P>
+Pouco depois entraram na sala do jantar D. Lucas e os caixeiros e
+sentaram-se á mesa. Angelo porém conservou-se n'um canto, de cabeça
+baixa, receioso, e sem se atrever a levantar os olhos para D. Lucas.
+
+<P>
+&mdash;Chega-te para a mesa, selvagem, disse-lhe o sobrinho de Quijano.
+Parece-me que seria melhor ires outra vez guardar cabras lá para a
+tua terra.
+
+<P>
+Alegrou-se o menino e sentiu-se ao mesmo tempo ferido no coração,
+ao ouvir estas palavras; regosijou-o a lembrança de voltar para a
+sua aldeia e enluctou-se-lhe a alma com o novo insulto que acabava
+de lhe ser dirigido.
+
+<P>
+Approximou-se timidamente da mesa, mas não se chegou tanto, como devia,
+segundo <span class="pagenum"><a name="pag_25">[25]</a></span> a opinião de D. Lucas; este dando-lhe um murro
+nas costas exclamou:
+
+<P>
+&mdash;Chega-te mais, bruto! A culpa tem quem não deixa ficar estes animaes
+a pastar no campo, ou os não faz comer, quando muito, n'uma manjadoura
+em logar de mesa!
+
+<P>
+Todos os caixeiros do banqueiro desataram a rir em honra do chiste
+de D. Lucas.
+
+<P>
+O pobre Angelo derramava entretanto uma torrente de lagrimas, e comparava
+as caricias da sua familia com aquellas offensas barbaras e grosseiras.
+
+<P>
+&mdash;Então, comes ou não comes? perguntou D. Lucas.
+
+<P>
+&mdash;Não tenho vontade, respondeu Angelo.
+
+<P>
+&mdash;Tanto melhor; d'esse modo não corres perigo de agarrar alguma indigestão,
+e hão de abater essas bochechas de <em>frade Bernardo</em>.
+
+<P>
+Por unica resposta continuou Angelo a chorar e a suspirar pelos paes,
+pelos irmãos, pelos seus companheiros d'infancia e pelas queridas
+montanhas de Biscaya, onde <span class="pagenum"><a name="pag_26">[26]</a></span> até ali tinha vivido tão livre,
+tão estimado de todos e tão feliz!
+
+<P>
+E os caixeiros de Quijano a escarnecerem-n'o, a rirem-se d'elle, sem
+a mais leve sombra de compaixão, como se a pobre creança fosse um
+corpo sem alma, como se a considerassem sem coração para sentir!
+
+<P>
+É na verdade uma coisa que indigna e irrita as pessoas sensiveis,
+e que até revolta o animo, a falta d'humanidade com que são, de ordinario,
+tratados nos grandes centros, e particularmente em Madrid, os rapazes
+que para ali são mandados das aldeias!
+
+<P>
+Chega uma pobre creança, que nunca saíu do seio da sua familia, onde,
+se a não cercavam riquezas e commodidades, lhe sobravam carinhos e
+ternos cuidados; chega ordinariamente cheia de frio, extenuada de
+fadiga, muitas vezes até com fome, e sempre saudosa e triste, e em
+logar de a confortarem e de lhe proporcionarem carinhos, de que necessita
+então mais do que nunca, todos a escarnecem, todos zombam da sua innocencia
+e da sua humildade, das suas lagrimas e da sua linguagem.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_27">[27]</a></span>Ai! não accuseis o auctor d'este livro de se entregar a
+falsas declamações; a justificação d'essas palavras conserva-a elle
+impressa na sua memoria propensa a recordar, e no intimo do seu coração
+sempre disposto a perdoar, para nunca mais saír d'ali.
+
+<P>
+Durante a primeira tarde, que passou em casa de D. João Quijano, foi
+Angelo victima da selvageria, que estou condemnando. Abusaram indignamente
+da sua natural simplicidade e prudencia, obrigando-o a praticar um
+certo numero de coisas, que repugna enumerar; por ultimo fizeram-n'o
+persuadir de que todas as pessoas que entravam pela primeira vez em
+Madrid, careciam de ser pesadas a fim de pagarem uns certos direitos
+proporcionaes ao peso que tivessem.
+
+<P>
+Puzeram-n'o em cima d'uma balança, e ali o conservaram por tanto tempo,
+que a pobre creança já tinha o corpo quasi desconjuntado; quando terminou
+aquella experiencia de martyrio, que faz lembrar os tormentos inventados
+por Diocleciano e Torquemada, teve elle de soffrer outro talvez <span class="pagenum"><a name="pag_28">[28]</a></span>mais doloroso ainda, qual o das mofas e zombarias dos seus verdugos,
+que desapiedadamente lhe retalhavam o coração!
+
+<P>
+E os caixeiros do banqueiro, homens barbados, que, como taes, estavam
+constituidos na obrigação de proteger o fraco e de consolar o triste;
+que eram chamados a desempenhar graves e sagrados deveres na sociedade,
+mostravam-se contentes com a sua obra, e imaginavam-se, talvez, cheios
+de talento e de graça por haverem illudido e martyrisado uma creança,
+que, pela primeira vez na sua vida, vertia lagrimas de desespero,
+longe de seus paes que a idolatravam, e das queridas montanhas da
+sua patria!
+
+<P>
+Tudo soffreu a pobre creatura em silencio; nem sequer lhe restou o
+linitivo de se queixar a D. João dos barbaros tratos de que foi victima;
+prohibiram-lh'o os seus verdugos com ameaças que lhe infundiram novo
+terror e novo desalento.
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_29">[29]</A></span>
+<H2><a name="SECTION01050000000000000000"></a>
+<BR>
+V
+</H2>
+
+<P>
+Dormia toda a familia de Quijano no andar nobre da casa, á excepção
+do caixeiro mais moderno e dos cães, que se acommodavam no pavimento
+terreo, destinado quasi exclusivamente ao escriptorio e suas dependencias.
+
+<P>
+Os dois cães, Moiro e Pomba, dormiam no gabinete do banqueiro, que
+estava ricamente mobilado, ao passo que o caixeiro se alojava n'um
+quarto pequeno e humido, alumiado apenas por uma especie de fresta
+ou gateira aberta na parede, situado n'um patamar constantemente varrido
+pelo vento que entrava da rua e pelo que vinha d'um pateo que havia
+nas trazeiras da casa; a mobilia d'esse mesquinho aposento consistia
+toda em um leito de pinho com colchão, dois lençoes, um cobertor,
+um travesseiro e um lanceiro ou cabide tôsco para pendurar o fato
+e... grandes cortinados de teias d'aranha pendentes do tecto.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_30">[30]</a></span>Em tempo dormia o caixeiro mais moderno (rapaz de tempo)
+n'um quarto excellente do andar nobre; D. Lucas porém havia disposto
+as coisas por outra fórma, muito antes da época a que me refiro; tinha
+lá umas ideias <em>suas</em> d'hygiene, em virtude das quaes dizia que
+muitas vezes os caixeiros adoeciam por passarem repentinamente d'uma
+vida incommoda para uma vida commoda, d'um colchão duro para um colchão
+molle, d'um quarto mau para um quarto bom.
+
+<P>
+Quiz o tio oppôr-se áquella estupida innovação, ponderando que o que
+fazia adoecer os rapazes que entravam para sua casa não era senão
+o pessimo tratamento que recebiam de D. Lucas; este porém, taes argumentos
+empregou em defesa da sua theoria, que, para se livrar de polemicas,
+teve o pacifico banqueiro de concordar com elle. Os rapazes continuaram
+a adoecer, mas D. Lucas afirmava ao tio que tudo aquillo era fingimento
+e impostura para que os deixassem dormir no andar de cima, e o bom
+do banqueiro, que já não tinha pequena cruz nas teimas e ralhações
+<span class="pagenum"><a name="pag_31">[31]</a></span> de sua mulher, não quiz continuar em divergencia com o
+sobrinho, e acabou por admittir o seu barbaro systema penitenciario.
+
+<P>
+Patrões e caixeiros ceavam quasi simultaneamente, sendo as sóbras
+da mesa dos primeiros servidas aos segundos. D. Lucas comia de ordinario
+com estes, excepto porém nos dias sanctificados e á noite, que fazia
+companhia aos tios. Não podia o sobrinho do banqueiro tolerar que
+os caixeiros fumassem, e não obstante tinha uma paixão desmedida pelo
+tabaco; mas diante do tio não era capaz de fumar, e isto explica-se
+facilmente. D. Lucas começou a fumar quando, pela sua pouca edade,
+carecia para o fazer de occultar-se do banqueiro; e mais tarde, quando
+já eram escusadas essas precauções, continuou a matar o vicio ás occultas,
+talvez por habito, e talvez tambem por não dar o seu braço a torcer,
+por isso que em tempo tinha jurado e tornado a jurar ao tio que bastava
+o cheiro do tabaco para o transtornar completamente.
+
+<P>
+Erguia-se da mesa, ainda com o bocado <span class="pagenum"><a name="pag_32">[32]</a></span> na bocca, e entrando
+na cosinha, onde comiam os caixeiros, apertando o seu cigarro, que
+se não atrevia a accender, com medo de que na sala se presentisse
+o cheiro, pegava n'um castiçal e dava a voz de <em>deitar</em> ao <em>rapaz
+de tempo</em>. Achava-se este ainda em meio da ceia, por isso que os outros
+lhe levavam sempre um prato de vantagem, mas D. Lucas estava desesperado
+por fumar, de maneira que o pobre rapaz não tinha outro remedio senão
+levantar-se da mesa, dar as boas noites a toda a familia, começando
+pelos caixeiros, e seguir a D. Lucas, que já pelas escadas abaixo
+tirava cada fumaça que valia bem um dobrão.
+
+<P>
+Em quanto o pequeno se deitava, alumiado pela vela collocada no corredor,
+em frente da porta do quarto, acabava D. Lucas de fumar o seu cigarro,
+pegava no castiçal, fazia quatro festas aos cães, deitados n'um colchãosinho
+muito fôfo, e em seguida subia as escadas a fim de passar um bocado
+da noite na companhia dos donos da casa.
+
+<P>
+Se D. João tivesse um hospede e este lhe perguntasse a razão porque
+o sobrinho <span class="pagenum"><a name="pag_33">[33]</a></span> descia ao escriptorio, ainda bem não tinha
+acabado de cear, seria esta a resposta do banqueiro:
+
+<P>
+&mdash;Vae deitar os cães e o pequeno, dar uma vista d'olhos lá por baixo,
+vêr se está tudo bem fechado, e demora-se até poder trazer para cima
+a luz, porque aqui em Madrid é preciso muito cuidado com os fógos.
+Como estes rapazes são em geral muito <em>dorminhocos</em> e Lucas entende
+que por nós gostarmos de palestrar o nosso bocado, não se segue que
+o pequeno esteja para ahi a turrar com somno, dá-se pressa em o levar
+para a cama.
+
+<P>
+Succedeu a Angelo nem mais nem menos do que aos seus antecessores,
+com a differença, porém, de que á pobre creança lhe foi dobradamente
+mais custoso deitar-se a meia ração, por isso que todo o dia estivera
+fazendo cruzes na bocca, e quando o chamaram para a ceia tinha fome
+canina.
+
+<P>
+Uma pessoa adulta, oppressa pelo peso de tão profundo desgosto como
+era o d'elle, teria olhado para a comida com repugnancia, ainda que
+estivesse a caír de fraqueza; <span class="pagenum"><a name="pag_34">[34]</a></span> mas é que uma pobre creança,
+se acontece perder o appetite por espaço d'algumas horas, prompto
+o recupera, por mais acerbos e cruciantes que sejam os seus desgostos.
+
+<P>
+Angelo deitou-se e Dom Lucas despediu-se d'elle do seguinte modo:
+
+<P>
+&mdash;Ora queira Deus que pela manhã não haja preguiça! Aqui não se trata
+só de comer e dormir. Ás seis horas <em>varrer</em> bem o escriptorio.
+
+<P>
+Dom Lucas, como temos visto, usava muito d'essa especie de linguagem
+impessoal inventada pelos lacaios com o fim de se esquivarem a dar
+tratamento.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION01060000000000000000">
+VI</A>
+</H2>
+
+<P>
+Angelo, com a solidão do seu aposento, deu-se por compensado da parte
+da ceia de que a maldade de D. Lucas o privára. Alí podia sequer chorar
+desafogadamente, podia rogar a Deus que o restituisse ás suas <span class="pagenum"><a name="pag_35">[35]</a></span>montanhas, invocar o nome de seus paes, e execrar até os seus algozes,
+sem que uma gargalhada de despreso, um dito humilhante ou uma pancada
+fossem perturbal-o nas suas cogitações.
+
+<P>
+Ai! muito chorou a pobre creança, n'aquella noite!
+
+<P>
+&mdash;Como é triste viver em Madrid! pensava elle. E dizerem na minha
+terra que&mdash;<em>de Madrid só para o céo!</em>&mdash;As pessoas que dizem
+isso de certo nunca estiveram aqui! As ruas e as praças estão convertidas
+em lodaçaes immundos; a gente anda toda aos encontrões; as carruagens
+e os cavallos atropellam e cobrem de lama os transeuntes; as goteiras
+alagam os individuos que seguem pelos passeios; e o vento que sopra
+das portas faz rebentar o sangue nas mãos e na cara!
+
+<P>
+É bem differente d'isto o meu querido paiz, os campos amenos da Biscaya!
+
+<P>
+Lá alveja a neve lisa e pura por sobre a relva e as penhas, nas arvores
+e nos telhados, e quando o sol ou a chuva a derretem não é em lodo
+que se converte, mas sim em cristallinos arroios; lá não se apinhôa,
+<span class="pagenum"><a name="pag_36">[36]</a></span> confunde e atropella a gente, o gado e os carros, que
+a todos Deus concedeu campo e largueza por onde se espalhem á vontade;
+e se tambem ali sopra o ar frio do inverno, é ar que dá saude em vez
+de tiral-a.
+
+<P>
+Ai! quão differente teria corrido para mim o dia, se o passasse na
+minha aldeia! Se lá estivesse, andaria no campo a patinhar no gelo;
+teria feito grandes bólas de neve no alto da montanha, para as vêr
+despenhar-se no valle; em seguida voltaria a casa, e depois de ter
+almoçado junto do lume, subiria á trapeira para apanhar os passaros,
+que ali vão abrigar-se do mau tempo e procurar o sustento que não
+encontram nos campos cobertos de neve; e á noite, em quanto minha
+mãe estivesse preparando a ceia, contar-me-hia meu avô as suas façanhas
+da guerra da independencia. No fim da ceia iria para a cama acompanhado
+por minha mãe, que depois de me cobrir e agasalhar cuidadosamente,
+se despediria de mim, como de costume, com um dôce beijo. Ai! que
+differença! assim não estaria, como agora estou, acordado e a <span class="pagenum"><a name="pag_37">[37]</a></span>chorar, mas dormiria tranquillo e socegado até que, com outro beijo,
+fosse despertar-me pela manhã!
+
+<P>
+Entregue a tão saudosos pensamentos passou Angelo em claro quasi toda
+a noite. Já se ouviam na rua os pregões dos vendilhões e fornecedores
+da cidade, o barulho dos carros e os passos dos transeuntes, quando,
+vencido pela vigilia, e tomado do cansaço do corpo e do espirito,
+caíu n'um benefico somno.
+
+<P>
+Adormeceu profundamente; rosaram-se-lhe as faces, e a posição em que
+ficára e a sua respiração serena e plácida, revelavam uma dulcissima
+tranquillidade d'espirito; entreabria-lhe os labios aprasivel sorriso,
+e, de vez em quando, soltava d'elles os nomes de <em>pae</em>, <em>mãe</em>,
+e outros como estes saudosos e gratos ao coração da desventurada creança.
+
+<P>
+Agora sonhava que se achava na aldeia, cercado da sua familia ou brincando
+com os seus companheiros de infancia; depois, que trepava ao cimo
+das arvores em busca d'um ninho de rôla, ou de pombo torcaz; derribava
+ás pedradas as maçãs e as nozes; <span class="pagenum"><a name="pag_38">[38]</a></span> corria ao bosque a fazer
+assobios da casca do castanheiro, ou ao ribeiro para construir moinhos
+de junco; logo subia ao alto da montanha, coroada por uma ermida,
+em roda da qual andava o tambor chamando para a romaria. Por ultimo
+sonhava que era noute de S. João, que todo o valle estava illuminado
+pelas fogueiras accesas nos oiteiros, e o inundavam d'alegria o repique
+dos sinos, os morteiros, as cantigas e os gritos de jubilo, que acompanham
+sempre aquella festa classica e essencialmente infantil!
+
+<P>
+Embalado n'estes sonhos deliciosos, que lhe representavam todos os
+encantos do seu paiz natal, sonhos que melhor do que ninguem póde
+adivinhar o auctor d'este livro, porque tambem chorou e sonhou como
+Angelo, não ouviu o pobre menino as sete horas que bateram compassadas
+no relogio do escriptorio.
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_39">[39]</A></span>
+<H2><a name="SECTION01070000000000000000"></a>
+<BR>
+VII
+</H2>
+
+<P>
+Manoel e Marianno (eram estes os nomes dos dois caixeiros do banqueiro)
+desceram as escadas, e vendo que Angelo se não tinha ainda levantado,
+dirigiram-se para o seu aposento.
+
+<P>
+&mdash;É melhor acordal-o, dizia Manoel, porque se chega D. Lucas e o
+encontra a dormir não deixa de lhe fazer a operação do costume.
+
+<P>
+&mdash;E que tem lá isso? replicou Marianno, para nós é até um divertimento.
+A pena que me resta é não haver aqui á mão um bom molho de ortigas.
+
+<P>
+&mdash;Não tenhas mau coração. Já não soffreu pouco hontem o pobre pequeno,
+principalmente com a historia da balança.
+
+<P>
+&mdash;E que tem que soffresse?! Tambem nós soffriamos quando eramos como
+elle.
+
+<P>
+&mdash;Pois por isso mesmo que a nós nos trataram mal é que eu entendo,
+que devemos tratar agora bem os que se acham em identicas circumstancias.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_40">[40]</a></span>E dizendo isto, approximou-se da cama de Angelo, e principiou
+a abanal-o e a chamar por elle; mas o menino estava tão ferrado no
+somno, que continuava a dormir profundamente.
+
+<P>
+&mdash;Que é lá isso, perguntou D. Lucas, apparecendo á porta do quarto.
+Então esse estupido ainda está na cama?!
+
+<P>
+&mdash;Está, sim, senhor, respondeu Marianno.
+
+<P>
+D. Lucas proferiu uma praga e accrescentou, dirigindo-se a Marianno:
+
+<P>
+&mdash;Vaes vêr como esperta n'um instante. Traz-me lá de cima, da talha,
+uma bilha d'agua para se lhe applicar o remedio.
+
+<P>
+Marianno, que parecia feito á similhança de D. Lucas, obedeceu de
+prompto, e largou pelas escadas acima, esfregando as mãos de contente.
+No primeiro andar, e debruçado n'uma varanda de ferro que dava para
+o pateo interior da casa, coberto por um tolde, estava Toribio, escutando
+o que se passava em baixo, pois d'alli se ouvia tudo perfeitamente.
+
+<P>
+&mdash;Que temos, snr. D. Marianno, perguntou elle ao caixeiro.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_41">[41]</a></span>&mdash;Vou buscar uma bilha d'agua para fazermos a <em>operação</em>.
+
+<P>
+&mdash;Ao <em>rocim-chegado</em>?
+
+<P>
+&mdash;Nem mais nem menos; vem d'ahi, se te queres rir.
+
+<P>
+&mdash;Isso já a mim me palpitava, que se lhe havia de fazer o <em>remedio</em>.
+Mas a agua não deve ser da talha; essa está pouco fria por causa da
+proximidade do fogão. Temos aqui um bom jarro d'ella, que, de proposito,
+deixei ficar de noite sobre o alpendre.
+
+<P>
+&mdash;És um rapaz de talento, Toribio! exclamou, rindo, Marianno, em
+quanto o bruto do creado pegava no jarro da agua.
+
+<P>
+&mdash;Deve estar excellente! accrescentou, vendo-a coberta d'uma espessa
+crusta de gelo, que foi quebrando com os nós dos dedos, á maneira
+que descia os degraus da escada.
+
+<P>
+Toribio não quiz privar-se do barbaro goso de assistir ao martyrio
+que ia soffrer a pobre creança, e correu, todo alvoroçado, atraz de
+Marianno.
+
+<P>
+Dom Lucas pegou no jarro, e afastando para o lado a roupa que cobria
+o menino até ao pescoço, despejou-lhe de golpe toda <span class="pagenum"><a name="pag_42">[42]</a></span> a
+agua por sobre o peito, com grande satisfação de Marianno e Toribio.
+Manoel, esse, coitado, estava compungido da sorte do rapazinho. Angelo
+soltou um grito e ergueu-se de subito, ao sentir no corpo a agua gelada.
+
+<P>
+&mdash;Isto é para vêr se acordas! disse D. Lucas, e completou a phrase
+com uma nova praga.
+
+<P>
+O menino não replicou, nem tratou sequer de desculpar-se. Atirou immediatamente
+comsigo da cama abaixo, e vestiu-se sem proferir uma palavra. Os seus
+olhos não derramavam lagrimas, mas derramava sangue o seu coração!
+Tinha á cabeceira da cama uma estampa, já enegrecida pelo tempo, representando
+Jesus crucificado. Ergueu os olhos para a divina imagem e exclamou
+no intimo de sua alma afflicta:
+
+<P>
+&mdash;Senhor, levae-me já para o céo ou para as minhas montanhas!
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_43">[43]</A></span>
+<H2><a name="SECTION01080000000000000000"></a>
+<BR>
+VIII
+</H2>
+
+<P>
+Do seio d'aquella nuvem de tristeza que o cercava, luziu para o pobre
+Angelo um raio de esperança. Pelas conversas que ouviu, de D. Lucas
+e dos seus companheiros, veiu no conhecimento de que os caixeiros
+do banqueiro tinham licença de saír nos dias santificados e para logo
+concebeu a esperança de gosar tambem d'esse prazer, libertando-se
+da tristeza e da oppressão de toda a semana, n'aquelle dia de folga
+e de liberdade.
+
+<P>
+De quantas necessidades experimentava era por certo a maior a de respirar
+por algum tempo livremente, vendo o céo e o sol, as arvores e os campos.
+
+<P>
+Manoel era o unico que dirigia a palavra a Angelo sem aquella aspereza
+e zombaria com que sempre lhe fallavam D. Lucas e Marianno. Por isso,
+depois de dois dias de hesitação, abalançou-se o menino a perguntar-lhe
+se tambem lhe dariam, a elle, licença para saír ao domingo para o
+campo..
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_44">[44]</a></span>&mdash;De certo, isso nem se pergunta, respondeu Manoel.
+
+<P>
+Esta resposta, que a outro qualquer pareceria em extremo laconica,
+fez verter lagrimas de agradecimento e de alegria a Angelo; de agradecimento
+porque encerrava em si um thesouro d'indulgencia, comparada com as
+que todos os dias recebia n'aquella casa, e de alegria por lhe vir
+confirmar as fagueiras esperanças que nutrira.
+
+<P>
+As palavras de D. Lucas já não pareciam á innocente creança sêccas
+e desabridas, nem tão pouco se lhe afiguravam crueis os motejos de
+Marianno e de Toribio; já não julgava insupportavel o trabalho a que
+o submettiam desde pela manhã até altas horas da noite, e até o quarto
+em que dormia, humido e frio, triste e isolado, lhe parecia confortavel
+e alegre desde que n'elle sonhava com os prazeres do domingo, embalado
+nas risonhas esperanças de disfructar, ao menos um dia na semana,
+gosos similhantes áquelles, que diariamente o deleitavam nos campos
+do seu paiz natal.
+
+<P>
+&mdash;Se os bosques e os prados da minha terra são tão formosos, pensava
+elle, como <span class="pagenum"><a name="pag_45">[45]</a></span> não hão de ser encantadores os d'aqui, se até
+por elles passeiam os reis e a sua côrte? E quando as caçadas, lá
+nos meus sitios, são tão divertidas, o que não acontecerá em Madrid,
+onde tudo deve participar da grandeza da capital?
+
+<P>
+E os aprestes de caça de D. Lucas! Como são ricos! a espingarda e
+o polvarinho marchetados de prata, e as polainas e os correões bordados
+a sêda! Muito me hei de divertir! Parece-me que já estou a atravessar
+espessos bosques de carvalhos e castanheiros seculares, a passar regatos
+cristallinos, e torrentes espumosas, e a vêr, a meu salvo, do alto
+d'uma fraga, do cimo d'uma collina ou da copa d'uma arvore, o javalí
+e o veado perseguidos pelos cães. Por fim, ao caír da tarde, quando
+tivermos reunido uma boa porção de formosas rezes, iremos descançar
+debaixo das ramadas ou das nogueiras que fazem sombra aos casaes,
+onde não deixarão de nos offerecer excellente leite e fructa saborosa.
+E quando entrarmos na cidade! Com que orgulho, com que alegria não
+atravessaremos nós essas ruas, com grandes enfiadas de perdizes <span class="pagenum"><a name="pag_46">[46]</a></span>ás costas, e trazendo á arreata uns poucos de burros carregados de
+javalís e lebres!
+
+<P>
+Chegou finalmente o domingo tão desejado. O céo appareceu limpido
+e puro; despontou o sol mais formoso que nunca, e um vento forte,
+que soprára toda a noite, tinha seccado completamente o solo. Tudo
+contribuia para aformosear e revestir de galas o dia destinado a compensar
+Angelo dos desgostos e maus tratos que soffrera até ali.
+
+<P>
+Na véspera á noite tinha dito D. Lucas aos caixeiros, em presença
+dos donos da casa, que eram fieis observadores dos preceitos religiosos:
+
+<P>
+&mdash;Amanhã <em>levantar</em> cedo para ouvir missa antes de partir para
+o campo.
+
+<P>
+Os caixeiros, e bem assim D. Lucas, levantaram-se effectivamente muito
+cedo, mas não foi para ouvir missa.
+
+<P>
+Bem se importava D. Lucas com a missa, quando se tratava de caça que
+era o seu divertimento favorito!
+
+<P>
+O sobrinho de Quijano marcou tarefa a cada um dos rapazes. Angelo
+foi encarregado de fazer varetas de junco, Manoel <span class="pagenum"><a name="pag_47">[47]</a></span> de encher
+de polvora os polvarinhos e de chumbo as bolsas dos correões, e Marianno
+de fazer provisão de fulminantes.
+
+<P>
+Soou finalmente a hora da partida; D. Lucas, Manoel e Marianno calçaram
+botins muito grossos, afivelaram vistosas polainas bordadas a seda
+de differentes côres, lançaram ás costas grandes saccos de caça e
+armaram-se não só de espingardas de dois canos, como tambem de facas
+de matto; por ultimo tiveram o cuidado de metter para os bolsos um
+bom punhado de balas.
+
+<P>
+Angelo olhava para aquelles preparativos com indizivel satisfação,
+e dizia com os seus botões:
+
+<P>
+&mdash;Estas polainas, estes enormes saccos de caça, estas facas de matto
+e estas balas indicam que vamos correr montes espessos e escabrosos,
+que a caça deve ser abundante e que de certo nos temos de haver com
+javalís ferozes, e talvez até com ursos e lobos.
+
+<P>
+O que porém dava que entender a Angelo era vêr que D. Lucas se dispunha
+a levar comsigo os dois cãesitos de casa do banqueiro, que não podiam
+ter forças para <span class="pagenum"><a name="pag_48">[48]</a></span> arrostar com os perigos e fadigas d'uma
+caçada como a que elle phantasiava na sua infantil imaginação.
+
+<P>
+Saíram a final, e tomaram pela rua abaixo; «muito barata ha de estar
+ámanhã a caça!» diziam algumas pessoas ao verem-n'os passar.
+
+<P>
+E Angelo, que não comprehendia a ironia que se continha n'estas palavras,
+cada vez se confirmava mais na ideia que tinha formado da caçada.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION01090000000000000000">
+IX</A>
+</H2>
+
+<P>
+Quando avistaram a porta de Toledo, ficou Angelo a pular de contente;
+mais alguns passos apenas e estavam no campo, onde ia recrear a vista
+na contemplação d'uma perspectiva encantadora; era esse o juizo que
+formava, e que tinha como certo.
+
+<P>
+Se tanto o deleitavam as ridentes paisagens do seu paiz, com mais
+razão entendia a pobre creança que o haviam de captivar <span class="pagenum"><a name="pag_49">[49]</a></span>as dos arredores de Madrid, a capital da Hespanha onde tudo devia
+ser magnifico e admiravel.
+
+<P>
+Lá, na frente, pensava elle, hão de avistar-se talvez grandes montanhas
+cobertas de frondoso arvoredo; a um lado elevar-se-ha uma verde colina
+coroada pelas ruinas d'um castello mysterioso e sombrio; do lado opposto
+erguer-se-hão ás nuvens penhas alcantiladas, por entre as quaes se
+despenharão com rouco bramido impetuosas torrentes, e pelas faldas
+dos montes ha de estender-se por certo uma veiga deliciosa, semeada
+de casinhas brancas, e regada por um rio caudaloso, em cujas ribas
+estarão collocados, destacando no horisonte, inumeros moínhos, completando
+a paisagem com os seus tectos elegantes e pittorescos...
+
+<P>
+É este o espectaculo grandioso, que vae, n'um momento, offerecer-se
+aos meus olhos!
+
+<P>
+E vendo que estavam quasi a chegar á porta, desceu Angelo a vista
+com o proposito firme de a não levantar, em quanto não sentisse debaixo
+dos pés a herva do campo, para assim poder abranger a um tempo e <span class="pagenum"><a name="pag_50">[50]</a></span>de repente, o formoso panorama, que se lhe desenhava na mente.
+
+<P>
+A areia e a brisa subtil do Guadarrama, e não esse tapete de mimosa
+relva, que sonhára, lhe fizeram conhecer que já se achava fóra de
+Madrid.
+
+<P>
+Ergueu de subito os olhos e abarcou ancioso com a vista a paisagem,
+que tinha diante de si.
+
+<P>
+Ai! que differença entre o panorama, que se lhe apresentava e aquelle
+que phantasiára na sua pueril imaginação!
+
+<P>
+Em frente limitavam o horisonte os cêrros escalvados e agrestes de
+Santo Izidro, coroados não de arvores formosas e de castellos mysteriosos,
+mas sim de telhados denegridos pelo fumo e de lugubres cemiterios,
+circumdados de muros de terra. Do lado esquerdo uma planicie estéril
+e monótona, da qual os accidentes mais bellos são o cêrro dos Anjos
+e o cêrro Negro. Á direita as vendas ou retiros miseraveis e as aridas
+encostas, que dominam a ponte de Segovia; e em baixo, na planicie,
+o triste Manzanares, arrastando-se penosamente por entre muladares
+e lavadouros!...
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_51">[51]</a></span>Um cruel desalento e uma profunda melancholia se apoderaram
+para logo de Angelo; comtudo não perdeu de todo a esperança de deparar
+com o paraiso dos seus sonhos.
+
+<P>
+&mdash;Quem sabe? pensava elle, talvez que ao transpor aquellas imminencias
+se descubra uma paisagem menos arida e triste do que esta que d'aqui
+se observa. E seguindo os seus companheiros, atravessou o Manzanares
+pela ponte de Santo Izidro. De repente D. Lucas parou, recommendando,
+por signaes, aos outros que não fizessem bulha. Todos obedeceram,
+e elle então adiantou-se, nas pontas dos pés, agachando-se cautelosamente,
+e com os perros da espingarda levantados.
+
+<P>
+Angelo suppoz que D. Lucas teria avistado alguma lebre, ou pelo menos
+um bando de perdizes. Por fim o grande caçador de Madrid disparou
+a arma, e exclamou cheio de alegria:
+
+<P>
+&mdash;Lá caíu, lá caíu! Áquelle já ninguem lhe vale!
+
+<P>
+E desappareceu por entre os choupos da margem do rio. Alguns momentos
+depois <span class="pagenum"><a name="pag_52">[52]</a></span> tornou a apparecer, mostrando triumphante um passaro
+<em>ribeirinho</em> que acabava de matar!
+
+<P>
+As illusões de Angelo soffreram um novo golpe. Que caçada era aquella
+em que os caçadores se alvoroçavam tanto com a morte d'um passarito?
+Para que serviam então tantas balas, tantas facas de matto e tantos
+saccos e correões de caça?!
+
+<P>
+Os caçadores treparam aos cêrros de Santo Izidro, e Angelo dirigiu
+a vista para o novo horisonte. Alli, como na porta de Toledo, não
+via para todos os lados para onde olhava, senão áridas serranias,
+collinas escalvadas, umas poucas d'arvores rachiticas, e alguns silvados
+e espinhaes, contornando o regato de Luche.
+
+<P>
+D. Lucas não desanimava como Angelo. Atravessando campos semeados,
+atraz d'um pardal ou d'uma cotovia, foi-se affastando, poupo e pouco,
+seguido pelos seus companheiros. Angelo já se sentia fatigado, e outro
+tanto acontecia aos dois <em>improvisados</em> cães de caça. Sentou-se
+por fim n'uma pedra, e os cãesitos, vencidos egualmente de cançaço,
+deitaram-se n'um rego <span class="pagenum"><a name="pag_53">[53]</a></span> do campo; D. Lucas, porém, vendo
+isto, deu um empurrão á pobre creança, e affagando os cães, obrigou-a
+a carregar com elles.&mdash;«Tu que não pódes leva-me ás costas.»
+
+<P>
+Como D. Lucas seguisse a margem do ribeiro de Luche, saltou-lhe um
+coelho de entre os pés. D. Lucas disparou-lhe um tiro a corta-matto,
+porém o coelho proseguiu no seu caminho sem ter soffrido o <em>mais
+leve incommodo</em>.
+
+<P>
+O caçador soltou uma praga e affirmou aos seus companheiros, que o
+coelho ia ferido, e que se não tinha morrido logo ali, a culpa não
+era sua, mas sim da polvora, que não prestava para nada. E o pobre
+Angelo que já não podia com o corpo, e menos ainda com a alma, continuava
+a seguil-os, carregado com os cães.
+
+<P>
+Com estas e outras proezas foi passando o tempo, e os caçadores tomaram
+por ultimo o caminho de Madrid, levando nos correões meia duzia de
+passaritos.
+
+<P>
+De vez em quando Angelo ficava para traz, e o sobrinho do banqueiro
+ajudava-o <span class="pagenum"><a name="pag_54">[54]</a></span> então a andar, proferindo uma praga, ou dando-lhe
+um pontapé.
+
+<P>
+Junto á porta de Toledo, encontraram um caçador, que levava quatro
+coelhos.
+
+<P>
+&mdash;Olá, tio Lobo! disse D. Lucas; pelo que vejo não lhe correu mal,
+hein?
+
+<P>
+&mdash;Assim, assim, snr. D. Lucas; e o senhor, que tal?
+
+<P>
+&mdash;Ora deixe-me, homem, estou desesperado com esta maldita polvora.
+
+<P>
+&mdash;Então que tem? está humida, talvez?
+
+<P>
+&mdash;Nada, humida não está; mas não sei o que tem, que não presta para
+nada; dei hoje mais de vinte tiros, e vi fugir todas as peças de caça
+feridas.
+
+<P>
+&mdash;Pois a mim é que isso não acontece; a caça que me fugir preguem-m'a
+na testa. Tenho uma polvora de contrabando, que não quero que haja
+melhor.
+
+<P>
+&mdash;Homem, vende-me vocemecê uns poucos d'arrateis?
+
+<P>
+&mdash;Com muito gosto, snr. D. Lucas; qualquer dia d'estes lá lh'os levo
+a casa.
+
+<P>
+&mdash;Muito bem. Vamos agora a vêr esses <em>bicharôcos</em>.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_55">[55]</a></span>&mdash;Póde vêr á vontade, que são quatro peças de caça aceiadas.
+
+<P>
+&mdash;Isso vejo eu. Provavelmente são para vender na praça?...
+
+<P>
+&mdash;Está bem de ver, nem a gente vive d'outra coisa.
+
+<P>
+&mdash;Pois, n'esse caso, fico eu com os coelhos.
+
+<P>
+&mdash;Estão ás suas ordens, snr. D. Lucas.
+
+<P>
+&mdash;E quanto lhe hei de dar por elles?
+
+<P>
+&mdash;Dá-me aquillo que o senhor quizer.
+
+<P>
+&mdash;Está bom, ahi tem um duro, serve?
+
+<P>
+&mdash;Muito obrigado, snr. D. Lucas. O que eu desejo é que os senhores
+os comam com saúde. Até outra vez, se Deus quizer.
+
+<P>
+&mdash;Adeus, tio Lobo.
+
+<P>
+O <em>verdadeiro</em> caçador tomou a dianteira aos caixeiros de Quijano.
+D. Lucas tratou logo de enfeitar o seu correão com os quatro coelhos,
+e pouco depois entrava em Madrid, tão inchado que não cabia na rua
+de Toledo, e causando inveja áquelles que ainda pela manhã tinham
+zombado d'elle.
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_56">[56]</A></span>
+<H2><a name="SECTION010100000000000000000"></a>
+<BR>
+X
+</H2>
+
+<P>
+Dois ou tres dias depois da famosa caçada, estavam no gabinete de
+D. João Quijano, palestreando junto do fogão, o banqueiro, seu sobrinho
+D. Lucas e quatro ou cinco amigos intimos da casa.
+
+<P>
+Fóra, no escriptorio, trabalhavam em silencio os caixeiros e com elles
+Angelo, cujas côres rosadas iam pouco e pouco desapparecendo, e cuja
+tristeza era cada vez mais profunda.
+
+<P>
+&mdash;Como vamos nós de caça, D. Lucas? perguntou um dos amigos.
+
+<P>
+&mdash;Ás mil maravilhas, respondeu D. Lucas.
+
+<P>
+&mdash;Meu sobrinho, acudiu o banqueiro, está sendo o rei dos caçadores!
+Pois não sabem que, domingo, teve a habilidade de se apresentar aqui
+com quatro coelhos, que pareciam quatro bezerros?!
+
+<P>
+&mdash;Que nos diz, homem?
+
+<P>
+&mdash;Nem mais nem menos, é como lhes <span class="pagenum"><a name="pag_57">[57]</a></span> conto. Aprendam como
+elle a matar coelhos onde ninguem os costuma matar, nos suburbios
+de Madrid.
+
+<P>
+&mdash;Sempre queria saber como isso foi, disse um dos interlocutores.
+
+<P>
+&mdash;Tem pouco que saber, disse D. Lucas. Matei domingo quatro coelhos,
+junto ao ribeiro do Luche. Aquillo foi n'um abrir e fechar d'olhos,
+e é preciso advertir que a polvora não prestava para nada.
+
+<P>
+&mdash;Não sei como isso se faz; eu cá, por mais voltas que dou, não sou
+capaz de levantar um coelho por estas visinhanças.
+
+<P>
+&mdash;É porque os senhores são caçadores das duzias! Eu por mim, nem
+sequer preciso de cão; havendo coelho, está prompto; faço-o saltar,
+e depois de lhe atirar, nem todos os santos lhe valem, porque onde
+eu puzer a vista ponho o tiro. Pum! coelho a terra!... Os quatro de
+domingo foi um momento em quanto caíram.
+
+<P>
+&mdash;Pois, senhor, não tem que vêr, é um bom caçador!
+
+<P>
+D'isso está elle convencido. A caçada de domingo ha de ser apregoada
+por toda <span class="pagenum"><a name="pag_58">[58]</a></span> a cidade; não falla d'outra cousa a quantas pessoas
+aqui entram!
+
+<P>
+Estava ainda o sobrinho do banqueiro narrando, com toda a miudeza,
+como matára os quatro coelhos, quando entrou no escriptorio o tio
+Lobo, que ia levar a D. Lucas os dois arrateis de polvora de contrabando,
+que este lhe encommendára.
+
+<P>
+&mdash;Esta ahi o snr. D. Lucas? perguntou o caçador aos caixeiros.
+
+<P>
+&mdash;Sim, senhor, respondeu Angelo.
+
+<P>
+&mdash;Pois faça favor de lhe dizer que está aqui fóra o tio Lobo, que
+o procura.
+
+<P>
+O pequeno entrou no gabinete.
+
+<P>
+D. Lucas, que ainda não tinha acabado de contar como matára os quatro
+coelhos, ficou logo furioso por lhe interromperem a historia, e antes
+que o pequeno tivesse tido tempo de fallar, perguntou-lhe, com aquella
+amabilidade que lhe era propria:
+
+<P>
+&mdash;Que queres tu d'aqui, borrego?
+
+<P>
+&mdash;É que está ali fora o Lobo, respondeu Angelo.
+
+<P>
+Desataram todos a rir, vendo a relação casual, que havia entre a pergunta
+e a resposta.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_59">[59]</a></span>Não era para admirar que Angelo omitisse a denominação
+de <em>tio</em>, que costumava preceder o nome do caçador, porque esse
+tratamento, que é tão vulgar em quasi toda a Hespanha, não se usava
+nem se usa, na sua provincia, senão quando o justificam os laços de
+consanguinidade. Julgando por tanto que se riam por não se haver explicado
+bem, ficou corrido de vergonha, e tratou de se fazer comprehender
+melhor.
+
+<P>
+&mdash;Parece-me que é assim que tenho ouvido chamar-lhe; e accrescentou,
+«é aquelle caçador a quem o senhor comprou domingo os quatro coelhos
+junto á porta de Toledo.»
+
+<P>
+Estas palavras de Angelo foram acolhidas com uma gargalhada ainda
+mais ruidosa do que a anterior, porém menos inoffensiva; uma gargalhada
+de mofa, insultante, sangrenta, e isto porque os caçadores têm dois
+grandes defeitos; são geralmente embusteiros e invejosos, e assim
+como não perdem a occasião de mentir, tambem não perdem nunca o ensejo
+de humilhar os que caçam, ou suppõem caçar mais do que elles.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_60">[60]</a></span>D. Lucas ficou por espaço d'um segundo immovel, envergonhado
+e corrido; porém, de repente, injectaram-se-lhe os olhos de sangue,
+engorgitaram-se-lhe as veias, e tornou-se completamente livido e desfigurado.
+
+<P>
+Arremeçou-se como um tigre sobre a pobre creança, vociferando e praguejando
+como possesso, e lançando-lhe as mãos ao pescoço, levou-a d'encontro
+á parede e começou a descarregar-lhe furiosas patadas no estomago,
+antes que D. João e as outras pessoas, que se achavam presentes, tivessem
+tido tempo para se interpor entre aquella fera e o innocente cordeiro,
+que, por unica defesa, invocava o nome de sua mãe.
+
+<P>
+Oh! tu, Fernan Caballero, nobre e generoso cantor do nosso bom povo
+hespanhol, amigo dos pobres d'espirito e dos ricos de coração, que
+tens cabeça d'homem para pensar e alma de mulher para sentir; tu que
+és o amigo por excellencia dos meninos e das mães, dos fracos e dos
+attribulados; tu que buscas e encontras as dôres e as afflicções do
+proximo, onde as almas vulgares as não descobrem, e que, com tanto
+<span class="pagenum"><a name="pag_61">[61]</a></span> sentimento e caridade, as prantêas, dize-me, meu bom Fernando,
+não achas que os sabios legisladores da humanidade tem sido extremamente
+crueis e ignorantes, pondo os meninos debaixo da salvaguarda do codigo,
+que protege os homens, em vez de os acobertar com a égide celeste
+do codigo que protege os anjos?!
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION010110000000000000000">
+XI</A>
+</H2>
+
+<P>
+Alguns mezes haviam já decorrido depois do dia em que Angelo escapou,
+por milagre, de morrer ás mãos de D. Lucas.
+
+<P>
+Era por uma aprazivel manhã de primavera. A sala de jantar de D. João
+Quijano tinha uma janella, que olhava para o norte. Em quanto o banqueiro
+e sua mulher tomavam chocolate na sala, Angelo fôra para a varanda,
+e ali se conservava, com a vista immovel e fixa na direcção do seu
+paiz.
+
+<P>
+O pobre pequeno estava mais alto do <span class="pagenum"><a name="pag_62">[62]</a></span> que quando chegára
+das montanhas de Biscaya, porém tinha emagrecido consideravelmente.
+Cobria-lhe o rosto uma pallidez mortal, e nos seus bellos olhos, tão
+meigos e sympathicos, retratava-se-lhe a profundissima tristeza que
+lhe ia n'alma.
+
+<P>
+&mdash;O que fazes tu ahi, Angelo? perguntou carinhosamente D. Joanna.
+
+<P>
+O menino não respondeu.
+
+<P>
+&mdash;Oh! meu Deus! O que terá esta creança?! accrescentou a mulher do
+banqueiro, com verdadeira afflicção.
+
+<P>
+&mdash;Não sei o que elle tem, Joanna, mas ninguem me tira da cabeça que
+está doente desde que Lucas lhe bateu, apesar do medico dizer, passados
+quinze dias, que o considerava completamente restabelecido.
+
+<P>
+&mdash;Queira Deus que Lucas lhe não tornasse a pôr a mão.
+
+<P>
+&mdash;Não, filha; por isso fico eu. Mas vejo-o tão abatido e melancholico,
+que receio muito pela sua existencia.
+
+<P>
+&mdash;Ai! Nossa Senhora permitta que te enganes. Angelo se chama e foi
+elle na verdade um anjo que trouxe a paz e a harmonia á nossa casa;
+porque, desde que para <span class="pagenum"><a name="pag_63">[63]</a></span> aqui veiu esse menino, nós que
+sempre andavamos de rixa, estamos inteiramente mudados, e tenho fé
+em que elle ha de acabar por abrandar e adoçar por uma vez este meu
+maldito genio.
+
+<P>
+&mdash;Assim é, Joanninha, exclamou o banqueiro commovido; sempre esperei
+que quando tivesses um filho, se operaria em ti uma grande mudança.
+Não quiz Deus conceder-nos essa ventura, mas enviou-te em compensação
+essa criança, a quem queres hoje quasi tanto como se fôras sua mãe.
+
+<P>
+&mdash;Quem sabe se o que tem o pequeno é um desejo ardente de voltar
+para a sua aldeia... suspirava tanto por isso, a principio...
+
+<P>
+&mdash;Tambem me não parece que seja essa a causa do seu soffrimento.
+Desde que os paes lhe disseram n'uma carta, que era elle o unico amparo
+com que contavam para a velhice, e que, se voltasse para a terra,
+nada poderia fazer em beneficio d'elles, não cessa de dizer que está
+satisfeito em Madrid, e até quando alguma vez se encontra de bom humor,
+costuma repetir o proverbio «<em>de Madrid só para o céo</em>».
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_64">[64]</a></span>&mdash;Pois é preciso mandar chamar o medico, porque se não
+cuidarmos d'elle váe cada dia a peior. Angelo, accrescentou D. Joanna,
+chamando novamente pelo menino.
+
+<P>
+Este deixou como assustado a immobilidade em que estava, olhou novamente
+com ineffavel languidez para o norte, e entrou na sala.
+
+<P>
+&mdash;Que tens tu, meu filho? perguntou-lhe com ternura D. Joanna, correndo-lhe
+a mão pela cara.
+
+<P>
+&mdash;Não tenho nada, respondeu Angelo.
+
+<P>
+&mdash;O que fazias na varanda?
+
+<P>
+&mdash;Nada; estava a vêr o sol.
+
+<P>
+&mdash;Vamos, senta-te aqui, e toma chocolate comnosco.
+
+<P>
+&mdash;Não me appetece.
+
+<P>
+&mdash;Mas o que é isso? O que te falta? Não te quero eu como se fôra
+tua mãe?
+
+<P>
+O menino não respondeu; arrasaram-se-lhe os olhos de lagrimas, e os
+de D. Joanna tambem.
+
+<P>
+&mdash;Olha, accrescentou esta, não vás outra vez para a varanda que te
+faz mal o sol; vae antes um bocado até ao escriptorio, <span class="pagenum"><a name="pag_65">[65]</a></span>não para trabalhar, mas para vêr se te distrahes com os teus companheiros.
+
+<P>
+Angelo saíu da sala, e desceu a escada.
+
+<P>
+Ás tres horas, subiram para jantar D. Lucas, e os dois caixeiros Manoel
+e Marianno.
+
+<P>
+&mdash;Onde ficou Angelo? perguntou D. Joanna.
+
+<P>
+&mdash;Não veiu cá para cima.
+
+<P>
+&mdash;Virgem santissima! Onde estará então a pobre creança?!
+
+<P>
+&mdash;Talvez se fosse deitar.
+
+<P>
+&mdash;D. Joanna correu pressurosa ao quarto de Angelo, e foi encontral-o
+na cama.
+
+<P>
+&mdash;O que quer isso dizer, filho? O que tens?.. Estás doente?
+
+<P>
+&mdash;Sim, minha senhora, respondeu Angelo com voz sumida.
+
+<P>
+&mdash;Então o que te dóe?
+
+<P>
+&mdash;Não me dóe nada, mas sinto-me doente.
+
+<P>
+&mdash;Toribio! Toribio! vae, corre chamar o medico, que está o menino
+doente, gritou da escada D. Joanna.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_66">[66]</a></span>Pouco depois chegou o medico. Tomou o pulso a Angelo, e
+fez um gesto de mau agouro.
+
+<P>
+&mdash;É coisa grave? perguntaram a um tempo, e com anciedade, D. Joanna
+e o banqueiro.
+
+<P>
+&mdash;Gravissima, respondeu o medico... e observando-o novamente, accrescentou,
+em voz baixa, dirigindo-se ao dono da casa;&mdash;está quasi a morrer.
+
+<P>
+Angelo abriu por um momento os seus meigos olhos, cujo brilho estava
+já empanado pelo sopro da morte, volveu-os para a imagem do Senhor
+crucificado, como querendo expressar-lhe profunda gratidão, e fechou-os
+logo, para nunca mais os tornar a abrir.
+
+<P>
+Todos proromperam em amargo pranto, á excepção de D. Lucas.
+
+<P>
+&mdash;E de que morreu? perguntou este ao medico, que tinha antecipadamente
+interrogado a familia ácerca dos padecimentos de Angelo.
+
+<P>
+&mdash;Morreu, lhe tornou o medico, de uma affecção moral, para cujo desenvolvimento
+contribuiram por certo padecimentos <span class="pagenum"><a name="pag_67">[67]</a></span> physicos. Os meninos
+são homens no sentimento, e creanças no vigor; por isso Deus amaldiçôa
+os seus oppressores. Este menino morreu da mais santa de todas as
+enfermidades; morreu de <em>Nostalgia</em>.
+
+<P class="centrado">
+<big>FIM DA NOSTALGIA.</big>
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_68">[68]</A></span>
+<br>
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_69">[69]</A></span>
+<H1><a name="SECTION02000000000000000000"></a>
+<BR>
+O MADEIRO DA FORCA
+</H1>
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_70">[70]</A></span>
+<br>
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_71">[71]</A></span>
+<H2><a name="SECTION02010000000000000000"></a>
+<BR>
+I
+</H2>
+
+<P>
+A grande montanha de Colisa, que se ergue entre as Encartações<A NAME="tex2html2"
+ HREF="#foot1500"><sup>2</sup></A> de Biscaya, e a demarcação juridica de Castella, era na edade media
+uma especie de Thebaida, onde faziam vida penitente alguns anachoretas,
+aos quaes se attribue a edificação do santuario que a corôa.
+
+<P>
+Sendo eu creança, e caminhando com minha piedosa mãe por uma montanha
+das Encartações, paramos a descançar, ao descobrir o valle onde habitavamos.
+
+<P>
+Era por uma tarde aprazivel de verão. O sol escondia-se por detraz
+dos montes,<span class="pagenum"><a name="pag_72">[72]</a></span> que recortavam o horisonte, e nas quebradas
+das serras ouviam-se os chocalhos do gado, que descia ao valle; em
+baixo, na planicie, saíam as raparigas das herdades, e pondo á cabeça
+as suas bilhas, dirigiam-se, cantado, á fonte do <em>Castanhal</em>,
+para que seus paes e irmãos achassem em casa agua fresca, quando,
+ao soar o toque da oração, lançando ao hombro as enxadas, e resando
+as Ave-Marias, se encaminhassem para o logar.
+
+<P>
+Do cimo do outeiro coberto de fragrantes margaridas, brancas de neve,
+onde minha mãe e eu estavamos sentados, contemplando o nosso querido
+e formoso valle, em um de cujos extremos avistavamos, meia occulta
+por frondoso arvoredo, a nossa aldeia ainda mais querida e saudosa,
+descobria-se o santuario de Colisa.
+
+<P>
+Entramos a fallar d'aquella ermida, e minha mãe, que tinha uma fé
+santa e cega nas tradicções religiosas, que brotam e vivem á sombra
+dos santuarios das montanhas, sem que possam os seculos alterar-lhes
+o viço e a frescura, prendeu-me a attenção, e commoveu-me devéras
+a alma<span class="pagenum"><a name="pag_73">[73]</a></span> contando-me o que, a meu turno, vou contar-vos.
+
+<P>
+Vivia nas solidões de Colisa um santo ancião, chamado Cosme, que passava
+uma terça parte da sua existencia entregue á adoração e glorificação
+de Deus, e o restante guiando e soccorrendo os viajantes, que atravessavam
+aquellas montanhas; e isto pela razão de que, n'aquelle tempo, como
+as guerras de partidos ensanguentassem de contínuo os valles, fugiam
+d'elles os caminhantes, e transitavam pelos montes mais desertos,
+e afastados do commercio dos homens.
+
+<P>
+Sempre que Cosme soccorria algum viandante extraviado, ou extenuado
+de fome e cansaço, ao soar o toque de Trindades na egreja de Valmaseda,
+que se avistava lá em baixo, no pé da montanha, apparecia-lhe um anjo,
+que lhe sorria amorosamente, e que logo se remontava ao ceu, deixando-o
+immerso em mystica alegria.
+
+<P>
+Um dia, de manhã, estando os montes cobertos de mui densa névoa, saíu
+Cosme da miseravel choça, onde vivia vida penitente, e poz-se a divagar
+por aquelles bosques<span class="pagenum"><a name="pag_74">[74]</a></span> espessos e fragosos, a vêr se encontrava
+alguns caminhantes, que n'elles se houvessem extraviado, e, de repente,
+deu de cara com uns poucos de homens, que levavam outro manietado.
+
+<P>
+&mdash;Porque vae preso esse infeliz? lhes perguntou elle.
+
+<P>
+&mdash;Porque é um grande criminoso, a quem a justiça condemnou á morte,
+lhe responderam.
+
+<P>
+&mdash;<em>Quem as faz paga-as</em>, disse o anachoreta, dando tregoas á
+sua compaixão.
+
+<P>
+Os executores da justiça de Valmaseda detiveram-se mais acima, n'uma
+encrusilhada, pegaram n'um grande madeiro secco, que, havia muitos
+annos, estava estendido ao lado do caminho, fixaram as extremidades
+d'esse madeiro secco nos primeiros galhos de duas arvores parallelas,
+lançaram um laço ao pescoço do criminoso, e suspenderam-n'o d'aquella
+forca improvisada, voltando a Valmaseda apenas se certificaram de
+que elle tinha expirado.
+
+<div class="rodape">
+<p><a name="foot1500"></a><A
+ HREF="#tex2html2"><sup>2</sup></A>
+<em>Encartaciones</em>, as terras de Biscaya, que gosam de fóros e regalias
+especiaes.</p>
+</div>
+
+<span class="pagenum"><a name="pag_75">[75]</a></span>
+
+<H2><A NAME="SECTION02020000000000000000">
+II</A>
+</H2>
+
+<P>
+N'esse mesmo dia em que, por sentença do tribunal de Valmaseda, foi
+enforcado um grande criminoso, no caminho de Colisa, salvou Cosme
+da morte muitos viandantes, que, sem o seu auxilio, seriam devorados
+pelas féras, ou se teriam despenhado nos precipicios d'aquelles temerosos
+desvios, então mais temerosos do que nunca, por causa da espessura
+do nevoeiro.
+
+<P>
+Recolheu-se á sua morada, agradecendo a Deus o haver-lhe dado forças
+para soccorrer os seus irmãos, e, apenas chegou, feriu-lhe o ouvido
+o toque da oração, que soou, lento e solemne, na longinqua torre da
+egreja de Valmaseda.&mdash;O anjo porém não lhe appareceu n'aquella noite!
+
+<P>
+O santo ermitão encheu-se de terror, com a lembrança de que teria
+offendido a Deus, visto que o anjo se furtava aos seus olhos; mas
+por mais que pesou as palavras, <span class="pagenum"><a name="pag_76">[76]</a></span> que proferira, as suas
+obras e pensamentos de todo o dia, não lhe foi possivel atinar com
+o agastamento do Senhor.
+
+<P>
+Aquella noite passsou-a toda em continua oração; chorou, macerou o
+corpo, pediu a Deus perdão e misericordia para as suas faltas, e logo
+que raiou a aurora, como a montanha se conservasse coberta de d'espessa
+névoa, saíu em auxilio dos caminhantes.
+
+<P>
+De repente achou-se na encrusilhada, e ao vêr diante de si a forca,
+da qual pendia ainda o cadaver do criminoso, justiçado no dia antecedente,
+recuou cheio de repugnancia e movido d'espanto; e levantando a vista
+acima do cadaver, que estava preso da corda, viu o anjo poisado no
+madeiro da forca.
+
+<P>
+O anjo, longe de lhe sorrir então amorosamente, como de costume, olhava-o
+com semblante severo e carregado.
+
+<P>
+Cosme parou; e com quanto ignorasse qual fosse a sua culpa, lançou-se
+de joelhos, sobresaltado e cheio de terror, ergueu as mãos para o
+anjo, e implorou perdão e misericordia.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_77">[77]</a></span>&mdash;Cosme! disse-lhe então o anjo, incorreste no desagrado
+do Senhor e precisas fazer grande penitencia para recuperar a sua
+protecção. Hontem, em vez de confortar e consolar o desgraçado, que
+está pendente d'esta forca, escarneceste-o, e olhaste com indifferença
+para a sua tribulação. Desprende o seu cadaver da forca, sepulta-o
+em sagrado, e lançando em seguida esse madeiro aos hombros, leva-o
+pelo mundo, e seja elle o unico travesseiro, em que descances a cabeça.
+
+<P>
+&mdash;E poderei eu ainda um dia obter o perdão da minha culpa? exclamou
+Cosme lavado em pranto de arrependimento.
+
+<P>
+&mdash;Sim, lhe tornou o anjo. Quando d'esse madeiro brotar um ramo verde,
+é que o Senhor te perdoou.
+
+<P>
+Dito isto, subiu o anjo ao ceu, cercado de musicas mysteriosas e de
+brilhantes resplendores.
+
+<P>
+Cosme acercou-se animosamente do cadaver suspenso da forca, desprendeu-o
+e deu-lhe sepultura; pegando em seguida no madeiro, cujos extremos
+se apoiavam nos primeiros galhos de duas arvores fronteiras, <span class="pagenum"><a name="pag_78">[78]</a></span>foi com elle aos hombros pelo mundo, segundo as indicações, que o
+anjo lhe havia dado.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION02030000000000000000">
+III</A>
+</H2>
+
+<P>
+Andava Cosme pelo mundo com o madeiro da forca ao hombro, e toda a
+gente o escarnecia e fugia d'elle horrorisada.
+
+<P>
+Uma noite, tendo perdido a esperança d'encontrar asylo entre os homens,
+penetrou n'um bosque, esperando encontral-o no meio das féras,
+e vendo uma luzinha atravez da espessura, encaminhou-se para ella,
+e deu comsigo á porta d'uma cabana, onde uma velhinha dormitava, junto
+do lume.
+
+<P>
+&mdash;Santinha, disse elle á velha, com voz supplicante, deixe-me, pelo
+amor de Deus, passar aqui esta noite.
+
+<P>
+&mdash;Não póde ser, lhe tornou a velha, porque tenho dois filhos, que
+são bandidos, e que devem chegar dentro d'uma hora; <span class="pagenum"><a name="pag_79">[79]</a></span> se
+aqui o encontrassem, com certeza o matavam.
+
+<P>
+Cosme confiava piamente na promessa, que o anjo lhe tinha feito de
+que o senhor lhe perdoaria, e como visse que o madeiro da forca não
+tinha signaes, que indicassem que estava para rebentar, d'onde se
+deprehendia que vinha ainda longe o momento da sua morte, insistiu
+em pedir á velha que lhe désse pousada, no que ella, por ultimo, conveiu,
+esperando conseguir dos filhos que o não assassinassem.
+
+<P>
+Estava Cosme exhausto de forças e, retirando-se para um canto da choupana,
+poisou no chão o madeiro da forca, e deitou sobre elle a cabeça.
+
+<P>
+Condoida a velha de o vêr descançar em travesseiro tão duro, offereceu-lhe
+um feixe de cheirosa herva do monte, mas Cosme o recusou, dizendo:&mdash;offendi
+o Senhor, dizendo a um criminoso a quem levavam á forca: «<em>quem
+as faz, paga-as</em>», e para que o Senhor me perdôe, vou pelo mundo carregado
+com este madeiro, que deve ser o unico descanço da minha cabeça, até
+que d'elle brote um ramo verde, <span class="pagenum"><a name="pag_80">[80]</a></span> que será o signal de que
+o Senhor me perdoou.»
+
+<P>
+&mdash;Ai! exclamou a velha, rompendo n'um choro inconsolavel, se é tão
+difficil para quem se arrepende e unicamente peccou por palavras o
+alcançar o perdão do Senhor, quanto o não será para esses infelizes,
+que, como os meus filhos, peccam todos os dias por palavras e obras,
+e não têm no coração um vislumbre sequer do arrependimento.
+
+<P>
+O ancião adormeceu com a cabeça deitada no madeiro da forca.
+
+<P>
+Uma hora depois, chegaram os bandidos, e ao verem-n'o, arrancaram
+dos punhaes para o assassinar.
+
+<P>
+A mãe, porém, contou-lhes a historia d'aquelle ancião, e pediu-lhes
+de joelhos que, longe de o matarem, se arrependessem, como elle, das
+suas enormes culpas.
+
+<P>
+&mdash;Pois bem, perdôe-se-lhe a vida, responderam os bandidos, fazendo
+entrar os punhaes na bainha, e accrescentaram, soltando uma gargalhada
+d'escarneo:
+
+<P>
+&mdash;Quanto ao arrependimento, havemos <span class="pagenum"><a name="pag_81">[81]</a></span> de o ter quando brotar
+o tal ramo verde d'esse madeiro secco.
+
+<P>
+Principiaram os bandidos a cêar. Quando acabaram, dirigiram a vista
+para o canto da cabana onde dormia o velho, e viram, com assombro,
+que do madeiro secco tinha brotado um ramo verde e mimoso! Romperam
+então em amargo pranto, rogando a Deus que lhes perdoasse as suas
+culpas.
+
+<P>
+Ao som de taes vozes acordou Cosme, e ao vêr que do madeiro secco
+tinha brotado uma vergontea verde e louçã, expirou de alegria; e o
+anjo baixou, sorrindo amorosamente, a tomar conta da sua alma, e a
+leval-a comsigo para o ceu.
+
+<P class="centrado">
+<big>FIM DO MADEIRO DA FORCA.</big>
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_82">[82]</A></span>
+<br>
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_83">[83]</A></span>
+<H1><a name="SECTION03000000000000000000"></a>
+<BR>
+A NECESSIDADE
+</H1>
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_84">[84]</A></span>
+<br>
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_85">[85]</A></span>
+<H2><a name="SECTION03010000000000000000"></a>
+<BR>
+I
+</H2>
+
+<P>
+Ainda hoje existe, junto á confluencia de dois rios, um formoso castanheiro,
+a cuja sombra eu me sento, sempre que por alli passo, haja ou não
+haja calor, e isto pela razão muito natural de que, sendo eu creança,
+costumavamos sentar-nos, minha mãe e eu, á sombra d'aquella mesma
+arvore, quando iamos a uma aldeiasinha, que ficava perto da nossa.
+A pequena distancia do castanheiro vêem-se ainda as ruinas d'um moínho,
+taes quaes eram nos tempos saudosos da minha infancia; e a lembrança
+de minha mãe, do castanheiro e das ruinas, faz-me recordar d'um conto,
+que ella me contou, em uma tarde de verão, ao pé da <span class="pagenum"><a name="pag_86">[86]</a></span> arvore
+frondosa, a cuja sombra, graças a Deus! ainda posso sentar-me.
+
+<P>
+O ultimo moleiro, que habitou o moínho, era conhecido n'aquellas redondezas
+pelo appellido de Senéca; e vejam lá, não vão mudar para o primeiro
+o accento que puz sobre o segundo «<em>e</em>» d'este appellido, pois
+que o moleiro de quem estou fallando, e que minha mãe conheceu e tratou,
+era tão modesto, que ainda hoje no ceu se veria muito afflicto e contrariado,
+se o confundissem com o philosopho cordovez.
+
+<P>
+Não tinha Senéca pretenções a philosopho, mas era-o até sem querer,
+e a isto devia elle indubitavelmente o seu appellido, em cuja applicação
+não podemos deixar de reconhecer uma philosophia muito profunda; se
+não, reparem os leitores, e digam-me se não é bem admiravel a do povo,
+que, com a mudança d'um simples accento, marca o abysmo, que separa
+o philosopho da natureza do philosopho do estudo! Tinha eu que fazer,
+se quizesse referir os muitos rasgos d'engenho e sã philosophia com
+que Senéca <em>illustrou</em> a sua trabalhosa e modesta vida, e portanto
+limitar-me-hei a referir um <span class="pagenum"><a name="pag_87">[87]</a></span> dos que mais captivaram minha
+pobre mãe, de quem herdei o gosto que tenho pelas recordações da infancia.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION03020000000000000000">
+II</A>
+</H2>
+
+<P>
+Senéca não tinha outra familia senão um filho de dez annos, nem outras
+cavallarias senão um burro de vinte. Morreu-lhe a mulher, que era
+quem ficava no moínho, curando das moagens, emquanto elle andava com
+o burro, levando e trazendo folles por aldeias e casaes, e o pobre
+Senéca viu-se então em graves embaraços, porque os seus ganhos lhe
+não permittiam tomar uma creada, que substituisse sua mulher no moínho,
+nem um creado, que o substituisse a elle no transporte dos folles.
+
+<P>
+&mdash;E como te has de tu arranjar agora? lhe perguntavam os visinhos,
+quando o viram viuvo, e sem outro auxilio mais que o do pequeno.
+
+<P>
+&mdash;Não me dá isso cuidado, respondia Senéca, não faltará quem me ajude.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_88">[88]</a></span>&mdash;Isso é bom de dizer; mas quem te ha de ajudar?
+
+<P>
+&mdash;Quem?... A Necessidade.
+
+<P>
+Os visinhos punham-se a rir do bom humor de Senéca, porém sem comprehender
+o que elle queria dizer na sua.
+
+<P>
+Uma certa manhã apparelhou Senéca o <em>burrico</em>, poz-lhe em cima
+um sacco, que continha quatro alqueires de farinha, e chamando o pequeno,
+disse-lhe:
+
+<P>
+&mdash;Rapaz, toma o burro pela arreata, e leva-me esta carga á padaria
+de Somorrostro.
+
+<P>
+O pequeno <em>desatou</em> a chorar.
+
+<P>
+&mdash;Que é lá isso, homem? perguntou-lhe o pae.
+
+<P>
+&mdash;Que ha de ser de mim pelo caminho, se o burro cair, ou se espojar
+no chão! exclamou o rapazito, sem cessar de chorar.
+
+<P>
+&mdash;Não te dê isso cuidado, disse Senéca; se tal acontecer, não faltará
+quem te ajude a levantar o burro.
+
+<P>
+&mdash;E quem é que me ha de ajudar n'essas devezas tão solitarias, que
+não se encontra por ellas viva alma?!
+
+<P>
+&mdash;Quem? A Necessidade. Se o burro <span class="pagenum"><a name="pag_89">[89]</a></span> caír, ou se deitar
+no chão e se não podér erguer, chama pela Necessidade, e verás como
+logo acode em teu auxilio.
+
+<P>
+&mdash;Está bem, disse o pequeno, limpando as lagrimas com a manga da
+jaqueta; e pegando na corda do burro, tomou pela margem do rio, caminho
+de Somorrostro, que distava uma legua do moínho.
+
+<P>
+&mdash;Ora, ora, ora! Sempre este Senéca tem coisas!... diziam os visinhos,
+ao verem o rapazito com o burro atraz de si. Com que então a Necessidade,
+com cujo auxilio contava Senéca, para levar e trazer os folles, era
+essa pobre creança?!... E o pequeno, quem é que o ha de ajudar?
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION03030000000000000000">
+III</A>
+</H2>
+
+<P>
+Seguia o filho de Senéca com o seu burro á arreata ao longo dos carvalhaes,
+que assombram as margens do rio, que corre pelo valle profundo, que
+separa Somorrostro de Galdámes e Sopuerta, quando, ao chegar a um
+pequeno areal muito suave, fez o burro esta reflexão:
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_90">[90]</a></span>&mdash;Ai! que bella cama para eu descansar um pouco!... e
+então, se eu podesse soltar esta maldita carga, que me vae amolando
+as costellas!
+
+<P>
+E de repente, antes que o pequeno olhasse para traz, estirou-se ao
+comprido no meio do chão.
+
+<P>
+&mdash;Ai! minha mãe!... exclamou o rapazinho aterrado;&mdash;porque convém
+saber que em Hespanha, e com especialidade na Biscaya, não só aos
+pequenos como tambem aos grandes, o primeiro auxilio que lhes occorre
+invocar nas maiores afflicções, é sempre o de sua mãe, ainda mesmo
+que já a tenham no ceu.
+
+<P>
+E pegando n'uma vergasta começou a zurzir o burro sem dôr nem piedade;
+porém o animal, por mais esforços que fazia para se levantar, não
+o podia conseguir.
+
+<P>
+Estava já o pequeno quasi a chorar, quando se lembrou do conselho,
+que o pae lhe havia dado, e, em vez de dar largas ao pranto, começou
+a gritar:
+
+<P>
+&mdash;Necessidade! Necessidade! faz-me o favor de vir aqui ajudar-me
+a erguer este burro?!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_91">[91]</a></span>O pequeno bem olhava para todos os lados, a vêr se apparecia
+a Necessidade, mas não via ninguem. Já cansado de chamar e de esperar
+pela Necessidade, desatou o arrocho, que prendia o sacco ao apparelho
+do burro, e alliviou-o da carga; em seguida deu-lhe uma vergastada
+e o animal ergueu-se d'um salto. Então o pequeno tomou o burro pelo
+cabresto, levou-o para junto d'uma ribanceira, e rolando o sacco até
+lá, pôde, a muito custo, collocal-o em cima do animal; apertou-o bem
+com o arrocho, montou-se sobre a carga, atirou uma pancada ao burro,
+e proseguiu no seu caminho, mais alegre que umas paschoas.
+
+<P>
+Passada uma hora chegava o rapaz ao moínho, cantando e fazendo trotar
+o seu <em>ginete</em>.
+
+<P>
+&mdash;Olá, pequeno, disse-lhe o pae, apenas o avistou, como te foi pela
+tua viagem?
+
+<P>
+&mdash;Muito mal, meu pae.
+
+<P>
+&mdash;Então o que te aconteceu, homem?
+
+<P>
+&mdash;Deitou-se o burro no caminho, e, por mais pancadas que lhe dei,
+não foi capaz de se levantar.
+
+<P>
+&mdash;E então o que fizeste?
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_92">[92]</a></span>&mdash;Desprendi a carga, levei o burro para o pé d'uma ribanceira,
+fui rolando o sacco até lá...
+
+<P>
+&mdash;Bem, bem, já percebo. Quer isso dizer que chamaste pela Necessidade,
+não é assim?
+
+<P>
+&mdash;Chamei, chamei; fartei-me até de chamar; mas não appareceu...
+
+<P>
+&mdash;Rapaz, disse Senéca, vê como tu te enganas;&mdash;quem te levantou
+e carregou o burro não foi senão a Necessidade.
+
+<P>
+Tinha razão Senéca, e tambem eu a tenho para dizer aqui que a necessidade
+presta tanto auxilio e tamanhos beneficios ao homem, que não sei como
+ainda lhe não deram a cruz de beneficencia.
+
+<P class="centrado">
+<big>FIM DA NECESSIDADE.</big>
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_93">[93]</A></span>
+<H1><a name="SECTION04000000000000000000"></a>
+<BR>
+A PORTARIA DO CEU
+</H1>
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_94">[94]</A></span>
+<br>
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_95">[95]</A></span>
+<H2><a name="SECTION04010000000000000000"></a>
+<BR>
+I
+</H2>
+
+<P>
+O tio Paciencia era um pobre sapateiro remendão, o qual ganhava honradamente
+o pão de cada dia, mette que mette a sovella e puxa que puxa o fio,
+em um portal de Madrid, e devia o apellido por que era conhecido á
+resignação com que sempre tinha soffrido os muitos trabalhos, que
+o Senhor lhe havia dado.
+
+<P>
+Ao tempo da constituição de 1820, era já rapaz dos seus quinze ou
+dezeseis annos, mas tinha a innocencia de uma creança de oito, e como
+ouvisse a cada passo dizer que todos os homens eram eguaes, perguntou
+ao mestre se aquillo seria verdade.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_96">[96]</a></span>&mdash;Não acredites n'essas cousas, lhe respondeu o mestre.
+Só no ceu é que os homens são eguaes.
+
+<P>
+Sentiu o rapaz que não acontecesse outro tanto na terra, mas consolou-se
+com a idêa de que o eram no ceu, e quando algum freguez da loja convidava
+o mestre para beber uma pinga na taberna proxima, dizia com os seus
+botões o pobre aprendiz:
+
+<P>
+&mdash;Pena é que não sejamos todos eguaes na terra, como succede no ceu,
+porque se assim fosse, por certo que o freguez me não differençaria
+do mestre, e, como elle, iria eu tambem agora á taberna beber a minha
+pinga; mas, acabou-se... paciencia... no ceu seremos todos eguaes.
+
+<P>
+Passados dois annos, coube-lhe a sorte do recrutamento; então mais
+do que nunca teve elle motivo para lamentar que os homens não fossem
+eguaes na terra como no ceu, por isso que na sua companhia havia soldados
+distinctos, e cabos, sargentos e officiaes, que provavam ser verdade
+aquillo que o mestre lhe tinha dito ácerca da egualdade humana; porém
+consolava-se ainda o pobre rapaz, pensando que no ceu <span class="pagenum"><a name="pag_97">[97]</a></span>se acabariam as distincções, e todos seriam eguaes.
+
+<P>
+Deixou de servir o rei, e aproveitando-se do pouco que sabia do officio
+de sapateiro, estabeleceu-se n'um portal, e alí passou o resto dos
+seus dias, conformando-se com as privações que soffria, na esperança
+de ir para o ceu e gosar então d'essa igualdade, que não encontrára
+na terra.
+
+<P>
+No andar nobre da casa, cujo portal occupava, vivia um marquez, que
+por certo muito o houvera magoado com o espectaculo da sua opulencia,
+se não fôra um excellente homem, e a não ser tamanha a sua paciencia,
+e sobre tudo tão arreigada no seu coração a esperança de lhe poder
+dizer um dia no ceu: «meu amiguinho, aqui todos nós somos eguaes.»
+
+<P>
+Não era porém só o marquez que lhe fazia sentir, que não fossem todos
+os homens eguaes na terra; até os seus amigos mais intimos queriam
+differençar-se d'elle. Estes amigos eram o tio Mamerto e o tio Macario,
+homens de tão boa conducta, que não podia o tio Paciencia viver sem
+a sua honrada companhia.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_98">[98]</a></span>O tio Mamerto tinha uma paixão desenfreada pelos toiros,
+e passava por ser muito entendido em materia tauromachica.
+
+<P>
+Quando, no reinado de Fernando VII, se creou uma escóla para ensinar
+esta sciencia, esteve o bom do homem quasi a ser nomeado <em>lente
+cathedratico</em> da faculdade, e este precedente era o bastante para
+que elle se considerasse superior ao tio Paciencia, o qual, reconhecendo
+esta superioridade, se consolava pensando que, se o seu querido amigo
+e elle não eram eguaes na terra, o seriam por certo no ceu.
+
+<P>
+O tio Macario era muito feio, mas casou com uma mulher lindissima,
+porém levadinha da breca.
+
+<P>
+Ao cabo de vinte annos d'um viver amargurado, morreu-lhe o demonio
+da mulher, e o pobre homem ficou tão descançado que lhe parecia ter
+entrado no ceu; passados tempos, enamorou-se d'outra rapariga, que
+não ficava a dever nada á primeira, e casou segunda vez, apesar de
+todos os esforços que o seu amigo, o tio Paciencia, fez para lhe tirar
+isso da cabeça. Ora, como o tio Paciencia nunca tinha conseguido que
+<span class="pagenum"><a name="pag_99">[99]</a></span> as mulheres se agradassem d'elle, ao passo que do tio
+Macario se agradavam aos pares, julgava este ter certa superioridade
+sobre o primeiro, que, da sua parte, não deixava tambem de a reconhecer,
+e que devéras se teria affligido com isso, se não fôra a lembrança
+de que o seu bom amigo e elle seriam eguaes no ceu, já que na terra
+o não podiam ser.
+
+<P>
+O tio Mamerto era capaz de ir até ao fim do mundo para assistir a
+uma corrida de toiros; tanto assim, que até costumava dizer: «Parece-me
+que trocava de bom grado a gloria eterna por uma boa tourada», ao
+que o tio Paciencia replicava sempre, agastado: «Homem, não digas
+heresias, que não vá Deus castigar-te.»
+
+<P>
+Um dia em que os passaros caíam das arvores, assados pelo sol, havia
+em Getafe uma corrida de garraios; o tio Mamerto, foi vêl-os, <em>á
+pata</em>, segundo o seu costume, e, de volta a casa, acamou com uma febre,
+que o levou d'esta para melhor vida.
+
+<P>
+No mesmo dia estava muito mal, na cama, o tio Macario, por causa d'uma
+tremenda coça que a mulher lhe tinha dado, <span class="pagenum"><a name="pag_100">[100]</a></span> porquanto
+se a primeira mulher lh'as dava grandes, a segunda não lhe ficava
+atraz. A mulher, que nunca perdia a occasião de lhe communicar uma
+boa noticia, deu-se pressa em lhe participar, que o tio Mamerto tinha
+<em>esticado a canella</em>, e ouvindo isto, o pobre Macario, que já
+não estava para muitos sustos, <em>esticou</em> tambem a sua.
+
+<P>
+Como eu já disse, não podia o tio Paciencia viver sem os seus dois
+amigos, porque lhes queria muito. Estranhando que, em todo o dia,
+elles lhe não tivessem apparecido para palestrar um pouco e fumar
+um cigarro na sua companhia, quando á noitinha deixou o trabalho,
+foi procural-os, e soube então que ambos tinham morrido. Essa noticia
+causou-lhe um abalo enorme, e, n'aquella mesma noite, tomou atraz
+d'elles o caminho do outro mundo, com a grande consolação de que ia
+finalmente para onde todos os homens eram eguaes.
+
+<P>
+Toda a visinhança sentiu muito a morte do tio Paciencia, pois todos
+depositavam tamanha confiança na sua honradez e no seu caracter docil
+e serviçal, que, quando careciam de trocar algumas notas do banco
+<span class="pagenum"><a name="pag_101">[101]</a></span> d'Hespanha, encarregavam d'isso o tio Paciencia, que
+era capaz de morrer arrebentado, para dar conta da incumbencia.
+
+<P>
+Na manhã seguinte á morte dos tres amigos, o bruto do creado particular
+do marquez, quando entrou no quarto, teve a imprudencia de dizer a
+seu amo que o sapateiro do portal morrêra, ao saber que dois amigos
+seus tinham faltado quasi de repente. E como o marquez era um fidalgo
+muito apprehensivo, e corriam uns certos rumores de cholera em Madrid,
+assustou-se tanto com a saída de sendeiro do bruto do creado, que,
+poucas horas depois, era cadaver, com grande desgosto da pobreza do
+bairro. E por todas as partes se se ouvia dizer: «Estes homens, assim,
+nunca deviam morrer.»
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION04020000000000000000">
+II</A>
+</H2>
+
+<P>
+O tio Paciencia emprehendeu a jornada do ceu, muito contente com a
+esperança de gosar da gloria eterna, de viver em um mundo onde todos
+os homens eram eguaes, <span class="pagenum"><a name="pag_102">[102]</a></span> e finalmente de encontrar ali
+os seus queridos amigos Mamerto e Macario. Com relação porém a este
+ultimo pensamento não deixava elle de ter suas duvidas, porque dizia
+lá para os seus botões:
+
+<P>
+&mdash;E se lhe não querem abrir as portas do ceu?! Elles foram sempre
+homens de bem ás direitas; mas o demonio da paixão de Mamerto pelos
+toiros, e a tolice do Macario de casar segunda vez, tendo-se saído
+tão mal da primeira, fazem-me receiar que lhes dêem com a porta na
+cara.
+
+<P>
+Para saír um tanto de duvida, perguntou a um viandante se tinha visto
+passar por alí dois sugeitos, com estes e aquelles signaes; e como
+elle lhe respondesse affirmativamente, proseguiu o tio Paciencia no
+seu caminho, mais alegre que umas paschoas.
+
+<P>
+O caminho do ceu era escabroso e áspero, e essa era por certo a razão
+porque n'elle se não encontrava senão gente pobre e habituada á fadiga.
+
+<P>
+Impressionado o tio Paciencia por não ver nenhum <em>figurão</em>, entre
+tantos caminhantes, dizia, de si para si:
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_103">[103]</a></span>&mdash;Não admira que os homens ricos não façam esta viagem,
+porque teriam de fazel-a no cavallinho de S. Francisco. Se podessem
+emprehendel-a de carruagem, os diabos me levem, se não viamos por
+aqui mais trens do que no Prado e na Fonte Castelhana.
+
+<P>
+O tio Paciencia interrompeu as suas reflexões ao vêr approximar-se,
+vindo do lado do ceu, um homem, que chorava como um bezerro, e dava
+mostras da maior desesperação. Era nada mais nem nada menos do que
+o tio Mamerto.
+
+<P>
+O tio Paciencia sentiu uma pancada no coração, annunciando-lhe
+alguma desgraça, quando reconheceu o seu amigo.
+
+<P>
+&mdash;O que tens tu, homem? perguntou elle ao tio Mamerto.
+
+<P>
+&mdash;Que demonio hei-de eu ter! Se eu não fosse um bruto, como não ha
+segundo, não me fechavam para sempre as portas do ceu!
+
+<P>
+&mdash;Mas então como foi isso? explica-te com a bréca, que me tens o
+coração em talas. Aposto que não foi senão por causa da maldita paixão
+pelos toiros.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_104">[104]</a></span>&mdash;Parece-me que concorreu.
+
+<P>
+&mdash;Vamos, por quem és, conta-me o que se passou.
+
+<P>
+&mdash;Cheguei á portaria do ceu, e encontrei alí uma porção de gente,
+que estava á espera de vez para entregar os passaportes para o outro
+mundo. O porteiro, que visava os papeis, com a sua grande calva <em>á
+mostra</em>, e o seu mólho de chaves na mão, levava a coisa com toda a
+pachorra, e moía-os com perguntas, primeiro que permittisse a entrada.
+Eu, que, como é bem natural, estava morto por me vêr lá dentro, disse
+com os meus botões:&mdash;Este velho, com os seus vagares, é capaz de
+me conservar aqui de fóra até á noite. Pois deixa estar, que se te
+pilho distraído, atiro commigo lá para dentro, ainda que depois me
+cortes uma orelha, como fizeste ao pobre Malco. Estava eu a pensar
+n'este expediente, quando vejo o porteiro armar uma questão com um
+pobre diabo, a quem não deixava entrar, com o pretexto de ter sido
+apaixonado de toiros. Ahi temos nós os toiros! disse eu, ao vêr aquillo.
+O velhote é capaz de me fazer esperar uma eternidade, <span class="pagenum"><a name="pag_105">[105]</a></span>e por fim, se chega a saber que tambem fui affeiçoado ás toiradas,
+nega-me a entrada, como aconteceu com o outro. E que faço eu? Assim
+que o porteiro deu uma volta: zás! <em>raspo-me</em> lá para dentro.
+Já dava graças a Deus pela minha resolução, e vae senão quando o porteiro,
+dá-lhe na cabeça contar quantos estavam na portaria, e conhece que
+lhe falta um.
+
+<P>
+«&mdash;Falta-me aqui um! grita enraivecido, e aposto uma orelha que não
+é senão o madrileno. Ou elle não fosse de Madrid, o maroto, que se
+escoou lá para dentro como um gato: deixa estar que já vamos ajustar
+contas!
+
+<P>
+«&mdash;Ó meu senhor, disse da banda um adulador, que tinha assim geitos
+de cortezão, quer que eu lh'o saque de lá para fóra por uma orelha?
+
+<P>
+«&mdash;Deixemos-nos d'orelhas, respondeu o velhote; e chamando uns musicos,
+a quem fallava com muito agrado, porque parece que lhe tinham sido
+recommendados por Santa Cecilia: Toquem lá a musica da saída do toiro!
+
+<P>
+«Os musicos começam de tocar, e eu <span class="pagenum"><a name="pag_106">[106]</a></span> (sempre sou muito
+bruto!) ao ouvir aquelle toque, julgo que ha corrida de toiros na
+portaria, e sáio muito lépido a vêl-a; de repente, o porteiro fecha
+a porta e deixa-me ficar de fóra, com uma cara de palmo e meio, dizendo-me:
+
+<P>
+«&mdash;Vá já para o inferno, seu meliante, que uma paixão por toiros
+como essa, não póde Deus perdoal-a.
+
+<P>
+«E aqui tens tu, querido Paciencia, como eu vou caminho do inferno
+por causa da minha maldita mania pelas toiradas!»
+
+<P>
+O tio Paciencia prorompeu em amargo pranto ao vêr a infelicidade do
+seu velho amigo, e esteve quasi a prégar-lhe um sermão, mas não o
+fez por se lembrar de que era prégar no deserto; ambos continuaram,
+por ultimo, o seu caminho; o tio Paciencia o do ceu, que era costa
+acima, e o tio Mamerto o do inferno, que era costa abaixo.
+
+<P>
+&mdash;Querem vêr que tambem me acontece alguma na portaria? O tal senhor
+porteiro tem um geniosinho endemoninhado!
+
+<P>
+Isto dizia o tio Paciencia, seguindo sempre o seu caminho, quando
+avistou outro homem, que vinha do lado do ceu. Este <span class="pagenum"><a name="pag_107">[107]</a></span> não
+se carpia, nem se arrepellava; trazia porém a cabeça baixa, e denotava
+profunda tristeza.
+
+<P>
+&mdash;Esperem! disse o tio Paciencia. Os diabos me levem se aquelle não
+é o tio Macario! Pois que? Não é senão elle!
+
+<P>
+Com effeito, o tio Macario era o da cabeça baixa.
+
+<P>
+Os dois amigos abraçaram-se commovidos.
+
+<P>
+&mdash;Tu por aqui, Paciencia! disse o tio Macario. Para onde vaes, homem?
+
+<P>
+&mdash;Ora, para onde hei de eu ir? Vou para o ceu.
+
+<P>
+&mdash;Duvido muito que lá entres.
+
+<P>
+&mdash;Então porque?
+
+<P>
+&mdash;Porque é difficilimo entrar lá.
+
+<P>
+&mdash;E em que consiste a difficuldade?
+
+<P>
+&mdash;Consiste em ser o porteiro o velho mais caturra, que eu tenho visto.
+E para prova, basta o que se deu commigo.
+
+<P>
+&mdash;Conta depressa.
+
+<P>
+&mdash;Uma frioleira! Chegamos, eu e outro, á porta; chamamos, e apparece-nos
+o porteiro, com a sua grande calva e o competente mólho de chaves
+na mão.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_108">[108]</a></span>
+<P>
+«&mdash;Que é o que querem? pergunta elle.
+
+<P>
+«&mdash;Essa não está má! o que havemos nós de querer senão entrar?
+
+<P>
+«&mdash;Você é casado ou solteiro? pergunta o velho ao meu camarada.
+
+<P>
+«&mdash;Casado, responde o tal sugeito.
+
+<P>
+«&mdash;N'esse caso póde entrar, que basta essa penitencia para um homem
+ganhar o ceu; e isto por maiores que sejam os peccados, que haja commettido.
+
+<P>
+«E o meu companheiro entrou lá para dentro.
+
+<P>
+«&mdash;Caspite! disse eu com os meus botões; se aquelle ganhou o ceu
+por se ter casado uma vez, com mais razão o devo eu ter ganho por
+me haver casado duas. E larguei atraz do meu companheiro.
+
+<P>
+«&mdash;Onde vae o senhor? perguntou o porteiro, detendo-me por uma orelha.
+
+<P>
+«&mdash;Homem, o senhor deve estar farto de o saber! Vou para o ceu.
+
+<P>
+«&mdash;É casado ou solteiro?
+
+<P>
+«&mdash;Casado duas vezes á falta d'uma.
+
+<P>
+«&mdash;Duas vezes?!
+
+<P>
+«&mdash;Sim, senhor, duas vezes.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_109">[109]</a></span>«&mdash;Pois vá para as profundas do inferno, que tolos d'esse
+lóte não têm entrada no ceu.
+
+<P>
+«E aqui vou eu, amigo Paciencia, caminho do inferno! São coisas que
+só a mim acontecem!...»
+
+<P>
+&mdash;É bem feito, disse o tio Paciencia, entre compadecido e indignado
+da parvoice do seu amigo. Não te dizia eu que não podia obter perdão
+de Deus quem duas vezes se casasse?
+
+<P>
+O tio Paciencia já não ia muito satisfeito e tranquillo, ao aproximar-se
+das portas do ceu, porque as noticias que recebera do geniosinho do
+tal porteiro, eram, na verdade, para intimidar o mais pintado.
+
+<P>
+&mdash;Vamos, tio Paciencia, dizia elle, é preciso que não desmintas,
+n'esta occasião, o appellido que te puzeram, porque, se consegues
+catechisar o porteiro, cólas-te lá dentro, e depois é que já ninguem
+te dá volta. O velhote é exquisito de genio, caturra e curioso como
+todos os porteiros... Mas tambem, deve a gente lembrar-se de que o
+pobre do homem é tão velho, que já não póde com os calções, e devemos
+ser indulgentes <span class="pagenum"><a name="pag_110">[110]</a></span> para com os velhos como para com as creanças,
+porque os extremos tocam-se. Demais, a paciencia é uma virtude, que
+o proprio Jesus recommendava ao apostolo S. Pedro, como se vê da seguinte
+cantiga:
+
+<P>
+<BLOCKQUOTE>
+Era S. Pedro na calva
+<BR>
+perseguido do mosquito,
+<BR>
+e o Mestre lhe dizia:
+<BR>&mdash;Tem paciencia, <em>Periquito</em>!
+
+</BLOCKQUOTE>
+Ao terminar estas reflexões, avistou o tio Paciencia as portas do
+ceu, e estremeceu d'alegria, lembrando-se de que estava já a meio
+kilometro de distancia do mundo onde todos os homens eram eguaes.
+
+<P>
+Chegou finalmente á portaria, e viu que não havia lá viva alma, o
+que devéras lhe agradou, porque assim não se expunha a morrer arrebentado,
+como quando ia trocar notas ao banco d'Hespanha.
+
+<P>
+Deu uma aldrabada pequena na porta, e um velho, que não tinha um pello
+na cabeça, abriu o postigo e perguntou-lhe:
+
+<P>
+&mdash;O que quer você d'aqui?
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_111">[111]</a></span>&mdash;Ora, o Senhor lhe dê muito boas noites, lhe tornou
+o tio Paciencia, com a maior humildade, tirando o chapeu. Como passou?
+Passou bem?
+
+<P>
+&mdash;Muito bem, muito obrigado. Mas o que queria o senhor?
+
+<P>
+&mdash;E a senhora e os meninos estão de saúde?
+
+<P>
+&mdash;Homem, despache d'aí, diga o que quer.
+
+<P>
+&mdash;O senhor não tem senão desculpar... mas... nada... eu... vinha
+vêr se o senhor me deixaria entrar.
+
+<P>
+&mdash;Sente-se ahi, n'esse banco, e espere que venha mais gente, que
+não se póde andar sempre a abrir e a fechar esse maldito portão, que
+é mais pesado que um marido jogador.
+
+<P>
+&mdash;Está bem, senhor, essa é boa; faça favor de perdoar.
+
+<P>
+&mdash;Não ha de quê.
+
+<P>
+O velhote fechou o postigo, e o tio Paciencia, a quem as ultimas palavras,
+que ouvíra, deram alma nova, sentou-se n'um banco, e começou o seguinte
+soliloquio, para passar o tempo:
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_112">[112]</a></span>&mdash;O tal senhor porteiro é realmente um grande caturra.
+Quem diabo podia suppôr que o homem se esquentaria por eu o cumprimentar
+como Deus manda! Mas apesar de ter o genio um tanto assomado, bem
+se conhece que é um santo. Pois, senhor, esperemos aqui, no banco
+da paciencia.
+
+<P>
+Estava o tio Paciencia entretido a apertar um cigarro, quando, ouvindo
+uma tremenda aldabrada na porta, que por pouco a fazia em hastilhas,
+ergueu a cabeça, e viu então que a pessoa, que com tanta arrogancia
+chamava, era nem mais, nem menos, que o seu visinho marquez.
+
+<P>
+&mdash;É melhor bater com a cabeça! gritou de dentro o porteiro, ao ouvir
+aquelle barulho. Quem é o bruto que chama assim?
+
+<P>
+&mdash;O excellentissimo senhor marquez de Pelusilla, grande d'Hespanha
+de primeira classe, cavalleiro de todas as ordens creadas e por crear,
+senador do reino, etc., etc.
+
+<P>
+Mal isto ouviu, o porteiro abriu de par em par a porta, quebrando
+pelo espinhaço com muitas reverencias, e exclamando:
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_113">[113]</a></span>&mdash;Perdoe v. exc.ª se o fiz esperar algum
+tempo, mas... é que eu não suppunha, que tivessemos por cá tamanha
+honra. Queira v. exc.ª entrar, que, pela <em>balburdia</em>
+que lá vae por dentro, é de crêr que já tenha corrido a noticia de
+que temos por estes bairros o cavalheiro mais illustre e mais rico
+de toda a Hespanha.
+
+<P>
+Com effeito o ceu estava alvoroçado com a chegada do marquez, para
+o qual começava a improvisar-se uma recepção esplendida. Repicavam
+os sinos, e os foguetes cortavam o ar em todas as direcções; já não
+havia uma varanda, nem uma janella d'onde não pendesse um cobertor
+de damasco, ou quando menos uma colcha de chita, modesta, mas vistosa.
+As imprensas vomitavam versos (ih! que nojo!) em louvor do marquez;
+os garôtos <em>esganiçavam-se</em> todos a dar vivas a sua excellencia;
+as virgens largavam a costura, e vestindo-se de branco, e pondo na
+cabeça a sua grinalda de flores, lançavam mão da lyra, e tocavam e
+cantavam como desesperadas; desde as charangas das ruas até a orchestra
+do theatro real, todas as musicas faziam ouvir as <span class="pagenum"><a name="pag_114">[114]</a></span> suas
+harmonias; em summa, era tudo festa, jubilo e regosijo. Até o proprio
+porteiro, quando voltou a fechar a porta, deu um pulo de contente,
+exclamando:
+
+<P>
+&mdash;Bravissimo! Hoje é dia de atirar uma cana ao ar!
+
+<P>
+&mdash;Sim, como não atires a cabeça!... rosnou por entre os dentes o
+tio Paciencia, indignado com o que estava presenciando.
+
+<P>
+Repetiam-se lá por dentro as manifestações d'alegria, e o estrondo
+dos festejos, e o tio Paciencia, que assistia áquelle enthusiasmo,
+continuava n'estes termos o seu soliloquio:
+
+<P>
+&mdash;E esta!... Ainda me custa a acreditar o que por aqui vae com a
+chegada do marquez! Com que, passo toda a minha vida a soffrer com
+santa paciencia os trabalhos e humilhações da terra, imaginando que
+no ceu todos os homens são eguaes, e que, por conseguinte, me verei
+aqui livre de todos os meus pesares e apoquentações, e no fim de contas,
+chego ás portas do ceu e recebo logo a prova mais irritante de desegualdade,
+que póde imaginar-se! Com que então, aqui, como na terra, a mim, porque
+<span class="pagenum"><a name="pag_115">[115]</a></span> sou um pobre sapateiro, fazem-me estar, como um espantalho,
+á espera na portaria, e ao marquez, só porque é marquez e rico, e
+por vir carregado de cruzes e <em>calvarios</em>, abrem-se-lhe, de par
+em par, as portas, e recebem-n'o com repiques de sinos, com foguetes,
+musicas, versos, e colchas de seda nas janellas!... Isto realmente
+é para fazer ferver o sangue nas veias a um santo!... Porém, paciencia,
+snr. Paciencia!... Se consigo a final entrar lá para dentro, o que
+já me vae parecendo bem difficil, posso reputar-me feliz, porque alli
+deve passar-se divinamente, a julgar pelo pouco que vi, quando o velho
+deu passagem ao marquez, e pela baforada, que sae, quando abrem ou
+fecham a porta ou o postigo.
+
+<P>
+O barulho que este fez ao abrir-se, tirou o tio Paciencia das suas
+meditações; fez-se vêr a calva do porteiro, o qual vinha examinar
+se já havia gente reunida, á espera, na portaria.
+
+<P>
+&mdash;O que faz você ahi? perguntou o porteiro, reparando no tio Paciencia.
+
+<P>
+&mdash;Senhor, respondeu humildemente o tio Paciencia, estava esperando...
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_116">[116]</a></span>&mdash;Se as lebres esperassem tanto!...
+
+<P>
+&mdash;Como o senhor não apparecia...
+
+<P>
+&mdash;Tem razão, tem... são tantas as coisas em que tenho que pensar,
+que de todo se me varreu da idêa... Eu vou já abrir, amigo. Ora!...
+mas porque não chamou por mim, homem de Deus?!...
+
+<P>
+&mdash;O senhor bem vê que... como sou um pobre sapateiro...
+
+<P>
+&mdash;Qual sapateiro, nem qual cabaça! aqui no ceu todos os homens são
+eguaes.
+
+<P>
+&mdash;Devéras?! exclamou o tio Paciencia, dando um salto d'alegria.
+
+<P>
+&mdash;Pois, então!... Não faltava mais nada senão andarmos aqui com cathegorias!
+Isso é bom lá para a terra! Vamos, entre cá para dentro.
+
+<P>
+O porteiro nem por isso abriu toda a porta, como quando entrou o marquez,
+mas o sufficiente para que podesse passar <em>um homem</em>. O tio Paciencia
+acercou-se da cancella, lançou um relancear d'olhos lá para dentro,
+e deteve-se ali, dolorosamente surprehendido. As virgens não largavam
+a costura, nem os rapazes saíam da escóla; não havia uma triste sineta
+que tocasse; os <span class="pagenum"><a name="pag_117">[117]</a></span> foguetes não rasgavam as nuvens; as musicas
+não deixavam ouvir as suas harmonias; nem sequer uma pobre colcha
+de chita adornava as janellas, nem tãopouco as imprensas vomitavam
+versos!...
+
+<P>
+O porteiro, que não tinha nada de tolo, adivinhou o doloroso espanto
+do tio Paciencia, e acudiu a desvanecel-o, dizendo-lhe:
+
+<P>
+&mdash;Que quer isso dizer, homem? Então fica para ahi pasmado, em vez
+de entrar cá para dentro?.
+
+<P>
+&mdash;Não me disse o senhor, ainda ha pouco, que no ceu todos os homens
+eram eguaes?
+
+<P>
+&mdash;Disse, sim senhor, e d'ahi?...
+
+<P>
+&mdash;Então... como é que ao marquez...
+
+<P>
+&mdash;Homem, você se não é tolo, parece-o! Pois não leu na sagrada escriptura,
+que é mais facil entrar um camello pelo buraco d'uma agulha do que
+um rico no ceu?...
+
+<P>
+&mdash;Não, senhor, não sabia isso.
+
+<P>
+&mdash;Pois póde acreditar que é a pura verdade. Sapateiros, ferreiros,
+lavradores, mendigos, gente, em summa, farta de trabalhar e de padecer,
+chega aqui a todo o <span class="pagenum"><a name="pag_118">[118]</a></span> instante, e não temos que estranhar
+a sua chegada. Já outro tanto não acontece com os ricos e os fidalgos;
+passam-se seculos sem vermos o <em>focinho</em> a um figurão, como esse
+que veiu hoje, de modo que, quando algum nos apparece por cá, anda
+tudo n'uma poeira! Ora, venha, ande lá para dentro, que já é tempo
+de descançar.
+
+<P>
+O tio Paciencia transpoz o limiar da porta, e não podendo com a alegria,
+que o dominava, caíu de joelhos, e exclamou, erguendo as mãos para
+o Senhor, que saía ao seu encontro:
+
+<P>
+&mdash;Senhor! Bemdito sejaes vós, que daes a bemaventurança eterna aos
+que padecem na terra!
+
+<P class="centrado">
+<big>FIM DA PORTARIA DO CEU.</big>
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_119">[119]</A></span>
+<H1><a name="SECTION05000000000000000000"></a>
+<BR>
+O PRESTE JOÃO DAS INDIAS
+</H1>
+
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_120">[120]</A></span>
+<br>
+<span class="pagenum"><A NAME="pag_121">[121]</A></span>
+<H2><a name="SECTION05010000000000000000"></a>
+<BR>
+I
+</H2>
+
+<P>
+Não basta que os contos populares deleitem: é mister que, ao mesmo
+tempo que deleitam, ensinem.
+
+<P>
+Este que vou contar não sei se satisfará á primeira condição; a segunda
+porém, ha de por certo preenchel-a, por isso que o leitor, que o levar
+a cabo, ficará sabendo quem era o Preste João das Indias, do qual
+todos fallam, e pouquissimos são os que o conhecem, a não ser de nome.
+
+<P>
+Pois, senhores, havia nas Indias um rei mui poderoso, cujo unico successor
+directo era uma filha de tres ou quatro annos. Como <span class="pagenum"><a name="pag_122">[122]</a></span> o
+monarcha se sentisse muito mal, chamou todos os grandes do reino,
+e fallou-lhes do seguinte modo:
+
+<P>
+&mdash;Ando tão adoentado, ha tempos a esta parte, que milagre será não
+esticar a canella antes de oito dias, e confesso que essa partida
+tão repentina para o outro mundo, me penalisa em extremo, por quanto
+desejava deixar casada a minha augusta filha; e no emtanto S. A. não
+passa por ora d'um <em>comecilho</em>. Asseguro-vos que pouco me importa
+morrer, porque para morrer todos nós nascemos, e demais, tanto faz
+morrer hoje como amanhã; porém o que eu não queria era que a pequena
+se casasse para ahi qualquer dia, em virtude de altas razões d'estado,
+com um principe, que não fosse muito do seu agrado.
+
+<P>
+&mdash;Senhor, lhe tornou um dos homens politicos mais importantes do
+reino, faz V. M. muito mal em estar a affligir-se com essas coisas.
+Quando a princeza chegar á edade de tomar estado, ha de casar-se com
+o principe, que fôr mais do seu gosto; e se houver no reino quem se
+atreva a querer oppôr-se á liberrima escolha de <span class="pagenum"><a name="pag_123">[123]</a></span> S. A.,
+esteja V. M. certo de que tem que se haver comnosco.
+
+<P>
+&mdash;Ora, ora! Então cuidas tu que eu engulo essas <em>patranhas</em>?
+replicou o rei, traduzindo a sua incredulidade n'uma estrepitosa gargalhada.
+Nem que eu não soubesse o que são os partidos politicos! Aquelle que
+então estiver no poder apresentará a minha filha o seu candidato,
+e a pobre pequena terá de se aguentar, não com o marido que mais fôr
+do seu gosto, mas sim com aquelle que mais convier aos seus ministros,
+os quaes, só por satisfazerem mesquinhos interesses de partido, serão
+capazes de a obrigar a casar ainda que seja com o moiro Musa.
+
+<P>
+&mdash;Mas, senhor, V. M. deve lembrar-se de que este paiz é um paiz essencialmente
+monarchico...
+
+<P>
+&mdash;Isso é bom de dizer! Não estamos nós vendo, todos os dias, homens
+politicos, que nos concedem, a nós os reis, até o direito divino,
+e que, se um bello dia lhe não agradamos, nos chegam, inclusivamente,
+a negar o direito de pessoas decentes!
+
+<P>
+&mdash;De accôrdo, mas é que esses são uns <span class="pagenum"><a name="pag_124">[124]</a></span> vilões que nunca
+deveram ter parte na luta dos partidos.
+
+<P>
+&mdash;Mas o grande caso é que a têm no goso dos direitos constitucionaes.
+
+<P>
+&mdash;Em summa, ordene V. M. o que lhe aprouver, e eu lhe assevero, que
+póde marchar tranquillo para o outro mundo, e sem o menor receio de
+que deixemos de cumprir rigorosamente as suas ordens.
+
+<P>
+&mdash;Pois bem, n'esse caso escutae-me: quando minha augusta filha estiver
+em edade do tomar estado (e isso é coisa, que facilmente se conhece),
+deveis dar-lh'o a saber, tendo em vista todo aquelle recato com que
+se deve fallar d'essas coisas a uma donzella; em seguida fareis apregoar
+por todas as nações do mundo, que a vossa rainha e senhora resolveu
+casar-se, e dará a sua mão ao principe, que mais fôr do seu agrado.
+
+<P>
+&mdash;Até ahi estamos bem; mas V. M. sabe que o mundo se divide principalmente
+em tres religiões, a saber: a religião christã, a mahometana e a judaica.
+Devo portanto suppôr que V. M. terá já formado o seu juizo, ácerca
+da religião a que deve de pertencer o seu augusto genro.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_125">[125]</a></span>&mdash;Homem, francamente, ainda nem tal coisa me passou pela
+cabeça.
+
+<P>
+&mdash;Ah! pois isso é coisa muito séria!
+
+<P>
+&mdash;Vae-te d'ahi com esses teus escrupulos de freira! Vós todos sabeis
+que no meu reino não ha religião alguma. A fallar a verdade, já por
+vezes tenho pensado sobre se conviria ou não que a houvesse, porque
+ha muito quem diga, que não póde haver sociedade sem o freio da religião;
+porém, no fim de contas, tenho acabado sempre por dizer cá para os
+meus botões: «deixar correr; quem me manda a mim metter a redemptor?
+Que religião póde haver n'um paiz tão desmoralisado como este, onde
+todos os dias se manda gente á forca?! Vá uma pessoa introduzir aqui,
+por exemplo, a religião christã, segundo a qual todos os homens são
+eguaes: haviam de marchar bem as coisas, desde o momento em que os
+escravos, que tiram os coches, soubessem que valem tanto como os senhores,
+que vão dentro d'elles, mui <em>repimpados</em>!»
+
+<P>
+&mdash;Visto isso, entende V. M. que a melhor religião... é não ter religião
+nenhuma, não é verdade?
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_126">[126]</a></span>&mdash;Não digo isso, homem; nem tanto ao mar, nem tanto á
+terra. O que eu te digo é que não tenho querido quebrar demasiado
+a cabeça, pensando em coisas tão delicadas. Que escolha, minha augusta
+filha, marido do seu gosto, e ainda mesmo que seja pêrro judeu...
+
+<P>
+Assim terminou a conferencia do rei com os próceres da republica,
+e avisado andou S. M. em não a deixar para o dia seguinte, porque
+n'aquella mesma noite teve um ataque tão forte, que esticou a canella,
+sem ter tempo sequer para dizer «Jesus».
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION05020000000000000000">
+II</A>
+</H2>
+
+<P>
+Como era natural, apenas o rei morreu, levantou-se a questão da escolha
+d'uma regencia, que devia tomar as rédeas do governo, durante a menoridade
+de sua excelsa filha, e então é que foram ellas!
+
+<P>
+Sobre se a regencia devia ser de tres, ou d'um unico estadista, e
+se este deveria <span class="pagenum"><a name="pag_127">[127]</a></span> ser Pedro ou Paulo, levantou-se tamanha
+tempestade, que ia tudo pelos ares. Por ultimo optaram pela regencia
+<em>una</em>, e por então terminou a contenda; porém os partidos politicos,
+para os quaes vêr os seus contrarios no poleiro e vêr o diabo é tudo
+uma e a mesma coisa, começaram novamente a tecer os pausinhos. Era
+o regente um soldado destemido e honrado d'uma vez; porém como homem
+d'estado não passava d'um <em>simplorio</em>, que entendia tanto de
+governo como eu entendo de lagares d'azeite; os seus inimigos, aproveitando-se
+da inepcia com que elle dirigia a politica, não descançaram em quanto
+lhe não deram um pontapé, e o expulsaram do palacio.
+
+<P>
+Nomeou-se novo regente. Este então era um passaro que cantava na mão,
+porém ao mesmo tempo, tão medroso, que apenas ouvia um tiro, era capaz
+de se metter cem braças pela terra abaixo; d'ahi resultava que cada
+dia havia um pronunciamento.
+
+<P>
+Por effeito de um d'esses pronunciamentos, caíu o regente, e organisou-se
+então uma regencia composta de tres magnates.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_128">[128]</a></span>Até ali era um só a crear nichos para empregar os seus
+amigalhotes, um só a querer enriquecer á custa da nação, um só a monopolisar
+os favores da joven princeza, e um só a governar mal; multipliquem
+agora esse um por tres, e imaginem a poeira, que se levantou com a
+tal regencia trina!
+
+<P>
+Conheceu finalmente a princeza que estava em edade de casar-se, e
+correu voz, por todas as nações, de que ella punha a sua mão a <em>concurso</em>
+e a daria ao principe, que mais lhe agradasse.
+
+<P>
+Os primeiros, que acudiram ao reclame, foram os judeus, os quaes trajavam
+rica e vistosamente, e tinham o cuidado de fazer tinir bem o dinheiro
+diante da princeza, suppondo talvez, que o vil <em>metal</em> teria
+para ella tantos attractivos como para elles; e, emquanto os que iam
+á <em>mostra</em> faziam sua côrte á princeza, andavam os rabinos pelos
+cêrros pedindo a Deus, que désse a algum dos da sua casta aquella
+boa pequena, que tão bello partido era.
+
+<P>
+Chegaram em seguida os mahometanos, e era muito para se vêr, tantos
+moiros montados <span class="pagenum"><a name="pag_129">[129]</a></span> em cavallos, mais ligeiros que o vento,
+escaramuçando e jogando canas, a vêr se, assim, engodavam a princeza.
+
+<P>
+Afinal appareceram os christãos, que, com suas justas e torneios,
+e o seu porte cheio de garbo e gentileza, sabiam encantar o coração
+das donzellas.
+
+<P>
+&mdash;Então, em qual das tres religiões escolhe V. M. marido? perguntou
+o presidente do conselho de ministros á rainha.
+
+<P>
+&mdash;Homem, nem sei o que te diga, respondeu a rainha. Bem se diz que
+quem tem que escolher tem que fazer. Se queres que te falle verdade,
+gosto de todos.
+
+<P>
+&mdash;Vamos, mas V. M. precisa decidir-se por um.
+
+<P>
+&mdash;Asseguro-te que sinto realmente devéras não poder decidir-me, sequer
+ao menos, por tres. Olha, que entre os christãos ha alguns rapazes
+bem guapos!... mas entre os judeus e os moiros... não te digo nada!...
+
+<P>
+&mdash;Em summa, disse o presidente do conselho, isto não é sangria desatada;
+deixe-os V. M. penar, uns e outros, por espaço d'alguns mezes, e depois,
+então, poderá <span class="pagenum"><a name="pag_130">[130]</a></span> V. M. escolher, com perfeito conhecimento
+de causa; isto de escolha de marido é, para as raparigas, operação
+muito delicada...
+
+<P>
+O presidente do conselho teve a honra de que S. M. seguisse o seu
+parecer, e christãos, mahometanos e judeus, continuarem a fazer as
+suas <em>zumbaias</em> á real moça, cuja mão ambicionavam.
+
+<P>
+Chegou noticia a Roma do que se passava nas Indias, e o Padre Santo
+ordenou que se fizessem preces, para que Deus inspirasse a rainha
+afim de que casasse com um christão, coisa que redundaria em gloria
+e augmento da christandade.
+
+<P>
+Havia n'aquelle tempo em Roma um Preste ou sacerdote, ainda moço,
+conhecido pelo nome de Preste João, o qual era a admiração de toda
+a gente, em rasão do seu saber e virtudes, zelo religioso e galhardia.
+
+<P>
+O Preste João apresentou-se ao Padre Santo, e disse-lhe:
+
+<P>
+&mdash;Santissimo Padre, o que se está passando nas Indias é, quanto a
+mim, coisa mais seria, do que parece, á primeira vista. Aquillo é
+um paiz desgraçado, onde ninguem <span class="pagenum"><a name="pag_131">[131]</a></span> crê em Deus, nem em
+Santa Maria; onde todos são impios e atheus. Se a rainha se casa com
+algum pêrro judio, estamos bem aviados; vae tudo para o diabo. Se
+porém a rainha dér a mão de esposa a um christão, corto a cabeça,
+se todos os indios, dentro em poucos annos, não forem tão christãos
+como nós. Posto isto, vou pedir uma graça a Vossa Santidade.
+
+<P>
+&mdash;Se fôr coisa que eu possa conceder-te...
+
+<P>
+&mdash;Que V. S. me deixe ir ás Indias, para ver se faço entrar aquella
+gente no bom caminho.
+
+<P>
+&mdash;Estás servido, filho; pódes partir quando quizeres.
+
+<P>
+&mdash;Pois, n'esse caso, vou immediatamente tirar passaporte.
+
+<P>
+&mdash;Toma cuidado, filho; vê lá que esses infieis te não preguem alguma
+peça... particularmente os judeus...
+
+<P>
+&mdash;Isso não me mette medo, que por muito que saibam, sempre hei de
+saber mais do que elles.
+
+<P>
+&mdash;Pois vae na graça de Deus, e leva comtigo a minha benção paternal.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_132">[132]</a></span>&mdash;Graças, Santissimo Padre!
+
+<P>
+Foi dito e feito; o Preste João, acompanhado d'um luzidissimo séquito
+de sacerdotes, em cujo numero se contavam os melhores cantores de
+Roma, e munido de riquissimos paramentos e decorações d'egreja, inclusive
+um orgão, que era o melhor que, até então, se tinha visto n'aquelle
+genero, tomou o caminho das Indias.
+
+<P>
+Felizmente os inglezes não eram, n'aquella época, tão philantropicos,
+como o são agora, do contrario não teriam deixado de lhe armar alguma
+ratoeira, na idêa em que estão, de que, para civilisar os cypaios,
+são mais eloquentes os seus canhões, carregados de metralha, do que
+os hyssopes dos missionarios catholicos, ensopados em agua benta.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION05030000000000000000">
+III</A>
+</H2>
+
+<P>
+Os judeus e os moiros souberam que o Preste João se dirigia para as
+Indias, e estavam atrapalhados da sua vida, porque havia muito tempo
+que a fama trombeteira <span class="pagenum"><a name="pag_133">[133]</a></span> lhes tinha levado noticia do saber,
+da virtude, do zelo religioso, e da extremada galhardia do Preste
+João.
+
+<P>
+Chegou este, a final, com o seu séquito, e a rainha ficou enamorada
+da graciosa dignidade, com que elle a saudou, a ponto de não poder
+ter mão em si, que não dissesse, baixinho, ao presidente do conselho:
+
+<P>
+&mdash;Olha que este christão não é <em>nenhuma asneira</em>!...
+
+<P>
+Vendo o Preste João a rainha mui bem disposta em seu favor, aproximou-se
+de S. M., e disse-lhe:
+
+<P>
+&mdash;Senhora, vejo que V. M. vacilla sobre se ha de casar-se com um
+christão, com um moiro, ou com um judeu. Creia V. M. que a religião
+de Christo é a unica verdadeira, grande e salvadora, e que as outras
+são umas <em>religiõesitas de tres ao vintem</em>, que nem com cem varas
+chegariam ao ceu, d'onde procede, e onde apoia sua augusta fronte
+o christianismo. E se V. M. se quer certificar de que isto que lhe
+digo é a pura verdade, não tem mais que ordenar, que nos reunamos,
+na sua presença, judeus, mahometanos, e christãos, a fim de discutirmos
+<span class="pagenum"><a name="pag_134">[134]</a></span> qual das tres religiões é a melhor, e, sobre tudo, qual
+é aquella, que mais favorece as mulheres, pois essa é a grande questão,
+nas circumstancias actuaes.
+
+<P>
+&mdash;Com muito gosto; não tenho a menor duvida em acceder aos teus desejos,
+respondeu a rainha. Amanhã apresentar-vos-heis todos diante de mim,
+e veremos, então, quem é que leva a melhor.
+
+<P>
+Com effeito, no dia seguinte, estava a rainha sentada no seu throno,
+e as tres religiões, representadas pelo Preste João, e pelos judeus
+e mahometanos mais sabios, dispostos a discutir na sua presença.
+
+<P>
+&mdash;Está aberta a sessão, disse a rainha. E como era o Preste João
+quem tinha provocado aquelle certame, devia considerar-se como o primeiro,
+e por esse motivo que pedira a palavra, a rainha accrescentou: «Tem
+a palavra o Preste João.»
+
+<P>
+Os judeus e os moiros começaram logo a murmurar, accusando de parcial
+a augusta presidente; esta porém fel-os entrar na ordem, a poder de
+muitas razões, e toques de campainha.
+
+<P>
+&mdash;Senhores, disse o Preste João, trata-se<span class="pagenum"><a name="pag_135">[135]</a></span> de orientar
+a S. M. acerca d'um assumpto mui grave, qual é a escolha do homem
+a quem, de preferencia, deve ligar o seu futuro. Ora, o que mais interessa
+a S. M., é saber o que mais lhe convém, se um marido christão, se
+mahometano, ou judeu; quanto a mim a questão está resolvida, para
+S. M., desde o momento em que esta augusta senhora, ou para melhor
+dizer, <em>senhorita</em>, souber qual é das tres religiões aquella,
+que mais protege e favorece os fracos em geral, e a mulher, em particular.
+
+<P>
+«Comecemos pela religião judaica.
+
+<P>
+«A mulher, no povo de Israel, era escrava submissa do homem, e não
+sua companheira. Quasi nas primeiras paginas, nos testemunha isso
+o velho Testamento, pois nos diz que Abrahão, marido de Sára, recebeu
+Agár por mulher, ainda em vida da primeira, e logo adiante nos conta
+que Esaú casou, ao mesmo tempo, com duas irmãs cananêas. O Decálogo,
+revelado mais tarde a Moysés, no alto do Sinai, dizia: «não desejarás
+a mulher do teu proximo»; mas não dizia: «terás uma unica mulher»,
+<span class="pagenum"><a name="pag_136">[136]</a></span> e Salomão, que era o prototypo da sabedoria hebraica,
+teve milhares de concubinas. Pergunto eu agora a S. M. se está disposta
+a soffrer que o seu futuro marido lhe dê uma, ou mais substitutas?!
+
+<P>
+&mdash;Substitutas! a mim!... exclamou a rainha indignada. Tenho bom genio
+para isso! Mais facil seria enterrarem-me viva!
+
+<P>
+&mdash;Pois eu continúo....
+
+<P>
+Aqui interrompem os judeus o orador, descontentes do caminho que leva
+a sua causa; a rainha porém fal-os entrar na ordem, á custa de repetidos
+toques de campainha, e com ameaça de os fazer expulsar do salão.
+
+<P>
+O orador continúa:
+
+<P>
+&mdash;Ficarei por aqui a respeito de judeus, os quaes, em verdade, me
+causam dó, ainda que não seja senão por os vêr condemnados a esperar
+o Messias, até á consummação dos seculos; com isso já não estão mal
+castigados por haverem crucificado a Christo, porque lá diz o rifão:
+«quem espera, desespera». Passemos agora aos mahometanos. Quem era
+o tal Mafoma?
+
+<P>
+&mdash;O propheta de Deus! exclamam os <span class="pagenum"><a name="pag_137">[137]</a></span> mahometanos, pondo
+a mão no peito, e dobrando-se reverentemente.
+
+<P>
+&mdash;Qual propheta, nem qual cabaça!...
+
+<P>
+Aqui é que foram ellas! Dizer isto o Preste João, e arrancarem os
+<em>moiraços dos chanfalhos</em>, rugindo de cólera, foi tudo obra d'um
+momento; a rainha porém sacudiu a campainha, mandou entrar o piquete
+da guarda, e graças a esta energia da presidencia, accommodaram-se
+os perturbadores da ordem, e o orador pôde, a final, continuar:
+
+<P>
+&mdash;Mafoma era um <em>sugeito</em> que passava por sabio e grande, entre
+os seus compatriotas, pela razão muito simples de que na terra dos
+cégos, quem tem um olho é rei! Um dia, disse elle com os seus botões:
+Como hei de eu arranjar a dominar estes <em>barbaças</em>, que não tratam
+senão de se divertir com as moças?... como?... esperem lá... já sei.
+Engendro-lhes uma religião baseada no grosseiro sensualismo, e metto-lhes
+na cabeça, que ella me foi revelada por um anjo.» E dito e feito:
+arranjou o tal <em>alcorão</em>, segundo o qual, a mulher e o cavallo
+vem a ser, para o homem, uma e a mesma coisa, por isso que apenas
+servem para o <span class="pagenum"><a name="pag_138">[138]</a></span> divertir; e fez acreditar aos asnos dos
+seus compatriotas, que, no outro mundo, haviam de encontrar moças
+ás duzias, e obra desenganada.
+
+<P>
+&mdash;E é que as havemos de encontrar! gritam furiosos os mahometanos.
+
+<P>
+&mdash;Deixemos-nos de lerias!... que hão de vocês encontrar?! Só se forem
+alguns tições, que outra coisa não podem lá achar uns barbaros como
+vocês, que atravessam seculos e seculos, sem dar um passo na senda
+do progresso! Vamos porém agora a vêr o que é a mulher, segundo a
+religião estupida de Mafoma.
+
+<P>
+&mdash;Lancem-se essas palavras na acta! gritam, afogados em cólera, os
+mahometanos.
+
+<P>
+&mdash;Não é da minha real vontade! responde a rainha. Prosiga o orador
+no seu discurso, que eu cá estou para lhe manter o uso da palavra.
+
+<P>
+&mdash;Pois bem, eu continúo: É para cortar o coração, e fazer caír a
+alma aos pés, a maneira como a mulher é tratada pelos musulmanos.
+Não se contentam estes senhores com ter duas ou tres mulheres; possuem
+<span class="pagenum"><a name="pag_139">[139]</a></span> centos d'ellas, encerradas em carceres, a que dão o nome
+de serralhos, ou haréns. Atravessa a gente as cidades mais populosas
+da Turquia, e não encontra uma mulher siquer para um remedio; e isto
+porque esses barbaros até as privam do ar e do sol, as duas coisas
+mais preciosas, que a natureza concede á creatura. Horror! cem vezes
+horror!! Negarem á mulher, esse formoso ser, todo amor e ternura,
+a quem todos nós temos dado o dulcissimo nome de mãe, o ar e o sol,
+que não negam aos mais immundos irracionaes! Maldição sobre essa lei
+impia, sobre o falso propheta, que a dictou, e sobre o povo barbaro
+e fanatico, que a segue!
+
+<P>
+&mdash;Ah! perro christão!... gritam, a um tempo, todos os musulmanos,
+ao ouvir a energica apostrophe do Preste João; e, rugindo de raiva,
+mais furiosos ainda do que da primeira vez, lançam mão dos alfanges,
+com ameaça de acabar tragicamente com a discussão; a rainha porém,
+mandou entrar novamente o piquete da guarda, que os desarmou e os
+metteu na ordem, a poder de muita coronhada d'armas.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_140">[140]</a></span>Apasiguada que foi aquella rusga, continuou o Preste João
+o seu discurso:
+
+<P>
+&mdash;Que differença entre o que a mulher deve á religião christã, e
+o que deve a qualquer das duas religiões, mahometana e hebraica! Maria,
+em cujas entranhas encarnou o Verbo Divino, senta-se, no ceu, ao lado
+do Filho de Deus, e juntamente com Jesus, lhe dão os homens o dulcissimo
+e santo nome de mãe. A religião christã glorifica a mulher, destinando-a
+a esmagar a cabeça da serpente do peccado, e Jesus proclama a egualdade
+de todas as creaturas humanas, e diz aos meninos que se acerquem d'elle,
+igualando, por tal forma, a mulher ao homem, e exaltando os fracos
+em cujo numero se conta a mulher. É pois a religião christã a unica
+que favorece a mulher; é aquella que a emancipa da escravidão e do
+opprobrio, a que a condemnam as religiões judaica e mahometana. Tenho
+dito; veremos agora se ha ahi alguem, que seja capaz de me contradizer.
+
+<P>
+&mdash;Teem a palavra os judeus, disse a augusta presidente.
+
+<P>
+&mdash;A religião de Moysés, replicou um <span class="pagenum"><a name="pag_141">[141]</a></span> rabino, já completamente
+desanimado, não carece de entrar em discussões, para provar a sua
+superioridade sobre todas as outras.
+
+<P>
+&mdash;Ficamos <em>inteirados!</em> disse a rainha, e accrescentou: Teem
+a palavra os doutores musulmanos.
+
+<P>
+&mdash;Nós <em>cá</em>, os verdadeiros crentes, exclamou um turco, não discutimos
+senão d'alfange em punho.
+
+<P>
+&mdash;Quer isso dizer, á bruta! exclamou a rainha indignada; e erguendo-se
+da cadeira, accrescentou: estando já a hora mui adiantada, e não havendo
+mais assumptos a tratar, está levantada a sessão.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION05040000000000000000">
+IV</A>
+</H2>
+
+<P>
+Ficou a rainha quasi resolvida a casar com um christão; porém, receiosa
+de que houvessem murmurações e commentarios que lhe fossem desagradaveis,
+lembrando-se de que alguem poderia dizer que ella obrára levianamente,
+determinou-se a tentar uma outra prova. Consistia essa prova <span class="pagenum"><a name="pag_142">[142]</a></span>em fazer com que os apostolos das tres religiões celebrassem, na sua
+presença, uma das cerimonias mais importantes dos ritos que professavam.
+
+<P>
+Christãos, musulmanos e judeus, todos, com muito gosto, acceitaram
+a proposta de S. M., que logo fixou o dia para as cerimonias, que
+deviam verificar-se no mesmo salão, onde se tinha discutido qual era
+das tres religiões aquella a que mais devia a mulher.
+
+<P>
+Os primeiros que saíram a terreiro foram os mahometanos, os quaes
+annunciaram que iam executar a <em>Zala</em>.
+
+<P>
+Tinha a rainha grande curiosidade de presenciar esta cerimonia, que
+julgava ser magnifica, e que muito a divertiria; quando porém viu
+que a tal <em>Zala</em> consistia tão sómente em cruzarem aquelles <em>ratões</em>
+as mãos no peito, e fazerem reverencias e mais reverencias, ficou
+mais fria que o proprio gêlo.
+
+<P>
+&mdash;Muito engraçados são os taes <em>moirinhos</em>! disse S. M., com
+riso disfructador; e ordenou, em seguida, que saíssem a campo os judeus,
+a vêr que tal se portavam.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_143">[143]</a></span>O grande rabino, com o seu barrete <em>enterrado</em> até
+ás orelhas, como usam os seus correligionarios, sacou d'um livro,
+e immediatamente appareceram todos os judeus com os seus ripanços
+nas mãos. Ora, os taes livros seriam muito edificantes, mas tinham
+tanta côdea, que só com uma tenaz se lhes poderia pegar. O rabino
+principiou a entoar um psalmo, e todos os judeus o acompanharam; cantavam
+porém tão desentoadamente, e davam tão insoffriveis bérros, que a
+pobre da rainha não teve outro remedio senão tapar os ouvidos, e mandar
+a toda a pressa que cessasse tamanha algaravia.
+
+<P>
+Cessou com effeito, e os christãos dispuzeram-se, por ultimo, a celebrar
+o santo sacrificio da missa, para o que o Preste João tinha tudo perfeitamente
+ordenado.
+
+<P>
+Collocaram no salão um magnifico altar, accenderam uma grande quantidade
+de tochas, que faziam bellissima vista; puzeram o orgão n'um sitio,
+que tinha excellentes condições acusticas, tossiram e <em>aguçaram
+o pigarro</em> os cantores que haviam de officiar a missa, e que, como
+em principio dissemos, eram os melhores de Roma; e, em <span class="pagenum"><a name="pag_144">[144]</a></span>seguida, subiu o Preste João ao altar, magnificamente revestido, bem
+como os dois acólitos, que o acompanhavam. A missa foi solemnissima,
+e tanto os celebrantes, como os cantores e o organista fizeram prodigios,
+que deixaram de bôcca aberta a rainha e a sua côrte.
+
+<P>
+Os mahometanos e os judeus olharam uns para os outros, e disseram
+por entre os dentes:
+
+<P>
+&mdash;Derrotaram-nos em tudo e por tudo estes perros christãos!
+
+<P>
+E na verdade não se enganaram, porque a rainha chamou, pouco depois,
+o Preste João, e disse-lhe:
+
+<P>
+&mdash;Decididamente caso com um christão.
+
+<P>
+&mdash;Louvado seja o Senhor! exclamou o Preste João, cheio de santa alegia.
+Agora só falta que V. M. escolha o christão, que deve ter a ventura
+de occupar o thalamo de tão formosa princeza.
+
+<P>
+&mdash;Já está escolhido, disse a rainha das Indias, fazendo-se córada
+como uma romã.
+
+<P>
+&mdash;E quem é esse feliz mortal?
+
+<P>
+&mdash;Tu.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_145">[145]</a></span>&mdash;Eu!... V. M. não está em seu juiso!
+
+<P>
+&mdash;Então! faz-te agora de manto de seda!...
+
+<P>
+&mdash;Não, senhora; porém não sabe V. M. que eu sou padre, e que os padres
+catholicos não podem casar?...
+
+<P>
+&mdash;Que me dizes, homem?
+
+<P>
+&mdash;Digo-lhe isto, real senhora!
+
+<P>
+&mdash;Pois, amigo; partiste-me o coração!
+
+<P>
+&mdash;Então, porque?
+
+<P>
+&mdash;Porque estou apaixonada por ti, e se não casar comtigo, não caso
+com ninguem.
+
+<P>
+&mdash;Mas, senhora, entre os meus correligionarios ha moços mais bem
+parecidos do que eu.
+
+<P>
+&mdash;Asseguro-te que nenhum me póde agradar tanto como tu.
+
+<P>
+&mdash;Sinto isso bem; mas eu é que não posso casar.
+
+<P>
+&mdash;Visto isso, não terei outro remedio, senão dar a mão d'esposa a
+algum d'esses moiros... que... diga-se a verdade, entre elles ha rapazes
+bem <em>tirados das canellas</em>, e o que me não agrada n'elles é apenas
+a religião, que professam...
+
+<P>
+Quando o Preste João ouviu estas palavras, <span class="pagenum"><a name="pag_146">[146]</a></span> tremeu dos
+pés á cabeça, pensando, e com razão, que, pelo facto de a rainha casar
+com um mahometano, todas as Indias, povoadas de milhões e milhões
+de habitantes, abraçariam a seita detestavel de Mafoma, ao passo que,
+se casasse com um christão, toda aquella gente seguiria a religião
+de Christo.
+
+<P>
+&mdash;Senhora, disse elle, por fim, á rainha, póde ser que consigamos
+harmonisar tudo. O Papa, que é o Vigario de Christo na terra, é o
+unico que póde auctorisar-me a casar com V. M. Vou já escrever-lhe,
+pelo correio d'hoje, pedindo-lhe a competente licença.
+
+<P>
+&mdash;Oh! que feliz idêa! exclamou a rainha; e riam-se-lhe os olhos,
+de contente. Bem digo eu que és um rapaz de muitos recursos!
+
+<P>
+O Preste João poz logo mãos á obra; escreveu ao Papa, contando-lhe,
+muito pelo miudo, o que se passava, e, na <em>volta do correio</em>,
+recebeu de Sua Santidade a dispensa para casar com a rainha das Indias.
+
+<P>
+Celebraram-se, pouco tempo depois, as vôdas, com grandes festas e
+muito regosijo <span class="pagenum"><a name="pag_147">[147]</a></span> (bem entendido, depois da rainha se ter
+feito christã) e, passados annos, recebiam o baptismo todos esses
+milhões de milhões de indios, que os inglezes, nos nossos dias, se
+fartaram de metralhar, sem dó, nem piedade.
+
+<P>
+Eis-ahi a historia do Preste João das Indias. Outros a contarão com
+mais graça do que eu, porém com melhor intenção por certo que ninguem
+a conta.
+
+<p class="centrado">
+<big>FIM.</big>
+</p>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Contos escolhidos de D. Antonio de
+Trueba, by António de Trueba
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS ESCOLHIDOS DE D. ANTONIO ***
+
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+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
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+works. See paragraph 1.E below.
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+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
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+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
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+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
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+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
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+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
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+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
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+approach us with offers to donate.
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+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
+
+</pre>
+
+</BODY>
+</HTML>
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index 0000000..6312041
--- /dev/null
+++ b/LICENSE.txt
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+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
+metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be
+in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES.
+
+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
+
+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
diff --git a/README.md b/README.md
new file mode 100644
index 0000000..96752b7
--- /dev/null
+++ b/README.md
@@ -0,0 +1,2 @@
+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
+eBook #25593 (https://www.gutenberg.org/ebooks/25593)