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ANTONIO *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + + +PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA + +CONTOS ESCOLHIDOS + +DE + +D. ANTONIO DE TRUEBA + +TRADUZIDOS LIVREMENTE + +POR + +F. DE CASTRO MONTEIRO + +com uma introducção + +POR + +I. DE VILHENA BARBOSA + + +PORTO +Imprensa Portuguesa--Editora +1872 + + + + +PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA + +CONTOS ESCOLHIDOS + +DE + +D. ANTONIO DE TRUEBA + + + + +PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA + +CONTOS ESCOLHIDOS + +DE + +D. ANTONIO DE TRUEBA + +TRADUZIDOS LIVREMENTE + +POR + +F. DE CASTRO MONTEIRO + +com uma introducção + +POR + +I. DE VILHENA BARBOSA + + +PORTO +Imprensa Portuguesa--Editora +1872 + + + + +AO SEU PREZADO AMIGO + +I. DE VILHENA BARBOSA + +SOCIO CORRESPONDENTE DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS + +Como testemunho de gratidão + +Offerece + + _O traductor._ + + + + + +_Meu querido Vilhena Barbosa._[1] + +A grata recordação das lições que de ti recebi, quando no meu espirito +começava a desenvolver-se o gosto pelo estudo da litteratura; os salutares +conselhos, que me dispensaste, nos primeiros annos da minha adolescencia, +apontando-me a escolha dos auctores, que deveriam formar o meu estylo, e +robustecer as minhas tendencias litterarias; aquellas nossas conversas, de +tamanho interesse para mim, em que as luzes do teu illustrado entendimento +tentavam dissipar as trevas da minha ignorancia, conversas que, pouco a +pouco, e no decurso d'alguns annos de convivencia intima, iam subindo +d'alcance, á medida que, pelo estudo, eu me habilitava a comprehender-te e +a discutir comtigo, seriam já, de per si, sobejo motivo para que eu te +dedicasse este livrinho, se não houvesse ainda razões de entranhadissimo +affecto, razões todas do coração, e completamente alheias á cultura das +letras, que a isso me obrigam, com força de irresistivel encanto. + +A minha vida está, desde os mais verdes annos, ligada, por laços +indissoluveis, a essa dedicação illimitada que sempre me votaste. + +Era eu bem creança, e já tu me franqueavas os arcanos da tua vasta +erudição. Não sei que confiança era a tua na mediocridade da minha esphera +intellectual. Eram horas esquecidas d'instructiva palestra, em que a +historia patria, a philosophia da historia, as sciencias naturaes, e a +litteratura constituiam um thema variado, que me deleitava e instruia, +animando-me a procurar nos livros cabedal de conhecimentos com que podesse +corresponder ao teu paternal intento de me tornar util a mim e á sociedade. + +Oh! que saudosos tempos, de feliz memoria, são esses para mim! + +Quando nos separavamos, continuavas tu, de longe, a indicar-me os bons +modelos, e a apontar-me um futuro, que a tua céga amisade antevia para mim, +mas que, _erat scriptum_, eu não deveria attingir. + +Nunca me abandonaste; e, se foi baldado o teu intento, ao menos da +constancia do teu affecto tiro eu motivo de muito orgulho, e isso basta +para me consolar. + +Nos primeiros mezes de 1860, época de terrivel amargura para o meu coração, +revelou-se a tua amisade por mim pela prova mais grandiosa, que póde +aquilatar os sentimentos d'alma. + +Em dezembro, tinha eu vindo de Coimbra ao Porto, a férias. Entrava em casa +com aquelle alvoroço, que tu por vezes presenciaste, e que sempre me +dominava, ao acercar-me de meus paes e de minha irmã. Minha mãe chorava de +alegria, cingindo-me n'um amoroso e prolongado abraço, e eu correspondia ao +seu carinho com todo o affecto, que me inundava o coração. Sabes como eu a +amava. Por mais d'uma vez te achaste ao nosso lado, no momento de nos +separarmos. + +Eram os transportes de duas almas enamoradas, em presença da amarga e +tyrannica necessidade da ausencia. + +Assim tambem, quando as ferias se avisinhavam, contavamos ambos as horas e +até os instantes, que faltavam para a nossa approximação, com frenetica +impaciencia. + +N'essas emoções encontradas, por entre riso e lagrimas, se deslisaram os +primeiros annos da minha mocidade. + +Punge-me recordar esse tempo de tão acerba saudade; enlucta-se-me a alma, +quando se me retrata na mente a imagem de minha piedosa mãe; e a ti sei eu +que hade offender-te a notavel modestia, que é um dos ornamentos do teu +nobre caracter, este publico testemunho, que te offereço, da minha +gratidão. + +Mas ainda que o coração se me despedace ao escrever estas linhas, e a +despeito da contrariadade, que possa levantar no teu espirito, proseguirei +no meu intento. + +Tem paciencia, e ouve o que talvez a tua consciencia nunca te mostrasse em +relevo, por causa d'esse sentimento elevadissimo, que esconde aos olhos do +homem a nobreza das suas proprias acções. + +Poucos dias depois da minha chegada ao Porto, adoeceu minha mãe; e com tal +violencia se apresentou a molestia, que foram infructiferos todos os +esforços, que a medicina fez para a salvar. + +A 22 de Janeiro voou aquella alma angelica, a abrigar-se no seio de Deus. + +Passarei um véo por sobre o abysmo de insondavel martyrio, em que esse +angustiosissimo lance me sepultou! + +Decorrido um mez, lembrou-me meu pae a necessidade de voltar para Coimbra. + +Acordei então do lethargo em que caíra, depois do fatal acontecimento; +comprehendi quanto havia de justo e paternal n'aquella indicação, e parti. + +Quando me encerrei no meu quarto escolastico, e que meditei na +transformação, que, em tão breve lapso de tempo, se operára na minha vida +moral, senti-me succumbir; arrastei-me para junto da janella, que olhava +para o Mondego, e alongando a vista por aquelle formoso quadro, tão poetico +e tão melancolico, deixei-me dominar completamente pela vehemencia da +saudade, que me opprimia, e assim permaneci por espaço de muitas horas. + +Nos dias que se seguiram, foi sempre calando, mais e mais, no meu +coração, aquella profunda tristeza, que nada podia dissipar. + +Os meus companheiros de casa, moços distinctissimos, os quaes ainda hoje +amo como irmãos, envidavam todos os seus recursos para me fazer saír +d'aquelle estado de depressão de espirito, que me senhoreava; mas nada +podiam conseguir. + +Por espaço de muitos dias, quando chegava o correio, erguia-me de subito, +machinalmente, para correr ao seu encontro; mas logo, lembrando-me que já +não existia aquella santa, que diariamente me confortava e fortalecia o +espirito, com o balsamo salutar do seu carinhoso affecto, caía novamente na +minha tristeza habitual. + +Tão dolorosa e renitente enfermidade moral, não podia deixar de +transmittir-se ao corpo. + +Adoeci. + +Os progressos da doença foram rapidos e assustadores! + +Eu delirava, e no meu delirio, evocava o nome de minha mãe. + +A sciencia deu á molestia um nome; mas o meu coração dava-lhe outro. + +Os médicos chamavam-lhe pneumonia... mas eu chamava-lhe _Saudade_! + +Todos os meus companheiros, á porfia, se esforçavam por me provar a sua +amisade. D'elles porém havia um, a quem todos respeitavamos, que logo se +collocou á cabeceira do meu leito, servindo-me regularmente de enfermeiro. + +Não referirei aqui o seu nome por lhe não ferir a modestia, que a tem, +em tão subido gráo como tu, e a qual eu não ouso devassar. + +Recordo-me d'elle com muita saudade e muito reconhecimento. + +E nunca mais nos encontramos! + +Uma noite acordei e vi um vulto ajoelhado junto do meu leito; +sobresaltou-me, porque me parecia um padre! Era elle, vestido de batina, +e que resava no seu livro de orações! + +Ergueu-se rapidamente e disfarçou para me não assustar. + +Eu dissimulei; fingi que o não vira, e nunca lhe fallei d'esta scena +edificante, que ha de sempre permanecer gravada no meu coração. + +Este livro deve chegar um dia ás mãos d'esse nobre mancebo, de quem o +destino me separou; que elle se recorde de mim com saudade, ao lêr estas +palavras, e veja n'ellas a expressão do muito reconhecimento, que tambem +lhe consagro. + +A molestia aggravara-se, e ao terceiro dia, apresentava-se temerosa! + +Eu sentia-me isolado, á mingua do conforto da familia; mas prohibira +expressamente, que avisassem meu extremoso pae da gravidade da minha +situação. + +Este, ignorando a verdade, e presa de muitos trabalhos domesticos, não +foi ter commigo a Coimbra; mas escreveu-te para Lisboa, avisando-te de +que eu me achava enfermo. + +No dia em que recebeste a sua carta, dirigiste-te a um dos meus +companheiros de casa, e este fallou-te com franqueza. + +Isto soube-o eu mais tarde. + +Vinte e quatro horas depois de teres lido a resposta, a que alludo, +dispertava eu d'um somno angustioso, e vi-te ao meu lado. + +Quiz erguer-me e lançar-me nos teus braços, mas não pude. + +Fizeste por me serenar o espirito, sobreexcitado pela tua presença alli, +e começaste a dispensar-me os thesouros do teu acrisolado affecto. + +A molestia teve-me baloiçado entre a vida e a morte; e por fim, graças á +bondade do Altissimo, que me julgou talvez novo para deixar o mundo, e +que me proporcionou os desvelos do teu carinho, começou a declinar. + +Foi longa a convalescença. + +Quando, no decurso d'ella, eu me conservava ainda de cama, tu, sentado á +minha cabeceira, lias alto para me distrahir, ou divagavas sobre +aquelles assumptos, que sabias me eram mais gratos. + +Ministravas-me cuidadosamente os remedios e as comidas, temperadas pela +tua propria mão, e informavas diariamente a minha familia das +progressivas melhoras, que eu experimentava. + +Afinal, ergui-me da cama, e, poucos dias depois, comecei a dar alguns +passeios, pelo teu braço. + +Ficava a minha casa proxima ao Jardim botanico, e era para ahi que +sempre nos dirigiamos. + +Estavamos então entrados na primavera, essa estação encantadora, em que +o coração se retempera no ar embalsamado que nos rodeia; essa _gioventù +del anno_, como lhe chama o poeta, em que toda a natureza nos sorri, com +ineffavel magia. + +Eu sentia-me _renascer_; parecia-me participar da qualidade dos arbustos +e das plantas, que nos cercavam; corria-me nas veias uma nova seiva, e +impressionava-me em extremo o grandioso espectaculo, que se offerecia a +meus olhos. + +Depois de darmos algumas voltas por aquellas frondosas avenidas, +sentavamo-nos n'um banco do jardim, e um ao outro communicavamos as +impressões, que recebiamos d'aquelle panorama encantador das «saudosas +margens do Mondego», que d'alli se observa em todo o esplendor da sua +belleza. + +Depois, quando o sol, declinando, nos aconselhava a regressar a casa, +levantavamo-nos e deixavamos vagarosamente aquella mansão deliciosa. + +Os extremos da tua amisade tinham-me furtado talvez a uma prematura +morte, mas não lograram desanuviar-me o coração da magoa, que o suffocava. + +Deixava-me por vezes dominar de profunda tristeza, e assim me conservava +por largas horas, alheiado completamente do mundo exterior, e só +entregue a amargas cogitações. + +Um dia entraste no meu quarto, e disseste-me que era preciso saír de +Coimbra; que tinhas conversado largamente com o medico, e que este fôra +de parecer de que a distracção era o unico remedio que podia completar o +meu restabelecimento. + +Sobresaltou-me a lembrança de que teria de me separar logo de ti. + +Era uma injustiça que fazia á devoção do teu affecto; mas confesso-te +que não suppunha que tu levasses a tua generosa dedicação por mim, até +entrares commigo na casa paterna. + +Sabia que a ausencia de Lisboa era em extremo prejudicial aos teus +interesses, e por isso imaginava que tu darias por terminada a tua +caridosa missão, com a minha partida para o Porto. + +Quanto me enganava! + +Eu estava ainda muito falto de forças e mal podia entender nos aprestos +da viagem; tu porém a tudo proveste com paternal cuidado. + +Afinal, por uma aprazivel manhã, saímos de Coimbra. + +Alugaramos uma carruagem, a melhor que se pôde encontrar, e por essa +bella estrada, que o mau fado da nossa administração publica, devia, +poucos annos depois, tornar quasi deserta, admirando o formosissimo paiz +que ella atravessa, formosissimo pela luxuriante vegetação que o cobre, +e pela extensão dos seus variadissimos panoramas, seguimos +agradavelmente até á primeira paragem, onde deviamos pernoitar. + +Se bem me recordo era a estalagem d'Albergaria, esse covil immundo, da +qual ainda hoje me não lembro, que não sinta logo pelo corpo, um certo +pruído, que me excita horrorosamente os nervos. + +No dia immediato continuamos a nossa jornada, mas não com tanta +felicidade como na vespera. + +Levantára-se muito vento, e parece-me que te estou vendo, meu bom +Ignacio, receioso de que o frio prejudicasse o regular andamento da +minha convalescença, repartindo-me em mil cuidados, para me pôr a salvo +d'uma recaída! + +E agora me lembra um episodio d'essa saudosa jornada, que tem relação +com o que levo dito, e que é mais um attestado do conforto e da +commodidade das taes locandas da antiga estrada coimbrã. + +Quando chegamos a S. João da Madeira, saímos da carruagem, e entramos na +hospedaria, para jantar. + +Depois que démos as nossas ordens, na cosinha, subimos para a sala, onde +deviamos esperar que nos servissem; mas era tal a _ventania_, que +entrava pelos buracos dos vidros, e pelas fendas do telhado, que, não +querendo voltar logo para a carruagem, de que já estavamos fartos, +tomamos o partido de nos sentarmos a um canto, e abrir os chapéos de +sol, a vêr se d'este modo podiamos afrontar a intemperie. + +Pouco tempo porém estivemos n'essa posição caricata; afinal entendemos +que o mais acertado era jantarmos dentro da carruagem, e assim o fizemos. + +Ainda hoje me rio, quando me acode á ideia essa scena de comedia, que +acabo de descrever. + +D'ahi por algumas horas chegavamos aos Carvalhos, onde nos esperavam, +meu pae e minha irmã, e todos juntos seguimos para o Porto. + +Com a viagem, que descrevi com leves traços, termina esse episodio da +nossa vida, em que se patenteia bem a elevação do teu caracter, e a +dedicação que te devo; mil annos que eu vivesse, nunca esta pagina da +minha mocidade, se me apagaria da memoria. + +Sei, e já o disse no principio d'esta carta, que vou offender a tua +modestia, tornando publico esse exemplo que déste da nobreza dos teus +sentimentos. + +Não importa. És tu geralmente apreciado como homem de letras, quero que +todos te apreciem tambem como homem de coração;--como exemplo do amigo +dedicado. + +Porto, 12 de janeiro de 1872. + + F. de Castro Monteiro. + + [1]Vilhena Barbosa só terá conhecimento d'esta carta, quando lhe chegar + á mão o meu livro. O respeito que me merece a sua proverbial modestia + obriga-me a deixar aqui esta declaração. + + + + +INTRODUCÇÃO + + +I + +As letras e as artes têm muitos pontos de affinidade. Ambas filhas +predilectas da civilisação; caminhando a par na via dos progressos +humanitarios; auxiliando-se e concorrendo mutuamente para o seu commum +desenvolvimento e esplendor; cabendo-lhes egual quinhão de gloria nos +aperfeiçoamentos, grandeza e prosperidade de qualquer nação; tem +identico valor e significação para se aquilatar por ellas a cultura de +um povo; e, finalmente, ambas são um como espelho em que a humanidade se +retrata, tal qual é, segundo as epochas da sua historia. + +Nas artes é, principalmente, a architectura, pelas intimas relações que +tem com a sociedade, a que resume em si, com maior exactidão, as idêas, +as crenças, as aspirações, as necessidades, em fim, a vida moral e +physica dos povos. + +Nas letras o romance, a meu vêr, como nas artes a architectura, é qual +lamina em que se espelham, com fidelidade, os pensamentos, a indole e os +costumes da sociedade para a qual foram escriptos. + +Na traça mesquinha ou grandiosa de um monumento; nas suas fórmas +acanhadas ou esveltas; na ornamentação pesada e mal disposta, ou ligeira +e graciosamente distribuida; na esculptura dos ornatos grosseiros e sem +significação ideal, ou delicados e expressivamente symbolicos, escreveu +o architecto, sem attentar em tal, uma pagina da historia dos seus +contemporaneos, eloquentissima na sua mudez, e cheia de verdade, porque +a mão do seu auctor era dirigida, não por paixões ou respeitos humanos, +mas unicamente pelo amor da arte. E julgando o artista que a movia em +cega obediencia aos preceitos da mesma arte, a sua dextra seguia tambem +os impulsos da sua imaginação, que não podia eximir-se á despotica +influencia das idêas e costumes dominantes; e além d'isso, no desempenho +da sua missão, tinha de satisfazer as exigencias e necessidades +publicas, que são sempre determinadas pelo movimento intellectual e pela +successiva modificação dos costumes. + +O romancista quer que o seu livro corra mundo, e seja lido com prazer. +Para alcançar este _desideratum_, procura deleitar, e para este fim tem +de vasar a sua obra nos moldes do gosto publico; isto é, tem de a +accommodar ás idêas e costumes em voga n'essa epocha. E ainda que +consideremos o escriptor, pegando da penna, sem que o mova o interesse +pecuniario, forçosamente ha de escrever sob a mesma poderosa influencia +das idêas e costumes publicos. + + +II + +Quando as cruzadas, minando pela base o feudalismo, crearam o espirito +cavalleiroso, que, d'envolta com o sentimento religioso, foi adoçando +pouco a pouco a fereza da edade media, e, ao mesmo tempo, abrindo a +porta á illustração do seculo, surgiu o romance, como guarda avançada +das letras; cruzada não menos santa, preparada no remanso do gabinete +pelos primeiros chronistas, annunciada e apregoada pelos antigos +trovadores. + +O romance mostrou-se desde logo o retrato fiel da sociedade, em todas as +phases da sua vida moral e physica. + +Pois que n'essas eras se manifestavam e expandiam o sentimento religioso +em guerras contra os infieis, e o do prazer em justas, torneios e +caçadas, ou em saraus, onde os trovadores cantavam, ao som do alaúde, +amores e guerras; pois que a justiça humana chamava amiudadas vezes os +delinquentes ao campo dos combates judiciarios; pois que as moradas da +nobreza eram castellos, cercados de fossos, e eriçados de ameias; as +espadas, as lanças e as armaduras os melhores ornamentos das suas salas; +a montearia, a diversão predilecta das illustres castellãs; o romance, +reproduzindo todas estas feições sociaes, tomou a fórma de novellas de +cavallaria. Amores e guerras constituiam, portanto, o assumpto obrigado +d'essas composições. A honra, o valor, a coragem, a dedicação +desinteressada, a fé e a esperança estreitamente unidas, todos estes +dotes de um perfeito cavalleiro, todas estas idêas, que então occupavam +os espiritos quasi exclusivamente, até dos que não possuiam tão nobres +qualidades, sobresaíam e brilhavam com tanto fulgor nas paginas d'essas +novellas, como as estrellas que scintillam no manto negro da noute. + + +III + +Em quanto as cruzadas, attrahindo a um campo commum as differentes +nações da Europa, e pondo em contacto o Occidente com o Oriente, faziam +raiar a aurora de uma nova civilisação, travavam encarniçada lucta a +realeza e o feudalismo. Aquella, soccorrendo-se ao principio popular, +acabou por triumphar do seu poderoso adversario. Porém, durante a pugna, +o poder real teve de arcar com o poder theocratico, o qual, a seu turno, +alcançára victoria sobre a propria realeza. + +A influencia dos pontifices no regimen dos estados, que tão benevola e +providencial se ostentou, em quanto serviu de medianeira entre os +opprimidos e os oppressores, estendendo sobre os mais fracos a égide do +poder espiritual, veiu a tornar-se oppressiva e intoleravel, desde que, +abusando da sua intervenção nos negocios temporaes das nações, converteu +em tyrannia aquella missão paternal. + +A supremacía dos papas, actuando na politica dos governos e nas idêas e +costumes populares, imprimiu uma grande modificação no viver da +sociedade. Essa modificação não tardou a estampar-se no romance, +despojando-o dos esplendores e galanteria, com que até alli se ataviára, +e fazendo-lhe vestir a roupagem, modesta e singela, mas não falta de +poesia, das lendas religiosas, que lá foram aninhar-se nas chronicas +monasticas, parecendo fugir ás impurezas do seculo. + +A fé viva, sugeitando a razão além do dogma; a esperança vivissima em +uma eternidade de gloria e de suprema ventura na outra vida, como +recompensa do refreamento das paixões e das abstinencias, e como +compensação das grandes dôres; o curso geral das cogitações e +controversias dos sabios para as materias theologicas; as diversões +populares restringindo-se, quasi exclusivamente, ás procissões, nas +quaes eram admittidas dansas, e toda a sorte de exhibições phantasticas +e burlescas, aos arraiaes e outras festividades religiosas, e, +finalmente, aos autos sacros, que constituiam o theatro na infancia, +depois do seu renascimento; as provas do fogo, do ferro em brasa, e da +agua fervente, denominadas _juizo de Deus_, aceites nos tribunaes de +justiça como testemunhos irrecusaveis da innocencia ou da culpabilidade: +todo este pensar e este viver reflectiam-se nas lendas religiosas com a +mesma exactidão e vigor, com que o sol reflecte na superficie das aguas +a sua fronte luminosa. + + +IV + +Não é meu intento traçar a historia d'este ramo de litteratura. Direi, +todavia, que d'aquelle modo continuou o romance, em todos os tempos, e +sob todas as fórmas, a reproduzir em si, com mais ou menos naturalidade +e viveza de côres, as mudanças que se vão operando nas idêas e nos +costumes. + +D'est'arte se revestiu das fórmas classicas, quando, sob a influencia +dos sabios e dos artistas, foragidos de Constantinopla, ao desmoronar do +imperio do Oriente, se operou nas letras, nas artes, e no proprio viver +da sociedade, a grande revolução denominada _renascença_, a qual foi +inspirar-se nas obras grandiosas da antiga Grecia. + +Do mesmo modo assumiu o romance a gravidade philosophica, quando +Voltaire, Rousseau, e outros grandes pensadores do seculo passado, +proclamando verdades, que faziam estremecer em seus thronos os monarchas +despoticos, convidavam os estadistas a meditarem nos problemas sociaes, +cuja semente assim lançavam á terra; e excitavam os povos a reflectir na +significação e importancia dos direitos do homem. + +Assim o romance se tornou historico, logo que a sociedade, sentindo o +mal estar de uma organisação que os progressos da civilisação iam +fazendo caducar, recorria ao passado, como que procurando nos archivos +da historia o elixir para se rejuvenescer; isto é, estudando nas antigas +sociedades as fórmas governativas, que mais lhe quadrariam sob a +revolução que se preparava. + +Quando, em nossos dias, a applicação do vapor á locomoção e ás machinas +industriaes, bem como a telegraphia electrica, pondo em facil e rapida +communicação todos os povos do globo, estabeleceram novas condições de +existencia social, que hão de operar forçosamente, em maior ou menor +espaço de tempo, uma transformação completa, não só no modo de viver, +mas tambem na organisação da sociedade; quando a attenção dos homens +pensadores começava a fixar-se na grande revolução prevista, e a meditar +nos difficeis problemas que ella em breve deveria offerecer á resolução +dos philosophos e dos estadistas; quando a attenção geral dos povos, +desapegada das tradições do passado, se absorvia inteiramente na +contemplação do presente, admirando as maravilhas do progresso, anciando +saciar-se dos gosos, que elle gera com mão fecunda e prodiga, o romance, +deixando tambem em repouso os archivos da historia, começou a +inspirar-se nas scenas da vida actual. E ao passo que retratava a +sociedade, dando colorido e relevo a cada uma das suas feições, lançava +á arena da discussão as novas e grandes questões sociaes. + +Porém, partindo do mesmo ponto, movidos por egual impulso, os +romancistas contemporaneos, que se dedicaram a descrever os costumes e +praticas da actualidade, dividiram-se em duas turmas, seguindo caminho +differente. Uns, impellidos por uma idêa elevada e generosa, pintaram +com côres negras, mas verdadeiras, todas as angustias e miserias da +sociedade moderna, estudando-lhes as causas, apontando os perigos +futuros, fazendo avultar os defeitos e defficiencias das instituições; +chamando, em fim, a solicitude dos poderes publicos para o horrivel +cancro, que vae corroendo o corpo social. Á frente d'estes illustrados +romancistas colocára-se Eugenio Sue. + +Infelizmente, muitos discipulos d'esta eschola, esquecendo ou +despresando os intuitos philosophicos do mestre, trataram sómente de +deleitar; e reconhecendo as tendencias do seculo para os gosos sensuaes, +e para os grandes sobresaltos do espirito e do coração, puzeram em acção +todas as paixões violentas, e todos os instinctos ferozes da humanidade. +Compozeram d'est'arte, é bem certo, quadros grandiosos, cheios de vida e +de animação, scintilantes de fogo e de energia, em que se succedem uns +aos outros os episodios dramaticos, e as scenas tragicas. Mas, atravez +das galas da poesia, com que os adornaram, e sob o brilho seductor dos +ouropeis com que se esforçam por atenuar, senão santificar, a hidiondez +de torpezas e devassidões repugnantes, transparece o virus da corrupção +da alma, ministrado em taça de ouro á mocidade inexperiente e ávida de +commoções fortes. + +A outra turma de romancistas tem trilhado mais nobre senda, no +desempenho de uma missão civilisadora e santa. + +Os seus romances não deslumbrarão, talvez, o espirito com o esplendor +das imagens; não o sobresaltarão com a rapida successão de casos +extraordinarios; não subjugam a razão, nem expõem o coração a contínuo +tremor com o longo encadeamento de commoções violentas. + +Como o prado, que, sob o sol da primavera, se veste de verdores, que vae +matisando pouco a pouco de flores singelas, mas rescendendo de suaves +aromas, resplandecentes e encantadoras pela viveza e variedade das +côres; e que no inverno troca as alegrias em tristezas, as galas em +miseria, para outra vez folgar e enriquecer-se sob o novo sceptro de +Flora; assim nas producções d'estes romancistas alternam-se as scenas +meigas e suaves da familia com os tristes acasos da sorte, com as +tribulações da desventura, emfim, com as tempestades da vida. N'estes +quadros avultam tambem os contrastes, como na natureza; os toques de luz +e de sombra, colhidos nas vicissitudes da fortuna e no tumultuar das +paixões. Figuram ahi alguns dos vicios e crimes, que são no mundo moral +a imagem das forças destruidoras no mundo physico. Mas apresentam-se, +não com o semblante vellado, embora por véo transparente, que mal deixa +distinguir-lhes a fealdade; não com as feições embellesadas e +disfarçadas com arrebiques e louçainhas, que fascinem e lhes conciliem +as sympathias das almas ingenuas e credulas, mas sim taes quaes são, na +sua completa nudez, em toda a sua asquerosa deformidade. + +Finalmente, d'esta lucta entre o bem e o mal, figurada n'estes romances, +sáe a virtude ou o arrependimento coroado pela felicidade, e o crime ou +o vicio punido pela justiça dos homens, ou pela de Deos, que dos +proprios vicios e crimes fez gerar o castigo que os pune na terra. + +A esta turma de romancistas, a que pertence a eschola allemã, veiu +associar-se uma outra, ainda mais singela e modesta, talvez, mas tambem +guiada pelo mesmo impulso generoso de deleitar, moralisando. Compõe-se +esta de um certo numero de auctores de contos e tradições populares, +entre os quaes occupa logar de honra D. Antonio de Trueba. + + +V + +Nascido na Biscaya em 1821, uma das provincias da romantica e +cavalleirosa Hespanha, tão original no curso e transformações do seu +longo viver; nascido na Biscaya, repetimos, onde se tem conservado mais +arraigado o respeito ás tradições do passado, o amor aos antigos fóros +populares, e o apego aos velhos costumes, D. Antonio de Trueba não podia +eximir-se a essa triplice e poderosa influencia. Bebendo com o leite +aquelle respeito; bafejado desde o berço por aquelle amor; preso +áquelles costumes pelas mais doces recordações da infancia, o seu +espirito difficilmente poderia deixar de revoltar-se contra o progresso, +que tudo nivela, abatendo o que era grande, e exaltando o que era +humilde; contra as idêas do seculo, que mofam das crenças do passado; +que despojam de poesia as tradições; que parecem tender a materialisar a +vida á força de commodidades e gosos, creados para deleite dos sentidos. + +Resuscitando, pois, as tradições das antigas eras, empenhou-se em fazer +reviver, com todo o brilho d'outr'ora, as santas crenças de seus maiores. + +Pondo em parallelo, em alguns dos seus contos populares, os costumes da +velha sociedade com os que se vão modificando e surgindo no meio do +desenvolvimento do espirito humano, insurge-se, é certo, contra o +progresso, e, apontando para a corrupção que elle gera e alimenta, deixa +expandir-se a sua indignação. + +Mas, quando se pensa em que o auctor d'esses contos e tradições foi +creado no remanso e singeleza da vida campestre; quando se considera em +que os dias da infancia e da adolescencia se lhe deslisaram tranquillos +e alegres no seio da familia, sem que viessem perturbar-lhe o repouso, +desvairar-lhe as idêas e corromper-lhe o coração, o bulicio das cidades, +o tumultuar das paixões e a seducção dos vicios; quando se reflecte em +que os verdores, e as suaves harmonias, e os contrastes pittorescos do +seu valle natal lhe infundiram n'alma a doce poesia da natureza; e que +os carinhos e maximas moraes de uma extremosa mãe e virtuosa perceptora +lhe fizeram o espirito meigo, franco, recto e eminentemente religioso; +quando se attenta em tudo isto, comprehende-se, acha-se natural, e +desculpa-se aquella insurreição contra os progressos do seculo. + +Qual mimosa sensitiva, que se contráe e desfallece ao simples contacto +da mão indiscreta ou bemfazeja, como se a ferisse duro e traiçoeiro +golpe; assim Trueba se confrangiu logo que, transpondo as montanhas do +seu pacifico valle, e achando-se de improviso face a face com a +sociedade, que desconhecia, viu, como que offuscando o brilho das +grandes idêas do progresso, os sentimentos nobres e patrioticos, e as +aspirações elevadas e generosas do coração humano, luctando por toda a +parte, e quasi sempre vencidas pela ambição do poder e das honras, pela +cubiça do ouro, pela sêde dos gosos e dos prazeres, pela fortuna dos +mais atrevidos, e pela inveja dos menos felizes. Irritou-se, vendo as +conveniencias partidarias e individuaes supplantarem muitas vezes o +interesse publico; vendo as leis severas e inexoraveis para com os +fracos e desvalidos, e frouxas e flexiveis para com os poderosos ou +protegidos; vendo elevaram-se homens, que a falta de merito condemnava á +obscuridade, emquanto ficavam esquecidos e occultos, nas sombras da +modestia e da humildade, muitos cidadãos dos mais prestantes; ouvindo +apregoar maximas e alardear virtudes e serviços, que os exemplos e os +factos desmentiam; indignou-se, reconhecendo no curso da civilisação as +tendencias do seculo para converter nos gelos da descrença e do egoismo +o ardor da fé, a luz benefica da esperança, o fogo santo da abnegação, +do amor do proximo e da patria! + +Na confrontação do presente com o passado o seu juizo não podia deixar +de ser desfavoravel ao primeiro, porque tudo o que via e ouvia, +annuviando-lhe os verdadeiros resplendores do progresso, contrariava as +suas idêas e os seus habitos, e derrocava pela base os poeticos e +formosos castellos, que phantaseara nos sonhos dourados da adolescencia. + +E a sua rapida passagem da estreiteza de apertado valle, segregado por +assim dizer, do resto da Hespanha, para a amplidão dos grandes centros +industriaes, para o seio da turbulenta e voluptuosa Madrid, +offuscando-lhe a vista, como se sahira de improviso das trevas para a +claridade, forçosamente lhe havia de obstar a que visse n'essa anarchia +das ideias, n'esse desenfreamento das paixões, n'essa relaxação dos +costumes, emfim, n'essa corrupção moral, que tanto o escandalisavam, as +consequencias naturaes da grande e inevitavel revolução social, que +estamos presenceando. + +Não lhe deixaria attentar em que este acontecimento é o resultado dos +maravilhosos descobrimentos do seculo XIX, os quaes acabando com as +distancias, pondo em intimas e faceis relações todos os povos do globo, +e na presença uns dos outros todos os cultos religiosos, as locubrações +dos sabios de todo o mundo, todos os productos da terra e da industria +humana, haviam de produzir, por effeito de uma força irresistivel, o +duro embate das velhas idêas e dos interesses á sombra d'ellas creados, +com as idêas e interesses, que os progressos humanitarios iam gerando e +desenvolvendo. Não lhe permittiria reconhecer que d'aquelle embate havia +de nascer a lucta a todo o transe; da lucta o exacerbamento das paixões; +d'estas o affrouxamento dos vinculos sociaes e dos proprios laços de +familia; e de tudo isto a desordem nas idêas e a corrupção geral nos +costumes. + +É este o triste apanagio das revoluções, que tendem, não a derrubar um +throno, ou a mudar uma ou outra instituição, mas sim a assentar em bases +inteiramente novas o edificio social. A nossa época é, infelizmente, um +d'esses periodos de desmoronamento, e por conseguinte de transição, que +apparecem de seculos a seculos na historia geral das nações, como +gigantescos e temerosos marcos, erguidos no caminho por onde a +Providencia impelle a humanidade, para assignalarem e separarem as +grandes phases da civilisação. + +Portanto essa condemnação dos progressos do seculo, que apparece em +alguns dos contos de Trueba, em rasão dos motivos que lhe dão origem, +não deslustra, antes pelo contrario honra o seu coração bondoso e o seu +caracter justo e leal. Mas se alguem, mais severo, ou menos attento ao +que expendi em seu abono, quizer lançar-lhe em rosto as suas opiniões +reaccionarias, leve-lhe em conta a belleza dos quadros que traça com +suavissimo pincel; a singelesa e elegancia do estylo, com que dá relevo +e vida ás meigas scenas de familia e aos risonhos paineis da natureza, +e, finalmente, a moralidade que ressumbra de todas as paginas dos seus +livros. + + +VI + +D'este juizo das obras de Trueba, que se me affigura imparcial, deduz-se +naturalmente um pensamento de louvor a quem promove entre nós a +vulgarisação d'estas boas producções. Em uma quadra, como esta, em que a +litteratura portugueza está sendo a todo o momento, não enriquecida, mas +sim invadida por traducções de romances que, na maior parte dos casos, +não a honram pela pureza da linguagem, e a desauthorisam pela +licenciosidade dos costumes, que põem em seductora exposição; presta o +traductor um bom serviço ás letras e á moral publica. + +Auctores como Trueba illustram e ennobrecem a litteratura que os adopta +e perfilha. Livros, como os seus, podem ser offerecidos á mocidade por +leaes conselheiros e guias seguros nos escabrosos caminhos da vida. + +Na versão prestou o traductor verdadeiro culto aos preceitos e +exigencias da lingua materna, conservando aos pensamentos e ás imagens +originaes toda a sua elevação e vigor, todo o seu brilho e poesia. + +A litteratura hespanhola é tão rica e variada em todos os ramos do saber +humano, quão mal conhecida, infelizmente, em o nosso paiz, n'estes +tempos modernos. Desde o principio d'este seculo temo-nos quasi +restringido a cultivar a litteratura franceza, dedicando-lhe a nossa +exclusiva admiração, em prejuizo de outras não menos opulentas e +brilhantes. Por conseguinte tambem por este lado o distincto traductor +dos contos de Trueba bemmerece dos seus concidadãos. O seu talento, já +provado nas lides de escriptor publico, apresenta agora n'este ensaio a +amostra do que vale no difficil genero, que encetou; difficilimo, sem +duvida, quando se quer verter em linguagem de lei os pensamentos de +auctor estranho com toda a belleza e vigor da inspiração original. + + I. DE VILHENA BARBOSA. + + + + +CONTOS DE TRUEBA + + + + +NOSTALGIA--O MADEIRO DA FORCA--A NECESSIDADE--A PORTARIA DO CEU--O +PRESTE JOÃO DAS INDIAS + + + + +NOSTALGIA + + +I + +Mães que tendes filhos e que fundaes a sua felicidade e a vossa em +mandal-os para Madrid ou para a America; lêde este conto, que para vós o +escrevo. + +Não penseis que é invenção minha o que vou narrar-vos; começa esta +historia no dia 10 de novembro de 1836, época em que Madrid era, _peor_ +e _melhor_ do que hoje. Quem não entender o que deixo dito lembre-se do +que succede com a baixella de prata, que, quanto mais a esfregam, mais +brilha e menos peza. + +Havia em Madrid um frio intensissimo: nevára na véspera, e antes que a +neve tivesse tido tempo de derreter nas ruas, sobreviera uma geada +fortissima, o que junto ao vento de Madrid, que mata um homem e não +apaga um _candil_, dava á temperatura d'aquella heroica cidade o +caracter e a temperatura da Siberia. + +D. João Quijano, rico banqueiro que morava na rua de Toledo, estava no +seu escriptorio, situado nos baixos da casa, com seu sobrinho D. Lucas, +e n'uma sala contigua trabalhavam em silencio, sentados ás suas +carteiras, dois caixeiros encarregados da contabilidade e da +correspondencia. O gabinete do banqueiro tinha um postigo com vidraça +que dava para o escriptorio geral, e pelo qual o tio e o sobrinho +espreitavam amiudadas vezes, no intuito de se certificarem se os +caixeiros cumpriam as suas obrigações; phrase de que D. Lucas se servia +para os fazer trabalhar, quando os ouvia fallar em cousas alheias aos +assumptos commerciaes da casa. + +D. João era homem de cincoenta annos, pouco mais ou menos, córado, +robusto, de nariz grande e cabelleira tão bem arranjada e composta, que +os proprios caixeiros não teriam dado por ella, se não fôra o genio de +sua mulher D. Joanna, que, nos seus accessos de cólera, lh'o lançava em +rosto, chamando-lhe «tio _cabelleira_». + +D. Lucas devia ter os seus vinte oito a trinta annos; era pouco mais +alto que um cão sentado, e nem a sua phisionomia, nem as suas palavras +revelavam talento ou bondade de coração. Não obstante isso tolerava-lhe +o tio os defeitos, e até sentia estima por elle, não só por ser +empregado antigo da casa, mas tambem porque podia dizer-se que era D. +Lucas quem carregava com todo o peso do estabelecimento. + +--Veja lá, tio, disse D. Lucas a D. João, levantando os olhos para um +relogio, que estava collocado na parede, em frente da escrevaninha do +banqueiro,--se tem de ir á Bolsa, não se descuide que são quasi duas horas. + +--Parece-me que não vou lá hoje, respondeu D. João; quem ha de saír de +casa por um tempo d'estes? A vida é curta, e se eu morrer... tocam os +sinos a defuncto, e está tudo acabado... Demais deve estar por ahi a +chegar o pequeno e tenho desejos de o vêr. Recebi pelo correio uma carta +de meu irmão Martinho, na qual este me diz que o rapaz saíu de lá no +primeiro do mez, na carroça de Chomin, e segundo o meu calculo, temol-o +por ahi hoje. Talvez não fosse mau mandar o Toribio á estalagem. + +--Não sei para que; quando elle chegar, cá virá ter. + +--O pobre pequeno deve vir tolhido de frio. + +--Não lhe dê isso cuidado; não inspira compaixão quem vem como elle para +Madrid, comer bom pão e boa carne, em vez de comer brôa e batatas n'uma +aldeia da Biscaya. + +--Pois apesar d'isso estou bem certo de que preferiria encontrar hoje, +ao apear-se da carroça, a cosinha de seus pães, com a sua priguiceira e +um bom fogo de rama de pinheiro, a entrar n'esta habitação ricamente +mobilada e com chaminé á franceza. + +--Parece-lhe que o empreguemos em compras e recados? + +--Não foi essa por certo a ideia de seus paes quando resolveram mandal-o +para Madrid. É preciso collocal-o no escriptorio a fim de que, pouco a +pouco, se vá instruindo e orientando no negocio. + +--Pouco a pouco! Verá como antes de um mez o faço saber mais do que +Merlin. _A letra com sangue entra_... + +--Não concordo comtigo, Lucas. Toma conta, não lhe ponhas sequer a mão; +não quero que aconteça com este o que aconteceu com outros, que á força +de maus tratos, os entonteceste, e tive que os mandar para a terra... + +Dispunha-se D. Lucas a tomar a defesa do seu barbaro systema d'educação, +quando tocou a campainha;--calaram-se de subito, tio e sobrinho, +applicando o ouvido na direcção do portal. + +--Elle ahi está! exclamaram ambos a um tempo, ao ouvirem no patamar a +voz do pequeno que saudava o creado que fôra abrir-lhe a porta. + +--Senhor, disse este com sorriso d'escarneo, apparecendo á entrada do +escriptorio, está aqui Chomin com o _rocim-chegado_. + +D. João franziu as sobrancelhas como descontente de que o creado se +atrevesse a proferir o estupido equivoco que vae escripto em italico, ao +passo que o sobrinho soltou uma estrondosa gargalhada em honra da graça +de Toribio, que era um asturiano tonto com pretenções a faceto: + +--Que entrem, respondeu D. João. + +Com effeito Chomin, que era um dos recoveiros das provincias +Vascongadas, entrou no escriptorio, acompanhado d'um menino de doze a +treze annos. + + +II + +Não se tinha enganado D. João, suppondo que a pobre creança chegaria +gelada. + +Angelo (era assim que se chamava o novo caixeiro dos snrs. Quijano e +Sobrinho) estava a tiritar com frio; tinha as mãos e a cara lividas e os +seus olhos indicavam que, na noite antecedente, em vez de se terem +fechado para o somno, se tinham aberto para o pranto. O pobre rapazinho +parou á porta do escriptorio, com o chapéu na mão, de cabeça baixa, e +mal pôde articular um cumprimento. + +--Ora aqui o tem, disse Chomin, depois das saudações do estylo. Desde +que saímos da aldeia, ainda não cessou de chorar com saudades das suas +vaccas e das suas cabras. + +--Pobre pequeno! exclamou D. João, afagando Angelo. + +--Deixe lá, atalhou o almocreve, que o pão trigo de Madrid faz esquecer +de prompto a brôa de Biscaya. Bem diz o provérbio que «_de Madrid só +para o céo_». + +D. João acercou-se de Angelo, e disse-lhe, correndo-lhe a mão pela cabeça: + +--Vamos, homem, então, que tal achas Madrid? Parece-te melhor que a tua +aldeia? + +--Não, senhor, respondeu o pequeno com os olhos arrasados de lagrimas. + +--Dizes bem, dizes! exclamou D. João, pondo-se a rir e fazendo uma nova +caricia ao rapazinho. Devem ser assim os homens; a melhor terra é sempre +aquella que nos viu nascer. + +--Sim, sim, ria-se tio, disse D. Lucas, fazendo um gesto de enfado; +ria-se da sandice d'esse bruto. Não ha duvida, o rapaz promette! Mas +deixa estar que caíste em mãos de quem te sabe ensinar! + +--Não se afflija, snr. D. Lucas; o _rapazelho_ põe-se fino com um bom +par de açoites todos os dias. + +--Isso fica por minha conta, respondeu D. Lucas. + +--Valha-me Deus; não sejam assim, replicou o banqueiro; que admira que o +pequeno tenha saudades de seus paes, se nunca se separou d'elles? E +accrescentou, dirigindo-se a Angelo: deves trazer vontade de comer? + +--Não, senhor, respondeu o menino, lavado em lagrimas. + +--Não chores, disse D. João; chega-te para o lume e aquece-te, emquanto +não chamam para o jantar, e logo tomarás conta do teu serviço e verás +como antes de um anno te tornas um verdadeiro negociante. + +O pequeno approximou-se da chaminé com o chapéu na mão; mas como o +cegavam as lagrimas, tropeçou n'uma cadeira e lançou por terra uns +papeis que estavam sobre ella. + +--Desastrado! não vês por onde andas? exclamou D. Lucas, agarrando-lhe +n'um braço e sacudindo-o com violencia. + +De repente effectuou-se no animo do menino uma reacção inesperada. Elle +que, um momento antes, mal se atrevia a levantar os olhos, ou a +pronunciar uma palavra, ergueu a fronte com altivez, e virando-se para +D. Lucas, disse-lhe: + +--Expulse-se-me de sua casa, mas não me maltrate. Aqui maltratam-me, +emquanto na minha aldeia me choram. Como quer então o senhor que eu +goste mais d'esta terra do que da minha?! E accrescentou, dirigindo-se +ao almocreve: + +--Já não quero aqui ficar; volto comsigo para a Biscaya. + +Estas palavras, bem longe de commoverem D. Lucas e o almocreve, fizeram +rir este e encolerisar aquelle, que murmurou, levantando o punho fechado +sobre a cabeça da creança: + +--Se fosses meu filho abria-te a cabeça com um murro! + +D. João, porém, saíu em defeza do pobre rapaz, arredando d'elle com +violencia seu sobrinho, e exclamando: + +--Lucas, já te disse que não consinto que lhe ponhas a mão. Se o achas +rude e acanhado, se está commovido e saudoso, recorda-te de como eras +tambem, e do modo como te apresentaste quanto vieste para Madrid. E +Vm.^ce, snr. carroceiro, fique sabendo que não se tratam os racionaes +como as mulas. + +--Não faça caso, snr. D. João; isto em mim não passa de um gracejo, e +senão elle que diga a maneira como eu o tratei pelo caminho. + +--Carregando-me de lenços de contrabando! O que me valeu foi não me +revistarem á entrada das portas; do contrario estaria a estas horas na +cadeia! + +--Não está mau modo de cuidar da innocente creança, que foi confiada á +sua guarda! exclamou D. João, olhando com indignação para o almocreve. +Retire-se já da minha presença, que me estão dando tentações de dar uma +parte de si á policia. + +--Ora, snr. D. João!... Então o senhor faz caso do que dizem creanças? + +--Já lhe disse que se retire da minha presença. + +--Está bem, snr. D. João; mas... + +--Não ha aqui mas, nem meio mas. Tenho dito, ponha-se no andar da rua. + +O carroceiro não se atreveu a replicar e retirou-se murmurando não sei +que insolencia. + +D. João arrastou uma cadeira para junto do fogão, e sentou-se ao lado de +Angelo que tinha cessado de chorar. O pobre pequeno estava já um tanto +mais satisfeito por ver que nem todos n'aquella casa o tratavam com +aspereza, e que se havia ali quem o maltratasse, tambem tinha quem o +defendesse e lhe proporcionasse consolações e affagos, que lhe faziam +lembrar os que deixára no lar domestico. + +D. Lucas despeitado por vêr que o tio tomava as dôres pelo +recem-chegado, a ponto de o reprehender a elle pela sua falta de +humanidade, tinha-se retirado para o escriptorio, e por conseguinte +ficaram sós, Angelo e D. João. + +Era este natural da aldeia do pequeno, e posto tivesse ido para a côrte +de tenra edade, e absorvessem de ordinario todos os seus pensamentos e +acções os assumptos commerciaes, nem por isso havia renegado o paiz +natal, nem esquecido os seus parentes. + +--Vamos, Angelo, disse elle ao rapazinho com modo carinhoso, dando-lhe +uma palmada no hombro; conversemos um bocado ácerca da nossa aldeia; +venham de lá algumas noticias frescas d'aquella boa gente. Então de quem +te despediste tu antes de partir? + +--Despedi-me de todos os meus parentes e vizinhos. + +--Muito bem! N'esse caso havias de vêr meu irmão, não é verdade? + +--Sim, senhor, recommendou-me que lhe désse muitas lembranças, e bem +assim á senhora D. Joanna, e a D. Lucas... mas a este é que eu as não dou. + +--Não sei porque não, filho. + +--Porque me trata muito mal. + +--Não faças caso, homem. Com que então deram-te lembranças para mim? + +--Sim, senhor, e especialmente o snr. abbade. + +--Deve estar muito velho, o bom do padre! coitado! + +--Não, senhor; se o visse andar por aquelles montes ficava admirado. +Ninguem dirá que tem mais de quarenta annos. Como não ha, lá na aldeia, +quem não reze a Deus todos os dias para que lhe dê saude, não tem nem +uma dôr de cabeça. + +O colloquio de D. João e Angelo, interessantissimo para ambos elles, foi +interrompido logo em começo pela entrada do asturiano, que tinha chamado +ao menino _rocim-chegado_. + +--Senhor, disse o creado, manda dizer a senhora que está a _mesa na sôpa_. + +O banqueiro riu-se d'esta troca de palavras e encaminhou-se para o +primeiro andar. + + +III + +Não estava a mesa na sôpa, mas estava a sôpa na mesa, e D. Joanna, a +esposa de Quijano, aguardava com impaciencia a chegada do marido, não +porque tivesse o estomago vazio, mas sim porque o seu caracter irascivel +e dominador não supportava que a fizessem esperar. + +D. Joanna, que entrára como creada e acabára por ser ama em casa de D. +João Quijano, tinha o relogio atrazado, pois assegurava ter trinta +annos, ao passo que a sua physionomia, e o que ainda é mais, a certidão +do baptismo, lhe davam quarenta. + +Deter-me-hei pouco na descripção dos seus dotes physicos; direi apenas +que as creadas, que despedia todas as semanas, a mimoseavam, ao descerem +pela ultima vez as escadas, com os epithetos de: _dentes de cavallo_, +_estafermo_, e _olhos de gato_. + +Quanto ao moral era D. Joanna a personificação da antithese; +alternavam-se n'ella a vaidade e a modestia, a avareza e a liberalidade, +a crueldade e a compaixão, a elegancia e a falta de gosto no vestir. + +Se um dia fazia gala, em uma reunião de pessoas distinctas, de não ter +gasto até a edade de quatorze annos, outro calçado que não fosse o do +seu _proprio coiro_, despedia, no dia seguinte, uma creada por a pobre +rapariga pedir, na sua innocencia, ao carteiro, que lhe lêsse uma carta +do seu noivo, por isso que sua ama não sabia lêr; agora despedia um +mendigo com a seguinte blasphemia: «Vá pedir a S. Bernardino», que na +bôca dos que podem e não querem dar, substitue a _supplica_--«queira +perdoar, irmãosinho, não póde ser agora»--que costumam usar os que +querem e não podem; e logo, sabendo que qualquer vizinho estava doente e +precisado de meios, era muito capaz de lhe mandar uma boa esmola. Pela +manhã dava uma _tarêa_ ao cão por este ter mordido o gato, e de tarde +dava outra ao gato por ter arranhado o cão; na quarta feira ia passear +ao Prado, de vestido de velludo, e na quinta apresentava-se no mesmo +sitio de vestido de chita. + +Se sou tão minucioso e até prolixo, é porque não quero que alguem +critique e censure no pintor as inconsequencias do original. + +D. Joanna dominava por tal arte o marido, que a vontade d'elle estava +sempre subordinada á sua. D. João tremia diante d'um gesto ameaçador da +mulher, e por mais d'uma vez teve ella um accesso medonho de cólera só +porque o honrado banqueiro entrou em casa ás dez horas em vez de se +recolher ás nove. + +--Ora, com effeito, disse D. Joanna, quando D. João entrou na sala do +jantar, já julgava que seria preciso metter-lhe empenhos, e dirigir-lhe +algum requerimento para que o senhor se resolvesse a vir jantar. Se se +persuade que eu estou para aturar as suas grosserias, está muito enganado. + +--Sempre tens muito mau genio, Joanninha! disse o banqueiro, esfregando +as mãos e com um sorriso affavel nos labios. + +Sentou-se D. João á mesa, encheu um prato de sopa e passou-o a sua +mulher; esta porém empurrou-o com tal violencia, que todo o seu conteúdo +se entornou na toalha. + +--Tambem tenho mãos para me servir. + +--Como gostares mais, Joanninha, disse D. João humildemente. + +Principiaram a jantar, e por mais que o banqueiro dirigisse a palavra a +sua mulher, em tom agradavel e risonho, não foi possivel quebrar-lhe o +silencio. + +Por fim resolveu-se D. Joanna a fallar, perguntando ao marido: + +--Então que negocios tão importantes foram esses que o obrigaram a +deixar-me esperar por si meia hora? + +--Meia hora! Não sei como não disseste uma, filha! + +--Faça o favor de me não contradizer! exclamou D. Joanna, com um gesto +terrivel. Eu fallo mais verdade do que você e toda a sua geração. + +--Então! Não vale a pena alterares-te por tão pouco! A dizer a verdade, +nem por isso eram lá muito grandes os negocios que me prendiam;--estava +conversando com o pequeno. + +--Com que pequeno? + +--Com Angelo. + +--Pois elle já chegou? + +--Chegou, sim. Ainda o não sabias? + +--Não, senhor, ninguem me disse nada. N'esta casa sou eu sempre a +_ultima palavra do credo_... Pois não devia ser assim, e d'hoje para o +futuro, eu lhe protesto que não tornará a acontecer uma coisa d'estas, +porque, no fim de contas, eu é que sou a dona d'esta casa; entende o +senhor? + +E dizendo isto, D. Joanna atirou o trinchador com tal furia, que fez um +prato em pedaços. + +--Oh! menina!... por quem és, Joanninha. + +--Deixe-me... não me diga uma palavra, quando não... + +O banqueiro fez um movimento para traz, porque a mulher tinha pegado +n'uma faca e agitava-a convulsivamente. + +A final o silencio e a humildade do marido desarmaram aquella megera. + +--Então, quando veiu o pequeno? perguntou ella. + +--Haviam de ser duas horas, filhinha; eu suppunha que o creado t'o teria +dito. + +--Não me disse nada. Aquelle Toribio é um bruto, que ha de ir hoje mesmo +para o meio da rua. E que me diz tambem ao mono do rapaz, que não soube +subir para me vir cumprimentar?! + +--Bem vês que elle, coitado, não sabe... + +--Pois tem obrigação de saber que sou eu a dona d'esta casa. + +--Em primeiro logar o pobre pequeno chegou meio morto de frio, e depois +aquelle excommungado de Lucas começou a embirrar com elle, de modo que a +creança ficou logo sem saber de que freguezia era. + +--Eu me encarrego de o pôr fino com umas correias que alí tenho. + +--Não digas isso, Joanninha; para o pôr fino, como tu dizes, requerem-se +carinhos e não correias. Já disse a Lucas, que comigo tem de se haver, +se lhe puzer a mão. A ti não é preciso repetir a mesma coisa, porque +tens melhor coração do que o meu sobrinho, e estou até convencido de que +has de ser para Angelo uma segunda mãe. Afianço-te que está morto por te +vêr; a primeira coisa que fez, quando chegou, foi perguntar por ti. + +Esta mentira do banqueiro foi o bastante para reconciliar Angelo com D. +Joanna, que disse: + +--Mas o que faz essa creatura no escriptorio? Porque o não mandaste +subir, logo que chegou, para tomar alguma coisa? Provavelmente está +ainda em jejum, molhado, cheio de frio... + +--Nada, não, elle disse-me que não tinha vontade de comer; e quanto a +aquecer-se, está no meu gabinete, sentado ao fogão. + +--E porque foi, então, que Lucas o tratou mal? + +--Que queres? coisas d'elle! Por ter dito que gostava mais da sua terra +do que de Madrid. + +--Santo Deus! Pois isso era motivo para ralhar com a creança? Aqui estou +eu a quem, graças a Deus, não falta nada, e no entanto, morro pela minha +aldeia...--Toribio! accrescentou D. Joanna, chamando pelo creado dos +trocadilhos, dize ao rapazinho, que está no gabinete do senhor, que suba. + +--Quem, o _rocim-chegado_? perguntou o asturiano com um sorriso malicioso. + +--Atrevido! exclamaram, a um tempo, D. Joanna e o banqueiro; se tornares +a divertir-te á custa d'Angelo, vaes immediatamente para o andar da rua. + +O asturiano baixou a cabeça, pouco satisfeito com o exito do seu +gracejo, e um instante depois subia com o pequeno. + +Angelo saudou D. Joanna com bastante desembaraço, e depois que ella lhe +chegou um prato de bolos, acabou de perder todo o seu acanhamento, e +respondeu com vivacidade ás mil perguntas que por largo espaço de tempo +lhe dirigiram os dois esposos. + +--Tens muitas saudades de tua mãe? lhe perguntou D. Joanna. + +--Muitissimas, respondeu o pequeno. + +--Pois, se fôres bom rapaz, hei-de estimar-te e cuidar tanto de ti, como +se fôra ella propria. + +--Muito obrigado, minha senhora!... disse o menino; e arrazaram-se-lhe +os olhos de lagrimas... lagrimas d'alegria e de agradecimento. + +O banqueiro e sua mulher levantaram-se da mesa. + +--Deixa-te estar aqui, filho, disse D. Joanna a Angelo; espera que vaes +tu agora tambem comer e os teus companheiros. + + +IV + +Pouco depois entraram na sala do jantar D. Lucas e os caixeiros e +sentaram-se á mesa. Angelo porém conservou-se n'um canto, de cabeça +baixa, receioso, e sem se atrever a levantar os olhos para D. Lucas. + +--Chega-te para a mesa, selvagem, disse-lhe o sobrinho de Quijano. +Parece-me que seria melhor ires outra vez guardar cabras lá para a tua +terra. + +Alegrou-se o menino e sentiu-se ao mesmo tempo ferido no coração, ao +ouvir estas palavras; regosijou-o a lembrança de voltar para a sua +aldeia e enluctou-se-lhe a alma com o novo insulto que acabava de lhe +ser dirigido. + +Approximou-se timidamente da mesa, mas não se chegou tanto, como devia, +segundo a opinião de D. Lucas; este dando-lhe um murro nas costas exclamou: + +--Chega-te mais, bruto! A culpa tem quem não deixa ficar estes animaes a +pastar no campo, ou os não faz comer, quando muito, n'uma manjadoura em +logar de mesa! + +Todos os caixeiros do banqueiro desataram a rir em honra do chiste de D. +Lucas. + +O pobre Angelo derramava entretanto uma torrente de lagrimas, e +comparava as caricias da sua familia com aquellas offensas barbaras e +grosseiras. + +--Então, comes ou não comes? perguntou D. Lucas. + +--Não tenho vontade, respondeu Angelo. + +--Tanto melhor; d'esse modo não corres perigo de agarrar alguma +indigestão, e hão de abater essas bochechas de _frade Bernardo_. + +Por unica resposta continuou Angelo a chorar e a suspirar pelos paes, +pelos irmãos, pelos seus companheiros d'infancia e pelas queridas +montanhas de Biscaya, onde até ali tinha vivido tão livre, tão estimado +de todos e tão feliz! + +E os caixeiros de Quijano a escarnecerem-n'o, a rirem-se d'elle, sem a +mais leve sombra de compaixão, como se a pobre creança fosse um corpo +sem alma, como se a considerassem sem coração para sentir! + +É na verdade uma coisa que indigna e irrita as pessoas sensiveis, e que +até revolta o animo, a falta d'humanidade com que são, de ordinario, +tratados nos grandes centros, e particularmente em Madrid, os rapazes +que para ali são mandados das aldeias! + +Chega uma pobre creança, que nunca saíu do seio da sua familia, onde, se +a não cercavam riquezas e commodidades, lhe sobravam carinhos e ternos +cuidados; chega ordinariamente cheia de frio, extenuada de fadiga, +muitas vezes até com fome, e sempre saudosa e triste, e em logar de a +confortarem e de lhe proporcionarem carinhos, de que necessita então +mais do que nunca, todos a escarnecem, todos zombam da sua innocencia e +da sua humildade, das suas lagrimas e da sua linguagem. + +Ai! não accuseis o auctor d'este livro de se entregar a falsas +declamações; a justificação d'essas palavras conserva-a elle impressa na +sua memoria propensa a recordar, e no intimo do seu coração sempre +disposto a perdoar, para nunca mais saír d'ali. + +Durante a primeira tarde, que passou em casa de D. João Quijano, foi +Angelo victima da selvageria, que estou condemnando. Abusaram +indignamente da sua natural simplicidade e prudencia, obrigando-o a +praticar um certo numero de coisas, que repugna enumerar; por ultimo +fizeram-n'o persuadir de que todas as pessoas que entravam pela primeira +vez em Madrid, careciam de ser pesadas a fim de pagarem uns certos +direitos proporcionaes ao peso que tivessem. + +Puzeram-n'o em cima d'uma balança, e ali o conservaram por tanto tempo, +que a pobre creança já tinha o corpo quasi desconjuntado; quando +terminou aquella experiencia de martyrio, que faz lembrar os tormentos +inventados por Diocleciano e Torquemada, teve elle de soffrer outro +talvez mais doloroso ainda, qual o das mofas e zombarias dos seus +verdugos, que desapiedadamente lhe retalhavam o coração! + +E os caixeiros do banqueiro, homens barbados, que, como taes, estavam +constituidos na obrigação de proteger o fraco e de consolar o triste; +que eram chamados a desempenhar graves e sagrados deveres na sociedade, +mostravam-se contentes com a sua obra, e imaginavam-se, talvez, cheios +de talento e de graça por haverem illudido e martyrisado uma creança, +que, pela primeira vez na sua vida, vertia lagrimas de desespero, longe +de seus paes que a idolatravam, e das queridas montanhas da sua patria! + +Tudo soffreu a pobre creatura em silencio; nem sequer lhe restou o +linitivo de se queixar a D. João dos barbaros tratos de que foi victima; +prohibiram-lh'o os seus verdugos com ameaças que lhe infundiram novo +terror e novo desalento. + + +V + +Dormia toda a familia de Quijano no andar nobre da casa, á excepção do +caixeiro mais moderno e dos cães, que se acommodavam no pavimento +terreo, destinado quasi exclusivamente ao escriptorio e suas dependencias. + +Os dois cães, Moiro e Pomba, dormiam no gabinete do banqueiro, que +estava ricamente mobilado, ao passo que o caixeiro se alojava n'um +quarto pequeno e humido, alumiado apenas por uma especie de fresta ou +gateira aberta na parede, situado n'um patamar constantemente varrido +pelo vento que entrava da rua e pelo que vinha d'um pateo que havia nas +trazeiras da casa; a mobilia d'esse mesquinho aposento consistia toda em +um leito de pinho com colchão, dois lençoes, um cobertor, um travesseiro +e um lanceiro ou cabide tôsco para pendurar o fato e... grandes +cortinados de teias d'aranha pendentes do tecto. + +Em tempo dormia o caixeiro mais moderno (rapaz de tempo) n'um quarto +excellente do andar nobre; D. Lucas porém havia disposto as coisas por +outra fórma, muito antes da época a que me refiro; tinha lá umas ideias +_suas_ d'hygiene, em virtude das quaes dizia que muitas vezes os +caixeiros adoeciam por passarem repentinamente d'uma vida incommoda para +uma vida commoda, d'um colchão duro para um colchão molle, d'um quarto +mau para um quarto bom. + +Quiz o tio oppôr-se áquella estupida innovação, ponderando que o que +fazia adoecer os rapazes que entravam para sua casa não era senão o +pessimo tratamento que recebiam de D. Lucas; este porém, taes argumentos +empregou em defesa da sua theoria, que, para se livrar de polemicas, +teve o pacifico banqueiro de concordar com elle. Os rapazes continuaram +a adoecer, mas D. Lucas afirmava ao tio que tudo aquillo era fingimento +e impostura para que os deixassem dormir no andar de cima, e o bom do +banqueiro, que já não tinha pequena cruz nas teimas e ralhações de sua +mulher, não quiz continuar em divergencia com o sobrinho, e acabou por +admittir o seu barbaro systema penitenciario. + +Patrões e caixeiros ceavam quasi simultaneamente, sendo as sóbras da +mesa dos primeiros servidas aos segundos. D. Lucas comia de ordinario +com estes, excepto porém nos dias sanctificados e á noite, que fazia +companhia aos tios. Não podia o sobrinho do banqueiro tolerar que os +caixeiros fumassem, e não obstante tinha uma paixão desmedida pelo +tabaco; mas diante do tio não era capaz de fumar, e isto explica-se +facilmente. D. Lucas começou a fumar quando, pela sua pouca edade, +carecia para o fazer de occultar-se do banqueiro; e mais tarde, quando +já eram escusadas essas precauções, continuou a matar o vicio ás +occultas, talvez por habito, e talvez tambem por não dar o seu braço a +torcer, por isso que em tempo tinha jurado e tornado a jurar ao tio que +bastava o cheiro do tabaco para o transtornar completamente. + +Erguia-se da mesa, ainda com o bocado na bocca, e entrando na cosinha, +onde comiam os caixeiros, apertando o seu cigarro, que se não atrevia a +accender, com medo de que na sala se presentisse o cheiro, pegava n'um +castiçal e dava a voz de _deitar_ ao _rapaz de tempo_. Achava-se este +ainda em meio da ceia, por isso que os outros lhe levavam sempre um +prato de vantagem, mas D. Lucas estava desesperado por fumar, de maneira +que o pobre rapaz não tinha outro remedio senão levantar-se da mesa, dar +as boas noites a toda a familia, começando pelos caixeiros, e seguir a +D. Lucas, que já pelas escadas abaixo tirava cada fumaça que valia bem +um dobrão. + +Em quanto o pequeno se deitava, alumiado pela vela collocada no +corredor, em frente da porta do quarto, acabava D. Lucas de fumar o seu +cigarro, pegava no castiçal, fazia quatro festas aos cães, deitados n'um +colchãosinho muito fôfo, e em seguida subia as escadas a fim de passar +um bocado da noite na companhia dos donos da casa. + +Se D. João tivesse um hospede e este lhe perguntasse a razão porque o +sobrinho descia ao escriptorio, ainda bem não tinha acabado de cear, +seria esta a resposta do banqueiro: + +--Vae deitar os cães e o pequeno, dar uma vista d'olhos lá por baixo, +vêr se está tudo bem fechado, e demora-se até poder trazer para cima a +luz, porque aqui em Madrid é preciso muito cuidado com os fógos. Como +estes rapazes são em geral muito _dorminhocos_ e Lucas entende que por +nós gostarmos de palestrar o nosso bocado, não se segue que o pequeno +esteja para ahi a turrar com somno, dá-se pressa em o levar para a cama. + +Succedeu a Angelo nem mais nem menos do que aos seus antecessores, com a +differença, porém, de que á pobre creança lhe foi dobradamente mais +custoso deitar-se a meia ração, por isso que todo o dia estivera fazendo +cruzes na bocca, e quando o chamaram para a ceia tinha fome canina. + +Uma pessoa adulta, oppressa pelo peso de tão profundo desgosto como era +o d'elle, teria olhado para a comida com repugnancia, ainda que +estivesse a caír de fraqueza; mas é que uma pobre creança, se acontece +perder o appetite por espaço d'algumas horas, prompto o recupera, por +mais acerbos e cruciantes que sejam os seus desgostos. + +Angelo deitou-se e Dom Lucas despediu-se d'elle do seguinte modo: + +--Ora queira Deus que pela manhã não haja preguiça! Aqui não se trata só +de comer e dormir. Ás seis horas _varrer_ bem o escriptorio. + +Dom Lucas, como temos visto, usava muito d'essa especie de linguagem +impessoal inventada pelos lacaios com o fim de se esquivarem a dar +tratamento. + + +VI + +Angelo, com a solidão do seu aposento, deu-se por compensado da parte da +ceia de que a maldade de D. Lucas o privára. Alí podia sequer chorar +desafogadamente, podia rogar a Deus que o restituisse ás suas montanhas, +invocar o nome de seus paes, e execrar até os seus algozes, sem que uma +gargalhada de despreso, um dito humilhante ou uma pancada fossem +perturbal-o nas suas cogitações. + +Ai! muito chorou a pobre creança, n'aquella noite! + +--Como é triste viver em Madrid! pensava elle. E dizerem na minha terra +que--_de Madrid só para o céo!_--As pessoas que dizem isso de certo +nunca estiveram aqui! As ruas e as praças estão convertidas em lodaçaes +immundos; a gente anda toda aos encontrões; as carruagens e os cavallos +atropellam e cobrem de lama os transeuntes; as goteiras alagam os +individuos que seguem pelos passeios; e o vento que sopra das portas faz +rebentar o sangue nas mãos e na cara! + +É bem differente d'isto o meu querido paiz, os campos amenos da Biscaya! + +Lá alveja a neve lisa e pura por sobre a relva e as penhas, nas arvores +e nos telhados, e quando o sol ou a chuva a derretem não é em lodo que +se converte, mas sim em cristallinos arroios; lá não se apinhôa, +confunde e atropella a gente, o gado e os carros, que a todos Deus +concedeu campo e largueza por onde se espalhem á vontade; e se tambem +ali sopra o ar frio do inverno, é ar que dá saude em vez de tiral-a. + +Ai! quão differente teria corrido para mim o dia, se o passasse na minha +aldeia! Se lá estivesse, andaria no campo a patinhar no gelo; teria +feito grandes bólas de neve no alto da montanha, para as vêr +despenhar-se no valle; em seguida voltaria a casa, e depois de ter +almoçado junto do lume, subiria á trapeira para apanhar os passaros, que +ali vão abrigar-se do mau tempo e procurar o sustento que não encontram +nos campos cobertos de neve; e á noite, em quanto minha mãe estivesse +preparando a ceia, contar-me-hia meu avô as suas façanhas da guerra da +independencia. No fim da ceia iria para a cama acompanhado por minha +mãe, que depois de me cobrir e agasalhar cuidadosamente, se despediria +de mim, como de costume, com um dôce beijo. Ai! que differença! assim +não estaria, como agora estou, acordado e a chorar, mas dormiria +tranquillo e socegado até que, com outro beijo, fosse despertar-me pela +manhã! + +Entregue a tão saudosos pensamentos passou Angelo em claro quasi toda a +noite. Já se ouviam na rua os pregões dos vendilhões e fornecedores da +cidade, o barulho dos carros e os passos dos transeuntes, quando, +vencido pela vigilia, e tomado do cansaço do corpo e do espirito, caíu +n'um benefico somno. + +Adormeceu profundamente; rosaram-se-lhe as faces, e a posição em que +ficára e a sua respiração serena e plácida, revelavam uma dulcissima +tranquillidade d'espirito; entreabria-lhe os labios aprasivel sorriso, +e, de vez em quando, soltava d'elles os nomes de _pae_, _mãe_, e outros +como estes saudosos e gratos ao coração da desventurada creança. + +Agora sonhava que se achava na aldeia, cercado da sua familia ou +brincando com os seus companheiros de infancia; depois, que trepava ao +cimo das arvores em busca d'um ninho de rôla, ou de pombo torcaz; +derribava ás pedradas as maçãs e as nozes; corria ao bosque a fazer +assobios da casca do castanheiro, ou ao ribeiro para construir moinhos +de junco; logo subia ao alto da montanha, coroada por uma ermida, em +roda da qual andava o tambor chamando para a romaria. Por ultimo sonhava +que era noute de S. João, que todo o valle estava illuminado pelas +fogueiras accesas nos oiteiros, e o inundavam d'alegria o repique dos +sinos, os morteiros, as cantigas e os gritos de jubilo, que acompanham +sempre aquella festa classica e essencialmente infantil! + +Embalado n'estes sonhos deliciosos, que lhe representavam todos os +encantos do seu paiz natal, sonhos que melhor do que ninguem póde +adivinhar o auctor d'este livro, porque tambem chorou e sonhou como +Angelo, não ouviu o pobre menino as sete horas que bateram compassadas +no relogio do escriptorio. + + +VII + +Manoel e Marianno (eram estes os nomes dos dois caixeiros do banqueiro) +desceram as escadas, e vendo que Angelo se não tinha ainda levantado, +dirigiram-se para o seu aposento. + +--É melhor acordal-o, dizia Manoel, porque se chega D. Lucas e o +encontra a dormir não deixa de lhe fazer a operação do costume. + +--E que tem lá isso? replicou Marianno, para nós é até um divertimento. +A pena que me resta é não haver aqui á mão um bom molho de ortigas. + +--Não tenhas mau coração. Já não soffreu pouco hontem o pobre pequeno, +principalmente com a historia da balança. + +--E que tem que soffresse?! Tambem nós soffriamos quando eramos como elle. + +--Pois por isso mesmo que a nós nos trataram mal é que eu entendo, que +devemos tratar agora bem os que se acham em identicas circumstancias. + +E dizendo isto, approximou-se da cama de Angelo, e principiou a abanal-o +e a chamar por elle; mas o menino estava tão ferrado no somno, que +continuava a dormir profundamente. + +--Que é lá isso, perguntou D. Lucas, apparecendo á porta do quarto. +Então esse estupido ainda está na cama?! + +--Está, sim, senhor, respondeu Marianno. + +D. Lucas proferiu uma praga e accrescentou, dirigindo-se a Marianno: + +--Vaes vêr como esperta n'um instante. Traz-me lá de cima, da talha, uma +bilha d'agua para se lhe applicar o remedio. + +Marianno, que parecia feito á similhança de D. Lucas, obedeceu de +prompto, e largou pelas escadas acima, esfregando as mãos de contente. +No primeiro andar, e debruçado n'uma varanda de ferro que dava para o +pateo interior da casa, coberto por um tolde, estava Toribio, escutando +o que se passava em baixo, pois d'alli se ouvia tudo perfeitamente. + +--Que temos, snr. D. Marianno, perguntou elle ao caixeiro. + +--Vou buscar uma bilha d'agua para fazermos a _operação_. + +--Ao _rocim-chegado_? + +--Nem mais nem menos; vem d'ahi, se te queres rir. + +--Isso já a mim me palpitava, que se lhe havia de fazer o _remedio_. Mas +a agua não deve ser da talha; essa está pouco fria por causa da +proximidade do fogão. Temos aqui um bom jarro d'ella, que, de proposito, +deixei ficar de noite sobre o alpendre. + +--És um rapaz de talento, Toribio! exclamou, rindo, Marianno, em quanto +o bruto do creado pegava no jarro da agua. + +--Deve estar excellente! accrescentou, vendo-a coberta d'uma espessa +crusta de gelo, que foi quebrando com os nós dos dedos, á maneira que +descia os degraus da escada. + +Toribio não quiz privar-se do barbaro goso de assistir ao martyrio que +ia soffrer a pobre creança, e correu, todo alvoroçado, atraz de Marianno. + +Dom Lucas pegou no jarro, e afastando para o lado a roupa que cobria o +menino até ao pescoço, despejou-lhe de golpe toda a agua por sobre o +peito, com grande satisfação de Marianno e Toribio. Manoel, esse, +coitado, estava compungido da sorte do rapazinho. Angelo soltou um grito +e ergueu-se de subito, ao sentir no corpo a agua gelada. + +--Isto é para vêr se acordas! disse D. Lucas, e completou a phrase com +uma nova praga. + +O menino não replicou, nem tratou sequer de desculpar-se. Atirou +immediatamente comsigo da cama abaixo, e vestiu-se sem proferir uma +palavra. Os seus olhos não derramavam lagrimas, mas derramava sangue o +seu coração! Tinha á cabeceira da cama uma estampa, já enegrecida pelo +tempo, representando Jesus crucificado. Ergueu os olhos para a divina +imagem e exclamou no intimo de sua alma afflicta: + +--Senhor, levae-me já para o céo ou para as minhas montanhas! + + +VIII + +Do seio d'aquella nuvem de tristeza que o cercava, luziu para o pobre +Angelo um raio de esperança. Pelas conversas que ouviu, de D. Lucas e +dos seus companheiros, veiu no conhecimento de que os caixeiros do +banqueiro tinham licença de saír nos dias santificados e para logo +concebeu a esperança de gosar tambem d'esse prazer, libertando-se da +tristeza e da oppressão de toda a semana, n'aquelle dia de folga e de +liberdade. + +De quantas necessidades experimentava era por certo a maior a de +respirar por algum tempo livremente, vendo o céo e o sol, as arvores e +os campos. + +Manoel era o unico que dirigia a palavra a Angelo sem aquella aspereza e +zombaria com que sempre lhe fallavam D. Lucas e Marianno. Por isso, +depois de dois dias de hesitação, abalançou-se o menino a perguntar-lhe +se tambem lhe dariam, a elle, licença para saír ao domingo para o campo.. + +--De certo, isso nem se pergunta, respondeu Manoel. + +Esta resposta, que a outro qualquer pareceria em extremo laconica, fez +verter lagrimas de agradecimento e de alegria a Angelo; de agradecimento +porque encerrava em si um thesouro d'indulgencia, comparada com as que +todos os dias recebia n'aquella casa, e de alegria por lhe vir confirmar +as fagueiras esperanças que nutrira. + +As palavras de D. Lucas já não pareciam á innocente creança sêccas e +desabridas, nem tão pouco se lhe afiguravam crueis os motejos de +Marianno e de Toribio; já não julgava insupportavel o trabalho a que o +submettiam desde pela manhã até altas horas da noite, e até o quarto em +que dormia, humido e frio, triste e isolado, lhe parecia confortavel e +alegre desde que n'elle sonhava com os prazeres do domingo, embalado nas +risonhas esperanças de disfructar, ao menos um dia na semana, gosos +similhantes áquelles, que diariamente o deleitavam nos campos do seu +paiz natal. + +--Se os bosques e os prados da minha terra são tão formosos, pensava +elle, como não hão de ser encantadores os d'aqui, se até por elles +passeiam os reis e a sua côrte? E quando as caçadas, lá nos meus sitios, +são tão divertidas, o que não acontecerá em Madrid, onde tudo deve +participar da grandeza da capital? + +E os aprestes de caça de D. Lucas! Como são ricos! a espingarda e o +polvarinho marchetados de prata, e as polainas e os correões bordados a +sêda! Muito me hei de divertir! Parece-me que já estou a atravessar +espessos bosques de carvalhos e castanheiros seculares, a passar regatos +cristallinos, e torrentes espumosas, e a vêr, a meu salvo, do alto d'uma +fraga, do cimo d'uma collina ou da copa d'uma arvore, o javalí e o veado +perseguidos pelos cães. Por fim, ao caír da tarde, quando tivermos +reunido uma boa porção de formosas rezes, iremos descançar debaixo das +ramadas ou das nogueiras que fazem sombra aos casaes, onde não deixarão +de nos offerecer excellente leite e fructa saborosa. E quando entrarmos +na cidade! Com que orgulho, com que alegria não atravessaremos nós essas +ruas, com grandes enfiadas de perdizes ás costas, e trazendo á arreata +uns poucos de burros carregados de javalís e lebres! + +Chegou finalmente o domingo tão desejado. O céo appareceu limpido e +puro; despontou o sol mais formoso que nunca, e um vento forte, que +soprára toda a noite, tinha seccado completamente o solo. Tudo +contribuia para aformosear e revestir de galas o dia destinado a +compensar Angelo dos desgostos e maus tratos que soffrera até ali. + +Na véspera á noite tinha dito D. Lucas aos caixeiros, em presença dos +donos da casa, que eram fieis observadores dos preceitos religiosos: + +--Amanhã _levantar_ cedo para ouvir missa antes de partir para o campo. + +Os caixeiros, e bem assim D. Lucas, levantaram-se effectivamente muito +cedo, mas não foi para ouvir missa. + +Bem se importava D. Lucas com a missa, quando se tratava de caça que era +o seu divertimento favorito! + +O sobrinho de Quijano marcou tarefa a cada um dos rapazes. Angelo foi +encarregado de fazer varetas de junco, Manoel de encher de polvora os +polvarinhos e de chumbo as bolsas dos correões, e Marianno de fazer +provisão de fulminantes. + +Soou finalmente a hora da partida; D. Lucas, Manoel e Marianno calçaram +botins muito grossos, afivelaram vistosas polainas bordadas a seda de +differentes côres, lançaram ás costas grandes saccos de caça e +armaram-se não só de espingardas de dois canos, como tambem de facas de +matto; por ultimo tiveram o cuidado de metter para os bolsos um bom +punhado de balas. + +Angelo olhava para aquelles preparativos com indizivel satisfação, e +dizia com os seus botões: + +--Estas polainas, estes enormes saccos de caça, estas facas de matto e +estas balas indicam que vamos correr montes espessos e escabrosos, que a +caça deve ser abundante e que de certo nos temos de haver com javalís +ferozes, e talvez até com ursos e lobos. + +O que porém dava que entender a Angelo era vêr que D. Lucas se dispunha +a levar comsigo os dois cãesitos de casa do banqueiro, que não podiam +ter forças para arrostar com os perigos e fadigas d'uma caçada como a +que elle phantasiava na sua infantil imaginação. + +Saíram a final, e tomaram pela rua abaixo; «muito barata ha de estar +ámanhã a caça!» diziam algumas pessoas ao verem-n'os passar. + +E Angelo, que não comprehendia a ironia que se continha n'estas +palavras, cada vez se confirmava mais na ideia que tinha formado da caçada. + + +IX + +Quando avistaram a porta de Toledo, ficou Angelo a pular de contente; +mais alguns passos apenas e estavam no campo, onde ia recrear a vista na +contemplação d'uma perspectiva encantadora; era esse o juizo que +formava, e que tinha como certo. + +Se tanto o deleitavam as ridentes paisagens do seu paiz, com mais razão +entendia a pobre creança que o haviam de captivar as dos arredores de +Madrid, a capital da Hespanha onde tudo devia ser magnifico e admiravel. + +Lá, na frente, pensava elle, hão de avistar-se talvez grandes montanhas +cobertas de frondoso arvoredo; a um lado elevar-se-ha uma verde colina +coroada pelas ruinas d'um castello mysterioso e sombrio; do lado opposto +erguer-se-hão ás nuvens penhas alcantiladas, por entre as quaes se +despenharão com rouco bramido impetuosas torrentes, e pelas faldas dos +montes ha de estender-se por certo uma veiga deliciosa, semeada de +casinhas brancas, e regada por um rio caudaloso, em cujas ribas estarão +collocados, destacando no horisonte, inumeros moínhos, completando a +paisagem com os seus tectos elegantes e pittorescos... + +É este o espectaculo grandioso, que vae, n'um momento, offerecer-se aos +meus olhos! + +E vendo que estavam quasi a chegar á porta, desceu Angelo a vista com o +proposito firme de a não levantar, em quanto não sentisse debaixo dos +pés a herva do campo, para assim poder abranger a um tempo e de repente, +o formoso panorama, que se lhe desenhava na mente. + +A areia e a brisa subtil do Guadarrama, e não esse tapete de mimosa +relva, que sonhára, lhe fizeram conhecer que já se achava fóra de Madrid. + +Ergueu de subito os olhos e abarcou ancioso com a vista a paisagem, que +tinha diante de si. + +Ai! que differença entre o panorama, que se lhe apresentava e aquelle +que phantasiára na sua pueril imaginação! + +Em frente limitavam o horisonte os cêrros escalvados e agrestes de Santo +Izidro, coroados não de arvores formosas e de castellos mysteriosos, mas +sim de telhados denegridos pelo fumo e de lugubres cemiterios, +circumdados de muros de terra. Do lado esquerdo uma planicie estéril e +monótona, da qual os accidentes mais bellos são o cêrro dos Anjos e o +cêrro Negro. Á direita as vendas ou retiros miseraveis e as aridas +encostas, que dominam a ponte de Segovia; e em baixo, na planicie, o +triste Manzanares, arrastando-se penosamente por entre muladares e +lavadouros!... + +Um cruel desalento e uma profunda melancholia se apoderaram para logo de +Angelo; comtudo não perdeu de todo a esperança de deparar com o paraiso +dos seus sonhos. + +--Quem sabe? pensava elle, talvez que ao transpor aquellas imminencias +se descubra uma paisagem menos arida e triste do que esta que d'aqui se +observa. E seguindo os seus companheiros, atravessou o Manzanares pela +ponte de Santo Izidro. De repente D. Lucas parou, recommendando, por +signaes, aos outros que não fizessem bulha. Todos obedeceram, e elle +então adiantou-se, nas pontas dos pés, agachando-se cautelosamente, e +com os perros da espingarda levantados. + +Angelo suppoz que D. Lucas teria avistado alguma lebre, ou pelo menos um +bando de perdizes. Por fim o grande caçador de Madrid disparou a arma, e +exclamou cheio de alegria: + +--Lá caíu, lá caíu! Áquelle já ninguem lhe vale! + +E desappareceu por entre os choupos da margem do rio. Alguns momentos +depois tornou a apparecer, mostrando triumphante um passaro _ribeirinho_ +que acabava de matar! + +As illusões de Angelo soffreram um novo golpe. Que caçada era aquella em +que os caçadores se alvoroçavam tanto com a morte d'um passarito? Para +que serviam então tantas balas, tantas facas de matto e tantos saccos e +correões de caça?! + +Os caçadores treparam aos cêrros de Santo Izidro, e Angelo dirigiu a +vista para o novo horisonte. Alli, como na porta de Toledo, não via para +todos os lados para onde olhava, senão áridas serranias, collinas +escalvadas, umas poucas d'arvores rachiticas, e alguns silvados e +espinhaes, contornando o regato de Luche. + +D. Lucas não desanimava como Angelo. Atravessando campos semeados, atraz +d'um pardal ou d'uma cotovia, foi-se affastando, poupo e pouco, seguido +pelos seus companheiros. Angelo já se sentia fatigado, e outro tanto +acontecia aos dois _improvisados_ cães de caça. Sentou-se por fim n'uma +pedra, e os cãesitos, vencidos egualmente de cançaço, deitaram-se n'um +rego do campo; D. Lucas, porém, vendo isto, deu um empurrão á pobre +creança, e affagando os cães, obrigou-a a carregar com elles.--«Tu que +não pódes leva-me ás costas.» + +Como D. Lucas seguisse a margem do ribeiro de Luche, saltou-lhe um +coelho de entre os pés. D. Lucas disparou-lhe um tiro a corta-matto, +porém o coelho proseguiu no seu caminho sem ter soffrido o _mais leve +incommodo_. + +O caçador soltou uma praga e affirmou aos seus companheiros, que o +coelho ia ferido, e que se não tinha morrido logo ali, a culpa não era +sua, mas sim da polvora, que não prestava para nada. E o pobre Angelo +que já não podia com o corpo, e menos ainda com a alma, continuava a +seguil-os, carregado com os cães. + +Com estas e outras proezas foi passando o tempo, e os caçadores tomaram +por ultimo o caminho de Madrid, levando nos correões meia duzia de +passaritos. + +De vez em quando Angelo ficava para traz, e o sobrinho do banqueiro +ajudava-o então a andar, proferindo uma praga, ou dando-lhe um pontapé. + +Junto á porta de Toledo, encontraram um caçador, que levava quatro coelhos. + +--Olá, tio Lobo! disse D. Lucas; pelo que vejo não lhe correu mal, hein? + +--Assim, assim, snr. D. Lucas; e o senhor, que tal? + +--Ora deixe-me, homem, estou desesperado com esta maldita polvora. + +--Então que tem? está humida, talvez? + +--Nada, humida não está; mas não sei o que tem, que não presta para +nada; dei hoje mais de vinte tiros, e vi fugir todas as peças de caça +feridas. + +--Pois a mim é que isso não acontece; a caça que me fugir preguem-m'a na +testa. Tenho uma polvora de contrabando, que não quero que haja melhor. + +--Homem, vende-me vocemecê uns poucos d'arrateis? + +--Com muito gosto, snr. D. Lucas; qualquer dia d'estes lá lh'os levo a +casa. + +--Muito bem. Vamos agora a vêr esses _bicharôcos_. + +--Póde vêr á vontade, que são quatro peças de caça aceiadas. + +--Isso vejo eu. Provavelmente são para vender na praça?... + +--Está bem de ver, nem a gente vive d'outra coisa. + +--Pois, n'esse caso, fico eu com os coelhos. + +--Estão ás suas ordens, snr. D. Lucas. + +--E quanto lhe hei de dar por elles? + +--Dá-me aquillo que o senhor quizer. + +--Está bom, ahi tem um duro, serve? + +--Muito obrigado, snr. D. Lucas. O que eu desejo é que os senhores os +comam com saúde. Até outra vez, se Deus quizer. + +--Adeus, tio Lobo. + +O _verdadeiro_ caçador tomou a dianteira aos caixeiros de Quijano. D. +Lucas tratou logo de enfeitar o seu correão com os quatro coelhos, e +pouco depois entrava em Madrid, tão inchado que não cabia na rua de +Toledo, e causando inveja áquelles que ainda pela manhã tinham zombado +d'elle. + + +X + +Dois ou tres dias depois da famosa caçada, estavam no gabinete de D. +João Quijano, palestreando junto do fogão, o banqueiro, seu sobrinho D. +Lucas e quatro ou cinco amigos intimos da casa. + +Fóra, no escriptorio, trabalhavam em silencio os caixeiros e com elles +Angelo, cujas côres rosadas iam pouco e pouco desapparecendo, e cuja +tristeza era cada vez mais profunda. + +--Como vamos nós de caça, D. Lucas? perguntou um dos amigos. + +--Ás mil maravilhas, respondeu D. Lucas. + +--Meu sobrinho, acudiu o banqueiro, está sendo o rei dos caçadores! Pois +não sabem que, domingo, teve a habilidade de se apresentar aqui com +quatro coelhos, que pareciam quatro bezerros?! + +--Que nos diz, homem? + +--Nem mais nem menos, é como lhes conto. Aprendam como elle a matar +coelhos onde ninguem os costuma matar, nos suburbios de Madrid. + +--Sempre queria saber como isso foi, disse um dos interlocutores. + +--Tem pouco que saber, disse D. Lucas. Matei domingo quatro coelhos, +junto ao ribeiro do Luche. Aquillo foi n'um abrir e fechar d'olhos, e é +preciso advertir que a polvora não prestava para nada. + +--Não sei como isso se faz; eu cá, por mais voltas que dou, não sou +capaz de levantar um coelho por estas visinhanças. + +--É porque os senhores são caçadores das duzias! Eu por mim, nem sequer +preciso de cão; havendo coelho, está prompto; faço-o saltar, e depois de +lhe atirar, nem todos os santos lhe valem, porque onde eu puzer a vista +ponho o tiro. Pum! coelho a terra!... Os quatro de domingo foi um +momento em quanto caíram. + +--Pois, senhor, não tem que vêr, é um bom caçador! + +D'isso está elle convencido. A caçada de domingo ha de ser apregoada por +toda a cidade; não falla d'outra cousa a quantas pessoas aqui entram! + +Estava ainda o sobrinho do banqueiro narrando, com toda a miudeza, como +matára os quatro coelhos, quando entrou no escriptorio o tio Lobo, que +ia levar a D. Lucas os dois arrateis de polvora de contrabando, que este +lhe encommendára. + +--Esta ahi o snr. D. Lucas? perguntou o caçador aos caixeiros. + +--Sim, senhor, respondeu Angelo. + +--Pois faça favor de lhe dizer que está aqui fóra o tio Lobo, que o +procura. + +O pequeno entrou no gabinete. + +D. Lucas, que ainda não tinha acabado de contar como matára os quatro +coelhos, ficou logo furioso por lhe interromperem a historia, e antes +que o pequeno tivesse tido tempo de fallar, perguntou-lhe, com aquella +amabilidade que lhe era propria: + +--Que queres tu d'aqui, borrego? + +--É que está ali fora o Lobo, respondeu Angelo. + +Desataram todos a rir, vendo a relação casual, que havia entre a +pergunta e a resposta. + +Não era para admirar que Angelo omitisse a denominação de _tio_, que +costumava preceder o nome do caçador, porque esse tratamento, que é tão +vulgar em quasi toda a Hespanha, não se usava nem se usa, na sua +provincia, senão quando o justificam os laços de consanguinidade. +Julgando por tanto que se riam por não se haver explicado bem, ficou +corrido de vergonha, e tratou de se fazer comprehender melhor. + +--Parece-me que é assim que tenho ouvido chamar-lhe; e accrescentou, «é +aquelle caçador a quem o senhor comprou domingo os quatro coelhos junto +á porta de Toledo.» + +Estas palavras de Angelo foram acolhidas com uma gargalhada ainda mais +ruidosa do que a anterior, porém menos inoffensiva; uma gargalhada de +mofa, insultante, sangrenta, e isto porque os caçadores têm dois grandes +defeitos; são geralmente embusteiros e invejosos, e assim como não +perdem a occasião de mentir, tambem não perdem nunca o ensejo de +humilhar os que caçam, ou suppõem caçar mais do que elles. + +D. Lucas ficou por espaço d'um segundo immovel, envergonhado e corrido; +porém, de repente, injectaram-se-lhe os olhos de sangue, +engorgitaram-se-lhe as veias, e tornou-se completamente livido e +desfigurado. + +Arremeçou-se como um tigre sobre a pobre creança, vociferando e +praguejando como possesso, e lançando-lhe as mãos ao pescoço, levou-a +d'encontro á parede e começou a descarregar-lhe furiosas patadas no +estomago, antes que D. João e as outras pessoas, que se achavam +presentes, tivessem tido tempo para se interpor entre aquella fera e o +innocente cordeiro, que, por unica defesa, invocava o nome de sua mãe. + +Oh! tu, Fernan Caballero, nobre e generoso cantor do nosso bom povo +hespanhol, amigo dos pobres d'espirito e dos ricos de coração, que tens +cabeça d'homem para pensar e alma de mulher para sentir; tu que és o +amigo por excellencia dos meninos e das mães, dos fracos e dos +attribulados; tu que buscas e encontras as dôres e as afflicções do +proximo, onde as almas vulgares as não descobrem, e que, com tanto +sentimento e caridade, as prantêas, dize-me, meu bom Fernando, não achas +que os sabios legisladores da humanidade tem sido extremamente crueis e +ignorantes, pondo os meninos debaixo da salvaguarda do codigo, que +protege os homens, em vez de os acobertar com a égide celeste do codigo +que protege os anjos?! + + +XI + +Alguns mezes haviam já decorrido depois do dia em que Angelo escapou, +por milagre, de morrer ás mãos de D. Lucas. + +Era por uma aprazivel manhã de primavera. A sala de jantar de D. João +Quijano tinha uma janella, que olhava para o norte. Em quanto o +banqueiro e sua mulher tomavam chocolate na sala, Angelo fôra para a +varanda, e ali se conservava, com a vista immovel e fixa na direcção do +seu paiz. + +O pobre pequeno estava mais alto do que quando chegára das montanhas de +Biscaya, porém tinha emagrecido consideravelmente. Cobria-lhe o rosto +uma pallidez mortal, e nos seus bellos olhos, tão meigos e sympathicos, +retratava-se-lhe a profundissima tristeza que lhe ia n'alma. + +--O que fazes tu ahi, Angelo? perguntou carinhosamente D. Joanna. + +O menino não respondeu. + +--Oh! meu Deus! O que terá esta creança?! accrescentou a mulher do +banqueiro, com verdadeira afflicção. + +--Não sei o que elle tem, Joanna, mas ninguem me tira da cabeça que está +doente desde que Lucas lhe bateu, apesar do medico dizer, passados +quinze dias, que o considerava completamente restabelecido. + +--Queira Deus que Lucas lhe não tornasse a pôr a mão. + +--Não, filha; por isso fico eu. Mas vejo-o tão abatido e melancholico, +que receio muito pela sua existencia. + +--Ai! Nossa Senhora permitta que te enganes. Angelo se chama e foi elle +na verdade um anjo que trouxe a paz e a harmonia á nossa casa; porque, +desde que para aqui veiu esse menino, nós que sempre andavamos de rixa, +estamos inteiramente mudados, e tenho fé em que elle ha de acabar por +abrandar e adoçar por uma vez este meu maldito genio. + +--Assim é, Joanninha, exclamou o banqueiro commovido; sempre esperei que +quando tivesses um filho, se operaria em ti uma grande mudança. Não quiz +Deus conceder-nos essa ventura, mas enviou-te em compensação essa +criança, a quem queres hoje quasi tanto como se fôras sua mãe. + +--Quem sabe se o que tem o pequeno é um desejo ardente de voltar para a +sua aldeia... suspirava tanto por isso, a principio... + +--Tambem me não parece que seja essa a causa do seu soffrimento. Desde +que os paes lhe disseram n'uma carta, que era elle o unico amparo com +que contavam para a velhice, e que, se voltasse para a terra, nada +poderia fazer em beneficio d'elles, não cessa de dizer que está +satisfeito em Madrid, e até quando alguma vez se encontra de bom humor, +costuma repetir o proverbio «_de Madrid só para o céo_». + +--Pois é preciso mandar chamar o medico, porque se não cuidarmos d'elle +váe cada dia a peior. Angelo, accrescentou D. Joanna, chamando novamente +pelo menino. + +Este deixou como assustado a immobilidade em que estava, olhou novamente +com ineffavel languidez para o norte, e entrou na sala. + +--Que tens tu, meu filho? perguntou-lhe com ternura D. Joanna, +correndo-lhe a mão pela cara. + +--Não tenho nada, respondeu Angelo. + +--O que fazias na varanda? + +--Nada; estava a vêr o sol. + +--Vamos, senta-te aqui, e toma chocolate comnosco. + +--Não me appetece. + +--Mas o que é isso? O que te falta? Não te quero eu como se fôra tua mãe? + +O menino não respondeu; arrasaram-se-lhe os olhos de lagrimas, e os de +D. Joanna tambem. + +--Olha, accrescentou esta, não vás outra vez para a varanda que te faz +mal o sol; vae antes um bocado até ao escriptorio, não para trabalhar, +mas para vêr se te distrahes com os teus companheiros. + +Angelo saíu da sala, e desceu a escada. + +Ás tres horas, subiram para jantar D. Lucas, e os dois caixeiros Manoel +e Marianno. + +--Onde ficou Angelo? perguntou D. Joanna. + +--Não veiu cá para cima. + +--Virgem santissima! Onde estará então a pobre creança?! + +--Talvez se fosse deitar. + +--D. Joanna correu pressurosa ao quarto de Angelo, e foi encontral-o na +cama. + +--O que quer isso dizer, filho? O que tens?.. Estás doente? + +--Sim, minha senhora, respondeu Angelo com voz sumida. + +--Então o que te dóe? + +--Não me dóe nada, mas sinto-me doente. + +--Toribio! Toribio! vae, corre chamar o medico, que está o menino +doente, gritou da escada D. Joanna. + +Pouco depois chegou o medico. Tomou o pulso a Angelo, e fez um gesto de +mau agouro. + +--É coisa grave? perguntaram a um tempo, e com anciedade, D. Joanna e o +banqueiro. + +--Gravissima, respondeu o medico... e observando-o novamente, +accrescentou, em voz baixa, dirigindo-se ao dono da casa;--está quasi a +morrer. + +Angelo abriu por um momento os seus meigos olhos, cujo brilho estava já +empanado pelo sopro da morte, volveu-os para a imagem do Senhor +crucificado, como querendo expressar-lhe profunda gratidão, e fechou-os +logo, para nunca mais os tornar a abrir. + +Todos proromperam em amargo pranto, á excepção de D. Lucas. + +--E de que morreu? perguntou este ao medico, que tinha antecipadamente +interrogado a familia ácerca dos padecimentos de Angelo. + +--Morreu, lhe tornou o medico, de uma affecção moral, para cujo +desenvolvimento contribuiram por certo padecimentos physicos. Os meninos +são homens no sentimento, e creanças no vigor; por isso Deus amaldiçôa +os seus oppressores. Este menino morreu da mais santa de todas as +enfermidades; morreu de _Nostalgia_. + +FIM DA NOSTALGIA. + + + + +O MADEIRO DA FORCA + + +I + +A grande montanha de Colisa, que se ergue entre as Encartações[2] de +Biscaya, e a demarcação juridica de Castella, era na edade media uma +especie de Thebaida, onde faziam vida penitente alguns anachoretas, aos +quaes se attribue a edificação do santuario que a corôa. + +Sendo eu creança, e caminhando com minha piedosa mãe por uma montanha +das Encartações, paramos a descançar, ao descobrir o valle onde +habitavamos. + +Era por uma tarde aprazivel de verão. O sol escondia-se por detraz dos +montes, que recortavam o horisonte, e nas quebradas das serras ouviam-se +os chocalhos do gado, que descia ao valle; em baixo, na planicie, saíam +as raparigas das herdades, e pondo á cabeça as suas bilhas, dirigiam-se, +cantado, á fonte do _Castanhal_, para que seus paes e irmãos achassem em +casa agua fresca, quando, ao soar o toque da oração, lançando ao hombro +as enxadas, e resando as Ave-Marias, se encaminhassem para o logar. + +Do cimo do outeiro coberto de fragrantes margaridas, brancas de neve, +onde minha mãe e eu estavamos sentados, contemplando o nosso querido e +formoso valle, em um de cujos extremos avistavamos, meia occulta por +frondoso arvoredo, a nossa aldeia ainda mais querida e saudosa, +descobria-se o santuario de Colisa. + +Entramos a fallar d'aquella ermida, e minha mãe, que tinha uma fé santa +e cega nas tradicções religiosas, que brotam e vivem á sombra dos +santuarios das montanhas, sem que possam os seculos alterar-lhes o viço +e a frescura, prendeu-me a attenção, e commoveu-me devéras a alma +contando-me o que, a meu turno, vou contar-vos. + +Vivia nas solidões de Colisa um santo ancião, chamado Cosme, que passava +uma terça parte da sua existencia entregue á adoração e glorificação de +Deus, e o restante guiando e soccorrendo os viajantes, que atravessavam +aquellas montanhas; e isto pela razão de que, n'aquelle tempo, como as +guerras de partidos ensanguentassem de contínuo os valles, fugiam +d'elles os caminhantes, e transitavam pelos montes mais desertos, e +afastados do commercio dos homens. + +Sempre que Cosme soccorria algum viandante extraviado, ou extenuado de +fome e cansaço, ao soar o toque de Trindades na egreja de Valmaseda, que +se avistava lá em baixo, no pé da montanha, apparecia-lhe um anjo, que +lhe sorria amorosamente, e que logo se remontava ao ceu, deixando-o +immerso em mystica alegria. + +Um dia, de manhã, estando os montes cobertos de mui densa névoa, saíu +Cosme da miseravel choça, onde vivia vida penitente, e poz-se a divagar +por aquelles bosques espessos e fragosos, a vêr se encontrava alguns +caminhantes, que n'elles se houvessem extraviado, e, de repente, deu de +cara com uns poucos de homens, que levavam outro manietado. + +--Porque vae preso esse infeliz? lhes perguntou elle. + +--Porque é um grande criminoso, a quem a justiça condemnou á morte, lhe +responderam. + +--_Quem as faz paga-as_, disse o anachoreta, dando tregoas á sua compaixão. + +Os executores da justiça de Valmaseda detiveram-se mais acima, n'uma +encrusilhada, pegaram n'um grande madeiro secco, que, havia muitos +annos, estava estendido ao lado do caminho, fixaram as extremidades +d'esse madeiro secco nos primeiros galhos de duas arvores parallelas, +lançaram um laço ao pescoço do criminoso, e suspenderam-n'o d'aquella +forca improvisada, voltando a Valmaseda apenas se certificaram de que +elle tinha expirado. + + [2] _Encartaciones_, as terras de Biscaya, que gosam de fóros e + regalias especiaes. + + +II + +N'esse mesmo dia em que, por sentença do tribunal de Valmaseda, foi +enforcado um grande criminoso, no caminho de Colisa, salvou Cosme da +morte muitos viandantes, que, sem o seu auxilio, seriam devorados pelas +féras, ou se teriam despenhado nos precipicios d'aquelles temerosos +desvios, então mais temerosos do que nunca, por causa da espessura do +nevoeiro. + +Recolheu-se á sua morada, agradecendo a Deus o haver-lhe dado forças +para soccorrer os seus irmãos, e, apenas chegou, feriu-lhe o ouvido o +toque da oração, que soou, lento e solemne, na longinqua torre da egreja +de Valmaseda.--O anjo porém não lhe appareceu n'aquella noite! + +O santo ermitão encheu-se de terror, com a lembrança de que teria +offendido a Deus, visto que o anjo se furtava aos seus olhos; mas por +mais que pesou as palavras, que proferira, as suas obras e pensamentos +de todo o dia, não lhe foi possivel atinar com o agastamento do Senhor. + +Aquella noite passsou-a toda em continua oração; chorou, macerou o +corpo, pediu a Deus perdão e misericordia para as suas faltas, e logo +que raiou a aurora, como a montanha se conservasse coberta de d'espessa +névoa, saíu em auxilio dos caminhantes. + +De repente achou-se na encrusilhada, e ao vêr diante de si a forca, da +qual pendia ainda o cadaver do criminoso, justiçado no dia antecedente, +recuou cheio de repugnancia e movido d'espanto; e levantando a vista +acima do cadaver, que estava preso da corda, viu o anjo poisado no +madeiro da forca. + +O anjo, longe de lhe sorrir então amorosamente, como de costume, +olhava-o com semblante severo e carregado. + +Cosme parou; e com quanto ignorasse qual fosse a sua culpa, lançou-se de +joelhos, sobresaltado e cheio de terror, ergueu as mãos para o anjo, e +implorou perdão e misericordia. + +--Cosme! disse-lhe então o anjo, incorreste no desagrado do Senhor e +precisas fazer grande penitencia para recuperar a sua protecção. Hontem, +em vez de confortar e consolar o desgraçado, que está pendente d'esta +forca, escarneceste-o, e olhaste com indifferença para a sua tribulação. +Desprende o seu cadaver da forca, sepulta-o em sagrado, e lançando em +seguida esse madeiro aos hombros, leva-o pelo mundo, e seja elle o unico +travesseiro, em que descances a cabeça. + +--E poderei eu ainda um dia obter o perdão da minha culpa? exclamou +Cosme lavado em pranto de arrependimento. + +--Sim, lhe tornou o anjo. Quando d'esse madeiro brotar um ramo verde, é +que o Senhor te perdoou. + +Dito isto, subiu o anjo ao ceu, cercado de musicas mysteriosas e de +brilhantes resplendores. + +Cosme acercou-se animosamente do cadaver suspenso da forca, desprendeu-o +e deu-lhe sepultura; pegando em seguida no madeiro, cujos extremos se +apoiavam nos primeiros galhos de duas arvores fronteiras, foi com elle +aos hombros pelo mundo, segundo as indicações, que o anjo lhe havia dado. + + +III + +Andava Cosme pelo mundo com o madeiro da forca ao hombro, e toda a gente +o escarnecia e fugia d'elle horrorisada. + +Uma noite, tendo perdido a esperança d'encontrar asylo entre os homens, +penetrou n'um bosque, esperando encontral-o no meio das féras, e vendo +uma luzinha atravez da espessura, encaminhou-se para ella, e deu comsigo +á porta d'uma cabana, onde uma velhinha dormitava, junto do lume. + +--Santinha, disse elle á velha, com voz supplicante, deixe-me, pelo amor +de Deus, passar aqui esta noite. + +--Não póde ser, lhe tornou a velha, porque tenho dois filhos, que são +bandidos, e que devem chegar dentro d'uma hora; se aqui o encontrassem, +com certeza o matavam. + +Cosme confiava piamente na promessa, que o anjo lhe tinha feito de que o +senhor lhe perdoaria, e como visse que o madeiro da forca não tinha +signaes, que indicassem que estava para rebentar, d'onde se deprehendia +que vinha ainda longe o momento da sua morte, insistiu em pedir á velha +que lhe désse pousada, no que ella, por ultimo, conveiu, esperando +conseguir dos filhos que o não assassinassem. + +Estava Cosme exhausto de forças e, retirando-se para um canto da +choupana, poisou no chão o madeiro da forca, e deitou sobre elle a cabeça. + +Condoida a velha de o vêr descançar em travesseiro tão duro, +offereceu-lhe um feixe de cheirosa herva do monte, mas Cosme o recusou, +dizendo:--offendi o Senhor, dizendo a um criminoso a quem levavam á +forca: «_quem as faz, paga-as_», e para que o Senhor me perdôe, vou pelo +mundo carregado com este madeiro, que deve ser o unico descanço da minha +cabeça, até que d'elle brote um ramo verde, que será o signal de que o +Senhor me perdoou.» + +--Ai! exclamou a velha, rompendo n'um choro inconsolavel, se é tão +difficil para quem se arrepende e unicamente peccou por palavras o +alcançar o perdão do Senhor, quanto o não será para esses infelizes, +que, como os meus filhos, peccam todos os dias por palavras e obras, e +não têm no coração um vislumbre sequer do arrependimento. + +O ancião adormeceu com a cabeça deitada no madeiro da forca. + +Uma hora depois, chegaram os bandidos, e ao verem-n'o, arrancaram dos +punhaes para o assassinar. + +A mãe, porém, contou-lhes a historia d'aquelle ancião, e pediu-lhes de +joelhos que, longe de o matarem, se arrependessem, como elle, das suas +enormes culpas. + +--Pois bem, perdôe-se-lhe a vida, responderam os bandidos, fazendo +entrar os punhaes na bainha, e accrescentaram, soltando uma gargalhada +d'escarneo: + +--Quanto ao arrependimento, havemos de o ter quando brotar o tal ramo +verde d'esse madeiro secco. + +Principiaram os bandidos a cêar. Quando acabaram, dirigiram a vista para +o canto da cabana onde dormia o velho, e viram, com assombro, que do +madeiro secco tinha brotado um ramo verde e mimoso! Romperam então em +amargo pranto, rogando a Deus que lhes perdoasse as suas culpas. + +Ao som de taes vozes acordou Cosme, e ao vêr que do madeiro secco tinha +brotado uma vergontea verde e louçã, expirou de alegria; e o anjo +baixou, sorrindo amorosamente, a tomar conta da sua alma, e a leval-a +comsigo para o ceu. + +FIM DO MADEIRO DA FORCA. + + + + +A NECESSIDADE + + +I + +Ainda hoje existe, junto á confluencia de dois rios, um formoso +castanheiro, a cuja sombra eu me sento, sempre que por alli passo, haja +ou não haja calor, e isto pela razão muito natural de que, sendo eu +creança, costumavamos sentar-nos, minha mãe e eu, á sombra d'aquella +mesma arvore, quando iamos a uma aldeiasinha, que ficava perto da nossa. +A pequena distancia do castanheiro vêem-se ainda as ruinas d'um moínho, +taes quaes eram nos tempos saudosos da minha infancia; e a lembrança de +minha mãe, do castanheiro e das ruinas, faz-me recordar d'um conto, que +ella me contou, em uma tarde de verão, ao pé da arvore frondosa, a cuja +sombra, graças a Deus! ainda posso sentar-me. + +O ultimo moleiro, que habitou o moínho, era conhecido n'aquellas +redondezas pelo appellido de Senéca; e vejam lá, não vão mudar para o +primeiro o accento que puz sobre o segundo «_e_» d'este appellido, pois +que o moleiro de quem estou fallando, e que minha mãe conheceu e tratou, +era tão modesto, que ainda hoje no ceu se veria muito afflicto e +contrariado, se o confundissem com o philosopho cordovez. + +Não tinha Senéca pretenções a philosopho, mas era-o até sem querer, e a +isto devia elle indubitavelmente o seu appellido, em cuja applicação não +podemos deixar de reconhecer uma philosophia muito profunda; se não, +reparem os leitores, e digam-me se não é bem admiravel a do povo, que, +com a mudança d'um simples accento, marca o abysmo, que separa o +philosopho da natureza do philosopho do estudo! Tinha eu que fazer, se +quizesse referir os muitos rasgos d'engenho e sã philosophia com que +Senéca _illustrou_ a sua trabalhosa e modesta vida, e portanto +limitar-me-hei a referir um dos que mais captivaram minha pobre mãe, de +quem herdei o gosto que tenho pelas recordações da infancia. + + +II + +Senéca não tinha outra familia senão um filho de dez annos, nem outras +cavallarias senão um burro de vinte. Morreu-lhe a mulher, que era quem +ficava no moínho, curando das moagens, emquanto elle andava com o burro, +levando e trazendo folles por aldeias e casaes, e o pobre Senéca viu-se +então em graves embaraços, porque os seus ganhos lhe não permittiam +tomar uma creada, que substituisse sua mulher no moínho, nem um creado, +que o substituisse a elle no transporte dos folles. + +--E como te has de tu arranjar agora? lhe perguntavam os visinhos, +quando o viram viuvo, e sem outro auxilio mais que o do pequeno. + +--Não me dá isso cuidado, respondia Senéca, não faltará quem me ajude. + +--Isso é bom de dizer; mas quem te ha de ajudar? + +--Quem?... A Necessidade. + +Os visinhos punham-se a rir do bom humor de Senéca, porém sem +comprehender o que elle queria dizer na sua. + +Uma certa manhã apparelhou Senéca o _burrico_, poz-lhe em cima um sacco, +que continha quatro alqueires de farinha, e chamando o pequeno, disse-lhe: + +--Rapaz, toma o burro pela arreata, e leva-me esta carga á padaria de +Somorrostro. + +O pequeno _desatou_ a chorar. + +--Que é lá isso, homem? perguntou-lhe o pae. + +--Que ha de ser de mim pelo caminho, se o burro cair, ou se espojar no +chão! exclamou o rapazito, sem cessar de chorar. + +--Não te dê isso cuidado, disse Senéca; se tal acontecer, não faltará +quem te ajude a levantar o burro. + +--E quem é que me ha de ajudar n'essas devezas tão solitarias, que não +se encontra por ellas viva alma?! + +--Quem? A Necessidade. Se o burro caír, ou se deitar no chão e se não +podér erguer, chama pela Necessidade, e verás como logo acode em teu +auxilio. + +--Está bem, disse o pequeno, limpando as lagrimas com a manga da +jaqueta; e pegando na corda do burro, tomou pela margem do rio, caminho +de Somorrostro, que distava uma legua do moínho. + +--Ora, ora, ora! Sempre este Senéca tem coisas!... diziam os visinhos, +ao verem o rapazito com o burro atraz de si. Com que então a +Necessidade, com cujo auxilio contava Senéca, para levar e trazer os +folles, era essa pobre creança?!... E o pequeno, quem é que o ha de ajudar? + + +III + +Seguia o filho de Senéca com o seu burro á arreata ao longo dos +carvalhaes, que assombram as margens do rio, que corre pelo valle +profundo, que separa Somorrostro de Galdámes e Sopuerta, quando, ao +chegar a um pequeno areal muito suave, fez o burro esta reflexão: + +--Ai! que bella cama para eu descansar um pouco!... e então, se eu +podesse soltar esta maldita carga, que me vae amolando as costellas! + +E de repente, antes que o pequeno olhasse para traz, estirou-se ao +comprido no meio do chão. + +--Ai! minha mãe!... exclamou o rapazinho aterrado;--porque convém saber +que em Hespanha, e com especialidade na Biscaya, não só aos pequenos +como tambem aos grandes, o primeiro auxilio que lhes occorre invocar nas +maiores afflicções, é sempre o de sua mãe, ainda mesmo que já a tenham +no ceu. + +E pegando n'uma vergasta começou a zurzir o burro sem dôr nem piedade; +porém o animal, por mais esforços que fazia para se levantar, não o +podia conseguir. + +Estava já o pequeno quasi a chorar, quando se lembrou do conselho, que o +pae lhe havia dado, e, em vez de dar largas ao pranto, começou a gritar: + +--Necessidade! Necessidade! faz-me o favor de vir aqui ajudar-me a +erguer este burro?! + +O pequeno bem olhava para todos os lados, a vêr se apparecia a +Necessidade, mas não via ninguem. Já cansado de chamar e de esperar pela +Necessidade, desatou o arrocho, que prendia o sacco ao apparelho do +burro, e alliviou-o da carga; em seguida deu-lhe uma vergastada e o +animal ergueu-se d'um salto. Então o pequeno tomou o burro pelo +cabresto, levou-o para junto d'uma ribanceira, e rolando o sacco até lá, +pôde, a muito custo, collocal-o em cima do animal; apertou-o bem com o +arrocho, montou-se sobre a carga, atirou uma pancada ao burro, e +proseguiu no seu caminho, mais alegre que umas paschoas. + +Passada uma hora chegava o rapaz ao moínho, cantando e fazendo trotar o +seu _ginete_. + +--Olá, pequeno, disse-lhe o pae, apenas o avistou, como te foi pela tua +viagem? + +--Muito mal, meu pae. + +--Então o que te aconteceu, homem? + +--Deitou-se o burro no caminho, e, por mais pancadas que lhe dei, não +foi capaz de se levantar. + +--E então o que fizeste? + +--Desprendi a carga, levei o burro para o pé d'uma ribanceira, fui +rolando o sacco até lá... + +--Bem, bem, já percebo. Quer isso dizer que chamaste pela Necessidade, +não é assim? + +--Chamei, chamei; fartei-me até de chamar; mas não appareceu... + +--Rapaz, disse Senéca, vê como tu te enganas;--quem te levantou e +carregou o burro não foi senão a Necessidade. + +Tinha razão Senéca, e tambem eu a tenho para dizer aqui que a +necessidade presta tanto auxilio e tamanhos beneficios ao homem, que não +sei como ainda lhe não deram a cruz de beneficencia. + +FIM DA NECESSIDADE. + + + + +A PORTARIA DO CEU + + +I + +O tio Paciencia era um pobre sapateiro remendão, o qual ganhava +honradamente o pão de cada dia, mette que mette a sovella e puxa que +puxa o fio, em um portal de Madrid, e devia o apellido por que era +conhecido á resignação com que sempre tinha soffrido os muitos +trabalhos, que o Senhor lhe havia dado. + +Ao tempo da constituição de 1820, era já rapaz dos seus quinze ou +dezeseis annos, mas tinha a innocencia de uma creança de oito, e como +ouvisse a cada passo dizer que todos os homens eram eguaes, perguntou ao +mestre se aquillo seria verdade. + +--Não acredites n'essas cousas, lhe respondeu o mestre. Só no ceu é que +os homens são eguaes. + +Sentiu o rapaz que não acontecesse outro tanto na terra, mas consolou-se +com a idêa de que o eram no ceu, e quando algum freguez da loja +convidava o mestre para beber uma pinga na taberna proxima, dizia com os +seus botões o pobre aprendiz: + +--Pena é que não sejamos todos eguaes na terra, como succede no ceu, +porque se assim fosse, por certo que o freguez me não differençaria do +mestre, e, como elle, iria eu tambem agora á taberna beber a minha +pinga; mas, acabou-se... paciencia... no ceu seremos todos eguaes. + +Passados dois annos, coube-lhe a sorte do recrutamento; então mais do +que nunca teve elle motivo para lamentar que os homens não fossem eguaes +na terra como no ceu, por isso que na sua companhia havia soldados +distinctos, e cabos, sargentos e officiaes, que provavam ser verdade +aquillo que o mestre lhe tinha dito ácerca da egualdade humana; porém +consolava-se ainda o pobre rapaz, pensando que no ceu se acabariam as +distincções, e todos seriam eguaes. + +Deixou de servir o rei, e aproveitando-se do pouco que sabia do officio +de sapateiro, estabeleceu-se n'um portal, e alí passou o resto dos seus +dias, conformando-se com as privações que soffria, na esperança de ir +para o ceu e gosar então d'essa igualdade, que não encontrára na terra. + +No andar nobre da casa, cujo portal occupava, vivia um marquez, que por +certo muito o houvera magoado com o espectaculo da sua opulencia, se não +fôra um excellente homem, e a não ser tamanha a sua paciencia, e sobre +tudo tão arreigada no seu coração a esperança de lhe poder dizer um dia +no ceu: «meu amiguinho, aqui todos nós somos eguaes.» + +Não era porém só o marquez que lhe fazia sentir, que não fossem todos os +homens eguaes na terra; até os seus amigos mais intimos queriam +differençar-se d'elle. Estes amigos eram o tio Mamerto e o tio Macario, +homens de tão boa conducta, que não podia o tio Paciencia viver sem a +sua honrada companhia. + +O tio Mamerto tinha uma paixão desenfreada pelos toiros, e passava por +ser muito entendido em materia tauromachica. + +Quando, no reinado de Fernando VII, se creou uma escóla para ensinar +esta sciencia, esteve o bom do homem quasi a ser nomeado _lente +cathedratico_ da faculdade, e este precedente era o bastante para que +elle se considerasse superior ao tio Paciencia, o qual, reconhecendo +esta superioridade, se consolava pensando que, se o seu querido amigo e +elle não eram eguaes na terra, o seriam por certo no ceu. + +O tio Macario era muito feio, mas casou com uma mulher lindissima, porém +levadinha da breca. + +Ao cabo de vinte annos d'um viver amargurado, morreu-lhe o demonio da +mulher, e o pobre homem ficou tão descançado que lhe parecia ter entrado +no ceu; passados tempos, enamorou-se d'outra rapariga, que não ficava a +dever nada á primeira, e casou segunda vez, apesar de todos os esforços +que o seu amigo, o tio Paciencia, fez para lhe tirar isso da cabeça. +Ora, como o tio Paciencia nunca tinha conseguido que as mulheres se +agradassem d'elle, ao passo que do tio Macario se agradavam aos pares, +julgava este ter certa superioridade sobre o primeiro, que, da sua +parte, não deixava tambem de a reconhecer, e que devéras se teria +affligido com isso, se não fôra a lembrança de que o seu bom amigo e +elle seriam eguaes no ceu, já que na terra o não podiam ser. + +O tio Mamerto era capaz de ir até ao fim do mundo para assistir a uma +corrida de toiros; tanto assim, que até costumava dizer: «Parece-me que +trocava de bom grado a gloria eterna por uma boa tourada», ao que o tio +Paciencia replicava sempre, agastado: «Homem, não digas heresias, que +não vá Deus castigar-te.» + +Um dia em que os passaros caíam das arvores, assados pelo sol, havia em +Getafe uma corrida de garraios; o tio Mamerto, foi vêl-os, _á pata_, +segundo o seu costume, e, de volta a casa, acamou com uma febre, que o +levou d'esta para melhor vida. + +No mesmo dia estava muito mal, na cama, o tio Macario, por causa d'uma +tremenda coça que a mulher lhe tinha dado, porquanto se a primeira +mulher lh'as dava grandes, a segunda não lhe ficava atraz. A mulher, que +nunca perdia a occasião de lhe communicar uma boa noticia, deu-se pressa +em lhe participar, que o tio Mamerto tinha _esticado a canella_, e +ouvindo isto, o pobre Macario, que já não estava para muitos sustos, +_esticou_ tambem a sua. + +Como eu já disse, não podia o tio Paciencia viver sem os seus dois +amigos, porque lhes queria muito. Estranhando que, em todo o dia, elles +lhe não tivessem apparecido para palestrar um pouco e fumar um cigarro +na sua companhia, quando á noitinha deixou o trabalho, foi procural-os, +e soube então que ambos tinham morrido. Essa noticia causou-lhe um abalo +enorme, e, n'aquella mesma noite, tomou atraz d'elles o caminho do outro +mundo, com a grande consolação de que ia finalmente para onde todos os +homens eram eguaes. + +Toda a visinhança sentiu muito a morte do tio Paciencia, pois todos +depositavam tamanha confiança na sua honradez e no seu caracter docil e +serviçal, que, quando careciam de trocar algumas notas do banco +d'Hespanha, encarregavam d'isso o tio Paciencia, que era capaz de morrer +arrebentado, para dar conta da incumbencia. + +Na manhã seguinte á morte dos tres amigos, o bruto do creado particular +do marquez, quando entrou no quarto, teve a imprudencia de dizer a seu +amo que o sapateiro do portal morrêra, ao saber que dois amigos seus +tinham faltado quasi de repente. E como o marquez era um fidalgo muito +apprehensivo, e corriam uns certos rumores de cholera em Madrid, +assustou-se tanto com a saída de sendeiro do bruto do creado, que, +poucas horas depois, era cadaver, com grande desgosto da pobreza do +bairro. E por todas as partes se se ouvia dizer: «Estes homens, assim, +nunca deviam morrer.» + + +II + +O tio Paciencia emprehendeu a jornada do ceu, muito contente com a +esperança de gosar da gloria eterna, de viver em um mundo onde todos os +homens eram eguaes, e finalmente de encontrar ali os seus queridos +amigos Mamerto e Macario. Com relação porém a este ultimo pensamento não +deixava elle de ter suas duvidas, porque dizia lá para os seus botões: + +--E se lhe não querem abrir as portas do ceu?! Elles foram sempre homens +de bem ás direitas; mas o demonio da paixão de Mamerto pelos toiros, e a +tolice do Macario de casar segunda vez, tendo-se saído tão mal da +primeira, fazem-me receiar que lhes dêem com a porta na cara. + +Para saír um tanto de duvida, perguntou a um viandante se tinha visto +passar por alí dois sugeitos, com estes e aquelles signaes; e como elle +lhe respondesse affirmativamente, proseguiu o tio Paciencia no seu +caminho, mais alegre que umas paschoas. + +O caminho do ceu era escabroso e áspero, e essa era por certo a razão +porque n'elle se não encontrava senão gente pobre e habituada á fadiga. + +Impressionado o tio Paciencia por não ver nenhum _figurão_, entre tantos +caminhantes, dizia, de si para si: + +--Não admira que os homens ricos não façam esta viagem, porque teriam de +fazel-a no cavallinho de S. Francisco. Se podessem emprehendel-a de +carruagem, os diabos me levem, se não viamos por aqui mais trens do que +no Prado e na Fonte Castelhana. + +O tio Paciencia interrompeu as suas reflexões ao vêr approximar-se, +vindo do lado do ceu, um homem, que chorava como um bezerro, e dava +mostras da maior desesperação. Era nada mais nem nada menos do que o tio +Mamerto. + +O tio Paciencia sentiu uma pancada no coração, annunciando-lhe alguma +desgraça, quando reconheceu o seu amigo. + +--O que tens tu, homem? perguntou elle ao tio Mamerto. + +--Que demonio hei-de eu ter! Se eu não fosse um bruto, como não ha +segundo, não me fechavam para sempre as portas do ceu! + +--Mas então como foi isso? explica-te com a bréca, que me tens o coração +em talas. Aposto que não foi senão por causa da maldita paixão pelos +toiros. + +--Parece-me que concorreu. + +--Vamos, por quem és, conta-me o que se passou. + +--Cheguei á portaria do ceu, e encontrei alí uma porção de gente, que +estava á espera de vez para entregar os passaportes para o outro mundo. +O porteiro, que visava os papeis, com a sua grande calva _á mostra_, e o +seu mólho de chaves na mão, levava a coisa com toda a pachorra, e +moía-os com perguntas, primeiro que permittisse a entrada. Eu, que, como +é bem natural, estava morto por me vêr lá dentro, disse com os meus +botões:--Este velho, com os seus vagares, é capaz de me conservar aqui +de fóra até á noite. Pois deixa estar, que se te pilho distraído, atiro +commigo lá para dentro, ainda que depois me cortes uma orelha, como +fizeste ao pobre Malco. Estava eu a pensar n'este expediente, quando +vejo o porteiro armar uma questão com um pobre diabo, a quem não deixava +entrar, com o pretexto de ter sido apaixonado de toiros. Ahi temos nós +os toiros! disse eu, ao vêr aquillo. O velhote é capaz de me fazer +esperar uma eternidade, e por fim, se chega a saber que tambem fui +affeiçoado ás toiradas, nega-me a entrada, como aconteceu com o outro. E +que faço eu? Assim que o porteiro deu uma volta: zás! _raspo-me_ lá para +dentro. Já dava graças a Deus pela minha resolução, e vae senão quando o +porteiro, dá-lhe na cabeça contar quantos estavam na portaria, e conhece +que lhe falta um. + +«--Falta-me aqui um! grita enraivecido, e aposto uma orelha que não é +senão o madrileno. Ou elle não fosse de Madrid, o maroto, que se escoou +lá para dentro como um gato: deixa estar que já vamos ajustar contas! + +«--Ó meu senhor, disse da banda um adulador, que tinha assim geitos de +cortezão, quer que eu lh'o saque de lá para fóra por uma orelha? + +«--Deixemos-nos d'orelhas, respondeu o velhote; e chamando uns musicos, +a quem fallava com muito agrado, porque parece que lhe tinham sido +recommendados por Santa Cecilia: Toquem lá a musica da saída do toiro! + +«Os musicos começam de tocar, e eu (sempre sou muito bruto!) ao ouvir +aquelle toque, julgo que ha corrida de toiros na portaria, e sáio muito +lépido a vêl-a; de repente, o porteiro fecha a porta e deixa-me ficar de +fóra, com uma cara de palmo e meio, dizendo-me: + +«--Vá já para o inferno, seu meliante, que uma paixão por toiros como +essa, não póde Deus perdoal-a. + +«E aqui tens tu, querido Paciencia, como eu vou caminho do inferno por +causa da minha maldita mania pelas toiradas!» + +O tio Paciencia prorompeu em amargo pranto ao vêr a infelicidade do seu +velho amigo, e esteve quasi a prégar-lhe um sermão, mas não o fez por se +lembrar de que era prégar no deserto; ambos continuaram, por ultimo, o +seu caminho; o tio Paciencia o do ceu, que era costa acima, e o tio +Mamerto o do inferno, que era costa abaixo. + +--Querem vêr que tambem me acontece alguma na portaria? O tal senhor +porteiro tem um geniosinho endemoninhado! + +Isto dizia o tio Paciencia, seguindo sempre o seu caminho, quando +avistou outro homem, que vinha do lado do ceu. Este não se carpia, nem +se arrepellava; trazia porém a cabeça baixa, e denotava profunda tristeza. + +--Esperem! disse o tio Paciencia. Os diabos me levem se aquelle não é o +tio Macario! Pois que? Não é senão elle! + +Com effeito, o tio Macario era o da cabeça baixa. + +Os dois amigos abraçaram-se commovidos. + +--Tu por aqui, Paciencia! disse o tio Macario. Para onde vaes, homem? + +--Ora, para onde hei de eu ir? Vou para o ceu. + +--Duvido muito que lá entres. + +--Então porque? + +--Porque é difficilimo entrar lá. + +--E em que consiste a difficuldade? + +--Consiste em ser o porteiro o velho mais caturra, que eu tenho visto. E +para prova, basta o que se deu commigo. + +--Conta depressa. + +--Uma frioleira! Chegamos, eu e outro, á porta; chamamos, e apparece-nos +o porteiro, com a sua grande calva e o competente mólho de chaves na mão. + +«--Que é o que querem? pergunta elle. + +«--Essa não está má! o que havemos nós de querer senão entrar? + +«--Você é casado ou solteiro? pergunta o velho ao meu camarada. + +«--Casado, responde o tal sugeito. + +«--N'esse caso póde entrar, que basta essa penitencia para um homem +ganhar o ceu; e isto por maiores que sejam os peccados, que haja +commettido. + +«E o meu companheiro entrou lá para dentro. + +«--Caspite! disse eu com os meus botões; se aquelle ganhou o ceu por se +ter casado uma vez, com mais razão o devo eu ter ganho por me haver +casado duas. E larguei atraz do meu companheiro. + +«--Onde vae o senhor? perguntou o porteiro, detendo-me por uma orelha. + +«--Homem, o senhor deve estar farto de o saber! Vou para o ceu. + +«--É casado ou solteiro? + +«--Casado duas vezes á falta d'uma. + +«--Duas vezes?! + +«--Sim, senhor, duas vezes. + +«--Pois vá para as profundas do inferno, que tolos d'esse lóte não têm +entrada no ceu. + +«E aqui vou eu, amigo Paciencia, caminho do inferno! São coisas que só a +mim acontecem!...» + +--É bem feito, disse o tio Paciencia, entre compadecido e indignado da +parvoice do seu amigo. Não te dizia eu que não podia obter perdão de +Deus quem duas vezes se casasse? + +O tio Paciencia já não ia muito satisfeito e tranquillo, ao aproximar-se +das portas do ceu, porque as noticias que recebera do geniosinho do tal +porteiro, eram, na verdade, para intimidar o mais pintado. + +--Vamos, tio Paciencia, dizia elle, é preciso que não desmintas, n'esta +occasião, o appellido que te puzeram, porque, se consegues catechisar o +porteiro, cólas-te lá dentro, e depois é que já ninguem te dá volta. O +velhote é exquisito de genio, caturra e curioso como todos os +porteiros... Mas tambem, deve a gente lembrar-se de que o pobre do homem +é tão velho, que já não póde com os calções, e devemos ser indulgentes +para com os velhos como para com as creanças, porque os extremos +tocam-se. Demais, a paciencia é uma virtude, que o proprio Jesus +recommendava ao apostolo S. Pedro, como se vê da seguinte cantiga: + + Era S. Pedro na calva + perseguido do mosquito, + e o Mestre lhe dizia: + --Tem paciencia, _Periquito_! + +Ao terminar estas reflexões, avistou o tio Paciencia as portas do ceu, e +estremeceu d'alegria, lembrando-se de que estava já a meio kilometro de +distancia do mundo onde todos os homens eram eguaes. + +Chegou finalmente á portaria, e viu que não havia lá viva alma, o que +devéras lhe agradou, porque assim não se expunha a morrer arrebentado, +como quando ia trocar notas ao banco d'Hespanha. + +Deu uma aldrabada pequena na porta, e um velho, que não tinha um pello +na cabeça, abriu o postigo e perguntou-lhe: + +--O que quer você d'aqui? + +--Ora, o Senhor lhe dê muito boas noites, lhe tornou o tio Paciencia, +com a maior humildade, tirando o chapeu. Como passou? Passou bem? + +--Muito bem, muito obrigado. Mas o que queria o senhor? + +--E a senhora e os meninos estão de saúde? + +--Homem, despache d'aí, diga o que quer. + +--O senhor não tem senão desculpar... mas... nada... eu... vinha vêr se +o senhor me deixaria entrar. + +--Sente-se ahi, n'esse banco, e espere que venha mais gente, que não se +póde andar sempre a abrir e a fechar esse maldito portão, que é mais +pesado que um marido jogador. + +--Está bem, senhor, essa é boa; faça favor de perdoar. + +--Não ha de quê. + +O velhote fechou o postigo, e o tio Paciencia, a quem as ultimas +palavras, que ouvíra, deram alma nova, sentou-se n'um banco, e começou o +seguinte soliloquio, para passar o tempo: + +--O tal senhor porteiro é realmente um grande caturra. Quem diabo podia +suppôr que o homem se esquentaria por eu o cumprimentar como Deus manda! +Mas apesar de ter o genio um tanto assomado, bem se conhece que é um +santo. Pois, senhor, esperemos aqui, no banco da paciencia. + +Estava o tio Paciencia entretido a apertar um cigarro, quando, ouvindo +uma tremenda aldabrada na porta, que por pouco a fazia em hastilhas, +ergueu a cabeça, e viu então que a pessoa, que com tanta arrogancia +chamava, era nem mais, nem menos, que o seu visinho marquez. + +--É melhor bater com a cabeça! gritou de dentro o porteiro, ao ouvir +aquelle barulho. Quem é o bruto que chama assim? + +--O excellentissimo senhor marquez de Pelusilla, grande d'Hespanha de +primeira classe, cavalleiro de todas as ordens creadas e por crear, +senador do reino, etc., etc. + +Mal isto ouviu, o porteiro abriu de par em par a porta, quebrando pelo +espinhaço com muitas reverencias, e exclamando: + +--Perdoe v. exc.^a se o fiz esperar algum tempo, mas... é que eu não +suppunha, que tivessemos por cá tamanha honra. Queira v. exc.^a entrar, +que, pela _balburdia_ que lá vae por dentro, é de crêr que já tenha +corrido a noticia de que temos por estes bairros o cavalheiro mais +illustre e mais rico de toda a Hespanha. + +Com effeito o ceu estava alvoroçado com a chegada do marquez, para o +qual começava a improvisar-se uma recepção esplendida. Repicavam os +sinos, e os foguetes cortavam o ar em todas as direcções; já não havia +uma varanda, nem uma janella d'onde não pendesse um cobertor de damasco, +ou quando menos uma colcha de chita, modesta, mas vistosa. As imprensas +vomitavam versos (ih! que nojo!) em louvor do marquez; os garôtos +_esganiçavam-se_ todos a dar vivas a sua excellencia; as virgens +largavam a costura, e vestindo-se de branco, e pondo na cabeça a sua +grinalda de flores, lançavam mão da lyra, e tocavam e cantavam como +desesperadas; desde as charangas das ruas até a orchestra do theatro +real, todas as musicas faziam ouvir as suas harmonias; em summa, era +tudo festa, jubilo e regosijo. Até o proprio porteiro, quando voltou a +fechar a porta, deu um pulo de contente, exclamando: + +--Bravissimo! Hoje é dia de atirar uma cana ao ar! + +--Sim, como não atires a cabeça!... rosnou por entre os dentes o tio +Paciencia, indignado com o que estava presenciando. + +Repetiam-se lá por dentro as manifestações d'alegria, e o estrondo dos +festejos, e o tio Paciencia, que assistia áquelle enthusiasmo, +continuava n'estes termos o seu soliloquio: + +--E esta!... Ainda me custa a acreditar o que por aqui vae com a chegada +do marquez! Com que, passo toda a minha vida a soffrer com santa +paciencia os trabalhos e humilhações da terra, imaginando que no ceu +todos os homens são eguaes, e que, por conseguinte, me verei aqui livre +de todos os meus pesares e apoquentações, e no fim de contas, chego ás +portas do ceu e recebo logo a prova mais irritante de desegualdade, que +póde imaginar-se! Com que então, aqui, como na terra, a mim, porque sou +um pobre sapateiro, fazem-me estar, como um espantalho, á espera na +portaria, e ao marquez, só porque é marquez e rico, e por vir carregado +de cruzes e _calvarios_, abrem-se-lhe, de par em par, as portas, e +recebem-n'o com repiques de sinos, com foguetes, musicas, versos, e +colchas de seda nas janellas!... Isto realmente é para fazer ferver o +sangue nas veias a um santo!... Porém, paciencia, snr. Paciencia!... Se +consigo a final entrar lá para dentro, o que já me vae parecendo bem +difficil, posso reputar-me feliz, porque alli deve passar-se +divinamente, a julgar pelo pouco que vi, quando o velho deu passagem ao +marquez, e pela baforada, que sae, quando abrem ou fecham a porta ou o +postigo. + +O barulho que este fez ao abrir-se, tirou o tio Paciencia das suas +meditações; fez-se vêr a calva do porteiro, o qual vinha examinar se já +havia gente reunida, á espera, na portaria. + +--O que faz você ahi? perguntou o porteiro, reparando no tio Paciencia. + +--Senhor, respondeu humildemente o tio Paciencia, estava esperando... + +--Se as lebres esperassem tanto!... + +--Como o senhor não apparecia... + +--Tem razão, tem... são tantas as coisas em que tenho que pensar, que de +todo se me varreu da idêa... Eu vou já abrir, amigo. Ora!... mas porque +não chamou por mim, homem de Deus?!... + +--O senhor bem vê que... como sou um pobre sapateiro... + +--Qual sapateiro, nem qual cabaça! aqui no ceu todos os homens são eguaes. + +--Devéras?! exclamou o tio Paciencia, dando um salto d'alegria. + +--Pois, então!... Não faltava mais nada senão andarmos aqui com +cathegorias! Isso é bom lá para a terra! Vamos, entre cá para dentro. + +O porteiro nem por isso abriu toda a porta, como quando entrou o +marquez, mas o sufficiente para que podesse passar _um homem_. O tio +Paciencia acercou-se da cancella, lançou um relancear d'olhos lá para +dentro, e deteve-se ali, dolorosamente surprehendido. As virgens não +largavam a costura, nem os rapazes saíam da escóla; não havia uma triste +sineta que tocasse; os foguetes não rasgavam as nuvens; as musicas não +deixavam ouvir as suas harmonias; nem sequer uma pobre colcha de chita +adornava as janellas, nem tãopouco as imprensas vomitavam versos!... + +O porteiro, que não tinha nada de tolo, adivinhou o doloroso espanto do +tio Paciencia, e acudiu a desvanecel-o, dizendo-lhe: + +--Que quer isso dizer, homem? Então fica para ahi pasmado, em vez de +entrar cá para dentro?. + +--Não me disse o senhor, ainda ha pouco, que no ceu todos os homens eram +eguaes? + +--Disse, sim senhor, e d'ahi?... + +--Então... como é que ao marquez... + +--Homem, você se não é tolo, parece-o! Pois não leu na sagrada +escriptura, que é mais facil entrar um camello pelo buraco d'uma agulha +do que um rico no ceu?... + +--Não, senhor, não sabia isso. + +--Pois póde acreditar que é a pura verdade. Sapateiros, ferreiros, +lavradores, mendigos, gente, em summa, farta de trabalhar e de padecer, +chega aqui a todo o instante, e não temos que estranhar a sua chegada. +Já outro tanto não acontece com os ricos e os fidalgos; passam-se +seculos sem vermos o _focinho_ a um figurão, como esse que veiu hoje, de +modo que, quando algum nos apparece por cá, anda tudo n'uma poeira! Ora, +venha, ande lá para dentro, que já é tempo de descançar. + +O tio Paciencia transpoz o limiar da porta, e não podendo com a alegria, +que o dominava, caíu de joelhos, e exclamou, erguendo as mãos para o +Senhor, que saía ao seu encontro: + +--Senhor! Bemdito sejaes vós, que daes a bemaventurança eterna aos que +padecem na terra! + +FIM DA PORTARIA DO CEU. + + + + +O PRESTE JOÃO DAS INDIAS + + +I + +Não basta que os contos populares deleitem: é mister que, ao mesmo tempo +que deleitam, ensinem. + +Este que vou contar não sei se satisfará á primeira condição; a segunda +porém, ha de por certo preenchel-a, por isso que o leitor, que o levar a +cabo, ficará sabendo quem era o Preste João das Indias, do qual todos +fallam, e pouquissimos são os que o conhecem, a não ser de nome. + +Pois, senhores, havia nas Indias um rei mui poderoso, cujo unico +successor directo era uma filha de tres ou quatro annos. Como o monarcha +se sentisse muito mal, chamou todos os grandes do reino, e fallou-lhes +do seguinte modo: + +--Ando tão adoentado, ha tempos a esta parte, que milagre será não +esticar a canella antes de oito dias, e confesso que essa partida tão +repentina para o outro mundo, me penalisa em extremo, por quanto +desejava deixar casada a minha augusta filha; e no emtanto S. A. não +passa por ora d'um _comecilho_. Asseguro-vos que pouco me importa +morrer, porque para morrer todos nós nascemos, e demais, tanto faz +morrer hoje como amanhã; porém o que eu não queria era que a pequena se +casasse para ahi qualquer dia, em virtude de altas razões d'estado, com +um principe, que não fosse muito do seu agrado. + +--Senhor, lhe tornou um dos homens politicos mais importantes do reino, +faz V. M. muito mal em estar a affligir-se com essas coisas. Quando a +princeza chegar á edade de tomar estado, ha de casar-se com o principe, +que fôr mais do seu gosto; e se houver no reino quem se atreva a querer +oppôr-se á liberrima escolha de S. A., esteja V. M. certo de que tem que +se haver comnosco. + +--Ora, ora! Então cuidas tu que eu engulo essas _patranhas_? replicou o +rei, traduzindo a sua incredulidade n'uma estrepitosa gargalhada. Nem +que eu não soubesse o que são os partidos politicos! Aquelle que então +estiver no poder apresentará a minha filha o seu candidato, e a pobre +pequena terá de se aguentar, não com o marido que mais fôr do seu gosto, +mas sim com aquelle que mais convier aos seus ministros, os quaes, só +por satisfazerem mesquinhos interesses de partido, serão capazes de a +obrigar a casar ainda que seja com o moiro Musa. + +--Mas, senhor, V. M. deve lembrar-se de que este paiz é um paiz +essencialmente monarchico... + +--Isso é bom de dizer! Não estamos nós vendo, todos os dias, homens +politicos, que nos concedem, a nós os reis, até o direito divino, e que, +se um bello dia lhe não agradamos, nos chegam, inclusivamente, a negar o +direito de pessoas decentes! + +--De accôrdo, mas é que esses são uns vilões que nunca deveram ter parte +na luta dos partidos. + +--Mas o grande caso é que a têm no goso dos direitos constitucionaes. + +--Em summa, ordene V. M. o que lhe aprouver, e eu lhe assevero, que póde +marchar tranquillo para o outro mundo, e sem o menor receio de que +deixemos de cumprir rigorosamente as suas ordens. + +--Pois bem, n'esse caso escutae-me: quando minha augusta filha estiver +em edade do tomar estado (e isso é coisa, que facilmente se conhece), +deveis dar-lh'o a saber, tendo em vista todo aquelle recato com que se +deve fallar d'essas coisas a uma donzella; em seguida fareis apregoar +por todas as nações do mundo, que a vossa rainha e senhora resolveu +casar-se, e dará a sua mão ao principe, que mais fôr do seu agrado. + +--Até ahi estamos bem; mas V. M. sabe que o mundo se divide +principalmente em tres religiões, a saber: a religião christã, a +mahometana e a judaica. Devo portanto suppôr que V. M. terá já formado o +seu juizo, ácerca da religião a que deve de pertencer o seu augusto genro. + +--Homem, francamente, ainda nem tal coisa me passou pela cabeça. + +--Ah! pois isso é coisa muito séria! + +--Vae-te d'ahi com esses teus escrupulos de freira! Vós todos sabeis que +no meu reino não ha religião alguma. A fallar a verdade, já por vezes +tenho pensado sobre se conviria ou não que a houvesse, porque ha muito +quem diga, que não póde haver sociedade sem o freio da religião; porém, +no fim de contas, tenho acabado sempre por dizer cá para os meus botões: +«deixar correr; quem me manda a mim metter a redemptor? Que religião +póde haver n'um paiz tão desmoralisado como este, onde todos os dias se +manda gente á forca?! Vá uma pessoa introduzir aqui, por exemplo, a +religião christã, segundo a qual todos os homens são eguaes: haviam de +marchar bem as coisas, desde o momento em que os escravos, que tiram os +coches, soubessem que valem tanto como os senhores, que vão dentro +d'elles, mui _repimpados_!» + +--Visto isso, entende V. M. que a melhor religião... é não ter religião +nenhuma, não é verdade? + +--Não digo isso, homem; nem tanto ao mar, nem tanto á terra. O que eu te +digo é que não tenho querido quebrar demasiado a cabeça, pensando em +coisas tão delicadas. Que escolha, minha augusta filha, marido do seu +gosto, e ainda mesmo que seja pêrro judeu... + +Assim terminou a conferencia do rei com os próceres da republica, e +avisado andou S. M. em não a deixar para o dia seguinte, porque +n'aquella mesma noite teve um ataque tão forte, que esticou a canella, +sem ter tempo sequer para dizer «Jesus». + + +II + +Como era natural, apenas o rei morreu, levantou-se a questão da escolha +d'uma regencia, que devia tomar as rédeas do governo, durante a +menoridade de sua excelsa filha, e então é que foram ellas! + +Sobre se a regencia devia ser de tres, ou d'um unico estadista, e se +este deveria ser Pedro ou Paulo, levantou-se tamanha tempestade, que ia +tudo pelos ares. Por ultimo optaram pela regencia _una_, e por então +terminou a contenda; porém os partidos politicos, para os quaes vêr os +seus contrarios no poleiro e vêr o diabo é tudo uma e a mesma coisa, +começaram novamente a tecer os pausinhos. Era o regente um soldado +destemido e honrado d'uma vez; porém como homem d'estado não passava +d'um _simplorio_, que entendia tanto de governo como eu entendo de +lagares d'azeite; os seus inimigos, aproveitando-se da inepcia com que +elle dirigia a politica, não descançaram em quanto lhe não deram um +pontapé, e o expulsaram do palacio. + +Nomeou-se novo regente. Este então era um passaro que cantava na mão, +porém ao mesmo tempo, tão medroso, que apenas ouvia um tiro, era capaz +de se metter cem braças pela terra abaixo; d'ahi resultava que cada dia +havia um pronunciamento. + +Por effeito de um d'esses pronunciamentos, caíu o regente, e +organisou-se então uma regencia composta de tres magnates. + +Até ali era um só a crear nichos para empregar os seus amigalhotes, um +só a querer enriquecer á custa da nação, um só a monopolisar os favores +da joven princeza, e um só a governar mal; multipliquem agora esse um +por tres, e imaginem a poeira, que se levantou com a tal regencia trina! + +Conheceu finalmente a princeza que estava em edade de casar-se, e correu +voz, por todas as nações, de que ella punha a sua mão a _concurso_ e a +daria ao principe, que mais lhe agradasse. + +Os primeiros, que acudiram ao reclame, foram os judeus, os quaes +trajavam rica e vistosamente, e tinham o cuidado de fazer tinir bem o +dinheiro diante da princeza, suppondo talvez, que o vil _metal_ teria +para ella tantos attractivos como para elles; e, emquanto os que iam á +_mostra_ faziam sua côrte á princeza, andavam os rabinos pelos cêrros +pedindo a Deus, que désse a algum dos da sua casta aquella boa pequena, +que tão bello partido era. + +Chegaram em seguida os mahometanos, e era muito para se vêr, tantos +moiros montados em cavallos, mais ligeiros que o vento, escaramuçando e +jogando canas, a vêr se, assim, engodavam a princeza. + +Afinal appareceram os christãos, que, com suas justas e torneios, e o +seu porte cheio de garbo e gentileza, sabiam encantar o coração das +donzellas. + +--Então, em qual das tres religiões escolhe V. M. marido? perguntou o +presidente do conselho de ministros á rainha. + +--Homem, nem sei o que te diga, respondeu a rainha. Bem se diz que quem +tem que escolher tem que fazer. Se queres que te falle verdade, gosto de +todos. + +--Vamos, mas V. M. precisa decidir-se por um. + +--Asseguro-te que sinto realmente devéras não poder decidir-me, sequer +ao menos, por tres. Olha, que entre os christãos ha alguns rapazes bem +guapos!... mas entre os judeus e os moiros... não te digo nada!... + +--Em summa, disse o presidente do conselho, isto não é sangria desatada; +deixe-os V. M. penar, uns e outros, por espaço d'alguns mezes, e depois, +então, poderá V. M. escolher, com perfeito conhecimento de causa; isto +de escolha de marido é, para as raparigas, operação muito delicada... + +O presidente do conselho teve a honra de que S. M. seguisse o seu +parecer, e christãos, mahometanos e judeus, continuarem a fazer as suas +_zumbaias_ á real moça, cuja mão ambicionavam. + +Chegou noticia a Roma do que se passava nas Indias, e o Padre Santo +ordenou que se fizessem preces, para que Deus inspirasse a rainha afim +de que casasse com um christão, coisa que redundaria em gloria e +augmento da christandade. + +Havia n'aquelle tempo em Roma um Preste ou sacerdote, ainda moço, +conhecido pelo nome de Preste João, o qual era a admiração de toda a +gente, em rasão do seu saber e virtudes, zelo religioso e galhardia. + +O Preste João apresentou-se ao Padre Santo, e disse-lhe: + +--Santissimo Padre, o que se está passando nas Indias é, quanto a mim, +coisa mais seria, do que parece, á primeira vista. Aquillo é um paiz +desgraçado, onde ninguem crê em Deus, nem em Santa Maria; onde todos são +impios e atheus. Se a rainha se casa com algum pêrro judio, estamos bem +aviados; vae tudo para o diabo. Se porém a rainha dér a mão de esposa a +um christão, corto a cabeça, se todos os indios, dentro em poucos annos, +não forem tão christãos como nós. Posto isto, vou pedir uma graça a +Vossa Santidade. + +--Se fôr coisa que eu possa conceder-te... + +--Que V. S. me deixe ir ás Indias, para ver se faço entrar aquella gente +no bom caminho. + +--Estás servido, filho; pódes partir quando quizeres. + +--Pois, n'esse caso, vou immediatamente tirar passaporte. + +--Toma cuidado, filho; vê lá que esses infieis te não preguem alguma +peça... particularmente os judeus... + +--Isso não me mette medo, que por muito que saibam, sempre hei de saber +mais do que elles. + +--Pois vae na graça de Deus, e leva comtigo a minha benção paternal. + +--Graças, Santissimo Padre! + +Foi dito e feito; o Preste João, acompanhado d'um luzidissimo séquito de +sacerdotes, em cujo numero se contavam os melhores cantores de Roma, e +munido de riquissimos paramentos e decorações d'egreja, inclusive um +orgão, que era o melhor que, até então, se tinha visto n'aquelle genero, +tomou o caminho das Indias. + +Felizmente os inglezes não eram, n'aquella época, tão philantropicos, +como o são agora, do contrario não teriam deixado de lhe armar alguma +ratoeira, na idêa em que estão, de que, para civilisar os cypaios, são +mais eloquentes os seus canhões, carregados de metralha, do que os +hyssopes dos missionarios catholicos, ensopados em agua benta. + + +III + +Os judeus e os moiros souberam que o Preste João se dirigia para as +Indias, e estavam atrapalhados da sua vida, porque havia muito tempo que +a fama trombeteira lhes tinha levado noticia do saber, da virtude, do +zelo religioso, e da extremada galhardia do Preste João. + +Chegou este, a final, com o seu séquito, e a rainha ficou enamorada da +graciosa dignidade, com que elle a saudou, a ponto de não poder ter mão +em si, que não dissesse, baixinho, ao presidente do conselho: + +--Olha que este christão não é _nenhuma asneira_!... + +Vendo o Preste João a rainha mui bem disposta em seu favor, aproximou-se +de S. M., e disse-lhe: + +--Senhora, vejo que V. M. vacilla sobre se ha de casar-se com um +christão, com um moiro, ou com um judeu. Creia V. M. que a religião de +Christo é a unica verdadeira, grande e salvadora, e que as outras são +umas _religiõesitas de tres ao vintem_, que nem com cem varas chegariam +ao ceu, d'onde procede, e onde apoia sua augusta fronte o christianismo. +E se V. M. se quer certificar de que isto que lhe digo é a pura verdade, +não tem mais que ordenar, que nos reunamos, na sua presença, judeus, +mahometanos, e christãos, a fim de discutirmos qual das tres religiões é +a melhor, e, sobre tudo, qual é aquella, que mais favorece as mulheres, +pois essa é a grande questão, nas circumstancias actuaes. + +--Com muito gosto; não tenho a menor duvida em acceder aos teus desejos, +respondeu a rainha. Amanhã apresentar-vos-heis todos diante de mim, e +veremos, então, quem é que leva a melhor. + +Com effeito, no dia seguinte, estava a rainha sentada no seu throno, e +as tres religiões, representadas pelo Preste João, e pelos judeus e +mahometanos mais sabios, dispostos a discutir na sua presença. + +--Está aberta a sessão, disse a rainha. E como era o Preste João quem +tinha provocado aquelle certame, devia considerar-se como o primeiro, e +por esse motivo que pedira a palavra, a rainha accrescentou: «Tem a +palavra o Preste João.» + +Os judeus e os moiros começaram logo a murmurar, accusando de parcial a +augusta presidente; esta porém fel-os entrar na ordem, a poder de muitas +razões, e toques de campainha. + +--Senhores, disse o Preste João, trata-se de orientar a S. M. acerca +d'um assumpto mui grave, qual é a escolha do homem a quem, de +preferencia, deve ligar o seu futuro. Ora, o que mais interessa a S. M., +é saber o que mais lhe convém, se um marido christão, se mahometano, ou +judeu; quanto a mim a questão está resolvida, para S. M., desde o +momento em que esta augusta senhora, ou para melhor dizer, _senhorita_, +souber qual é das tres religiões aquella, que mais protege e favorece os +fracos em geral, e a mulher, em particular. + +«Comecemos pela religião judaica. + +«A mulher, no povo de Israel, era escrava submissa do homem, e não sua +companheira. Quasi nas primeiras paginas, nos testemunha isso o velho +Testamento, pois nos diz que Abrahão, marido de Sára, recebeu Agár por +mulher, ainda em vida da primeira, e logo adiante nos conta que Esaú +casou, ao mesmo tempo, com duas irmãs cananêas. O Decálogo, revelado +mais tarde a Moysés, no alto do Sinai, dizia: «não desejarás a mulher do +teu proximo»; mas não dizia: «terás uma unica mulher», e Salomão, que +era o prototypo da sabedoria hebraica, teve milhares de concubinas. +Pergunto eu agora a S. M. se está disposta a soffrer que o seu futuro +marido lhe dê uma, ou mais substitutas?! + +--Substitutas! a mim!... exclamou a rainha indignada. Tenho bom genio +para isso! Mais facil seria enterrarem-me viva! + +--Pois eu continúo.... + +Aqui interrompem os judeus o orador, descontentes do caminho que leva a +sua causa; a rainha porém fal-os entrar na ordem, á custa de repetidos +toques de campainha, e com ameaça de os fazer expulsar do salão. + +O orador continúa: + +--Ficarei por aqui a respeito de judeus, os quaes, em verdade, me causam +dó, ainda que não seja senão por os vêr condemnados a esperar o Messias, +até á consummação dos seculos; com isso já não estão mal castigados por +haverem crucificado a Christo, porque lá diz o rifão: «quem espera, +desespera». Passemos agora aos mahometanos. Quem era o tal Mafoma? + +--O propheta de Deus! exclamam os mahometanos, pondo a mão no peito, e +dobrando-se reverentemente. + +--Qual propheta, nem qual cabaça!... + +Aqui é que foram ellas! Dizer isto o Preste João, e arrancarem os +_moiraços dos chanfalhos_, rugindo de cólera, foi tudo obra d'um +momento; a rainha porém sacudiu a campainha, mandou entrar o piquete da +guarda, e graças a esta energia da presidencia, accommodaram-se os +perturbadores da ordem, e o orador pôde, a final, continuar: + +--Mafoma era um _sugeito_ que passava por sabio e grande, entre os seus +compatriotas, pela razão muito simples de que na terra dos cégos, quem +tem um olho é rei! Um dia, disse elle com os seus botões: Como hei de eu +arranjar a dominar estes _barbaças_, que não tratam senão de se divertir +com as moças?... como?... esperem lá... já sei. Engendro-lhes uma +religião baseada no grosseiro sensualismo, e metto-lhes na cabeça, que +ella me foi revelada por um anjo.» E dito e feito: arranjou o tal +_alcorão_, segundo o qual, a mulher e o cavallo vem a ser, para o homem, +uma e a mesma coisa, por isso que apenas servem para o divertir; e fez +acreditar aos asnos dos seus compatriotas, que, no outro mundo, haviam +de encontrar moças ás duzias, e obra desenganada. + +--E é que as havemos de encontrar! gritam furiosos os mahometanos. + +--Deixemos-nos de lerias!... que hão de vocês encontrar?! Só se forem +alguns tições, que outra coisa não podem lá achar uns barbaros como +vocês, que atravessam seculos e seculos, sem dar um passo na senda do +progresso! Vamos porém agora a vêr o que é a mulher, segundo a religião +estupida de Mafoma. + +--Lancem-se essas palavras na acta! gritam, afogados em cólera, os +mahometanos. + +--Não é da minha real vontade! responde a rainha. Prosiga o orador no +seu discurso, que eu cá estou para lhe manter o uso da palavra. + +--Pois bem, eu continúo: É para cortar o coração, e fazer caír a alma +aos pés, a maneira como a mulher é tratada pelos musulmanos. Não se +contentam estes senhores com ter duas ou tres mulheres; possuem centos +d'ellas, encerradas em carceres, a que dão o nome de serralhos, ou +haréns. Atravessa a gente as cidades mais populosas da Turquia, e não +encontra uma mulher siquer para um remedio; e isto porque esses barbaros +até as privam do ar e do sol, as duas coisas mais preciosas, que a +natureza concede á creatura. Horror! cem vezes horror!! Negarem á +mulher, esse formoso ser, todo amor e ternura, a quem todos nós temos +dado o dulcissimo nome de mãe, o ar e o sol, que não negam aos mais +immundos irracionaes! Maldição sobre essa lei impia, sobre o falso +propheta, que a dictou, e sobre o povo barbaro e fanatico, que a segue! + +--Ah! perro christão!... gritam, a um tempo, todos os musulmanos, ao +ouvir a energica apostrophe do Preste João; e, rugindo de raiva, mais +furiosos ainda do que da primeira vez, lançam mão dos alfanges, com +ameaça de acabar tragicamente com a discussão; a rainha porém, mandou +entrar novamente o piquete da guarda, que os desarmou e os metteu na +ordem, a poder de muita coronhada d'armas. + +Apasiguada que foi aquella rusga, continuou o Preste João o seu discurso: + +--Que differença entre o que a mulher deve á religião christã, e o que +deve a qualquer das duas religiões, mahometana e hebraica! Maria, em +cujas entranhas encarnou o Verbo Divino, senta-se, no ceu, ao lado do +Filho de Deus, e juntamente com Jesus, lhe dão os homens o dulcissimo e +santo nome de mãe. A religião christã glorifica a mulher, destinando-a a +esmagar a cabeça da serpente do peccado, e Jesus proclama a egualdade de +todas as creaturas humanas, e diz aos meninos que se acerquem d'elle, +igualando, por tal forma, a mulher ao homem, e exaltando os fracos em +cujo numero se conta a mulher. É pois a religião christã a unica que +favorece a mulher; é aquella que a emancipa da escravidão e do +opprobrio, a que a condemnam as religiões judaica e mahometana. Tenho +dito; veremos agora se ha ahi alguem, que seja capaz de me contradizer. + +--Teem a palavra os judeus, disse a augusta presidente. + +--A religião de Moysés, replicou um rabino, já completamente desanimado, +não carece de entrar em discussões, para provar a sua superioridade +sobre todas as outras. + +--Ficamos _inteirados!_ disse a rainha, e accrescentou: Teem a palavra +os doutores musulmanos. + +--Nós _cá_, os verdadeiros crentes, exclamou um turco, não discutimos +senão d'alfange em punho. + +--Quer isso dizer, á bruta! exclamou a rainha indignada; e erguendo-se +da cadeira, accrescentou: estando já a hora mui adiantada, e não havendo +mais assumptos a tratar, está levantada a sessão. + + +IV + +Ficou a rainha quasi resolvida a casar com um christão; porém, receiosa +de que houvessem murmurações e commentarios que lhe fossem +desagradaveis, lembrando-se de que alguem poderia dizer que ella obrára +levianamente, determinou-se a tentar uma outra prova. Consistia essa +prova em fazer com que os apostolos das tres religiões celebrassem, na +sua presença, uma das cerimonias mais importantes dos ritos que +professavam. + +Christãos, musulmanos e judeus, todos, com muito gosto, acceitaram a +proposta de S. M., que logo fixou o dia para as cerimonias, que deviam +verificar-se no mesmo salão, onde se tinha discutido qual era das tres +religiões aquella a que mais devia a mulher. + +Os primeiros que saíram a terreiro foram os mahometanos, os quaes +annunciaram que iam executar a _Zala_. + +Tinha a rainha grande curiosidade de presenciar esta cerimonia, que +julgava ser magnifica, e que muito a divertiria; quando porém viu que a +tal _Zala_ consistia tão sómente em cruzarem aquelles _ratões_ as mãos +no peito, e fazerem reverencias e mais reverencias, ficou mais fria que +o proprio gêlo. + +--Muito engraçados são os taes _moirinhos_! disse S. M., com riso +disfructador; e ordenou, em seguida, que saíssem a campo os judeus, a +vêr que tal se portavam. + +O grande rabino, com o seu barrete _enterrado_ até ás orelhas, como usam +os seus correligionarios, sacou d'um livro, e immediatamente appareceram +todos os judeus com os seus ripanços nas mãos. Ora, os taes livros +seriam muito edificantes, mas tinham tanta côdea, que só com uma tenaz +se lhes poderia pegar. O rabino principiou a entoar um psalmo, e todos +os judeus o acompanharam; cantavam porém tão desentoadamente, e davam +tão insoffriveis bérros, que a pobre da rainha não teve outro remedio +senão tapar os ouvidos, e mandar a toda a pressa que cessasse tamanha +algaravia. + +Cessou com effeito, e os christãos dispuzeram-se, por ultimo, a celebrar +o santo sacrificio da missa, para o que o Preste João tinha tudo +perfeitamente ordenado. + +Collocaram no salão um magnifico altar, accenderam uma grande quantidade +de tochas, que faziam bellissima vista; puzeram o orgão n'um sitio, que +tinha excellentes condições acusticas, tossiram e _aguçaram o pigarro_ +os cantores que haviam de officiar a missa, e que, como em principio +dissemos, eram os melhores de Roma; e, em seguida, subiu o Preste João +ao altar, magnificamente revestido, bem como os dois acólitos, que o +acompanhavam. A missa foi solemnissima, e tanto os celebrantes, como os +cantores e o organista fizeram prodigios, que deixaram de bôcca aberta a +rainha e a sua côrte. + +Os mahometanos e os judeus olharam uns para os outros, e disseram por +entre os dentes: + +--Derrotaram-nos em tudo e por tudo estes perros christãos! + +E na verdade não se enganaram, porque a rainha chamou, pouco depois, o +Preste João, e disse-lhe: + +--Decididamente caso com um christão. + +--Louvado seja o Senhor! exclamou o Preste João, cheio de santa alegia. +Agora só falta que V. M. escolha o christão, que deve ter a ventura de +occupar o thalamo de tão formosa princeza. + +--Já está escolhido, disse a rainha das Indias, fazendo-se córada como +uma romã. + +--E quem é esse feliz mortal? + +--Tu. + +--Eu!... V. M. não está em seu juiso! + +--Então! faz-te agora de manto de seda!... + +--Não, senhora; porém não sabe V. M. que eu sou padre, e que os padres +catholicos não podem casar?... + +--Que me dizes, homem? + +--Digo-lhe isto, real senhora! + +--Pois, amigo; partiste-me o coração! + +--Então, porque? + +--Porque estou apaixonada por ti, e se não casar comtigo, não caso com +ninguem. + +--Mas, senhora, entre os meus correligionarios ha moços mais bem +parecidos do que eu. + +--Asseguro-te que nenhum me póde agradar tanto como tu. + +--Sinto isso bem; mas eu é que não posso casar. + +--Visto isso, não terei outro remedio, senão dar a mão d'esposa a algum +d'esses moiros... que... diga-se a verdade, entre elles ha rapazes bem +_tirados das canellas_, e o que me não agrada n'elles é apenas a +religião, que professam... + +Quando o Preste João ouviu estas palavras, tremeu dos pés á cabeça, +pensando, e com razão, que, pelo facto de a rainha casar com um +mahometano, todas as Indias, povoadas de milhões e milhões de +habitantes, abraçariam a seita detestavel de Mafoma, ao passo que, se +casasse com um christão, toda aquella gente seguiria a religião de Christo. + +--Senhora, disse elle, por fim, á rainha, póde ser que consigamos +harmonisar tudo. O Papa, que é o Vigario de Christo na terra, é o unico +que póde auctorisar-me a casar com V. M. Vou já escrever-lhe, pelo +correio d'hoje, pedindo-lhe a competente licença. + +--Oh! que feliz idêa! exclamou a rainha; e riam-se-lhe os olhos, de +contente. Bem digo eu que és um rapaz de muitos recursos! + +O Preste João poz logo mãos á obra; escreveu ao Papa, contando-lhe, +muito pelo miudo, o que se passava, e, na _volta do correio_, recebeu de +Sua Santidade a dispensa para casar com a rainha das Indias. + +Celebraram-se, pouco tempo depois, as vôdas, com grandes festas e muito +regosijo (bem entendido, depois da rainha se ter feito christã) e, +passados annos, recebiam o baptismo todos esses milhões de milhões de +indios, que os inglezes, nos nossos dias, se fartaram de metralhar, sem +dó, nem piedade. + +Eis-ahi a historia do Preste João das Indias. Outros a contarão com mais +graça do que eu, porém com melhor intenção por certo que ninguem a conta. + +FIM. + + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Contos escolhidos de D. Antonio de +Trueba, by António de Trueba + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS ESCOLHIDOS DE D. ANTONIO *** + +***** This file should be named 25593-8.txt or 25593-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/5/5/9/25593/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/25593-8.zip b/25593-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..e630aa2 --- /dev/null +++ b/25593-8.zip diff --git a/25593-h.zip b/25593-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..054284a --- /dev/null +++ b/25593-h.zip diff --git a/25593-h/25593-h.htm b/25593-h/25593-h.htm new file mode 100644 index 0000000..c8c868c --- /dev/null +++ b/25593-h/25593-h.htm @@ -0,0 +1,4944 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html> +<head> +<title>Contos Escolhidos</title> +<meta name="AUTHOR" content="D. 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Antonio de Trueba, by +António de Trueba + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Contos escolhidos de D. Antonio de Trueba + +Author: António de Trueba + +Commentator: Inácio de Vilhena Barbosa + +Translator: F. de Castro Monteiro + +Release Date: May 25, 2008 [EBook #25593] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS ESCOLHIDOS DE D. ANTONIO *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + + +</pre> + +<div class="capa"> +<p>PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA +<hr> + +<p style="font-size: 2.5em;">CONTOS ESCOLHIDOS + +<p><SMALL>DE</SMALL> + +<p style="font-size: 1.8em;">D. ANTONIO DE TRUEBA + +<p><SMALL>TRADUZIDOS LIVREMENTE</SMALL> + +<p><SMALL>POR</SMALL> + +<p style="font-size: 1.2em;">F. DE CASTRO MONTEIRO + +<p><SMALL>com uma introducção</SMALL> + +<p><SMALL>POR</SMALL> + +<p style="font-size: 1.2em;">I. DE VILHENA BARBOSA + +<hr style="width: 30%;"> + +<P> +<SMALL>PORTO</SMALL> +<BR><SMALL>Imprensa Portuguesa—Editora</SMALL> +<BR><SMALL>1872</SMALL> +</div> + +<div class="centrado"> +<span class="pagenum"><a name="pag_I">[I]</a></span> +<br> +<br> +<br> +<br> +<p>PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA + +<P>CONTOS ESCOLHIDOS + +<P>DE + +<P>D. ANTONIO DE TRUEBA +</div> +<br> +<br> +<br> +<br> +<span class="pagenum"><a name="pag_II">[II]</a></span> +<br> +<span class="pagenum"><a name="pag_III">[III]</a></span> +<div class="centrado"> +<p>PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA +<hr> + +<p style="font-size: 2.5em;">CONTOS ESCOLHIDOS + +<p><SMALL>DE</SMALL> + +<p style="font-size: 1.8em;">D. ANTONIO DE TRUEBA + +<p><SMALL>TRADUZIDOS LIVREMENTE</SMALL> + +<p><SMALL>POR</SMALL> + +<p style="font-size: 1.2em;">F. DE CASTRO MONTEIRO + +<p><SMALL>com uma introducção</SMALL> + +<p><SMALL>POR</SMALL> + +<p style="font-size: 1.2em;">I. DE VILHENA BARBOSA + +<hr style="width: 30%;"> + +<P> +<SMALL>PORTO</SMALL> +<BR><SMALL>Imprensa Portuguesa—Editora</SMALL> +<BR><SMALL>1872</SMALL> +</div> +<span class="pagenum"><a name="pag_IV">[IV]</a></span> +<br> +<span class="pagenum"><a name="pag_V">[V]</a></span> +<br> +<br> +<br> +<br> +<div class="centrado"> +<p>AO SEU PREZADO AMIGO +<br> +<br> +<P><BIG>I. DE VILHENA BARBOSA</big> +<br> +<br> +<P><SMALL>SOCIO CORRESPONDENTE DA ACADEMIA REAL DAS +SCIENCIAS</SMALL> +<br> +<br> +<p>Como testemunho de gratidão + +<P><SMALL>Offerece</SMALL> +</div> +<br> +<br> +<br> +<br> +<p class="direita"><em>O traductor.</em> +<br> +<br> +<br> +<br> +<span class="pagenum"><a name="pag_VI">[VI]</a></span> +<br> +<span class="pagenum"><a name="pag_VII">[VII]</a></span> +<br> +<br> +<br> +<br> +<p class="direita"><em>Meu querido Vilhena Barbosa.</em><A NAME="tex2html1" + HREF="#foot86"><sup>1</sup></A> + +<P> +A grata recordação das lições que de ti recebi, quando no meu espirito +começava a desenvolver-se o gosto pelo estudo da litteratura; os salutares +conselhos, que me dispensaste, nos primeiros annos da minha adolescencia, +apontando-me a escolha dos auctores, que deveriam formar o meu estylo, +e robustecer as minhas tendencias litterarias; aquellas nossas conversas, +de tamanho interesse para mim, em que as luzes do teu illustrado entendimento +tentavam dissipar as trevas da minha ignorancia, conversas que, pouco +a <span class="pagenum"><a name="pag_VIII">[VIII]</a></span> pouco, e no decurso d'alguns annos de convivencia +intima, iam subindo d'alcance, á medida que, pelo estudo, eu me habilitava +a comprehender-te e a discutir comtigo, seriam já, de per si, sobejo +motivo para que eu te dedicasse este livrinho, se não houvesse ainda +razões de entranhadissimo affecto, razões todas do coração, e completamente +alheias á cultura das letras, que a isso me obrigam, com força de +irresistivel encanto. + +<P> +A minha vida está, desde os mais verdes annos, ligada, por laços indissoluveis, +a essa dedicação illimitada que sempre me votaste. + +<P> +Era eu bem creança, e já tu me franqueavas os arcanos da tua vasta +erudição. Não sei que confiança era a tua na mediocridade da minha +esphera intellectual. Eram horas esquecidas d'instructiva palestra, +em que a historia patria, a philosophia da historia, as sciencias +naturaes, e a litteratura constituiam um thema variado, que me deleitava +e instruia, animando-me a procurar nos livros cabedal de conhecimentos +com que podesse corresponder ao teu paternal intento de me tornar +util a mim e á sociedade. + +<P> +Oh! que saudosos tempos, de feliz memoria, são esses para mim! + +<P> +Quando nos separavamos, continuavas tu, de <span class="pagenum"><a name="pag_IX">[IX]</a></span> longe, a indicar-me +os bons modelos, e a apontar-me um futuro, que a tua céga amisade +antevia para mim, mas que, <em>erat scriptum</em>, eu não deveria attingir. + +<P> +Nunca me abandonaste; e, se foi baldado o teu intento, ao menos da +constancia do teu affecto tiro eu motivo de muito orgulho, e isso +basta para me consolar. + +<P> +Nos primeiros mezes de 1860, época de terrivel amargura para o meu +coração, revelou-se a tua amisade por mim pela prova mais grandiosa, +que póde aquilatar os sentimentos d'alma. + +<P> +Em dezembro, tinha eu vindo de Coimbra ao Porto, a férias. Entrava +em casa com aquelle alvoroço, que tu por vezes presenciaste, e que +sempre me dominava, ao acercar-me de meus paes e de minha irmã. Minha +mãe chorava de alegria, cingindo-me n'um amoroso e prolongado abraço, +e eu correspondia ao seu carinho com todo o affecto, que me inundava +o coração. Sabes como eu a amava. Por mais d'uma vez te achaste ao +nosso lado, no momento de nos separarmos. + +<P> +Eram os transportes de duas almas enamoradas, em presença da amarga +e tyrannica necessidade da ausencia. + +<P> +Assim tambem, quando as ferias se avisinhavam, <span class="pagenum"><a name="pag_X">[X]</a></span> contavamos +ambos as horas e até os instantes, que faltavam para a nossa approximação, +com frenetica impaciencia. + +<P> +N'essas emoções encontradas, por entre riso e lagrimas, se deslisaram +os primeiros annos da minha mocidade. + +<P> +Punge-me recordar esse tempo de tão acerba saudade; enlucta-se-me +a alma, quando se me retrata na mente a imagem de minha piedosa mãe; +e a ti sei eu que hade offender-te a notavel modestia, que é um dos +ornamentos do teu nobre caracter, este publico testemunho, que te +offereço, da minha gratidão. + +<P> +Mas ainda que o coração se me despedace ao escrever estas linhas, +e a despeito da contrariadade, que possa levantar no teu espirito, +proseguirei no meu intento. + +<P> +Tem paciencia, e ouve o que talvez a tua consciencia nunca te mostrasse +em relevo, por causa d'esse sentimento elevadissimo, que esconde aos +olhos do homem a nobreza das suas proprias acções. + +<P> +Poucos dias depois da minha chegada ao Porto, adoeceu minha mãe; e +com tal violencia se apresentou a molestia, que foram infructiferos +todos os esforços, que a medicina fez para a salvar. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XI">[XI]</a></span> A 22 de Janeiro voou aquella alma angelica, a abrigar-se +no seio de Deus. + +<P> +Passarei um véo por sobre o abysmo de insondavel martyrio, em que +esse angustiosissimo lance me sepultou! + +<P> +Decorrido um mez, lembrou-me meu pae a necessidade de voltar para +Coimbra. + +<P> +Acordei então do lethargo em que caíra, depois do fatal acontecimento; +comprehendi quanto havia de justo e paternal n'aquella indicação, +e parti. + +<P> +Quando me encerrei no meu quarto escolastico, e que meditei na transformação, +que, em tão breve lapso de tempo, se operára na minha vida moral, +senti-me succumbir; arrastei-me para junto da janella, que olhava +para o Mondego, e alongando a vista por aquelle formoso quadro, tão +poetico e tão melancolico, deixei-me dominar completamente pela vehemencia +da saudade, que me opprimia, e assim permaneci por espaço de muitas +horas. + +<P> +Nos dias que se seguiram, foi sempre calando, mais e mais, no meu +coração, aquella profunda tristeza, que nada podia dissipar. + +<P> +Os meus companheiros de casa, moços distinctissimos, os quaes ainda +hoje amo como irmãos, <span class="pagenum"><a name="pag_XII">[XII]</a></span> envidavam todos os seus recursos +para me fazer saír d'aquelle estado de depressão de espirito, que +me senhoreava; mas nada podiam conseguir. + +<P> +Por espaço de muitos dias, quando chegava o correio, erguia-me de +subito, machinalmente, para correr ao seu encontro; mas logo, lembrando-me +que já não existia aquella santa, que diariamente me confortava e +fortalecia o espirito, com o balsamo salutar do seu carinhoso affecto, +caía novamente na minha tristeza habitual. + +<P> +Tão dolorosa e renitente enfermidade moral, não podia deixar de transmittir-se +ao corpo. + +<P> +Adoeci. + +<P> +Os progressos da doença foram rapidos e assustadores! + +<P> +Eu delirava, e no meu delirio, evocava o nome de minha mãe. + +<P> +A sciencia deu á molestia um nome; mas o meu coração dava-lhe outro. + +<P> +Os médicos chamavam-lhe pneumonia... mas eu chamava-lhe <em>Saudade</em>! + +<P> +Todos os meus companheiros, á porfia, se esforçavam por me provar +a sua amisade. D'elles porém havia um, a quem todos respeitavamos, +que logo se collocou á cabeceira do meu leito, servindo-me regularmente +de enfermeiro. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XIII">[XIII]</a></span> Não referirei aqui o seu nome por lhe não ferir a modestia, +que a tem, em tão subido gráo como tu, e a qual eu não ouso devassar. + +<P> +Recordo-me d'elle com muita saudade e muito reconhecimento. + +<P> +E nunca mais nos encontramos! + +<P> +Uma noite acordei e vi um vulto ajoelhado junto do meu leito; sobresaltou-me, +porque me parecia um padre! Era elle, vestido de batina, e que resava +no seu livro de orações! + +<P> +Ergueu-se rapidamente e disfarçou para me não assustar. + +<P> +Eu dissimulei; fingi que o não vira, e nunca lhe fallei d'esta scena +edificante, que ha de sempre permanecer gravada no meu coração. + +<P> +Este livro deve chegar um dia ás mãos d'esse nobre mancebo, de quem +o destino me separou; que elle se recorde de mim com saudade, ao lêr +estas palavras, e veja n'ellas a expressão do muito reconhecimento, +que tambem lhe consagro. + +<P> +A molestia aggravara-se, e ao terceiro dia, apresentava-se temerosa! + +<P> +Eu sentia-me isolado, á mingua do conforto da familia; mas prohibira +expressamente, que avisassem meu extremoso pae da gravidade da minha +situação. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XIV">[XIV]</a></span> Este, ignorando a verdade, e presa de muitos trabalhos +domesticos, não foi ter commigo a Coimbra; mas escreveu-te para Lisboa, +avisando-te de que eu me achava enfermo. + +<P> +No dia em que recebeste a sua carta, dirigiste-te a um dos meus companheiros +de casa, e este fallou-te com franqueza. + +<P> +Isto soube-o eu mais tarde. + +<P> +Vinte e quatro horas depois de teres lido a resposta, a que alludo, +dispertava eu d'um somno angustioso, e vi-te ao meu lado. + +<P> +Quiz erguer-me e lançar-me nos teus braços, mas não pude. + +<P> +Fizeste por me serenar o espirito, sobreexcitado pela tua presença +alli, e começaste a dispensar-me os thesouros do teu acrisolado affecto. + +<P> +A molestia teve-me baloiçado entre a vida e a morte; e por fim, graças +á bondade do Altissimo, que me julgou talvez novo para deixar o mundo, +e que me proporcionou os desvelos do teu carinho, começou a declinar. + +<P> +Foi longa a convalescença. + +<P> +Quando, no decurso d'ella, eu me conservava ainda de cama, tu, sentado +á minha cabeceira, lias alto para me distrahir, ou divagavas sobre +<span class="pagenum"><a name="pag_XV">[XV]</a></span> aquelles assumptos, que sabias me eram mais gratos. + +<P> +Ministravas-me cuidadosamente os remedios e as comidas, temperadas +pela tua propria mão, e informavas diariamente a minha familia das +progressivas melhoras, que eu experimentava. + +<P> +Afinal, ergui-me da cama, e, poucos dias depois, comecei a dar alguns +passeios, pelo teu braço. + +<P> +Ficava a minha casa proxima ao Jardim botanico, e era para ahi que +sempre nos dirigiamos. + +<P> +Estavamos então entrados na primavera, essa estação encantadora, em +que o coração se retempera no ar embalsamado que nos rodeia; essa +<em>gioventù del anno</em>, como lhe chama o poeta, em que toda a natureza +nos sorri, com ineffavel magia. + +<P> +Eu sentia-me <em>renascer</em>; parecia-me participar da qualidade dos +arbustos e das plantas, que nos cercavam; corria-me nas veias uma +nova seiva, e impressionava-me em extremo o grandioso espectaculo, +que se offerecia a meus olhos. + +<P> +Depois de darmos algumas voltas por aquellas frondosas avenidas, sentavamo-nos +n'um banco do jardim, e um ao outro communicavamos as impressões, +que recebiamos d'aquelle panorama <span class="pagenum"><a name="pag_XVI">[XVI]</a></span> encantador das «saudosas +margens do Mondego», que d'alli se observa em todo o esplendor da +sua belleza. + +<P> +Depois, quando o sol, declinando, nos aconselhava a regressar a casa, +levantavamo-nos e deixavamos vagarosamente aquella mansão deliciosa. + +<P> +Os extremos da tua amisade tinham-me furtado talvez a uma prematura +morte, mas não lograram desanuviar-me o coração da magoa, que o suffocava. + +<P> +Deixava-me por vezes dominar de profunda tristeza, e assim me conservava +por largas horas, alheiado completamente do mundo exterior, e só entregue +a amargas cogitações. + +<P> +Um dia entraste no meu quarto, e disseste-me que era preciso saír +de Coimbra; que tinhas conversado largamente com o medico, e que este +fôra de parecer de que a distracção era o unico remedio que podia +completar o meu restabelecimento. + +<P> +Sobresaltou-me a lembrança de que teria de me separar logo de ti. + +<P> +Era uma injustiça que fazia á devoção do teu affecto; mas confesso-te +que não suppunha que tu levasses a tua generosa dedicação por mim, +até entrares commigo na casa paterna. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XVII">[XVII]</a></span> Sabia que a ausencia de Lisboa era em extremo prejudicial +aos teus interesses, e por isso imaginava que tu darias por terminada +a tua caridosa missão, com a minha partida para o Porto. + +<P> +Quanto me enganava! + +<P> +Eu estava ainda muito falto de forças e mal podia entender nos aprestos +da viagem; tu porém a tudo proveste com paternal cuidado. + +<P> +Afinal, por uma aprazivel manhã, saímos de Coimbra. + +<P> +Alugaramos uma carruagem, a melhor que se pôde encontrar, e por essa +bella estrada, que o mau fado da nossa administração publica, devia, +poucos annos depois, tornar quasi deserta, admirando o formosissimo +paiz que ella atravessa, formosissimo pela luxuriante vegetação que +o cobre, e pela extensão dos seus variadissimos panoramas, seguimos +agradavelmente até á primeira paragem, onde deviamos pernoitar. + +<P> +Se bem me recordo era a estalagem d'Albergaria, esse covil immundo, +da qual ainda hoje me não lembro, que não sinta logo pelo corpo, um +certo pruído, que me excita horrorosamente os nervos. + +<P> +No dia immediato continuamos a nossa jornada, <span class="pagenum"><a name="pag_XVIII">[XVIII]</a></span> mas não +com tanta felicidade como na vespera. + +<P> +Levantára-se muito vento, e parece-me que te estou vendo, meu bom +Ignacio, receioso de que o frio prejudicasse o regular andamento da +minha convalescença, repartindo-me em mil cuidados, para me pôr a +salvo d'uma recaída! + +<P> +E agora me lembra um episodio d'essa saudosa jornada, que tem relação +com o que levo dito, e que é mais um attestado do conforto e da commodidade +das taes locandas da antiga estrada coimbrã. + +<P> +Quando chegamos a S. João da Madeira, saímos da carruagem, e entramos +na hospedaria, para jantar. + +<P> +Depois que démos as nossas ordens, na cosinha, subimos para a sala, +onde deviamos esperar que nos servissem; mas era tal a <em>ventania</em>, +que entrava pelos buracos dos vidros, e pelas fendas do telhado, que, +não querendo voltar logo para a carruagem, de que já estavamos fartos, +tomamos o partido de nos sentarmos a um canto, e abrir os chapéos +de sol, a vêr se d'este modo podiamos afrontar a intemperie. + +<P> +Pouco tempo porém estivemos n'essa posição caricata; afinal entendemos +que o mais acertado <span class="pagenum"><a name="pag_XIX">[XIX]</a></span> era jantarmos dentro da carruagem, +e assim o fizemos. + +<P> +Ainda hoje me rio, quando me acode á ideia essa scena de comedia, +que acabo de descrever. + +<P> +D'ahi por algumas horas chegavamos aos Carvalhos, onde nos esperavam, +meu pae e minha irmã, e todos juntos seguimos para o Porto. + +<P> +Com a viagem, que descrevi com leves traços, termina esse episodio +da nossa vida, em que se patenteia bem a elevação do teu caracter, +e a dedicação que te devo; mil annos que eu vivesse, nunca esta pagina +da minha mocidade, se me apagaria da memoria. + +<P> +Sei, e já o disse no principio d'esta carta, que vou offender a tua +modestia, tornando publico esse exemplo que déste da nobreza dos teus +sentimentos. + +<P> +Não importa. És tu geralmente apreciado como homem de letras, quero +que todos te apreciem tambem como homem de coração;—como exemplo +do amigo dedicado. + +<P> +Porto, 12 de janeiro de 1872. + +<div class="rodape"> +<p><a name="foot86"></a><A + HREF="#tex2html1"><sup>1</sup></A> +Vilhena Barbosa só terá conhecimento d'esta carta, quando lhe chegar +á mão o meu livro. O respeito que me merece a sua proverbial modestia +obriga-me a deixar aqui esta declaração.</p> +</div> + +<P class="direita"> +<span class="small-caps">F. de Castro Monteiro.</span> +</P> + +<span class="pagenum"><a name="pag_XX">[XX]</a></span> +<br> +<span class="pagenum"><a name="pag_XXI">[XXI]</a></span> + +<H1><A NAME="SECTION00010000000000000000"> +INTRODUCÇÃO</A> +</H1> + +<br> + +<H2><A NAME="SECTION00011000000000000000"> +I</A> +</H2> + +<P> +As letras e as artes têm muitos pontos de affinidade. Ambas filhas +predilectas da civilisação; caminhando a par na via dos progressos +humanitarios; auxiliando-se e concorrendo mutuamente para o seu commum +desenvolvimento e esplendor; cabendo-lhes egual quinhão de gloria +nos aperfeiçoamentos, grandeza e prosperidade de qualquer nação; tem +identico valor e significação para se aquilatar por ellas a cultura +de um povo; e, finalmente, ambas são um como espelho em que a humanidade +se retrata, <span class="pagenum"><a name="pag_XXII">[XXII]</a></span> tal qual é, segundo as epochas da sua historia. + +<P> +Nas artes é, principalmente, a architectura, pelas intimas relações +que tem com a sociedade, a que resume em si, com maior exactidão, +as idêas, as crenças, as aspirações, as necessidades, em fim, a vida +moral e physica dos povos. + +<P> +Nas letras o romance, a meu vêr, como nas artes a architectura, é +qual lamina em que se espelham, com fidelidade, os pensamentos, a +indole e os costumes da sociedade para a qual foram escriptos. + +<P> +Na traça mesquinha ou grandiosa de um monumento; nas suas fórmas acanhadas +ou esveltas; na ornamentação pesada e mal disposta, ou ligeira e graciosamente +distribuida; na esculptura dos ornatos grosseiros e sem significação +ideal, ou delicados e expressivamente symbolicos, escreveu o architecto, +sem attentar em tal, uma pagina da historia dos seus contemporaneos, +<span class="pagenum"><a name="pag_XXIII">[XXIII]</a></span> eloquentissima na sua mudez, e cheia de verdade, porque +a mão do seu auctor era dirigida, não por paixões ou respeitos humanos, +mas unicamente pelo amor da arte. E julgando o artista que a movia +em cega obediencia aos preceitos da mesma arte, a sua dextra seguia +tambem os impulsos da sua imaginação, que não podia eximir-se á despotica +influencia das idêas e costumes dominantes; e além d'isso, no desempenho +da sua missão, tinha de satisfazer as exigencias e necessidades publicas, +que são sempre determinadas pelo movimento intellectual e pela successiva +modificação dos costumes. + +<P> +O romancista quer que o seu livro corra mundo, e seja lido com prazer. +Para alcançar este <em>desideratum</em>, procura deleitar, e para este +fim tem de vasar a sua obra nos moldes do gosto publico; isto é, tem +de a accommodar ás idêas e costumes em voga n'essa epocha. E ainda +que consideremos <span class="pagenum"><a name="pag_XXIV">[XXIV]</a></span> o escriptor, pegando da penna, sem +que o mova o interesse pecuniario, forçosamente ha de escrever sob +a mesma poderosa influencia das idêas e costumes publicos. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION00012000000000000000"> +II</A> +</H2> + +<P> +Quando as cruzadas, minando pela base o feudalismo, crearam o espirito +cavalleiroso, que, d'envolta com o sentimento religioso, foi adoçando +pouco a pouco a fereza da edade media, e, ao mesmo tempo, abrindo +a porta á illustração do seculo, surgiu o romance, como guarda avançada +das letras; cruzada não menos santa, preparada no remanso do gabinete +pelos primeiros chronistas, annunciada e apregoada pelos antigos trovadores. + +<P> +O romance mostrou-se desde logo o retrato fiel da sociedade, em todas +as phases da sua vida moral e physica. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XXV">[XXV]</a></span>Pois que n'essas eras se manifestavam e expandiam o sentimento +religioso em guerras contra os infieis, e o do prazer em justas, torneios +e caçadas, ou em saraus, onde os trovadores cantavam, ao som do alaúde, +amores e guerras; pois que a justiça humana chamava amiudadas vezes +os delinquentes ao campo dos combates judiciarios; pois que as moradas +da nobreza eram castellos, cercados de fossos, e eriçados de ameias; +as espadas, as lanças e as armaduras os melhores ornamentos das suas +salas; a montearia, a diversão predilecta das illustres castellãs; +o romance, reproduzindo todas estas feições sociaes, tomou a fórma +de novellas de cavallaria. Amores e guerras constituiam, portanto, +o assumpto obrigado d'essas composições. A honra, o valor, a coragem, +a dedicação desinteressada, a fé e a esperança estreitamente unidas, +todos estes dotes de um perfeito cavalleiro, todas estas idêas, que +então occupavam os <span class="pagenum"><a name="pag_XXVI">[XXVI]</a></span> espiritos quasi exclusivamente, até +dos que não possuiam tão nobres qualidades, sobresaíam e brilhavam +com tanto fulgor nas paginas d'essas novellas, como as estrellas que +scintillam no manto negro da noute. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION00013000000000000000"> +III</A> +</H2> + +<P> +Em quanto as cruzadas, attrahindo a um campo commum as differentes +nações da Europa, e pondo em contacto o Occidente com o Oriente, faziam +raiar a aurora de uma nova civilisação, travavam encarniçada lucta +a realeza e o feudalismo. Aquella, soccorrendo-se ao principio popular, +acabou por triumphar do seu poderoso adversario. Porém, durante a +pugna, o poder real teve de arcar com o poder theocratico, o qual, +a seu turno, alcançára victoria sobre a propria realeza. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XXVII">[XXVII]</a></span>A influencia dos pontifices no regimen dos estados, +que tão benevola e providencial se ostentou, em quanto serviu de medianeira +entre os opprimidos e os oppressores, estendendo sobre os mais fracos +a égide do poder espiritual, veiu a tornar-se oppressiva e intoleravel, +desde que, abusando da sua intervenção nos negocios temporaes das +nações, converteu em tyrannia aquella missão paternal. + +<P> +A supremacía dos papas, actuando na politica dos governos e nas idêas +e costumes populares, imprimiu uma grande modificação no viver da +sociedade. Essa modificação não tardou a estampar-se no romance, despojando-o +dos esplendores e galanteria, com que até alli se ataviára, e fazendo-lhe +vestir a roupagem, modesta e singela, mas não falta de poesia, das +lendas religiosas, que lá foram aninhar-se nas chronicas monasticas, +parecendo fugir ás impurezas do seculo. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XXVIII">[XXVIII]</a></span>A fé viva, sugeitando a razão além do dogma; a esperança +vivissima em uma eternidade de gloria e de suprema ventura na outra +vida, como recompensa do refreamento das paixões e das abstinencias, +e como compensação das grandes dôres; o curso geral das cogitações +e controversias dos sabios para as materias theologicas; as diversões +populares restringindo-se, quasi exclusivamente, ás procissões, nas +quaes eram admittidas dansas, e toda a sorte de exhibições phantasticas +e burlescas, aos arraiaes e outras festividades religiosas, e, finalmente, +aos autos sacros, que constituiam o theatro na infancia, depois do +seu renascimento; as provas do fogo, do ferro em brasa, e da agua +fervente, denominadas <em>juizo de Deus</em>, aceites nos tribunaes +de justiça como testemunhos irrecusaveis da innocencia ou da culpabilidade: +todo este pensar e este viver reflectiam-se nas lendas religiosas +com a mesma exactidão e vigor, com<span class="pagenum"><a name="pag_XXIX">[XXIX]</a></span> que o sol reflecte +na superficie das aguas a sua fronte luminosa. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION00014000000000000000"> +IV</A> +</H2> + +<P> +Não é meu intento traçar a historia d'este ramo de litteratura. Direi, +todavia, que d'aquelle modo continuou o romance, em todos os tempos, +e sob todas as fórmas, a reproduzir em si, com mais ou menos naturalidade +e viveza de côres, as mudanças que se vão operando nas idêas e nos +costumes. + +<P> +D'est'arte se revestiu das fórmas classicas, quando, sob a influencia +dos sabios e dos artistas, foragidos de Constantinopla, ao desmoronar +do imperio do Oriente, se operou nas letras, nas artes, e no proprio +viver da sociedade, a grande revolução denominada <span class="pagenum"><a name="pag_XXX">[XXX]</a></span> <em>renascença</em>, +a qual foi inspirar-se nas obras grandiosas da antiga Grecia. + +<P> +Do mesmo modo assumiu o romance a gravidade philosophica, quando Voltaire, +Rousseau, e outros grandes pensadores do seculo passado, proclamando +verdades, que faziam estremecer em seus thronos os monarchas despoticos, +convidavam os estadistas a meditarem nos problemas sociaes, cuja semente +assim lançavam á terra; e excitavam os povos a reflectir na significação +e importancia dos direitos do homem. + +<P> +Assim o romance se tornou historico, logo que a sociedade, sentindo +o mal estar de uma organisação que os progressos da civilisação iam +fazendo caducar, recorria ao passado, como que procurando nos archivos +da historia o elixir para se rejuvenescer; isto é, estudando nas antigas +sociedades as fórmas governativas, que mais lhe quadrariam sob a revolução +que se preparava. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XXXI">[XXXI]</a></span>Quando, em nossos dias, a applicação do vapor á locomoção +e ás machinas industriaes, bem como a telegraphia electrica, pondo +em facil e rapida communicação todos os povos do globo, estabeleceram +novas condições de existencia social, que hão de operar forçosamente, +em maior ou menor espaço de tempo, uma transformação completa, não +só no modo de viver, mas tambem na organisação da sociedade; quando +a attenção dos homens pensadores começava a fixar-se na grande revolução +prevista, e a meditar nos difficeis problemas que ella em breve deveria +offerecer á resolução dos philosophos e dos estadistas; quando a attenção +geral dos povos, desapegada das tradições do passado, se absorvia +inteiramente na contemplação do presente, admirando as maravilhas +do progresso, anciando saciar-se dos gosos, que elle gera com mão +fecunda e prodiga, o romance, deixando tambem em repouso os archivos +da historia, <span class="pagenum"><a name="pag_XXXII">[XXXII]</a></span> começou a inspirar-se nas scenas da vida +actual. E ao passo que retratava a sociedade, dando colorido e relevo +a cada uma das suas feições, lançava á arena da discussão as novas +e grandes questões sociaes. + +<P> +Porém, partindo do mesmo ponto, movidos por egual impulso, os romancistas +contemporaneos, que se dedicaram a descrever os costumes e praticas +da actualidade, dividiram-se em duas turmas, seguindo caminho differente. +Uns, impellidos por uma idêa elevada e generosa, pintaram com côres +negras, mas verdadeiras, todas as angustias e miserias da sociedade +moderna, estudando-lhes as causas, apontando os perigos futuros, fazendo +avultar os defeitos e defficiencias das instituições; chamando, em +fim, a solicitude dos poderes publicos para o horrivel cancro, que +vae corroendo o corpo social. Á frente d'estes illustrados romancistas +colocára-se Eugenio Sue. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XXXIII">[XXXIII]</a></span>Infelizmente, muitos discipulos d'esta eschola, esquecendo +ou despresando os intuitos philosophicos do mestre, trataram sómente +de deleitar; e reconhecendo as tendencias do seculo para os gosos +sensuaes, e para os grandes sobresaltos do espirito e do coração, +puzeram em acção todas as paixões violentas, e todos os instinctos +ferozes da humanidade. Compozeram d'est'arte, é bem certo, quadros +grandiosos, cheios de vida e de animação, scintilantes de fogo e de +energia, em que se succedem uns aos outros os episodios dramaticos, +e as scenas tragicas. Mas, atravez das galas da poesia, com que os +adornaram, e sob o brilho seductor dos ouropeis com que se esforçam +por atenuar, senão santificar, a hidiondez de torpezas e devassidões +repugnantes, transparece o virus da corrupção da alma, ministrado +em taça de ouro á mocidade inexperiente e ávida de commoções fortes. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XXXIV">[XXXIV]</a></span>A outra turma de romancistas tem trilhado mais nobre +senda, no desempenho de uma missão civilisadora e santa. + +<P> +Os seus romances não deslumbrarão, talvez, o espirito com o esplendor +das imagens; não o sobresaltarão com a rapida successão de casos extraordinarios; +não subjugam a razão, nem expõem o coração a contínuo tremor com o +longo encadeamento de commoções violentas. + +<P> +Como o prado, que, sob o sol da primavera, se veste de verdores, que +vae matisando pouco a pouco de flores singelas, mas rescendendo de +suaves aromas, resplandecentes e encantadoras pela viveza e variedade +das côres; e que no inverno troca as alegrias em tristezas, as galas +em miseria, para outra vez folgar e enriquecer-se sob o novo sceptro +de Flora; assim nas producções d'estes romancistas alternam-se as +scenas meigas e suaves da familia com os tristes acasos da sorte, +com as tribulações <span class="pagenum"><a name="pag_XXXV">[XXXV]</a></span> da desventura, emfim, com as tempestades +da vida. N'estes quadros avultam tambem os contrastes, como na natureza; +os toques de luz e de sombra, colhidos nas vicissitudes da fortuna +e no tumultuar das paixões. Figuram ahi alguns dos vicios e crimes, +que são no mundo moral a imagem das forças destruidoras no mundo physico. +Mas apresentam-se, não com o semblante vellado, embora por véo transparente, +que mal deixa distinguir-lhes a fealdade; não com as feições embellesadas +e disfarçadas com arrebiques e louçainhas, que fascinem e lhes conciliem +as sympathias das almas ingenuas e credulas, mas sim taes quaes são, +na sua completa nudez, em toda a sua asquerosa deformidade. + +<P> +Finalmente, d'esta lucta entre o bem e o mal, figurada n'estes romances, +sáe a virtude ou o arrependimento coroado pela felicidade, e o crime +ou o vicio punido pela justiça dos homens, ou pela de Deos, que <span class="pagenum"><a name="pag_XXXVI">[XXXVI]</a></span>dos proprios vicios e crimes fez gerar o castigo que os pune na terra. + +<P> +A esta turma de romancistas, a que pertence a eschola allemã, veiu +associar-se uma outra, ainda mais singela e modesta, talvez, mas tambem +guiada pelo mesmo impulso generoso de deleitar, moralisando. Compõe-se +esta de um certo numero de auctores de contos e tradições populares, +entre os quaes occupa logar de honra D. Antonio de Trueba. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION00015000000000000000"> +V</A> +</H2> + +<P> +Nascido na Biscaya em 1821, uma das provincias da romantica e cavalleirosa +Hespanha, tão original no curso e transformações do seu longo viver; +nascido na Biscaya, repetimos, onde se tem conservado mais arraigado +o respeito ás tradições do <span class="pagenum"><a name="pag_XXXVII">[XXXVII]</a></span> passado, o amor aos antigos +fóros populares, e o apego aos velhos costumes, D. Antonio de Trueba +não podia eximir-se a essa triplice e poderosa influencia. Bebendo +com o leite aquelle respeito; bafejado desde o berço por aquelle amor; +preso áquelles costumes pelas mais doces recordações da infancia, +o seu espirito difficilmente poderia deixar de revoltar-se contra +o progresso, que tudo nivela, abatendo o que era grande, e exaltando +o que era humilde; contra as idêas do seculo, que mofam das crenças +do passado; que despojam de poesia as tradições; que parecem tender +a materialisar a vida á força de commodidades e gosos, creados para +deleite dos sentidos. + +<P> +Resuscitando, pois, as tradições das antigas eras, empenhou-se +em fazer reviver, com todo o brilho d'outr'ora, as santas crenças +de seus maiores. + +<P> +Pondo em parallelo, em alguns dos seus contos populares, os costumes +da velha sociedade <span class="pagenum"><a name="pag_XXXVIII">[XXXVIII]</a></span> com os que se vão modificando +e surgindo no meio do desenvolvimento do espirito humano, insurge-se, +é certo, contra o progresso, e, apontando para a corrupção que elle +gera e alimenta, deixa expandir-se a sua indignação. + +<P> +Mas, quando se pensa em que o auctor d'esses contos e tradições foi +creado no remanso e singeleza da vida campestre; quando se considera +em que os dias da infancia e da adolescencia se lhe deslisaram tranquillos +e alegres no seio da familia, sem que viessem perturbar-lhe o repouso, +desvairar-lhe as idêas e corromper-lhe o coração, o bulicio das cidades, +o tumultuar das paixões e a seducção dos vicios; quando se reflecte +em que os verdores, e as suaves harmonias, e os contrastes pittorescos +do seu valle natal lhe infundiram n'alma a doce poesia da natureza; +e que os carinhos e maximas moraes de uma extremosa mãe e virtuosa +perceptora lhe fizeram <span class="pagenum"><a name="pag_XXXIX">[XXXIX]</a></span> o espirito meigo, franco, recto +e eminentemente religioso; quando se attenta em tudo isto, comprehende-se, +acha-se natural, e desculpa-se aquella insurreição contra os progressos +do seculo. + +<P> +Qual mimosa sensitiva, que se contráe e desfallece ao simples contacto +da mão indiscreta ou bemfazeja, como se a ferisse duro e traiçoeiro +golpe; assim Trueba se confrangiu logo que, transpondo as montanhas +do seu pacifico valle, e achando-se de improviso face a face com a +sociedade, que desconhecia, viu, como que offuscando o brilho das +grandes idêas do progresso, os sentimentos nobres e patrioticos, e +as aspirações elevadas e generosas do coração humano, luctando por +toda a parte, e quasi sempre vencidas pela ambição do poder e das +honras, pela cubiça do ouro, pela sêde dos gosos e dos prazeres, pela +fortuna dos mais atrevidos, e pela inveja dos menos felizes. Irritou-se, +vendo as conveniencias partidarias <span class="pagenum"><a name="pag_XL">[XL]</a></span> e individuaes supplantarem +muitas vezes o interesse publico; vendo as leis severas e inexoraveis +para com os fracos e desvalidos, e frouxas e flexiveis para com os +poderosos ou protegidos; vendo elevaram-se homens, que a falta de +merito condemnava á obscuridade, emquanto ficavam esquecidos e occultos, +nas sombras da modestia e da humildade, muitos cidadãos dos mais prestantes; +ouvindo apregoar maximas e alardear virtudes e serviços, que os exemplos +e os factos desmentiam; indignou-se, reconhecendo no curso da civilisação +as tendencias do seculo para converter nos gelos da descrença e do +egoismo o ardor da fé, a luz benefica da esperança, o fogo santo da +abnegação, do amor do proximo e da patria! + +<P> +Na confrontação do presente com o passado o seu juizo não podia deixar +de ser desfavoravel ao primeiro, porque tudo o que via e ouvia, annuviando-lhe +os verdadeiros <span class="pagenum"><a name="pag_XLI">[XLI]</a></span> resplendores do progresso, contrariava +as suas idêas e os seus habitos, e derrocava pela base os poeticos +e formosos castellos, que phantaseara nos sonhos dourados da adolescencia. + +<P> +E a sua rapida passagem da estreiteza de apertado valle, segregado +por assim dizer, do resto da Hespanha, para a amplidão dos grandes +centros industriaes, para o seio da turbulenta e voluptuosa Madrid, +offuscando-lhe a vista, como se sahira de improviso das trevas para +a claridade, forçosamente lhe havia de obstar a que visse n'essa anarchia +das ideias, n'esse desenfreamento das paixões, n'essa relaxação dos +costumes, emfim, n'essa corrupção moral, que tanto o escandalisavam, +as consequencias naturaes da grande e inevitavel revolução social, +que estamos presenceando. + +<P> +Não lhe deixaria attentar em que este acontecimento é o resultado +dos maravilhosos descobrimentos do seculo XIX, os quaes <span class="pagenum"><a name="pag_XLII">[XLII]</a></span>acabando com as distancias, pondo em intimas e faceis relações todos +os povos do globo, e na presença uns dos outros todos os cultos religiosos, +as locubrações dos sabios de todo o mundo, todos os productos da terra +e da industria humana, haviam de produzir, por effeito de uma força +irresistivel, o duro embate das velhas idêas e dos interesses á sombra +d'ellas creados, com as idêas e interesses, que os progressos humanitarios +iam gerando e desenvolvendo. Não lhe permittiria reconhecer que d'aquelle +embate havia de nascer a lucta a todo o transe; da lucta o exacerbamento +das paixões; d'estas o affrouxamento dos vinculos sociaes e dos proprios +laços de familia; e de tudo isto a desordem nas idêas e a corrupção +geral nos costumes. + +<P> +É este o triste apanagio das revoluções, que tendem, não a derrubar +um throno, ou a mudar uma ou outra instituição, mas sim a assentar +em bases inteiramente novas <span class="pagenum"><a name="pag_XLIII">[XLIII]</a></span> o edificio social. A nossa +época é, infelizmente, um d'esses periodos de desmoronamento, e por +conseguinte de transição, que apparecem de seculos a seculos na historia +geral das nações, como gigantescos e temerosos marcos, erguidos no +caminho por onde a Providencia impelle a humanidade, para assignalarem +e separarem as grandes phases da civilisação. + +<P> +Portanto essa condemnação dos progressos do seculo, que apparece em +alguns dos contos de Trueba, em rasão dos motivos que lhe dão origem, +não deslustra, antes pelo contrario honra o seu coração bondoso e +o seu caracter justo e leal. Mas se alguem, mais severo, ou menos +attento ao que expendi em seu abono, quizer lançar-lhe em rosto as +suas opiniões reaccionarias, leve-lhe em conta a belleza dos quadros +que traça com suavissimo pincel; a singelesa e elegancia do estylo, +com que dá relevo e vida ás meigas scenas de familia e aos risonhos +<span class="pagenum"><a name="pag_XLIV">[XLIV]</a></span> paineis da natureza, e, finalmente, a moralidade que +ressumbra de todas as paginas dos seus livros. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION00016000000000000000"> +VI</A> +</H2> + +<P> +D'este juizo das obras de Trueba, que se me affigura imparcial, deduz-se +naturalmente um pensamento de louvor a quem promove entre nós a vulgarisação +d'estas boas producções. Em uma quadra, como esta, em que a litteratura +portugueza está sendo a todo o momento, não enriquecida, mas sim invadida +por traducções de romances que, na maior parte dos casos, não a honram +pela pureza da linguagem, e a desauthorisam pela licenciosidade dos +costumes, que põem em seductora exposição; presta o traductor um bom +serviço ás letras e á moral publica. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_XLV">[XLV]</a></span>Auctores como Trueba illustram e ennobrecem a litteratura +que os adopta e perfilha. Livros, como os seus, podem ser offerecidos +á mocidade por leaes conselheiros e guias seguros nos escabrosos caminhos +da vida. + +<P> +Na versão prestou o traductor verdadeiro culto aos preceitos e exigencias +da lingua materna, conservando aos pensamentos e ás imagens originaes +toda a sua elevação e vigor, todo o seu brilho e poesia. + +<P> +A litteratura hespanhola é tão rica e variada em todos os ramos do +saber humano, quão mal conhecida, infelizmente, em o nosso paiz, n'estes +tempos modernos. Desde o principio d'este seculo temo-nos quasi restringido +a cultivar a litteratura franceza, dedicando-lhe a nossa exclusiva +admiração, em prejuizo de outras não menos opulentas e brilhantes. +Por conseguinte tambem por este lado o distincto traductor dos contos +<span class="pagenum"><a name="pag_XLVI">[XLVI]</a></span> de Trueba bemmerece dos seus concidadãos. O seu talento, +já provado nas lides de escriptor publico, apresenta agora n'este +ensaio a amostra do que vale no difficil genero, que encetou; difficilimo, +sem duvida, quando se quer verter em linguagem de lei os pensamentos +de auctor estranho com toda a belleza e vigor da inspiração original. + +<P class="direita"> +I. DE VILHENA BARBOSA. +<br> +<br> +<br> +<br> +<span class="pagenum"><a name="pag_XLVII">[XLVII]</a></span> +<h1>CONTOS DE TRUEBA</h1> +<br> +<br> +<br> +<br> +<hr style="width: 20%;"> + +<P class="centrado"> +<big><a href="#SECTION01000000000000000000">NOSTALGIA</a>—<a href="#SECTION02000000000000000000">O MADEIRO DA FORCA</a>—<a href="#SECTION03000000000000000000">A NECESSIDADE</a>—<a href="#SECTION04000000000000000000">A +PORTARIA DO CEU</a>—<a href="#SECTION05000000000000000000">O PRESTE JOÃO DAS INDIAS</a></big> +<br> +<br> +<br> +<br> +<span class="pagenum"><A NAME="pag_1">[1]</a></span> +<br> +<H1><a name="SECTION01000000000000000000"></a> +<BR> +NOSTALGIA +</H1> + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_1">[2]</a></span> +<br> +<span class="pagenum"><A NAME="pag_3">[3]</A></span> +<H2><a name="SECTION01010000000000000000"></a> +<BR> +I +</H2> + +<P> +Mães que tendes filhos e que fundaes a sua felicidade e a vossa em +mandal-os para Madrid ou para a America; lêde este conto, que para +vós o escrevo. + +<P> +Não penseis que é invenção minha o que vou narrar-vos; começa esta +historia no dia 10 de novembro de 1836, época em que Madrid era, <em>peor</em> +e <em>melhor</em> do que hoje. Quem não entender o que deixo dito lembre-se +do que succede com a baixella de prata, que, quanto mais a esfregam, +mais brilha e menos peza. + +<P> +Havia em Madrid um frio intensissimo: nevára na véspera, e antes que +a neve tivesse tido tempo de derreter nas ruas, sobreviera <span class="pagenum"><a name="pag_4">[4]</a></span>uma geada fortissima, o que junto ao vento de Madrid, que mata um +homem e não apaga um <em>candil</em>, dava á temperatura d'aquella heroica +cidade o caracter e a temperatura da Siberia. + +<P> +D. João Quijano, rico banqueiro que morava na rua de Toledo, estava +no seu escriptorio, situado nos baixos da casa, com seu sobrinho D. +Lucas, e n'uma sala contigua trabalhavam em silencio, sentados ás +suas carteiras, dois caixeiros encarregados da contabilidade e da +correspondencia. O gabinete do banqueiro tinha um postigo com vidraça +que dava para o escriptorio geral, e pelo qual o tio e o sobrinho +espreitavam amiudadas vezes, no intuito de se certificarem se os caixeiros +cumpriam as suas obrigações; phrase de que D. Lucas se servia para +os fazer trabalhar, quando os ouvia fallar em cousas alheias aos assumptos +commerciaes da casa. + +<P> +D. João era homem de cincoenta annos, pouco mais ou menos, córado, +robusto, de nariz grande e cabelleira tão bem arranjada e composta, +que os proprios caixeiros não teriam dado por ella, se não fôra <span class="pagenum"><a name="pag_5">[5]</a></span>o genio de sua mulher D. Joanna, que, nos seus accessos de cólera, +lh'o lançava em rosto, chamando-lhe «tio <em>cabelleira</em>». + +<P> +D. Lucas devia ter os seus vinte oito a trinta annos; era pouco mais +alto que um cão sentado, e nem a sua phisionomia, nem as suas palavras +revelavam talento ou bondade de coração. Não obstante isso tolerava-lhe +o tio os defeitos, e até sentia estima por elle, não só por ser empregado +antigo da casa, mas tambem porque podia dizer-se que era D. Lucas +quem carregava com todo o peso do estabelecimento. + +<P> +—Veja lá, tio, disse D. Lucas a D. João, levantando os olhos para +um relogio, que estava collocado na parede, em frente da escrevaninha +do banqueiro,—se tem de ir á Bolsa, não se descuide que são quasi +duas horas. + +<P> +—Parece-me que não vou lá hoje, respondeu D. João; quem ha de saír +de casa por um tempo d'estes? A vida é curta, e se eu morrer... tocam +os sinos a defuncto, e está tudo acabado... Demais deve estar por +ahi a chegar o pequeno e tenho desejos de o vêr. Recebi pelo correio +uma carta <span class="pagenum"><a name="pag_6">[6]</a></span> de meu irmão Martinho, na qual este me diz que +o rapaz saíu de lá no primeiro do mez, na carroça de Chomin, e segundo +o meu calculo, temol-o por ahi hoje. Talvez não fosse mau mandar o +Toribio á estalagem. + +<P> +—Não sei para que; quando elle chegar, cá virá ter. + +<P> +—O pobre pequeno deve vir tolhido de frio. + +<P> +—Não lhe dê isso cuidado; não inspira compaixão quem vem como elle +para Madrid, comer bom pão e boa carne, em vez de comer brôa e batatas +n'uma aldeia da Biscaya. + +<P> +—Pois apesar d'isso estou bem certo de que preferiria encontrar +hoje, ao apear-se da carroça, a cosinha de seus pães, com a sua priguiceira +e um bom fogo de rama de pinheiro, a entrar n'esta habitação ricamente +mobilada e com chaminé á franceza. + +<P> +—Parece-lhe que o empreguemos em compras e recados? + +<P> +—Não foi essa por certo a ideia de seus paes quando resolveram mandal-o +para Madrid. É preciso collocal-o no escriptorio <span class="pagenum"><a name="pag_7">[7]</a></span> a fim +de que, pouco a pouco, se vá instruindo e orientando no negocio. + +<P> +—Pouco a pouco! Verá como antes de um mez o faço saber mais do que +Merlin. <em>A letra com sangue entra</em>... + +<P> +—Não concordo comtigo, Lucas. Toma conta, não lhe ponhas sequer +a mão; não quero que aconteça com este o que aconteceu com outros, +que á força de maus tratos, os entonteceste, e tive que os mandar +para a terra... + +<P> +Dispunha-se D. Lucas a tomar a defesa do seu barbaro systema d'educação, +quando tocou a campainha;—calaram-se de subito, tio e sobrinho, +applicando o ouvido na direcção do portal. + +<P> +—Elle ahi está! exclamaram ambos a um tempo, ao ouvirem no patamar +a voz do pequeno que saudava o creado que fôra abrir-lhe a porta. + +<P> +—Senhor, disse este com sorriso d'escarneo, apparecendo á entrada +do escriptorio, está aqui Chomin com o <em>rocim-chegado</em>. + +<P> +D. João franziu as sobrancelhas como descontente de que o creado se +atrevesse a proferir o estupido equivoco que vae escripto <span class="pagenum"><a name="pag_8">[8]</a></span>em italico, ao passo que o sobrinho soltou uma estrondosa gargalhada +em honra da graça de Toribio, que era um asturiano tonto com pretenções +a faceto: + +<P> +—Que entrem, respondeu D. João. + +<P> +Com effeito Chomin, que era um dos recoveiros das provincias Vascongadas, +entrou no escriptorio, acompanhado d'um menino de doze a treze annos. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION01020000000000000000"> +II</A> +</H2> + +<P> +Não se tinha enganado D. João, suppondo que a pobre creança chegaria +gelada. + +<P> +Angelo (era assim que se chamava o novo caixeiro dos snrs. Quijano +e Sobrinho) estava a tiritar com frio; tinha as mãos e a cara lividas +e os seus olhos indicavam que, na noite antecedente, em vez de se +terem fechado para o somno, se tinham aberto para o pranto. O pobre +rapazinho <span class="pagenum"><a name="pag_9">[9]</a></span> parou á porta do escriptorio, com o chapéu na +mão, de cabeça baixa, e mal pôde articular um cumprimento. + +<P> +—Ora aqui o tem, disse Chomin, depois das saudações do estylo. Desde +que saímos da aldeia, ainda não cessou de chorar com saudades das +suas vaccas e das suas cabras. + +<P> +—Pobre pequeno! exclamou D. João, afagando Angelo. + +<P> +—Deixe lá, atalhou o almocreve, que o pão trigo de Madrid faz esquecer +de prompto a brôa de Biscaya. Bem diz o provérbio que «<em>de Madrid +só para o céo</em>». + +<P> +D. João acercou-se de Angelo, e disse-lhe, correndo-lhe a mão pela +cabeça: + +<P> +—Vamos, homem, então, que tal achas Madrid? Parece-te melhor que +a tua aldeia? + +<P> +—Não, senhor, respondeu o pequeno com os olhos arrasados de lagrimas. + +<P> +—Dizes bem, dizes! exclamou D. João, pondo-se a rir e fazendo uma +nova caricia ao rapazinho. Devem ser assim os homens; a melhor terra +é sempre aquella que nos viu nascer. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_10">[10]</a></span>—Sim, sim, ria-se tio, disse D. Lucas, fazendo um gesto +de enfado; ria-se da sandice d'esse bruto. Não ha duvida, o rapaz +promette! Mas deixa estar que caíste em mãos de quem te sabe ensinar! + +<P> +—Não se afflija, snr. D. Lucas; o <em>rapazelho</em> põe-se fino com +um bom par de açoites todos os dias. + +<P> +—Isso fica por minha conta, respondeu D. Lucas. + +<P> +—Valha-me Deus; não sejam assim, replicou o banqueiro; que admira +que o pequeno tenha saudades de seus paes, se nunca se separou d'elles? +E accrescentou, dirigindo-se a Angelo: deves trazer vontade de comer? + +<P> +—Não, senhor, respondeu o menino, lavado em lagrimas. + +<P> +—Não chores, disse D. João; chega-te para o lume e aquece-te, emquanto +não chamam para o jantar, e logo tomarás conta do teu serviço e verás +como antes de um anno te tornas um verdadeiro negociante. + +<P> +O pequeno approximou-se da chaminé com o chapéu na mão; mas como o +cegavam as lagrimas, tropeçou n'uma cadeira <span class="pagenum"><a name="pag_11">[11]</a></span> e lançou por +terra uns papeis que estavam sobre ella. + +<P> +—Desastrado! não vês por onde andas? exclamou D. Lucas, agarrando-lhe +n'um braço e sacudindo-o com violencia. + +<P> +De repente effectuou-se no animo do menino uma reacção inesperada. +Elle que, um momento antes, mal se atrevia a levantar os olhos, ou +a pronunciar uma palavra, ergueu a fronte com altivez, e virando-se +para D. Lucas, disse-lhe: + +<P> +—Expulse-se-me de sua casa, mas não me maltrate. Aqui maltratam-me, +emquanto na minha aldeia me choram. Como quer então o senhor que eu +goste mais d'esta terra do que da minha?! E accrescentou, dirigindo-se +ao almocreve: + +<P> +—Já não quero aqui ficar; volto comsigo para a Biscaya. + +<P> +Estas palavras, bem longe de commoverem D. Lucas e o almocreve, fizeram +rir este e encolerisar aquelle, que murmurou, levantando o punho fechado +sobre a cabeça da creança: + +<P> +—Se fosses meu filho abria-te a cabeça com um murro! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_12">[12]</a></span>D. João, porém, saíu em defeza do pobre rapaz, arredando +d'elle com violencia seu sobrinho, e exclamando: + +<P> +—Lucas, já te disse que não consinto que lhe ponhas a mão. Se o +achas rude e acanhado, se está commovido e saudoso, recorda-te de +como eras tambem, e do modo como te apresentaste quanto vieste para +Madrid. E Vm.<sup>ce</sup>, snr. carroceiro, fique sabendo que não +se tratam os racionaes como as mulas. + +<P> +—Não faça caso, snr. D. João; isto em mim não passa de um gracejo, +e senão elle que diga a maneira como eu o tratei pelo caminho. + +<P> +—Carregando-me de lenços de contrabando! O que me valeu foi não +me revistarem á entrada das portas; do contrario estaria a estas horas +na cadeia! + +<P> +—Não está mau modo de cuidar da innocente creança, que foi confiada +á sua guarda! exclamou D. João, olhando com indignação para o almocreve. +Retire-se já da minha presença, que me estão dando tentações de dar +uma parte de si á policia. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_13">[13]</a></span>—Ora, snr. D. João!... Então o senhor faz caso do que +dizem creanças? + +<P> +—Já lhe disse que se retire da minha presença. + +<P> +—Está bem, snr. D. João; mas... + +<P> +—Não ha aqui mas, nem meio mas. Tenho dito, ponha-se no andar da +rua. + +<P> +O carroceiro não se atreveu a replicar e retirou-se murmurando não +sei que insolencia. + +<P> +D. João arrastou uma cadeira para junto do fogão, e sentou-se ao lado +de Angelo que tinha cessado de chorar. O pobre pequeno estava já um +tanto mais satisfeito por ver que nem todos n'aquella casa o tratavam +com aspereza, e que se havia ali quem o maltratasse, tambem tinha +quem o defendesse e lhe proporcionasse consolações e affagos, que +lhe faziam lembrar os que deixára no lar domestico. + +<P> +D. Lucas despeitado por vêr que o tio tomava as dôres pelo recem-chegado, +a ponto de o reprehender a elle pela sua falta de humanidade, tinha-se +retirado para o escriptorio, e por conseguinte ficaram sós, Angelo +e D. João. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_14">[14]</a></span>Era este natural da aldeia do pequeno, e posto tivesse +ido para a côrte de tenra edade, e absorvessem de ordinario todos +os seus pensamentos e acções os assumptos commerciaes, nem por isso +havia renegado o paiz natal, nem esquecido os seus parentes. + +<P> +—Vamos, Angelo, disse elle ao rapazinho com modo carinhoso, dando-lhe +uma palmada no hombro; conversemos um bocado ácerca da nossa aldeia; +venham de lá algumas noticias frescas d'aquella boa gente. Então de +quem te despediste tu antes de partir? + +<P> +—Despedi-me de todos os meus parentes e vizinhos. + +<P> +—Muito bem! N'esse caso havias de vêr meu irmão, não é verdade? + +<P> +—Sim, senhor, recommendou-me que lhe désse muitas lembranças, e +bem assim á senhora D. Joanna, e a D. Lucas... mas a este é que eu +as não dou. + +<P> +—Não sei porque não, filho. + +<P> +—Porque me trata muito mal. + +<P> +—Não faças caso, homem. Com que então deram-te lembranças para mim? + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_15">[15]</a></span>—Sim, senhor, e especialmente o snr. abbade. + +<P> +—Deve estar muito velho, o bom do padre! coitado! + +<P> +—Não, senhor; se o visse andar por aquelles montes ficava admirado. +Ninguem dirá que tem mais de quarenta annos. Como não ha, lá na aldeia, +quem não reze a Deus todos os dias para que lhe dê saude, não tem +nem uma dôr de cabeça. + +<P> +O colloquio de D. João e Angelo, interessantissimo para ambos elles, +foi interrompido logo em começo pela entrada do asturiano, que tinha +chamado ao menino <em>rocim-chegado</em>. + +<P> +—Senhor, disse o creado, manda dizer a senhora que está a <em>mesa +na sôpa</em>. + +<P> +O banqueiro riu-se d'esta troca de palavras e encaminhou-se para +o primeiro andar. + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_16">[16]</A></span> +<H2><a name="SECTION01030000000000000000"></a> +<BR> +III +</H2> + +<P> +Não estava a mesa na sôpa, mas estava a sôpa na mesa, e D. Joanna, +a esposa de Quijano, aguardava com impaciencia a chegada do marido, +não porque tivesse o estomago vazio, mas sim porque o seu caracter +irascivel e dominador não supportava que a fizessem esperar. + +<P> +D. Joanna, que entrára como creada e acabára por ser ama em casa de +D. João Quijano, tinha o relogio atrazado, pois assegurava ter trinta +annos, ao passo que a sua physionomia, e o que ainda é mais, a certidão +do baptismo, lhe davam quarenta. + +<P> +Deter-me-hei pouco na descripção dos seus dotes physicos; direi apenas +que as creadas, que despedia todas as semanas, a mimoseavam, ao descerem +pela ultima vez as escadas, com os epithetos de: <em>dentes de cavallo</em>, +<em>estafermo</em>, e <em>olhos de gato</em>. + +<P> +Quanto ao moral era D. Joanna a personificação da antithese; alternavam-se +n'ella <span class="pagenum"><a name="pag_17">[17]</a></span> a vaidade e a modestia, a avareza e a liberalidade, +a crueldade e a compaixão, a elegancia e a falta de gosto no vestir. + +<P> +Se um dia fazia gala, em uma reunião de pessoas distinctas, de não +ter gasto até a edade de quatorze annos, outro calçado que não fosse +o do seu <em>proprio coiro</em>, despedia, no dia seguinte, uma creada +por a pobre rapariga pedir, na sua innocencia, ao carteiro, que lhe +lêsse uma carta do seu noivo, por isso que sua ama não sabia lêr; +agora despedia um mendigo com a seguinte blasphemia: «Vá pedir a S. +Bernardino», que na bôca dos que podem e não querem dar, substitue +a <em>supplica</em>—«queira perdoar, irmãosinho, não póde ser agora»—que +costumam usar os que querem e não podem; e logo, sabendo que qualquer +vizinho estava doente e precisado de meios, era muito capaz de lhe +mandar uma boa esmola. Pela manhã dava uma <em>tarêa</em> ao cão por +este ter mordido o gato, e de tarde dava outra ao gato por ter arranhado +o cão; na quarta feira ia passear ao Prado, de vestido de velludo, +e na quinta apresentava-se no mesmo sitio de vestido de chita. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_18">[18]</a></span>Se sou tão minucioso e até prolixo, é porque não quero +que alguem critique e censure no pintor as inconsequencias do original. + +<P> +D. Joanna dominava por tal arte o marido, que a vontade d'elle estava +sempre subordinada á sua. D. João tremia diante d'um gesto ameaçador +da mulher, e por mais d'uma vez teve ella um accesso medonho de cólera +só porque o honrado banqueiro entrou em casa ás dez horas em vez de +se recolher ás nove. + +<P> +—Ora, com effeito, disse D. Joanna, quando D. João entrou na sala +do jantar, já julgava que seria preciso metter-lhe empenhos, e dirigir-lhe +algum requerimento para que o senhor se resolvesse a vir jantar. Se +se persuade que eu estou para aturar as suas grosserias, está muito +enganado. + +<P> +—Sempre tens muito mau genio, Joanninha! disse o banqueiro, esfregando +as mãos e com um sorriso affavel nos labios. + +<P> +Sentou-se D. João á mesa, encheu um prato de sopa e passou-o a sua +mulher; esta porém empurrou-o com tal violencia, <span class="pagenum"><a name="pag_19">[19]</a></span> que todo +o seu conteúdo se entornou na toalha. + +<P> +—Tambem tenho mãos para me servir. + +<P> +—Como gostares mais, Joanninha, disse D. João humildemente. + +<P> +Principiaram a jantar, e por mais que o banqueiro dirigisse a palavra +a sua mulher, em tom agradavel e risonho, não foi possivel quebrar-lhe +o silencio. + +<P> +Por fim resolveu-se D. Joanna a fallar, perguntando ao marido: + +<P> +—Então que negocios tão importantes foram esses que o obrigaram +a deixar-me esperar por si meia hora? + +<P> +—Meia hora! Não sei como não disseste uma, filha! + +<P> +—Faça o favor de me não contradizer! exclamou D. Joanna, com um +gesto terrivel. Eu fallo mais verdade do que você e toda a sua geração. + +<P> +—Então! Não vale a pena alterares-te por tão pouco! A dizer a verdade, +nem por isso eram lá muito grandes os negocios que me prendiam;—estava +conversando com o pequeno. + +<P> +—Com que pequeno? + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_20">[20]</a></span>—Com Angelo. + +<P> +—Pois elle já chegou? + +<P> +—Chegou, sim. Ainda o não sabias? + +<P> +—Não, senhor, ninguem me disse nada. N'esta casa sou eu sempre a +<em>ultima palavra do credo</em>... Pois não devia ser assim, e d'hoje +para o futuro, eu lhe protesto que não tornará a acontecer uma coisa +d'estas, porque, no fim de contas, eu é que sou a dona d'esta casa; +entende o senhor? + +<P> +E dizendo isto, D. Joanna atirou o trinchador com tal furia, que fez +um prato em pedaços. + +<P> +—Oh! menina!... por quem és, Joanninha. + +<P> +—Deixe-me... não me diga uma palavra, quando não... + +<P> +O banqueiro fez um movimento para traz, porque a mulher tinha pegado +n'uma faca e agitava-a convulsivamente. + +<P> +A final o silencio e a humildade do marido desarmaram aquella megera. + +<P> +—Então, quando veiu o pequeno? perguntou ella. + +<P> +—Haviam de ser duas horas, filhinha; eu suppunha que o creado t'o +teria dito. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_21">[21]</a></span>—Não me disse nada. Aquelle Toribio é um bruto, que ha +de ir hoje mesmo para o meio da rua. E que me diz tambem ao mono do +rapaz, que não soube subir para me vir cumprimentar?! + +<P> +—Bem vês que elle, coitado, não sabe... + +<P> +—Pois tem obrigação de saber que sou eu a dona d'esta casa. + +<P> +—Em primeiro logar o pobre pequeno chegou meio morto de frio, e +depois aquelle excommungado de Lucas começou a embirrar com elle, +de modo que a creança ficou logo sem saber de que freguezia era. + +<P> +—Eu me encarrego de o pôr fino com umas correias que alí tenho. + +<P> +—Não digas isso, Joanninha; para o pôr fino, como tu dizes, requerem-se +carinhos e não correias. Já disse a Lucas, que comigo tem de se haver, +se lhe puzer a mão. A ti não é preciso repetir a mesma coisa, porque +tens melhor coração do que o meu sobrinho, e estou até convencido +de que has de ser para Angelo uma segunda mãe. Afianço-te que está +morto por te vêr; a primeira coisa que fez, quando chegou, foi perguntar +por ti. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_22">[22]</a></span>Esta mentira do banqueiro foi o bastante para reconciliar +Angelo com D. Joanna, que disse: + +<P> +—Mas o que faz essa creatura no escriptorio? Porque o não mandaste +subir, logo que chegou, para tomar alguma coisa? Provavelmente está +ainda em jejum, molhado, cheio de frio... + +<P> +—Nada, não, elle disse-me que não tinha vontade de comer; e quanto +a aquecer-se, está no meu gabinete, sentado ao fogão. + +<P> +—E porque foi, então, que Lucas o tratou mal? + +<P> +—Que queres? coisas d'elle! Por ter dito que gostava mais da sua +terra do que de Madrid. + +<P> +—Santo Deus! Pois isso era motivo para ralhar com a creança? Aqui +estou eu a quem, graças a Deus, não falta nada, e no entanto, morro +pela minha aldeia...—Toribio! accrescentou D. Joanna, chamando pelo +creado dos trocadilhos, dize ao rapazinho, que está no gabinete do +senhor, que suba. + +<P> +—Quem, o <em>rocim-chegado</em>? perguntou o asturiano com um sorriso +malicioso. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_23">[23]</a></span>—Atrevido! exclamaram, a um tempo, D. Joanna e o banqueiro; +se tornares a divertir-te á custa d'Angelo, vaes immediatamente para +o andar da rua. + +<P> +O asturiano baixou a cabeça, pouco satisfeito com o exito do seu gracejo, +e um instante depois subia com o pequeno. + +<P> +Angelo saudou D. Joanna com bastante desembaraço, e depois que ella +lhe chegou um prato de bolos, acabou de perder todo o seu acanhamento, +e respondeu com vivacidade ás mil perguntas que por largo espaço de +tempo lhe dirigiram os dois esposos. + +<P> +—Tens muitas saudades de tua mãe? lhe perguntou D. Joanna. + +<P> +—Muitissimas, respondeu o pequeno. + +<P> +—Pois, se fôres bom rapaz, hei-de estimar-te e cuidar tanto de ti, +como se fôra ella propria. + +<P> +—Muito obrigado, minha senhora!... disse o menino; e arrazaram-se-lhe +os olhos de lagrimas... lagrimas d'alegria e de agradecimento. + +<P> +O banqueiro e sua mulher levantaram-se da mesa. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_24">[24]</a></span>—Deixa-te estar aqui, filho, disse D. Joanna a Angelo; +espera que vaes tu agora tambem comer e os teus companheiros. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION01040000000000000000"> +IV</A> +</H2> + +<P> +Pouco depois entraram na sala do jantar D. Lucas e os caixeiros e +sentaram-se á mesa. Angelo porém conservou-se n'um canto, de cabeça +baixa, receioso, e sem se atrever a levantar os olhos para D. Lucas. + +<P> +—Chega-te para a mesa, selvagem, disse-lhe o sobrinho de Quijano. +Parece-me que seria melhor ires outra vez guardar cabras lá para a +tua terra. + +<P> +Alegrou-se o menino e sentiu-se ao mesmo tempo ferido no coração, +ao ouvir estas palavras; regosijou-o a lembrança de voltar para a +sua aldeia e enluctou-se-lhe a alma com o novo insulto que acabava +de lhe ser dirigido. + +<P> +Approximou-se timidamente da mesa, mas não se chegou tanto, como devia, +segundo <span class="pagenum"><a name="pag_25">[25]</a></span> a opinião de D. Lucas; este dando-lhe um murro +nas costas exclamou: + +<P> +—Chega-te mais, bruto! A culpa tem quem não deixa ficar estes animaes +a pastar no campo, ou os não faz comer, quando muito, n'uma manjadoura +em logar de mesa! + +<P> +Todos os caixeiros do banqueiro desataram a rir em honra do chiste +de D. Lucas. + +<P> +O pobre Angelo derramava entretanto uma torrente de lagrimas, e comparava +as caricias da sua familia com aquellas offensas barbaras e grosseiras. + +<P> +—Então, comes ou não comes? perguntou D. Lucas. + +<P> +—Não tenho vontade, respondeu Angelo. + +<P> +—Tanto melhor; d'esse modo não corres perigo de agarrar alguma indigestão, +e hão de abater essas bochechas de <em>frade Bernardo</em>. + +<P> +Por unica resposta continuou Angelo a chorar e a suspirar pelos paes, +pelos irmãos, pelos seus companheiros d'infancia e pelas queridas +montanhas de Biscaya, onde <span class="pagenum"><a name="pag_26">[26]</a></span> até ali tinha vivido tão livre, +tão estimado de todos e tão feliz! + +<P> +E os caixeiros de Quijano a escarnecerem-n'o, a rirem-se d'elle, sem +a mais leve sombra de compaixão, como se a pobre creança fosse um +corpo sem alma, como se a considerassem sem coração para sentir! + +<P> +É na verdade uma coisa que indigna e irrita as pessoas sensiveis, +e que até revolta o animo, a falta d'humanidade com que são, de ordinario, +tratados nos grandes centros, e particularmente em Madrid, os rapazes +que para ali são mandados das aldeias! + +<P> +Chega uma pobre creança, que nunca saíu do seio da sua familia, onde, +se a não cercavam riquezas e commodidades, lhe sobravam carinhos e +ternos cuidados; chega ordinariamente cheia de frio, extenuada de +fadiga, muitas vezes até com fome, e sempre saudosa e triste, e em +logar de a confortarem e de lhe proporcionarem carinhos, de que necessita +então mais do que nunca, todos a escarnecem, todos zombam da sua innocencia +e da sua humildade, das suas lagrimas e da sua linguagem. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_27">[27]</a></span>Ai! não accuseis o auctor d'este livro de se entregar a +falsas declamações; a justificação d'essas palavras conserva-a elle +impressa na sua memoria propensa a recordar, e no intimo do seu coração +sempre disposto a perdoar, para nunca mais saír d'ali. + +<P> +Durante a primeira tarde, que passou em casa de D. João Quijano, foi +Angelo victima da selvageria, que estou condemnando. Abusaram indignamente +da sua natural simplicidade e prudencia, obrigando-o a praticar um +certo numero de coisas, que repugna enumerar; por ultimo fizeram-n'o +persuadir de que todas as pessoas que entravam pela primeira vez em +Madrid, careciam de ser pesadas a fim de pagarem uns certos direitos +proporcionaes ao peso que tivessem. + +<P> +Puzeram-n'o em cima d'uma balança, e ali o conservaram por tanto tempo, +que a pobre creança já tinha o corpo quasi desconjuntado; quando terminou +aquella experiencia de martyrio, que faz lembrar os tormentos inventados +por Diocleciano e Torquemada, teve elle de soffrer outro talvez <span class="pagenum"><a name="pag_28">[28]</a></span>mais doloroso ainda, qual o das mofas e zombarias dos seus verdugos, +que desapiedadamente lhe retalhavam o coração! + +<P> +E os caixeiros do banqueiro, homens barbados, que, como taes, estavam +constituidos na obrigação de proteger o fraco e de consolar o triste; +que eram chamados a desempenhar graves e sagrados deveres na sociedade, +mostravam-se contentes com a sua obra, e imaginavam-se, talvez, cheios +de talento e de graça por haverem illudido e martyrisado uma creança, +que, pela primeira vez na sua vida, vertia lagrimas de desespero, +longe de seus paes que a idolatravam, e das queridas montanhas da +sua patria! + +<P> +Tudo soffreu a pobre creatura em silencio; nem sequer lhe restou o +linitivo de se queixar a D. João dos barbaros tratos de que foi victima; +prohibiram-lh'o os seus verdugos com ameaças que lhe infundiram novo +terror e novo desalento. + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_29">[29]</A></span> +<H2><a name="SECTION01050000000000000000"></a> +<BR> +V +</H2> + +<P> +Dormia toda a familia de Quijano no andar nobre da casa, á excepção +do caixeiro mais moderno e dos cães, que se acommodavam no pavimento +terreo, destinado quasi exclusivamente ao escriptorio e suas dependencias. + +<P> +Os dois cães, Moiro e Pomba, dormiam no gabinete do banqueiro, que +estava ricamente mobilado, ao passo que o caixeiro se alojava n'um +quarto pequeno e humido, alumiado apenas por uma especie de fresta +ou gateira aberta na parede, situado n'um patamar constantemente varrido +pelo vento que entrava da rua e pelo que vinha d'um pateo que havia +nas trazeiras da casa; a mobilia d'esse mesquinho aposento consistia +toda em um leito de pinho com colchão, dois lençoes, um cobertor, +um travesseiro e um lanceiro ou cabide tôsco para pendurar o fato +e... grandes cortinados de teias d'aranha pendentes do tecto. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_30">[30]</a></span>Em tempo dormia o caixeiro mais moderno (rapaz de tempo) +n'um quarto excellente do andar nobre; D. Lucas porém havia disposto +as coisas por outra fórma, muito antes da época a que me refiro; tinha +lá umas ideias <em>suas</em> d'hygiene, em virtude das quaes dizia que +muitas vezes os caixeiros adoeciam por passarem repentinamente d'uma +vida incommoda para uma vida commoda, d'um colchão duro para um colchão +molle, d'um quarto mau para um quarto bom. + +<P> +Quiz o tio oppôr-se áquella estupida innovação, ponderando que o que +fazia adoecer os rapazes que entravam para sua casa não era senão +o pessimo tratamento que recebiam de D. Lucas; este porém, taes argumentos +empregou em defesa da sua theoria, que, para se livrar de polemicas, +teve o pacifico banqueiro de concordar com elle. Os rapazes continuaram +a adoecer, mas D. Lucas afirmava ao tio que tudo aquillo era fingimento +e impostura para que os deixassem dormir no andar de cima, e o bom +do banqueiro, que já não tinha pequena cruz nas teimas e ralhações +<span class="pagenum"><a name="pag_31">[31]</a></span> de sua mulher, não quiz continuar em divergencia com o +sobrinho, e acabou por admittir o seu barbaro systema penitenciario. + +<P> +Patrões e caixeiros ceavam quasi simultaneamente, sendo as sóbras +da mesa dos primeiros servidas aos segundos. D. Lucas comia de ordinario +com estes, excepto porém nos dias sanctificados e á noite, que fazia +companhia aos tios. Não podia o sobrinho do banqueiro tolerar que +os caixeiros fumassem, e não obstante tinha uma paixão desmedida pelo +tabaco; mas diante do tio não era capaz de fumar, e isto explica-se +facilmente. D. Lucas começou a fumar quando, pela sua pouca edade, +carecia para o fazer de occultar-se do banqueiro; e mais tarde, quando +já eram escusadas essas precauções, continuou a matar o vicio ás occultas, +talvez por habito, e talvez tambem por não dar o seu braço a torcer, +por isso que em tempo tinha jurado e tornado a jurar ao tio que bastava +o cheiro do tabaco para o transtornar completamente. + +<P> +Erguia-se da mesa, ainda com o bocado <span class="pagenum"><a name="pag_32">[32]</a></span> na bocca, e entrando +na cosinha, onde comiam os caixeiros, apertando o seu cigarro, que +se não atrevia a accender, com medo de que na sala se presentisse +o cheiro, pegava n'um castiçal e dava a voz de <em>deitar</em> ao <em>rapaz +de tempo</em>. Achava-se este ainda em meio da ceia, por isso que os outros +lhe levavam sempre um prato de vantagem, mas D. Lucas estava desesperado +por fumar, de maneira que o pobre rapaz não tinha outro remedio senão +levantar-se da mesa, dar as boas noites a toda a familia, começando +pelos caixeiros, e seguir a D. Lucas, que já pelas escadas abaixo +tirava cada fumaça que valia bem um dobrão. + +<P> +Em quanto o pequeno se deitava, alumiado pela vela collocada no corredor, +em frente da porta do quarto, acabava D. Lucas de fumar o seu cigarro, +pegava no castiçal, fazia quatro festas aos cães, deitados n'um colchãosinho +muito fôfo, e em seguida subia as escadas a fim de passar um bocado +da noite na companhia dos donos da casa. + +<P> +Se D. João tivesse um hospede e este lhe perguntasse a razão porque +o sobrinho <span class="pagenum"><a name="pag_33">[33]</a></span> descia ao escriptorio, ainda bem não tinha +acabado de cear, seria esta a resposta do banqueiro: + +<P> +—Vae deitar os cães e o pequeno, dar uma vista d'olhos lá por baixo, +vêr se está tudo bem fechado, e demora-se até poder trazer para cima +a luz, porque aqui em Madrid é preciso muito cuidado com os fógos. +Como estes rapazes são em geral muito <em>dorminhocos</em> e Lucas entende +que por nós gostarmos de palestrar o nosso bocado, não se segue que +o pequeno esteja para ahi a turrar com somno, dá-se pressa em o levar +para a cama. + +<P> +Succedeu a Angelo nem mais nem menos do que aos seus antecessores, +com a differença, porém, de que á pobre creança lhe foi dobradamente +mais custoso deitar-se a meia ração, por isso que todo o dia estivera +fazendo cruzes na bocca, e quando o chamaram para a ceia tinha fome +canina. + +<P> +Uma pessoa adulta, oppressa pelo peso de tão profundo desgosto como +era o d'elle, teria olhado para a comida com repugnancia, ainda que +estivesse a caír de fraqueza; <span class="pagenum"><a name="pag_34">[34]</a></span> mas é que uma pobre creança, +se acontece perder o appetite por espaço d'algumas horas, prompto +o recupera, por mais acerbos e cruciantes que sejam os seus desgostos. + +<P> +Angelo deitou-se e Dom Lucas despediu-se d'elle do seguinte modo: + +<P> +—Ora queira Deus que pela manhã não haja preguiça! Aqui não se trata +só de comer e dormir. Ás seis horas <em>varrer</em> bem o escriptorio. + +<P> +Dom Lucas, como temos visto, usava muito d'essa especie de linguagem +impessoal inventada pelos lacaios com o fim de se esquivarem a dar +tratamento. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION01060000000000000000"> +VI</A> +</H2> + +<P> +Angelo, com a solidão do seu aposento, deu-se por compensado da parte +da ceia de que a maldade de D. Lucas o privára. Alí podia sequer chorar +desafogadamente, podia rogar a Deus que o restituisse ás suas <span class="pagenum"><a name="pag_35">[35]</a></span>montanhas, invocar o nome de seus paes, e execrar até os seus algozes, +sem que uma gargalhada de despreso, um dito humilhante ou uma pancada +fossem perturbal-o nas suas cogitações. + +<P> +Ai! muito chorou a pobre creança, n'aquella noite! + +<P> +—Como é triste viver em Madrid! pensava elle. E dizerem na minha +terra que—<em>de Madrid só para o céo!</em>—As pessoas que dizem +isso de certo nunca estiveram aqui! As ruas e as praças estão convertidas +em lodaçaes immundos; a gente anda toda aos encontrões; as carruagens +e os cavallos atropellam e cobrem de lama os transeuntes; as goteiras +alagam os individuos que seguem pelos passeios; e o vento que sopra +das portas faz rebentar o sangue nas mãos e na cara! + +<P> +É bem differente d'isto o meu querido paiz, os campos amenos da Biscaya! + +<P> +Lá alveja a neve lisa e pura por sobre a relva e as penhas, nas arvores +e nos telhados, e quando o sol ou a chuva a derretem não é em lodo +que se converte, mas sim em cristallinos arroios; lá não se apinhôa, +<span class="pagenum"><a name="pag_36">[36]</a></span> confunde e atropella a gente, o gado e os carros, que +a todos Deus concedeu campo e largueza por onde se espalhem á vontade; +e se tambem ali sopra o ar frio do inverno, é ar que dá saude em vez +de tiral-a. + +<P> +Ai! quão differente teria corrido para mim o dia, se o passasse na +minha aldeia! Se lá estivesse, andaria no campo a patinhar no gelo; +teria feito grandes bólas de neve no alto da montanha, para as vêr +despenhar-se no valle; em seguida voltaria a casa, e depois de ter +almoçado junto do lume, subiria á trapeira para apanhar os passaros, +que ali vão abrigar-se do mau tempo e procurar o sustento que não +encontram nos campos cobertos de neve; e á noite, em quanto minha +mãe estivesse preparando a ceia, contar-me-hia meu avô as suas façanhas +da guerra da independencia. No fim da ceia iria para a cama acompanhado +por minha mãe, que depois de me cobrir e agasalhar cuidadosamente, +se despediria de mim, como de costume, com um dôce beijo. Ai! que +differença! assim não estaria, como agora estou, acordado e a <span class="pagenum"><a name="pag_37">[37]</a></span>chorar, mas dormiria tranquillo e socegado até que, com outro beijo, +fosse despertar-me pela manhã! + +<P> +Entregue a tão saudosos pensamentos passou Angelo em claro quasi toda +a noite. Já se ouviam na rua os pregões dos vendilhões e fornecedores +da cidade, o barulho dos carros e os passos dos transeuntes, quando, +vencido pela vigilia, e tomado do cansaço do corpo e do espirito, +caíu n'um benefico somno. + +<P> +Adormeceu profundamente; rosaram-se-lhe as faces, e a posição em que +ficára e a sua respiração serena e plácida, revelavam uma dulcissima +tranquillidade d'espirito; entreabria-lhe os labios aprasivel sorriso, +e, de vez em quando, soltava d'elles os nomes de <em>pae</em>, <em>mãe</em>, +e outros como estes saudosos e gratos ao coração da desventurada creança. + +<P> +Agora sonhava que se achava na aldeia, cercado da sua familia ou brincando +com os seus companheiros de infancia; depois, que trepava ao cimo +das arvores em busca d'um ninho de rôla, ou de pombo torcaz; derribava +ás pedradas as maçãs e as nozes; <span class="pagenum"><a name="pag_38">[38]</a></span> corria ao bosque a fazer +assobios da casca do castanheiro, ou ao ribeiro para construir moinhos +de junco; logo subia ao alto da montanha, coroada por uma ermida, +em roda da qual andava o tambor chamando para a romaria. Por ultimo +sonhava que era noute de S. João, que todo o valle estava illuminado +pelas fogueiras accesas nos oiteiros, e o inundavam d'alegria o repique +dos sinos, os morteiros, as cantigas e os gritos de jubilo, que acompanham +sempre aquella festa classica e essencialmente infantil! + +<P> +Embalado n'estes sonhos deliciosos, que lhe representavam todos os +encantos do seu paiz natal, sonhos que melhor do que ninguem póde +adivinhar o auctor d'este livro, porque tambem chorou e sonhou como +Angelo, não ouviu o pobre menino as sete horas que bateram compassadas +no relogio do escriptorio. + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_39">[39]</A></span> +<H2><a name="SECTION01070000000000000000"></a> +<BR> +VII +</H2> + +<P> +Manoel e Marianno (eram estes os nomes dos dois caixeiros do banqueiro) +desceram as escadas, e vendo que Angelo se não tinha ainda levantado, +dirigiram-se para o seu aposento. + +<P> +—É melhor acordal-o, dizia Manoel, porque se chega D. Lucas e o +encontra a dormir não deixa de lhe fazer a operação do costume. + +<P> +—E que tem lá isso? replicou Marianno, para nós é até um divertimento. +A pena que me resta é não haver aqui á mão um bom molho de ortigas. + +<P> +—Não tenhas mau coração. Já não soffreu pouco hontem o pobre pequeno, +principalmente com a historia da balança. + +<P> +—E que tem que soffresse?! Tambem nós soffriamos quando eramos como +elle. + +<P> +—Pois por isso mesmo que a nós nos trataram mal é que eu entendo, +que devemos tratar agora bem os que se acham em identicas circumstancias. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_40">[40]</a></span>E dizendo isto, approximou-se da cama de Angelo, e principiou +a abanal-o e a chamar por elle; mas o menino estava tão ferrado no +somno, que continuava a dormir profundamente. + +<P> +—Que é lá isso, perguntou D. Lucas, apparecendo á porta do quarto. +Então esse estupido ainda está na cama?! + +<P> +—Está, sim, senhor, respondeu Marianno. + +<P> +D. Lucas proferiu uma praga e accrescentou, dirigindo-se a Marianno: + +<P> +—Vaes vêr como esperta n'um instante. Traz-me lá de cima, da talha, +uma bilha d'agua para se lhe applicar o remedio. + +<P> +Marianno, que parecia feito á similhança de D. Lucas, obedeceu de +prompto, e largou pelas escadas acima, esfregando as mãos de contente. +No primeiro andar, e debruçado n'uma varanda de ferro que dava para +o pateo interior da casa, coberto por um tolde, estava Toribio, escutando +o que se passava em baixo, pois d'alli se ouvia tudo perfeitamente. + +<P> +—Que temos, snr. D. Marianno, perguntou elle ao caixeiro. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_41">[41]</a></span>—Vou buscar uma bilha d'agua para fazermos a <em>operação</em>. + +<P> +—Ao <em>rocim-chegado</em>? + +<P> +—Nem mais nem menos; vem d'ahi, se te queres rir. + +<P> +—Isso já a mim me palpitava, que se lhe havia de fazer o <em>remedio</em>. +Mas a agua não deve ser da talha; essa está pouco fria por causa da +proximidade do fogão. Temos aqui um bom jarro d'ella, que, de proposito, +deixei ficar de noite sobre o alpendre. + +<P> +—És um rapaz de talento, Toribio! exclamou, rindo, Marianno, em +quanto o bruto do creado pegava no jarro da agua. + +<P> +—Deve estar excellente! accrescentou, vendo-a coberta d'uma espessa +crusta de gelo, que foi quebrando com os nós dos dedos, á maneira +que descia os degraus da escada. + +<P> +Toribio não quiz privar-se do barbaro goso de assistir ao martyrio +que ia soffrer a pobre creança, e correu, todo alvoroçado, atraz de +Marianno. + +<P> +Dom Lucas pegou no jarro, e afastando para o lado a roupa que cobria +o menino até ao pescoço, despejou-lhe de golpe toda <span class="pagenum"><a name="pag_42">[42]</a></span> a +agua por sobre o peito, com grande satisfação de Marianno e Toribio. +Manoel, esse, coitado, estava compungido da sorte do rapazinho. Angelo +soltou um grito e ergueu-se de subito, ao sentir no corpo a agua gelada. + +<P> +—Isto é para vêr se acordas! disse D. Lucas, e completou a phrase +com uma nova praga. + +<P> +O menino não replicou, nem tratou sequer de desculpar-se. Atirou immediatamente +comsigo da cama abaixo, e vestiu-se sem proferir uma palavra. Os seus +olhos não derramavam lagrimas, mas derramava sangue o seu coração! +Tinha á cabeceira da cama uma estampa, já enegrecida pelo tempo, representando +Jesus crucificado. Ergueu os olhos para a divina imagem e exclamou +no intimo de sua alma afflicta: + +<P> +—Senhor, levae-me já para o céo ou para as minhas montanhas! + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_43">[43]</A></span> +<H2><a name="SECTION01080000000000000000"></a> +<BR> +VIII +</H2> + +<P> +Do seio d'aquella nuvem de tristeza que o cercava, luziu para o pobre +Angelo um raio de esperança. Pelas conversas que ouviu, de D. Lucas +e dos seus companheiros, veiu no conhecimento de que os caixeiros +do banqueiro tinham licença de saír nos dias santificados e para logo +concebeu a esperança de gosar tambem d'esse prazer, libertando-se +da tristeza e da oppressão de toda a semana, n'aquelle dia de folga +e de liberdade. + +<P> +De quantas necessidades experimentava era por certo a maior a de respirar +por algum tempo livremente, vendo o céo e o sol, as arvores e os campos. + +<P> +Manoel era o unico que dirigia a palavra a Angelo sem aquella aspereza +e zombaria com que sempre lhe fallavam D. Lucas e Marianno. Por isso, +depois de dois dias de hesitação, abalançou-se o menino a perguntar-lhe +se tambem lhe dariam, a elle, licença para saír ao domingo para o +campo.. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_44">[44]</a></span>—De certo, isso nem se pergunta, respondeu Manoel. + +<P> +Esta resposta, que a outro qualquer pareceria em extremo laconica, +fez verter lagrimas de agradecimento e de alegria a Angelo; de agradecimento +porque encerrava em si um thesouro d'indulgencia, comparada com as +que todos os dias recebia n'aquella casa, e de alegria por lhe vir +confirmar as fagueiras esperanças que nutrira. + +<P> +As palavras de D. Lucas já não pareciam á innocente creança sêccas +e desabridas, nem tão pouco se lhe afiguravam crueis os motejos de +Marianno e de Toribio; já não julgava insupportavel o trabalho a que +o submettiam desde pela manhã até altas horas da noite, e até o quarto +em que dormia, humido e frio, triste e isolado, lhe parecia confortavel +e alegre desde que n'elle sonhava com os prazeres do domingo, embalado +nas risonhas esperanças de disfructar, ao menos um dia na semana, +gosos similhantes áquelles, que diariamente o deleitavam nos campos +do seu paiz natal. + +<P> +—Se os bosques e os prados da minha terra são tão formosos, pensava +elle, como <span class="pagenum"><a name="pag_45">[45]</a></span> não hão de ser encantadores os d'aqui, se até +por elles passeiam os reis e a sua côrte? E quando as caçadas, lá +nos meus sitios, são tão divertidas, o que não acontecerá em Madrid, +onde tudo deve participar da grandeza da capital? + +<P> +E os aprestes de caça de D. Lucas! Como são ricos! a espingarda e +o polvarinho marchetados de prata, e as polainas e os correões bordados +a sêda! Muito me hei de divertir! Parece-me que já estou a atravessar +espessos bosques de carvalhos e castanheiros seculares, a passar regatos +cristallinos, e torrentes espumosas, e a vêr, a meu salvo, do alto +d'uma fraga, do cimo d'uma collina ou da copa d'uma arvore, o javalí +e o veado perseguidos pelos cães. Por fim, ao caír da tarde, quando +tivermos reunido uma boa porção de formosas rezes, iremos descançar +debaixo das ramadas ou das nogueiras que fazem sombra aos casaes, +onde não deixarão de nos offerecer excellente leite e fructa saborosa. +E quando entrarmos na cidade! Com que orgulho, com que alegria não +atravessaremos nós essas ruas, com grandes enfiadas de perdizes <span class="pagenum"><a name="pag_46">[46]</a></span>ás costas, e trazendo á arreata uns poucos de burros carregados de +javalís e lebres! + +<P> +Chegou finalmente o domingo tão desejado. O céo appareceu limpido +e puro; despontou o sol mais formoso que nunca, e um vento forte, +que soprára toda a noite, tinha seccado completamente o solo. Tudo +contribuia para aformosear e revestir de galas o dia destinado a compensar +Angelo dos desgostos e maus tratos que soffrera até ali. + +<P> +Na véspera á noite tinha dito D. Lucas aos caixeiros, em presença +dos donos da casa, que eram fieis observadores dos preceitos religiosos: + +<P> +—Amanhã <em>levantar</em> cedo para ouvir missa antes de partir para +o campo. + +<P> +Os caixeiros, e bem assim D. Lucas, levantaram-se effectivamente muito +cedo, mas não foi para ouvir missa. + +<P> +Bem se importava D. Lucas com a missa, quando se tratava de caça que +era o seu divertimento favorito! + +<P> +O sobrinho de Quijano marcou tarefa a cada um dos rapazes. Angelo +foi encarregado de fazer varetas de junco, Manoel <span class="pagenum"><a name="pag_47">[47]</a></span> de encher +de polvora os polvarinhos e de chumbo as bolsas dos correões, e Marianno +de fazer provisão de fulminantes. + +<P> +Soou finalmente a hora da partida; D. Lucas, Manoel e Marianno calçaram +botins muito grossos, afivelaram vistosas polainas bordadas a seda +de differentes côres, lançaram ás costas grandes saccos de caça e +armaram-se não só de espingardas de dois canos, como tambem de facas +de matto; por ultimo tiveram o cuidado de metter para os bolsos um +bom punhado de balas. + +<P> +Angelo olhava para aquelles preparativos com indizivel satisfação, +e dizia com os seus botões: + +<P> +—Estas polainas, estes enormes saccos de caça, estas facas de matto +e estas balas indicam que vamos correr montes espessos e escabrosos, +que a caça deve ser abundante e que de certo nos temos de haver com +javalís ferozes, e talvez até com ursos e lobos. + +<P> +O que porém dava que entender a Angelo era vêr que D. Lucas se dispunha +a levar comsigo os dois cãesitos de casa do banqueiro, que não podiam +ter forças para <span class="pagenum"><a name="pag_48">[48]</a></span> arrostar com os perigos e fadigas d'uma +caçada como a que elle phantasiava na sua infantil imaginação. + +<P> +Saíram a final, e tomaram pela rua abaixo; «muito barata ha de estar +ámanhã a caça!» diziam algumas pessoas ao verem-n'os passar. + +<P> +E Angelo, que não comprehendia a ironia que se continha n'estas palavras, +cada vez se confirmava mais na ideia que tinha formado da caçada. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION01090000000000000000"> +IX</A> +</H2> + +<P> +Quando avistaram a porta de Toledo, ficou Angelo a pular de contente; +mais alguns passos apenas e estavam no campo, onde ia recrear a vista +na contemplação d'uma perspectiva encantadora; era esse o juizo que +formava, e que tinha como certo. + +<P> +Se tanto o deleitavam as ridentes paisagens do seu paiz, com mais +razão entendia a pobre creança que o haviam de captivar <span class="pagenum"><a name="pag_49">[49]</a></span>as dos arredores de Madrid, a capital da Hespanha onde tudo devia +ser magnifico e admiravel. + +<P> +Lá, na frente, pensava elle, hão de avistar-se talvez grandes montanhas +cobertas de frondoso arvoredo; a um lado elevar-se-ha uma verde colina +coroada pelas ruinas d'um castello mysterioso e sombrio; do lado opposto +erguer-se-hão ás nuvens penhas alcantiladas, por entre as quaes se +despenharão com rouco bramido impetuosas torrentes, e pelas faldas +dos montes ha de estender-se por certo uma veiga deliciosa, semeada +de casinhas brancas, e regada por um rio caudaloso, em cujas ribas +estarão collocados, destacando no horisonte, inumeros moínhos, completando +a paisagem com os seus tectos elegantes e pittorescos... + +<P> +É este o espectaculo grandioso, que vae, n'um momento, offerecer-se +aos meus olhos! + +<P> +E vendo que estavam quasi a chegar á porta, desceu Angelo a vista +com o proposito firme de a não levantar, em quanto não sentisse debaixo +dos pés a herva do campo, para assim poder abranger a um tempo e <span class="pagenum"><a name="pag_50">[50]</a></span>de repente, o formoso panorama, que se lhe desenhava na mente. + +<P> +A areia e a brisa subtil do Guadarrama, e não esse tapete de mimosa +relva, que sonhára, lhe fizeram conhecer que já se achava fóra de +Madrid. + +<P> +Ergueu de subito os olhos e abarcou ancioso com a vista a paisagem, +que tinha diante de si. + +<P> +Ai! que differença entre o panorama, que se lhe apresentava e aquelle +que phantasiára na sua pueril imaginação! + +<P> +Em frente limitavam o horisonte os cêrros escalvados e agrestes de +Santo Izidro, coroados não de arvores formosas e de castellos mysteriosos, +mas sim de telhados denegridos pelo fumo e de lugubres cemiterios, +circumdados de muros de terra. Do lado esquerdo uma planicie estéril +e monótona, da qual os accidentes mais bellos são o cêrro dos Anjos +e o cêrro Negro. Á direita as vendas ou retiros miseraveis e as aridas +encostas, que dominam a ponte de Segovia; e em baixo, na planicie, +o triste Manzanares, arrastando-se penosamente por entre muladares +e lavadouros!... + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_51">[51]</a></span>Um cruel desalento e uma profunda melancholia se apoderaram +para logo de Angelo; comtudo não perdeu de todo a esperança de deparar +com o paraiso dos seus sonhos. + +<P> +—Quem sabe? pensava elle, talvez que ao transpor aquellas imminencias +se descubra uma paisagem menos arida e triste do que esta que d'aqui +se observa. E seguindo os seus companheiros, atravessou o Manzanares +pela ponte de Santo Izidro. De repente D. Lucas parou, recommendando, +por signaes, aos outros que não fizessem bulha. Todos obedeceram, +e elle então adiantou-se, nas pontas dos pés, agachando-se cautelosamente, +e com os perros da espingarda levantados. + +<P> +Angelo suppoz que D. Lucas teria avistado alguma lebre, ou pelo menos +um bando de perdizes. Por fim o grande caçador de Madrid disparou +a arma, e exclamou cheio de alegria: + +<P> +—Lá caíu, lá caíu! Áquelle já ninguem lhe vale! + +<P> +E desappareceu por entre os choupos da margem do rio. Alguns momentos +depois <span class="pagenum"><a name="pag_52">[52]</a></span> tornou a apparecer, mostrando triumphante um passaro +<em>ribeirinho</em> que acabava de matar! + +<P> +As illusões de Angelo soffreram um novo golpe. Que caçada era aquella +em que os caçadores se alvoroçavam tanto com a morte d'um passarito? +Para que serviam então tantas balas, tantas facas de matto e tantos +saccos e correões de caça?! + +<P> +Os caçadores treparam aos cêrros de Santo Izidro, e Angelo dirigiu +a vista para o novo horisonte. Alli, como na porta de Toledo, não +via para todos os lados para onde olhava, senão áridas serranias, +collinas escalvadas, umas poucas d'arvores rachiticas, e alguns silvados +e espinhaes, contornando o regato de Luche. + +<P> +D. Lucas não desanimava como Angelo. Atravessando campos semeados, +atraz d'um pardal ou d'uma cotovia, foi-se affastando, poupo e pouco, +seguido pelos seus companheiros. Angelo já se sentia fatigado, e outro +tanto acontecia aos dois <em>improvisados</em> cães de caça. Sentou-se +por fim n'uma pedra, e os cãesitos, vencidos egualmente de cançaço, +deitaram-se n'um rego <span class="pagenum"><a name="pag_53">[53]</a></span> do campo; D. Lucas, porém, vendo +isto, deu um empurrão á pobre creança, e affagando os cães, obrigou-a +a carregar com elles.—«Tu que não pódes leva-me ás costas.» + +<P> +Como D. Lucas seguisse a margem do ribeiro de Luche, saltou-lhe um +coelho de entre os pés. D. Lucas disparou-lhe um tiro a corta-matto, +porém o coelho proseguiu no seu caminho sem ter soffrido o <em>mais +leve incommodo</em>. + +<P> +O caçador soltou uma praga e affirmou aos seus companheiros, que o +coelho ia ferido, e que se não tinha morrido logo ali, a culpa não +era sua, mas sim da polvora, que não prestava para nada. E o pobre +Angelo que já não podia com o corpo, e menos ainda com a alma, continuava +a seguil-os, carregado com os cães. + +<P> +Com estas e outras proezas foi passando o tempo, e os caçadores tomaram +por ultimo o caminho de Madrid, levando nos correões meia duzia de +passaritos. + +<P> +De vez em quando Angelo ficava para traz, e o sobrinho do banqueiro +ajudava-o <span class="pagenum"><a name="pag_54">[54]</a></span> então a andar, proferindo uma praga, ou dando-lhe +um pontapé. + +<P> +Junto á porta de Toledo, encontraram um caçador, que levava quatro +coelhos. + +<P> +—Olá, tio Lobo! disse D. Lucas; pelo que vejo não lhe correu mal, +hein? + +<P> +—Assim, assim, snr. D. Lucas; e o senhor, que tal? + +<P> +—Ora deixe-me, homem, estou desesperado com esta maldita polvora. + +<P> +—Então que tem? está humida, talvez? + +<P> +—Nada, humida não está; mas não sei o que tem, que não presta para +nada; dei hoje mais de vinte tiros, e vi fugir todas as peças de caça +feridas. + +<P> +—Pois a mim é que isso não acontece; a caça que me fugir preguem-m'a +na testa. Tenho uma polvora de contrabando, que não quero que haja +melhor. + +<P> +—Homem, vende-me vocemecê uns poucos d'arrateis? + +<P> +—Com muito gosto, snr. D. Lucas; qualquer dia d'estes lá lh'os levo +a casa. + +<P> +—Muito bem. Vamos agora a vêr esses <em>bicharôcos</em>. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_55">[55]</a></span>—Póde vêr á vontade, que são quatro peças de caça aceiadas. + +<P> +—Isso vejo eu. Provavelmente são para vender na praça?... + +<P> +—Está bem de ver, nem a gente vive d'outra coisa. + +<P> +—Pois, n'esse caso, fico eu com os coelhos. + +<P> +—Estão ás suas ordens, snr. D. Lucas. + +<P> +—E quanto lhe hei de dar por elles? + +<P> +—Dá-me aquillo que o senhor quizer. + +<P> +—Está bom, ahi tem um duro, serve? + +<P> +—Muito obrigado, snr. D. Lucas. O que eu desejo é que os senhores +os comam com saúde. Até outra vez, se Deus quizer. + +<P> +—Adeus, tio Lobo. + +<P> +O <em>verdadeiro</em> caçador tomou a dianteira aos caixeiros de Quijano. +D. Lucas tratou logo de enfeitar o seu correão com os quatro coelhos, +e pouco depois entrava em Madrid, tão inchado que não cabia na rua +de Toledo, e causando inveja áquelles que ainda pela manhã tinham +zombado d'elle. + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_56">[56]</A></span> +<H2><a name="SECTION010100000000000000000"></a> +<BR> +X +</H2> + +<P> +Dois ou tres dias depois da famosa caçada, estavam no gabinete de +D. João Quijano, palestreando junto do fogão, o banqueiro, seu sobrinho +D. Lucas e quatro ou cinco amigos intimos da casa. + +<P> +Fóra, no escriptorio, trabalhavam em silencio os caixeiros e com elles +Angelo, cujas côres rosadas iam pouco e pouco desapparecendo, e cuja +tristeza era cada vez mais profunda. + +<P> +—Como vamos nós de caça, D. Lucas? perguntou um dos amigos. + +<P> +—Ás mil maravilhas, respondeu D. Lucas. + +<P> +—Meu sobrinho, acudiu o banqueiro, está sendo o rei dos caçadores! +Pois não sabem que, domingo, teve a habilidade de se apresentar aqui +com quatro coelhos, que pareciam quatro bezerros?! + +<P> +—Que nos diz, homem? + +<P> +—Nem mais nem menos, é como lhes <span class="pagenum"><a name="pag_57">[57]</a></span> conto. Aprendam como +elle a matar coelhos onde ninguem os costuma matar, nos suburbios +de Madrid. + +<P> +—Sempre queria saber como isso foi, disse um dos interlocutores. + +<P> +—Tem pouco que saber, disse D. Lucas. Matei domingo quatro coelhos, +junto ao ribeiro do Luche. Aquillo foi n'um abrir e fechar d'olhos, +e é preciso advertir que a polvora não prestava para nada. + +<P> +—Não sei como isso se faz; eu cá, por mais voltas que dou, não sou +capaz de levantar um coelho por estas visinhanças. + +<P> +—É porque os senhores são caçadores das duzias! Eu por mim, nem +sequer preciso de cão; havendo coelho, está prompto; faço-o saltar, +e depois de lhe atirar, nem todos os santos lhe valem, porque onde +eu puzer a vista ponho o tiro. Pum! coelho a terra!... Os quatro de +domingo foi um momento em quanto caíram. + +<P> +—Pois, senhor, não tem que vêr, é um bom caçador! + +<P> +D'isso está elle convencido. A caçada de domingo ha de ser apregoada +por toda <span class="pagenum"><a name="pag_58">[58]</a></span> a cidade; não falla d'outra cousa a quantas pessoas +aqui entram! + +<P> +Estava ainda o sobrinho do banqueiro narrando, com toda a miudeza, +como matára os quatro coelhos, quando entrou no escriptorio o tio +Lobo, que ia levar a D. Lucas os dois arrateis de polvora de contrabando, +que este lhe encommendára. + +<P> +—Esta ahi o snr. D. Lucas? perguntou o caçador aos caixeiros. + +<P> +—Sim, senhor, respondeu Angelo. + +<P> +—Pois faça favor de lhe dizer que está aqui fóra o tio Lobo, que +o procura. + +<P> +O pequeno entrou no gabinete. + +<P> +D. Lucas, que ainda não tinha acabado de contar como matára os quatro +coelhos, ficou logo furioso por lhe interromperem a historia, e antes +que o pequeno tivesse tido tempo de fallar, perguntou-lhe, com aquella +amabilidade que lhe era propria: + +<P> +—Que queres tu d'aqui, borrego? + +<P> +—É que está ali fora o Lobo, respondeu Angelo. + +<P> +Desataram todos a rir, vendo a relação casual, que havia entre a pergunta +e a resposta. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_59">[59]</a></span>Não era para admirar que Angelo omitisse a denominação +de <em>tio</em>, que costumava preceder o nome do caçador, porque esse +tratamento, que é tão vulgar em quasi toda a Hespanha, não se usava +nem se usa, na sua provincia, senão quando o justificam os laços de +consanguinidade. Julgando por tanto que se riam por não se haver explicado +bem, ficou corrido de vergonha, e tratou de se fazer comprehender +melhor. + +<P> +—Parece-me que é assim que tenho ouvido chamar-lhe; e accrescentou, +«é aquelle caçador a quem o senhor comprou domingo os quatro coelhos +junto á porta de Toledo.» + +<P> +Estas palavras de Angelo foram acolhidas com uma gargalhada ainda +mais ruidosa do que a anterior, porém menos inoffensiva; uma gargalhada +de mofa, insultante, sangrenta, e isto porque os caçadores têm dois +grandes defeitos; são geralmente embusteiros e invejosos, e assim +como não perdem a occasião de mentir, tambem não perdem nunca o ensejo +de humilhar os que caçam, ou suppõem caçar mais do que elles. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_60">[60]</a></span>D. Lucas ficou por espaço d'um segundo immovel, envergonhado +e corrido; porém, de repente, injectaram-se-lhe os olhos de sangue, +engorgitaram-se-lhe as veias, e tornou-se completamente livido e desfigurado. + +<P> +Arremeçou-se como um tigre sobre a pobre creança, vociferando e praguejando +como possesso, e lançando-lhe as mãos ao pescoço, levou-a d'encontro +á parede e começou a descarregar-lhe furiosas patadas no estomago, +antes que D. João e as outras pessoas, que se achavam presentes, tivessem +tido tempo para se interpor entre aquella fera e o innocente cordeiro, +que, por unica defesa, invocava o nome de sua mãe. + +<P> +Oh! tu, Fernan Caballero, nobre e generoso cantor do nosso bom povo +hespanhol, amigo dos pobres d'espirito e dos ricos de coração, que +tens cabeça d'homem para pensar e alma de mulher para sentir; tu que +és o amigo por excellencia dos meninos e das mães, dos fracos e dos +attribulados; tu que buscas e encontras as dôres e as afflicções do +proximo, onde as almas vulgares as não descobrem, e que, com tanto +<span class="pagenum"><a name="pag_61">[61]</a></span> sentimento e caridade, as prantêas, dize-me, meu bom Fernando, +não achas que os sabios legisladores da humanidade tem sido extremamente +crueis e ignorantes, pondo os meninos debaixo da salvaguarda do codigo, +que protege os homens, em vez de os acobertar com a égide celeste +do codigo que protege os anjos?! + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION010110000000000000000"> +XI</A> +</H2> + +<P> +Alguns mezes haviam já decorrido depois do dia em que Angelo escapou, +por milagre, de morrer ás mãos de D. Lucas. + +<P> +Era por uma aprazivel manhã de primavera. A sala de jantar de D. João +Quijano tinha uma janella, que olhava para o norte. Em quanto o banqueiro +e sua mulher tomavam chocolate na sala, Angelo fôra para a varanda, +e ali se conservava, com a vista immovel e fixa na direcção do seu +paiz. + +<P> +O pobre pequeno estava mais alto do <span class="pagenum"><a name="pag_62">[62]</a></span> que quando chegára +das montanhas de Biscaya, porém tinha emagrecido consideravelmente. +Cobria-lhe o rosto uma pallidez mortal, e nos seus bellos olhos, tão +meigos e sympathicos, retratava-se-lhe a profundissima tristeza que +lhe ia n'alma. + +<P> +—O que fazes tu ahi, Angelo? perguntou carinhosamente D. Joanna. + +<P> +O menino não respondeu. + +<P> +—Oh! meu Deus! O que terá esta creança?! accrescentou a mulher do +banqueiro, com verdadeira afflicção. + +<P> +—Não sei o que elle tem, Joanna, mas ninguem me tira da cabeça que +está doente desde que Lucas lhe bateu, apesar do medico dizer, passados +quinze dias, que o considerava completamente restabelecido. + +<P> +—Queira Deus que Lucas lhe não tornasse a pôr a mão. + +<P> +—Não, filha; por isso fico eu. Mas vejo-o tão abatido e melancholico, +que receio muito pela sua existencia. + +<P> +—Ai! Nossa Senhora permitta que te enganes. Angelo se chama e foi +elle na verdade um anjo que trouxe a paz e a harmonia á nossa casa; +porque, desde que para <span class="pagenum"><a name="pag_63">[63]</a></span> aqui veiu esse menino, nós que +sempre andavamos de rixa, estamos inteiramente mudados, e tenho fé +em que elle ha de acabar por abrandar e adoçar por uma vez este meu +maldito genio. + +<P> +—Assim é, Joanninha, exclamou o banqueiro commovido; sempre esperei +que quando tivesses um filho, se operaria em ti uma grande mudança. +Não quiz Deus conceder-nos essa ventura, mas enviou-te em compensação +essa criança, a quem queres hoje quasi tanto como se fôras sua mãe. + +<P> +—Quem sabe se o que tem o pequeno é um desejo ardente de voltar +para a sua aldeia... suspirava tanto por isso, a principio... + +<P> +—Tambem me não parece que seja essa a causa do seu soffrimento. +Desde que os paes lhe disseram n'uma carta, que era elle o unico amparo +com que contavam para a velhice, e que, se voltasse para a terra, +nada poderia fazer em beneficio d'elles, não cessa de dizer que está +satisfeito em Madrid, e até quando alguma vez se encontra de bom humor, +costuma repetir o proverbio «<em>de Madrid só para o céo</em>». + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_64">[64]</a></span>—Pois é preciso mandar chamar o medico, porque se não +cuidarmos d'elle váe cada dia a peior. Angelo, accrescentou D. Joanna, +chamando novamente pelo menino. + +<P> +Este deixou como assustado a immobilidade em que estava, olhou novamente +com ineffavel languidez para o norte, e entrou na sala. + +<P> +—Que tens tu, meu filho? perguntou-lhe com ternura D. Joanna, correndo-lhe +a mão pela cara. + +<P> +—Não tenho nada, respondeu Angelo. + +<P> +—O que fazias na varanda? + +<P> +—Nada; estava a vêr o sol. + +<P> +—Vamos, senta-te aqui, e toma chocolate comnosco. + +<P> +—Não me appetece. + +<P> +—Mas o que é isso? O que te falta? Não te quero eu como se fôra +tua mãe? + +<P> +O menino não respondeu; arrasaram-se-lhe os olhos de lagrimas, e os +de D. Joanna tambem. + +<P> +—Olha, accrescentou esta, não vás outra vez para a varanda que te +faz mal o sol; vae antes um bocado até ao escriptorio, <span class="pagenum"><a name="pag_65">[65]</a></span>não para trabalhar, mas para vêr se te distrahes com os teus companheiros. + +<P> +Angelo saíu da sala, e desceu a escada. + +<P> +Ás tres horas, subiram para jantar D. Lucas, e os dois caixeiros Manoel +e Marianno. + +<P> +—Onde ficou Angelo? perguntou D. Joanna. + +<P> +—Não veiu cá para cima. + +<P> +—Virgem santissima! Onde estará então a pobre creança?! + +<P> +—Talvez se fosse deitar. + +<P> +—D. Joanna correu pressurosa ao quarto de Angelo, e foi encontral-o +na cama. + +<P> +—O que quer isso dizer, filho? O que tens?.. Estás doente? + +<P> +—Sim, minha senhora, respondeu Angelo com voz sumida. + +<P> +—Então o que te dóe? + +<P> +—Não me dóe nada, mas sinto-me doente. + +<P> +—Toribio! Toribio! vae, corre chamar o medico, que está o menino +doente, gritou da escada D. Joanna. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_66">[66]</a></span>Pouco depois chegou o medico. Tomou o pulso a Angelo, e +fez um gesto de mau agouro. + +<P> +—É coisa grave? perguntaram a um tempo, e com anciedade, D. Joanna +e o banqueiro. + +<P> +—Gravissima, respondeu o medico... e observando-o novamente, accrescentou, +em voz baixa, dirigindo-se ao dono da casa;—está quasi a morrer. + +<P> +Angelo abriu por um momento os seus meigos olhos, cujo brilho estava +já empanado pelo sopro da morte, volveu-os para a imagem do Senhor +crucificado, como querendo expressar-lhe profunda gratidão, e fechou-os +logo, para nunca mais os tornar a abrir. + +<P> +Todos proromperam em amargo pranto, á excepção de D. Lucas. + +<P> +—E de que morreu? perguntou este ao medico, que tinha antecipadamente +interrogado a familia ácerca dos padecimentos de Angelo. + +<P> +—Morreu, lhe tornou o medico, de uma affecção moral, para cujo desenvolvimento +contribuiram por certo padecimentos <span class="pagenum"><a name="pag_67">[67]</a></span> physicos. Os meninos +são homens no sentimento, e creanças no vigor; por isso Deus amaldiçôa +os seus oppressores. Este menino morreu da mais santa de todas as +enfermidades; morreu de <em>Nostalgia</em>. + +<P class="centrado"> +<big>FIM DA NOSTALGIA.</big> + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_68">[68]</A></span> +<br> +<span class="pagenum"><A NAME="pag_69">[69]</A></span> +<H1><a name="SECTION02000000000000000000"></a> +<BR> +O MADEIRO DA FORCA +</H1> + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_70">[70]</A></span> +<br> +<span class="pagenum"><A NAME="pag_71">[71]</A></span> +<H2><a name="SECTION02010000000000000000"></a> +<BR> +I +</H2> + +<P> +A grande montanha de Colisa, que se ergue entre as Encartações<A NAME="tex2html2" + HREF="#foot1500"><sup>2</sup></A> de Biscaya, e a demarcação juridica de Castella, era na edade media +uma especie de Thebaida, onde faziam vida penitente alguns anachoretas, +aos quaes se attribue a edificação do santuario que a corôa. + +<P> +Sendo eu creança, e caminhando com minha piedosa mãe por uma montanha +das Encartações, paramos a descançar, ao descobrir o valle onde habitavamos. + +<P> +Era por uma tarde aprazivel de verão. O sol escondia-se por detraz +dos montes,<span class="pagenum"><a name="pag_72">[72]</a></span> que recortavam o horisonte, e nas quebradas +das serras ouviam-se os chocalhos do gado, que descia ao valle; em +baixo, na planicie, saíam as raparigas das herdades, e pondo á cabeça +as suas bilhas, dirigiam-se, cantado, á fonte do <em>Castanhal</em>, +para que seus paes e irmãos achassem em casa agua fresca, quando, +ao soar o toque da oração, lançando ao hombro as enxadas, e resando +as Ave-Marias, se encaminhassem para o logar. + +<P> +Do cimo do outeiro coberto de fragrantes margaridas, brancas de neve, +onde minha mãe e eu estavamos sentados, contemplando o nosso querido +e formoso valle, em um de cujos extremos avistavamos, meia occulta +por frondoso arvoredo, a nossa aldeia ainda mais querida e saudosa, +descobria-se o santuario de Colisa. + +<P> +Entramos a fallar d'aquella ermida, e minha mãe, que tinha uma fé +santa e cega nas tradicções religiosas, que brotam e vivem á sombra +dos santuarios das montanhas, sem que possam os seculos alterar-lhes +o viço e a frescura, prendeu-me a attenção, e commoveu-me devéras +a alma<span class="pagenum"><a name="pag_73">[73]</a></span> contando-me o que, a meu turno, vou contar-vos. + +<P> +Vivia nas solidões de Colisa um santo ancião, chamado Cosme, que passava +uma terça parte da sua existencia entregue á adoração e glorificação +de Deus, e o restante guiando e soccorrendo os viajantes, que atravessavam +aquellas montanhas; e isto pela razão de que, n'aquelle tempo, como +as guerras de partidos ensanguentassem de contínuo os valles, fugiam +d'elles os caminhantes, e transitavam pelos montes mais desertos, +e afastados do commercio dos homens. + +<P> +Sempre que Cosme soccorria algum viandante extraviado, ou extenuado +de fome e cansaço, ao soar o toque de Trindades na egreja de Valmaseda, +que se avistava lá em baixo, no pé da montanha, apparecia-lhe um anjo, +que lhe sorria amorosamente, e que logo se remontava ao ceu, deixando-o +immerso em mystica alegria. + +<P> +Um dia, de manhã, estando os montes cobertos de mui densa névoa, saíu +Cosme da miseravel choça, onde vivia vida penitente, e poz-se a divagar +por aquelles bosques<span class="pagenum"><a name="pag_74">[74]</a></span> espessos e fragosos, a vêr se encontrava +alguns caminhantes, que n'elles se houvessem extraviado, e, de repente, +deu de cara com uns poucos de homens, que levavam outro manietado. + +<P> +—Porque vae preso esse infeliz? lhes perguntou elle. + +<P> +—Porque é um grande criminoso, a quem a justiça condemnou á morte, +lhe responderam. + +<P> +—<em>Quem as faz paga-as</em>, disse o anachoreta, dando tregoas á +sua compaixão. + +<P> +Os executores da justiça de Valmaseda detiveram-se mais acima, n'uma +encrusilhada, pegaram n'um grande madeiro secco, que, havia muitos +annos, estava estendido ao lado do caminho, fixaram as extremidades +d'esse madeiro secco nos primeiros galhos de duas arvores parallelas, +lançaram um laço ao pescoço do criminoso, e suspenderam-n'o d'aquella +forca improvisada, voltando a Valmaseda apenas se certificaram de +que elle tinha expirado. + +<div class="rodape"> +<p><a name="foot1500"></a><A + HREF="#tex2html2"><sup>2</sup></A> +<em>Encartaciones</em>, as terras de Biscaya, que gosam de fóros e regalias +especiaes.</p> +</div> + +<span class="pagenum"><a name="pag_75">[75]</a></span> + +<H2><A NAME="SECTION02020000000000000000"> +II</A> +</H2> + +<P> +N'esse mesmo dia em que, por sentença do tribunal de Valmaseda, foi +enforcado um grande criminoso, no caminho de Colisa, salvou Cosme +da morte muitos viandantes, que, sem o seu auxilio, seriam devorados +pelas féras, ou se teriam despenhado nos precipicios d'aquelles temerosos +desvios, então mais temerosos do que nunca, por causa da espessura +do nevoeiro. + +<P> +Recolheu-se á sua morada, agradecendo a Deus o haver-lhe dado forças +para soccorrer os seus irmãos, e, apenas chegou, feriu-lhe o ouvido +o toque da oração, que soou, lento e solemne, na longinqua torre da +egreja de Valmaseda.—O anjo porém não lhe appareceu n'aquella noite! + +<P> +O santo ermitão encheu-se de terror, com a lembrança de que teria +offendido a Deus, visto que o anjo se furtava aos seus olhos; mas +por mais que pesou as palavras, <span class="pagenum"><a name="pag_76">[76]</a></span> que proferira, as suas +obras e pensamentos de todo o dia, não lhe foi possivel atinar com +o agastamento do Senhor. + +<P> +Aquella noite passsou-a toda em continua oração; chorou, macerou o +corpo, pediu a Deus perdão e misericordia para as suas faltas, e logo +que raiou a aurora, como a montanha se conservasse coberta de d'espessa +névoa, saíu em auxilio dos caminhantes. + +<P> +De repente achou-se na encrusilhada, e ao vêr diante de si a forca, +da qual pendia ainda o cadaver do criminoso, justiçado no dia antecedente, +recuou cheio de repugnancia e movido d'espanto; e levantando a vista +acima do cadaver, que estava preso da corda, viu o anjo poisado no +madeiro da forca. + +<P> +O anjo, longe de lhe sorrir então amorosamente, como de costume, olhava-o +com semblante severo e carregado. + +<P> +Cosme parou; e com quanto ignorasse qual fosse a sua culpa, lançou-se +de joelhos, sobresaltado e cheio de terror, ergueu as mãos para o +anjo, e implorou perdão e misericordia. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_77">[77]</a></span>—Cosme! disse-lhe então o anjo, incorreste no desagrado +do Senhor e precisas fazer grande penitencia para recuperar a sua +protecção. Hontem, em vez de confortar e consolar o desgraçado, que +está pendente d'esta forca, escarneceste-o, e olhaste com indifferença +para a sua tribulação. Desprende o seu cadaver da forca, sepulta-o +em sagrado, e lançando em seguida esse madeiro aos hombros, leva-o +pelo mundo, e seja elle o unico travesseiro, em que descances a cabeça. + +<P> +—E poderei eu ainda um dia obter o perdão da minha culpa? exclamou +Cosme lavado em pranto de arrependimento. + +<P> +—Sim, lhe tornou o anjo. Quando d'esse madeiro brotar um ramo verde, +é que o Senhor te perdoou. + +<P> +Dito isto, subiu o anjo ao ceu, cercado de musicas mysteriosas e de +brilhantes resplendores. + +<P> +Cosme acercou-se animosamente do cadaver suspenso da forca, desprendeu-o +e deu-lhe sepultura; pegando em seguida no madeiro, cujos extremos +se apoiavam nos primeiros galhos de duas arvores fronteiras, <span class="pagenum"><a name="pag_78">[78]</a></span>foi com elle aos hombros pelo mundo, segundo as indicações, que o +anjo lhe havia dado. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION02030000000000000000"> +III</A> +</H2> + +<P> +Andava Cosme pelo mundo com o madeiro da forca ao hombro, e toda a +gente o escarnecia e fugia d'elle horrorisada. + +<P> +Uma noite, tendo perdido a esperança d'encontrar asylo entre os homens, +penetrou n'um bosque, esperando encontral-o no meio das féras, +e vendo uma luzinha atravez da espessura, encaminhou-se para ella, +e deu comsigo á porta d'uma cabana, onde uma velhinha dormitava, junto +do lume. + +<P> +—Santinha, disse elle á velha, com voz supplicante, deixe-me, pelo +amor de Deus, passar aqui esta noite. + +<P> +—Não póde ser, lhe tornou a velha, porque tenho dois filhos, que +são bandidos, e que devem chegar dentro d'uma hora; <span class="pagenum"><a name="pag_79">[79]</a></span> se +aqui o encontrassem, com certeza o matavam. + +<P> +Cosme confiava piamente na promessa, que o anjo lhe tinha feito de +que o senhor lhe perdoaria, e como visse que o madeiro da forca não +tinha signaes, que indicassem que estava para rebentar, d'onde se +deprehendia que vinha ainda longe o momento da sua morte, insistiu +em pedir á velha que lhe désse pousada, no que ella, por ultimo, conveiu, +esperando conseguir dos filhos que o não assassinassem. + +<P> +Estava Cosme exhausto de forças e, retirando-se para um canto da choupana, +poisou no chão o madeiro da forca, e deitou sobre elle a cabeça. + +<P> +Condoida a velha de o vêr descançar em travesseiro tão duro, offereceu-lhe +um feixe de cheirosa herva do monte, mas Cosme o recusou, dizendo:—offendi +o Senhor, dizendo a um criminoso a quem levavam á forca: «<em>quem +as faz, paga-as</em>», e para que o Senhor me perdôe, vou pelo mundo carregado +com este madeiro, que deve ser o unico descanço da minha cabeça, até +que d'elle brote um ramo verde, <span class="pagenum"><a name="pag_80">[80]</a></span> que será o signal de que +o Senhor me perdoou.» + +<P> +—Ai! exclamou a velha, rompendo n'um choro inconsolavel, se é tão +difficil para quem se arrepende e unicamente peccou por palavras o +alcançar o perdão do Senhor, quanto o não será para esses infelizes, +que, como os meus filhos, peccam todos os dias por palavras e obras, +e não têm no coração um vislumbre sequer do arrependimento. + +<P> +O ancião adormeceu com a cabeça deitada no madeiro da forca. + +<P> +Uma hora depois, chegaram os bandidos, e ao verem-n'o, arrancaram +dos punhaes para o assassinar. + +<P> +A mãe, porém, contou-lhes a historia d'aquelle ancião, e pediu-lhes +de joelhos que, longe de o matarem, se arrependessem, como elle, das +suas enormes culpas. + +<P> +—Pois bem, perdôe-se-lhe a vida, responderam os bandidos, fazendo +entrar os punhaes na bainha, e accrescentaram, soltando uma gargalhada +d'escarneo: + +<P> +—Quanto ao arrependimento, havemos <span class="pagenum"><a name="pag_81">[81]</a></span> de o ter quando brotar +o tal ramo verde d'esse madeiro secco. + +<P> +Principiaram os bandidos a cêar. Quando acabaram, dirigiram a vista +para o canto da cabana onde dormia o velho, e viram, com assombro, +que do madeiro secco tinha brotado um ramo verde e mimoso! Romperam +então em amargo pranto, rogando a Deus que lhes perdoasse as suas +culpas. + +<P> +Ao som de taes vozes acordou Cosme, e ao vêr que do madeiro secco +tinha brotado uma vergontea verde e louçã, expirou de alegria; e o +anjo baixou, sorrindo amorosamente, a tomar conta da sua alma, e a +leval-a comsigo para o ceu. + +<P class="centrado"> +<big>FIM DO MADEIRO DA FORCA.</big> + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_82">[82]</A></span> +<br> +<span class="pagenum"><A NAME="pag_83">[83]</A></span> +<H1><a name="SECTION03000000000000000000"></a> +<BR> +A NECESSIDADE +</H1> + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_84">[84]</A></span> +<br> +<span class="pagenum"><A NAME="pag_85">[85]</A></span> +<H2><a name="SECTION03010000000000000000"></a> +<BR> +I +</H2> + +<P> +Ainda hoje existe, junto á confluencia de dois rios, um formoso castanheiro, +a cuja sombra eu me sento, sempre que por alli passo, haja ou não +haja calor, e isto pela razão muito natural de que, sendo eu creança, +costumavamos sentar-nos, minha mãe e eu, á sombra d'aquella mesma +arvore, quando iamos a uma aldeiasinha, que ficava perto da nossa. +A pequena distancia do castanheiro vêem-se ainda as ruinas d'um moínho, +taes quaes eram nos tempos saudosos da minha infancia; e a lembrança +de minha mãe, do castanheiro e das ruinas, faz-me recordar d'um conto, +que ella me contou, em uma tarde de verão, ao pé da <span class="pagenum"><a name="pag_86">[86]</a></span> arvore +frondosa, a cuja sombra, graças a Deus! ainda posso sentar-me. + +<P> +O ultimo moleiro, que habitou o moínho, era conhecido n'aquellas redondezas +pelo appellido de Senéca; e vejam lá, não vão mudar para o primeiro +o accento que puz sobre o segundo «<em>e</em>» d'este appellido, pois +que o moleiro de quem estou fallando, e que minha mãe conheceu e tratou, +era tão modesto, que ainda hoje no ceu se veria muito afflicto e contrariado, +se o confundissem com o philosopho cordovez. + +<P> +Não tinha Senéca pretenções a philosopho, mas era-o até sem querer, +e a isto devia elle indubitavelmente o seu appellido, em cuja applicação +não podemos deixar de reconhecer uma philosophia muito profunda; se +não, reparem os leitores, e digam-me se não é bem admiravel a do povo, +que, com a mudança d'um simples accento, marca o abysmo, que separa +o philosopho da natureza do philosopho do estudo! Tinha eu que fazer, +se quizesse referir os muitos rasgos d'engenho e sã philosophia com +que Senéca <em>illustrou</em> a sua trabalhosa e modesta vida, e portanto +limitar-me-hei a referir um <span class="pagenum"><a name="pag_87">[87]</a></span> dos que mais captivaram minha +pobre mãe, de quem herdei o gosto que tenho pelas recordações da infancia. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION03020000000000000000"> +II</A> +</H2> + +<P> +Senéca não tinha outra familia senão um filho de dez annos, nem outras +cavallarias senão um burro de vinte. Morreu-lhe a mulher, que era +quem ficava no moínho, curando das moagens, emquanto elle andava com +o burro, levando e trazendo folles por aldeias e casaes, e o pobre +Senéca viu-se então em graves embaraços, porque os seus ganhos lhe +não permittiam tomar uma creada, que substituisse sua mulher no moínho, +nem um creado, que o substituisse a elle no transporte dos folles. + +<P> +—E como te has de tu arranjar agora? lhe perguntavam os visinhos, +quando o viram viuvo, e sem outro auxilio mais que o do pequeno. + +<P> +—Não me dá isso cuidado, respondia Senéca, não faltará quem me ajude. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_88">[88]</a></span>—Isso é bom de dizer; mas quem te ha de ajudar? + +<P> +—Quem?... A Necessidade. + +<P> +Os visinhos punham-se a rir do bom humor de Senéca, porém sem comprehender +o que elle queria dizer na sua. + +<P> +Uma certa manhã apparelhou Senéca o <em>burrico</em>, poz-lhe em cima +um sacco, que continha quatro alqueires de farinha, e chamando o pequeno, +disse-lhe: + +<P> +—Rapaz, toma o burro pela arreata, e leva-me esta carga á padaria +de Somorrostro. + +<P> +O pequeno <em>desatou</em> a chorar. + +<P> +—Que é lá isso, homem? perguntou-lhe o pae. + +<P> +—Que ha de ser de mim pelo caminho, se o burro cair, ou se espojar +no chão! exclamou o rapazito, sem cessar de chorar. + +<P> +—Não te dê isso cuidado, disse Senéca; se tal acontecer, não faltará +quem te ajude a levantar o burro. + +<P> +—E quem é que me ha de ajudar n'essas devezas tão solitarias, que +não se encontra por ellas viva alma?! + +<P> +—Quem? A Necessidade. Se o burro <span class="pagenum"><a name="pag_89">[89]</a></span> caír, ou se deitar +no chão e se não podér erguer, chama pela Necessidade, e verás como +logo acode em teu auxilio. + +<P> +—Está bem, disse o pequeno, limpando as lagrimas com a manga da +jaqueta; e pegando na corda do burro, tomou pela margem do rio, caminho +de Somorrostro, que distava uma legua do moínho. + +<P> +—Ora, ora, ora! Sempre este Senéca tem coisas!... diziam os visinhos, +ao verem o rapazito com o burro atraz de si. Com que então a Necessidade, +com cujo auxilio contava Senéca, para levar e trazer os folles, era +essa pobre creança?!... E o pequeno, quem é que o ha de ajudar? + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION03030000000000000000"> +III</A> +</H2> + +<P> +Seguia o filho de Senéca com o seu burro á arreata ao longo dos carvalhaes, +que assombram as margens do rio, que corre pelo valle profundo, que +separa Somorrostro de Galdámes e Sopuerta, quando, ao chegar a um +pequeno areal muito suave, fez o burro esta reflexão: + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_90">[90]</a></span>—Ai! que bella cama para eu descansar um pouco!... e +então, se eu podesse soltar esta maldita carga, que me vae amolando +as costellas! + +<P> +E de repente, antes que o pequeno olhasse para traz, estirou-se ao +comprido no meio do chão. + +<P> +—Ai! minha mãe!... exclamou o rapazinho aterrado;—porque convém +saber que em Hespanha, e com especialidade na Biscaya, não só aos +pequenos como tambem aos grandes, o primeiro auxilio que lhes occorre +invocar nas maiores afflicções, é sempre o de sua mãe, ainda mesmo +que já a tenham no ceu. + +<P> +E pegando n'uma vergasta começou a zurzir o burro sem dôr nem piedade; +porém o animal, por mais esforços que fazia para se levantar, não +o podia conseguir. + +<P> +Estava já o pequeno quasi a chorar, quando se lembrou do conselho, +que o pae lhe havia dado, e, em vez de dar largas ao pranto, começou +a gritar: + +<P> +—Necessidade! Necessidade! faz-me o favor de vir aqui ajudar-me +a erguer este burro?! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_91">[91]</a></span>O pequeno bem olhava para todos os lados, a vêr se apparecia +a Necessidade, mas não via ninguem. Já cansado de chamar e de esperar +pela Necessidade, desatou o arrocho, que prendia o sacco ao apparelho +do burro, e alliviou-o da carga; em seguida deu-lhe uma vergastada +e o animal ergueu-se d'um salto. Então o pequeno tomou o burro pelo +cabresto, levou-o para junto d'uma ribanceira, e rolando o sacco até +lá, pôde, a muito custo, collocal-o em cima do animal; apertou-o bem +com o arrocho, montou-se sobre a carga, atirou uma pancada ao burro, +e proseguiu no seu caminho, mais alegre que umas paschoas. + +<P> +Passada uma hora chegava o rapaz ao moínho, cantando e fazendo trotar +o seu <em>ginete</em>. + +<P> +—Olá, pequeno, disse-lhe o pae, apenas o avistou, como te foi pela +tua viagem? + +<P> +—Muito mal, meu pae. + +<P> +—Então o que te aconteceu, homem? + +<P> +—Deitou-se o burro no caminho, e, por mais pancadas que lhe dei, +não foi capaz de se levantar. + +<P> +—E então o que fizeste? + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_92">[92]</a></span>—Desprendi a carga, levei o burro para o pé d'uma ribanceira, +fui rolando o sacco até lá... + +<P> +—Bem, bem, já percebo. Quer isso dizer que chamaste pela Necessidade, +não é assim? + +<P> +—Chamei, chamei; fartei-me até de chamar; mas não appareceu... + +<P> +—Rapaz, disse Senéca, vê como tu te enganas;—quem te levantou +e carregou o burro não foi senão a Necessidade. + +<P> +Tinha razão Senéca, e tambem eu a tenho para dizer aqui que a necessidade +presta tanto auxilio e tamanhos beneficios ao homem, que não sei como +ainda lhe não deram a cruz de beneficencia. + +<P class="centrado"> +<big>FIM DA NECESSIDADE.</big> + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_93">[93]</A></span> +<H1><a name="SECTION04000000000000000000"></a> +<BR> +A PORTARIA DO CEU +</H1> + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_94">[94]</A></span> +<br> +<span class="pagenum"><A NAME="pag_95">[95]</A></span> +<H2><a name="SECTION04010000000000000000"></a> +<BR> +I +</H2> + +<P> +O tio Paciencia era um pobre sapateiro remendão, o qual ganhava honradamente +o pão de cada dia, mette que mette a sovella e puxa que puxa o fio, +em um portal de Madrid, e devia o apellido por que era conhecido á +resignação com que sempre tinha soffrido os muitos trabalhos, que +o Senhor lhe havia dado. + +<P> +Ao tempo da constituição de 1820, era já rapaz dos seus quinze ou +dezeseis annos, mas tinha a innocencia de uma creança de oito, e como +ouvisse a cada passo dizer que todos os homens eram eguaes, perguntou +ao mestre se aquillo seria verdade. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_96">[96]</a></span>—Não acredites n'essas cousas, lhe respondeu o mestre. +Só no ceu é que os homens são eguaes. + +<P> +Sentiu o rapaz que não acontecesse outro tanto na terra, mas consolou-se +com a idêa de que o eram no ceu, e quando algum freguez da loja convidava +o mestre para beber uma pinga na taberna proxima, dizia com os seus +botões o pobre aprendiz: + +<P> +—Pena é que não sejamos todos eguaes na terra, como succede no ceu, +porque se assim fosse, por certo que o freguez me não differençaria +do mestre, e, como elle, iria eu tambem agora á taberna beber a minha +pinga; mas, acabou-se... paciencia... no ceu seremos todos eguaes. + +<P> +Passados dois annos, coube-lhe a sorte do recrutamento; então mais +do que nunca teve elle motivo para lamentar que os homens não fossem +eguaes na terra como no ceu, por isso que na sua companhia havia soldados +distinctos, e cabos, sargentos e officiaes, que provavam ser verdade +aquillo que o mestre lhe tinha dito ácerca da egualdade humana; porém +consolava-se ainda o pobre rapaz, pensando que no ceu <span class="pagenum"><a name="pag_97">[97]</a></span>se acabariam as distincções, e todos seriam eguaes. + +<P> +Deixou de servir o rei, e aproveitando-se do pouco que sabia do officio +de sapateiro, estabeleceu-se n'um portal, e alí passou o resto dos +seus dias, conformando-se com as privações que soffria, na esperança +de ir para o ceu e gosar então d'essa igualdade, que não encontrára +na terra. + +<P> +No andar nobre da casa, cujo portal occupava, vivia um marquez, que +por certo muito o houvera magoado com o espectaculo da sua opulencia, +se não fôra um excellente homem, e a não ser tamanha a sua paciencia, +e sobre tudo tão arreigada no seu coração a esperança de lhe poder +dizer um dia no ceu: «meu amiguinho, aqui todos nós somos eguaes.» + +<P> +Não era porém só o marquez que lhe fazia sentir, que não fossem todos +os homens eguaes na terra; até os seus amigos mais intimos queriam +differençar-se d'elle. Estes amigos eram o tio Mamerto e o tio Macario, +homens de tão boa conducta, que não podia o tio Paciencia viver sem +a sua honrada companhia. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_98">[98]</a></span>O tio Mamerto tinha uma paixão desenfreada pelos toiros, +e passava por ser muito entendido em materia tauromachica. + +<P> +Quando, no reinado de Fernando VII, se creou uma escóla para ensinar +esta sciencia, esteve o bom do homem quasi a ser nomeado <em>lente +cathedratico</em> da faculdade, e este precedente era o bastante para +que elle se considerasse superior ao tio Paciencia, o qual, reconhecendo +esta superioridade, se consolava pensando que, se o seu querido amigo +e elle não eram eguaes na terra, o seriam por certo no ceu. + +<P> +O tio Macario era muito feio, mas casou com uma mulher lindissima, +porém levadinha da breca. + +<P> +Ao cabo de vinte annos d'um viver amargurado, morreu-lhe o demonio +da mulher, e o pobre homem ficou tão descançado que lhe parecia ter +entrado no ceu; passados tempos, enamorou-se d'outra rapariga, que +não ficava a dever nada á primeira, e casou segunda vez, apesar de +todos os esforços que o seu amigo, o tio Paciencia, fez para lhe tirar +isso da cabeça. Ora, como o tio Paciencia nunca tinha conseguido que +<span class="pagenum"><a name="pag_99">[99]</a></span> as mulheres se agradassem d'elle, ao passo que do tio +Macario se agradavam aos pares, julgava este ter certa superioridade +sobre o primeiro, que, da sua parte, não deixava tambem de a reconhecer, +e que devéras se teria affligido com isso, se não fôra a lembrança +de que o seu bom amigo e elle seriam eguaes no ceu, já que na terra +o não podiam ser. + +<P> +O tio Mamerto era capaz de ir até ao fim do mundo para assistir a +uma corrida de toiros; tanto assim, que até costumava dizer: «Parece-me +que trocava de bom grado a gloria eterna por uma boa tourada», ao +que o tio Paciencia replicava sempre, agastado: «Homem, não digas +heresias, que não vá Deus castigar-te.» + +<P> +Um dia em que os passaros caíam das arvores, assados pelo sol, havia +em Getafe uma corrida de garraios; o tio Mamerto, foi vêl-os, <em>á +pata</em>, segundo o seu costume, e, de volta a casa, acamou com uma febre, +que o levou d'esta para melhor vida. + +<P> +No mesmo dia estava muito mal, na cama, o tio Macario, por causa d'uma +tremenda coça que a mulher lhe tinha dado, <span class="pagenum"><a name="pag_100">[100]</a></span> porquanto +se a primeira mulher lh'as dava grandes, a segunda não lhe ficava +atraz. A mulher, que nunca perdia a occasião de lhe communicar uma +boa noticia, deu-se pressa em lhe participar, que o tio Mamerto tinha +<em>esticado a canella</em>, e ouvindo isto, o pobre Macario, que já +não estava para muitos sustos, <em>esticou</em> tambem a sua. + +<P> +Como eu já disse, não podia o tio Paciencia viver sem os seus dois +amigos, porque lhes queria muito. Estranhando que, em todo o dia, +elles lhe não tivessem apparecido para palestrar um pouco e fumar +um cigarro na sua companhia, quando á noitinha deixou o trabalho, +foi procural-os, e soube então que ambos tinham morrido. Essa noticia +causou-lhe um abalo enorme, e, n'aquella mesma noite, tomou atraz +d'elles o caminho do outro mundo, com a grande consolação de que ia +finalmente para onde todos os homens eram eguaes. + +<P> +Toda a visinhança sentiu muito a morte do tio Paciencia, pois todos +depositavam tamanha confiança na sua honradez e no seu caracter docil +e serviçal, que, quando careciam de trocar algumas notas do banco +<span class="pagenum"><a name="pag_101">[101]</a></span> d'Hespanha, encarregavam d'isso o tio Paciencia, que +era capaz de morrer arrebentado, para dar conta da incumbencia. + +<P> +Na manhã seguinte á morte dos tres amigos, o bruto do creado particular +do marquez, quando entrou no quarto, teve a imprudencia de dizer a +seu amo que o sapateiro do portal morrêra, ao saber que dois amigos +seus tinham faltado quasi de repente. E como o marquez era um fidalgo +muito apprehensivo, e corriam uns certos rumores de cholera em Madrid, +assustou-se tanto com a saída de sendeiro do bruto do creado, que, +poucas horas depois, era cadaver, com grande desgosto da pobreza do +bairro. E por todas as partes se se ouvia dizer: «Estes homens, assim, +nunca deviam morrer.» + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION04020000000000000000"> +II</A> +</H2> + +<P> +O tio Paciencia emprehendeu a jornada do ceu, muito contente com a +esperança de gosar da gloria eterna, de viver em um mundo onde todos +os homens eram eguaes, <span class="pagenum"><a name="pag_102">[102]</a></span> e finalmente de encontrar ali +os seus queridos amigos Mamerto e Macario. Com relação porém a este +ultimo pensamento não deixava elle de ter suas duvidas, porque dizia +lá para os seus botões: + +<P> +—E se lhe não querem abrir as portas do ceu?! Elles foram sempre +homens de bem ás direitas; mas o demonio da paixão de Mamerto pelos +toiros, e a tolice do Macario de casar segunda vez, tendo-se saído +tão mal da primeira, fazem-me receiar que lhes dêem com a porta na +cara. + +<P> +Para saír um tanto de duvida, perguntou a um viandante se tinha visto +passar por alí dois sugeitos, com estes e aquelles signaes; e como +elle lhe respondesse affirmativamente, proseguiu o tio Paciencia no +seu caminho, mais alegre que umas paschoas. + +<P> +O caminho do ceu era escabroso e áspero, e essa era por certo a razão +porque n'elle se não encontrava senão gente pobre e habituada á fadiga. + +<P> +Impressionado o tio Paciencia por não ver nenhum <em>figurão</em>, entre +tantos caminhantes, dizia, de si para si: + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_103">[103]</a></span>—Não admira que os homens ricos não façam esta viagem, +porque teriam de fazel-a no cavallinho de S. Francisco. Se podessem +emprehendel-a de carruagem, os diabos me levem, se não viamos por +aqui mais trens do que no Prado e na Fonte Castelhana. + +<P> +O tio Paciencia interrompeu as suas reflexões ao vêr approximar-se, +vindo do lado do ceu, um homem, que chorava como um bezerro, e dava +mostras da maior desesperação. Era nada mais nem nada menos do que +o tio Mamerto. + +<P> +O tio Paciencia sentiu uma pancada no coração, annunciando-lhe +alguma desgraça, quando reconheceu o seu amigo. + +<P> +—O que tens tu, homem? perguntou elle ao tio Mamerto. + +<P> +—Que demonio hei-de eu ter! Se eu não fosse um bruto, como não ha +segundo, não me fechavam para sempre as portas do ceu! + +<P> +—Mas então como foi isso? explica-te com a bréca, que me tens o +coração em talas. Aposto que não foi senão por causa da maldita paixão +pelos toiros. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_104">[104]</a></span>—Parece-me que concorreu. + +<P> +—Vamos, por quem és, conta-me o que se passou. + +<P> +—Cheguei á portaria do ceu, e encontrei alí uma porção de gente, +que estava á espera de vez para entregar os passaportes para o outro +mundo. O porteiro, que visava os papeis, com a sua grande calva <em>á +mostra</em>, e o seu mólho de chaves na mão, levava a coisa com toda a +pachorra, e moía-os com perguntas, primeiro que permittisse a entrada. +Eu, que, como é bem natural, estava morto por me vêr lá dentro, disse +com os meus botões:—Este velho, com os seus vagares, é capaz de +me conservar aqui de fóra até á noite. Pois deixa estar, que se te +pilho distraído, atiro commigo lá para dentro, ainda que depois me +cortes uma orelha, como fizeste ao pobre Malco. Estava eu a pensar +n'este expediente, quando vejo o porteiro armar uma questão com um +pobre diabo, a quem não deixava entrar, com o pretexto de ter sido +apaixonado de toiros. Ahi temos nós os toiros! disse eu, ao vêr aquillo. +O velhote é capaz de me fazer esperar uma eternidade, <span class="pagenum"><a name="pag_105">[105]</a></span>e por fim, se chega a saber que tambem fui affeiçoado ás toiradas, +nega-me a entrada, como aconteceu com o outro. E que faço eu? Assim +que o porteiro deu uma volta: zás! <em>raspo-me</em> lá para dentro. +Já dava graças a Deus pela minha resolução, e vae senão quando o porteiro, +dá-lhe na cabeça contar quantos estavam na portaria, e conhece que +lhe falta um. + +<P> +«—Falta-me aqui um! grita enraivecido, e aposto uma orelha que não +é senão o madrileno. Ou elle não fosse de Madrid, o maroto, que se +escoou lá para dentro como um gato: deixa estar que já vamos ajustar +contas! + +<P> +«—Ó meu senhor, disse da banda um adulador, que tinha assim geitos +de cortezão, quer que eu lh'o saque de lá para fóra por uma orelha? + +<P> +«—Deixemos-nos d'orelhas, respondeu o velhote; e chamando uns musicos, +a quem fallava com muito agrado, porque parece que lhe tinham sido +recommendados por Santa Cecilia: Toquem lá a musica da saída do toiro! + +<P> +«Os musicos começam de tocar, e eu <span class="pagenum"><a name="pag_106">[106]</a></span> (sempre sou muito +bruto!) ao ouvir aquelle toque, julgo que ha corrida de toiros na +portaria, e sáio muito lépido a vêl-a; de repente, o porteiro fecha +a porta e deixa-me ficar de fóra, com uma cara de palmo e meio, dizendo-me: + +<P> +«—Vá já para o inferno, seu meliante, que uma paixão por toiros +como essa, não póde Deus perdoal-a. + +<P> +«E aqui tens tu, querido Paciencia, como eu vou caminho do inferno +por causa da minha maldita mania pelas toiradas!» + +<P> +O tio Paciencia prorompeu em amargo pranto ao vêr a infelicidade do +seu velho amigo, e esteve quasi a prégar-lhe um sermão, mas não o +fez por se lembrar de que era prégar no deserto; ambos continuaram, +por ultimo, o seu caminho; o tio Paciencia o do ceu, que era costa +acima, e o tio Mamerto o do inferno, que era costa abaixo. + +<P> +—Querem vêr que tambem me acontece alguma na portaria? O tal senhor +porteiro tem um geniosinho endemoninhado! + +<P> +Isto dizia o tio Paciencia, seguindo sempre o seu caminho, quando +avistou outro homem, que vinha do lado do ceu. Este <span class="pagenum"><a name="pag_107">[107]</a></span> não +se carpia, nem se arrepellava; trazia porém a cabeça baixa, e denotava +profunda tristeza. + +<P> +—Esperem! disse o tio Paciencia. Os diabos me levem se aquelle não +é o tio Macario! Pois que? Não é senão elle! + +<P> +Com effeito, o tio Macario era o da cabeça baixa. + +<P> +Os dois amigos abraçaram-se commovidos. + +<P> +—Tu por aqui, Paciencia! disse o tio Macario. Para onde vaes, homem? + +<P> +—Ora, para onde hei de eu ir? Vou para o ceu. + +<P> +—Duvido muito que lá entres. + +<P> +—Então porque? + +<P> +—Porque é difficilimo entrar lá. + +<P> +—E em que consiste a difficuldade? + +<P> +—Consiste em ser o porteiro o velho mais caturra, que eu tenho visto. +E para prova, basta o que se deu commigo. + +<P> +—Conta depressa. + +<P> +—Uma frioleira! Chegamos, eu e outro, á porta; chamamos, e apparece-nos +o porteiro, com a sua grande calva e o competente mólho de chaves +na mão. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_108">[108]</a></span> +<P> +«—Que é o que querem? pergunta elle. + +<P> +«—Essa não está má! o que havemos nós de querer senão entrar? + +<P> +«—Você é casado ou solteiro? pergunta o velho ao meu camarada. + +<P> +«—Casado, responde o tal sugeito. + +<P> +«—N'esse caso póde entrar, que basta essa penitencia para um homem +ganhar o ceu; e isto por maiores que sejam os peccados, que haja commettido. + +<P> +«E o meu companheiro entrou lá para dentro. + +<P> +«—Caspite! disse eu com os meus botões; se aquelle ganhou o ceu +por se ter casado uma vez, com mais razão o devo eu ter ganho por +me haver casado duas. E larguei atraz do meu companheiro. + +<P> +«—Onde vae o senhor? perguntou o porteiro, detendo-me por uma orelha. + +<P> +«—Homem, o senhor deve estar farto de o saber! Vou para o ceu. + +<P> +«—É casado ou solteiro? + +<P> +«—Casado duas vezes á falta d'uma. + +<P> +«—Duas vezes?! + +<P> +«—Sim, senhor, duas vezes. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_109">[109]</a></span>«—Pois vá para as profundas do inferno, que tolos d'esse +lóte não têm entrada no ceu. + +<P> +«E aqui vou eu, amigo Paciencia, caminho do inferno! São coisas que +só a mim acontecem!...» + +<P> +—É bem feito, disse o tio Paciencia, entre compadecido e indignado +da parvoice do seu amigo. Não te dizia eu que não podia obter perdão +de Deus quem duas vezes se casasse? + +<P> +O tio Paciencia já não ia muito satisfeito e tranquillo, ao aproximar-se +das portas do ceu, porque as noticias que recebera do geniosinho do +tal porteiro, eram, na verdade, para intimidar o mais pintado. + +<P> +—Vamos, tio Paciencia, dizia elle, é preciso que não desmintas, +n'esta occasião, o appellido que te puzeram, porque, se consegues +catechisar o porteiro, cólas-te lá dentro, e depois é que já ninguem +te dá volta. O velhote é exquisito de genio, caturra e curioso como +todos os porteiros... Mas tambem, deve a gente lembrar-se de que o +pobre do homem é tão velho, que já não póde com os calções, e devemos +ser indulgentes <span class="pagenum"><a name="pag_110">[110]</a></span> para com os velhos como para com as creanças, +porque os extremos tocam-se. Demais, a paciencia é uma virtude, que +o proprio Jesus recommendava ao apostolo S. Pedro, como se vê da seguinte +cantiga: + +<P> +<BLOCKQUOTE> +Era S. Pedro na calva +<BR> +perseguido do mosquito, +<BR> +e o Mestre lhe dizia: +<BR>—Tem paciencia, <em>Periquito</em>! + +</BLOCKQUOTE> +Ao terminar estas reflexões, avistou o tio Paciencia as portas do +ceu, e estremeceu d'alegria, lembrando-se de que estava já a meio +kilometro de distancia do mundo onde todos os homens eram eguaes. + +<P> +Chegou finalmente á portaria, e viu que não havia lá viva alma, o +que devéras lhe agradou, porque assim não se expunha a morrer arrebentado, +como quando ia trocar notas ao banco d'Hespanha. + +<P> +Deu uma aldrabada pequena na porta, e um velho, que não tinha um pello +na cabeça, abriu o postigo e perguntou-lhe: + +<P> +—O que quer você d'aqui? + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_111">[111]</a></span>—Ora, o Senhor lhe dê muito boas noites, lhe tornou +o tio Paciencia, com a maior humildade, tirando o chapeu. Como passou? +Passou bem? + +<P> +—Muito bem, muito obrigado. Mas o que queria o senhor? + +<P> +—E a senhora e os meninos estão de saúde? + +<P> +—Homem, despache d'aí, diga o que quer. + +<P> +—O senhor não tem senão desculpar... mas... nada... eu... vinha +vêr se o senhor me deixaria entrar. + +<P> +—Sente-se ahi, n'esse banco, e espere que venha mais gente, que +não se póde andar sempre a abrir e a fechar esse maldito portão, que +é mais pesado que um marido jogador. + +<P> +—Está bem, senhor, essa é boa; faça favor de perdoar. + +<P> +—Não ha de quê. + +<P> +O velhote fechou o postigo, e o tio Paciencia, a quem as ultimas palavras, +que ouvíra, deram alma nova, sentou-se n'um banco, e começou o seguinte +soliloquio, para passar o tempo: + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_112">[112]</a></span>—O tal senhor porteiro é realmente um grande caturra. +Quem diabo podia suppôr que o homem se esquentaria por eu o cumprimentar +como Deus manda! Mas apesar de ter o genio um tanto assomado, bem +se conhece que é um santo. Pois, senhor, esperemos aqui, no banco +da paciencia. + +<P> +Estava o tio Paciencia entretido a apertar um cigarro, quando, ouvindo +uma tremenda aldabrada na porta, que por pouco a fazia em hastilhas, +ergueu a cabeça, e viu então que a pessoa, que com tanta arrogancia +chamava, era nem mais, nem menos, que o seu visinho marquez. + +<P> +—É melhor bater com a cabeça! gritou de dentro o porteiro, ao ouvir +aquelle barulho. Quem é o bruto que chama assim? + +<P> +—O excellentissimo senhor marquez de Pelusilla, grande d'Hespanha +de primeira classe, cavalleiro de todas as ordens creadas e por crear, +senador do reino, etc., etc. + +<P> +Mal isto ouviu, o porteiro abriu de par em par a porta, quebrando +pelo espinhaço com muitas reverencias, e exclamando: + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_113">[113]</a></span>—Perdoe v. exc.ª se o fiz esperar algum +tempo, mas... é que eu não suppunha, que tivessemos por cá tamanha +honra. Queira v. exc.ª entrar, que, pela <em>balburdia</em> +que lá vae por dentro, é de crêr que já tenha corrido a noticia de +que temos por estes bairros o cavalheiro mais illustre e mais rico +de toda a Hespanha. + +<P> +Com effeito o ceu estava alvoroçado com a chegada do marquez, para +o qual começava a improvisar-se uma recepção esplendida. Repicavam +os sinos, e os foguetes cortavam o ar em todas as direcções; já não +havia uma varanda, nem uma janella d'onde não pendesse um cobertor +de damasco, ou quando menos uma colcha de chita, modesta, mas vistosa. +As imprensas vomitavam versos (ih! que nojo!) em louvor do marquez; +os garôtos <em>esganiçavam-se</em> todos a dar vivas a sua excellencia; +as virgens largavam a costura, e vestindo-se de branco, e pondo na +cabeça a sua grinalda de flores, lançavam mão da lyra, e tocavam e +cantavam como desesperadas; desde as charangas das ruas até a orchestra +do theatro real, todas as musicas faziam ouvir as <span class="pagenum"><a name="pag_114">[114]</a></span> suas +harmonias; em summa, era tudo festa, jubilo e regosijo. Até o proprio +porteiro, quando voltou a fechar a porta, deu um pulo de contente, +exclamando: + +<P> +—Bravissimo! Hoje é dia de atirar uma cana ao ar! + +<P> +—Sim, como não atires a cabeça!... rosnou por entre os dentes o +tio Paciencia, indignado com o que estava presenciando. + +<P> +Repetiam-se lá por dentro as manifestações d'alegria, e o estrondo +dos festejos, e o tio Paciencia, que assistia áquelle enthusiasmo, +continuava n'estes termos o seu soliloquio: + +<P> +—E esta!... Ainda me custa a acreditar o que por aqui vae com a +chegada do marquez! Com que, passo toda a minha vida a soffrer com +santa paciencia os trabalhos e humilhações da terra, imaginando que +no ceu todos os homens são eguaes, e que, por conseguinte, me verei +aqui livre de todos os meus pesares e apoquentações, e no fim de contas, +chego ás portas do ceu e recebo logo a prova mais irritante de desegualdade, +que póde imaginar-se! Com que então, aqui, como na terra, a mim, porque +<span class="pagenum"><a name="pag_115">[115]</a></span> sou um pobre sapateiro, fazem-me estar, como um espantalho, +á espera na portaria, e ao marquez, só porque é marquez e rico, e +por vir carregado de cruzes e <em>calvarios</em>, abrem-se-lhe, de par +em par, as portas, e recebem-n'o com repiques de sinos, com foguetes, +musicas, versos, e colchas de seda nas janellas!... Isto realmente +é para fazer ferver o sangue nas veias a um santo!... Porém, paciencia, +snr. Paciencia!... Se consigo a final entrar lá para dentro, o que +já me vae parecendo bem difficil, posso reputar-me feliz, porque alli +deve passar-se divinamente, a julgar pelo pouco que vi, quando o velho +deu passagem ao marquez, e pela baforada, que sae, quando abrem ou +fecham a porta ou o postigo. + +<P> +O barulho que este fez ao abrir-se, tirou o tio Paciencia das suas +meditações; fez-se vêr a calva do porteiro, o qual vinha examinar +se já havia gente reunida, á espera, na portaria. + +<P> +—O que faz você ahi? perguntou o porteiro, reparando no tio Paciencia. + +<P> +—Senhor, respondeu humildemente o tio Paciencia, estava esperando... + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_116">[116]</a></span>—Se as lebres esperassem tanto!... + +<P> +—Como o senhor não apparecia... + +<P> +—Tem razão, tem... são tantas as coisas em que tenho que pensar, +que de todo se me varreu da idêa... Eu vou já abrir, amigo. Ora!... +mas porque não chamou por mim, homem de Deus?!... + +<P> +—O senhor bem vê que... como sou um pobre sapateiro... + +<P> +—Qual sapateiro, nem qual cabaça! aqui no ceu todos os homens são +eguaes. + +<P> +—Devéras?! exclamou o tio Paciencia, dando um salto d'alegria. + +<P> +—Pois, então!... Não faltava mais nada senão andarmos aqui com cathegorias! +Isso é bom lá para a terra! Vamos, entre cá para dentro. + +<P> +O porteiro nem por isso abriu toda a porta, como quando entrou o marquez, +mas o sufficiente para que podesse passar <em>um homem</em>. O tio Paciencia +acercou-se da cancella, lançou um relancear d'olhos lá para dentro, +e deteve-se ali, dolorosamente surprehendido. As virgens não largavam +a costura, nem os rapazes saíam da escóla; não havia uma triste sineta +que tocasse; os <span class="pagenum"><a name="pag_117">[117]</a></span> foguetes não rasgavam as nuvens; as musicas +não deixavam ouvir as suas harmonias; nem sequer uma pobre colcha +de chita adornava as janellas, nem tãopouco as imprensas vomitavam +versos!... + +<P> +O porteiro, que não tinha nada de tolo, adivinhou o doloroso espanto +do tio Paciencia, e acudiu a desvanecel-o, dizendo-lhe: + +<P> +—Que quer isso dizer, homem? Então fica para ahi pasmado, em vez +de entrar cá para dentro?. + +<P> +—Não me disse o senhor, ainda ha pouco, que no ceu todos os homens +eram eguaes? + +<P> +—Disse, sim senhor, e d'ahi?... + +<P> +—Então... como é que ao marquez... + +<P> +—Homem, você se não é tolo, parece-o! Pois não leu na sagrada escriptura, +que é mais facil entrar um camello pelo buraco d'uma agulha do que +um rico no ceu?... + +<P> +—Não, senhor, não sabia isso. + +<P> +—Pois póde acreditar que é a pura verdade. Sapateiros, ferreiros, +lavradores, mendigos, gente, em summa, farta de trabalhar e de padecer, +chega aqui a todo o <span class="pagenum"><a name="pag_118">[118]</a></span> instante, e não temos que estranhar +a sua chegada. Já outro tanto não acontece com os ricos e os fidalgos; +passam-se seculos sem vermos o <em>focinho</em> a um figurão, como esse +que veiu hoje, de modo que, quando algum nos apparece por cá, anda +tudo n'uma poeira! Ora, venha, ande lá para dentro, que já é tempo +de descançar. + +<P> +O tio Paciencia transpoz o limiar da porta, e não podendo com a alegria, +que o dominava, caíu de joelhos, e exclamou, erguendo as mãos para +o Senhor, que saía ao seu encontro: + +<P> +—Senhor! Bemdito sejaes vós, que daes a bemaventurança eterna aos +que padecem na terra! + +<P class="centrado"> +<big>FIM DA PORTARIA DO CEU.</big> + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_119">[119]</A></span> +<H1><a name="SECTION05000000000000000000"></a> +<BR> +O PRESTE JOÃO DAS INDIAS +</H1> + +<span class="pagenum"><A NAME="pag_120">[120]</A></span> +<br> +<span class="pagenum"><A NAME="pag_121">[121]</A></span> +<H2><a name="SECTION05010000000000000000"></a> +<BR> +I +</H2> + +<P> +Não basta que os contos populares deleitem: é mister que, ao mesmo +tempo que deleitam, ensinem. + +<P> +Este que vou contar não sei se satisfará á primeira condição; a segunda +porém, ha de por certo preenchel-a, por isso que o leitor, que o levar +a cabo, ficará sabendo quem era o Preste João das Indias, do qual +todos fallam, e pouquissimos são os que o conhecem, a não ser de nome. + +<P> +Pois, senhores, havia nas Indias um rei mui poderoso, cujo unico successor +directo era uma filha de tres ou quatro annos. Como <span class="pagenum"><a name="pag_122">[122]</a></span> o +monarcha se sentisse muito mal, chamou todos os grandes do reino, +e fallou-lhes do seguinte modo: + +<P> +—Ando tão adoentado, ha tempos a esta parte, que milagre será não +esticar a canella antes de oito dias, e confesso que essa partida +tão repentina para o outro mundo, me penalisa em extremo, por quanto +desejava deixar casada a minha augusta filha; e no emtanto S. A. não +passa por ora d'um <em>comecilho</em>. Asseguro-vos que pouco me importa +morrer, porque para morrer todos nós nascemos, e demais, tanto faz +morrer hoje como amanhã; porém o que eu não queria era que a pequena +se casasse para ahi qualquer dia, em virtude de altas razões d'estado, +com um principe, que não fosse muito do seu agrado. + +<P> +—Senhor, lhe tornou um dos homens politicos mais importantes do +reino, faz V. M. muito mal em estar a affligir-se com essas coisas. +Quando a princeza chegar á edade de tomar estado, ha de casar-se com +o principe, que fôr mais do seu gosto; e se houver no reino quem se +atreva a querer oppôr-se á liberrima escolha de <span class="pagenum"><a name="pag_123">[123]</a></span> S. A., +esteja V. M. certo de que tem que se haver comnosco. + +<P> +—Ora, ora! Então cuidas tu que eu engulo essas <em>patranhas</em>? +replicou o rei, traduzindo a sua incredulidade n'uma estrepitosa gargalhada. +Nem que eu não soubesse o que são os partidos politicos! Aquelle que +então estiver no poder apresentará a minha filha o seu candidato, +e a pobre pequena terá de se aguentar, não com o marido que mais fôr +do seu gosto, mas sim com aquelle que mais convier aos seus ministros, +os quaes, só por satisfazerem mesquinhos interesses de partido, serão +capazes de a obrigar a casar ainda que seja com o moiro Musa. + +<P> +—Mas, senhor, V. M. deve lembrar-se de que este paiz é um paiz essencialmente +monarchico... + +<P> +—Isso é bom de dizer! Não estamos nós vendo, todos os dias, homens +politicos, que nos concedem, a nós os reis, até o direito divino, +e que, se um bello dia lhe não agradamos, nos chegam, inclusivamente, +a negar o direito de pessoas decentes! + +<P> +—De accôrdo, mas é que esses são uns <span class="pagenum"><a name="pag_124">[124]</a></span> vilões que nunca +deveram ter parte na luta dos partidos. + +<P> +—Mas o grande caso é que a têm no goso dos direitos constitucionaes. + +<P> +—Em summa, ordene V. M. o que lhe aprouver, e eu lhe assevero, que +póde marchar tranquillo para o outro mundo, e sem o menor receio de +que deixemos de cumprir rigorosamente as suas ordens. + +<P> +—Pois bem, n'esse caso escutae-me: quando minha augusta filha estiver +em edade do tomar estado (e isso é coisa, que facilmente se conhece), +deveis dar-lh'o a saber, tendo em vista todo aquelle recato com que +se deve fallar d'essas coisas a uma donzella; em seguida fareis apregoar +por todas as nações do mundo, que a vossa rainha e senhora resolveu +casar-se, e dará a sua mão ao principe, que mais fôr do seu agrado. + +<P> +—Até ahi estamos bem; mas V. M. sabe que o mundo se divide principalmente +em tres religiões, a saber: a religião christã, a mahometana e a judaica. +Devo portanto suppôr que V. M. terá já formado o seu juizo, ácerca +da religião a que deve de pertencer o seu augusto genro. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_125">[125]</a></span>—Homem, francamente, ainda nem tal coisa me passou pela +cabeça. + +<P> +—Ah! pois isso é coisa muito séria! + +<P> +—Vae-te d'ahi com esses teus escrupulos de freira! Vós todos sabeis +que no meu reino não ha religião alguma. A fallar a verdade, já por +vezes tenho pensado sobre se conviria ou não que a houvesse, porque +ha muito quem diga, que não póde haver sociedade sem o freio da religião; +porém, no fim de contas, tenho acabado sempre por dizer cá para os +meus botões: «deixar correr; quem me manda a mim metter a redemptor? +Que religião póde haver n'um paiz tão desmoralisado como este, onde +todos os dias se manda gente á forca?! Vá uma pessoa introduzir aqui, +por exemplo, a religião christã, segundo a qual todos os homens são +eguaes: haviam de marchar bem as coisas, desde o momento em que os +escravos, que tiram os coches, soubessem que valem tanto como os senhores, +que vão dentro d'elles, mui <em>repimpados</em>!» + +<P> +—Visto isso, entende V. M. que a melhor religião... é não ter religião +nenhuma, não é verdade? + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_126">[126]</a></span>—Não digo isso, homem; nem tanto ao mar, nem tanto á +terra. O que eu te digo é que não tenho querido quebrar demasiado +a cabeça, pensando em coisas tão delicadas. Que escolha, minha augusta +filha, marido do seu gosto, e ainda mesmo que seja pêrro judeu... + +<P> +Assim terminou a conferencia do rei com os próceres da republica, +e avisado andou S. M. em não a deixar para o dia seguinte, porque +n'aquella mesma noite teve um ataque tão forte, que esticou a canella, +sem ter tempo sequer para dizer «Jesus». + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION05020000000000000000"> +II</A> +</H2> + +<P> +Como era natural, apenas o rei morreu, levantou-se a questão da escolha +d'uma regencia, que devia tomar as rédeas do governo, durante a menoridade +de sua excelsa filha, e então é que foram ellas! + +<P> +Sobre se a regencia devia ser de tres, ou d'um unico estadista, e +se este deveria <span class="pagenum"><a name="pag_127">[127]</a></span> ser Pedro ou Paulo, levantou-se tamanha +tempestade, que ia tudo pelos ares. Por ultimo optaram pela regencia +<em>una</em>, e por então terminou a contenda; porém os partidos politicos, +para os quaes vêr os seus contrarios no poleiro e vêr o diabo é tudo +uma e a mesma coisa, começaram novamente a tecer os pausinhos. Era +o regente um soldado destemido e honrado d'uma vez; porém como homem +d'estado não passava d'um <em>simplorio</em>, que entendia tanto de +governo como eu entendo de lagares d'azeite; os seus inimigos, aproveitando-se +da inepcia com que elle dirigia a politica, não descançaram em quanto +lhe não deram um pontapé, e o expulsaram do palacio. + +<P> +Nomeou-se novo regente. Este então era um passaro que cantava na mão, +porém ao mesmo tempo, tão medroso, que apenas ouvia um tiro, era capaz +de se metter cem braças pela terra abaixo; d'ahi resultava que cada +dia havia um pronunciamento. + +<P> +Por effeito de um d'esses pronunciamentos, caíu o regente, e organisou-se +então uma regencia composta de tres magnates. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_128">[128]</a></span>Até ali era um só a crear nichos para empregar os seus +amigalhotes, um só a querer enriquecer á custa da nação, um só a monopolisar +os favores da joven princeza, e um só a governar mal; multipliquem +agora esse um por tres, e imaginem a poeira, que se levantou com a +tal regencia trina! + +<P> +Conheceu finalmente a princeza que estava em edade de casar-se, e +correu voz, por todas as nações, de que ella punha a sua mão a <em>concurso</em> +e a daria ao principe, que mais lhe agradasse. + +<P> +Os primeiros, que acudiram ao reclame, foram os judeus, os quaes trajavam +rica e vistosamente, e tinham o cuidado de fazer tinir bem o dinheiro +diante da princeza, suppondo talvez, que o vil <em>metal</em> teria +para ella tantos attractivos como para elles; e, emquanto os que iam +á <em>mostra</em> faziam sua côrte á princeza, andavam os rabinos pelos +cêrros pedindo a Deus, que désse a algum dos da sua casta aquella +boa pequena, que tão bello partido era. + +<P> +Chegaram em seguida os mahometanos, e era muito para se vêr, tantos +moiros montados <span class="pagenum"><a name="pag_129">[129]</a></span> em cavallos, mais ligeiros que o vento, +escaramuçando e jogando canas, a vêr se, assim, engodavam a princeza. + +<P> +Afinal appareceram os christãos, que, com suas justas e torneios, +e o seu porte cheio de garbo e gentileza, sabiam encantar o coração +das donzellas. + +<P> +—Então, em qual das tres religiões escolhe V. M. marido? perguntou +o presidente do conselho de ministros á rainha. + +<P> +—Homem, nem sei o que te diga, respondeu a rainha. Bem se diz que +quem tem que escolher tem que fazer. Se queres que te falle verdade, +gosto de todos. + +<P> +—Vamos, mas V. M. precisa decidir-se por um. + +<P> +—Asseguro-te que sinto realmente devéras não poder decidir-me, sequer +ao menos, por tres. Olha, que entre os christãos ha alguns rapazes +bem guapos!... mas entre os judeus e os moiros... não te digo nada!... + +<P> +—Em summa, disse o presidente do conselho, isto não é sangria desatada; +deixe-os V. M. penar, uns e outros, por espaço d'alguns mezes, e depois, +então, poderá <span class="pagenum"><a name="pag_130">[130]</a></span> V. M. escolher, com perfeito conhecimento +de causa; isto de escolha de marido é, para as raparigas, operação +muito delicada... + +<P> +O presidente do conselho teve a honra de que S. M. seguisse o seu +parecer, e christãos, mahometanos e judeus, continuarem a fazer as +suas <em>zumbaias</em> á real moça, cuja mão ambicionavam. + +<P> +Chegou noticia a Roma do que se passava nas Indias, e o Padre Santo +ordenou que se fizessem preces, para que Deus inspirasse a rainha +afim de que casasse com um christão, coisa que redundaria em gloria +e augmento da christandade. + +<P> +Havia n'aquelle tempo em Roma um Preste ou sacerdote, ainda moço, +conhecido pelo nome de Preste João, o qual era a admiração de toda +a gente, em rasão do seu saber e virtudes, zelo religioso e galhardia. + +<P> +O Preste João apresentou-se ao Padre Santo, e disse-lhe: + +<P> +—Santissimo Padre, o que se está passando nas Indias é, quanto a +mim, coisa mais seria, do que parece, á primeira vista. Aquillo é +um paiz desgraçado, onde ninguem <span class="pagenum"><a name="pag_131">[131]</a></span> crê em Deus, nem em +Santa Maria; onde todos são impios e atheus. Se a rainha se casa com +algum pêrro judio, estamos bem aviados; vae tudo para o diabo. Se +porém a rainha dér a mão de esposa a um christão, corto a cabeça, +se todos os indios, dentro em poucos annos, não forem tão christãos +como nós. Posto isto, vou pedir uma graça a Vossa Santidade. + +<P> +—Se fôr coisa que eu possa conceder-te... + +<P> +—Que V. S. me deixe ir ás Indias, para ver se faço entrar aquella +gente no bom caminho. + +<P> +—Estás servido, filho; pódes partir quando quizeres. + +<P> +—Pois, n'esse caso, vou immediatamente tirar passaporte. + +<P> +—Toma cuidado, filho; vê lá que esses infieis te não preguem alguma +peça... particularmente os judeus... + +<P> +—Isso não me mette medo, que por muito que saibam, sempre hei de +saber mais do que elles. + +<P> +—Pois vae na graça de Deus, e leva comtigo a minha benção paternal. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_132">[132]</a></span>—Graças, Santissimo Padre! + +<P> +Foi dito e feito; o Preste João, acompanhado d'um luzidissimo séquito +de sacerdotes, em cujo numero se contavam os melhores cantores de +Roma, e munido de riquissimos paramentos e decorações d'egreja, inclusive +um orgão, que era o melhor que, até então, se tinha visto n'aquelle +genero, tomou o caminho das Indias. + +<P> +Felizmente os inglezes não eram, n'aquella época, tão philantropicos, +como o são agora, do contrario não teriam deixado de lhe armar alguma +ratoeira, na idêa em que estão, de que, para civilisar os cypaios, +são mais eloquentes os seus canhões, carregados de metralha, do que +os hyssopes dos missionarios catholicos, ensopados em agua benta. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION05030000000000000000"> +III</A> +</H2> + +<P> +Os judeus e os moiros souberam que o Preste João se dirigia para as +Indias, e estavam atrapalhados da sua vida, porque havia muito tempo +que a fama trombeteira <span class="pagenum"><a name="pag_133">[133]</a></span> lhes tinha levado noticia do saber, +da virtude, do zelo religioso, e da extremada galhardia do Preste +João. + +<P> +Chegou este, a final, com o seu séquito, e a rainha ficou enamorada +da graciosa dignidade, com que elle a saudou, a ponto de não poder +ter mão em si, que não dissesse, baixinho, ao presidente do conselho: + +<P> +—Olha que este christão não é <em>nenhuma asneira</em>!... + +<P> +Vendo o Preste João a rainha mui bem disposta em seu favor, aproximou-se +de S. M., e disse-lhe: + +<P> +—Senhora, vejo que V. M. vacilla sobre se ha de casar-se com um +christão, com um moiro, ou com um judeu. Creia V. M. que a religião +de Christo é a unica verdadeira, grande e salvadora, e que as outras +são umas <em>religiõesitas de tres ao vintem</em>, que nem com cem varas +chegariam ao ceu, d'onde procede, e onde apoia sua augusta fronte +o christianismo. E se V. M. se quer certificar de que isto que lhe +digo é a pura verdade, não tem mais que ordenar, que nos reunamos, +na sua presença, judeus, mahometanos, e christãos, a fim de discutirmos +<span class="pagenum"><a name="pag_134">[134]</a></span> qual das tres religiões é a melhor, e, sobre tudo, qual +é aquella, que mais favorece as mulheres, pois essa é a grande questão, +nas circumstancias actuaes. + +<P> +—Com muito gosto; não tenho a menor duvida em acceder aos teus desejos, +respondeu a rainha. Amanhã apresentar-vos-heis todos diante de mim, +e veremos, então, quem é que leva a melhor. + +<P> +Com effeito, no dia seguinte, estava a rainha sentada no seu throno, +e as tres religiões, representadas pelo Preste João, e pelos judeus +e mahometanos mais sabios, dispostos a discutir na sua presença. + +<P> +—Está aberta a sessão, disse a rainha. E como era o Preste João +quem tinha provocado aquelle certame, devia considerar-se como o primeiro, +e por esse motivo que pedira a palavra, a rainha accrescentou: «Tem +a palavra o Preste João.» + +<P> +Os judeus e os moiros começaram logo a murmurar, accusando de parcial +a augusta presidente; esta porém fel-os entrar na ordem, a poder de +muitas razões, e toques de campainha. + +<P> +—Senhores, disse o Preste João, trata-se<span class="pagenum"><a name="pag_135">[135]</a></span> de orientar +a S. M. acerca d'um assumpto mui grave, qual é a escolha do homem +a quem, de preferencia, deve ligar o seu futuro. Ora, o que mais interessa +a S. M., é saber o que mais lhe convém, se um marido christão, se +mahometano, ou judeu; quanto a mim a questão está resolvida, para +S. M., desde o momento em que esta augusta senhora, ou para melhor +dizer, <em>senhorita</em>, souber qual é das tres religiões aquella, +que mais protege e favorece os fracos em geral, e a mulher, em particular. + +<P> +«Comecemos pela religião judaica. + +<P> +«A mulher, no povo de Israel, era escrava submissa do homem, e não +sua companheira. Quasi nas primeiras paginas, nos testemunha isso +o velho Testamento, pois nos diz que Abrahão, marido de Sára, recebeu +Agár por mulher, ainda em vida da primeira, e logo adiante nos conta +que Esaú casou, ao mesmo tempo, com duas irmãs cananêas. O Decálogo, +revelado mais tarde a Moysés, no alto do Sinai, dizia: «não desejarás +a mulher do teu proximo»; mas não dizia: «terás uma unica mulher», +<span class="pagenum"><a name="pag_136">[136]</a></span> e Salomão, que era o prototypo da sabedoria hebraica, +teve milhares de concubinas. Pergunto eu agora a S. M. se está disposta +a soffrer que o seu futuro marido lhe dê uma, ou mais substitutas?! + +<P> +—Substitutas! a mim!... exclamou a rainha indignada. Tenho bom genio +para isso! Mais facil seria enterrarem-me viva! + +<P> +—Pois eu continúo.... + +<P> +Aqui interrompem os judeus o orador, descontentes do caminho que leva +a sua causa; a rainha porém fal-os entrar na ordem, á custa de repetidos +toques de campainha, e com ameaça de os fazer expulsar do salão. + +<P> +O orador continúa: + +<P> +—Ficarei por aqui a respeito de judeus, os quaes, em verdade, me +causam dó, ainda que não seja senão por os vêr condemnados a esperar +o Messias, até á consummação dos seculos; com isso já não estão mal +castigados por haverem crucificado a Christo, porque lá diz o rifão: +«quem espera, desespera». Passemos agora aos mahometanos. Quem era +o tal Mafoma? + +<P> +—O propheta de Deus! exclamam os <span class="pagenum"><a name="pag_137">[137]</a></span> mahometanos, pondo +a mão no peito, e dobrando-se reverentemente. + +<P> +—Qual propheta, nem qual cabaça!... + +<P> +Aqui é que foram ellas! Dizer isto o Preste João, e arrancarem os +<em>moiraços dos chanfalhos</em>, rugindo de cólera, foi tudo obra d'um +momento; a rainha porém sacudiu a campainha, mandou entrar o piquete +da guarda, e graças a esta energia da presidencia, accommodaram-se +os perturbadores da ordem, e o orador pôde, a final, continuar: + +<P> +—Mafoma era um <em>sugeito</em> que passava por sabio e grande, entre +os seus compatriotas, pela razão muito simples de que na terra dos +cégos, quem tem um olho é rei! Um dia, disse elle com os seus botões: +Como hei de eu arranjar a dominar estes <em>barbaças</em>, que não tratam +senão de se divertir com as moças?... como?... esperem lá... já sei. +Engendro-lhes uma religião baseada no grosseiro sensualismo, e metto-lhes +na cabeça, que ella me foi revelada por um anjo.» E dito e feito: +arranjou o tal <em>alcorão</em>, segundo o qual, a mulher e o cavallo +vem a ser, para o homem, uma e a mesma coisa, por isso que apenas +servem para o <span class="pagenum"><a name="pag_138">[138]</a></span> divertir; e fez acreditar aos asnos dos +seus compatriotas, que, no outro mundo, haviam de encontrar moças +ás duzias, e obra desenganada. + +<P> +—E é que as havemos de encontrar! gritam furiosos os mahometanos. + +<P> +—Deixemos-nos de lerias!... que hão de vocês encontrar?! Só se forem +alguns tições, que outra coisa não podem lá achar uns barbaros como +vocês, que atravessam seculos e seculos, sem dar um passo na senda +do progresso! Vamos porém agora a vêr o que é a mulher, segundo a +religião estupida de Mafoma. + +<P> +—Lancem-se essas palavras na acta! gritam, afogados em cólera, os +mahometanos. + +<P> +—Não é da minha real vontade! responde a rainha. Prosiga o orador +no seu discurso, que eu cá estou para lhe manter o uso da palavra. + +<P> +—Pois bem, eu continúo: É para cortar o coração, e fazer caír a +alma aos pés, a maneira como a mulher é tratada pelos musulmanos. +Não se contentam estes senhores com ter duas ou tres mulheres; possuem +<span class="pagenum"><a name="pag_139">[139]</a></span> centos d'ellas, encerradas em carceres, a que dão o nome +de serralhos, ou haréns. Atravessa a gente as cidades mais populosas +da Turquia, e não encontra uma mulher siquer para um remedio; e isto +porque esses barbaros até as privam do ar e do sol, as duas coisas +mais preciosas, que a natureza concede á creatura. Horror! cem vezes +horror!! Negarem á mulher, esse formoso ser, todo amor e ternura, +a quem todos nós temos dado o dulcissimo nome de mãe, o ar e o sol, +que não negam aos mais immundos irracionaes! Maldição sobre essa lei +impia, sobre o falso propheta, que a dictou, e sobre o povo barbaro +e fanatico, que a segue! + +<P> +—Ah! perro christão!... gritam, a um tempo, todos os musulmanos, +ao ouvir a energica apostrophe do Preste João; e, rugindo de raiva, +mais furiosos ainda do que da primeira vez, lançam mão dos alfanges, +com ameaça de acabar tragicamente com a discussão; a rainha porém, +mandou entrar novamente o piquete da guarda, que os desarmou e os +metteu na ordem, a poder de muita coronhada d'armas. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_140">[140]</a></span>Apasiguada que foi aquella rusga, continuou o Preste João +o seu discurso: + +<P> +—Que differença entre o que a mulher deve á religião christã, e +o que deve a qualquer das duas religiões, mahometana e hebraica! Maria, +em cujas entranhas encarnou o Verbo Divino, senta-se, no ceu, ao lado +do Filho de Deus, e juntamente com Jesus, lhe dão os homens o dulcissimo +e santo nome de mãe. A religião christã glorifica a mulher, destinando-a +a esmagar a cabeça da serpente do peccado, e Jesus proclama a egualdade +de todas as creaturas humanas, e diz aos meninos que se acerquem d'elle, +igualando, por tal forma, a mulher ao homem, e exaltando os fracos +em cujo numero se conta a mulher. É pois a religião christã a unica +que favorece a mulher; é aquella que a emancipa da escravidão e do +opprobrio, a que a condemnam as religiões judaica e mahometana. Tenho +dito; veremos agora se ha ahi alguem, que seja capaz de me contradizer. + +<P> +—Teem a palavra os judeus, disse a augusta presidente. + +<P> +—A religião de Moysés, replicou um <span class="pagenum"><a name="pag_141">[141]</a></span> rabino, já completamente +desanimado, não carece de entrar em discussões, para provar a sua +superioridade sobre todas as outras. + +<P> +—Ficamos <em>inteirados!</em> disse a rainha, e accrescentou: Teem +a palavra os doutores musulmanos. + +<P> +—Nós <em>cá</em>, os verdadeiros crentes, exclamou um turco, não discutimos +senão d'alfange em punho. + +<P> +—Quer isso dizer, á bruta! exclamou a rainha indignada; e erguendo-se +da cadeira, accrescentou: estando já a hora mui adiantada, e não havendo +mais assumptos a tratar, está levantada a sessão. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION05040000000000000000"> +IV</A> +</H2> + +<P> +Ficou a rainha quasi resolvida a casar com um christão; porém, receiosa +de que houvessem murmurações e commentarios que lhe fossem desagradaveis, +lembrando-se de que alguem poderia dizer que ella obrára levianamente, +determinou-se a tentar uma outra prova. Consistia essa prova <span class="pagenum"><a name="pag_142">[142]</a></span>em fazer com que os apostolos das tres religiões celebrassem, na sua +presença, uma das cerimonias mais importantes dos ritos que professavam. + +<P> +Christãos, musulmanos e judeus, todos, com muito gosto, acceitaram +a proposta de S. M., que logo fixou o dia para as cerimonias, que +deviam verificar-se no mesmo salão, onde se tinha discutido qual era +das tres religiões aquella a que mais devia a mulher. + +<P> +Os primeiros que saíram a terreiro foram os mahometanos, os quaes +annunciaram que iam executar a <em>Zala</em>. + +<P> +Tinha a rainha grande curiosidade de presenciar esta cerimonia, que +julgava ser magnifica, e que muito a divertiria; quando porém viu +que a tal <em>Zala</em> consistia tão sómente em cruzarem aquelles <em>ratões</em> +as mãos no peito, e fazerem reverencias e mais reverencias, ficou +mais fria que o proprio gêlo. + +<P> +—Muito engraçados são os taes <em>moirinhos</em>! disse S. M., com +riso disfructador; e ordenou, em seguida, que saíssem a campo os judeus, +a vêr que tal se portavam. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_143">[143]</a></span>O grande rabino, com o seu barrete <em>enterrado</em> até +ás orelhas, como usam os seus correligionarios, sacou d'um livro, +e immediatamente appareceram todos os judeus com os seus ripanços +nas mãos. Ora, os taes livros seriam muito edificantes, mas tinham +tanta côdea, que só com uma tenaz se lhes poderia pegar. O rabino +principiou a entoar um psalmo, e todos os judeus o acompanharam; cantavam +porém tão desentoadamente, e davam tão insoffriveis bérros, que a +pobre da rainha não teve outro remedio senão tapar os ouvidos, e mandar +a toda a pressa que cessasse tamanha algaravia. + +<P> +Cessou com effeito, e os christãos dispuzeram-se, por ultimo, a celebrar +o santo sacrificio da missa, para o que o Preste João tinha tudo perfeitamente +ordenado. + +<P> +Collocaram no salão um magnifico altar, accenderam uma grande quantidade +de tochas, que faziam bellissima vista; puzeram o orgão n'um sitio, +que tinha excellentes condições acusticas, tossiram e <em>aguçaram +o pigarro</em> os cantores que haviam de officiar a missa, e que, como +em principio dissemos, eram os melhores de Roma; e, em <span class="pagenum"><a name="pag_144">[144]</a></span>seguida, subiu o Preste João ao altar, magnificamente revestido, bem +como os dois acólitos, que o acompanhavam. A missa foi solemnissima, +e tanto os celebrantes, como os cantores e o organista fizeram prodigios, +que deixaram de bôcca aberta a rainha e a sua côrte. + +<P> +Os mahometanos e os judeus olharam uns para os outros, e disseram +por entre os dentes: + +<P> +—Derrotaram-nos em tudo e por tudo estes perros christãos! + +<P> +E na verdade não se enganaram, porque a rainha chamou, pouco depois, +o Preste João, e disse-lhe: + +<P> +—Decididamente caso com um christão. + +<P> +—Louvado seja o Senhor! exclamou o Preste João, cheio de santa alegia. +Agora só falta que V. M. escolha o christão, que deve ter a ventura +de occupar o thalamo de tão formosa princeza. + +<P> +—Já está escolhido, disse a rainha das Indias, fazendo-se córada +como uma romã. + +<P> +—E quem é esse feliz mortal? + +<P> +—Tu. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_145">[145]</a></span>—Eu!... V. M. não está em seu juiso! + +<P> +—Então! faz-te agora de manto de seda!... + +<P> +—Não, senhora; porém não sabe V. M. que eu sou padre, e que os padres +catholicos não podem casar?... + +<P> +—Que me dizes, homem? + +<P> +—Digo-lhe isto, real senhora! + +<P> +—Pois, amigo; partiste-me o coração! + +<P> +—Então, porque? + +<P> +—Porque estou apaixonada por ti, e se não casar comtigo, não caso +com ninguem. + +<P> +—Mas, senhora, entre os meus correligionarios ha moços mais bem +parecidos do que eu. + +<P> +—Asseguro-te que nenhum me póde agradar tanto como tu. + +<P> +—Sinto isso bem; mas eu é que não posso casar. + +<P> +—Visto isso, não terei outro remedio, senão dar a mão d'esposa a +algum d'esses moiros... que... diga-se a verdade, entre elles ha rapazes +bem <em>tirados das canellas</em>, e o que me não agrada n'elles é apenas +a religião, que professam... + +<P> +Quando o Preste João ouviu estas palavras, <span class="pagenum"><a name="pag_146">[146]</a></span> tremeu dos +pés á cabeça, pensando, e com razão, que, pelo facto de a rainha casar +com um mahometano, todas as Indias, povoadas de milhões e milhões +de habitantes, abraçariam a seita detestavel de Mafoma, ao passo que, +se casasse com um christão, toda aquella gente seguiria a religião +de Christo. + +<P> +—Senhora, disse elle, por fim, á rainha, póde ser que consigamos +harmonisar tudo. O Papa, que é o Vigario de Christo na terra, é o +unico que póde auctorisar-me a casar com V. M. Vou já escrever-lhe, +pelo correio d'hoje, pedindo-lhe a competente licença. + +<P> +—Oh! que feliz idêa! exclamou a rainha; e riam-se-lhe os olhos, +de contente. Bem digo eu que és um rapaz de muitos recursos! + +<P> +O Preste João poz logo mãos á obra; escreveu ao Papa, contando-lhe, +muito pelo miudo, o que se passava, e, na <em>volta do correio</em>, +recebeu de Sua Santidade a dispensa para casar com a rainha das Indias. + +<P> +Celebraram-se, pouco tempo depois, as vôdas, com grandes festas e +muito regosijo <span class="pagenum"><a name="pag_147">[147]</a></span> (bem entendido, depois da rainha se ter +feito christã) e, passados annos, recebiam o baptismo todos esses +milhões de milhões de indios, que os inglezes, nos nossos dias, se +fartaram de metralhar, sem dó, nem piedade. + +<P> +Eis-ahi a historia do Preste João das Indias. Outros a contarão com +mais graça do que eu, porém com melhor intenção por certo que ninguem +a conta. + +<p class="centrado"> +<big>FIM.</big> +</p> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Contos escolhidos de D. Antonio de +Trueba, by António de Trueba + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS ESCOLHIDOS DE D. ANTONIO *** + +***** This file should be named 25593-h.htm or 25593-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/5/5/9/25593/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. 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General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. 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