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+The Project Gutenberg EBook of Orpheu Nº2, by
+Mário de Sá-Carneiro and Fernando António Nogueira Pessoa and Ângelo Vaz Pinto Azevedo Coutinho de Lima and Luís de Montalvor
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Orpheu Nº2
+ Revista Trimestral de Literatura
+
+Author: Mário de Sá-Carneiro
+ Fernando António Nogueira Pessoa
+ Ângelo Vaz Pinto Azevedo Coutinho de Lima
+ Luís de Montalvor
+
+Illustrator: Guilherme de Santa-Rita
+
+Release Date: November 25, 2007 [EBook #23621]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ORPHEU Nº2 ***
+
+
+
+
+Produced by Vasco Salgado
+
+
+
+
+*ORPHEU*
+
+*2*
+
+
+
+
+*"ORPHEU"*
+
+REVISTA TRIMESTRAL DE LITERATURA
+
+
+Propriedade de: ORPHEU, L.^da
+Editor: ANTONIO FERRO
+
+
+DIRECTORES
+
+*Fernando Pessôa*
+*Mario de Sá-Carneiro*
+
+
+*ANO I--1915* *N.^o 2* *Abril-Maio-Junho*
+
+
+*SUMARIO*
+
+ANGELO DE LIMA _Poemas Inéditos_
+MARIO DE SÁ-CARNEIRO _Poemas sem Suporte_
+EDUARDO GUIMARAENS _Poemas_
+RAUL LEAL _Atelier_ (novela vertígica)
+VIOLANTE DE CYSNEIROS (?) _Poemas_
+ALVARO DE CAMPOS _Ode Marítima_
+LUÍS DE MONTALVÔR _Narciso_ (poema)
+FERNANDO PESSÔA _Chuva oblíqua_ (poemas interseccionistas)
+
+
+*Colaboração especial do futurista*
+
+*SANTA RITA PINTOR*
+
+*(4 hors-texte duplos)*
+
+
+_Redacção_: 190, Rua do Ouro--Livraria Brazileira.
+_Oficinas_: Tipografia do Comercio, 10, Rua da Oliveira,
+ao Carmo--Telefone 2724
+
+LISBOA
+
+
+
+
+"Orpheu" iniciará na _rentrée_ uma longa série de conferencias de
+afirmação, sendo as primeiras as seguintes:
+
+
+A Torre Eiffel e o Genio do Futurismo, por _Santa Rita Pintor_.
+
+A Arte e a Heraldica, pelo pintor _Manuel Jardim_.
+
+Teatro Futurista no Espaço, pelo _Dr. Raul Leal_.
+
+As Esfinges e os Guindastes: estudo do bi-metalismo psicologico, por
+_Mario de Sá-Carneiro_.
+
+
+*SERVIÇO DA REDACÇÃO*
+
+
+Varias razões, tanto de ordem administrativa, como referentes á
+assunção de responsabilidades literarias perante o publico, levaram
+o _comité_ redactorial de _ORPHEU_ a achar preferivel que a direcção
+da revista fôsse assumida pelos actuais directores, não envolvendo
+tal determinação a minima discordancia com o nosso camarada Luís
+de Montalvôr, cuja colaboração, aliás, ilustra o presente numero.
+
+
+De principio, concordara o _comité_ redactorial de _ORPHEU_ em não
+inserir colaboração artistica: por isso mesmo se adoptou uma capa que
+o era, brilhante composição do arquitecto José Pacheco. Posteriormente
+á saída do primeiro numero, julgou, porêm, o mesmo _comité_ que seria
+interessante inserir em cada numero desenhos ou quadros de *um*
+colaborador, em vista do que decidiu *fixar* a capa, tirando-lhe o
+caracter artistico e dando-lhe um simples e normal aspecto tipografico.
+A realisação desta parte do nosso programa começa no numero actual com
+a inserção dos quatro definitivos trabalhos futuristas de Santa Rita
+Pintor.
+
+
+O _Manifesto da Nova Literatura_, que havia sido anunciado como devendo
+fazer parte do n.^o 2 de _ORPHEU_, não é nêle inserto nem o acompanha.
+É motivo disto a circunstancia de que, envolvendo a confecção dêsse
+manifesto o desenvolvimento de principios de ordem altamente scientifica
+e abstracta, êle não pôde ficar concluido a tempo de ser inserto. Ou
+aparecerá com o 3.^o numero da revista, ou mesmo antes, talvez, em
+opusculo ou folheto separado.
+
+
+O 3.^o numero de _ORPHEU_ será publicado em outubro, com o atraso dum
+mês, portanto--para que a sua acção não seja prejudicada pela
+época-morta.
+
+
+Os _hors texte_ de Santa Rita Pintor insertos no presente numero foram
+fotogravados nos _ateliers_ da *Ilustradora* segundo clichés de
+
+
+*BARROS & GALAMAS*
+146, Rua da Palma--LISBOA
+
+
+*CONDIÇÕES*
+
+
+Toda a correspondencia deve ser dirigida aos Directores.
+
+
+Convidamos todos os Artistas cuja simpatia esteja com a indole desta
+Revista a enviarem-nos colaboração. No caso de não ser inserta
+devolveremos os originais.
+
+
+São nossos depositarios em Portugal os srs. Monteiro & C.^a, Livraria
+Brazileira--190 e 192, Rua Aurea, Lisboa.
+
+
+_ORPHEU_ publicará um numero incerto de paginas, nunca inferior a 72,
+ao preço invariavel de 30 centavos o numero avulso, em Portugal, e
+1$500 réis fracos no Brazil.
+
+
+*ASSINATURAS*
+
+(Ao ano--Série de 4 numeros)
+
+
+Portugal, Espanha e Colonias portuguesas 1 escudo
+Brazil 5$000 réis (moeda fraca)
+União Postal 6 francos
+
+
+
+
+*Livraria Brazileira de MONTEIRO & C.^ia--Editores*
+190 e 192, RUA AUREA--LISBOA
+
+
+Acaba de aparecer:
+
+
+*CÉU EM FOGO*
+
+NOVELAS POR
+
+MARIO DE SÁ-CARNEIRO
+
+
+GRANDE SOMBRA--MISTÉRIO
+O HOMEM DOS SONHOS--ASAS--EU-PROPRIO O OUTRO
+A ESTRANHA MORTE DO PROF. ANTENA
+O FIXADOR DE INSTANTES--RESSURREIÇÃO
+
+
+1 VOLUME DE 350 PAGINAS
+
+
+CAPA DESENHADA POR
+
+JOSÉ PACHECO
+
+
+Preço 70 centavos
+
+
+
+
+
+*POEMAS INÉDITOS*
+
+DE
+
+ANGELO DE LIMA
+
+
+
+
+_*CANTICO--SEMI-RAMI*_
+
+
+--Oh! Noute em Teu Amor Silenciosa!
+--Oh! Estrellas na Noute, Scintillantes,
+Como Ideaes e Virginaes Amantes!...
+--Oh! Memoria de Amor Religiosa!...
+
+--Já Fui... uma Creança Pubescente
+Que des'brocha em Amor Inconsciente
+Como n'um Vago Sonho... Commovente
+Desabrocha uma Rosa Olorescente
+--A Adolescente... Casta e Curiosa!
+
+--E já Fui... a Galante com Requinte
+Para dar-me, Esquivando-me em Acinte
+De P'rigos da Ventura Cyspresinte
+--Sensitiva... Ao Brisar, do Sol Orinte...
+--A Nubente... Temente e Desejosa!
+
+--E já Fui... a Noivada pelo Amante,
+A Cingida de Abraço Palpitante,
+Anxe do Sacrificio Inebriante!
+--A Flôr que Quebra o Gyneceu... Hiante,
+--A Desvirgada... Grata e Dolorosa!
+
+--Oh! Memoria de Amor Religiosa!
+--Oh! Estrellas, na Noute, Scintillantes
+Como Ideaes e Virginaes Amantes...
+--Oh! Noute em Teu Amor... Silenciosa!
+
+Já Fui... como a Senhora, sim, durante
+Uns Tempos de Ventura Confortante
+Nos Confortos de um Lar... Hoje Distante...
+--Como Dista, da Noute, um Paço Encante...
+Já Fui... uma Matrona Virtuosa!...
+
+E já Fui... a Devota pelo Amor,
+A Adulterin... que Trahe o seu Senhor!...
+
+E a que sentiu Doer o Coração
+Ao Fim de Tanta e Cada uma Vez
+Por cada Intento só Colhêr Revez
+Nas Esp'ranças da Sua Devoção!...
+
+Oh! Noute! em Teu Amor Silenciosa!
+Oh! Estrellas, na Noute, Scintillantes
+Como Ideaes e Virginaes Amantes...
+Oh! Memoria de Amor Religiosa!
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+E se Ha de Amor, algum Amor Eleito,
+Aquella Tambem Fui, que Ninguem Fôsse,
+Que, n'um Mysterio, como o Inferno, Doce,
+Amei a Minha Filha, no seu Leito...
+
+Sim, se Ha de Amor algum Amor Eleito,
+Minhas Irmãs, Cingi-me ao Vosso Peito
+E Ouvi-Me esta Memoria Dolorosa...
+
+Já Fui Aquella que Perdeu a Esp'rança,
+E Errou Espasma Noutes sem Termino,
+Entre a Treva das Selvas Pavorosa,
+Anxe em busca de Amantes do Destino...
+
+--E A que Lembrou os Tempos de Creança!...
+
+--E já Fui como a Sombra da Saudade
+Amando a Lua, pela Immensidade!
+
+--Oh Noute! em Teu Amor, Silenciosa!
+--Oh Estrellas, na Noute, Scintillantes
+Como Ideaes e Virginaes Amantes!
+--Oh Memoria de Amor, Religiosa!...
+
+
+
+
+_*NEITHA-KRI*_
+
+
+Ó Noute Immensa pela Immensidão!
+Recebe em Ti a minha Confissão.
+Eu Nunca disse ao Verdadeiro, Não!
+Nem devoro em Remorso o Coração!...
+
+Sou a Grande Rainha Neitha-Kri...
+Sou Devota da Noute Pensadora...
+E Neith é grande, pelos Ceus Senhora...
+E Eu, Sua Filha, Sou Nofrei-Ari!...
+
+Meu Irmão era o Rei Mentha-Suf'reh!...
+--E Morreu Enlevado em Sonho Ideal
+D'um Phyltro que Eu lhe dei para tomar!...
+--Mentha-Suf'reh não Conheceu o Mal
+--E o Destino Elegeu-me p'ra Reinar
+Sobre os Milagres do Paiz d'Esneh!...
+
+--Sou a Grande Rainha Neitha-Kri!
+--Sou Devota da Noute Pensadora
+--E Neith é Grande! pelos Ceus Senhora!
+--Sou a Rainha!... Sou Nofrei-Ari!...
+
+--No meu Corpo Divino e Perfumado
+Tenho a Carne Côr Mate da Belleza
+Que é Ammarella de Côr e Delicada,
+Da Côr Loura da Chamma Incendiada...
+--Tenho o Porte das Damas da Nobreza
+Nas Formas do Meu Corpo Consagrado!...
+
+--A Thiara Suprema que Investi
+Coroa a Minha Fronte Sobranceira,
+Real, Sagrada, Mystice, Altaneira...
+--E Então--ó Neith--sou Divina em Ti!...
+
+Na Sombra d'Esta C'roa dos Thanitas
+Palpitam-me no Seio Delicado
+Anceios de Desejos Escondidos,
+Mysteriosos, quasi Indefinidos,
+Mesmo ao Saber do Meu Olhar Velado
+--Que tu, ó Noute! em Teu Amor Excitas...
+
+O Peitoral Sagrado da Magia
+Repousa nos seus Ouros Esmaltados,
+Frio sobre os meus Seios Excitados,
+Como tacite, Oraculo, do Dia...
+
+--Sob o Pê-chênte Cintural Pendente
+Sobre o Vigor suavemente Curvo
+Das minhas Côxas no meu star de Hyerata
+Que Antros Ardentes e que, Amor, Dilata
+De um Ardor Fulguroso... porque Turvo...
+De que Immanencia... de que Immanescente?...
+
+--Ó Noute minha Mãe na Immensidão!
+--Ó Noute Grande, pelos Céus Senhora...
+--Scintil d'Estrellas n'Essa Solidão...
+--Eu, Sobre a Terra, Sou a Vencedora!...
+
+--Erguida nas Sandalias Encurvadas
+Sou de Pé ante Ti, ó Verdadeira!
+Dama da Vida, pelo Amor Ungida...
+Senhora Principal... Dama da Vida!
+Eu, Tua Padre-Mãe!--a Derradeira...
+--Entre as Vagas de Incenso a Ti Votadas...
+
+--Meu Olhar é Fulguro docemente,
+Como se n'este Espelho da Verdade
+Da minha Alma Polytica de Rei,
+--N'Aquella Presciencia com que Sei
+--Se Reflectisse a Minha Lealdade
+--Ou a Luz d'Algum Astro Transcendente...
+
+--E os meus Braços Frementes Alongados,
+Cingidos nos Annilos Rictuaes,
+Têem na Mão o Seter dos Grandes Paes
+Como as Chaves dos Sellos Reservados...
+
+Sou mais Sabia que os Sabios--Eu emfim
+--Eu que Sei o Segredo Consagrado
+Das Filtragens do Lotus Divinal
+Que Floresce em o Rio de Occidente
+E que Evoccam o Sonho Absorvente
+Em que Esquecem--a par da Dor do Mal--
+Os Estrangeiros, o seu Lar Deixado...
+--Que Encontram outro Lar juncto de Mim...
+
+--Meu olhar é Fulguro docemente
+Em Profunda Dulcissima Certeza
+Como as Astres do Ceu Immanescente...
+E Mãe--ó Neith-eu! ó mais que Pura!
+--Como as Estrellas d'um Fulgor Fremente...
+--Sou a Ventura Filha da Tristeza
+D'Esse Teu Medictar Saudosamente...
+
+--E assim como os Astros Fascinantes
+Geram Fatas as Horas dos Instantes,
+--Meu Amor--o Sem Fim--gera a Loucura!
+
+
+
+
+_*NINIVE*_
+
+
+--Alem Foi--a Ninive da Piedade,
+A Cidade do Lucto Singular
+E a Sepultura da Semi-Rami...
+--E Hoje... stá por Ali, Vaga, a Saudade...
+--E anda no Ceu Supremo a Eterna Istar...
+--E... Passa, ás Vezes, a Serpente...--Ali!...
+
+
+
+
+Na Camara Longinqua e Silenciosa
+Da Sepultura da Semi-Rami...
+--Relegada da Vida Gloriosa
+--Na Paz Final da Morte Mysterosa
+ --Fria e Saudosa
+ --Dorme a Semi!...
+
+--Morreu na Guerra em um Paiz Distante...
+--Na Expedição Fatal em que Morreram
+Trez Milhões de Soldados...--e ainda Mais...
+--E os Guardas d'A Que Fôra a Triumphante
+--Fieis..., os Seus Cem Guardas Immortaes...
+Na Piedade Final do Ultimo Preito
+Denotando os Seus Corpos Vigorosos
+--Mantendo sobre os Hombros Pressurosos
+O Feretro Sagrado da Semi...
+--Por Caminhos Infindos Escabrosos
+Em Terras de Inimigos... e Chacaes...
+--Por Soes de Fogo...--Vastos Areaes...
+--E Pavôres Sacros de Paiz Levante...
+--Trouxeram Seu Cadaver do Distante
+ --E Inhumaram-A Alli...
+--Fria e Saudosa!...
+--Na Camara Longinqua e Silenciosa
+Da Sepultura da Semi-Rami!...
+
+
+
+
+_*....?....*_
+
+
+--Eras... nos Tempos... Antes da Edade...
+Teu Gesto Gloro Gerou a Vida!...
+--E Apoz Teu Gesto...
+--Supremo... Immesto...
+--Grande e Tacida...
+--Depoz... É a Noute na Immensidade!...
+
+
+
+
+--E a Mãe do Rei do Reino Sul-Occaso
+Disse a Mu-Ang--Alguma Vez, Accaso...
+--Olha a Nuvem no Céu... e como Corre!...
+--Assim as Horas da Ventura Minha...
+--Quem Tem Filhos na Terra--Esse Não Morre!...
+--Despozae--Se Sois Rei--uma Rainha
+--Que É Tanto como Vós Pela Grandeza...
+--E... Depois... de Espozardes a Belleza
+Podeis Seguir Então Vossa Encaminha!...
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+--E o Rei Mu-An' disse á Rainha, Então...
+--Junto de Vós... Enlevo-me de Encanto...
+--Longe, Porém, do Meu Paiz--Ha tanto,--
+Que Nem, Meus Reinos, Já Eu Sei se São...
+--Volto ao Meu Reino... n'Esta Dôr Tamanha...
+--Seja--A da Mãe do Rei--Esta Montanha
+Onde Alastra Este Bosque de Arvoredo
+Junto ao Lago... em que Estamos... em Adeus!...
+--Ó Mãe do Rei... Vós M'Enlevaes nos Céus
+--Mas o Meu Coração Soffre em Segrêdo!...
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+
+
+
+--Quantos... desde Chu-Si a Kuan-Su
+--Filhos do Céu nas Filhas do Kiang
+--Consagraram no Throno dos Hoang
+--Aureolados do Pavão Azu?...
+--E Algum Dia... Encostaram-se Tranquilos
+Sobre a Meza de Joias do _Estar Manso_
+--E Cerraram os Olhos nos Seus Cilos...
+--E Abateram Seu Gesto Socegado
+De Imp'radores do Imperio Consagrado...
+--No Gesto da Decencia e do Descanso!...
+
+
+
+
+_*EDD'ORA ADDIO...--MIA SOAVE!...*_
+
+Aos meus amigos d'ORPPHEU
+
+
+--Mia Soave...--Ave?!...--Alméa?!...
+--Maripoza Azual...--Transe!...
+Que d'Alado Lidar, Canse...
+--Dorta em Paz...--Transpasse Idéa!...
+
+--Do Occaso pela Epopéa...
+Dorto... Stringe... o Corpo Elance...
+Vae Á Campa...--Il C'or descanse...
+--Mia Soave...--Ave!...--Alméa!...
+
+--Não Doe Por Ti Meu Peito...
+--Não Choro no Orar Cicio...
+--Em Profano...--Edd'ora... Eleito!...
+
+--Balsame--a Campa--o Rocío
+Que Cahe sobre o Ultimo Leito!...
+--Mi' Soave!... Edd'ora Addio!...
+
+
+
+
+--Estes Versos Antigos Que Eu Dizia
+Ao Compasso Que Marca o Coração
+Lembram Ainda?...--Lembrarão um Dia...
+--Nas Memorias Dispersas Recolhidas
+Sequer, na Piedosa Devoção
+D'Algum Livro de Cousas Esquecidas?...
+--Accaso o Que Ora Canta... Vive... Existe
+Nunca Mais Lembrará--Eternamente?...
+--E, Vindo do Não-Ser, Vae, Finalmente,
+Dormir no Nada... Magestoso e Triste?...
+
+
+ANGELO DE LIMA.
+
+
+
+
+
+_MARIO DE SÁ-CARNEIRO_
+
+*POEMAS SEM SUPORTE*
+
+
+a Santa Rita Pintor.
+
+
+
+
+_ELEGIA_
+
+
+Minha presença de setim,
+Toda bordada a côr de rosa,
+Que fôste sempre um adeus em mim
+Por uma tarde silenciosa...
+
+Ó dedos longos que toquei,
+Mas se os toquei, desapareceram...
+Ó minhas bôcas que esperei,
+E nunca mais se me estenderam...
+
+Meus Boulevards d'Europa e beijos
+Onde fui só um espectador...
+--Que sôno lasso, o meu amor;
+--Que poeira d'ouro, os meus desejos...
+
+Ha mãos pendidas de amuradas
+No meu anseio a divagar...
+Em mim findou todo o luar
+Da lua dum conto de fadas...
+
+Eu fui alguem que se enganou
+E achou mais belo ter errado...
+Mantenho o trôno mascarado
+Aonde me sagrei Pierrot.
+
+Minhas tristezas de cristal,
+Meus débeis arrependimentos
+São hoje os velhos paramentos
+Duma pesada Catedral.
+
+Pobres enleios de carmim
+Que reservara pra algum dia...
+A sombra loira, fugidia,
+Jámais se abeirará de mim...
+
+--Ó minhas cartas nunca escritas,
+E os meus retratos que rasguei...
+As orações que não rezei...
+Madeixas falsas, flôres e fitas...
+
+O «petit-bleu» que não chegou...
+As horas vagas do jardim...
+O anel de beijos e marfim
+Que os seus dedos nunca anelou...
+
+Convalescença afectuosa
+Num hospital branco de paz...
+A dôr magoada e duvidosa
+Dum outro tempo mais lilaz...
+
+Um braço que nos acalenta...
+Livros de côr á cabeceira...
+Minha ternura friorenta--
+Ter amas pela vida inteira...
+
+Ó grande Hotel universal
+Dos meus frenéticos enganos,
+Com aquecimento-central,
+Escrocs, cocottes, tziganos...
+
+Ó meus Cafés de grande vida
+Com dançarinas multicolôres...
+--Ai, não são mais as minhas dôres
+Que a sua dança interrompida...
+
+
+_Lisboa--março de 1915._
+
+
+
+
+_MANUCURE_
+
+
+Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
+Subita sensação inexplicavel de ternura,
+Todo me incluo em Mim--piedosamente.
+Emtanto eis-me sózinho no Café:
+De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
+De volta, as mesas apenas--ingratas
+E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
+Boçal, quadrangular e livre-pensadora...
+Fóra: dia de Maio em luz
+E sol--dia brutal, provinciano e democrático
+Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
+Não podem tolerar--e apenas forçados
+Suportam em nauseas. Toda a minha sensibilidade
+Se ofende com este dia que ha de ter cantores
+Entre os amigos com quem ando ás vezes--
+Trigueiros, naturais, de bigodes fartos--
+Que escrevem, mas têem partido politico
+E assistem a congressos republicanos,
+Vão ás mulheres, gostam de vinho tinto,
+De peros ou de sardinhas fritas...
+
+E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
+E de as pintar com um verniz parisiense,
+Vou-me mais e mais enternecendo
+Até chorar por Mim...
+Mil côres no Ar, mil vibrações latejantes,
+Brumosos planos desviados
+Abatendo flexas, listas volúveis, discos flexiveis,
+Chegam tenuemente a perfilar-me
+Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
+Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
+Todos os scenarios que entretanto Fui...
+Eis como, pouco a pouco, se me fóca
+A obsessão débil dum sorriso
+Que espelhos vagos reflectiram...
+Leve inflexão a sinusar...
+Fino arrepio cristalisado...
+Inatingivel deslocamento...
+Veloz faúlha atmosférica...
+
+E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
+Por innumeras intersecções de planos
+Multiplos, livres, resvalantes.
+
+É lá, no grande Espelho de fantasmas
+Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,
+Se desmorona o meu presente,
+E o meu futuro é já poeira...
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+Deponho então as minhas limas,
+As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
+Os polidores da minha sensação--
+E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
+Oh! poder exaurir tudo quanto nêle se incrusta,
+Varar a sua Beleza--sem suporte, emfim!--
+Cantar o que êle revolve, e amolda, impregna,
+Alastra e expande em vibrações:
+Subtilisado, sucessivo--perpétuo ao Infinito!...
+Que calótes suspensas entre ogivas de ruínas,
+Que triangulos sólidos pelas naves partidos!
+Que hélices atrás dum vôo vertical!
+Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténnis!--
+Que loiras oscilações se ri a bôca da jogadora...
+Que grinaldas vermelhas, que léques, se a dançarina russa,
+Meia-nua, agita as mãos pintadas da Salomé
+Num grande palco a Ouro!
+--Que rendas outros bailados!
+
+Ah! mas que inflexões de precipicio, estridentes, cegantes,
+Que vertices brutais a divergir, a ranger,
+Se facas de apache se entrecruzam
+Altas madrugadas frias...
+
+E pelas estações e cais de embarque,
+Os grandes caixotes acumulados,
+As malas, os fardos--pêle-mêle...
+Tudo inserto em Ar,
+Afeiçoado por êle, separado por êle
+Em multiplos intersticios
+Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...
+
+--Ó beleza futurista das mercadorias!
+
+--Sarapilheira dos fardos,
+Como eu quisera togar-me de Ti!
+--Madeira dos caixotes,
+Como eu anseara cravar os dentes em Ti!
+E os pregos, as cordas, os aros...--
+Mas, acima de tudo, como bailam faiscantes
+A meus olhos audazes de beleza,
+As inscrições de todos esses fardos--
+Negras, vermelhas, azuis ou verdes--
+Gritos de actual e Comercio & Industria
+Em transito cosmopolita:
+
+*FRAGIL! FRAGIL!*
+
+*843--AG LISBON*
+*492--WR MADRID*
+
+Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosferica,
+O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
+Á minha volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado
+Pelo grande fluido insidioso,
+Se volve, de grotesco--célere,
+Imponderável, esbelto, leviano...
+--Olha as mesas... Eia! Eia!
+Lá vão todas no Ar ás cabriolas,
+Em séries instantaneas de quadrados
+Ali--mas já, mais longe, em lozangos desviados...
+E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
+E misturam-se ás mesas as insinuações berrantes
+Das bancadas de veludo vermelho
+Que, ladeando-o, correm todo o Café...
+E, mais alto, em planos obliquos,
+Simbolismos aereos de heraldicas ténues
+Deslumbram os xadrezes dos fundos de palhinha
+Das cadeiras que, estremunhadas em seu sôno horisontal,
+Vá lá, se erguem tambem na sarabanda...
+
+Meus olhos ungidos de Novo,
+Sim!--meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
+
+Não param de fremir, de sorver e faiscar
+Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
+Toda essa Beleza-sem-Suporte,
+Desconjuntada, emersa, variavel sempre
+E livre--em mutações continuas,
+Em insondáveis divergencias...
+
+--Quanto á minha chávena banal de porcelana?
+
+Ah, essa esgota-se em curvas gregas de anfora,
+Ascende num vértice de espiras
+Que o seu rebordo frisado a ouro emite...
+
+É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!...
+
+... Dos longos vidros polidos que deitam sôbre a rua,
+Agora, chegam teorias de vértices hialinos
+A latejar cristalisações nevoadas e difusas.
+Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
+Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
+Laços, grifos, setas, azes--na poeira multicolor--.
+
+*APOTEOSE.*
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+Junto de mim ressoa um timbre:
+Laivos sonoros!
+Era o que faltava na paisagem...
+As ondas acusticas ainda mais a subtilisam:
+Lá vão! Lá vão! Lá correm ágeis,
+Lá se esgueiram gentis, franzinas côrsas d'Alma...
+
+Pede uma voz um numero ao telefone:
+Norte--2, 0, 5, 7...
+E no Ar eis que se cravam moldes de algarismos:
+
+ASSUNÇÃO DA BELEZA NUMÉRICA!
+[Nota do Transcritor: Aqui surge a composição com números.]
+
+Mais longe um criado deixa cair uma bandeja...
+Não tem fim a maravilha!
+Um novo turbilhão de ondas prateadas
+Se alarga em écos circulares, rútilos, farfalhantes
+Como água fria a salpicar e a refrescar o ambiente...
+
+--Meus olhos extenuaram de Beleza!
+
+Inefavel devaneio penumbroso--
+Descem-me as palpebras vislumbradamente...
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+... Começam-me a lembrar aneis de jade
+De certas mãos que um dia possuí--
+E ei-los, de sortílégio, já enroscando o Ar...
+Lembram-me beijos--e sobem
+Marchetações a carmim...
+
+Divergem hélices lantejoulares...
+Abrem-se cristas, fendem-se gumes...
+Pequenos timbres d'ouro se enclavinham...
+Alçam-se espiras, travam-se cruzetas...
+Quebram-se estrelas, sossobram plumas...
+
+Dorido, para roubar meus olhos á riqueza,
+Fincadamente os cerro...
+Embalde! Não ha defesa:
+Zurzem-se planos a meus ouvidos, em catadupas,
+Durante a escuridão--
+Planos, intervalos, quebras, saltos, declives...
+
+--Ó mágica teatral da atmosfera,
+--Ó mágica contemporanea--pois só nós,
+Os de Hoje, te dobrámos e fremimos!
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+Eia! Eia!
+Singra o tropel das vibrações
+Como nunca a exgotar-se em ritmos iriados!
+Eu proprio sinto-me ir transmitido pelo ar, aos novelos!
+Eia! Eia! Eia!...
+
+(Como tudo é diferente
+Irrealisado a gás:
+De livres pensadoras, as mesas fluidicas,
+Diluidas,
+São já como eu catolicas, e são como eu monarquicas!...)
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+Sereno.
+Em minha face assenta-se um estrangeiro
+Que desdobra o «Matin».
+Meus olhos, já tranquilos de espaço,
+Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres,
+Começam a vibrar
+Toda a nova sensibilidade tipografica.
+
+Eh-lá! grosso normando das manchettes em sensação!
+Itálico afilado das crónicas diarias!
+Corpo-12 romano, instalado, burguez e confortavel!
+Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais!
+Tipo miudinho dos pequenos anuncios!
+Meu elzevir de curvas pederastas!...
+E os ornamentos tipograficos, as vinhetas,
+As grossas tarjas negras,
+Os «puzzle» frivolos da pontuação,
+Os asteriscos--e as aspas... os acentos...
+Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!...
+
+[Nota do Transcritor: Aqui surge uma composição com caracteres.]
+
+--Abecedarios antigos e modernos,
+Gregos, góticos,
+Slavos, arabes, latinos--,
+Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!...
+
+(Hip! Hip-lá! nova simpatia onomotopaica,
+Rescendente da beleza alfabetica pura:
+Uu-um... kess-kresss... vliiim... tlin... blong... flong... flak...
+Pâ-am-pam! Pam... pam... pum... pum... Hurrah!)
+
+Mas o estrangeiro vira a página,
+Lê os telegramas da Ultima-Hora,
+Tão leve como a folha do jornal,
+Num rodopio de letras,
+Todo o mundo repousa em suas mãos!
+
+--Hurrah! por vós, industria tipografica!
+--Hurrah! por vós, empresas jornalisticas!
+
+*MARINONI* *LINOTYPE*
+*O SECULO* *BERLINER TAGEBLATT*
+*LE JOURNAL* *LA PRENSA*
+*CORRIERE DELLA SERA* *THE TIMES*
+*NOVOÏE VREMIÁ*
+
+Por ultimo desdobra-se a folha dos anuncios...
+--Ó emotividade zebrante do Reclamo,
+Ó estética futurista--_up-to-date_ das marcas comerciais,
+Das firmas e das taboletas!...
+
+*LE BOUILLON KUB*
+*VIN DÉSILES* *PASTILLES VALDA*
+*BELLE JARDINIÈRE*
+*FONSECAS, SANTOS & VIANNA* HUNTLEY & PALMERS *"RODDY"*
+_*Joseph Paquin, Bertholle & C.^ie*_
+_*LES PARFUMS DE*_ *COTY*
+*SOCIÉTÉ GÉNÉRALE*
+*CRÉDIT LYONNAIS*
+*BOOTH LINE* *NORDDEUTSCHER LLOYD*
+*COMPAGNE INTERNATIONAL DES WAGONS LITS
+ET DES GRANDS EXPRESS EUROPÉENS*
+
+E a esbelta singeleza das firmas, LIMITADA.
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+Tudo isto, porêm, tudo isto, de novo eu refiro ao Ar
+Pois toda esta Beleza ondeia lá tambem:
+Numeros e letras, firmas e cartazes--
+Altos-relêvos, ornamentação!...--
+Palavras em liberdade, sons sem-fio,
+
+MARINETTI + PICASSO = PARIS < *SANTA RITA PIN-
+TOR + FERNANDO PESSOA
+ALVARO DE CAMPOS
+!!!*
+
+Antes de me erguer lembra-me ainda,
+A maravilha parisiense dos balcões de zinco,
+Nos bares... não sei porquê...
+
+--_Un vermouth cassis_... _Un Pernod à l'eau_...
+_Un amer-citron_... _une grenadine_...
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+Levanto-me...
+--Derrota!
+Ao fundo, em maior excesso, ha espelhos que reflectem
+Tudo quanto oscila pelo Ar:
+Mais belo através dêles,
+A mais subtil destaque...
+--Ó sonho desprendido, ó luar errado,
+Nunca em meus versos poderei cantar,
+Como anseara, até ao espasmo e ao Oiro,
+Toda essa Beleza inatingivel,
+Essa Beleza pura!
+
+Rólo de mim por uma escada abaixo...
+Minhas mãos aperreio,
+Esqueço-me de todo da ideia de que as pintava...
+E os dentes a ranger, os olhos desviados,
+Sem chapéu, como um possesso:
+Decido-me!
+Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos:
+
+--Hilá! Hilá! Hilá-hô! Eh! Eh!...
+
+Tum... tum... tum... tum tum tum tum...
+
+*VLIIIMIIIIM...*
+
+*BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH!...*
+
+*FUTSCH! FUTSCH!...*
+
+*ZING-TANG... ZING-TANG...*
+ *TANG... TANG... TANG...*
+
+*PRÁ Á K K!...*
+
+
+_Lisboa--Maio de 1915._
+
+
+MARIO DE SÁ-CARNEIRO.
+
+
+
+
+
+[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de _Hors Texte_ de Santa Rita Pintor.]
+
+
+*SANTA RITA PINTOR.*
+PARIS ANNO 1913.
+
+
+Compenetração estática interior de uma cabeça--complementarismo
+congénito absoluto.
+
+
+_(SENSIBILIDADE LITHOGRAPHICA.)_
+
+
+
+
+
+*POEMAS*
+
+DE
+
+EDUARDO GUIMARAENS
+
+
+
+
+_SOBRE O CYSNE DE STÉPHANE MALLARMÉ_
+
+
+Um sonho existe em nós como um cysne num lago
+de agua profunda e clara e em cujo fundo existe
+um outro cysne branco e ainda mais branco e triste
+que a sua fórma real de um tom dolente e vago.
+
+Nada: e os gestos que tem, de caricia e de afago,
+lembram da imagem tenue, onde a tristeza insiste
+em ser mais alva, a graça inversa que consiste
+a dolente mudez de um espelho presago.
+
+Um Cysne existe em nós como um sonho de calma,
+placido, um Cysne branco e triste, longo e lasso
+e puro, sobre a face occulta de nossa alma.
+
+E a sua imagem lembra a imagem de um destino
+de pureza e de amôr que segue, passo a passo,
+este Sonho immortal como um Cysne divino.
+
+
+
+
+_FOLHAS MORTAS_
+
+
+Dêste relogio belga, enorme, branco e triste,
+tombam as horas como folhas mortas.
+Por uma tarde outomnal, triste de spleen e folhas mortas:
+Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste.
+
+Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste
+e as horas tombam como folhas mortas.
+Porque não nasci eu um lirio nobre e triste,
+pétala sem perfume entre essas folhas mortas?
+
+Um Versalhes fulgura em cada illusão triste,
+um Versalhes de outomno atapetado de folhas mortas!
+Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste
+e as horas tombam como folhas mortas...
+
+
+
+
+_SOB OS TEUS OLHOS SEM LAGRIMAS_
+
+
+Ah! não dirás por certo
+que não te amei, que não soffri!
+--Foi-me a tua alma assim como um salão deserto
+onde, uma noite, me perdi.
+
+Um ramo de violetas fenecia
+em cada movel amortalhado pelo pó;
+a purpura das cortinas, rubra, estremecia
+presa a cada janella. Eu hesitava, só.
+
+--E era meu coração, por ti quasi ferido,
+á duvida infantil que o emmudecera já,
+um velho piano adormecido
+que ninguem mais acordará.
+
+
+EDUARDO GUIMARAENS.
+
+
+
+
+
+*ATELIER*
+
+
+NOVELA VERTÍGICA
+
+POR
+
+RAUL LEAL
+
+
+
+
+*Atelier*
+
+
+Em ondas de perfúme estranho as convulsivas exalações do Sonho
+iluminam vágamente o lár sombrio do artista que outra luz quasi não
+possue. A poucos pássos duma téla, profunda como a dor que ela evoca,
+o modelo por entre as vibrações duma alucinação sinistra todo
+vigorosamente contórce a alma, pelo semblante derramando a tortúra que
+a alma cava. Compreende a árte, no seu espirito sente a expressão do
+belo que todo o arrasta e anciósamente procurando ao artista transmitir
+a sublime inspiração da dôr, fórte, arrebatadora, na própria fisionomia
+a idialisa torturando o espirito que só assim, no semblante se
+concretisa... pela dôr! É gigantesca a sua personalidade que ao bélo
+tudo sacrifica, que só do bélo sábe vivér!...
+
+Envolvido nas trevas convulsivas que o seu espirito concebe, Luar
+ardentemente transpira o delirio da morte, o espasmo eterno da
+Existencia que só ele póde sentir, e é nesse ambiente de horror
+vigorósamente concentrado nele, sintese suprema do Universo, é nesse
+ambiente, forte e sublime, que Luar, o modelo idial, procura eternamente
+arrastar a vida!... E o horror em que a sua alma se torna, ele domina
+e... vigorisa...!
+
+Cresce nesse momento duma arte tragica que a matéria mal toca e em que
+só o espirito vibra em vibrações transcendentes que mal se concretisam
+pela sensação, cresce nesses instantes, apagados para a vida vulgar
+que o intimo das cousas não concebe, que o espiritualismo convulsivo
+da Existencia totalmente desconhece numa inconsciencia estranha, cresce
+na alma de Luar a loucura sublime de espirito que a tenebrosa, a
+imaterial vertigem do Universo, da Vida delirantemente acentua numa
+tragedia divina, que o transcendentalismo ardente da Ancia todo
+dolorosamente exprime pelo espasmódico histerismo que a Existencia
+forma, pelo arrebatamento convulsivo do Sonho Universal!... E nesses
+instantes tudo nele vibra, tudo que é nele o Espirito... Da sua
+concepção trágica se alimenta, alimentando-se, assim, da sua alma, da
+sua alma que se torna a alma da Existencia!
+
+No atelier do pintor Luar vigorosamente assim prepara a alma, preparando
+assim, a expressão do semblante. E torna-se sublime, atinge a vertigem
+do Infinito... Através do seu delirio, do sonho convulsivo que todo o
+arrebata, ele desperta o artista que assim, todo se sublima tambem! É
+Luar a própria inspiração que o artista eterisa...
+
+Num crescendo impetuoso o sonho em que Luar todo se torna, no génio
+do pintor se evóla todo e, assim, o artista em que o sonho vágamente
+se esbáte perdendo-se por fim, na mesma diáfana atmosféra idial se
+eléva, trágicamente divinisando a alma!... Tudo é etéreo e profundamente
+convulsivo; uma alucinação vibrante tudo transforma, tudo arrebata
+no seu turbilhão genial...! Uma poderósa acção mediumnica a levitação
+total das cousas, assim eterisadas, provoca então... E é Luar o fóco
+tenebroso da alucinação sinistra que em redór se esbáte, vagificando-se
+mais!...
+
+No arrebatamento vibrante em que a alma de Luar, em que Luar consigo
+arrasta tudo, uma paixão crescente fortemente se esboça e ela que a
+personalidade genial do modelo agita toda, nas convulsões da carne
+toda se exprimindo, em ondas soluçantes d'ancia se espraia
+impetuosamente através do éter nebuloso que todo se perde na mansão do
+artista!... Formidavel se torna a paixão crescente que tudo arrebata
+e tudo quer arrebatar... Como duendes infernaes que mal se esbocem, a
+concepção doentia de Luar sombras efémeras vertiginosamente gera e
+tudo que os sentidos ainda pode ferir, num paroxismo de loucura se
+debate convulsivamente em estertôr qual caterva turbilhonaria de todas
+as expressões da dôr que só uma alma vigorosa conceber póde! Sim, tudo
+na alma de Luar se transforma e tudo ardentemente êle quer
+transformar...! Ele quer transformar, tudo no seu espirito
+arrebatando!...
+
+É para o artista que a sua alma trabalha, é pois, o artista que na sua
+concepção mais se divinisa...! É êle o reflexo vibrante do seu sonho,
+do sonho que o forma, em que convulsamente todo se eterisa...! Suprema
+emanação se torna da sua alma!... Só a inspiração o sublima, o
+personalisa--e a inspiração é Luar!
+
+Esse ser estranho que ele próprio criou e que na tela genialmente lhe
+derrama a alma, Luar, cheio d'ancia, conservar quer no seu espirito e
+transformando-se, então, em ondas de volúpia a sua paixão ardente, a
+paixão da dôr, como laços infernais as lança ao artista que num
+turbilhão de fôgo, o fogo da sua paixão, todo arrebatar quer para a
+sua alma!... Uma luta intima, obscura se gera! Impetuosas são as
+convulsões de espirito que, emanadas de Luar, a personalidade do
+artista sacodem toda mas, como resplendor diáfano duma luz infinita,
+no artista surgem esbatidas, perdendo-se através do espaço!... E Luar
+isto pressente e o seu próprio sonho, na imaginação do pintor
+rialisado, ele quasi deixa desprender... pelo temor duma vitória
+alheia! A sua própria fôrça inspiradora o aterrorisa. Se rialmente o
+artista se não deixasse enlevar no sonho de Luar, acaso na vaga
+eterisação espiritual encontrar-se-hia?... Não e, assim, qualquer
+fôrça esmagadora, de Luar mal vinda, abruptamente o não faria
+despenhar-se na matéria em que já permaneceria e que o hábito tornaria
+então, quasi insentivel. Luar teme ser incompreendido. Se toda a sua
+paixão sobre o artista desencadear num deboche supremo, paroxismo da
+arte, o artista que, simples reflexo do foco inspirador, o não atingiu
+ainda, e nubelosa instável, simples irradiação do sonho em que
+vagamente se banha, toda poderá romper, perdendo-se para sempre da
+alma de Luar numa queda fatal. Mas a ancia é igualmente forte, a ancia
+em completar a evolução do artista no foco tenebroso da sua alma!...
+Porém, a fôrça infinita Luar não possue ainda, a sua fôrça esbate-se,
+a continuidade do Infinito não contém... A arte, em seu luxurioso
+paroxismo espasmo da dôr, ainda na alma do artista se define, se
+concretisa em imagens, só a imagem ele concebe, não concebe o Espirito,
+o Absoluto Indefinido que num deboche de espirito vertiginosamente se
+desencadearia!... E acaso o vigôr duma luxúria transcendente e a
+selvática brutalidade material o artista não poderá confundir,
+despenhando-se do sonho diáfano que, emanado de Luar, nele se esboça,
+apenas?...
+
+Luar quer o artista arrebatar emfim, por totalmente o interiorisar em
+si através dum deboche convulsivo--ardentemente anceia mas o temor
+hesitante o torna, o temor de ser incompreendido, de como simples
+animal, cheio de cio, ser considerado, emfim, de perder para sempre a
+alma a que tanto aspira!... Teme a sua fôrça e a sua fraqueza, a sua
+fôrça que, por uma ilusão cruel, o horror da matéria pode desenrolar
+perante o artista, erguido acima dela que, assim, desprezivel se
+mostra, a sua fraqueza que mais não pode elevar o artista, mais, até
+ao paroxismo da arte que é o paroxismo do deboche e... da dôr!... E o
+artista admira Luar, não o sente, nas convulsões da sua alma não se
+quer fundir... Não admiramos o que a nós é estranho, sentindo então,
+o que já não admiramos?...
+
+E é horrivel a angústia em que Luar se debate, ele jámais sonhou uma
+dôr assim! Como farrapos de nuvens tenebrosas numa dança macabra,
+figuras vagas e obscuras da alma de Luar se erguem, dolorosamente se
+contorcendo todas e todas vertiginosamente se debatendo numa loucura
+genial, a loucura da Existencia, do Espirito..., e nessa vertigem
+suprema em que a tortura e a convulsão doidamente se misturam, se
+confundem, um ponto de luz sinistra, numa expressão vaga de sonho, ao
+fundo se esboça através da lividez da morte e como que indiferente ao
+turbilhão lúgubre de dôr que só a alma de Luar soube criar!... É o
+artista que, espiritualisado na concepção sublime do modêlo, na
+alucinação tenebrosa da sua alma estranha, ao longe vagueia a alma
+perdidamente, num cinismo de estéta friamente admirando a dôr que, num
+debate prodigioso, o espasmo da morte intensifica através dum cáos
+infinito, duma vertigem convulsiva...! Sôfregos turbilhões a alma de
+Luar do seu próprio âmago tenebroso arranca mas, quais vagas
+impetuosas que todas se despedacem, se percam de encontro ao trágico
+granito, as torrentes tempestuosas dêsse feérico oceano espiritual
+todas aterrorisadoramente se quebram por entre as rígidas malhas
+impenetráveis da alma do artista!
+
+Todo êsse convulsionismo gigantêsco que sublima Luar, essa ancia
+invencivel, ardente de, por um deboche estulto, dominar o artista, o
+modêlo mais não pode suportar e, caindo, então, numa prostração
+infinda em que toda a sua alma se dissolve, como que um campo noturno
+se torna duma batalha passada o qual uma luz pálida, sombria de lua
+vagamente ilumine, a luz vaga que o artista da sua alma toda, então,
+exála!... Foi o artista a luz vaga do ultimo quadrante quando, num
+delirio de morte, numa cavalgada inconsciente, nuvens tenebrosas em
+convulsões a envolvem sem a arrebatar, e agora, sempre sereno, frio,
+lúgubre, a sua pálida luz derrama na alma do modêlo através duma vaga
+neblina silenciosa, da névoa melancólica em que a alma de Luar toda
+se exála, se esvai...!
+
+Mas uma torrente de fôgo Luar novamente abraza e do seu repouso
+instantâneo, súbito, se erguendo, numa arrancada formidável sôbre o
+artista se lança, cravando-o de beijos em que lhe quer arrebatar a
+alma! Em convulsões que o repouso alimentou, todo o seu espirito se
+põe, torna-se indomável, gigantêsco, impetuoso qual vaga rancorosa
+que um vulcão eleve, qual torrente devastadora de Apocalypse Fatal!...
+
+O artista cheio de pasmo o olha, e naquela arrancada impetuosa ambos
+na terra se despenham, esquecendo o sonho, a alucinação... A paz volta
+aos espiritos, uma paz lúgubre, cheia de preságios sinistros! O
+paroxismo da dôr não poude ser atingido, para ambos se perdeu...!
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+
+Passaram-se já alguns dias. O artista uma comoção profunda no seu
+espirito sofre, sob um novo aspecto olha o modelo, já quási lhe sente
+a alma... Encarna-se na tenebrosa escabrosidade do seu espírito
+trágico, sente-o mais belo, mais profundo, sublime...! Os transes
+variados em que bruscamente se lançára Luar naquela tarde tragica,
+essa variedade de transes que o modelo tão vigorosamente suportára,
+entontece-lhe a alma, já não o admira apenas, deseja-o e cheio de
+ardor, de ancia!...
+
+Procura-o em toda a parte e, por fim, encontrando-o, repleto duma
+luxuria de espirito lhe diz: «Jámais te compreendi, Luar, como agora
+te compreendo. Talvez te não compreendesse ainda se logo tivesse
+cedido ao teu desejo. Mas o tempo tive de refletir, de sonhar em ti.
+A tua nobreza estranha que, após o meu pasmo, subitamente te acalmou
+os nervos, fundamente me impressionou, os contrastes da tua alma são
+maravilhosos e só a tua personalidade sublime, genial... a oscilações
+bruscas de caráter poderia resistir! Quero-te pois, a tua ancia é,
+hoje, a minha; sem os teus beijos profundos não posso passar, a minha
+carne na tua se entranhará para que na tua alma se espiritualise
+toda!...» E procura-lhe a boca. Luar suávemente o afasta, dizendo-lhe,
+apenas: «Refleti tambem, sonhei... Amanhã conhecerás o meu sonho.»
+
+No dia seguinte, o artista recebe uma carta que os seguintes termos
+contém:
+
+
+_Meu querido amigo_
+
+
+Estranharás talvez que só agora te exponha o meu sonho derradeiro mas
+preciso de toda a minha alma e, só quando escrevo, aos borbulhões
+caudalosamente a broto de mim. Sem a pena, mantenho-me numa concentração
+trágica, mal mostro aos outros o meu espirito. É que o derramamento
+da alma no papel é ainda quási espiritual, a alma em excesso se não
+exteriorisa, impuramente se não materialisando.
+
+Diz-me, se num drama, se numa tragédia vigorosa uma tempestade
+formidavel, num paroxismo fatal, se desencadeasse toda, atingindo, por
+fim, um limite definido que a banalisasse, acaso admirarias esse drama,
+essa tragedia?... Pois bem, o indefinido a que na arte nós aspiramos,
+essa ancia de idial que mais do que o idial para nós vale, essa ancia,
+esse desejo infinito e jámais satisfeito deve encher a nossa vida que
+a mais alta expressão se tornará assim, da arte pura!...
+
+É vertiginosa a Existencia e espiritual, transcendente é a vertigem
+dela! Jámais a extensão conhece, no Espirito Puro que a extensão
+transcende, a vertigem se personalisa, se consubstancia, se acentua
+toda, não se espalha numa actividade mecanica, é a actividade
+espiritual, o dinamismo puro!... Está nisso a sua beleza, a sua propria
+existencia que, só assim, toda confundida num Todo, no Infinitesimal,
+na Mónada, que só assim se acentua toda, só assim se dá!... É sublime
+o convulsionismo espiritual e só ele é sublime! De que deriva a sua
+sublimidade? Da sua energia que só no Espirito, na Mónada se acentua
+toda!...
+
+Ha pois, na vertigem convulsiva da Existencia uma expansão tenebrosa.
+Toda a actividade, a energia toda que a forma, no espaço e no tempo
+não se expande, mantem-se torturada no Infinitesimal. É infinita,
+eternamente tudo alcança, infinitesimalisa-se, espiritualisa-se pois...
+
+Só no transcendental existe, só nele eternamente se debate!
+
+Tem uma expansão, uma liberdade infinita que, como infinita, tudo
+atinge eternamente, como que eternamente se autodestruindo assim!...
+Se só no Transcendental existe, se é transcendente, se no mesmo
+ponto infinitesimal, na Mónada, eternamente se debate é que a si
+própria se contorce toda numa tortura infinita!... E não exprime a dôr
+e sobretudo a ancia o convulsionismo transcendente, torturado,
+contorcido da actividade pura, espiritual?... não é ela a expressão
+sublime da Vertigem?... Na dôr, na ancia devemos viver!
+
+A transcendentalisação suprêma da energia pura, espiritualisando-a, em
+absoluto a indefine, o Infinitesimal em que a energia eternamente se
+debate, o indefinismo absoluto contêm. E ela propria, a própria
+atividade em si não exprime já o Indefinido?... Quando transcendente,
+é o indefinismo dela absoluto, ela torna-se a Vertigem! E que cousa é
+a ancia, a ancia em si, senão o limiar privilegiado dessa Vertigem
+Pura, o seu sintoma magnifico, a sua acentuação humana?... Ao indefinido
+na arte aspiramos pois, a um indefinido cheio de tortura, «rafiné»
+como o que o génio de Baudelaire compreendeu e quando essa tortura do
+Indefinido enche o intimo da nossa alma, então, cheia d'ancia--e,
+assim, Nietzsche quasi a desejou--ela quasi atinge o paroxismo eterno
+da Existencia que toda se debate na Vertigem Infinita! E não só na
+arte deve existir a ancia mas tambem na vida, a ancia dolorosa do
+Indefinido!...
+
+A ancia não é só a dôr, não é qualquer dôr. Pode esta ser deprimente,
+humilhante: e sempre o é quando não compreendida, quando em sua beleza
+suprema sentida não pode ser!... A dôr forte, virilisadora, a dôr
+profunda e amoral, a dôr em que o eu domine, dôr de espirito... é que
+é a dôr suprema, a dôr estética! Dominar na dôr, sentir a fôrça de
+viver nela, prazer infindo...! E a tortura transcendental da Existencia
+em que a Vertigem toda se acentua, se impõe, se personalisa, a dôr
+suprema, a dôr personalisadora não exprime toda?...
+
+Afastemos pois, a nossa carne. Se a satisfizéssemos, não, se
+satisfizéssemos o espirito que, só êle, através da carne atua,
+banalisar-nos-íamos, ao nosso drama daríamos um final burguez! Ele
+teria um fim, um limite determinado de que, em breve, as nossas almas
+se enfartariam decerto. Sejamos estétas, vivamos eternamente do desejo
+que, só êle, personalisa a alma, para a nossa vista espiritual
+gigantesca tornando-a!... É estranho o meu pedido mas, acaso, estranha
+não é a Vertigem da Existencia?...
+
+Adeus!...
+
+
+_Luar._
+
+
+_Janeiro de 1913._
+
+
+RAUL LEAL.
+
+
+(Do livro inédito _Devaneios e Alucinações_.)
+
+
+
+
+
+*POEMAS*
+
+DUM ANÓNIMO OU ANÓNIMA QUE DIZ CHAMAR-SE
+
+VIOLANTE DE CYSNEIROS
+
+
+
+
+*N. B.*--Apareceram-nos na Redacção estes belos poemas, que um anónimo
+engenho doente realisou. Publicamo-los, porque disso são dignos,
+importando-nos pouco a personalidade vital de que possam emanar. Toda
+a obra de arte é a justificação de si-propria.
+
+
+_Orpheu_.
+
+
+
+
+_A ALVARO DE CAMPOS,
+
+O MESTRE._
+
+
+Na noite negra e antiga
+Ha só a luz do Pharol:
+Ora loira, côr do sol,
+Ora vermelha, inimiga.
+
+No seio negro e profundo
+Da noite em treva dormindo
+O Pharol é Outro Mundo,
+Ora chorando, ora rindo.
+
+Na noite negra, afinal,
+Tudo a elle se limita:
+Só o pharol é real!
+
+A treva nunca tem fim,
+Ó sensação infinita,
+--Sou já só Pharol de Mim!
+
+
+_Junho, 1915._
+
+
+ * * * * *
+
+Toda a minh'Alma se prende
+Naquella forma de graça;
+Mas não é na forma viva
+Mas sim na Linha que passa.
+
+Toda a minh'Alma se prende,
+Bate as Asas--esvoaça...
+E é como a sombra distante
+D'aquella Linha que passa.
+
+A vida é só o Espaço
+Que vai da propria Linha
+Á sombra d'ella num traço.
+
+Quando a Morte fôr vizinha,
+Fundidas no mesmo Espaço
+Será tudo a mesma Linha.
+
+
+_Junho, 1915._
+
+
+
+
+_A ALVARO DE CAMPOS,
+
+O MESTRE._
+
+
+I
+
+Para Além d'aquelles montes
+Não ha aves, nem ha fontes,
+Nem ribeiros, nem campinas,
+Nem casaes pelas collinas.
+
+Para Além d'aquelles montes
+Não ha segredos de fontes,
+Nem Sombras nas Alamedas,
+Nem hervas, passos ou sedas.
+
+Para Além d'aquelles montes
+Já não ha arcos de pontes,
+Nem mãos finas de donzellas,
+Nem lagos, barcos ou vellas.
+
+
+II
+
+Para Além d'aquelles montes
+Existe apenas Espaço!
+Espaço e tempo são Pontes
+Que Deus tem no seu regaço.
+
+Pontes que ligam de Auzente
+Infinito e Eternidade.
+Só sensações são Presente,
+Só nellas vive a Verdade.
+
+Passado nunca passou,
+Futuro não o terei:
+Pois sempre Presente sou
+No que Fui, Sou e Serei.
+
+
+_Junho, 1915._
+
+
+
+
+_AO SR. MARIO DE SÁ-CARNEIRO._
+
+
+Ha pouco quando bordava
+Picou-me a ponta dos dedos
+A agulha com que bordava...
+
+E a seda toda de branca,
+Branca da côr dos meus dedos,
+Essa seda que era branca
+Ficou com papoulas rubras...
+
+Que o sangue das minhas veias
+Já creou papoulas rubras...
+
+Mas tão sós e tão alheias!
+
+
+_Junho, 1915._
+
+
+
+
+_AO SR. FERNANDO PESSOA._
+
+
+Nada em Mim é necessario
+Nem mesmo o que foi sonhado,
+Ó contas do meu rosario
+D'um sonho nunca acabado.
+
+Tudo tão feito de Mim...
+Só meu longe de passado
+É como um sonho sem fim
+Que o Outro tenha sonhado.
+
+Cruso os meus braços. Não fallo.
+Ouço uma voz dolorida
+Dentro de Mim evoca-lo.
+
+Marinheiro! Ilha Perdida!
+E o meu sentido a sonha-lo
+É a verdade da vida.
+
+
+_Junho, 1915._
+
+
+
+
+_AO SR. ALFREDO PEDRO GUISADO._
+
+
+Sobre misterios já idos
+Ergui-me em curva e de pé
+Do meu corpo fiz sentidos
+Num sonho de Salomé.
+
+Curvos os olhos doridos...
+Curvas as mãos e os braços...
+Todo o meu corpo pedaços
+Dos espelhos dos sentidos...
+
+Dancei... Dancei... E o Ver-Me
+Toda de curva e de pé
+Era o sentido de Ser-Me.
+
+Presente no meu olhar,
+Eu fui Outra Salomé
+Feita de Mim a dançar.
+
+
+_Junho, 1915._
+
+
+
+
+_AO SR. CÔRTES-RODRIGUES._
+
+
+Passo no mundo a vivê-lo,
+Passo no mundo a senti-lo,
+E esta côr do meu cabello
+É o vê-lo e o possuí-lo.
+
+Passo no mundo a sonhá-lo,
+Numa forma de vivê-lo,
+E o meu sentido d'olhá-lo
+É o sentido de vê-lo.
+
+Só em Mim me concretiso,
+E o Sonho da minha vida
+Nesse Sonho o realiso.
+
+E sempre de Mim Presente,
+Todo o Meu Ser se limita
+Em Eu Me Ser Realmente.
+
+
+_Junho, 1915._
+
+
+
+
+_A MIM PROPRIA
+
+DE HA DOIS ANNOS_
+
+
+As minhas mãos são esguias,
+São fusos brancos d'arminho,
+Onde fiaste e não fias
+O Sonho do teu carinho.
+
+As minhas mãos são esguias,
+Côr de rosa são as unhas,
+E nellas todos os dias
+Ponho a pomada que punhas.
+
+Quando Eu as fico polindo
+Perpassa nellas em ancia
+A tua boca sorrindo...
+
+Mas os meus dedos em i
+Dizem a longa distancia
+Que vae de Mim para Ti.
+
+
+_Junho, 1915._
+
+
+VIOLANTE DE CYSNEIROS.
+
+
+
+
+
+*ODE MARÍTIMA*
+
+POR
+
+ALVARO DE CAMPOS
+
+
+a Santa Rita Pintor.
+
+
+
+
+*Ode marítima*
+
+
+Sózinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,
+Ólho pró lado da barra, ólho pró Indefinido,
+Ólho e contenta-me vêr,
+Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
+Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
+Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
+Vem entrando, e a manhã entra com êle, e no rio,
+Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
+Erguem-se velas, avançam rebocadores,
+Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
+Ha uma vaga brisa.
+Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
+Com o paquete que entra,
+Porque êle está com a Distância, com a Manhã,
+Com o sentido marítimo desta Hora,
+Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
+Como um começar a enjoar, mas no espírito.
+
+Ólho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
+E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
+
+Os paquetes que entram de manhã na barra
+Trazem aos meus olhos comsigo
+O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
+Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
+Doutro modo da mesma humanidade noutros portos.
+Todo o atracar, todo o largar de navio,
+É--sinto-o em mim como o meu sangue--
+Inconscientemente simbólico, terrivelmente
+Ameaçador de significações metafísicas
+Que perturbam em mim quem eu fui...
+
+Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
+E quando o navio larga do cais
+E se repara de repente que se abriu um espaço
+Entre o cais e o navio,
+Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
+Uma névoa de sentimentos de tristeza
+Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
+Como a primeira janela onde a madrugada bate,
+E me envolve como uma recordação duma outra pessôa
+Que fôsse misteriosamente minha.
+
+Ah, quem sabe, quem sabe,
+Se não parti outrora, antes de mim,
+Dum cais; se não deixei, navio ao sol
+Oblíquo da madrugada,
+Uma outra espécie de porto?
+Quem sabe se não deixei, antes de a hora
+Do mundo exterior como eu o vejo
+Raiar-se para mim,
+Um grande cais cheio de pouca gente,
+Duma grande cidade meio-desperta,
+Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
+Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
+
+Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
+Real, visível como cais, cais realmente,
+O Cais Absoluto por cujo modêlo inconscientemente imitado,
+Insensívelmente evocado,
+Nós os homens construímos
+Os nossos cais nos nossos portos,
+Os nossos cais de pedra actual sôbre ágoa verdadeira,
+Que depois de construídos se anunciam de repente
+Cousas-Reais, Espíritos-Cousas, Entidades em Pedra-Almas,
+A certos momentos nossos de sentimento-raiz
+Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
+E, sem que nada se altere,
+Tudo se revela diverso.
+
+Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
+O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
+De que porto? Em que ágoas? E porque, penso eu isto?
+Grande Cais como os outros cais, mas o Único.
+Cheio como êles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
+E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
+E chegadas de comboios de mercadorias,
+E sob a nuvem negra e ocasional e leve
+Do fumo das chaminés das fábricas próximas
+Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,
+Como se fôsse a sombra duma nuvem que passasse sôbre água sombria.
+
+Ah, que essencialidade de mistério e sentidos parados
+Em divino extase revelador
+Ás horas côr de silêncios e angústias
+Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!
+
+Cais negramente reflectido nas águas paradas,
+Bulício a bordo dos navios,
+Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
+Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
+Que quando o navio volta ao porto
+Ha sempre qualquer alteração a bordo!
+
+Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
+Alma eterna dos navegadores e das navegações!
+Cascos reflectidos de vagar nas ágoas,
+Quando o navio larga do porto!
+Fluctuar como alma da vida, partir como voz,
+Viver o momento trémulamente sôbre ágoas eternas.
+Acordar para dias mais directos que os dias da Europa,
+Vêr portos misteriosos sôbre a solidão do mar,
+Virar cabos longinqùos para súbitas vastas paisagens
+Por inumeráveis encostas atónitas...
+
+Ah, as praias longinqùas, os cais vistos de longe,
+E depois as praias proximas, os cais vistos de perto.
+O mistério de cada ida e de cada chegada,
+A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
+Dêste impossível universo
+A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
+O soluço absurdo que as nossas almas derramam
+Sôbre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
+Sôbre as ilhas longinqùas das costas deixadas passar,
+Sôbre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
+Para o navio que se aproxima.
+
+Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
+E a palidez das manhãs em que se parte,
+Quando as nossas entranhas se arrepanham
+E uma vaga sensação parecida com um mêdo
+--O mêdo ancestral de se afastar e partir,
+O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo--
+Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
+E todo o nosso corpo angustiado sente,
+Como se fôsse a nossa alma,
+Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
+Uma saudade a qualquer cousa,
+Uma perturbação de afeições a que vaga patria?
+A que costa? a que navio? a que cais?
+Que se adoece em nós o pensamento,
+E só fica um grande vácuo dentro de nós,
+Uma ôca saciedade de minutos marítimos,
+E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dôr
+Se soubesse como sê-lo...
+
+A manhã de verão está, ainda assim, um pouco fresca.
+Um leve torpôr de noite anda ainda no ar sacudido.
+Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
+E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
+E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.
+
+Na minha imaginação êle está já perto e é visível
+Em toda a extensão das linhas das suas vigias,
+E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
+Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
+E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado obliqùo.
+
+Os navios que entram a barra,
+Os navios que sáem dos portos,
+Os navios que passam ao longe
+(Supônho-me vendo-os duma praia deserta)--
+Todos êstes navios abstractos quasi na sua ida,
+Todos êstes navios assim comóvem-me como se fôssem outra cousa
+E não apenas navios, navios indo e vindo.
+
+E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar nêles,
+Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,
+Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das dispensas,
+Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto,
+Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,
+Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo--
+Os navios vistos de perto são outra cousa e a mesma cousa,
+Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.
+
+Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
+Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
+E eu scismo indeterminadamente as viagens.
+Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
+Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
+As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
+Em que não sei porque sugestão aprendida na escola
+Se sente pesar sôbre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos
+E o mundo e o sabôr das cousas tornam-se um deserto dentro de nós!
+A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
+O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos!
+O Mediterrâneo, dôce, sem mistério nenhum, clássico, um mar pra bater
+De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
+Todos os mares, todos os estreitos, todas as baïas, todos os gôlfos,
+Queria apertá-los ao peito, sentí-los bem e morrer!
+
+E vós, ó cousas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
+Componde fora de mim a minha vida interior!
+Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
+Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
+Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas,
+Caí por mim dentro em montão, em monte,
+Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
+Sêde vós o tesouro da minha avareza febril,
+Sêde vós os frutos da árvore da minha imaginação,
+Têma de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
+Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
+Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,
+Porque em real verdade, a sério, literalmente,
+Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,
+Minha imaginação uma âncora meio submersa,
+Minha ânsia um remo partido,
+E a tessitura dos meus nervos uma rêde a secar na praia!
+
+Sôa no acaso do rio um apito, só um.
+Treme já todo o chão do meu psiquismo.
+Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
+
+Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro
+De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!
+Ah, a glória de se saber que um homem que andava comnosco
+Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!
+Nós que andámos com êle vamos falar nisso a todos,
+Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível
+Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto
+Que apenas o ter-se perdido o barco onde êle ia
+E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado ágoa prós pulmões!
+
+Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
+Vão rareando--ai de mim!--os navios de vela nos mares!
+E eu, que amo a civilisação moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
+Eu o engenheiro, eu o civilisado, eu o educado no estrangeiro,
+Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
+De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
+Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
+O Puro Longe, liberto do peso do Actual...
+E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
+Êsses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
+Êsses mares, misteriosos, porque se sabia menos dêles.
+
+Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.
+Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.
+Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horisonte
+São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,
+Da época lenta e veleira das navegações perigosas,
+Da época de madeira e lona das viagens que duravam mêses.
+
+Toma-me pouco a pouco o delírio das cousas marítimas,
+Penetram-me físicamente o cais e a sua atmosfera,
+O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,
+E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das ágoas,
+Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma
+E a aceleração do volante sacode-me nítidamente.
+
+Chamam por mim as ágoas,
+Chamam por mim os mares.
+Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
+As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.
+
+Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, fôste tu
+Que me ensinaste êsse grito antiqùíssimo, inglês,
+Que tão venenosamente resume
+Para as almas complexas como a minha
+O chamamento confuso das ágoas,
+A voz inédita e implícita de todas as cousas do mar,
+Dos naufrágios, das viagens longinqùas, das travessias perigosas.
+Êsse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue,
+Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz,
+Êsse grito tremendo que parece soar
+De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu
+E parece narrar todas as sinistras cousas
+Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite...
+(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas,
+E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da bôca,
+Fazendo porta-voz das grandes mãos cortidas e escuras:
+
+Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò--yyyy...
+Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò--yyyy...)
+
+Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer cousa.
+Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
+Sinto corarem-me as faces.
+Meus olhos conscientes dilatam-se.
+O extase em mim levanta-se, cresce, avança,
+E com um ruído cego de arruaça acentua-se
+O giro vivo do volante.
+
+Ó clamoroso chamamento
+A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
+Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
+Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!...
+Apêlo lançado ao meu sangue
+Dum amôr passado, não sei onde, que volve
+E ainda tem fôrça para me atraír e puxar,
+Que ainda tem fôrça para me fazer odiar esta vida
+Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
+Da gente real com que vivo!
+
+Ah, seja como fôr, seja para onde fôr, partir!
+Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar,
+Ir para Longe, ir para Fóra, para a Distância Abstrata,
+Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
+Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
+Ir, ir, ir, ir de vez!
+Todo o meu sangue raiva por asas!
+Todo o meu corpo atira-se prá frente!
+Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!
+Atropelo-me, rujo, precipito-me!...
+Estoiram em espuma as minhas ânsias
+E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochêdos!
+
+Pensando nisto--ó raiva! pensando nisto--ó fúria!
+Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
+Súbitamente, trémulamente, extraorbitadamente,
+Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
+Do volante vivo da minha imaginação,
+Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
+O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.
+
+Eh marinheiros, gageiros! eh tripulantes, pilotos!
+Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
+Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
+Homens que dormem em beliches rudes!
+Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
+Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
+Homens que teem tombadilhos, que teem pontes donde olhar
+A imensidade imensa do mar imenso!
+Eh manipuladores dos guindastes de carga!
+Eh amainadores de velas, fogueiros, criados de bordo!
+Homens que metem a carga nos porões!
+Homens que enrolam cabos no convez!
+Homens que limpam os metais das escotilhas!
+Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+Gente de bonet de pala! Gente de camisola de malha!
+Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
+Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
+Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
+Limpa de olhos de tanta imensidade diante dêles,
+Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
+
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+Homens que vistes a Patagonia!
+Homens que passastes pela Austrália!
+Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!
+Que fôstes a terra em terras onde nunca descerei!
+Que comprastes artigos tôscos em colónias à prôa de sertões!
+E fizestes tudo isso como se não fôsse nada,
+Como se isso fôsse natural,
+Como se a vida fôsse isso,
+Como nem sequer cumprindo um destino!
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+Homens do mar actual! homens do mar passado!
+Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!
+Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
+Fenícios! Cartaginêses! Portuguêses atirados de Sagres
+Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossivel!
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
+Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
+Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
+Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
+Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
+De encostas explodindo em verde vegetação!
+Homens que saqueastes tranqùílas povoações africanas,
+Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
+Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
+Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa,
+Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh-eh-eh!
+A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
+A vós todos misturados, entrecruzados,
+A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
+Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
+Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!
+
+Quero ir comvôsco, quero ir comvôsco,
+Ao mesmo tempo com vós todos
+Pra toda a parte pr'onde fôstes!
+Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
+Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossas,
+Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos,
+Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas,
+Chegar como vós, emfim, a extraordinários portos!
+Fugir comvôsco à civilisação!
+Perder comvôsco a noção da moral!
+Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
+Beber comvôsco em mares do sul
+Novas selvagerias, novas balbúrdias da alma,
+Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
+Ir comvôsco, despir de mim--ah! põe-te daqui pra fora!--
+O meu traje de civilisado, a minha brandura de acções,
+Meu mêdo inato das cadeias,
+Minha pacífica vida,
+A minha vida sentada, estática, regrada e revista!
+
+No mar, no mar, no mar, no mar,
+Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,
+A minha vida!
+Salgar de espuma arremessada pelos ventos
+Meu paladar das grandes viagens.
+Fustigar de ágoa chicoteante as carnes da minha aventura,
+Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
+Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de soes,
+Meu ser ciclónico e atlântico,
+Meus nervos postos como enxárcias,
+Lira nas mãos dos ventos!
+
+Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
+E as minhas espáduas gosarão a minha cruz!
+Atai-me às viagens como a postes
+E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
+E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
+Fazei o que quizerdes de mim, logo que seja nos mares,
+Sôbre convezes, ao som de vagas,
+Que me rasgueis, mateis, firais!
+O que quero é levar prá Morte
+Uma alma a transbordar de Mar,
+Ébria a caír das cousas marítimas,
+Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,
+Tanto das costas longinqùas como do ruído dos ventos,
+Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
+Como dos tranqùílos comércios,
+Tanto dos mastros como das vagas,
+Levar prá Morte com dôr, voluptuosamente,
+Um corpo cheio de sanguesugas, a sugar, a sugar,
+De estranhas verdes absurdas sanguesugas marítimas!
+
+Façam enxárcias das minhas veias!
+Amarras dos meus músculos!
+Arranquem-me a pele, préguem-a às quilhas.
+E possa eu sentir a dôr dos pregos e nunca deixar de sentir!
+Façam do meu coração uma flâmula de almirante
+Na hora de guerra dos velhos navios!
+Cálquem aos pés nos convezes meus olhos arrancados!
+Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
+Fustíguem-me atado aos mastros, fustíguem-me!
+A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
+Derramem meu sangue sôbre as ágoas arremessadas
+Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
+Nas vascas bravas das tormentas!
+
+Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
+Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!
+A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos,
+Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!
+
+Os marinheiros que se sublevaram
+Enforcaram o capitão numa vêrga.
+Desembarcaram um outro numa ilha deserta.
+_Marooned!_
+O sol dos trópicos poz a febre da pirataria antiga
+Nas minhas veias intensivas.
+Os ventos da Patagonia tatuaram a minha imaginação
+De imagens trágicas e obscenas.
+Fôgo, fôgo, fôgo, dentro de mim!
+Sangue! sangue! sangue! sangue!
+Explode todo o meu cérebro!
+Parte-se-me o mundo em vermelho!
+Estoiram-me com o som de amarras as veias!
+E estala em mim, feroz, voraz,
+A canção do Grande Pirata,
+A morte berrada do Grande Pirata a cantar
+Até meter pavôr plas espinhas dos seus homens abaixo.
+Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:
+
+ _Fifteen men on the Dead Man's Chest._
+ _Yo-ho-ho and a bottle of rum!_
+
+E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:
+
+_Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!_
+_Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw!_
+_Fetch a-a-aft the ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby!_
+
+Eia, que vida essa! essa era a vida, eia!
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+
+Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares!
+Convezes cheios de sangue, fragmentos de corpos!
+Dedos decepados sôbre amuradas!
+Cabeças de creanças, aqui, acolá!
+Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+Embrulho-me em tudo isto como numa capa no frio!
+Roço-me por tudo isto como um gata com cio por um muro!
+Rujo como um leão faminto para tudo isto!
+Arremeto como um touro louco sôbre tudo isto!
+Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sôbre isto!
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+
+De repente estala-me sôbre os ouvidos
+Como um clarim a meu lado,
+O velho grito, mas agora irado, metálico,
+Chamando a presa que se avista,
+A escuna que vai ser tomada:
+
+Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó--yyyy...
+Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó--yyyy...
+
+O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
+Rujo na fúria da abordagem!
+Pirata-mór! César-Pirata!
+Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
+Só sinto o mar, a presa, o saque!
+Só sinto em mim bater, baterem-me
+As veias das minhas fontes!
+Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+
+Ah piratas, piratas, piratas!
+Piratas, amai-me e odiai-me!
+Misturai-me comvôsco, piratas!
+
+Vossa fúria, vossa crueldade como falam ao sangue
+Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!
+
+Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos,
+Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas,
+Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos convezes,
+Trincasse velas, remos, cordâme e poleâme,
+Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!
+
+E ha uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas,
+Ha uma orquestração no meu sangue de balbúrdias de crimes,
+De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares,
+Furibundamente, como um vendaval de calor pelo espírito,
+Núvem de poeira quente anuviando a minha lucidez
+E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!
+
+Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,
+Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,
+E o terror dos apresados foge prá loucura--essa hora,
+No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, núvens,
+Brisa, latitude, longitude, vozearia,
+Queria eu que fôsse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,
+
+Que fôsse meu corpo e meu sangue, compozesse meu ser em vermelho,
+Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!
+
+Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
+Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
+Ser quanto foi no lugar dos saques!
+Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
+Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
+E a vítima-síntese, mas de carne e ôsso, de todos os piratas do mundo!
+
+Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
+Que fôram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!
+Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser dêles!
+E sentir tudo isso--todas estas cousas duma só vez--pela espinha!
+
+Ó meus peludos e rudes herois da aventura e do crime!
+Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
+Amantes casuais da obliqùídade das minhas sensações!
+Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
+A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!
+Porque ela teria comvôsco, mas só em espírito, raivado
+Sôbre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
+Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica
+Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos
+Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladoras!
+E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis,
+Iria beber nos rugidos do vosso amôr todo o vasto,
+Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,
+E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!
+
+A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo!
+Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,
+Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,
+A minha femininidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
+Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
+Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
+Quando tingíeis de sangue os mares altos,
+Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
+Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das creanças
+E leváveis as mãis às amuradas para vêrem o que lhes acontecia!
+
+Estar comvôsco na carnágem, na pilhágem!
+Estar orquestrado comvôsco na sinfonia dos saques!
+Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!
+Não era só sêr-vos a fêmea, sêr-vos as fêmeas, sêr-vos as vítimas,
+Sêr-vos as vítimas--homens, mulheres, creanças, navios--,
+Não era só ser a hora e os barcos e as ondas,
+Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse,
+Não era só ser concretamente vosso acto abstrato de orgia,
+Não era só isto que eu queria ser--era mais que isto, o Deus-isto!
+Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,
+Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum pantheismo de sangue,
+Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa,
+Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade
+Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!
+
+Ah, torturai-me para me curardes!
+Minha carne--fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam
+Antes de caírem sôbre as cabeças e os ombros!
+Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!
+Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!
+Minha inteligência o convez onde estais de pé matando!
+Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo,
+O grande organismo de que cada acto de pirataria que se cometeu
+Fôsse uma célula consciente--e todo eu turbilhonasse
+Como uma imensa podridão ondeando, e fôsse aquilo tudo!
+
+Com tal velocidade desmedida, pavorosa,
+A máquina de febre das minhas visões transbordantes
+Gira agora que a minha consciência, volante,
+É apenas um nevoento círculo assobiando no ar.
+
+ _Fifteen men on the Dead Man's Chest._
+ _Yo-ho-ho and a bottle of rum!_
+
+Eh-lahô-lahô-laHO--lahá-á-ááá--ààà...
+
+Ah! a selvageria desta selvageria! Merda
+Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
+Eu pr'àqui engenheiro, prático à forca, sensível a tudo,
+Pr'àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
+Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
+Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Gloria,
+Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
+
+Arre! por não poder agir d'acôrdo com o meu delírio!
+Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilisação!
+Por andar com a _douceur des moeurs_ às costas, como um fardo de rendas!
+Môços de esquina--todos nós o sômos--do humanitarismo moderno!
+Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,
+Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
+Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
+
+Ah, os piratas! os piratas!
+A ânsia do ilegal unido ao feroz
+A ância das cousas absolutamente crueis e abomináveis,
+Que roe como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
+Os nossos nervos femininos e delicados,
+E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vasios!
+
+Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
+Humilhai-me e batei-me!
+Fazei de mim o vosso escravo e a vossa cousa!
+E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
+Ó meus senhores! ó meus senhores!
+
+Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
+Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!
+Desabai sôbre mim, como grandes muros pesados,
+Ó bárbaros do antigo mar!
+Rasgai-me e feri-me!
+De leste a oeste do meu corpo
+Riscai de sangue a minha carne!
+Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva
+O meu alegre terror carnal de vos pertencer,
+A minha ância masóquista em me dar à vossa fúria,
+Em ser objecto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade,
+Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!
+Ah, torturai-me,
+Rasgai-me e abri-me!
+Desfeito em pedaços conscientes
+Entornai-me sôbre os convezes,
+Espalhai-me nos mares, deixai-me
+Nas praias ávidas das ilhas!
+
+Cevai sôbre mim todo o meu misticismo de vós!
+Cinzelai a sangue a minh'alma!
+Cortai, riscai!
+Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
+Esfoladores amados da minha carnal submissão!
+Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!
+Fazei de mim o pôço para o vosso desprezo de domínio!
+
+Fazei de mim as vossas vítimas todas!
+Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer
+Por todas as vossas vítimas às vossas mãos,
+Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados
+Nos assaltos bruscos de amuradas!
+
+Fazei de mim qualquer cousa como se eu fôsse
+Arrastado--ó prazer, ó beijada dôr!--
+Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós...
+Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no *MA-A-A-AR!*
+Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! *EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!*
+
+Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos,
+Mares, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!
+Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Tudo canta a gritar!
+
+ *FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST.*
+ *YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!*
+
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+Hé-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á-á--ààà!
+
+*AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó--yyy!...*
+*SCHOONER AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó----yyyy!...*
+
+Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!
+DARBY M'GRAW-AW-AW-AW-AW-AW-AW!
+FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!
+
+Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
+EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
+EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH!
+*EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!*
+*EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!*
+
+Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu.
+Senti de mais para poder continuar a sentir.
+Esgotou-se-me a alma, ficou só um éco dentro de mim.
+Decresce sensívelmente a velocidade do volante.
+Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
+Dentro de mim ha só um vácuo, um deserto, um mar nocturno.
+E logo que sinto que ha um mar nocturno dentro de mim,
+Sobe dos longes dêle, nasce do seu silêncio,
+Outra vez, outra vez, o vasto grito antiqùíssimo.
+De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,
+Súbitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
+Húmido e sombrio marulho humano nocturno,
+Voz de sereia longinqùa chorando, chamando,
+Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
+E à tona dêle, como algas, boiam meus sonhos desfeitos...
+
+Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò--yy...
+Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò----yy......
+
+Ah, o orvalho sobre a minha excitação!
+O frescôr nocturno no meu oceano interior!
+Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
+Cheia do enorme misterio humanissimo das ondas nocturnas.
+A lua sobe no horizonte
+E a minha infancia feliz acorda, como uma lágrima, em mim.
+O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
+Fôsse um arôma, uma voz, o eco duma canção
+Que fôsse chamar ao meu passado
+Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.
+
+Era na velha casa socegada, ao pé do rio...
+(As janelas do meu quarto, e as da casa de jantar tambem,
+Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio proximo,
+Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo...
+Se eu agora chegasse ás mesmas janelas não chegava ás mesmas janelas.
+Aquêle tempo passou como o fumo dum vapôr no mar alto...)
+
+Uma inexplicavel ternura,
+Um remorso comovido e lacrimoso,
+Por todas aquélas victimas--principalmente as crianças--
+Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,
+Emoção comovida, porque elas fôram minhas victimas;
+Terna e suave, porque não o fôram realmente;
+Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada,
+Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.
+
+Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas?
+Que longe estou do que fui ha uns momentos!
+Histería das sensações--ora estas, ora as apostas!
+Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe
+As cousas de acôrdo com esta emoção--o marulho das ágoas,
+O marulho leve das ágoas do rio de encontro ao cais...,
+A vela passando perto do outro lado do rio,
+Os montes longinquos, dum azul japonez,
+As casas de Almada,
+E o que ha de suavidade e de infancia na hora matutina!...
+
+Uma gaivota que passa,
+E a minha ternura é maior.
+
+Mas todo este tempo não estive a reparar para nada.
+Tudo isto foi uma impressão só da pele, como uma caricia.
+Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longinquo,
+Da minha casa ao pé do rio,
+Da minha infancia ao pé do rio,
+Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,
+E a paz do luar esparso nas ágoas!...
+
+Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu...,
+Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me
+(Se bem que eu fôsse já crescido de mais para isso)...
+Lembro-me e as lágrimas cáem sobre o meu coração e lavam-o da vida,
+E ergue-se uma leve brisa maritima dentro de mim.
+Ás vezes ela cantava a «Nau Catrinêta»:
+
+ _Lá vai a Nau Catrinêta_
+ _Por sobre as ágoas do mar..._
+
+E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,
+Era a «Bela Infanta»... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim
+E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!
+Como fui ingrato para ela--e afinal que fiz eu da vida?
+Era a «Bela Infanta»... Eu fechava os olhos, e ela cantava:
+
+ _Estando a Bela Infanta_
+ _No seu jardim assentada..._
+
+Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
+E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.
+
+ _Estando a Bela Infanta_
+ _No seu jardim assentada,_
+ _Seu pente de ouro na mão,_
+ _Seus cabelos penteava..._
+
+Ó meu passado de infancia, boneco que me partiram!
+
+Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,
+E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!
+
+Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha.
+Pensar nisto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter.
+Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.
+Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
+Vertigem tenue de confusas causas na alma!
+Furias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,
+Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,
+Lágrimas, lágrimas inuteis,
+Leves brisas de contradicção roçando pela face a alma...
+
+Evoco, por um esforço voluntario, para sahir desta emoção,
+Evoco, com um esforço desesperado, sêco, nulo,
+A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:
+
+ _Fifteen men on The Dead Man's Chest._
+ _Yo-ho-ho and a bottle of rum!_
+
+Mas a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim...
+
+Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma,
+Outra vez, mas atravez duma imaginação quasi literaria,
+A furia da pirataria, da chacina, o apetite, quasi do paladar, do saque,
+Da chacina inutil de mulheres e de crianças,
+Da tortura futil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres,
+E a sensualidade de escangalhar e partir as cousas mais queridas dos outros,
+Mas sonho isto tudo com um mêdo de qualquer cousa a respirar-me sobre a nuca.
+
+Lembro-me de que seria interessante
+Enforcar os filhos á vista das mães
+(Mas sinto-me sem querer as mães dêles),
+Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
+Levando os pais em barcos até lá para vêrem
+(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa).
+
+Aguilhôo uma ansia fria dos crimes maritimos,
+Duma inquisição sem a desculpa da Fé,
+Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria,
+Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal,
+Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo,
+Como quem faz paciencias a uma mesa de jantar de provincia com a toalha atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar,
+Só pelo suave gosto de cometer crimes abominaveis e não os achar grande cousa,
+De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dôr mas nunca deixar chegar lá...
+Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me.
+Um calafrio arrepia-me.
+E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo,
+De repente--oh pavor por todas as minhas veias!--,
+Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar!
+Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente
+A velha voz do marinheiro inglez Jim Barns, com quem eu falava,
+Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim, das pequenas cousas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,
+Mas estupendamente vinda de além da aparência das cousas,
+A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Bôca,
+Vinda de sobre e de dentro da solidão nocturna dos mares,
+Chama por mim, chama por mim, chama por mim...
+
+Vem surdamente, como se fôsse suprimida e se ouvisse,
+Longinquamente, como se estivesse soando noutro logar e aqui não se pudesse ouvir,
+Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um halito silencioso,
+De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,
+O grito eterno e noturno, o sôpro fundo e confuso:
+
+Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô--yyy......
+Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô----yyy......
+Schooner ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô------yyy.........
+
+Tremo com um frio da alma repassando-me o corpo
+E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
+Ah, que alegria a de saír dos sonhos de vez!
+Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nêrvos!
+Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquêtes que chegam cêdo.
+
+Já não me importa o paquête que entrava. Ainda está longe.
+Só o que está perto agora me lava a alma.
+A minha imaginação higienica, forte, prática,
+Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e uteis,
+Com os navios de carga, com os paquêtes e os passageiros,
+Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras.
+Abranda o seu giro dentro de mim o volante.
+
+Maravilhosa vida maritima moderna,
+Toda limpeza, maquinas e saúde!
+Tudo tão bem arranjado, tão expontaneamente ajustado,
+Todas as peças das maquinas, todos os navios pelos mares,
+Todos os elementos da actividade comercial de exportação e importação
+Tão maravilhosamente combinando-se
+Que corre tudo como se fôsse por leis naturais,
+Nenhuma cousa esbarrando com outra!
+
+Nada perdeu a poesia. E agora ha a mais as maquinas
+Com a sua poesia tambem, e todo o novo genero de vida
+Comercial, mundana, intelectual, sentimental,
+Que a era das maquinas veiu trazer para as almas.
+As viagens agora são tão belas como eram dantes
+E um navio será sempre belo, só porque é um navio.
+Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve--
+Em parte nenhuma, graças a Deus!
+
+Os portos cheios de vapores de muitas especies!
+Pequenos, grandes, de varias côres, com varias disposições de vigias,
+De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!
+Vapôres nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos!
+Tão prasenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar,
+No velho mar sempre o homerico, ó Ulisses!
+
+O olhar humanitario dos faróis na distância da noite,
+Ou o subito farol proximo na noite muito escura
+(«Que perto da terra que estavamos passando!» E o som da agua canta-nos ao ouvido)!...
+
+Tudo isto hoje é como sempre foi, mas ha o comercio;
+E o destino comercial dos grandes vapôres
+Envaidece-me da minha epoca!
+A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros
+Dá-me o orgulho moderno de viver numa epoca onde é tão facil
+Misturarem-se as raças, transpôrem-se os espaços, vêr com facilidade todas as cousas,
+E gosar a vida realisando um grande numero de sonhos.
+
+Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em rêdes de arame amarelo,
+Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como gentlemen,
+São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões,
+Como gente perfeitamente consciente de como é higienico respirar o ar do mar.
+
+O dia é perfeitamente já de horas de trabalho.
+Começa tudo a movimentar-se, a regularisar-se.
+
+Com um grande prazer natural e directo percorro com a alma
+Todas as operações comerciaes necessarias a um embarque de mercadorias.
+A minha época é o carimbo que levam todas as facturas,
+E sinto que todas as cartas de todos os escritórios
+Deviam ser endereçadas a mim.
+
+Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade,
+E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna!
+Rigôr comercial do principio e do fim das cartas:
+Dear Sirs--Messieurs--Amigos e Snrs,
+Yours faithfully--... nos salutations empressées...
+Tudo isto é não só humano e limpo, mas tambêm belo,
+E tem ao fim um destino maritimo, um vapôr onde embarquem
+As mercadorias de que as cartas e as facturas tratam.
+
+Complexidade da vida! As facturas são feitas por gente
+Que tem amores, odios, paixões politicas, ás vezes crimes--
+E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!
+Ha quem olhe para uma factura e não sinta isto.
+Com certeza que tu, Cesario Verde, o sentias.
+Eu é até ás lagrimas que o sinto humanissimamente.
+Venham dizer-me que não ha poesia no comercio, nos escritórios!
+Ora, ela entra por todos os póros... Neste ar maritimo respiro-a,
+Porque tudo isto vem a proposito dos vapôres, da navegação moderna,
+Porque as facturas e as cartas comerciaes são o principio da historia
+E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.
+
+Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras,
+As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros
+Duma maneira especial, como se um misterio maritimo
+Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento
+Patriotas transitorios duma mesma patria incerta,
+Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das ágoas!
+Grandes hoteis do Infinito, oh transatlanticos meus!
+Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto
+E conterem todas as especies de trajes, de caras, de raças!
+
+As viagens, os viajantes--tantas especies dêles!
+Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!
+Tanto destino diverso que se póde dar á vida,
+Á vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
+Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
+E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.
+A fraternidade afinal não é uma idéa revolucionaria.
+É uma cousa que a gente aprende pela vida fóra, onde tem que tolerar tudo,
+E passa a achar graça ao que tem que tolerar,
+E acaba quasi a chorar de ternura sobre o que tolerou!
+
+Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado
+Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burguezes,
+Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!
+A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.
+Pobre gente! pobre gente toda a gente!
+
+Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio
+Que vai agora saíndo. É um tramp-steamer inglês,
+Muito sujo, como se fosse um navio francês,
+Com um ar simpatico de proletario dos mares,
+E sem duvida anunciado ontem na última página das gazetas.
+
+Enternece-me o pobre vapôr, tão humilde vai êle e tão natural.
+Parece ter um certo escrupulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
+Cumpridora duma qualquer especie de deveres.
+Lá vai êle deixando o lugar defronte do cais onde estou.
+Lá vai êle tranquilamente, passando por onde as naus estiveram
+Outrora, outrora...
+Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importancia.
+Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!
+Boa viagem! Boa viagem!
+Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favôr
+De levar comtigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,
+E restituir-me á vida para olhar para ti e te ver passar.
+Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto...
+
+Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino
+Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!
+Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso...
+Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa...
+Com um ligeiro estremecimento,
+(T-t--t---t----t-----t...)
+O volante dentro de mim pára.
+
+Passa, lento vapôr, passa e não fiques...
+Passa de mim, passa da minha vista,
+Vai-te de dentro do meu coração,
+Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
+Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
+Eu quem sou para que chore e interrogue?
+Eu quem sou para que te fale e te ame?
+Eu quem sou para que me perturbe vêr-te?
+Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
+Luzem os telhados dos edificios do cais,
+Todo o lado de cá da cidade brilha...
+Parte, deixa-me, torna-te
+Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nitido,
+Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
+Depois ponto vago no horizonte (ó minha angustia!),
+Ponto cada vez mais vago no horizonte...,
+Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
+E a grande cidade agora cheia de sol
+E a hora real e nua como um cais já sem navios,
+E o giro lento do guindaste que como um compasso que gira,
+Traça um semicirculo de não sei que emoção
+No silencio comovido da minh'alma...
+
+
+ALVARO DE CAMPOS,
+
+_Engenheiro._
+
+
+
+
+
+[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de _Hors Texte_ de Santa Rita Pintor.]
+
+
+*SANTA RITA PINTOR.*
+PARIS ANNO 1913.
+
+
+Syntese geometral de uma cabeça--infinito plastico de ambiente--
+transcendentalismo phisico.
+
+
+_(SENSIBILIDADE RADIOGRAPHICA.)_
+
+
+
+
+
+_LUÍS DE MONTALVÔR_
+
+
+*NARCISO*
+
+POEMA
+
+
+a Fernando Pessôa.
+
+
+
+
+*NARCISO*
+
+
+Erram no oiro da tarde as sombras de estas ninfas!
+
+E até onde irá o aroma dos seus gestos
+que sei tentam prender meus olhos que, funestos,
+sonham um esplendor fatal de pedrarias?
+
+Tarde de tentação! Que estranhas melodias
+inquietam o ceo de um rumor ignorado?
+Seringe! Tua flauta arrosa de encantado
+e sangue de Ilusão esta tarde em demencia
+que a legenda recorda; e da immortal essencia
+do sonho esta hora antiga exhuma o velho idilio.
+
+Ha mãos de festa e sonho em meu deserto exilio!
+
+A Beleza é pra mim, ó ninfas! o segredo
+com que Deus me vestiu de Lindo!... Ai, tenho medo
+de morrer o que sou ás mãos desse desejo
+das ninfas; mas está a sombra que não vejo
+depois e antes de mim e, se afundo o olhar na ancia
+de me ver, só me vejo ao collo da Distancia!
+Deixai dormir um pouco o ceo nos olhos meus,
+eu não os quero abrir antes que os feche,--Deus!--
+
+Ninfas! vós penteais o pavor á janella
+da minha alma atravez a hora sombria e bella.
+Corôas não serão sobre mim as de flôres
+que desfolhais, mas brancos braços de amôres
+que abrem nocturnamente e num paiz sem dia...
+
+Sois o sonho de mim ao collo da Alegria!
+Vossa presença põe o medo em meu destino.
+
+As taças que entornais do aroma sibillino
+da seducção, de tédio enchem o que me déste,
+ó Deus!
+ Gela meu ser ao sorriso terrest'e
+das virgens, que reflecte a tarde a rescender
+do olor de Pan!
+ ... E o olhar dóe por no o esconder
+do ceo; pois para toda a alma dormir, do bello,
+o serafico azul é como um pezadêlo!
+
+Porêm como fugir ao sonho que me faz
+como estrangeiro em mim; do bello azul, voraz
+a bôca triste, sem côr e de humanas dôres--
+como se triunfal e de palidas flôres
+da noite, fôssem de um sonho, na hora escultado?
+
+Captivo em mim sou como o dragão que, inviolado,
+bebe a scintillação da s'nora claridade
+do cabello sinistro, onde a luz arde e invade
+de metalico hallor o nixo onde se acoite...
+
+Vossos cabellos ai! chovem como oiro, á noite!
+como fios de horror da teia do mistério...
+
+Do cabello, o esplendor do oiro esteril, é aério
+c'mo de arachnideo sonho ou de siderio tecto
+cinzelado no olhar--um reflexo de insecto--
+no frio vôo num ar de somno e oiro e luto...
+
+Avalanches de tédio em seu cabello escuto!...
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+Fixo a carne, spectral, como ante inerte frizo
+de sombras, a nudez, linha esquecida em riso
+sobre chammas, cruel,--Joia dos calafrios!--
+Um horror de ónix néva entre os meus dedos frios!
+
+Contemplo o meu destino em mim.
+ Ninfas, adeus!
+Meus gestos irreaes tem seculos de Deus!
+Na paisagem do ser corre um rio sem fim:
+Os meus gestos são como a outra margem de mim...
+Cai alma no jardim dos meus sonhos funestos.
+É sempre noite lá no fundo dos meus gestos
+onde espreita Deus: ha luar nas minhas mãos...
+As mãos abanam no ar os nossos gestos vãos,
+--mundos de sonolencia ardendo em reliquarios:
+Joias celestes, vós, meus gestos solitarios!
+
+Por mim divaga o ceo. E morre um diadêma
+á minha fronte triste e pensativa, emblêma
+da alma palida como um velho pálio ou ouro...
+Comtudo que torpor me encosta ao sorvedouro
+c'mo esfinge que se inclina ao abysmo e debruça,
+a mirar a alma, irmã de um sonho que soluça?
+É que um gesto sem nome em minha alma se aclara,
+e no Jardim de Deus sou a ideia mais rara!
+
+Meus gestos vão como esta agua sempre correndo
+pra a foz do nada; encosto a minha alma, tremendo,
+á voz da agua--cristal sonoro do alhear-me!--
+
+No novelo de mim a minha ancia a enredar-me.
+
+Ó agua sempre triste em seu ir pela parte
+da terra que é livida e c'mo alma que se farte
+de sonhos! Não será a minha sombra ausente
+um ar vosso--ou serei a imagem da corrente?
+
+Quem descesse o mistério e visse a semelhança
+nesse intimo torpor das cousas, onde cansa
+essa fuga do tempo em sombra reflectida...
+Eu nunca terei dois gestos irmãos na vida,
+e se olhasse pra traz t'ria medo de mim...
+(Inter-lunio de nós no sonho d'alêm-fim...)
+
+O que me reflectir roubará meu segredo.
+O tempo escorre por nós como alguem com medo
+por sobre um muro... Crio olhos de ser distante...
+Na alma porei as mãos como por um quadrante...
+As mãos são tempo... e tudo é um somno de si...
+
+Miro-me, e não serei a sombra onde me ví?...
+
+Ó espelho sem hora! Ó agua em somno, lustral,
+--espelho horizontal de tédio c'mo um canal
+sem ter fundo nem fim. Meu perfil sua dôr!
+Só me reflicto e não me vejo no torpor
+da agua que abana o tempo... ai, o tempo é a voz
+com que se acorda o medo--escultura de nós
+na distancia...
+ Em rumor, na agua, vago demencia
+e durmo de Beleza ao collo da Aparencia,
+que foge como esta agua e este tempo a correr...
+Marulhar de mim no fundo do meu ser...
+Só as mãos sabem ter o ar de sonhos contin'os...
+
+Ai! Se o olhar cai nas mãos, desenham-se destinos
+como arabescos...
+ Abro os braços, mas em vão,
+e ergo-me de mim com vestes de comoção!
+
+Resta-me contemplar pela noite que inundo
+de mim, pendido sobre a aparencia do mundo.
+Minha sombra exilada esculto-a na doçura!
+
+Perturbo-me de Deus nos braços da Ternura!
+
+Sinto que a minha voz já atravessou Deus!...
+Cresço sobre mim, ó noite em delirio!
+ Adeus!
+Imagem de ser bello ás mãos da minha infancia.
+
+Sou echo de rumor quebrado na distancia.
+
+Alma da noite antiga incendiada a lavores!
+
+
+LUÍS DE MONTALVÔR.
+
+
+
+
+
+[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de _Hors Texte_ de Santa Rita Pintor.]
+
+
+*SANTA RITA PINTOR.*
+PARIS ANNO 1912.
+
+
+Decomposição dynamica de uma mesa--estylo do movimento.
+
+
+_(INTERSECCIONISMO PLASTICO.)_
+
+
+
+
+
+*CHUVA OBLÍQUA*
+
+
+POEMAS INTERSECCIONISTAS
+
+DE
+
+FERNANDO PESSOA
+
+
+
+
+
+*Chuva obliqua*
+
+
+*I*
+
+Atravessa esta paysagem o meu sonho d'um porto infinito
+E a côr das flôres é transparente de as velas de grandes navios
+Que largam do caes arrastando nas aguas por sombra
+Os vultos ao sol d'aquellas arvores antigas...
+
+O porto que sonho é sombrio e pallido
+E esta paysagem é cheia de sol d'este lado...
+Mas no meu espirito o sol d'este dia é porto sombrio
+E os navios que sahem do porto são estas arvores ao sol...
+
+Liberto em duplo, abandonei-me da paysagem abaixo...
+O vulto do caes é a estrada nitida e calma
+Que se levanta e se ergue como um muro,
+E os navios passam por dentro dos troncos das arvores
+Com uma horizontalidade vertical,
+E deixam cahir amarras na agua pelas folhas uma a uma dentro...
+
+Não sei quem me sonho...
+Súbito toda a agua do mar do porto é transparente
+E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
+Esta paysagem toda, renque de arvores, estrada a arder em aquelle porto,
+E a sombra d'uma náu mais antiga que o porto que passa
+Entre o meu sonho do porto e o meu vêr esta paysagem
+E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
+E passa para o outro lado da minha alma...
+
+
+*II*
+
+Illumina-se a egreja por dentro da chuva d'este dia,
+E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
+
+Alegra-me ouvir a chuva porque ella é o templo estar acceso,
+E as vidraças da egreja vistas de fóra são o som da chuva ouvido por dentro...
+
+O esplendôr do altar-mór é o eu não poder quasi vêr os montes
+Atravez da chuva que é ouro tão solemne na toalha do altar...
+Sôa o canto do côro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
+E sente-se chiar a agua no facto de haver côro...
+
+A missa é um automovel que passa
+Atravez dos fieis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
+Subito vento sacode em esplendôr maior
+A festa da cathedral e o ruido da chuva absorve tudo
+Até só se ouvir a voz do padre agua perder-se ao longe
+Com o som de rodas de automovel...
+
+E apagam-se as luzes da egreja
+Na chuva que cessa...
+
+
+*III*
+
+A Grande Esphynge do Egypto sonha por este papel dentro...
+Escrevo--e ella apparece-me atravez da minha mão transparente
+E ao canto do papel erguem-se as pyramides...
+
+Escrevo--perturbo-me de vêr o bico da minha penna
+Ser o perfil do rei Cheops...
+De repente paro...
+Escureceu tudo... Caio por um abysmo feito de tempo...
+Estou soterrado sob as pyramides a escrever versos á luz clara d'este candieiro
+E todo o Egypto me esmaga de alto atravez dos traços que faço com a penna...
+Ouço a Esphynge rir por dentro
+O som da minha penna a correr no papel...
+Atravessa o eu não poder vel-a uma mão enorme,
+Varre tudo para o canto do tecto que fica por detraz de mim,
+E sobre o papel onde escrevo, entre elle e a penna que escreve
+Jaz o cadaver do rei Cheops, olhando-me com olhos muito abertos,
+E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
+E uma alegria de barcos embandeirados erra
+Numa diagonal diffusa
+Entre mim e o que eu penso...
+
+Funeraes do rei Cheops em ouro velho e Mim!...
+
+
+*IV*
+
+Que pandeiretas o silencio d'este quarto!...
+As paredes estão na Andaluzia...
+Ha danças sensuaes no brilho fixo da luz...
+
+De repente todo o espaço pára...,
+Pára, escorrega, desembrulha-se...,
+E num canto do tecto, muito mais longe do que elle está,
+Abrem mãos brancas janellas secretas
+E ha ramos de violetas cahindo
+De haver uma noite de primavera lá fóra
+Sobre o eu estar de olhos fechados...
+
+
+*V*
+
+Lá fora vae um redemoinho de sol os cavallos do carroussel...
+Arvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...
+Noite absoluta na feira illuminada, luar no dia de sol lá fóra,
+E as luzes todas da feira fazem ruido dos muros do quintal...
+Ranchos de raparigas de bilha á cabeça
+Que passam lá fóra, cheias de estar sob o sol,
+Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
+Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,
+E os dois grupos encontram-se e penetram-se
+Até formarem só um que é os dois...
+A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,
+E a noite que pega na feira e a levanta no ar,
+Andam por cima das copas das arvores cheias de sol,
+Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
+Apparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam á cabeça,
+E toda esta paysagem de primavera é a lua sobre a feira,
+E toda a feira com ruidos e luzes é o chão d'este dia de sol...
+
+De repente alguem sacode esta hora dupla como numa peneira
+E, misturado, o pó das duas realidades cahe
+Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
+Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...
+Pó de ouro branco e negro sobre os meus dedos...
+As minhas mãos são os passos d'aquella rapariga que abandona a feira,
+Sósinha e contente como o dia de hoje...
+
+
+*VI*
+
+O maestro sacode a batuta,
+E languida e triste a musica rompe...
+
+Lembra-me a minha infancia, aquelle dia
+Em que eu brincava ao pé d'um muro de quintal
+Atirando-lhe com uma bola que tinha d'um lado
+O deslisar d'um cão verde, e do outro lado
+Um cavallo azul a correr com um jockey amarello...
+
+Prosegue a musica, e eis na minha infancia
+De repente entre mim e o maestro, muro branco,
+Vae e vem a bola, ora um cão verde,
+Ora um cavallo azul com um jockey amarello...
+
+Todo o theatro é o meu quintal, a minha infancia
+Está em todos os logares, e a bola vem a tocar musica
+Uma musica triste e vaga que passeia no meu quintal
+Vestida de cão verde tornando-se jockey amarello.
+(Tão rapida gira a bola entre mim e os musicos...)
+
+Atiro-a de encontro á minha infancia e ella
+Atravessa o theatro todo que está aos meus pés
+A brincar com um jockey amarello e um cão verde
+E um cavallo azul que apparece por cima do muro
+Do meu quintal... E a musica atira com bolas
+Á minha infancia... E o muro do quintal é feito de gestos
+De batuta e rotações confusas de cães verdes
+E cavallos azues e jockeys amarellos...
+
+Todo o theatro é um muro branco de musica
+Por onde um cão verde corre atraz da minha saudade
+Da minha infancia, cavallo azul com um jockey amarello...
+
+E d'um lado para o outro, da direita para a esquerda,
+D'onde ha arvores e entre os ramos ao pé da copa
+Com orchestras a tocar musica,
+Para onde ha filas de bolas na loja onde a comprei
+E o homem da loja sorri entre as memorias da minha infancia...
+
+E a musica cessa como um muro que desaba,
+A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
+E do alto dum cavallo azul, o maestro, jockey amarello tornando-se preto,
+Agradece, pousando a batuta em cima da fuga d'um muro,
+E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
+Bola branca que lhe desapparece pelas costas abaixo...
+
+
+_8 de Março de 1914._
+
+
+FERNANDO PESSÔA.
+
+
+
+
+Preço 30 centavos
+
+
+LISBOA
+
+TIPOGRAPHIA DO COMERCIO
+Rua da Oliveira, ao Carmo, 10
+
+TELEFONE 2724
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Orpheu Nº2, by
+Mário de Sá-Carneiro and Fernando António Nogueira Pessoa and Ângelo Vaz Pinto Azevedo Coutinho de Lima and Luís de Montalvor
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+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
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+forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
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+
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+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
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+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at http://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit http://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including checks, online payments and credit card donations.
+To donate, please visit: http://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
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+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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