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diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes new file mode 100644 index 0000000..6833f05 --- /dev/null +++ b/.gitattributes @@ -0,0 +1,3 @@ +* text=auto +*.txt text +*.md text diff --git a/23621-8.txt b/23621-8.txt new file mode 100644 index 0000000..687c352 --- /dev/null +++ b/23621-8.txt @@ -0,0 +1,3463 @@ +The Project Gutenberg EBook of Orpheu Nº2, by +Mário de Sá-Carneiro and Fernando António Nogueira Pessoa and Ângelo Vaz Pinto Azevedo Coutinho de Lima and Luís de Montalvor + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Orpheu Nº2 + Revista Trimestral de Literatura + +Author: Mário de Sá-Carneiro + Fernando António Nogueira Pessoa + Ângelo Vaz Pinto Azevedo Coutinho de Lima + Luís de Montalvor + +Illustrator: Guilherme de Santa-Rita + +Release Date: November 25, 2007 [EBook #23621] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ORPHEU Nº2 *** + + + + +Produced by Vasco Salgado + + + + +*ORPHEU* + +*2* + + + + +*"ORPHEU"* + +REVISTA TRIMESTRAL DE LITERATURA + + +Propriedade de: ORPHEU, L.^da +Editor: ANTONIO FERRO + + +DIRECTORES + +*Fernando Pessôa* +*Mario de Sá-Carneiro* + + +*ANO I--1915* *N.^o 2* *Abril-Maio-Junho* + + +*SUMARIO* + +ANGELO DE LIMA _Poemas Inéditos_ +MARIO DE SÁ-CARNEIRO _Poemas sem Suporte_ +EDUARDO GUIMARAENS _Poemas_ +RAUL LEAL _Atelier_ (novela vertígica) +VIOLANTE DE CYSNEIROS (?) _Poemas_ +ALVARO DE CAMPOS _Ode Marítima_ +LUÍS DE MONTALVÔR _Narciso_ (poema) +FERNANDO PESSÔA _Chuva oblíqua_ (poemas interseccionistas) + + +*Colaboração especial do futurista* + +*SANTA RITA PINTOR* + +*(4 hors-texte duplos)* + + +_Redacção_: 190, Rua do Ouro--Livraria Brazileira. +_Oficinas_: Tipografia do Comercio, 10, Rua da Oliveira, +ao Carmo--Telefone 2724 + +LISBOA + + + + +"Orpheu" iniciará na _rentrée_ uma longa série de conferencias de +afirmação, sendo as primeiras as seguintes: + + +A Torre Eiffel e o Genio do Futurismo, por _Santa Rita Pintor_. + +A Arte e a Heraldica, pelo pintor _Manuel Jardim_. + +Teatro Futurista no Espaço, pelo _Dr. Raul Leal_. + +As Esfinges e os Guindastes: estudo do bi-metalismo psicologico, por +_Mario de Sá-Carneiro_. + + +*SERVIÇO DA REDACÇÃO* + + +Varias razões, tanto de ordem administrativa, como referentes á +assunção de responsabilidades literarias perante o publico, levaram +o _comité_ redactorial de _ORPHEU_ a achar preferivel que a direcção +da revista fôsse assumida pelos actuais directores, não envolvendo +tal determinação a minima discordancia com o nosso camarada Luís +de Montalvôr, cuja colaboração, aliás, ilustra o presente numero. + + +De principio, concordara o _comité_ redactorial de _ORPHEU_ em não +inserir colaboração artistica: por isso mesmo se adoptou uma capa que +o era, brilhante composição do arquitecto José Pacheco. Posteriormente +á saída do primeiro numero, julgou, porêm, o mesmo _comité_ que seria +interessante inserir em cada numero desenhos ou quadros de *um* +colaborador, em vista do que decidiu *fixar* a capa, tirando-lhe o +caracter artistico e dando-lhe um simples e normal aspecto tipografico. +A realisação desta parte do nosso programa começa no numero actual com +a inserção dos quatro definitivos trabalhos futuristas de Santa Rita +Pintor. + + +O _Manifesto da Nova Literatura_, que havia sido anunciado como devendo +fazer parte do n.^o 2 de _ORPHEU_, não é nêle inserto nem o acompanha. +É motivo disto a circunstancia de que, envolvendo a confecção dêsse +manifesto o desenvolvimento de principios de ordem altamente scientifica +e abstracta, êle não pôde ficar concluido a tempo de ser inserto. Ou +aparecerá com o 3.^o numero da revista, ou mesmo antes, talvez, em +opusculo ou folheto separado. + + +O 3.^o numero de _ORPHEU_ será publicado em outubro, com o atraso dum +mês, portanto--para que a sua acção não seja prejudicada pela +época-morta. + + +Os _hors texte_ de Santa Rita Pintor insertos no presente numero foram +fotogravados nos _ateliers_ da *Ilustradora* segundo clichés de + + +*BARROS & GALAMAS* +146, Rua da Palma--LISBOA + + +*CONDIÇÕES* + + +Toda a correspondencia deve ser dirigida aos Directores. + + +Convidamos todos os Artistas cuja simpatia esteja com a indole desta +Revista a enviarem-nos colaboração. No caso de não ser inserta +devolveremos os originais. + + +São nossos depositarios em Portugal os srs. Monteiro & C.^a, Livraria +Brazileira--190 e 192, Rua Aurea, Lisboa. + + +_ORPHEU_ publicará um numero incerto de paginas, nunca inferior a 72, +ao preço invariavel de 30 centavos o numero avulso, em Portugal, e +1$500 réis fracos no Brazil. + + +*ASSINATURAS* + +(Ao ano--Série de 4 numeros) + + +Portugal, Espanha e Colonias portuguesas 1 escudo +Brazil 5$000 réis (moeda fraca) +União Postal 6 francos + + + + +*Livraria Brazileira de MONTEIRO & C.^ia--Editores* +190 e 192, RUA AUREA--LISBOA + + +Acaba de aparecer: + + +*CÉU EM FOGO* + +NOVELAS POR + +MARIO DE SÁ-CARNEIRO + + +GRANDE SOMBRA--MISTÉRIO +O HOMEM DOS SONHOS--ASAS--EU-PROPRIO O OUTRO +A ESTRANHA MORTE DO PROF. ANTENA +O FIXADOR DE INSTANTES--RESSURREIÇÃO + + +1 VOLUME DE 350 PAGINAS + + +CAPA DESENHADA POR + +JOSÉ PACHECO + + +Preço 70 centavos + + + + + +*POEMAS INÉDITOS* + +DE + +ANGELO DE LIMA + + + + +_*CANTICO--SEMI-RAMI*_ + + +--Oh! Noute em Teu Amor Silenciosa! +--Oh! Estrellas na Noute, Scintillantes, +Como Ideaes e Virginaes Amantes!... +--Oh! Memoria de Amor Religiosa!... + +--Já Fui... uma Creança Pubescente +Que des'brocha em Amor Inconsciente +Como n'um Vago Sonho... Commovente +Desabrocha uma Rosa Olorescente +--A Adolescente... Casta e Curiosa! + +--E já Fui... a Galante com Requinte +Para dar-me, Esquivando-me em Acinte +De P'rigos da Ventura Cyspresinte +--Sensitiva... Ao Brisar, do Sol Orinte... +--A Nubente... Temente e Desejosa! + +--E já Fui... a Noivada pelo Amante, +A Cingida de Abraço Palpitante, +Anxe do Sacrificio Inebriante! +--A Flôr que Quebra o Gyneceu... Hiante, +--A Desvirgada... Grata e Dolorosa! + +--Oh! Memoria de Amor Religiosa! +--Oh! Estrellas, na Noute, Scintillantes +Como Ideaes e Virginaes Amantes... +--Oh! Noute em Teu Amor... Silenciosa! + +Já Fui... como a Senhora, sim, durante +Uns Tempos de Ventura Confortante +Nos Confortos de um Lar... Hoje Distante... +--Como Dista, da Noute, um Paço Encante... +Já Fui... uma Matrona Virtuosa!... + +E já Fui... a Devota pelo Amor, +A Adulterin... que Trahe o seu Senhor!... + +E a que sentiu Doer o Coração +Ao Fim de Tanta e Cada uma Vez +Por cada Intento só Colhêr Revez +Nas Esp'ranças da Sua Devoção!... + +Oh! Noute! em Teu Amor Silenciosa! +Oh! Estrellas, na Noute, Scintillantes +Como Ideaes e Virginaes Amantes... +Oh! Memoria de Amor Religiosa! + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +E se Ha de Amor, algum Amor Eleito, +Aquella Tambem Fui, que Ninguem Fôsse, +Que, n'um Mysterio, como o Inferno, Doce, +Amei a Minha Filha, no seu Leito... + +Sim, se Ha de Amor algum Amor Eleito, +Minhas Irmãs, Cingi-me ao Vosso Peito +E Ouvi-Me esta Memoria Dolorosa... + +Já Fui Aquella que Perdeu a Esp'rança, +E Errou Espasma Noutes sem Termino, +Entre a Treva das Selvas Pavorosa, +Anxe em busca de Amantes do Destino... + +--E A que Lembrou os Tempos de Creança!... + +--E já Fui como a Sombra da Saudade +Amando a Lua, pela Immensidade! + +--Oh Noute! em Teu Amor, Silenciosa! +--Oh Estrellas, na Noute, Scintillantes +Como Ideaes e Virginaes Amantes! +--Oh Memoria de Amor, Religiosa!... + + + + +_*NEITHA-KRI*_ + + +Ó Noute Immensa pela Immensidão! +Recebe em Ti a minha Confissão. +Eu Nunca disse ao Verdadeiro, Não! +Nem devoro em Remorso o Coração!... + +Sou a Grande Rainha Neitha-Kri... +Sou Devota da Noute Pensadora... +E Neith é grande, pelos Ceus Senhora... +E Eu, Sua Filha, Sou Nofrei-Ari!... + +Meu Irmão era o Rei Mentha-Suf'reh!... +--E Morreu Enlevado em Sonho Ideal +D'um Phyltro que Eu lhe dei para tomar!... +--Mentha-Suf'reh não Conheceu o Mal +--E o Destino Elegeu-me p'ra Reinar +Sobre os Milagres do Paiz d'Esneh!... + +--Sou a Grande Rainha Neitha-Kri! +--Sou Devota da Noute Pensadora +--E Neith é Grande! pelos Ceus Senhora! +--Sou a Rainha!... Sou Nofrei-Ari!... + +--No meu Corpo Divino e Perfumado +Tenho a Carne Côr Mate da Belleza +Que é Ammarella de Côr e Delicada, +Da Côr Loura da Chamma Incendiada... +--Tenho o Porte das Damas da Nobreza +Nas Formas do Meu Corpo Consagrado!... + +--A Thiara Suprema que Investi +Coroa a Minha Fronte Sobranceira, +Real, Sagrada, Mystice, Altaneira... +--E Então--ó Neith--sou Divina em Ti!... + +Na Sombra d'Esta C'roa dos Thanitas +Palpitam-me no Seio Delicado +Anceios de Desejos Escondidos, +Mysteriosos, quasi Indefinidos, +Mesmo ao Saber do Meu Olhar Velado +--Que tu, ó Noute! em Teu Amor Excitas... + +O Peitoral Sagrado da Magia +Repousa nos seus Ouros Esmaltados, +Frio sobre os meus Seios Excitados, +Como tacite, Oraculo, do Dia... + +--Sob o Pê-chênte Cintural Pendente +Sobre o Vigor suavemente Curvo +Das minhas Côxas no meu star de Hyerata +Que Antros Ardentes e que, Amor, Dilata +De um Ardor Fulguroso... porque Turvo... +De que Immanencia... de que Immanescente?... + +--Ó Noute minha Mãe na Immensidão! +--Ó Noute Grande, pelos Céus Senhora... +--Scintil d'Estrellas n'Essa Solidão... +--Eu, Sobre a Terra, Sou a Vencedora!... + +--Erguida nas Sandalias Encurvadas +Sou de Pé ante Ti, ó Verdadeira! +Dama da Vida, pelo Amor Ungida... +Senhora Principal... Dama da Vida! +Eu, Tua Padre-Mãe!--a Derradeira... +--Entre as Vagas de Incenso a Ti Votadas... + +--Meu Olhar é Fulguro docemente, +Como se n'este Espelho da Verdade +Da minha Alma Polytica de Rei, +--N'Aquella Presciencia com que Sei +--Se Reflectisse a Minha Lealdade +--Ou a Luz d'Algum Astro Transcendente... + +--E os meus Braços Frementes Alongados, +Cingidos nos Annilos Rictuaes, +Têem na Mão o Seter dos Grandes Paes +Como as Chaves dos Sellos Reservados... + +Sou mais Sabia que os Sabios--Eu emfim +--Eu que Sei o Segredo Consagrado +Das Filtragens do Lotus Divinal +Que Floresce em o Rio de Occidente +E que Evoccam o Sonho Absorvente +Em que Esquecem--a par da Dor do Mal-- +Os Estrangeiros, o seu Lar Deixado... +--Que Encontram outro Lar juncto de Mim... + +--Meu olhar é Fulguro docemente +Em Profunda Dulcissima Certeza +Como as Astres do Ceu Immanescente... +E Mãe--ó Neith-eu! ó mais que Pura! +--Como as Estrellas d'um Fulgor Fremente... +--Sou a Ventura Filha da Tristeza +D'Esse Teu Medictar Saudosamente... + +--E assim como os Astros Fascinantes +Geram Fatas as Horas dos Instantes, +--Meu Amor--o Sem Fim--gera a Loucura! + + + + +_*NINIVE*_ + + +--Alem Foi--a Ninive da Piedade, +A Cidade do Lucto Singular +E a Sepultura da Semi-Rami... +--E Hoje... stá por Ali, Vaga, a Saudade... +--E anda no Ceu Supremo a Eterna Istar... +--E... Passa, ás Vezes, a Serpente...--Ali!... + + + + +Na Camara Longinqua e Silenciosa +Da Sepultura da Semi-Rami... +--Relegada da Vida Gloriosa +--Na Paz Final da Morte Mysterosa + --Fria e Saudosa + --Dorme a Semi!... + +--Morreu na Guerra em um Paiz Distante... +--Na Expedição Fatal em que Morreram +Trez Milhões de Soldados...--e ainda Mais... +--E os Guardas d'A Que Fôra a Triumphante +--Fieis..., os Seus Cem Guardas Immortaes... +Na Piedade Final do Ultimo Preito +Denotando os Seus Corpos Vigorosos +--Mantendo sobre os Hombros Pressurosos +O Feretro Sagrado da Semi... +--Por Caminhos Infindos Escabrosos +Em Terras de Inimigos... e Chacaes... +--Por Soes de Fogo...--Vastos Areaes... +--E Pavôres Sacros de Paiz Levante... +--Trouxeram Seu Cadaver do Distante + --E Inhumaram-A Alli... +--Fria e Saudosa!... +--Na Camara Longinqua e Silenciosa +Da Sepultura da Semi-Rami!... + + + + +_*....?....*_ + + +--Eras... nos Tempos... Antes da Edade... +Teu Gesto Gloro Gerou a Vida!... +--E Apoz Teu Gesto... +--Supremo... Immesto... +--Grande e Tacida... +--Depoz... É a Noute na Immensidade!... + + + + +--E a Mãe do Rei do Reino Sul-Occaso +Disse a Mu-Ang--Alguma Vez, Accaso... +--Olha a Nuvem no Céu... e como Corre!... +--Assim as Horas da Ventura Minha... +--Quem Tem Filhos na Terra--Esse Não Morre!... +--Despozae--Se Sois Rei--uma Rainha +--Que É Tanto como Vós Pela Grandeza... +--E... Depois... de Espozardes a Belleza +Podeis Seguir Então Vossa Encaminha!... +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . +--E o Rei Mu-An' disse á Rainha, Então... +--Junto de Vós... Enlevo-me de Encanto... +--Longe, Porém, do Meu Paiz--Ha tanto,-- +Que Nem, Meus Reinos, Já Eu Sei se São... +--Volto ao Meu Reino... n'Esta Dôr Tamanha... +--Seja--A da Mãe do Rei--Esta Montanha +Onde Alastra Este Bosque de Arvoredo +Junto ao Lago... em que Estamos... em Adeus!... +--Ó Mãe do Rei... Vós M'Enlevaes nos Céus +--Mas o Meu Coração Soffre em Segrêdo!... +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + + + + +--Quantos... desde Chu-Si a Kuan-Su +--Filhos do Céu nas Filhas do Kiang +--Consagraram no Throno dos Hoang +--Aureolados do Pavão Azu?... +--E Algum Dia... Encostaram-se Tranquilos +Sobre a Meza de Joias do _Estar Manso_ +--E Cerraram os Olhos nos Seus Cilos... +--E Abateram Seu Gesto Socegado +De Imp'radores do Imperio Consagrado... +--No Gesto da Decencia e do Descanso!... + + + + +_*EDD'ORA ADDIO...--MIA SOAVE!...*_ + +Aos meus amigos d'ORPPHEU + + +--Mia Soave...--Ave?!...--Alméa?!... +--Maripoza Azual...--Transe!... +Que d'Alado Lidar, Canse... +--Dorta em Paz...--Transpasse Idéa!... + +--Do Occaso pela Epopéa... +Dorto... Stringe... o Corpo Elance... +Vae Á Campa...--Il C'or descanse... +--Mia Soave...--Ave!...--Alméa!... + +--Não Doe Por Ti Meu Peito... +--Não Choro no Orar Cicio... +--Em Profano...--Edd'ora... Eleito!... + +--Balsame--a Campa--o Rocío +Que Cahe sobre o Ultimo Leito!... +--Mi' Soave!... Edd'ora Addio!... + + + + +--Estes Versos Antigos Que Eu Dizia +Ao Compasso Que Marca o Coração +Lembram Ainda?...--Lembrarão um Dia... +--Nas Memorias Dispersas Recolhidas +Sequer, na Piedosa Devoção +D'Algum Livro de Cousas Esquecidas?... +--Accaso o Que Ora Canta... Vive... Existe +Nunca Mais Lembrará--Eternamente?... +--E, Vindo do Não-Ser, Vae, Finalmente, +Dormir no Nada... Magestoso e Triste?... + + +ANGELO DE LIMA. + + + + + +_MARIO DE SÁ-CARNEIRO_ + +*POEMAS SEM SUPORTE* + + +a Santa Rita Pintor. + + + + +_ELEGIA_ + + +Minha presença de setim, +Toda bordada a côr de rosa, +Que fôste sempre um adeus em mim +Por uma tarde silenciosa... + +Ó dedos longos que toquei, +Mas se os toquei, desapareceram... +Ó minhas bôcas que esperei, +E nunca mais se me estenderam... + +Meus Boulevards d'Europa e beijos +Onde fui só um espectador... +--Que sôno lasso, o meu amor; +--Que poeira d'ouro, os meus desejos... + +Ha mãos pendidas de amuradas +No meu anseio a divagar... +Em mim findou todo o luar +Da lua dum conto de fadas... + +Eu fui alguem que se enganou +E achou mais belo ter errado... +Mantenho o trôno mascarado +Aonde me sagrei Pierrot. + +Minhas tristezas de cristal, +Meus débeis arrependimentos +São hoje os velhos paramentos +Duma pesada Catedral. + +Pobres enleios de carmim +Que reservara pra algum dia... +A sombra loira, fugidia, +Jámais se abeirará de mim... + +--Ó minhas cartas nunca escritas, +E os meus retratos que rasguei... +As orações que não rezei... +Madeixas falsas, flôres e fitas... + +O «petit-bleu» que não chegou... +As horas vagas do jardim... +O anel de beijos e marfim +Que os seus dedos nunca anelou... + +Convalescença afectuosa +Num hospital branco de paz... +A dôr magoada e duvidosa +Dum outro tempo mais lilaz... + +Um braço que nos acalenta... +Livros de côr á cabeceira... +Minha ternura friorenta-- +Ter amas pela vida inteira... + +Ó grande Hotel universal +Dos meus frenéticos enganos, +Com aquecimento-central, +Escrocs, cocottes, tziganos... + +Ó meus Cafés de grande vida +Com dançarinas multicolôres... +--Ai, não são mais as minhas dôres +Que a sua dança interrompida... + + +_Lisboa--março de 1915._ + + + + +_MANUCURE_ + + +Na sensação de estar polindo as minhas unhas, +Subita sensação inexplicavel de ternura, +Todo me incluo em Mim--piedosamente. +Emtanto eis-me sózinho no Café: +De manhã, como sempre, em bocejos amarelos. +De volta, as mesas apenas--ingratas +E duras, esquinadas na sua desgraciosidade +Boçal, quadrangular e livre-pensadora... +Fóra: dia de Maio em luz +E sol--dia brutal, provinciano e democrático +Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos +Não podem tolerar--e apenas forçados +Suportam em nauseas. Toda a minha sensibilidade +Se ofende com este dia que ha de ter cantores +Entre os amigos com quem ando ás vezes-- +Trigueiros, naturais, de bigodes fartos-- +Que escrevem, mas têem partido politico +E assistem a congressos republicanos, +Vão ás mulheres, gostam de vinho tinto, +De peros ou de sardinhas fritas... + +E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas +E de as pintar com um verniz parisiense, +Vou-me mais e mais enternecendo +Até chorar por Mim... +Mil côres no Ar, mil vibrações latejantes, +Brumosos planos desviados +Abatendo flexas, listas volúveis, discos flexiveis, +Chegam tenuemente a perfilar-me +Toda a ternura que eu pudera ter vivido, +Toda a grandeza que eu pudera ter sentido, +Todos os scenarios que entretanto Fui... +Eis como, pouco a pouco, se me fóca +A obsessão débil dum sorriso +Que espelhos vagos reflectiram... +Leve inflexão a sinusar... +Fino arrepio cristalisado... +Inatingivel deslocamento... +Veloz faúlha atmosférica... + +E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço +Por innumeras intersecções de planos +Multiplos, livres, resvalantes. + +É lá, no grande Espelho de fantasmas +Que ondula e se entregolfa todo o meu passado, +Se desmorona o meu presente, +E o meu futuro é já poeira... +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +Deponho então as minhas limas, +As minhas tesouras, os meus godets de verniz, +Os polidores da minha sensação-- +E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar! +Oh! poder exaurir tudo quanto nêle se incrusta, +Varar a sua Beleza--sem suporte, emfim!-- +Cantar o que êle revolve, e amolda, impregna, +Alastra e expande em vibrações: +Subtilisado, sucessivo--perpétuo ao Infinito!... +Que calótes suspensas entre ogivas de ruínas, +Que triangulos sólidos pelas naves partidos! +Que hélices atrás dum vôo vertical! +Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténnis!-- +Que loiras oscilações se ri a bôca da jogadora... +Que grinaldas vermelhas, que léques, se a dançarina russa, +Meia-nua, agita as mãos pintadas da Salomé +Num grande palco a Ouro! +--Que rendas outros bailados! + +Ah! mas que inflexões de precipicio, estridentes, cegantes, +Que vertices brutais a divergir, a ranger, +Se facas de apache se entrecruzam +Altas madrugadas frias... + +E pelas estações e cais de embarque, +Os grandes caixotes acumulados, +As malas, os fardos--pêle-mêle... +Tudo inserto em Ar, +Afeiçoado por êle, separado por êle +Em multiplos intersticios +Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!... + +--Ó beleza futurista das mercadorias! + +--Sarapilheira dos fardos, +Como eu quisera togar-me de Ti! +--Madeira dos caixotes, +Como eu anseara cravar os dentes em Ti! +E os pregos, as cordas, os aros...-- +Mas, acima de tudo, como bailam faiscantes +A meus olhos audazes de beleza, +As inscrições de todos esses fardos-- +Negras, vermelhas, azuis ou verdes-- +Gritos de actual e Comercio & Industria +Em transito cosmopolita: + +*FRAGIL! FRAGIL!* + +*843--AG LISBON* +*492--WR MADRID* + +Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosferica, +O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la +Á minha volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado +Pelo grande fluido insidioso, +Se volve, de grotesco--célere, +Imponderável, esbelto, leviano... +--Olha as mesas... Eia! Eia! +Lá vão todas no Ar ás cabriolas, +Em séries instantaneas de quadrados +Ali--mas já, mais longe, em lozangos desviados... +E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente, +E misturam-se ás mesas as insinuações berrantes +Das bancadas de veludo vermelho +Que, ladeando-o, correm todo o Café... +E, mais alto, em planos obliquos, +Simbolismos aereos de heraldicas ténues +Deslumbram os xadrezes dos fundos de palhinha +Das cadeiras que, estremunhadas em seu sôno horisontal, +Vá lá, se erguem tambem na sarabanda... + +Meus olhos ungidos de Novo, +Sim!--meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas, + +Não param de fremir, de sorver e faiscar +Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea, +Toda essa Beleza-sem-Suporte, +Desconjuntada, emersa, variavel sempre +E livre--em mutações continuas, +Em insondáveis divergencias... + +--Quanto á minha chávena banal de porcelana? + +Ah, essa esgota-se em curvas gregas de anfora, +Ascende num vértice de espiras +Que o seu rebordo frisado a ouro emite... + +É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!... + +... Dos longos vidros polidos que deitam sôbre a rua, +Agora, chegam teorias de vértices hialinos +A latejar cristalisações nevoadas e difusas. +Como um raio de sol atravessa a vitrine maior, +Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias, +Laços, grifos, setas, azes--na poeira multicolor--. + +*APOTEOSE.* + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +Junto de mim ressoa um timbre: +Laivos sonoros! +Era o que faltava na paisagem... +As ondas acusticas ainda mais a subtilisam: +Lá vão! Lá vão! Lá correm ágeis, +Lá se esgueiram gentis, franzinas côrsas d'Alma... + +Pede uma voz um numero ao telefone: +Norte--2, 0, 5, 7... +E no Ar eis que se cravam moldes de algarismos: + +ASSUNÇÃO DA BELEZA NUMÉRICA! +[Nota do Transcritor: Aqui surge a composição com números.] + +Mais longe um criado deixa cair uma bandeja... +Não tem fim a maravilha! +Um novo turbilhão de ondas prateadas +Se alarga em écos circulares, rútilos, farfalhantes +Como água fria a salpicar e a refrescar o ambiente... + +--Meus olhos extenuaram de Beleza! + +Inefavel devaneio penumbroso-- +Descem-me as palpebras vislumbradamente... + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +... Começam-me a lembrar aneis de jade +De certas mãos que um dia possuí-- +E ei-los, de sortílégio, já enroscando o Ar... +Lembram-me beijos--e sobem +Marchetações a carmim... + +Divergem hélices lantejoulares... +Abrem-se cristas, fendem-se gumes... +Pequenos timbres d'ouro se enclavinham... +Alçam-se espiras, travam-se cruzetas... +Quebram-se estrelas, sossobram plumas... + +Dorido, para roubar meus olhos á riqueza, +Fincadamente os cerro... +Embalde! Não ha defesa: +Zurzem-se planos a meus ouvidos, em catadupas, +Durante a escuridão-- +Planos, intervalos, quebras, saltos, declives... + +--Ó mágica teatral da atmosfera, +--Ó mágica contemporanea--pois só nós, +Os de Hoje, te dobrámos e fremimos! + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +Eia! Eia! +Singra o tropel das vibrações +Como nunca a exgotar-se em ritmos iriados! +Eu proprio sinto-me ir transmitido pelo ar, aos novelos! +Eia! Eia! Eia!... + +(Como tudo é diferente +Irrealisado a gás: +De livres pensadoras, as mesas fluidicas, +Diluidas, +São já como eu catolicas, e são como eu monarquicas!...) + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +Sereno. +Em minha face assenta-se um estrangeiro +Que desdobra o «Matin». +Meus olhos, já tranquilos de espaço, +Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres, +Começam a vibrar +Toda a nova sensibilidade tipografica. + +Eh-lá! grosso normando das manchettes em sensação! +Itálico afilado das crónicas diarias! +Corpo-12 romano, instalado, burguez e confortavel! +Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais! +Tipo miudinho dos pequenos anuncios! +Meu elzevir de curvas pederastas!... +E os ornamentos tipograficos, as vinhetas, +As grossas tarjas negras, +Os «puzzle» frivolos da pontuação, +Os asteriscos--e as aspas... os acentos... +Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!... + +[Nota do Transcritor: Aqui surge uma composição com caracteres.] + +--Abecedarios antigos e modernos, +Gregos, góticos, +Slavos, arabes, latinos--, +Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!... + +(Hip! Hip-lá! nova simpatia onomotopaica, +Rescendente da beleza alfabetica pura: +Uu-um... kess-kresss... vliiim... tlin... blong... flong... flak... +Pâ-am-pam! Pam... pam... pum... pum... Hurrah!) + +Mas o estrangeiro vira a página, +Lê os telegramas da Ultima-Hora, +Tão leve como a folha do jornal, +Num rodopio de letras, +Todo o mundo repousa em suas mãos! + +--Hurrah! por vós, industria tipografica! +--Hurrah! por vós, empresas jornalisticas! + +*MARINONI* *LINOTYPE* +*O SECULO* *BERLINER TAGEBLATT* +*LE JOURNAL* *LA PRENSA* +*CORRIERE DELLA SERA* *THE TIMES* +*NOVOÏE VREMIÁ* + +Por ultimo desdobra-se a folha dos anuncios... +--Ó emotividade zebrante do Reclamo, +Ó estética futurista--_up-to-date_ das marcas comerciais, +Das firmas e das taboletas!... + +*LE BOUILLON KUB* +*VIN DÉSILES* *PASTILLES VALDA* +*BELLE JARDINIÈRE* +*FONSECAS, SANTOS & VIANNA* HUNTLEY & PALMERS *"RODDY"* +_*Joseph Paquin, Bertholle & C.^ie*_ +_*LES PARFUMS DE*_ *COTY* +*SOCIÉTÉ GÉNÉRALE* +*CRÉDIT LYONNAIS* +*BOOTH LINE* *NORDDEUTSCHER LLOYD* +*COMPAGNE INTERNATIONAL DES WAGONS LITS +ET DES GRANDS EXPRESS EUROPÉENS* + +E a esbelta singeleza das firmas, LIMITADA. + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +Tudo isto, porêm, tudo isto, de novo eu refiro ao Ar +Pois toda esta Beleza ondeia lá tambem: +Numeros e letras, firmas e cartazes-- +Altos-relêvos, ornamentação!...-- +Palavras em liberdade, sons sem-fio, + +MARINETTI + PICASSO = PARIS < *SANTA RITA PIN- +TOR + FERNANDO PESSOA +ALVARO DE CAMPOS +!!!* + +Antes de me erguer lembra-me ainda, +A maravilha parisiense dos balcões de zinco, +Nos bares... não sei porquê... + +--_Un vermouth cassis_... _Un Pernod à l'eau_... +_Un amer-citron_... _une grenadine_... + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +Levanto-me... +--Derrota! +Ao fundo, em maior excesso, ha espelhos que reflectem +Tudo quanto oscila pelo Ar: +Mais belo através dêles, +A mais subtil destaque... +--Ó sonho desprendido, ó luar errado, +Nunca em meus versos poderei cantar, +Como anseara, até ao espasmo e ao Oiro, +Toda essa Beleza inatingivel, +Essa Beleza pura! + +Rólo de mim por uma escada abaixo... +Minhas mãos aperreio, +Esqueço-me de todo da ideia de que as pintava... +E os dentes a ranger, os olhos desviados, +Sem chapéu, como um possesso: +Decido-me! +Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos: + +--Hilá! Hilá! Hilá-hô! Eh! Eh!... + +Tum... tum... tum... tum tum tum tum... + +*VLIIIMIIIIM...* + +*BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH!...* + +*FUTSCH! FUTSCH!...* + +*ZING-TANG... ZING-TANG...* + *TANG... TANG... TANG...* + +*PRÁ Á K K!...* + + +_Lisboa--Maio de 1915._ + + +MARIO DE SÁ-CARNEIRO. + + + + + +[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de _Hors Texte_ de Santa Rita Pintor.] + + +*SANTA RITA PINTOR.* +PARIS ANNO 1913. + + +Compenetração estática interior de uma cabeça--complementarismo +congénito absoluto. + + +_(SENSIBILIDADE LITHOGRAPHICA.)_ + + + + + +*POEMAS* + +DE + +EDUARDO GUIMARAENS + + + + +_SOBRE O CYSNE DE STÉPHANE MALLARMÉ_ + + +Um sonho existe em nós como um cysne num lago +de agua profunda e clara e em cujo fundo existe +um outro cysne branco e ainda mais branco e triste +que a sua fórma real de um tom dolente e vago. + +Nada: e os gestos que tem, de caricia e de afago, +lembram da imagem tenue, onde a tristeza insiste +em ser mais alva, a graça inversa que consiste +a dolente mudez de um espelho presago. + +Um Cysne existe em nós como um sonho de calma, +placido, um Cysne branco e triste, longo e lasso +e puro, sobre a face occulta de nossa alma. + +E a sua imagem lembra a imagem de um destino +de pureza e de amôr que segue, passo a passo, +este Sonho immortal como um Cysne divino. + + + + +_FOLHAS MORTAS_ + + +Dêste relogio belga, enorme, branco e triste, +tombam as horas como folhas mortas. +Por uma tarde outomnal, triste de spleen e folhas mortas: +Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste. + +Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste +e as horas tombam como folhas mortas. +Porque não nasci eu um lirio nobre e triste, +pétala sem perfume entre essas folhas mortas? + +Um Versalhes fulgura em cada illusão triste, +um Versalhes de outomno atapetado de folhas mortas! +Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste +e as horas tombam como folhas mortas... + + + + +_SOB OS TEUS OLHOS SEM LAGRIMAS_ + + +Ah! não dirás por certo +que não te amei, que não soffri! +--Foi-me a tua alma assim como um salão deserto +onde, uma noite, me perdi. + +Um ramo de violetas fenecia +em cada movel amortalhado pelo pó; +a purpura das cortinas, rubra, estremecia +presa a cada janella. Eu hesitava, só. + +--E era meu coração, por ti quasi ferido, +á duvida infantil que o emmudecera já, +um velho piano adormecido +que ninguem mais acordará. + + +EDUARDO GUIMARAENS. + + + + + +*ATELIER* + + +NOVELA VERTÍGICA + +POR + +RAUL LEAL + + + + +*Atelier* + + +Em ondas de perfúme estranho as convulsivas exalações do Sonho +iluminam vágamente o lár sombrio do artista que outra luz quasi não +possue. A poucos pássos duma téla, profunda como a dor que ela evoca, +o modelo por entre as vibrações duma alucinação sinistra todo +vigorosamente contórce a alma, pelo semblante derramando a tortúra que +a alma cava. Compreende a árte, no seu espirito sente a expressão do +belo que todo o arrasta e anciósamente procurando ao artista transmitir +a sublime inspiração da dôr, fórte, arrebatadora, na própria fisionomia +a idialisa torturando o espirito que só assim, no semblante se +concretisa... pela dôr! É gigantesca a sua personalidade que ao bélo +tudo sacrifica, que só do bélo sábe vivér!... + +Envolvido nas trevas convulsivas que o seu espirito concebe, Luar +ardentemente transpira o delirio da morte, o espasmo eterno da +Existencia que só ele póde sentir, e é nesse ambiente de horror +vigorósamente concentrado nele, sintese suprema do Universo, é nesse +ambiente, forte e sublime, que Luar, o modelo idial, procura eternamente +arrastar a vida!... E o horror em que a sua alma se torna, ele domina +e... vigorisa...! + +Cresce nesse momento duma arte tragica que a matéria mal toca e em que +só o espirito vibra em vibrações transcendentes que mal se concretisam +pela sensação, cresce nesses instantes, apagados para a vida vulgar +que o intimo das cousas não concebe, que o espiritualismo convulsivo +da Existencia totalmente desconhece numa inconsciencia estranha, cresce +na alma de Luar a loucura sublime de espirito que a tenebrosa, a +imaterial vertigem do Universo, da Vida delirantemente acentua numa +tragedia divina, que o transcendentalismo ardente da Ancia todo +dolorosamente exprime pelo espasmódico histerismo que a Existencia +forma, pelo arrebatamento convulsivo do Sonho Universal!... E nesses +instantes tudo nele vibra, tudo que é nele o Espirito... Da sua +concepção trágica se alimenta, alimentando-se, assim, da sua alma, da +sua alma que se torna a alma da Existencia! + +No atelier do pintor Luar vigorosamente assim prepara a alma, preparando +assim, a expressão do semblante. E torna-se sublime, atinge a vertigem +do Infinito... Através do seu delirio, do sonho convulsivo que todo o +arrebata, ele desperta o artista que assim, todo se sublima tambem! É +Luar a própria inspiração que o artista eterisa... + +Num crescendo impetuoso o sonho em que Luar todo se torna, no génio +do pintor se evóla todo e, assim, o artista em que o sonho vágamente +se esbáte perdendo-se por fim, na mesma diáfana atmosféra idial se +eléva, trágicamente divinisando a alma!... Tudo é etéreo e profundamente +convulsivo; uma alucinação vibrante tudo transforma, tudo arrebata +no seu turbilhão genial...! Uma poderósa acção mediumnica a levitação +total das cousas, assim eterisadas, provoca então... E é Luar o fóco +tenebroso da alucinação sinistra que em redór se esbáte, vagificando-se +mais!... + +No arrebatamento vibrante em que a alma de Luar, em que Luar consigo +arrasta tudo, uma paixão crescente fortemente se esboça e ela que a +personalidade genial do modelo agita toda, nas convulsões da carne +toda se exprimindo, em ondas soluçantes d'ancia se espraia +impetuosamente através do éter nebuloso que todo se perde na mansão do +artista!... Formidavel se torna a paixão crescente que tudo arrebata +e tudo quer arrebatar... Como duendes infernaes que mal se esbocem, a +concepção doentia de Luar sombras efémeras vertiginosamente gera e +tudo que os sentidos ainda pode ferir, num paroxismo de loucura se +debate convulsivamente em estertôr qual caterva turbilhonaria de todas +as expressões da dôr que só uma alma vigorosa conceber póde! Sim, tudo +na alma de Luar se transforma e tudo ardentemente êle quer +transformar...! Ele quer transformar, tudo no seu espirito +arrebatando!... + +É para o artista que a sua alma trabalha, é pois, o artista que na sua +concepção mais se divinisa...! É êle o reflexo vibrante do seu sonho, +do sonho que o forma, em que convulsamente todo se eterisa...! Suprema +emanação se torna da sua alma!... Só a inspiração o sublima, o +personalisa--e a inspiração é Luar! + +Esse ser estranho que ele próprio criou e que na tela genialmente lhe +derrama a alma, Luar, cheio d'ancia, conservar quer no seu espirito e +transformando-se, então, em ondas de volúpia a sua paixão ardente, a +paixão da dôr, como laços infernais as lança ao artista que num +turbilhão de fôgo, o fogo da sua paixão, todo arrebatar quer para a +sua alma!... Uma luta intima, obscura se gera! Impetuosas são as +convulsões de espirito que, emanadas de Luar, a personalidade do +artista sacodem toda mas, como resplendor diáfano duma luz infinita, +no artista surgem esbatidas, perdendo-se através do espaço!... E Luar +isto pressente e o seu próprio sonho, na imaginação do pintor +rialisado, ele quasi deixa desprender... pelo temor duma vitória +alheia! A sua própria fôrça inspiradora o aterrorisa. Se rialmente o +artista se não deixasse enlevar no sonho de Luar, acaso na vaga +eterisação espiritual encontrar-se-hia?... Não e, assim, qualquer +fôrça esmagadora, de Luar mal vinda, abruptamente o não faria +despenhar-se na matéria em que já permaneceria e que o hábito tornaria +então, quasi insentivel. Luar teme ser incompreendido. Se toda a sua +paixão sobre o artista desencadear num deboche supremo, paroxismo da +arte, o artista que, simples reflexo do foco inspirador, o não atingiu +ainda, e nubelosa instável, simples irradiação do sonho em que +vagamente se banha, toda poderá romper, perdendo-se para sempre da +alma de Luar numa queda fatal. Mas a ancia é igualmente forte, a ancia +em completar a evolução do artista no foco tenebroso da sua alma!... +Porém, a fôrça infinita Luar não possue ainda, a sua fôrça esbate-se, +a continuidade do Infinito não contém... A arte, em seu luxurioso +paroxismo espasmo da dôr, ainda na alma do artista se define, se +concretisa em imagens, só a imagem ele concebe, não concebe o Espirito, +o Absoluto Indefinido que num deboche de espirito vertiginosamente se +desencadearia!... E acaso o vigôr duma luxúria transcendente e a +selvática brutalidade material o artista não poderá confundir, +despenhando-se do sonho diáfano que, emanado de Luar, nele se esboça, +apenas?... + +Luar quer o artista arrebatar emfim, por totalmente o interiorisar em +si através dum deboche convulsivo--ardentemente anceia mas o temor +hesitante o torna, o temor de ser incompreendido, de como simples +animal, cheio de cio, ser considerado, emfim, de perder para sempre a +alma a que tanto aspira!... Teme a sua fôrça e a sua fraqueza, a sua +fôrça que, por uma ilusão cruel, o horror da matéria pode desenrolar +perante o artista, erguido acima dela que, assim, desprezivel se +mostra, a sua fraqueza que mais não pode elevar o artista, mais, até +ao paroxismo da arte que é o paroxismo do deboche e... da dôr!... E o +artista admira Luar, não o sente, nas convulsões da sua alma não se +quer fundir... Não admiramos o que a nós é estranho, sentindo então, +o que já não admiramos?... + +E é horrivel a angústia em que Luar se debate, ele jámais sonhou uma +dôr assim! Como farrapos de nuvens tenebrosas numa dança macabra, +figuras vagas e obscuras da alma de Luar se erguem, dolorosamente se +contorcendo todas e todas vertiginosamente se debatendo numa loucura +genial, a loucura da Existencia, do Espirito..., e nessa vertigem +suprema em que a tortura e a convulsão doidamente se misturam, se +confundem, um ponto de luz sinistra, numa expressão vaga de sonho, ao +fundo se esboça através da lividez da morte e como que indiferente ao +turbilhão lúgubre de dôr que só a alma de Luar soube criar!... É o +artista que, espiritualisado na concepção sublime do modêlo, na +alucinação tenebrosa da sua alma estranha, ao longe vagueia a alma +perdidamente, num cinismo de estéta friamente admirando a dôr que, num +debate prodigioso, o espasmo da morte intensifica através dum cáos +infinito, duma vertigem convulsiva...! Sôfregos turbilhões a alma de +Luar do seu próprio âmago tenebroso arranca mas, quais vagas +impetuosas que todas se despedacem, se percam de encontro ao trágico +granito, as torrentes tempestuosas dêsse feérico oceano espiritual +todas aterrorisadoramente se quebram por entre as rígidas malhas +impenetráveis da alma do artista! + +Todo êsse convulsionismo gigantêsco que sublima Luar, essa ancia +invencivel, ardente de, por um deboche estulto, dominar o artista, o +modêlo mais não pode suportar e, caindo, então, numa prostração +infinda em que toda a sua alma se dissolve, como que um campo noturno +se torna duma batalha passada o qual uma luz pálida, sombria de lua +vagamente ilumine, a luz vaga que o artista da sua alma toda, então, +exála!... Foi o artista a luz vaga do ultimo quadrante quando, num +delirio de morte, numa cavalgada inconsciente, nuvens tenebrosas em +convulsões a envolvem sem a arrebatar, e agora, sempre sereno, frio, +lúgubre, a sua pálida luz derrama na alma do modêlo através duma vaga +neblina silenciosa, da névoa melancólica em que a alma de Luar toda +se exála, se esvai...! + +Mas uma torrente de fôgo Luar novamente abraza e do seu repouso +instantâneo, súbito, se erguendo, numa arrancada formidável sôbre o +artista se lança, cravando-o de beijos em que lhe quer arrebatar a +alma! Em convulsões que o repouso alimentou, todo o seu espirito se +põe, torna-se indomável, gigantêsco, impetuoso qual vaga rancorosa +que um vulcão eleve, qual torrente devastadora de Apocalypse Fatal!... + +O artista cheio de pasmo o olha, e naquela arrancada impetuosa ambos +na terra se despenham, esquecendo o sonho, a alucinação... A paz volta +aos espiritos, uma paz lúgubre, cheia de preságios sinistros! O +paroxismo da dôr não poude ser atingido, para ambos se perdeu...! +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + + +Passaram-se já alguns dias. O artista uma comoção profunda no seu +espirito sofre, sob um novo aspecto olha o modelo, já quási lhe sente +a alma... Encarna-se na tenebrosa escabrosidade do seu espírito +trágico, sente-o mais belo, mais profundo, sublime...! Os transes +variados em que bruscamente se lançára Luar naquela tarde tragica, +essa variedade de transes que o modelo tão vigorosamente suportára, +entontece-lhe a alma, já não o admira apenas, deseja-o e cheio de +ardor, de ancia!... + +Procura-o em toda a parte e, por fim, encontrando-o, repleto duma +luxuria de espirito lhe diz: «Jámais te compreendi, Luar, como agora +te compreendo. Talvez te não compreendesse ainda se logo tivesse +cedido ao teu desejo. Mas o tempo tive de refletir, de sonhar em ti. +A tua nobreza estranha que, após o meu pasmo, subitamente te acalmou +os nervos, fundamente me impressionou, os contrastes da tua alma são +maravilhosos e só a tua personalidade sublime, genial... a oscilações +bruscas de caráter poderia resistir! Quero-te pois, a tua ancia é, +hoje, a minha; sem os teus beijos profundos não posso passar, a minha +carne na tua se entranhará para que na tua alma se espiritualise +toda!...» E procura-lhe a boca. Luar suávemente o afasta, dizendo-lhe, +apenas: «Refleti tambem, sonhei... Amanhã conhecerás o meu sonho.» + +No dia seguinte, o artista recebe uma carta que os seguintes termos +contém: + + +_Meu querido amigo_ + + +Estranharás talvez que só agora te exponha o meu sonho derradeiro mas +preciso de toda a minha alma e, só quando escrevo, aos borbulhões +caudalosamente a broto de mim. Sem a pena, mantenho-me numa concentração +trágica, mal mostro aos outros o meu espirito. É que o derramamento +da alma no papel é ainda quási espiritual, a alma em excesso se não +exteriorisa, impuramente se não materialisando. + +Diz-me, se num drama, se numa tragédia vigorosa uma tempestade +formidavel, num paroxismo fatal, se desencadeasse toda, atingindo, por +fim, um limite definido que a banalisasse, acaso admirarias esse drama, +essa tragedia?... Pois bem, o indefinido a que na arte nós aspiramos, +essa ancia de idial que mais do que o idial para nós vale, essa ancia, +esse desejo infinito e jámais satisfeito deve encher a nossa vida que +a mais alta expressão se tornará assim, da arte pura!... + +É vertiginosa a Existencia e espiritual, transcendente é a vertigem +dela! Jámais a extensão conhece, no Espirito Puro que a extensão +transcende, a vertigem se personalisa, se consubstancia, se acentua +toda, não se espalha numa actividade mecanica, é a actividade +espiritual, o dinamismo puro!... Está nisso a sua beleza, a sua propria +existencia que, só assim, toda confundida num Todo, no Infinitesimal, +na Mónada, que só assim se acentua toda, só assim se dá!... É sublime +o convulsionismo espiritual e só ele é sublime! De que deriva a sua +sublimidade? Da sua energia que só no Espirito, na Mónada se acentua +toda!... + +Ha pois, na vertigem convulsiva da Existencia uma expansão tenebrosa. +Toda a actividade, a energia toda que a forma, no espaço e no tempo +não se expande, mantem-se torturada no Infinitesimal. É infinita, +eternamente tudo alcança, infinitesimalisa-se, espiritualisa-se pois... + +Só no transcendental existe, só nele eternamente se debate! + +Tem uma expansão, uma liberdade infinita que, como infinita, tudo +atinge eternamente, como que eternamente se autodestruindo assim!... +Se só no Transcendental existe, se é transcendente, se no mesmo +ponto infinitesimal, na Mónada, eternamente se debate é que a si +própria se contorce toda numa tortura infinita!... E não exprime a dôr +e sobretudo a ancia o convulsionismo transcendente, torturado, +contorcido da actividade pura, espiritual?... não é ela a expressão +sublime da Vertigem?... Na dôr, na ancia devemos viver! + +A transcendentalisação suprêma da energia pura, espiritualisando-a, em +absoluto a indefine, o Infinitesimal em que a energia eternamente se +debate, o indefinismo absoluto contêm. E ela propria, a própria +atividade em si não exprime já o Indefinido?... Quando transcendente, +é o indefinismo dela absoluto, ela torna-se a Vertigem! E que cousa é +a ancia, a ancia em si, senão o limiar privilegiado dessa Vertigem +Pura, o seu sintoma magnifico, a sua acentuação humana?... Ao indefinido +na arte aspiramos pois, a um indefinido cheio de tortura, «rafiné» +como o que o génio de Baudelaire compreendeu e quando essa tortura do +Indefinido enche o intimo da nossa alma, então, cheia d'ancia--e, +assim, Nietzsche quasi a desejou--ela quasi atinge o paroxismo eterno +da Existencia que toda se debate na Vertigem Infinita! E não só na +arte deve existir a ancia mas tambem na vida, a ancia dolorosa do +Indefinido!... + +A ancia não é só a dôr, não é qualquer dôr. Pode esta ser deprimente, +humilhante: e sempre o é quando não compreendida, quando em sua beleza +suprema sentida não pode ser!... A dôr forte, virilisadora, a dôr +profunda e amoral, a dôr em que o eu domine, dôr de espirito... é que +é a dôr suprema, a dôr estética! Dominar na dôr, sentir a fôrça de +viver nela, prazer infindo...! E a tortura transcendental da Existencia +em que a Vertigem toda se acentua, se impõe, se personalisa, a dôr +suprema, a dôr personalisadora não exprime toda?... + +Afastemos pois, a nossa carne. Se a satisfizéssemos, não, se +satisfizéssemos o espirito que, só êle, através da carne atua, +banalisar-nos-íamos, ao nosso drama daríamos um final burguez! Ele +teria um fim, um limite determinado de que, em breve, as nossas almas +se enfartariam decerto. Sejamos estétas, vivamos eternamente do desejo +que, só êle, personalisa a alma, para a nossa vista espiritual +gigantesca tornando-a!... É estranho o meu pedido mas, acaso, estranha +não é a Vertigem da Existencia?... + +Adeus!... + + +_Luar._ + + +_Janeiro de 1913._ + + +RAUL LEAL. + + +(Do livro inédito _Devaneios e Alucinações_.) + + + + + +*POEMAS* + +DUM ANÓNIMO OU ANÓNIMA QUE DIZ CHAMAR-SE + +VIOLANTE DE CYSNEIROS + + + + +*N. B.*--Apareceram-nos na Redacção estes belos poemas, que um anónimo +engenho doente realisou. Publicamo-los, porque disso são dignos, +importando-nos pouco a personalidade vital de que possam emanar. Toda +a obra de arte é a justificação de si-propria. + + +_Orpheu_. + + + + +_A ALVARO DE CAMPOS, + +O MESTRE._ + + +Na noite negra e antiga +Ha só a luz do Pharol: +Ora loira, côr do sol, +Ora vermelha, inimiga. + +No seio negro e profundo +Da noite em treva dormindo +O Pharol é Outro Mundo, +Ora chorando, ora rindo. + +Na noite negra, afinal, +Tudo a elle se limita: +Só o pharol é real! + +A treva nunca tem fim, +Ó sensação infinita, +--Sou já só Pharol de Mim! + + +_Junho, 1915._ + + + * * * * * + +Toda a minh'Alma se prende +Naquella forma de graça; +Mas não é na forma viva +Mas sim na Linha que passa. + +Toda a minh'Alma se prende, +Bate as Asas--esvoaça... +E é como a sombra distante +D'aquella Linha que passa. + +A vida é só o Espaço +Que vai da propria Linha +Á sombra d'ella num traço. + +Quando a Morte fôr vizinha, +Fundidas no mesmo Espaço +Será tudo a mesma Linha. + + +_Junho, 1915._ + + + + +_A ALVARO DE CAMPOS, + +O MESTRE._ + + +I + +Para Além d'aquelles montes +Não ha aves, nem ha fontes, +Nem ribeiros, nem campinas, +Nem casaes pelas collinas. + +Para Além d'aquelles montes +Não ha segredos de fontes, +Nem Sombras nas Alamedas, +Nem hervas, passos ou sedas. + +Para Além d'aquelles montes +Já não ha arcos de pontes, +Nem mãos finas de donzellas, +Nem lagos, barcos ou vellas. + + +II + +Para Além d'aquelles montes +Existe apenas Espaço! +Espaço e tempo são Pontes +Que Deus tem no seu regaço. + +Pontes que ligam de Auzente +Infinito e Eternidade. +Só sensações são Presente, +Só nellas vive a Verdade. + +Passado nunca passou, +Futuro não o terei: +Pois sempre Presente sou +No que Fui, Sou e Serei. + + +_Junho, 1915._ + + + + +_AO SR. MARIO DE SÁ-CARNEIRO._ + + +Ha pouco quando bordava +Picou-me a ponta dos dedos +A agulha com que bordava... + +E a seda toda de branca, +Branca da côr dos meus dedos, +Essa seda que era branca +Ficou com papoulas rubras... + +Que o sangue das minhas veias +Já creou papoulas rubras... + +Mas tão sós e tão alheias! + + +_Junho, 1915._ + + + + +_AO SR. FERNANDO PESSOA._ + + +Nada em Mim é necessario +Nem mesmo o que foi sonhado, +Ó contas do meu rosario +D'um sonho nunca acabado. + +Tudo tão feito de Mim... +Só meu longe de passado +É como um sonho sem fim +Que o Outro tenha sonhado. + +Cruso os meus braços. Não fallo. +Ouço uma voz dolorida +Dentro de Mim evoca-lo. + +Marinheiro! Ilha Perdida! +E o meu sentido a sonha-lo +É a verdade da vida. + + +_Junho, 1915._ + + + + +_AO SR. ALFREDO PEDRO GUISADO._ + + +Sobre misterios já idos +Ergui-me em curva e de pé +Do meu corpo fiz sentidos +Num sonho de Salomé. + +Curvos os olhos doridos... +Curvas as mãos e os braços... +Todo o meu corpo pedaços +Dos espelhos dos sentidos... + +Dancei... Dancei... E o Ver-Me +Toda de curva e de pé +Era o sentido de Ser-Me. + +Presente no meu olhar, +Eu fui Outra Salomé +Feita de Mim a dançar. + + +_Junho, 1915._ + + + + +_AO SR. CÔRTES-RODRIGUES._ + + +Passo no mundo a vivê-lo, +Passo no mundo a senti-lo, +E esta côr do meu cabello +É o vê-lo e o possuí-lo. + +Passo no mundo a sonhá-lo, +Numa forma de vivê-lo, +E o meu sentido d'olhá-lo +É o sentido de vê-lo. + +Só em Mim me concretiso, +E o Sonho da minha vida +Nesse Sonho o realiso. + +E sempre de Mim Presente, +Todo o Meu Ser se limita +Em Eu Me Ser Realmente. + + +_Junho, 1915._ + + + + +_A MIM PROPRIA + +DE HA DOIS ANNOS_ + + +As minhas mãos são esguias, +São fusos brancos d'arminho, +Onde fiaste e não fias +O Sonho do teu carinho. + +As minhas mãos são esguias, +Côr de rosa são as unhas, +E nellas todos os dias +Ponho a pomada que punhas. + +Quando Eu as fico polindo +Perpassa nellas em ancia +A tua boca sorrindo... + +Mas os meus dedos em i +Dizem a longa distancia +Que vae de Mim para Ti. + + +_Junho, 1915._ + + +VIOLANTE DE CYSNEIROS. + + + + + +*ODE MARÍTIMA* + +POR + +ALVARO DE CAMPOS + + +a Santa Rita Pintor. + + + + +*Ode marítima* + + +Sózinho, no cais deserto, a esta manhã de verão, +Ólho pró lado da barra, ólho pró Indefinido, +Ólho e contenta-me vêr, +Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. +Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira. +Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo. +Vem entrando, e a manhã entra com êle, e no rio, +Aqui, acolá, acorda a vida marítima, +Erguem-se velas, avançam rebocadores, +Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto. +Ha uma vaga brisa. +Mas a minh'alma está com o que vejo menos, +Com o paquete que entra, +Porque êle está com a Distância, com a Manhã, +Com o sentido marítimo desta Hora, +Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea, +Como um começar a enjoar, mas no espírito. + +Ólho de longe o paquete, com uma grande independência de alma, +E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente. + +Os paquetes que entram de manhã na barra +Trazem aos meus olhos comsigo +O mistério alegre e triste de quem chega e parte. +Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos +Doutro modo da mesma humanidade noutros portos. +Todo o atracar, todo o largar de navio, +É--sinto-o em mim como o meu sangue-- +Inconscientemente simbólico, terrivelmente +Ameaçador de significações metafísicas +Que perturbam em mim quem eu fui... + +Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! +E quando o navio larga do cais +E se repara de repente que se abriu um espaço +Entre o cais e o navio, +Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, +Uma névoa de sentimentos de tristeza +Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas +Como a primeira janela onde a madrugada bate, +E me envolve como uma recordação duma outra pessôa +Que fôsse misteriosamente minha. + +Ah, quem sabe, quem sabe, +Se não parti outrora, antes de mim, +Dum cais; se não deixei, navio ao sol +Oblíquo da madrugada, +Uma outra espécie de porto? +Quem sabe se não deixei, antes de a hora +Do mundo exterior como eu o vejo +Raiar-se para mim, +Um grande cais cheio de pouca gente, +Duma grande cidade meio-desperta, +Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética, +Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo? + +Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material, +Real, visível como cais, cais realmente, +O Cais Absoluto por cujo modêlo inconscientemente imitado, +Insensívelmente evocado, +Nós os homens construímos +Os nossos cais nos nossos portos, +Os nossos cais de pedra actual sôbre ágoa verdadeira, +Que depois de construídos se anunciam de repente +Cousas-Reais, Espíritos-Cousas, Entidades em Pedra-Almas, +A certos momentos nossos de sentimento-raiz +Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta +E, sem que nada se altere, +Tudo se revela diverso. + +Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações! +O Grande Cais Anterior, eterno e divino! +De que porto? Em que ágoas? E porque, penso eu isto? +Grande Cais como os outros cais, mas o Único. +Cheio como êles de silêncios rumorosos nas antemanhãs, +E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes +E chegadas de comboios de mercadorias, +E sob a nuvem negra e ocasional e leve +Do fumo das chaminés das fábricas próximas +Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha, +Como se fôsse a sombra duma nuvem que passasse sôbre água sombria. + +Ah, que essencialidade de mistério e sentidos parados +Em divino extase revelador +Ás horas côr de silêncios e angústias +Não é ponte entre qualquer cais e O Cais! + +Cais negramente reflectido nas águas paradas, +Bulício a bordo dos navios, +Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada, +Da gente simbólica que passa e com quem nada dura, +Que quando o navio volta ao porto +Ha sempre qualquer alteração a bordo! + +Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso! +Alma eterna dos navegadores e das navegações! +Cascos reflectidos de vagar nas ágoas, +Quando o navio larga do porto! +Fluctuar como alma da vida, partir como voz, +Viver o momento trémulamente sôbre ágoas eternas. +Acordar para dias mais directos que os dias da Europa, +Vêr portos misteriosos sôbre a solidão do mar, +Virar cabos longinqùos para súbitas vastas paisagens +Por inumeráveis encostas atónitas... + +Ah, as praias longinqùas, os cais vistos de longe, +E depois as praias proximas, os cais vistos de perto. +O mistério de cada ida e de cada chegada, +A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade +Dêste impossível universo +A cada hora marítima mais na própria pele sentido! +O soluço absurdo que as nossas almas derramam +Sôbre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe, +Sôbre as ilhas longinqùas das costas deixadas passar, +Sôbre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente, +Para o navio que se aproxima. + +Ah, a frescura das manhãs em que se chega, +E a palidez das manhãs em que se parte, +Quando as nossas entranhas se arrepanham +E uma vaga sensação parecida com um mêdo +--O mêdo ancestral de se afastar e partir, +O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo-- +Encolhe-nos a pele e agonia-nos, +E todo o nosso corpo angustiado sente, +Como se fôsse a nossa alma, +Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira: +Uma saudade a qualquer cousa, +Uma perturbação de afeições a que vaga patria? +A que costa? a que navio? a que cais? +Que se adoece em nós o pensamento, +E só fica um grande vácuo dentro de nós, +Uma ôca saciedade de minutos marítimos, +E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dôr +Se soubesse como sê-lo... + +A manhã de verão está, ainda assim, um pouco fresca. +Um leve torpôr de noite anda ainda no ar sacudido. +Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim. +E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida, +E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva. + +Na minha imaginação êle está já perto e é visível +Em toda a extensão das linhas das suas vigias, +E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele, +Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco +E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado obliqùo. + +Os navios que entram a barra, +Os navios que sáem dos portos, +Os navios que passam ao longe +(Supônho-me vendo-os duma praia deserta)-- +Todos êstes navios abstractos quasi na sua ida, +Todos êstes navios assim comóvem-me como se fôssem outra cousa +E não apenas navios, navios indo e vindo. + +E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar nêles, +Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas, +Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das dispensas, +Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto, +Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas, +Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo-- +Os navios vistos de perto são outra cousa e a mesma cousa, +Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira. + +Toda a vida marítima! tudo na vida marítima! +Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina +E eu scismo indeterminadamente as viagens. +Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte! +Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas! +As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico +Em que não sei porque sugestão aprendida na escola +Se sente pesar sôbre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos +E o mundo e o sabôr das cousas tornam-se um deserto dentro de nós! +A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico! +O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos! +O Mediterrâneo, dôce, sem mistério nenhum, clássico, um mar pra bater +De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas! +Todos os mares, todos os estreitos, todas as baïas, todos os gôlfos, +Queria apertá-los ao peito, sentí-los bem e morrer! + +E vós, ó cousas navais, meus velhos brinquedos de sonho! +Componde fora de mim a minha vida interior! +Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens, +Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas, +Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas, +Caí por mim dentro em montão, em monte, +Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão! +Sêde vós o tesouro da minha avareza febril, +Sêde vós os frutos da árvore da minha imaginação, +Têma de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência, +Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética, +Fornecei-me metáforas, imagens, literatura, +Porque em real verdade, a sério, literalmente, +Minhas sensações são um barco de quilha pró ar, +Minha imaginação uma âncora meio submersa, +Minha ânsia um remo partido, +E a tessitura dos meus nervos uma rêde a secar na praia! + +Sôa no acaso do rio um apito, só um. +Treme já todo o chão do meu psiquismo. +Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim. + +Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro +De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido! +Ah, a glória de se saber que um homem que andava comnosco +Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico! +Nós que andámos com êle vamos falar nisso a todos, +Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível +Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto +Que apenas o ter-se perdido o barco onde êle ia +E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado ágoa prós pulmões! + +Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela! +Vão rareando--ai de mim!--os navios de vela nos mares! +E eu, que amo a civilisação moderna, eu que beijo com a alma as máquinas, +Eu o engenheiro, eu o civilisado, eu o educado no estrangeiro, +Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira, +De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares! +Porque os mares antigos são a Distância Absoluta, +O Puro Longe, liberto do peso do Actual... +E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor, +Êsses mares, maiores, porque se navegava mais devagar. +Êsses mares, misteriosos, porque se sabia menos dêles. + +Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto. +Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo. +Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horisonte +São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios, +Da época lenta e veleira das navegações perigosas, +Da época de madeira e lona das viagens que duravam mêses. + +Toma-me pouco a pouco o delírio das cousas marítimas, +Penetram-me físicamente o cais e a sua atmosfera, +O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos, +E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das ágoas, +Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma +E a aceleração do volante sacode-me nítidamente. + +Chamam por mim as ágoas, +Chamam por mim os mares. +Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes, +As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar. + +Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, fôste tu +Que me ensinaste êsse grito antiqùíssimo, inglês, +Que tão venenosamente resume +Para as almas complexas como a minha +O chamamento confuso das ágoas, +A voz inédita e implícita de todas as cousas do mar, +Dos naufrágios, das viagens longinqùas, das travessias perigosas. +Êsse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue, +Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz, +Êsse grito tremendo que parece soar +De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu +E parece narrar todas as sinistras cousas +Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite... +(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas, +E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da bôca, +Fazendo porta-voz das grandes mãos cortidas e escuras: + +Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò--yyyy... +Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò--yyyy...) + +Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer cousa. +Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre. +Sinto corarem-me as faces. +Meus olhos conscientes dilatam-se. +O extase em mim levanta-se, cresce, avança, +E com um ruído cego de arruaça acentua-se +O giro vivo do volante. + +Ó clamoroso chamamento +A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim +Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias, +Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!... +Apêlo lançado ao meu sangue +Dum amôr passado, não sei onde, que volve +E ainda tem fôrça para me atraír e puxar, +Que ainda tem fôrça para me fazer odiar esta vida +Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica +Da gente real com que vivo! + +Ah, seja como fôr, seja para onde fôr, partir! +Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar, +Ir para Longe, ir para Fóra, para a Distância Abstrata, +Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas, +Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais! +Ir, ir, ir, ir de vez! +Todo o meu sangue raiva por asas! +Todo o meu corpo atira-se prá frente! +Galgo pla minha imaginação fora em torrentes! +Atropelo-me, rujo, precipito-me!... +Estoiram em espuma as minhas ânsias +E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochêdos! + +Pensando nisto--ó raiva! pensando nisto--ó fúria! +Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias, +Súbitamente, trémulamente, extraorbitadamente, +Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta, +Do volante vivo da minha imaginação, +Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando, +O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima. + +Eh marinheiros, gageiros! eh tripulantes, pilotos! +Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros! +Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros! +Homens que dormem em beliches rudes! +Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias! +Homens que dormem co'a Morte por travesseiro! +Homens que teem tombadilhos, que teem pontes donde olhar +A imensidade imensa do mar imenso! +Eh manipuladores dos guindastes de carga! +Eh amainadores de velas, fogueiros, criados de bordo! +Homens que metem a carga nos porões! +Homens que enrolam cabos no convez! +Homens que limpam os metais das escotilhas! +Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros! +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +Gente de bonet de pala! Gente de camisola de malha! +Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito! +Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada! +Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva, +Limpa de olhos de tanta imensidade diante dêles, +Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer! + +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +Homens que vistes a Patagonia! +Homens que passastes pela Austrália! +Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei! +Que fôstes a terra em terras onde nunca descerei! +Que comprastes artigos tôscos em colónias à prôa de sertões! +E fizestes tudo isso como se não fôsse nada, +Como se isso fôsse natural, +Como se a vida fôsse isso, +Como nem sequer cumprindo um destino! +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +Homens do mar actual! homens do mar passado! +Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto! +Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia! +Fenícios! Cartaginêses! Portuguêses atirados de Sagres +Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossivel! +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos! +Homens que negociastes pela primeira vez com pretos! +Que primeiro vendestes escravos de novas terras! +Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas! +Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas, +De encostas explodindo em verde vegetação! +Homens que saqueastes tranqùílas povoações africanas, +Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças, +Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes +Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa, +Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh-eh-eh! +A vós todos num, a vós todos em vós todos como um, +A vós todos misturados, entrecruzados, +A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados, +Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo! +Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à! + +Quero ir comvôsco, quero ir comvôsco, +Ao mesmo tempo com vós todos +Pra toda a parte pr'onde fôstes! +Quero encontrar vossos perigos frente a frente, +Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossas, +Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos, +Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas, +Chegar como vós, emfim, a extraordinários portos! +Fugir comvôsco à civilisação! +Perder comvôsco a noção da moral! +Sentir mudar-se no longe a minha humanidade! +Beber comvôsco em mares do sul +Novas selvagerias, novas balbúrdias da alma, +Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito! +Ir comvôsco, despir de mim--ah! põe-te daqui pra fora!-- +O meu traje de civilisado, a minha brandura de acções, +Meu mêdo inato das cadeias, +Minha pacífica vida, +A minha vida sentada, estática, regrada e revista! + +No mar, no mar, no mar, no mar, +Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas, +A minha vida! +Salgar de espuma arremessada pelos ventos +Meu paladar das grandes viagens. +Fustigar de ágoa chicoteante as carnes da minha aventura, +Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência, +Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de soes, +Meu ser ciclónico e atlântico, +Meus nervos postos como enxárcias, +Lira nas mãos dos ventos! + +Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações +E as minhas espáduas gosarão a minha cruz! +Atai-me às viagens como a postes +E a sensação dos postes entrará pela minha espinha +E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo! +Fazei o que quizerdes de mim, logo que seja nos mares, +Sôbre convezes, ao som de vagas, +Que me rasgueis, mateis, firais! +O que quero é levar prá Morte +Uma alma a transbordar de Mar, +Ébria a caír das cousas marítimas, +Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos, +Tanto das costas longinqùas como do ruído dos ventos, +Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios +Como dos tranqùílos comércios, +Tanto dos mastros como das vagas, +Levar prá Morte com dôr, voluptuosamente, +Um corpo cheio de sanguesugas, a sugar, a sugar, +De estranhas verdes absurdas sanguesugas marítimas! + +Façam enxárcias das minhas veias! +Amarras dos meus músculos! +Arranquem-me a pele, préguem-a às quilhas. +E possa eu sentir a dôr dos pregos e nunca deixar de sentir! +Façam do meu coração uma flâmula de almirante +Na hora de guerra dos velhos navios! +Cálquem aos pés nos convezes meus olhos arrancados! +Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas! +Fustíguem-me atado aos mastros, fustíguem-me! +A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes +Derramem meu sangue sôbre as ágoas arremessadas +Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado, +Nas vascas bravas das tormentas! + +Ter a audácia ao vento dos panos das velas! +Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos! +A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos, +Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem! + +Os marinheiros que se sublevaram +Enforcaram o capitão numa vêrga. +Desembarcaram um outro numa ilha deserta. +_Marooned!_ +O sol dos trópicos poz a febre da pirataria antiga +Nas minhas veias intensivas. +Os ventos da Patagonia tatuaram a minha imaginação +De imagens trágicas e obscenas. +Fôgo, fôgo, fôgo, dentro de mim! +Sangue! sangue! sangue! sangue! +Explode todo o meu cérebro! +Parte-se-me o mundo em vermelho! +Estoiram-me com o som de amarras as veias! +E estala em mim, feroz, voraz, +A canção do Grande Pirata, +A morte berrada do Grande Pirata a cantar +Até meter pavôr plas espinhas dos seus homens abaixo. +Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar: + + _Fifteen men on the Dead Man's Chest._ + _Yo-ho-ho and a bottle of rum!_ + +E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar: + +_Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!_ +_Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw!_ +_Fetch a-a-aft the ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby!_ + +Eia, que vida essa! essa era a vida, eia! +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à! +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! + +Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares! +Convezes cheios de sangue, fragmentos de corpos! +Dedos decepados sôbre amuradas! +Cabeças de creanças, aqui, acolá! +Gente de olhos fora, a gritar, a uivar! +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +Embrulho-me em tudo isto como numa capa no frio! +Roço-me por tudo isto como um gata com cio por um muro! +Rujo como um leão faminto para tudo isto! +Arremeto como um touro louco sôbre tudo isto! +Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sôbre isto! +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! + +De repente estala-me sôbre os ouvidos +Como um clarim a meu lado, +O velho grito, mas agora irado, metálico, +Chamando a presa que se avista, +A escuna que vai ser tomada: + +Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó--yyyy... +Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó--yyyy... + +O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho! +Rujo na fúria da abordagem! +Pirata-mór! César-Pirata! +Pilho, mato, esfacelo, rasgo! +Só sinto o mar, a presa, o saque! +Só sinto em mim bater, baterem-me +As veias das minhas fontes! +Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos! +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! + +Ah piratas, piratas, piratas! +Piratas, amai-me e odiai-me! +Misturai-me comvôsco, piratas! + +Vossa fúria, vossa crueldade como falam ao sangue +Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive! + +Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos, +Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas, +Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos convezes, +Trincasse velas, remos, cordâme e poleâme, +Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes! + +E ha uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas, +Ha uma orquestração no meu sangue de balbúrdias de crimes, +De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares, +Furibundamente, como um vendaval de calor pelo espírito, +Núvem de poeira quente anuviando a minha lucidez +E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias! + +Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora, +Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas, +E o terror dos apresados foge prá loucura--essa hora, +No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, núvens, +Brisa, latitude, longitude, vozearia, +Queria eu que fôsse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo, + +Que fôsse meu corpo e meu sangue, compozesse meu ser em vermelho, +Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma! + +Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes +Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações! +Ser quanto foi no lugar dos saques! +Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue! +Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge, +E a vítima-síntese, mas de carne e ôsso, de todos os piratas do mundo! + +Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres +Que fôram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas! +Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser dêles! +E sentir tudo isso--todas estas cousas duma só vez--pela espinha! + +Ó meus peludos e rudes herois da aventura e do crime! +Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação! +Amantes casuais da obliqùídade das minhas sensações! +Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos, +A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos! +Porque ela teria comvôsco, mas só em espírito, raivado +Sôbre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar! +Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica +Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos +Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladoras! +E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis, +Iria beber nos rugidos do vosso amôr todo o vasto, +Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias, +E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo! + +A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo! +Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis, +Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós, +A minha femininidade que vos acompanha é ser as vossas almas! +Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis! +Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações +Quando tingíeis de sangue os mares altos, +Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões +Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das creanças +E leváveis as mãis às amuradas para vêrem o que lhes acontecia! + +Estar comvôsco na carnágem, na pilhágem! +Estar orquestrado comvôsco na sinfonia dos saques! +Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós! +Não era só sêr-vos a fêmea, sêr-vos as fêmeas, sêr-vos as vítimas, +Sêr-vos as vítimas--homens, mulheres, creanças, navios--, +Não era só ser a hora e os barcos e as ondas, +Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse, +Não era só ser concretamente vosso acto abstrato de orgia, +Não era só isto que eu queria ser--era mais que isto, o Deus-isto! +Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário, +Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum pantheismo de sangue, +Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa, +Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade +Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias! + +Ah, torturai-me para me curardes! +Minha carne--fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam +Antes de caírem sôbre as cabeças e os ombros! +Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam! +Minha imaginação o corpo das mulheres que violais! +Minha inteligência o convez onde estais de pé matando! +Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo, +O grande organismo de que cada acto de pirataria que se cometeu +Fôsse uma célula consciente--e todo eu turbilhonasse +Como uma imensa podridão ondeando, e fôsse aquilo tudo! + +Com tal velocidade desmedida, pavorosa, +A máquina de febre das minhas visões transbordantes +Gira agora que a minha consciência, volante, +É apenas um nevoento círculo assobiando no ar. + + _Fifteen men on the Dead Man's Chest._ + _Yo-ho-ho and a bottle of rum!_ + +Eh-lahô-lahô-laHO--lahá-á-ááá--ààà... + +Ah! a selvageria desta selvageria! Merda +Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto! +Eu pr'àqui engenheiro, prático à forca, sensível a tudo, +Pr'àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando; +Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil; +Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Gloria, +Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta! + +Arre! por não poder agir d'acôrdo com o meu delírio! +Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilisação! +Por andar com a _douceur des moeurs_ às costas, como um fardo de rendas! +Môços de esquina--todos nós o sômos--do humanitarismo moderno! +Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos, +Sem coragem para ser gente com violência e audácia, +Com a alma como uma galinha presa por uma perna! + +Ah, os piratas! os piratas! +A ânsia do ilegal unido ao feroz +A ância das cousas absolutamente crueis e abomináveis, +Que roe como um cio abstrato os nossos corpos franzinos, +Os nossos nervos femininos e delicados, +E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vasios! + +Obrigai-me a ajoelhar diante de vós! +Humilhai-me e batei-me! +Fazei de mim o vosso escravo e a vossa cousa! +E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone, +Ó meus senhores! ó meus senhores! + +Tomar sempre gloriosamente a parte submissa +Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas! +Desabai sôbre mim, como grandes muros pesados, +Ó bárbaros do antigo mar! +Rasgai-me e feri-me! +De leste a oeste do meu corpo +Riscai de sangue a minha carne! +Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva +O meu alegre terror carnal de vos pertencer, +A minha ância masóquista em me dar à vossa fúria, +Em ser objecto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade, +Dominadores, senhores, imperadores, corcéis! +Ah, torturai-me, +Rasgai-me e abri-me! +Desfeito em pedaços conscientes +Entornai-me sôbre os convezes, +Espalhai-me nos mares, deixai-me +Nas praias ávidas das ilhas! + +Cevai sôbre mim todo o meu misticismo de vós! +Cinzelai a sangue a minh'alma! +Cortai, riscai! +Ó tatuadores da minha imaginação corpórea! +Esfoladores amados da minha carnal submissão! +Submetei-me como quem mata um cão a pontapés! +Fazei de mim o pôço para o vosso desprezo de domínio! + +Fazei de mim as vossas vítimas todas! +Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer +Por todas as vossas vítimas às vossas mãos, +Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados +Nos assaltos bruscos de amuradas! + +Fazei de mim qualquer cousa como se eu fôsse +Arrastado--ó prazer, ó beijada dôr!-- +Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós... +Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no *MA-A-A-AR!* +Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! *EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!* + +Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos, +Mares, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar! +Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Tudo canta a gritar! + + *FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST.* + *YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!* + +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +Hé-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á-á--ààà! + +*AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó--yyy!...* +*SCHOONER AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó----yyyy!...* + +Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw! +DARBY M'GRAW-AW-AW-AW-AW-AW-AW! +FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY! + +Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! +EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH! +EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH! +*EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!* +*EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!* + +Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu. +Senti de mais para poder continuar a sentir. +Esgotou-se-me a alma, ficou só um éco dentro de mim. +Decresce sensívelmente a velocidade do volante. +Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos. +Dentro de mim ha só um vácuo, um deserto, um mar nocturno. +E logo que sinto que ha um mar nocturno dentro de mim, +Sobe dos longes dêle, nasce do seu silêncio, +Outra vez, outra vez, o vasto grito antiqùíssimo. +De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura, +Súbitamente abrangendo todo o horizonte marítimo +Húmido e sombrio marulho humano nocturno, +Voz de sereia longinqùa chorando, chamando, +Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos, +E à tona dêle, como algas, boiam meus sonhos desfeitos... + +Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò--yy... +Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò----yy...... + +Ah, o orvalho sobre a minha excitação! +O frescôr nocturno no meu oceano interior! +Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar +Cheia do enorme misterio humanissimo das ondas nocturnas. +A lua sobe no horizonte +E a minha infancia feliz acorda, como uma lágrima, em mim. +O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo +Fôsse um arôma, uma voz, o eco duma canção +Que fôsse chamar ao meu passado +Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter. + +Era na velha casa socegada, ao pé do rio... +(As janelas do meu quarto, e as da casa de jantar tambem, +Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio proximo, +Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo... +Se eu agora chegasse ás mesmas janelas não chegava ás mesmas janelas. +Aquêle tempo passou como o fumo dum vapôr no mar alto...) + +Uma inexplicavel ternura, +Um remorso comovido e lacrimoso, +Por todas aquélas victimas--principalmente as crianças-- +Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo, +Emoção comovida, porque elas fôram minhas victimas; +Terna e suave, porque não o fôram realmente; +Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada, +Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida. + +Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas? +Que longe estou do que fui ha uns momentos! +Histería das sensações--ora estas, ora as apostas! +Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe +As cousas de acôrdo com esta emoção--o marulho das ágoas, +O marulho leve das ágoas do rio de encontro ao cais..., +A vela passando perto do outro lado do rio, +Os montes longinquos, dum azul japonez, +As casas de Almada, +E o que ha de suavidade e de infancia na hora matutina!... + +Uma gaivota que passa, +E a minha ternura é maior. + +Mas todo este tempo não estive a reparar para nada. +Tudo isto foi uma impressão só da pele, como uma caricia. +Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longinquo, +Da minha casa ao pé do rio, +Da minha infancia ao pé do rio, +Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite, +E a paz do luar esparso nas ágoas!... + +Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu..., +Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me +(Se bem que eu fôsse já crescido de mais para isso)... +Lembro-me e as lágrimas cáem sobre o meu coração e lavam-o da vida, +E ergue-se uma leve brisa maritima dentro de mim. +Ás vezes ela cantava a «Nau Catrinêta»: + + _Lá vai a Nau Catrinêta_ + _Por sobre as ágoas do mar..._ + +E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval, +Era a «Bela Infanta»... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim +E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto! +Como fui ingrato para ela--e afinal que fiz eu da vida? +Era a «Bela Infanta»... Eu fechava os olhos, e ela cantava: + + _Estando a Bela Infanta_ + _No seu jardim assentada..._ + +Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar +E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz. + + _Estando a Bela Infanta_ + _No seu jardim assentada,_ + _Seu pente de ouro na mão,_ + _Seus cabelos penteava..._ + +Ó meu passado de infancia, boneco que me partiram! + +Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição, +E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente! + +Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha. +Pensar nisto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter. +Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto. +Oh turbilhão lento de sensações desencontradas! +Vertigem tenue de confusas causas na alma! +Furias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam, +Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos, +Lágrimas, lágrimas inuteis, +Leves brisas de contradicção roçando pela face a alma... + +Evoco, por um esforço voluntario, para sahir desta emoção, +Evoco, com um esforço desesperado, sêco, nulo, +A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer: + + _Fifteen men on The Dead Man's Chest._ + _Yo-ho-ho and a bottle of rum!_ + +Mas a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim... + +Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma, +Outra vez, mas atravez duma imaginação quasi literaria, +A furia da pirataria, da chacina, o apetite, quasi do paladar, do saque, +Da chacina inutil de mulheres e de crianças, +Da tortura futil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres, +E a sensualidade de escangalhar e partir as cousas mais queridas dos outros, +Mas sonho isto tudo com um mêdo de qualquer cousa a respirar-me sobre a nuca. + +Lembro-me de que seria interessante +Enforcar os filhos á vista das mães +(Mas sinto-me sem querer as mães dêles), +Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos +Levando os pais em barcos até lá para vêrem +(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa). + +Aguilhôo uma ansia fria dos crimes maritimos, +Duma inquisição sem a desculpa da Fé, +Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria, +Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal, +Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo, +Como quem faz paciencias a uma mesa de jantar de provincia com a toalha atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar, +Só pelo suave gosto de cometer crimes abominaveis e não os achar grande cousa, +De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dôr mas nunca deixar chegar lá... +Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me. +Um calafrio arrepia-me. +E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo, +De repente--oh pavor por todas as minhas veias!--, +Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar! +Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente +A velha voz do marinheiro inglez Jim Barns, com quem eu falava, +Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim, das pequenas cousas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã, +Mas estupendamente vinda de além da aparência das cousas, +A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Bôca, +Vinda de sobre e de dentro da solidão nocturna dos mares, +Chama por mim, chama por mim, chama por mim... + +Vem surdamente, como se fôsse suprimida e se ouvisse, +Longinquamente, como se estivesse soando noutro logar e aqui não se pudesse ouvir, +Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um halito silencioso, +De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo, +O grito eterno e noturno, o sôpro fundo e confuso: + +Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô--yyy...... +Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô----yyy...... +Schooner ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô------yyy......... + +Tremo com um frio da alma repassando-me o corpo +E abro de repente os olhos, que não tinha fechado. +Ah, que alegria a de saír dos sonhos de vez! +Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nêrvos! +Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquêtes que chegam cêdo. + +Já não me importa o paquête que entrava. Ainda está longe. +Só o que está perto agora me lava a alma. +A minha imaginação higienica, forte, prática, +Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e uteis, +Com os navios de carga, com os paquêtes e os passageiros, +Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras. +Abranda o seu giro dentro de mim o volante. + +Maravilhosa vida maritima moderna, +Toda limpeza, maquinas e saúde! +Tudo tão bem arranjado, tão expontaneamente ajustado, +Todas as peças das maquinas, todos os navios pelos mares, +Todos os elementos da actividade comercial de exportação e importação +Tão maravilhosamente combinando-se +Que corre tudo como se fôsse por leis naturais, +Nenhuma cousa esbarrando com outra! + +Nada perdeu a poesia. E agora ha a mais as maquinas +Com a sua poesia tambem, e todo o novo genero de vida +Comercial, mundana, intelectual, sentimental, +Que a era das maquinas veiu trazer para as almas. +As viagens agora são tão belas como eram dantes +E um navio será sempre belo, só porque é um navio. +Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve-- +Em parte nenhuma, graças a Deus! + +Os portos cheios de vapores de muitas especies! +Pequenos, grandes, de varias côres, com varias disposições de vigias, +De tão deliciosamente tantas companhias de navegação! +Vapôres nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos! +Tão prasenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar, +No velho mar sempre o homerico, ó Ulisses! + +O olhar humanitario dos faróis na distância da noite, +Ou o subito farol proximo na noite muito escura +(«Que perto da terra que estavamos passando!» E o som da agua canta-nos ao ouvido)!... + +Tudo isto hoje é como sempre foi, mas ha o comercio; +E o destino comercial dos grandes vapôres +Envaidece-me da minha epoca! +A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros +Dá-me o orgulho moderno de viver numa epoca onde é tão facil +Misturarem-se as raças, transpôrem-se os espaços, vêr com facilidade todas as cousas, +E gosar a vida realisando um grande numero de sonhos. + +Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em rêdes de arame amarelo, +Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como gentlemen, +São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões, +Como gente perfeitamente consciente de como é higienico respirar o ar do mar. + +O dia é perfeitamente já de horas de trabalho. +Começa tudo a movimentar-se, a regularisar-se. + +Com um grande prazer natural e directo percorro com a alma +Todas as operações comerciaes necessarias a um embarque de mercadorias. +A minha época é o carimbo que levam todas as facturas, +E sinto que todas as cartas de todos os escritórios +Deviam ser endereçadas a mim. + +Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade, +E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna! +Rigôr comercial do principio e do fim das cartas: +Dear Sirs--Messieurs--Amigos e Snrs, +Yours faithfully--... nos salutations empressées... +Tudo isto é não só humano e limpo, mas tambêm belo, +E tem ao fim um destino maritimo, um vapôr onde embarquem +As mercadorias de que as cartas e as facturas tratam. + +Complexidade da vida! As facturas são feitas por gente +Que tem amores, odios, paixões politicas, ás vezes crimes-- +E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso! +Ha quem olhe para uma factura e não sinta isto. +Com certeza que tu, Cesario Verde, o sentias. +Eu é até ás lagrimas que o sinto humanissimamente. +Venham dizer-me que não ha poesia no comercio, nos escritórios! +Ora, ela entra por todos os póros... Neste ar maritimo respiro-a, +Porque tudo isto vem a proposito dos vapôres, da navegação moderna, +Porque as facturas e as cartas comerciaes são o principio da historia +E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim. + +Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras, +As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros +Duma maneira especial, como se um misterio maritimo +Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento +Patriotas transitorios duma mesma patria incerta, +Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das ágoas! +Grandes hoteis do Infinito, oh transatlanticos meus! +Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto +E conterem todas as especies de trajes, de caras, de raças! + +As viagens, os viajantes--tantas especies dêles! +Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente! +Tanto destino diverso que se póde dar á vida, +Á vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! +Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas +E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente. +A fraternidade afinal não é uma idéa revolucionaria. +É uma cousa que a gente aprende pela vida fóra, onde tem que tolerar tudo, +E passa a achar graça ao que tem que tolerar, +E acaba quasi a chorar de ternura sobre o que tolerou! + +Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado +Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burguezes, +Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes! +A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano. +Pobre gente! pobre gente toda a gente! + +Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio +Que vai agora saíndo. É um tramp-steamer inglês, +Muito sujo, como se fosse um navio francês, +Com um ar simpatico de proletario dos mares, +E sem duvida anunciado ontem na última página das gazetas. + +Enternece-me o pobre vapôr, tão humilde vai êle e tão natural. +Parece ter um certo escrupulo não sei em quê, ser pessoa honesta, +Cumpridora duma qualquer especie de deveres. +Lá vai êle deixando o lugar defronte do cais onde estou. +Lá vai êle tranquilamente, passando por onde as naus estiveram +Outrora, outrora... +Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importancia. +Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida! +Boa viagem! Boa viagem! +Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favôr +De levar comtigo a febre e a tristeza dos meus sonhos, +E restituir-me á vida para olhar para ti e te ver passar. +Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto... + +Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino +Na tua saída do porto de Lisboa, hoje! +Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso... +Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa... +Com um ligeiro estremecimento, +(T-t--t---t----t-----t...) +O volante dentro de mim pára. + +Passa, lento vapôr, passa e não fiques... +Passa de mim, passa da minha vista, +Vai-te de dentro do meu coração, +Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus, +Perde-te, segue o teu destino e deixa-me... +Eu quem sou para que chore e interrogue? +Eu quem sou para que te fale e te ame? +Eu quem sou para que me perturbe vêr-te? +Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro, +Luzem os telhados dos edificios do cais, +Todo o lado de cá da cidade brilha... +Parte, deixa-me, torna-te +Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nitido, +Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto, +Depois ponto vago no horizonte (ó minha angustia!), +Ponto cada vez mais vago no horizonte..., +Nada depois, e só eu e a minha tristeza, +E a grande cidade agora cheia de sol +E a hora real e nua como um cais já sem navios, +E o giro lento do guindaste que como um compasso que gira, +Traça um semicirculo de não sei que emoção +No silencio comovido da minh'alma... + + +ALVARO DE CAMPOS, + +_Engenheiro._ + + + + + +[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de _Hors Texte_ de Santa Rita Pintor.] + + +*SANTA RITA PINTOR.* +PARIS ANNO 1913. + + +Syntese geometral de uma cabeça--infinito plastico de ambiente-- +transcendentalismo phisico. + + +_(SENSIBILIDADE RADIOGRAPHICA.)_ + + + + + +_LUÍS DE MONTALVÔR_ + + +*NARCISO* + +POEMA + + +a Fernando Pessôa. + + + + +*NARCISO* + + +Erram no oiro da tarde as sombras de estas ninfas! + +E até onde irá o aroma dos seus gestos +que sei tentam prender meus olhos que, funestos, +sonham um esplendor fatal de pedrarias? + +Tarde de tentação! Que estranhas melodias +inquietam o ceo de um rumor ignorado? +Seringe! Tua flauta arrosa de encantado +e sangue de Ilusão esta tarde em demencia +que a legenda recorda; e da immortal essencia +do sonho esta hora antiga exhuma o velho idilio. + +Ha mãos de festa e sonho em meu deserto exilio! + +A Beleza é pra mim, ó ninfas! o segredo +com que Deus me vestiu de Lindo!... Ai, tenho medo +de morrer o que sou ás mãos desse desejo +das ninfas; mas está a sombra que não vejo +depois e antes de mim e, se afundo o olhar na ancia +de me ver, só me vejo ao collo da Distancia! +Deixai dormir um pouco o ceo nos olhos meus, +eu não os quero abrir antes que os feche,--Deus!-- + +Ninfas! vós penteais o pavor á janella +da minha alma atravez a hora sombria e bella. +Corôas não serão sobre mim as de flôres +que desfolhais, mas brancos braços de amôres +que abrem nocturnamente e num paiz sem dia... + +Sois o sonho de mim ao collo da Alegria! +Vossa presença põe o medo em meu destino. + +As taças que entornais do aroma sibillino +da seducção, de tédio enchem o que me déste, +ó Deus! + Gela meu ser ao sorriso terrest'e +das virgens, que reflecte a tarde a rescender +do olor de Pan! + ... E o olhar dóe por no o esconder +do ceo; pois para toda a alma dormir, do bello, +o serafico azul é como um pezadêlo! + +Porêm como fugir ao sonho que me faz +como estrangeiro em mim; do bello azul, voraz +a bôca triste, sem côr e de humanas dôres-- +como se triunfal e de palidas flôres +da noite, fôssem de um sonho, na hora escultado? + +Captivo em mim sou como o dragão que, inviolado, +bebe a scintillação da s'nora claridade +do cabello sinistro, onde a luz arde e invade +de metalico hallor o nixo onde se acoite... + +Vossos cabellos ai! chovem como oiro, á noite! +como fios de horror da teia do mistério... + +Do cabello, o esplendor do oiro esteril, é aério +c'mo de arachnideo sonho ou de siderio tecto +cinzelado no olhar--um reflexo de insecto-- +no frio vôo num ar de somno e oiro e luto... + +Avalanches de tédio em seu cabello escuto!... + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +Fixo a carne, spectral, como ante inerte frizo +de sombras, a nudez, linha esquecida em riso +sobre chammas, cruel,--Joia dos calafrios!-- +Um horror de ónix néva entre os meus dedos frios! + +Contemplo o meu destino em mim. + Ninfas, adeus! +Meus gestos irreaes tem seculos de Deus! +Na paisagem do ser corre um rio sem fim: +Os meus gestos são como a outra margem de mim... +Cai alma no jardim dos meus sonhos funestos. +É sempre noite lá no fundo dos meus gestos +onde espreita Deus: ha luar nas minhas mãos... +As mãos abanam no ar os nossos gestos vãos, +--mundos de sonolencia ardendo em reliquarios: +Joias celestes, vós, meus gestos solitarios! + +Por mim divaga o ceo. E morre um diadêma +á minha fronte triste e pensativa, emblêma +da alma palida como um velho pálio ou ouro... +Comtudo que torpor me encosta ao sorvedouro +c'mo esfinge que se inclina ao abysmo e debruça, +a mirar a alma, irmã de um sonho que soluça? +É que um gesto sem nome em minha alma se aclara, +e no Jardim de Deus sou a ideia mais rara! + +Meus gestos vão como esta agua sempre correndo +pra a foz do nada; encosto a minha alma, tremendo, +á voz da agua--cristal sonoro do alhear-me!-- + +No novelo de mim a minha ancia a enredar-me. + +Ó agua sempre triste em seu ir pela parte +da terra que é livida e c'mo alma que se farte +de sonhos! Não será a minha sombra ausente +um ar vosso--ou serei a imagem da corrente? + +Quem descesse o mistério e visse a semelhança +nesse intimo torpor das cousas, onde cansa +essa fuga do tempo em sombra reflectida... +Eu nunca terei dois gestos irmãos na vida, +e se olhasse pra traz t'ria medo de mim... +(Inter-lunio de nós no sonho d'alêm-fim...) + +O que me reflectir roubará meu segredo. +O tempo escorre por nós como alguem com medo +por sobre um muro... Crio olhos de ser distante... +Na alma porei as mãos como por um quadrante... +As mãos são tempo... e tudo é um somno de si... + +Miro-me, e não serei a sombra onde me ví?... + +Ó espelho sem hora! Ó agua em somno, lustral, +--espelho horizontal de tédio c'mo um canal +sem ter fundo nem fim. Meu perfil sua dôr! +Só me reflicto e não me vejo no torpor +da agua que abana o tempo... ai, o tempo é a voz +com que se acorda o medo--escultura de nós +na distancia... + Em rumor, na agua, vago demencia +e durmo de Beleza ao collo da Aparencia, +que foge como esta agua e este tempo a correr... +Marulhar de mim no fundo do meu ser... +Só as mãos sabem ter o ar de sonhos contin'os... + +Ai! Se o olhar cai nas mãos, desenham-se destinos +como arabescos... + Abro os braços, mas em vão, +e ergo-me de mim com vestes de comoção! + +Resta-me contemplar pela noite que inundo +de mim, pendido sobre a aparencia do mundo. +Minha sombra exilada esculto-a na doçura! + +Perturbo-me de Deus nos braços da Ternura! + +Sinto que a minha voz já atravessou Deus!... +Cresço sobre mim, ó noite em delirio! + Adeus! +Imagem de ser bello ás mãos da minha infancia. + +Sou echo de rumor quebrado na distancia. + +Alma da noite antiga incendiada a lavores! + + +LUÍS DE MONTALVÔR. + + + + + +[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de _Hors Texte_ de Santa Rita Pintor.] + + +*SANTA RITA PINTOR.* +PARIS ANNO 1912. + + +Decomposição dynamica de uma mesa--estylo do movimento. + + +_(INTERSECCIONISMO PLASTICO.)_ + + + + + +*CHUVA OBLÍQUA* + + +POEMAS INTERSECCIONISTAS + +DE + +FERNANDO PESSOA + + + + + +*Chuva obliqua* + + +*I* + +Atravessa esta paysagem o meu sonho d'um porto infinito +E a côr das flôres é transparente de as velas de grandes navios +Que largam do caes arrastando nas aguas por sombra +Os vultos ao sol d'aquellas arvores antigas... + +O porto que sonho é sombrio e pallido +E esta paysagem é cheia de sol d'este lado... +Mas no meu espirito o sol d'este dia é porto sombrio +E os navios que sahem do porto são estas arvores ao sol... + +Liberto em duplo, abandonei-me da paysagem abaixo... +O vulto do caes é a estrada nitida e calma +Que se levanta e se ergue como um muro, +E os navios passam por dentro dos troncos das arvores +Com uma horizontalidade vertical, +E deixam cahir amarras na agua pelas folhas uma a uma dentro... + +Não sei quem me sonho... +Súbito toda a agua do mar do porto é transparente +E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, +Esta paysagem toda, renque de arvores, estrada a arder em aquelle porto, +E a sombra d'uma náu mais antiga que o porto que passa +Entre o meu sonho do porto e o meu vêr esta paysagem +E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, +E passa para o outro lado da minha alma... + + +*II* + +Illumina-se a egreja por dentro da chuva d'este dia, +E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça... + +Alegra-me ouvir a chuva porque ella é o templo estar acceso, +E as vidraças da egreja vistas de fóra são o som da chuva ouvido por dentro... + +O esplendôr do altar-mór é o eu não poder quasi vêr os montes +Atravez da chuva que é ouro tão solemne na toalha do altar... +Sôa o canto do côro, latino e vento a sacudir-me a vidraça +E sente-se chiar a agua no facto de haver côro... + +A missa é um automovel que passa +Atravez dos fieis que se ajoelham em hoje ser um dia triste... +Subito vento sacode em esplendôr maior +A festa da cathedral e o ruido da chuva absorve tudo +Até só se ouvir a voz do padre agua perder-se ao longe +Com o som de rodas de automovel... + +E apagam-se as luzes da egreja +Na chuva que cessa... + + +*III* + +A Grande Esphynge do Egypto sonha por este papel dentro... +Escrevo--e ella apparece-me atravez da minha mão transparente +E ao canto do papel erguem-se as pyramides... + +Escrevo--perturbo-me de vêr o bico da minha penna +Ser o perfil do rei Cheops... +De repente paro... +Escureceu tudo... Caio por um abysmo feito de tempo... +Estou soterrado sob as pyramides a escrever versos á luz clara d'este candieiro +E todo o Egypto me esmaga de alto atravez dos traços que faço com a penna... +Ouço a Esphynge rir por dentro +O som da minha penna a correr no papel... +Atravessa o eu não poder vel-a uma mão enorme, +Varre tudo para o canto do tecto que fica por detraz de mim, +E sobre o papel onde escrevo, entre elle e a penna que escreve +Jaz o cadaver do rei Cheops, olhando-me com olhos muito abertos, +E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo +E uma alegria de barcos embandeirados erra +Numa diagonal diffusa +Entre mim e o que eu penso... + +Funeraes do rei Cheops em ouro velho e Mim!... + + +*IV* + +Que pandeiretas o silencio d'este quarto!... +As paredes estão na Andaluzia... +Ha danças sensuaes no brilho fixo da luz... + +De repente todo o espaço pára..., +Pára, escorrega, desembrulha-se..., +E num canto do tecto, muito mais longe do que elle está, +Abrem mãos brancas janellas secretas +E ha ramos de violetas cahindo +De haver uma noite de primavera lá fóra +Sobre o eu estar de olhos fechados... + + +*V* + +Lá fora vae um redemoinho de sol os cavallos do carroussel... +Arvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim... +Noite absoluta na feira illuminada, luar no dia de sol lá fóra, +E as luzes todas da feira fazem ruido dos muros do quintal... +Ranchos de raparigas de bilha á cabeça +Que passam lá fóra, cheias de estar sob o sol, +Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira, +Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar, +E os dois grupos encontram-se e penetram-se +Até formarem só um que é os dois... +A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira, +E a noite que pega na feira e a levanta no ar, +Andam por cima das copas das arvores cheias de sol, +Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol, +Apparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam á cabeça, +E toda esta paysagem de primavera é a lua sobre a feira, +E toda a feira com ruidos e luzes é o chão d'este dia de sol... + +De repente alguem sacode esta hora dupla como numa peneira +E, misturado, o pó das duas realidades cahe +Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos +Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar... +Pó de ouro branco e negro sobre os meus dedos... +As minhas mãos são os passos d'aquella rapariga que abandona a feira, +Sósinha e contente como o dia de hoje... + + +*VI* + +O maestro sacode a batuta, +E languida e triste a musica rompe... + +Lembra-me a minha infancia, aquelle dia +Em que eu brincava ao pé d'um muro de quintal +Atirando-lhe com uma bola que tinha d'um lado +O deslisar d'um cão verde, e do outro lado +Um cavallo azul a correr com um jockey amarello... + +Prosegue a musica, e eis na minha infancia +De repente entre mim e o maestro, muro branco, +Vae e vem a bola, ora um cão verde, +Ora um cavallo azul com um jockey amarello... + +Todo o theatro é o meu quintal, a minha infancia +Está em todos os logares, e a bola vem a tocar musica +Uma musica triste e vaga que passeia no meu quintal +Vestida de cão verde tornando-se jockey amarello. +(Tão rapida gira a bola entre mim e os musicos...) + +Atiro-a de encontro á minha infancia e ella +Atravessa o theatro todo que está aos meus pés +A brincar com um jockey amarello e um cão verde +E um cavallo azul que apparece por cima do muro +Do meu quintal... E a musica atira com bolas +Á minha infancia... E o muro do quintal é feito de gestos +De batuta e rotações confusas de cães verdes +E cavallos azues e jockeys amarellos... + +Todo o theatro é um muro branco de musica +Por onde um cão verde corre atraz da minha saudade +Da minha infancia, cavallo azul com um jockey amarello... + +E d'um lado para o outro, da direita para a esquerda, +D'onde ha arvores e entre os ramos ao pé da copa +Com orchestras a tocar musica, +Para onde ha filas de bolas na loja onde a comprei +E o homem da loja sorri entre as memorias da minha infancia... + +E a musica cessa como um muro que desaba, +A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, +E do alto dum cavallo azul, o maestro, jockey amarello tornando-se preto, +Agradece, pousando a batuta em cima da fuga d'um muro, +E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça, +Bola branca que lhe desapparece pelas costas abaixo... + + +_8 de Março de 1914._ + + +FERNANDO PESSÔA. + + + + +Preço 30 centavos + + +LISBOA + +TIPOGRAPHIA DO COMERCIO +Rua da Oliveira, ao Carmo, 10 + +TELEFONE 2724 + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Orpheu Nº2, by +Mário de Sá-Carneiro and Fernando António Nogueira Pessoa and Ângelo Vaz Pinto Azevedo Coutinho de Lima and Luís de Montalvor + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ORPHEU Nº2 *** + +***** This file should be named 23621-8.txt or 23621-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/3/6/2/23621/ + +Produced by Vasco Salgado + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +http://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. 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