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| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-15 02:06:00 -0700 |
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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Orpheu Nº1 + Revista Trimestral de Literatura + +Author: Luís de Montalvor + Mário de Sá-Carneiro + Ronald de Carvalho + Fernando António Nogueira Pessoa + José Sobral de Almada Negreiros + +Release Date: November 25, 2007 [EBook #23620] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ORPHEU Nº1 *** + + + + +Produced by Vasco Salgado + + + + +ORPHEU + + + + +*"ORPHEU"* + +REVISTA TRIMESTRAL DE LITERATURA + + +PORTUGAL E BRAZIL + +Propriedade de: ORPHEU, L.^da Editor: ANTONIO FERRO + + +_DIRECÇÃO_ + +PORTUGAL + +Luiz de Montalvôr--17, Caminho do Forno do Tijolo--LISBOA + +BRAZIL + +Ronald de Carvalho--104, Rua Humaytá--RIO DE JANEIRO + + +*ANO I--1915* *N.^o 1* *Janeiro-Fevereiro-Março* + + +*SUMARIO* + +LUIZ DE MONTALVÔR _Introducção_ +MARIO DE SÁ-CARNEIRO _Para os "Indicios de Oiro"_ (poemas) +RONALD DE CARVALHO _Poemas_ +FERNANDO PESSOA _O Marinheiro_ (drama estático) +ALFREDO PEDRO GUISADO _Treze sonetos_ +JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS _Frizos_ (prosas) +CÔRTES-RODRIGUES _Poemas_ +ALVARO DE CAMPOS _Opiário_ e _Ode Triunfal_ + + +*Capa desenhada por José Pacheco* + + +Oficinas: Tipografia do Comércio--10, Rua da Oliveira, ao Carmo + +LISBOA + + + + +*CONDIÇÕES* + + +Toda a correspondencia deve ser dirigida aos Directores. + + +Convidamos todos os Artistas cuja simpatia esteja com a indole desta +Revista a enviarem-nos colaboração. No caso de não ser inserta +devolveremos os originais. + + +São nossos depositarios em Portugal os srs. Monteiro & C.^a, Livraria +Brazileira--190 e 192, Rua Aurea, Lisboa. + + +*Orpheu* publicará um numero incerto de paginas, nunca inferior a 72, +ao preço invariavel de 30 centavos o numero avulso, em Portugal, e +1$500 réis fracos no Brazil. + + +*ASSINATURAS* + +(AO ANO--SÉRIE DE 4 NUMEROS) + +Portugal, Espanha e Colonias portuguesas 1 escudo +Brazil 5$000 réis (moeda fraca) +União Postal 6 francos + + + + +*Livraria Brazileira de MONTEIRO & C.^a--Editores* +190 e 192, RUA AUREA--LISBOA + + +Á venda no fim de abril: + + +*CÉU EM FOGO* + +NOVELAS POR + +MARIO DE SÁ-CARNEIRO + + +A GRANDE SOMBRA--MISTÉRIO +O HOMEM DOS SONHOS--ASAS--EU-PRÓPRIO O OUTRO +A ESTRANHA MORTE DO PROF. ANTENA +O FIXADOR DE INSTANTES--RESURREIÇÃO + + +1 VOLUME DE 350 PAGINAS + + +CAPA DESENHADA POR + +JOSÉ PACHECO + + +Preço 70 centavos + + + + +*Obras dos colaboradores dêste numero* + + +LUIZ DE MONTALVÔR + +_A Caminho_, uma plaquette de versos +Edição da Livraria Brazileira +Preço: 20 centavos + + +MARIO DE SÁ-CARNEIRO + +_Amizade_, peça em 3 actos (com colaboração de Tomás Cabreira J.^or) +Edição da Livraria Bordalo +Preço: 30 centavos + +_Principio_, novelas +Edição da Livraria Ferreira +Preço: 70 centavos + +_Dispersão_, 12 poesias +Edição do autor +Exgotada + +_A Confissão de Lucio_, narrativa +Edição do autor +Preço: 60 centavos + + +RONALD DE CARVALHO + +_Luz Gloriosa_, poemas +Paris 1913. Edição do autor + + +FERNANDO PESSOA + +_As sete salas do palacio abandonado_, poemas +Em preparação + + +ALFREDO PEDRO GUISADO + +_Rimas da Noite e da Tristeza_, versos +Edição da Livraria Classica Editora +Preço: 40 centavos + +_Distância_, poemas +Edição da Livraria Ferreira +Preço: 30 centavos + + +JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS + +_Frizos_, prosas ilustradas pelo autor +A saír este ano + + +ALVARO DE CAMPOS + +_Arco do Triunfo_ +Em preparação + + +Qualquer destas obras pode ser requisitada directamente ao administrador +de ORPHEU--Alfredo Pedro Guisado: 112, Rocio, Lisboa. + + +No nosso segundo numero (a sair em junho) contamos publicar, entre +outras obras, as seguintes: _Poemas_ de Fernando Pessoa, _Mundo +Interior_, novela de Mario de Sá-Carneiro e _Narcisso_, poema de Luiz +de Montalvôr. + + +A fotogravura da capa foi executada nos ateliers da ILUSTRADORA + + + + +*ORPHEU* + +VOL. I--1915 + + + + +*ORPHEU* + +REVISTA TRIMESTRAL DE LITERATURA + +VOLUME I + + +LISBOA +TYPOGRAPHIA Do COMMERCIO +10, RUA DA OLIVEIRA (AO CARMO), 10 + +1915 + + + + +_INTRODUCÇÃO_ + + +_O que é propriamente revista em sua essencia de vida e quotidiano, +deixa-o de ser_ ORPHEU_, para melhor se engalanar do seu titulo e +propôr-se. + +E propondo-se, vincula o direito de em primeiro lugar se desassemelhar +de outros meios, maneiras de formas de realisar arte, tendo por notavel +nosso volume de Beleza não ser incaracteristico ou fragmentado, como +literarias que são essas duas formas de fazer revista ou jornal. + +Puras e raras suas intenções como seu destino de Beleza é o do:--Exilio! + +Bem propriamente,_ ORPHEU_, é um exilio de temperamentos de arte que +a querem como a um segrêdo ou tormento... + +Nossa pretenção é formar, em grupo ou ideia, um numero escolhido de +revelações em pensamento ou arte, que sobre este principio aristocratico +tenham em_ ORPHEU _o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos +e conhecermo-nos. + +A photographia de geração, raça ou meio, com o seu mundo immediato de +exhibição a que frequentemente se chama literatura e é sumo do que para +ahi se intitula revista, com a variedade a inferiorisar pela egualdade +de assumptos (artigo, secção ou momentos) qualquer tentativa de +arte--deixa de existir no texto preocupado de_ ORPHEU_. + +Isto explica nossa ansiedade e nossa essencia! + +Esta linha de que se quer acercar em_ Beleza_,_ ORPHEU_, necessita de +vida e palpitação, e não é justo que se esterilise individual e +isoladamente cada um que a sonhar nestas cousas de pensamento, lhes +der orgulho, temperamento e esplendor--mas pelo contrario se unam em +selecção e a dêem aos outros que, da mesma especie, como raros e +interiores que são, esperam ansiosos e sonham nalguma cousa que lhes +falta,--do que resulta uma procura esthética de permutas: os que nos +procuram e os que nós esperamos... + +Bem representativos da sua estructura, os que a formam em_ ORPHEU_, +concorrerão a dentro do mesmo nivel de competencias +para o mesmo rithmo, em elevação, unidade e discreção, de onde +dependerá a harmonia esthética que será o typo da sua especialidade. + +E assim, esperançados seremos em ir a direito de alguns desejos de bom +gosto e refinados propositos em arte que isoladamente vivem para ahi, +certos que assignalamos como os primeiros que somos em nosso meio, +alguma cousa de louvavel e tentamos por esta forma, já revelar um +signal de vida, esperando dos que formam o publico leitor de selecção, +os esforços do seu contentamento e carinho para com a realisação da +obra literaria de_ ORPHEU_._ + + +LUIS DE MONTALVÔR. + + + + + +*PARA OS "INDICIOS DE OIRO"* + +POEMAS DE + +MARIO DE SÁ-CARNEIRO + + + + +*TACITURNO* + + +Ha Ouro marchetado em mim, a pedras raras, +Ouro sinistro em sons de bronzes medievais-- +Joia profunda a minha Alma a luzes caras, +Cibório triangular de ritos infernais. + +No meu mundo interior cerraram-se armaduras, +Capacetes de ferro esmagaram Princesas. +Toda uma estirpe rial de herois d'Outras bravuras +Em mim se despojou dos seus brazões e presas. + +Heraldicas-luar sobre ímpetos de rubro, +Humilhações a liz, desforços de brocado; +Bazilicas de tédio, arnezes de crispado, +Insignias de Ilusão, troféus de jaspe e Outubro... + +A ponte levadiça e baça de Eu-ter-sido +Enferrujou--embalde a tentarão descer... +Sobre fossos de Vago, ameias de inda-querer-- +Manhãs de armas ainda em arraiais de olvido... + +Percorro-me em salões sem janelas nem portas, +Longas salas de trôno a espessas densidades, +Onde os pânos de Arrás são esgarçadas saudades, +E os divans, em redór, ansias lassas, absortas... + +Ha rôxos fins de Imperio em meu renunciar-- +Caprichos de setim do meu desdem Astral... +Ha exéquias de herois na minha dôr feudal-- +E os meus remorsos são terraços sobre o Mar... + + +_Paris--Agosto de 1914_ + + + + +*SALOMÉ* + + +Insónia rôxa. A luz a virgular-se em mêdo, +Luz morta de luar, mais Alma do que a lua... +Ela dança, ela range. A carne, alcool de nua, +Alastra-se pra mim num espasmo de segrêdo... + +Tudo é capricho ao seu redór, em sombras fátuas... +O arôma endoideceu, upou-se em côr, quebrou... +Tenho frio... Alabastro!... A minh'Alma parou... +E o seu corpo resvala a projectar estátuas... + +Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me, +Golfa-me os seios nus, ecôa-me em quebranto... +Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me: + +Mordoura-se a chorar--ha sexos no seu pranto... +Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me +Na bôca imperial que humanisou um Santo... + + +_Lisboa 1913--Novembro 3_ + + + + +*CERTA VOZ NA NOITE, RUIVAMENTE...* + + +Esquivo sortilégio o dessa voz, opiada +Em sons côr de amaranto, ás noites de incerteza, +Que eu lembro não sei d'Onde--a voz duma Princesa +Bailando meia nua entre clarões de espada. + +Leonina, ela arremessa a carne arroxeada; +E bêbada de Si, arfante de Beleza, +Acera os seios nus, descobre o sexo... Reza +O espasmo que a estrebucha em Alma copulada... + +Entanto nunca a vi, mesmo em visão. Sómente +A sua voz a fulcra ao meu lembrar-me. Assim +Não lhe desejo a carne--a carne inexistente... + +É só de voz-em-cio a bailadeira astral-- +E nessa voz-Estátua, ah! nessa voz-total, +É que eu sonho esvaír-me em vicios de marfim... + + +_Lisboa 1914--Janeiro 31_ + + + + +*NOSSA SENHORA DE PARIS* + + +Listas de som avançam para mim a fustigar-me +Em luz. +Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?... +Os braços duma cruz +Anseiam-se-me, e eu fujo tambem ao luar... + +Um cheiro a maresia +Vem-me refrescar, +Longinqua melodia +Toda saudosa a Mar... +Mirtos e tamarindos +Odoram a lonjura; +Resvalam sonhos lindos... +Mas o Oiro não perdura, +E a noite cresce agora a desabar catedrais... +Fico sepulto sob círios-- +Escureço-me em delirios, +Mas ressurjo de Ideais... + +--Os meus sentidos a escoarem-se... +Altares e vélas... +Orgulho... Estrelas... +Vitrais! Vitrais! + +Flores de liz... + +Manchas de côr a ogivarem-se... +As grandes naves a sagrarem-se... +--Nossa Senhora de Paris!... + + +_Paris 1913--Junho 15_ + + + + +*16* + + +Esta inconstancia de mim próprio em vibração +É que me ha de transpôr ás zonas intermédias, +E seguirei entre cristais de inquietação, +A retinir, a ondular... Soltas as rédeas, +Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar +A tôrre d'ouro que era o carro da minh'Alma, +Transviarão pelo deserto, muribundos de Luar-- +E eu só me lembrarei num baloiçar de palma... +Nos oásis, depois, hão de se abismar gumes, +A atmosfera ha de ser outra, noutros planos: +As rãs hão de coaxar-me em roucos tons humanos +Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes... + + * * * * * + +Ha sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos... +A cada passo a minha alma é outra cruz, +E o meu coração gira: é uma roda de côres... +Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo... +Já não é o meu rastro o rastro d'oiro que ainda sigo... +Resvalo em pontes de gelatina e de bolôres... +Hoje, a luz para mim é sempre meia-luz... + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +As mesas do Café endoideceram feitas ar... +Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai êle a valsar +Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei... + +(Subo por mim acima como por uma escada de corda, +E a minha Ansia é um trapézio escangalhado...). + + +_Lisboa--Maio de 1914_ + + + + +*DISTANTE MELODIA...* + + +Num sonho d'Iris, morto a ouro e brasa, +Vem-me lembranças doutro Tempo azul +Que me oscilava entre véus de tule-- +Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa. + +Então os meus sentidos eram côres, +Nasciam num jardim as minhas ansias, +Havia na minh'alma Outras distancias-- +Distancias que o segui-las era flôres... + +Caía Ouro se pensava Estrelas, +O luar batia sobre o meu alhear-me... +Noites-lagôas, como éreis belas +Sob terraços-liz de recordar-me!... + +Idade acorde d'Inter sonho e Lua, +Onde as horas corriam sempre jade, +Onde a neblina era uma saudade, +E a luz--anseios de Princesa nua... + +Balaústres de som, arcos de Amar, +Pontes de brilho, ogivas de perfume... +Dominio inexprimivel d'Ópio e lume +Que nunca mais, em côr, hei de habitar... + +Tapêtes doutras Persias mais Oriente... +Cortinados de Chinas mais marfim... +Aureos Templos de ritos de setim... +Fontes correndo sombra, mansamente... + +Zimbórios-panthéons de nostalgias... +Catedrais de ser-Eu por sobre o mar... +Escadas de honra, escadas só, ao ar... +Novas Byzancios-alma, outras Turquias... + +Lembranças fluidas... cinza de brocado... +Irrealidade anil que em mim ondeia... +--Ao meu redór eu sou Rei exilado, +Vagabundo dum sonho de sereia... + + +_Paris 1914--Junho 30_ + + + + +*VISLUMBRE* + + +A horas flébeis, outonais-- +Por magoados fins de dia-- +A minha Alma é água fria +Em ânforas d'Ouro... entre cristais... + + +_Camarate--Quinta da Vitória. +Outubro de 1914._ + + + + +*SUGESTÃO* + + +As companheiras que não tive, +Sinto-as chorar por mim, veladas, +Ao pôr do sol, pelos jardins... +Na sua mágoa azul revive +A minha dôr de mãos finadas +Sobre setins... + + +_Paris--Agosto de 1914_ + + + + +*7* + + +Eu não sou eu nem sou o outro, +Sou qualquer coisa de intermédio: + Pilar da ponte de tédio + Que vai de mim para o Outro. + + +_Lisboa--Fevereiro de 1914_ + + + + +*ANGULO* + + +Aonde irei neste sem-fim perdido, +Neste mar ôco de certezas mortas?-- +Fingidas, afinal, todas as portas +Que no dique julguei ter construido... + +--Barcaças dos meus impetos tigrados, +Que oceano vos dormiram de Segrêdo? +Partiste-vos, transportes encantados, +De embate, em alma ao rôxo, a que rochêdo?... + +--Ó nau de festa, ó ruiva de aventura +Onde, em Champanhe, a minha ansia ia, +Quebraste-vos tambem ou, por ventura, +Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?... + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +Chegaram á baía os galeões +Com as séte Princesas que morreram. +Regatas de luar não se correram... +As bandeiras velaram-se, orações... + +Detive-me na ponte, debruçado, +Mas a ponte era falsa--e derradeira. +Segui no cais. O cais era abaulado, +Cais fingido sem mar á sua beira... + +--Por sôbre o que Eu não sou ha grandes pontes +Que um outro, só metade, quer passar +Em miragens de falsos horizontes-- +Um outro que eu não posso acorrentar... + + +_Barcelona--Setembro de 1914_ + + + + +*A INEGUALAVEL* + + +Ai, como eu te queria toda de violetas +E flébil de setim... +Teus dedos longos, de marfim, +Que os sombreassem joias pretas... + +E tão febril e delicada +Que não podesses dar um passo-- +Sonhando estrelas, transtornada, +Com estampas de côr no regaço... + +Queria-te nua e friorenta, +Aconchegando-te em zibelinas-- +Sonolenta, +Ruiva de éteres e morfinas... + +Ah! que as tuas nostalgias fôssem guisos de prata-- +Teus frenesis, lantejoulas; +E os ócios em que estiolas, +Luar que se desbarata... + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +Teus beijos, queria-os de tule, +Transparecendo carmim-- +Os teus espasmos, de sêda... + +--Água fria e clara numa noite azul, +Água, devia ser o teu amor por mim... + + +_Lisboa 1915--Fevereiro 16_ + + + + +*APOTEOSE* + + +Mastros quebrados, singro num mar d'Ouro +Dormindo fôgo, incerto, longemente... +Tudo se me igualou num sonho rente, +E em metade de mim hoje só móro... + +São tristezas de bronze as que inda chóro-- +Pilastras mortas, marmores ao Poente... +Lagearam-se-me as ansias brancamente +Por claustros falsos onde nunca óro... + +Desci de mim. Dobrei o manto d'Astro, +Quebrei a taça de cristal e espanto, +Talhei em sombra o Oiro do meu rastro... + +Findei... Horas-platina... Olor-brocado... +Luar-ansia... Luz-perdão... Orquideas pranto... + +. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . + +--Ó pantanos de Mim--jardim estagnado... + + +_Paris 1914--Junho 28_ + + +MARIO DE SÁ-CARNEIRO. + + + + + +*POEMAS* + +DE + +RONALD DE CARVALHO + + + + +*A ALMA QUE PASSA* + + +*I--Sentido* + +Fujo de mim como um perfume antigo +foge ondulante e vago de um missal +e julgo uma alma estranha andar commigo, +dizendo adeus a uma aventura irreal. + +Sou transparencia, chamma pallida, ansia, +ultima nau que abandonou o caes. +No alvôr das minhas mãos chora a distancia +prôas rachadas, longes de ouro, ideaes... + +Sonho meu corpo como de um ausente, +naufrágo e exsurjo dentro da memoria, +accórdo num jardim convalescente, + +vago perdido em outros num jardim, +e sinto no clarão da ultima gloria +a sombra do que sou morrer em mim... + + +*II--Legenda* + +A Vida é uma princeza dolorosa +no seu castelo de rubis e opalas, +tanjendo ao poente em harpa silenciosa +uma agonia de almas e de falas... + +Colho de tuas mãos a triste rosa, +Vida que és sombra e sobre mim resvalas. +Passas, e em tua sombra a ondear saudosa +vagam fantasmas de desertas salas... + +(Vozes perdidas, juramentos a esmo, +passos que morrem sobre passos, sinos +accórdam madrugadas em mim mesmo. + +E entre trompas, tambores e metralha, +claveharpas, orgãos, tubas e violinos +a Vida e a Dôr começam a batalha...) + + +*III--Genese* + +Antes a alma que tenho andou perdida, +foi pedrouço a rolar pelo caminho, +topazio, opala, perola esquecida +num bracelete real; foi caule e espinho, + +bronze que a mão tocou, aurea jazida +por entre as ruinas de um paiz maninho, +e reflectiu, fatal, o olhar da Vida +no corpo em sangue de um estranho vinho... + +Foi casco medieval, foi lança e escudo, +foi luz lunar e errante de lanterna, +e depois de exsurgir, triste, de tudo + +veio para chorar dentro em meu ser +a amarga maldição de ser eterna +e a dôr de renascer quando eu morrer... + + + + +*LAMPADA NOCTURNA* + + +Tonta de somno e de doçura +no alto das garras de marfim +perdida em sombra a luz procura. +Alguem morreu dentro de mim... + +Pela janela triste e escura +que abre os balcões para o jardim +sóbe um perfume de amargura. +Alguem morreu dentro de mím... + +E vaes rompendo silenciosa +com o fino teu punhal de luxo +no ultimo vaso a ultima rosa... + +E o caule nú reflecte agora +no teu olhar como um repuxo +que implora o azul e não demora... + + + + +*TORRE IGNOTA* + + +Da sombra se ergue e não demóra +nas mãos que a cingem desejosas +o ar a fascina sempre e agora +e as linhas lava luminosas + +O talhe inquieta a luz por fóra +sonham chimeras dolorosas +e não floresce na haste da hóra +nem a volupia de outras rosas + +Só de ser unica levanta +como um sorriso a pedraria +que o som dos bronzes acalanta + +Da sombra se ergue para a gloria +e a mão que a esflóra é argila fria +num vôo branco de memoria + + + + +*O ELOGIO DOS REPUXOS* + + +Dôr dos repuxos ao Sol-Pôr agonisando +em plumas e marfins, em rosas de ouro e luz... +Canto da água que desce em poeira, leve e brando, +canto da água que sobe e onde o jardim transluz. + +Dormem sinos na bruma--a cinza tem affagos... +Sombras de antigas náos, velas altas a arfar, +passam em turbilhões pelo fundo dos lagos, +(a aventura, a conquista, a ansia eterna do mar!) + +Repuxos a morrer sobre si mesmos, lentos-- +curvos leques a abrir e a fechar num adejo, +--mão vencida que vem de vãos incitamentos, +mão nervosa que vai mais cheia de desejo... + +Volupia de fugir--ser longe e ser distancia, +e tornar logo ao cais e de novo partir! +Volupia--desejar e não possuir, ser ansia... +Repuxos a descer, repuxos a subir... + +Não fixar emoções, volupia de esquecê-las, +andar dentro de si perdido na memória... +(Caçadores ideais de mundos e de estrelas-- +repuxos ao Sol-Pôr cheios de magoa e glória...) + +Dôr dos repuxos ao crepusculo cantando! +desespero, alegria--o labio, a mão... e um beijo. +Dôr dos repuxos, dôr sangrando, dôr sonhando-- +ir tocar a ilusão e morrer em desejo... + + + + +*REFLEXOS* + +_(Poema da Alma enferma)_ + + +Minha alma treme como um lirio +dentro da água dos teus olhos-- +minha alma treme como um lirio, +com as mãos varadas por abrolhos. + +Toda de linho de noivado, +á tua porta a tremer, +toda de linho de noivado +minha alma vai amanhecer. + +Anda um perfume de alêm-morte +na sua voz dolorida, +anda um perfume de alêm-morte +nas vestes pálidas da vida... + +A hora lilaz desabotôa +em flôres de cinza e braza, +a hora lilaz desabotôa +com um rumor sonambulo de asa. + +Pelo canal resam os barcos +cheios de graça e de glória... +pelo canal resam os barcos +a triste história da memória... + +Minha alma accorda o caes deserto, +florida em rosas de magoa-- +minha alma accorda o caes deserto, +e a sua sombra é um cysne na água... + +E sobre as lampadas extintas +tombam funebres antenas, +e sobre as lampadas extintas +morrem as ultimas falenas. + +As torres scismam pelo espaço. +No silencio erram violinos-- +as torres scismam pelo espaço... +na penumbra cogitam sinos... + +Minha alma toda se enclausura +no jardim que entardeceu... +minha alma toda se enclausura +num beijo irreal que não nasceu... + +Dentro da água dos teus olhos +minha alma treme como um lirio... + + +RONALD DE CARVALHO. + + + + + +_FERNANDO PESSOA_ + + +*O MARINHEIRO* + +DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO + + +a Carlos Franco. + + + + +Um quarto que é sem duvida num castello antigo. Do quarto vê-se que é +circular. Ao centro ergue-se, sobre uma eça, um caixão com uma +donzella, de branco. Quatro tochas aos cantos. Á direita, quasi em +frente a quem imagina o quarto, ha uma unica janella, alta e estreita, +dando para onde só se vê, entre dois montes longinquos, um pequeno +espaço de mar. + +Do lado da janella velam trez donzellas. A primeira está sentada em +frente á janella, de costas contra a tocha de cima da direita. As +outras duas estão sentadas uma de cada lado da janella. + +É noite e ha como que um resto vago de luar. + + +*Primeira veladora*.--Ainda não deu hora nenhuma. + +*Segunda*.--Não se podia ouvir. Não ha relogio aqui perto. Dentro +em pouco deve ser dia. + +*Terceira*.--Não: o horizonte é negro. + +*Primeira*.--Não desejaes, minha irmã, que nos entretenhamos contando +o que fômos? É bello e é sempre falso... + +*Segunda*.--Não, não fallemos d'isso. De resto, fômos nós alguma +cousa? + +*Primeira*.--Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é bello +fallar do passado... As horas teem cahido e nós temos guardado +silencio. Por mim, tenho estado a olhar para a chamma d'aquella vela. +Ás vezes treme, outras torna-se mais amarella, outras vezes empallidece. +Eu não sei porque é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas +irmãs, porque se dá qualquer cousa?... + + +(uma pausa) + + +*A mesma*.--Fallar do passado--isso deve ser bello, porque é inútil +e faz tanta pena... + +*Segunda*.--Fallemos, se quizerdes, de um passado que não tivessemos +tido. + +*Terceira*.--Não. Talvez o tivessemos tido... + +*Primeira*.--Não dizeis senão palavras. É tão triste fallar! É um +modo tão falso de nos esquecermos!... Se passeassemos?... + +*Terceira*.--Onde? + +*Primeira*.--Aqui, de um lado para o outro. Ás vezes isso vai buscar +sonhos. + +*Terceira*.--De quê? + +*Primeira*.--Não sei. Porque o havia eu de saber? + + +(uma pausa) + + +*Segunda*.--Todo este paiz é muito triste... Aquelle onde eu vivi +outr'ora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada á minha +janella. A janella dava para o mar e ás vezes havia uma ilha ao longe... +Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de +viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquillo que talvez +eu nunca fôsse... + +*Primeira*.--Fóra de aqui, nunca vi o mar. Alli, d'aquella janella, +que é a unica de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de +outras terras é bello? + +*Segunda*.--Só o mar das outras terras é que é bello. Aquelle +que nós vemos dá-nos sempre saudades d'aquelle que não veremos +nunca... + + +(uma pausa) + + +*Primeira*.--Não diziamos nós que iamos contar o nosso passado? + +*Segunda*.--Não, não diziamos. + +*Terceira*.--Porque não haverá relogio neste quarto? + +*Segunda*.--Não sei... Mas assim, sem o relogio, tudo é mais +afastado e mysterioso. A noite pertence mais a si-propria... Quem +sabe se nós poderiamos fallar assim se soubessemos a hora que é? + +*Primeira*.--Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo dezembros +na alma... Estou procurando não olhar para a janella... Sei que de +lá se vêem, ao longe, montes... Eu fui feliz para além de montes, +outr'ora... Eu era pequenina. Colhia flôres todo o dia e antes de +adormecer pedia que não m'as tirassem... Não sei o que isto tem de +irreparavel que me dá vontade de chorar... Foi longe d'aqui que +isto pôde ser... Quando virá o dia?... + +*Terceira*.--Que importa? Elle vem sempre da mesma maneira... +sempre, sempre, sempre... + + +(uma pausa) + + +*Segunda*.--Contemos contos umas ás outras... Eu não sei contos +nenhuns, mas isso não faz mal... Só viver é que faz mal... Não +rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... Não, não vos +levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho... +Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar +que o podia estar tendo... Mas o passado--porque não fallâmos nós +d'elle? + +*Primeira*.--Decidimos não o fazer... Breve raiará o dia e arrepender-nos-hemos... +Com a luz os sonhos adormecem... O passado +não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho... Se +ólho para o presente com muita attenção, parece-me que elle já passou... +O que é qualquer cousa? Como é que ella passa? Como é +por dentro o modo como ella passa?... Ah, fallemos, minhas irmãs, +fallemos alto, fallemos todas juntas... O silencio começa a tomar +corpo, começa a ser cousa... Sinto-o envolver-me como uma nevoa... +Ah, fallae, fallae!... + +*Segunda*.--Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo... +Parece-me que entre nós se augmentaram abysmos... Tenho que +cançar a idéa de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos... +Este ar quente é frio por dentro, naquella parte que toca na alma... +Eu devia agora sentir mãos impossiveis passarem-me pelos cabellos... +As mãos pelos cabellos--é o gesto com que fallam das +sereias... _(Cruza as mãos sobre os joelhos. Pausa.)_ Ainda ha pouco, +quando eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado... + +*Primeira*.---Eu tambem devia ter estado a pensar no meu... + +*Terceira*.--Eu já não sei em que pensava... No passado dos +outros talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... +Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho... Porque é +que correria, e porque é que não correria mais longe, ou mais +perto?... Ha alguma razão para qualquer cousa ser o que é? Ha +para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?... + +*Segunda*.--As mãos não são verdadeiras nem reaes... São mysterios +que habitam na nossa vida... Ás vezes, quando fito as minhas +mãos, tenho medo de Deus... Não ha vento que mova as chammas +das velas, e olhae, ellas movem-se... Para onde se inclinam ellas?... +Que pena se alguem pudesse responder!... Sinto-me desejosa de +ouvir musicas barbaras que devem agora estar tocando em palacios +de outros continentes... É sempre longe na minha alma... Talvez porque, +quando creança, corri atraz das ondas á beira-mar. Levei a vida +pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado +as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estatua de +anjo para que nunca mais ninguem olhasse... + +*Terceira*.--As vossas phrases lembram-me a minha alma... + +*Segunda*.--É talvez por não serem verdadeiras... Mal sei que as +digo... Repito-as seguindo uma voz que não ouço que m'as está +segredando... Mas eu devo ter vivido realmente á beira-mar... Sempre +que uma causa ondeia, eu amo-a... Ha ondas na minha alma... +Quando ando embalo-me... Agora eu gostaria de andar... Não o +faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se +quer fazer... Dos montes é que eu tenho medo... É impossivel que +elles sejam tão parados e grandes... Devem ter um segredo de pedra +que se recusam a saber que teem... Se d'esta janella, debruçando-me, +eu pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-hia um momento da +minha alma alguem em quem eu me sentisse feliz... + +*Primeira*.--Por mim, amo os montes... Do lado de cá de todos +os montes é que a vida é sempre feia... Do lado de lá, onde mora +minha mãe, costumavamos sentarmo-nos á sombra dos tamarindos e +fallar de ir ver outras terras... Tudo alli era longo e feliz como +o canto de duas aves, uma de cada lado do caminho... A floresta +não tinha outras clareiras senão os nossos pensamentos... E os nossos +sonhos eram de que as arvores projectassem no chão outra calma +que não as suas sombras... Foi decerto assim que alli vivemos, eu +e não sei se mais alguem... Dizei-me que isto foi verdade para que +eu não tenha de chorar... + +*Segunda*.--Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla +da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas... +Eu era pequena e barbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente +parece me que durmo... Fallae-me das fadas. Nunca ouvi fallar +d'ellas a ninguem... O mar era grande demais para fazer pensar +nellas... Na vida aquece ser pequeno... Ereis feliz minha irmã?. + +*Primeira*.--Começo neste momento a tel-o sido outr'ora... De +resto, tudo aquilo se passou na sombra... As arvores viveram-o mais +do que eu... Nunca chegou quem eu mal esperava... E vós, irmã, +porque não fallaes? + +*Terceira*.--Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que +vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as diga, pertencerão +logo ao passado, ficarão fóra de mim, não sei onde, rigidas e +fataes... Fallo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras +parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto +na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E +toda eu sou um amuleto ou um sacrario que estivesse com consciencia +de si-proprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta +escura, atravez do mysterio de fallar... E, afinal, quem sabe +se eu sou assim e se é isto sem duvida que sinto?... + +*Primeira*.--Custa tanto saber o que se sente quando reparamos +em nós!... Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso... +Fallae portanto, sem reparardes que existis... Não nos ieis dizer quem +ereis? + +*Terceira*.--O que eu era outr'ora já não se lembra de quem sou... +Pobre da feliz que eu fui!... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e +tudo na minha alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a +minha sombra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes, +onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquillas +dos meus dedos... Ás vezes, á beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me... +Quando eu sorria, os meus dentes eram mysteriosos na +agua... Tinham um sorriso só d'elles, independente do meu... Era +sempre sem razão que eu sorria... Fallae-me da morte, do fim de +tudo, para que eu sinta uma razão p'ra recordar... + +*Primeira*.--Não fallemos de nada, de nada... Está mais frio, mas +porque é que está mais frio? Não ha razão para estar mais frio. Não +é bem mais frio que está... Para que é que havemos de fallar?... +É melhor cantar, não sei porquê... O canto, quando a gente canta +de noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no +quarto e o aquece a consolar-nos... Eu podia cantar-vos uma canção +que cantavamos em casa de meu passado. Porque é que não quereis +que vol-a cante? + +*Terceira*.--Não vale a pena, minha irmã... Quando alguem canta, +eu não posso estar commigo. Tenho que não poder recordar-me. E +depois todo o meu passado torna-se outro e eu chóro uma vida morta +que trago commigo e que não vivi nunca. É sempre tarde de mais +para cantar, assim como é sempre tarde de mais para não cantar... + + +(uma pausa) + + +*Primeira*.--Breve será dia... Guardemos silencio... A vida assim +o quer... Ao pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá +e assentava-me á beira d'elle, sobre um tronco de arvore que cahira +quasi dentro de agua... Sentava-me na ponta e molhava na agua os +pés, esticando para baixo os dedos. Depois olhava excessivamente +para as pontas dos pés, mas não era para as ver... Não sei porquê, +mas parece-me d'este lago que elle nunca existiu... Lembrar-me +d'elle é como não me poder lembrar de nada... Quem sabe porque +é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?... + +*Segunda*.--Á beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não +podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremol-o +sempre ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a +espuma chia, parece que ha mil vozes minimas a fallar. A espuma +só parece ser fresca a quem a julga uma... Tudo é muito e nós não +sabemos nada... Quereis que vos conte o que eu sonhava á beira-mar? + +*Primeira*.--Podeis contal-o, minha irmã, mas nada em nós tem necessidade +de que nol-o conteis... Se é bello, tenho já pena de vir a +tel-o ouvido. E se não é bello, esperae..., contae-o só depois de o +alterardes... + +*Segunda*.--Vou dizer vol-o. Não é inteiramente falso, porque sem +duvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que +eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha +esquecido que tinha pae e mãe e que houvera em mim infancia +e outros dias--nesse dia vi ao longe, como uma cousa que eu só pensasse +em ver, a passagem vaga de uma vela... Depois ella cessou... +Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não +sei onde elle teve principio... E nunca tornei a ver outra vela... +Nenhuma das velas dos navios que sahem aqui de um porto se parece +com aquella, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar... + +*Primeira*.--Vejo pela janella um navio ao longe. É talvez aquelle +que vistes... + +*Segunda*.--Não, minha irmã; esse que vêdes busca sem duvida +um porto qualquér... Não podia ser que aquelle que eu vi buscasse +qualquér porto... + +*Primeira*.---Porque é que me respondestes?... Pode ser... Eu +não vi navio nenhum pela janella... Desejava ver um e fallei-vos +d'elle para não ter pena... Contae-nos agora o que foi que sonhastes +á beira mar... + +*Segunda*.--Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido +numa ilha longinqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e +aves vagas passavam por ellas... Não vi se alguma vez pousavam... +Desde que, naufragado, se salvára, o marinheiro vivia alli... Como +elle não tinha meio de voltar á patria, e cada vez que se lembrava +d'ella soffria, poz-se a sonhar uma patria que nunca tivesse tido; poz-se +a fazer ter sido sua uma outra patria, uma outra especie de paiz, +com outras especies de paysagens, e outra gente, e outro feitio de passarem +pelas ruas e de se debruçarem das janellas... Cada hora elle +construía em sonho esta falsa patria, e elle nunca deixava de sonhar, +de dia á sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada +de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, +de costas, e não reparando nas estrellas. + +*Primeira*.--Não ter havido uma arvore que mosqueasse sobre as +minhas mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!... + +*Terceira*.--Deixae-a fallar... Não a interrompaes... Ella conhece +palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... +Dizei, minha irmã, dizei... Meu coração doe-me de não ter +sido vós quando sonhaveis á beira mar... + +*Segunda*.--Durante annos e annos, dia a dia o marinheiro erguia +num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha +uma pedra de sonho nesse edificio impossivel... Breve elle ia tendo +um paiz que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se +já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que côr +soiam ser os crepusculos numa bahia do norte, e como era suave +entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmurio da agua que +o navio abria, num grande porto do sul onde elle passára outr'ora, +feliz talvez, das suas mocidades a supposta... + + +(uma pausa) + + +*Primeira*.--Minha irmã, porque é que vos calaes? + +*Segunda*.--Não se deve fallar demasiado... A vida espreita-nos +sempre... Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não +o saber... Quando fallo de mais começo a separar-me de mim e a +ouvir-me fallar. Isso faz com que me compadeça de mim-propria e +sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa +de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho... Vêde: +o horizonte empallideceu... O dia não póde já tardar... Será preciso +que eu vos falle ainda mais do meu sonho? + +*Primeira*.--Contae sempre, minha irmã, contae sempre... Não +pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca +raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não +torçaes as mãos. Isso faz um ruido como o de uma serpente furtiva... +Fallae-nos muito mais do vosso sonho. Elle é tão verdadeiro que não +tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca musica na +alma... + +*Segunda*.--Sim, fallar-vos-hei mais d'elle. Mesmo eu preciso de +vol-o contar. À medida que o vou contando, é a mim tambem que o +conto... São trez a escutar... _(De repente, olhando para o caixão, +e estremecendo.)_ Trez não... Não sei... Não sei quantas... + +*Terceira*.--Não falleis assim... Contae depressa, contae outra +vez... Não falleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos +quantas cousas realmente vivem e vêem e escutam... Voltae ao vosso +sonho... O marinheiro... O que sonhava o marinheiro?... + +*Segunda* _(mais baixo, numa voz muito lenta)_.--Ao principio elle +creou as paysagens; depois creou as cidades; creou depois as ruas +e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na materia da sua alma-- +uma a uma as ruas, bairro a bairro, até ás muralhas dos caes d'onde +elle creou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as +percorria e que olhava sobre ellas das janellas... Passou a conhecer +certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as +vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas +paysagens e as vae vendo... Depois viajava, recordado, atravez +do paiz que creara... E assim foi construindo o seu passado... Breve +tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova patria, um +logar onde nascera, os logares onde passara a juventude, os portos +onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infancia e depois +os amigos e inimigos da sua edade viril... Tudo era differente de +como elle o tivera--nem o paiz, nem a gente, nem o seu passado +proprio se pareciam com o que haviam sido... Exigís que eu continue?... +Causa-me tanta pena fallar d'isto!... Agora, porque vos fallo +d'isto, aprazia-me mais estar-vos fallando de outros sonhos... + +*Terceira*.--Continuae, ainda que não saibaes porquê... Quanto +mais vos ouço, mais me não pertenço... + +*Primeira*.--Será bom realmente que continueis? Deve qualquer +historia ter fim? Em todo o caso fallae... Importa tão pouco o que +dizemos ou não dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso +mister é inutil como a Vida... + +*Segunda*.--Um dia, que chovêra muito, e o horizonte estava mais +incerto, o marinheiro cançou-se de sonhar... Quiz então recordar a +sua patria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que +ella não existia para elle... Meninice de que se lembrasse, era a na +sua patria de sonho; adolescencia que recordasse, era aquella que se +creara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E +elle viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se elle +nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se +lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e +tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que +tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... Ó minhas +irmãs, minhas irmãs... Ha qualquer cousa, que não sei o que é, que +vos não disse..., qualquer cousa que explicaria isto tudo... A minha +alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a fallar... Fallae-me, gritae-me, +para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante +vós e que ha cousas que são apenas sonhos... + +*Primeira* _(numa voz muito baixa)_.--Não sei que vos diga... Não +ouso olhar para as cousas... Esse sonho como continúa?... + +*Segunda*.--Não sei como era o resto... Mal sei como era o +resto... Porque é que haverá mais?... + +*Primeira*.--E o que aconteceu depois? + +*Segunda*.--Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?... +Veiu um dia um barco... Veiu um dia um barco...--Sim, sim... +só podia ter sido assim...--Veiu um dia um barco, e passou por +essa ilha, e não estava lá o marinheiro... + +*Terceira*.--Talvez tivesse regressado á patria... Mas a qual? + +*Primeira*.--Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabel-o-hia +alguem? + +*Segunda*.--Porque é que m'o perguntaes? Ha resposta para +alguma cousa? + + +(uma pausa) + + +*Terceira*.--Será absolutamente necessario, mesmo dentro do vosso +sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha? + +*Segunda*.--Não, minha irmã; nada é absolutamente necessario. + +*Primeira*.--Ao menos, como acabou o sonho? + +*Segunda*.--Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... +Sei eu ao certo se o não continúo sonhando, se o não sonho sem o +saber, se o sonhal-o não é esta cousa vaga a que eu chamo a minha +vida?... Não me falleis mais... Principío a estar certa de qualquer +cousa, que não sei o que é... Avançam para mim, por uma noite que +não é esta, os passos de um horror que desconheço... Quem teria eu +ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo +disforme de que Deus tivesse prohibido o meu sonho... Elle é sem +duvida mais real do que Deus permitte... Não estejaes silenciosas... +Dizei-me ao menos que a noite vae passando, embora eu o saiba... +Vêde, começa a ir ser dia... Vêde: vae haver o dia real... Paremos... +Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura +interior... Quem sabe o que está no fim d'ella?... Tudo isto, minhas +irmãs, passou-se na noite... Não fallemos mais d'isto, nem a nós-proprias... +É humano e conveniente que tomemos, cada qual a sua +attitude de tristeza. + +*Terceira*.--Foi-me tão bello escutar-vos... Não digaes que não... +Bem sei que não valeu a pena... É porisso que o achei bello... Não +foi porisso, mas deixae que eu o diga... De resto, a musica da vossa +voz, que escutei ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez +só por ser musica, descontente... + +*Segunda*.--Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens +que pensam cançam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que +passam provam-o, porque mudam com tudo... De eterno e bello ha +apenas o sonho... Porque estamos nós fallando ainda?... + +*Primeira*.--Não sei... _(olhando para o caixão, em voz mais baixa)_ +Porque é que se morre? + +*Segunda*.--Talvez por não se sonhar bastante... + +*Primeira*.--É possivel... Não valeria então a pena fecharmo-nos +no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?... + +*Segunda*.--Não, minha irmã: nada vale a pena... + +*Terceira*.--Minhas irmãs, é já dia... Vêde, a linha dos montes +maravilha-se... Porque não choramos nós?... Aquella que finge estar +alli era bella, e nova como nós, e sonhava tambem... Estou certa +que o sonho d'ella era o mais bello de todos... Ella de que sonharia?... + +*Primeira*.--Fallae mais baixo. Ella escuta-nos talvez, e já sabe +para que servem os sonhos... + + +(uma pausa) + + +*Segunda*.--Talvez nada d'isto seja verdade... Todo este silencio, +e esta morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho... +Olhae bem para tudo isto... Parece-vos que pertence á vida?... + +*Primeira*.--Não sei. Não sei como se é da vida... Ah, como vós +estaes parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente... + +*Segunda*.--Não vale a pena estar triste de outra maneira... Não +desejaes que nos calemos? É tão extranho estar a viver... Tudo o +que acontece é inacreditavel, tanto na ilha do marinheiro como neste +mundo... Vêde, o céu é já verde... O horizonte sorri ouro... Sinto +que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar... + +*Primeira*.--Chorastes, com effeito, minha irmã. + +*Segunda*.--Talvez... Não importa... Que frio é este?... O que +é isto?... Ah, é agora... é agora... Dizei-me isto... Dizei-me uma +cousa ainda... Porque não será a unica cousa real nisto tudo o marinheiro, +e nós e tudo isto aqui apenas um sonho d'elle?... + +*Primeira*.--Não falleis mais, não falleis mais... Isso é tão extranho +que deve ser verdade... Não continueis... O que ieis dizer não +sei o que é, mas deve ser de mais para a alma o poder ouvir... +Tenho medo do que não chegastes a dizer... Vêde, vêde, é dia já... +Vêde o dia... Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, alli +fóra... Vêde-o, vêde-o... Elle consola... Não penseis, não olheis +para o que pensaes... Vêde-o a vir, o dia... Elle brilha como ouro +numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se á medida que +se coloram... Se nada existisse, minhas irmãs?... Se tudo fosse, de +qualquer modo, absolutamente cousa nenhuma?... Porque olhastes +assim?... + + +(Não lhe respondem. E ninguem olhara de nenhuma maneira.) + + +*A mesma*.--Que foi isso que dissestes e que me apavorou?... Senti-o +tanto que mal vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu, +ouvindo-o segunda vez, já não tenha tanto mêdo como d'antes... Não, +não... Não digaes nada... Não vos pergunto isto para que me respondaes, +mas para fallar apenas, para me não deixar pensar... Tenho +medo de me poder lembrar do que foi... Mas foi qualquer cousa +de grande e pavoroso como o haver Deus... Deviamos já ter acabado +de fallar... Ha tempo já que a nossa conversa perdeu o sentido... +O que ha entre nós que nos faz fallar prolonga-se demasiadamente... +Ha mais presenças aqui do que as nossas almas... O dia devia ter +já raiado... Deviam já ter acordado... Tarda qualquer cousa... +Tarda tudo... O que é que se está dando nas cousas de accordo com +o nosso horror?... Ah, não me abandoneis... Fallae commigo, fallae +commigo... Fallae ao mesmo tempo do que eu para não deixardes +sosinha a minha voz... Tenho menos medo á minha voz do que +á idéa da minha voz, dentro de mim, se fôr reparar que estou fallando... + +*Terceira*.--Que voz é essa com que fallaes?... É de outra... +Vem de uma especie de longe... + +*Primeira*.--Não sei... Não me lembreis isso... Eu devia estar +fallando com a voz aguda e tremida do mêdo... Mas já não sei como +é que se falla... Entre mim e a minha voz abriu-se um abysmo... +Tudo isto, toda esta conversa, e esta noite, e este mêdo--tudo isto +devia ter acabado, devia ter acabado de repente, depois do horror que +nos dissestes... Começo a sentir que o esqueço, a isso que dissestes, +e que me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para +exprimir um horror de aquelles... + +*Terceira* _(para a Segunda)_.--Minha irmã, não nos devieis ter +contado essa historia. Agora extranho-me viva com mais horror. Contaveis +e eu tanto me distrahia que ouvia o sentido das vossas palavras +e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e +o sentido do que dizieis eram trez entes differentes, como trez creaturas +que fallam e andam. + +*Segunda*.--São realmente trez entes differentes, com vida propria +e real. Deus talvez saiba porquê... Ah, mas porque é que fallamos? +Quem é que nos faz continuar fallando? Porque fallo eu sem querer +fallar? Porque é que á não reparamos que é dia?... + +*Primeira*.--Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me +a gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha +vontade para a minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter +mêdo de que alguem possa agora bater àquella porta. Porque não bate +alguem á porta? Seria impossivel e eu tenho necessidade de ter mêdo +d'isso, de saber de que é que tenho mêdo... Que extranha que me sinto!... +Parece-me já não ter a minha voz... Parte de mim adormeceu e ficou +a vêr... O meu pavôr cresceu mas eu já não sei sentil-o... Já +não sei em que parte da alma é que se sente... Puzeram ao meu sentimento +do meu corpo uma mortalha de chumbo... Para que foi que +que nos contastes a vossa historia? + +*Segunda*.--Já não me lembro... Já mal me lembro que a contei... +Parece ter sido já ha tanto tempo!... Que somno, que somno absorve +o meu modo de olhar para as cousas!... O que é que nós queremos +fazer? o que é que nós temos idéa de fazer?--já não sei se é fallar +ou não fallar... + +*Primeira*.--Não fallemos mais. Por mim, cança-me o esforço que +fazeis para fallar... Dóe-me o intervallo que ha entre o que pensaes +e o que dizeis... A minha consciencia boia á tona da somnolencia +apavorada dos meus sentidos pela minha pelle... Não sei o que é isto, +mas é o que sinto... Preciso dizer phrases confusas, um pouco longas, +que custem a dizer... Não sentis tudo isto como uma aranha +enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende? + +*Segunda*.--Não sinto nada... Sinto as minhas sensações como uma +cousa que se não sente... Quem é que eu estou sendo?... Quem é +que está fallando com a minha voz?... Ah, escutae... + +*Primeira e Terceira*.--Quem foi? + +*Segunda*.--Nada. Não ouvi nada... Quiz fingir que ouvia para que +vós suppozesseis que ouvieis e eu pudesse crêr que havia alguma cousa +a ouvir... Oh, que horror, que horror intimo nos desata a voz da alma, +e as sensações dos pensamentos, e nos faz fallar e sentir e pensar +quando tudo em nós pede o silencio e o dia e a inconsciencia da vida... +Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe +sempre que vamos a sentir?... + +*Primeira*.--Para quê tentar apavorar-me?... Não cabe mais terror +dentro de mim... Peso excessivamente ao collo de me sentir. +Afundei-me toda no lodo morno do que supponho que sinto. Entra-me +por todos os sentidos qualquer cousa que m'os pega e m'os vela. Pesam +as palpebras a todas as minhas sensações. Prende-se a lingua a +todos os meus sentimentos. Um somno fundo colla uma ás outras as +idéas de todos os meus gestos... Porque foi que olhastes assim?... + +*Terceira* _(numa voz muito lenta e apagada)_.--Ah, é agora, é +agora... Sim, acordou alguem... Ha gente que acorda... Quando +entrar alguem tudo isto acabará... Até lá façamos por crêr que todo +este horror foi um longo somno que fomos dormindo... É dia já... +Vae acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois +feliz, porque acreditaes no sonho... + +*Segunda*.--Porque é que m'o perguntaes? Porque eu o disse? Não, +não acredito... + + +Um gallo canta. A luz, como que subitamente, +augmenta. As trez veladoras quedam-se silenciosas +e sem olharem umas para as outras. + +Não muito longe, por uma estrada, um vago +carro geme e chia. + + +_11/12 Outubro, 1913._ + + +FERNANDO PESSÔA. + + + + + +*TREZE SONETOS* + +DE + +ALFREDO PEDRO GUISADO + + + + +_ADORMECIDA_ + + +As tuas mãos dormiam na lagôa incenso. +E pelas alamedas destruídas, loucas, +Desceu-se em mim minha alma a procurar as bocas +Que me rezaram Ser sôbre o teu manto extenso. + +Vagamente desceu sôbre o silêncio, a arfar, +Combatendo de luz, a esvoaçar no ataque... +E de noite caiu Egipto em meu olhar, +Nos teus braços em cruz, sepulcros em Karnak. + +Bocas de Faraós rezam múmias cansadas... +Tebas em mim fenece em bronze de toadas, +Apagando-se em cinza em lâmpadas sombrias. + +E tu adormecida há tanto tempo, em pranto. +Os cisnes na lagôa embranqueceram tanto, +Que se esqueceram Côr nas tuas mãos esguías. + + + + +_SONHO EGÍPCIO_ + + +No palácio, os pavões são apenas dizê-los... +As asas côr do longe erguidas sôbre mim. +Existem os pavões... O meu sentir-me é vê-los... +E o meu sonhar-te, alêm, são lagos no jardim. + +Quando passei no parque, eu encontrei Nitokris. +Vi-a. Fitei-lhe as mãos para poder senti-las... +Meus olhos foram naus em águas intranquilas, +Meus sentidos, aneis nos dedos de Nitokris. + +Labirinto de sons. Adormeço-me oiro. +Ansia apagada. Deus desce minha alma em oiro. +Meus olhos p'ra te ver, arcadas nos espelhos. + +Rezas que nunca ouvi. Hálitos de saudades. +E as tuas mãos, ao largo, ungindo divindades +Scismam Ibis, pagãos, sôbre tapetes velhos. + + + + +_PAGÃO_ + + +... Lembro-me então de mim. Rezo-me longe. Scismo. +E o lembrar-me de mim são os meus passos idos. +Arqueia-se em azul meu próprio misticismo +E eu fico apenas Côr sôbre vitrais vencidos. + +O teu hálito é luz em candelabros velhos +Aos cantos dos salões onde me vejo a orar, +E os teus passos de Dôr são um quebrar de espelhos. +Quando te quero ver, morres no meu olhar. + +Abraço-me chorando. O teu morrer é vêr-me, +Oiro de asas em Tule, ardendo antiguidade-- +E o ter-te visto morta, o mêdo de perder-me. + +Procuro-me em silêncio e oiço-me em teus passos. +Sôbre altares pagãos ergo-me divindade +E Isis dorme meu Ser em cortinados lassos! + + + + +_VER-TE_ + + +Estendi os meus braços p'ra abraçar-te +E entre nós uma porta se cerrou. +Um sôpro de rubins em mim voou, +Sôpro que permitiu poder sonhar-te. + +Saía a tua sombra p'las janelas +E perdia-se, ao largo, em arvoredos... +Os meus dedos scismando caravelas, +Eram prolongamentos dos teus dedos. + +Num parque de oliveiras te sonhei +Erguendo-te do oiro que queimei +Nas ânforas do templo do meu Ser. + +Parece que te vejo e tu estás longe... +Afastei-me de mim para ser monge... +Meus olhos são a sombra de te ver! + + + + +_PRINCESA LOUCA_ + + +Vejo passar na curva da alameda +Uma princesa há muitos anos louca, +Princesa cujo Corpo é uma roca +Em principados de faisões de seda. + +A sua sombra, uma lagôa azul. +As suas mãos tecendo pinheirais, +Lembram-me naus sempre chegando ao cais, +Águias sem asas num palácio, em Tule. + +Seus dedos, pregos que pregaram Cristo. +Olha-me longe. Em seu olhar existo... +Passo nas rezas duma antiga boca... + +Arqueio-me a sonhar sôbre marfim. +Sou arco com que brinca no jardim +Essa princesa há tantos anos louca. + + + + +_MÃOS DE CEGA_ + + +I + +Sinto que as tuas mãos são teus olhos vencidos, +Teus olhos que esquecendo as orações da luz +São claustros apagando os passos esquecidos +De Deus ao regressar de amortalhar Jesus. + +Sinto-as tanger ainda os violinos velhos, +Onde os dedos saltando em cordas de oiro, à tarde, +Te cegaram de som. E em candelabros arde +O teu antigo olhar emoldurando espelhos. + +Teus dedos ao bater nas tuas mãos são remos. +Inda vejo nas salas do palácio, arfando, +As tuas mãos de Dôr entreabrindo as portas. + +Buscamo-nos em Côr e quando nos perdemos +Passam as tuas mãos em meus dedos, scismando +Estátuas de marfim sôbre as arcadas, mortas... + + +II + +Morreram os leões que guardavam perdidos +A branca escadaria. Velhos leões sombrios... +Dêles apenas resta o eco dos rugidos +Que os arcos dos salões tornaram mais esguios. + +As rendas que fiaste adormeciam bocas +E as rugas no teu rosto iam caindo, fundas... +No fim do parque, à noite, as águias moribundas +Guardavam em silêncio as destroçadas rocas. + +Fiavas noutro tempo os teus olhos dormentes. +Deixaste de os fiar e os teus olhos arderam +Na côr das tuas mãos, na cruz de outros poentes... + +Cega de mim, partiste. E quando regressaste +Manchada de Distância, os meus sentidos eram +Palmeiras ladeando a estrada onde passaste! + + + + +_ESQUECENDO_ + + +Os lagos dormem cisnes na alameda +E as portas do palácio estão fechadas. +As folhas a caír, rezando seda, +Sonham paisagens mortas, afastadas... + +Essas paisagens foram tuas aias. +Flautas ao longe foram teus sentidos. +E as tuas mãos ao desfiar vestidos +Dormiram franjas em doiradas saias. + +A tua Sombra o seu olhar perdeu... +Não sei se não serás um gesto meu, +Um gesto de meus dedos longos, frios... + +Não sei quem és... Meus olhos esquecidos +Sentem-te em mim, dormir nos meus sentidos... +Meus sentidos, arcadas sôbre rios... + + + + +_SALOMÉ_ + + +I + +Dançava Salomé sôbre mistérios idos. +--Tarde bronze a morrer. Poente em véus vermelhos-- +Os seus sentidos, longe, eram bailados velhos, +E o seu Corpo, a bailar, é que era os seus sentidos. + +Dançava Salomé nas suas mãos morenas +Que eram salões de seda, a descerrar o hábito. +E Ela quando se via era o seu próprio hálito, +E o Corpo no bailado era uma curva apenas. + +Dançava Salomé.--E os seus olhos ao vê-la, +Cerravam-se leões com mêdo de perdê-la, +Leões bebendo luz na luz dos olhos seus... + +Não vejo Salomé.--Talvez adormecida... +Talvez no meu olhar Ausência dolorida... +Talvez boca pagã beijando as mãos de Deus... + + +II + +Deus, longo cais em mim, donde outras naus singrando +Conduzem para o Longe o meu não existir. +Morena, Salomé, entre vitrais bailando. +Arcadas-sensações transpondo o seu Sentir. + +Fita paisagens-Ansia em suas mãos cansadas, +Paisagens a sonhar castelos nunca erguidos. +E os lábios percorrendo em lume os seus sentidos, +Scismam príncipes-Côr descendo das arcadas. + +Há entre Ela e Deus o corpo de João. +E em seu olhar, dormindo um bronze de oração, +É sombra do bailado um inclinar de palma. + +Baila seu Corpo ainda. E Deus nos seus bailados. +Bailados-asas, longe, em capiteis bordados, +Gestos de Deus caindo entre molduras-Alma! + + + + +_MORTE DE SALOMÉ_ + + +Apagaram-se bronze os círios que sonhara. +Erguidos no seu Ser, sentidos-mausoléus. +O palácio, no parque, era um olhar de Deus +E as salas do palácio, os bailes que bailara. + +Ela, taça caída em uma orgia infinda, +Taça vencida de Alma em pálios afastados. +Seu Corpo tinha sido algum dos seus bailados, +E a sua própria Morte era um bailado ainda. + +Eram as suas mãos rainhas em impérios +Onde passavam reis com séquitos mistérios, +Adagas de marfim erguidas noutras mãos. + +Seu Corpo, cinto de oiro ao seu redor, dormindo, +Um hálito de Deus sôbre missais caindo, +Cinza de Alma rezando outros Jesus, pagãos. + + + + +_RECORDANDO_ + + +Sinto as cores, de noite, terem mêdo +E acolherem-se à sombra do teu luto. +Eu fui um rei dos godos, que em Toledo +O Tejo adormeceu e ainda escuto. + +Cercam-se de oiro as salas que habitei, +Oiro-cinza esquecido, oiro dormente. +E em minha Alma, na qual inda sou rei +Scismo tronos caindo lentamente. + +Buscam-me pagens tristes nos caminhos. +E a minha lenda em sonhos pergaminhos +Vai escrevendo em silêncio o meu scismar. + +São outros os domínios que vivi +Todas as coisas que eu outrora vi +Regressaram mistério ao meu olhar. + + + + +_ANTE DEUS_ + + +Quando te vi eu fui o teu voar +E desci Deus p'ra me encontrar em mim. +Voei-me sôbre pontes de marfim-- +E uma das pontes, Deus, em meu olhar! + +Aureolei-me de oiro em sombra fria +E meus vôos cairam destruídos. +Foram dedos de Deus os meus sentidos. +Meu Corpo andou ao colo de Maria. + +Agora durmo Cristo em véus pagãos. +São tapetes de Deus as minhas mãos. +Regresso Ansia p'ra alcançar os céus. + +Ergo-me mais. Sou o perfil da Dôr. +Sôbre os ombros de Deus olho em redor +E Deus não sabe qual de nós é Deus! + + +ALFREDO PEDRO GUISADO. + + + + + +*FRIZOS* + +DO DESENHADOR + +JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS + + + + +*CIUMES* + + +Pierrot dorme sobre a relva junto ao lago. Os cisnes junto d'elle +passam sêde, não n'o acordem ao beber. + +Uma andorinha travêssa, linda como todas, avôa brincando rente +á relva e beija ao passar o nariz de Pierrot. Elle accorda e a andorinha, +fugindo a muito, olha de medo atraz, não venha o Pierrot de +zangado persegui-la pelos campos. E a andorinha perdia-se nos montes, +mas, porque elle se queda, de nôvo volta em zig-zags travêssos +e chilreios de troça. E chilreia de troça, muito alto, por cima d'elle. +Pierrot já se adormecia, e a andorinha em descida que faz calafrios +pousou-lhe no peito duas ginjas bicadas, e fugiu de nôvo. + +De contente, ergueu-se sorrindo e de joelhos, braços erguidos, +seus olhos foram tão longe, tão longe como a andorinha fugida nos +montes. + +De repente viu-se cego--os dedos finissimos da Colombina brincavam +com elle. Desceu-lhe os dedos aos labios e trocou com beijos +o arôma das palmas perfumadas. Depois dependurou-lhe de cada +orelha uma ginja, á laia de brincos com joias de carmim. Rolaram-se +na relva e uniram as boccas, e já se esqueciam de que as tinham +juntas... + +--Sabes? Uma andorinha... + +E foram de enfiada as graças da ave toda paixão. Pierrot contava +enthusiasmado, olhando os montes ainda em busca da andorinha, +e Colombina torceu o corpo numa dôr calada e tomou-lhe as mãos. + +Havia na relva uma máscara branca de dôr, e a lua tinha nos +olhos claros um olhar triste que dizia: Morreu Colombina! + + + + +*O ECHO* + + +Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?! + +Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça +branca lá da floresta. + +Era p'lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras. + +Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem, +tambem chamou Adão. + +Teve mêdo: Mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E +uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão. + +Foi-se triste para a tenda. + +Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma! + +E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe. + +--Outra que não Ella chamára tambem por Elle. + + + + +*SÈVRES PARTIDO* + + +A amazona negra era bella como o sol e triste como o luar, e +ninguem acredita mas era pastora de galgas. Figura negra muito esguia, +cypreste procurando vaga na margem do caminho. + +Nas manhãs de Outomno, frias como os degraus do tanque, era +Ella quem largava ás galgas a lebre cinzenta, e a que a filásse já +sabia com quem dormia a sésta. E as galgas já nem dormiam bem +noutra almofada. + +Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarellecidas +dos plátanos onde os repuxos do tanque cuspiam lagryrnas de vidro, +a Amazona negra sonhava o seu Principe encantado e a galga do dia +dormia quieta, estendido o focinho no ventre d'Ella. + +Uma manhã mais turva as galgas todas voltaram tristes, de focinhos +pendidos--e nenhuma para dormir a sésta! + +Uma flauta triste vinha de viagem pelo caminho; chorava de seguida +imensas canções de choros e tinha acompanhamentos funéreos +de guisalhádas surdas. + +Callou-se a flauta, um cypreste distante gemia baixinho as dôres +da tatuagem que lhe iam abrindo no peito. O pastor lembrava ali o +nome do seu Bem. Pendia-lhe da cinta uma lebre cinzenta e a funda +torcida. + +As galgas como settas deixaram nú o caminho. E as guisalhadas... + + + + +*MIMA FATAXA* + + +Ella marcára-lhe na vespera aquelle rendez-vous no muro do +cemiterio. De feito Elle tornara escrava de uma cigana a sua alma +apaixonada de uma rainha loira senhora de todas as ciganas. Fôra +d'Ella desde o dia em que, seguindo o ritmo acanalhado das ancas +desconjuntadas, ficou enfeitiçado por aquelles dentes brancos ferindo +lume no colar de pederneiras. Sentiu desejos de morder aquelles labios +ardendo vermêlhos incendios de beijos e as faces fumadas do +lume d'aquella bocca. E estranhava o seu coração vencido pela monotonia +dos berros das cantorias com acompanhamentos de urros de +pandeiro. Enfeitiçara-o aquella vagabunda de olhos ardidos compondo +as tranças nos fundos dos caldeirões de cobre onde durante o sol um +tisnado cigano consumia as horas em maçadôras marteladas. Encantára-o +aquella feiticeira afiando as tranças nos labios molhados da +saliva. E nas danças o tic-tac metalico das sandálias, matrácas tagarélas +a cantar nas lágens, tinha um telintar jovial; e os pulsos cingidos +de guizos eram um concerto de amarellos canarios contentes da +gaiola. + +E mais bella do que nunca no chafariz real, de saias arregaçadas, +a lavar as pernas da poeira das estradas e bellamente descomposta a +enfiar as meias muito grossas, vermêlhas da côr das papoulas, e a dár +um nó-cego num retorcido nastro branco muito negro á laia de liga +muito acima do joelho... E tem graça que a sua morenez não era +por via do sol, pois toda ella era queimada. Quem a visse trepar nas +amoreiras e despi-las das amóras que lhe ensanguentavam os labios +e as faces e os dedos sem cuidar no vento que lhe levanta as saias, +teria tido como Elle um sorriso de desejos, iria como Elle fingir a +sésta por debaixo da linda amoreira. + +E na descida, co'a saia erguida á laia de cabaz, meio tonta, meio +embriagada p'las amóras em demasia, vê-la-hia tão bella como em +sonhos se desenha uma mulher para nós. E escarranchada no tronco +deixava-se escorregar lentamente, mas teve subida forçada por via da +haste que ficava em riba. Depois dependurou-se de um galho rijo, +abriu as mãos e foi de vez chapar-se na relva. E de bruços, como uma +cabra a espojar-se, começou de juntar os fructos espalhados. E os +seus olhos de gata, de gata que brinca nos telhados vermêlhos com +a lua branca, mais do que amóras colhiam. + + + + +*A SOMBRA* + +(TRADUCÇÃO DE UM POEMA DE UMA LINGUA DESCONHECIDA) + + +Foi ali que um dia sentiu desejos de partir tambem. Que ficava +fazendo sósinha? Quem leva uma lança, leva a mulher tambem. + + +O seu châle negro tem um segredo, e o seu mal de morte vem +do mesmo dia. + + +Os annos correram sem nóvas algumas, e as môças finaram-se +velhas, velhas de tanto esperar. + + +E todas as noites, na margem sombria, uma silhueta franzina de +tragica sonambula vae seguindo, como um braço murcho de cypreste +a boiar ao de cima da corrente que o vae levando-mansamente. + + + + +*A SÉSTA* + + +Pierrot escondido por entre o amarello dos gyrassois espreita em +cautela o somno d'ella dormindo na sombra da tangerineira. E ella +não dorme, espreita tambem de olhos descidos, mentindo o sôno, as +vestes brancas do Pierrot gatinhando silencios por entre o amarelo +dos gyrassois. E porque Elle se vem chegando perto, Ella mente +ainda mais o sôno a mal-resonar. + +Junto d'Ella, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo +na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos +e lizos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o +ventre descomposto, quando Ella acordou cançada de tanto sôno fingir. + +E Elle ameaça fugida, e Ella furta-lhe a fuga nos braços nús estendidos. + +E Ella, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte +num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ella dormisse +outra vez. + + + + +*CANÇÃO DA SAUDADE* + + +Se eu fosse cego amava toda a gente. + +Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu +amo a minha irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la +viva na minha edade. + +Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde +móras, dize se vives ou se já nasceste. + +Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé +que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos. + +Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por +entre as gentes apressadas. + +Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram +a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas. + +Eu amo os cemiterios--as lágens são espessas vidraças transparentes, +e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, mulheres +bellas rindo-se para mim. + +Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das +mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em +meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi. + +Se eu fosse cego amava toda a gente. + + + + +*RUINAS* + + +Pandeiros rôtos e côxas táças de crystal aos pés da muralha. + +Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em +bandolins distantes, surdinas finas de princezas mortas. + +Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mãos esguias +e de cabelleiras embranquecidas. + +Aquellas ameias cingiram uma noite peccados sem fim; e ainda +guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha +todas as noites réza a chorar: Era uma vez em tempo antigo +um castello de nobres naquelle lugar... E a lua, a contar, pára um +instante--tem mêdo do frio dos subterraneos. + +Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e rizinhos +de sêdas. + +Aquellas ruinas são o tumulo sagrado de um beijo adormecido-- +cartas lacradas com ligas azues de fechos de oiro e armas reais e +lizes. + +Pobres velhinhas da côr do luar, sem terço nem nada, e sempre +a rezar... + +Noites de insonia com as galés no mar e a alma nas galés. + +Archeiros amordaçados na noite em que o côche era de volta ao +palacio pela tapada d'El-rei. Grande caçada na floresta--galgos brancos +e Amazonas negras. Cavalleiros vermêlhos e trombêtas de oiro +no cimo dos outeiros em busca de dois que faltam. + +Uma gondola, ao largo, e um pagem nas areias de lanterna erguida +dizendo pela briza o aviso da noite. + +O sapato d'Ella desatou-se nas areias, e fôram calça-lo nas furnas +onde ninguem vê. Nas areias ficaram as pègadas de um par que +se beija. + +Noticias da guerra--choros lá dentro, e crépes no brazão. Ardem +cirios, serpentinas. Ha mãos postas entre as flôres. + +E a torre morêna canta, molenga, dôze vezes a mesma dôr. + + + + +*PRIMAVERA* + + +O sol vae esmolando os campos com bôdos de oiro. + +A pastorinha aquecida vae de corrida a mendigar a sombra do +chorão corcunda, poeta romantico que tem paixão p'la fonte. + +Espreita os campos, e os campos despovoados dão-lhe licença +para ficar núa. Que leves arrepios ao refrescar-se nas aguas! Depois +foi de vez, meteu-se no tanque e foi espojar-se na relva, a seccar-se +ao sol. Mas o vento que vinha de lá das Azenhas-do-Mar, trazia peccados +comsigo. Sentiu desejos de dar um beijo no filho do Senhor +Morgado. E lembrou-se logo do beijo da horta no dia da feira. Fechou +os olhos a cegar-se do mau pensamento, mas foi lembrar-se do +proprio Senhor Morgado á meia noite ao entrar na adega. Abanou a +fronte para lhe fugir o peccado, mas foi dar comsigo na sachristia a +deixar o Senhor Prior beijar-lhe a mão, e depois a testa... porque +Deus é bom e perdôa tudo... e depois as faces e depois a bocca e +depois... fugiu... Não devia ter fugido... E agora o moleiro, lá no +arraial, bailando com ella e sem querer, coitado, foi ter ao moinho +ainda a bailar com ella. E lembra-se ainda--sentada na grande arca, +e mãos alheias a desapertarem-lhe as ligas e o corpête, emquanto +ouve a historia triste do moinho com cincoenta malfeitores... Quer +lembrar-se mais, que seja peccado! quer mais recordações do moinho, +mas não encontra mais. + +Ah! e o boieiro quando, a guiar a junta, topou com ella e lhe +perguntou se vira por acaso uma borboleta branca a voar a muito, +uma borboleta muito bonita! Que não, que não tinha visto; mas o +boieiro desconfiado foi procurando sempre, e até mesmo por debaixo +dos vestidos. + +Como desejava poder ir com todos! + + +Não sabe o que sente dentro de si que a importuna de bem estar. + +Teria a borbolêta branca fugido para dentro d'ella? + + + + +*TREVAS* + + +De dia não se via nada, mas p'la tardinha já se apercebia gente +que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, nascendo +dos pinheiros e morrendo nelles. E os punhaes não brilhavam: eram +luzes distantes, eram guias de lençoes de linho escorridos de hombros +franzinos. E a briza que vinha dava gestos de azas vencidas aos lençoes +de linho, azas brancas de garças caídas por faunos caçadores. +E o vento segredava por entre os pinheiros os mêdos que nasciam. + +E vinha vindo a Noite por entre os pinheiros, e vinha descalça +com pés de surdina por môr do barulho, de braços estendidos p'ra +não topar com os troncos; e vinha vindo a noite céguinha como a +lanterna que lhe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao +vê-la esconderam os punhaes nos peitos vazios. + +A lua é uma laranja d'oiro num prato azul do Egypto com perolas +desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados +na briza eram um bailado de estatuas de sonho em vitraes azues. Mãos +ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se. + +Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, +havia gemidos da briza dos tumulos, havia surdinas de gritos +distantes--e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros +gigantes. + +A briza fez-se gritos de pavões perseguidos. E as sombras em +danças macabras fugiam fumo dos pinheiraes p'lo meu respirar. + +Escondidas todas por detraz de todos os pinheiros, chocam-se +nos ares os punhaes acêsos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda +rezam a gritar ladainhas da Morte. Veem mais bruxas, trazem alfanges +e um caixão. Doem-me os cabellos, fecham-se-me os olhos e quatro +anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de alêm +do monte vem dizer-me que tudo dorme em silencio na escuridão. + +Veiu a manha e foi como de dia: não se via nada. + + + + +*CANÇÃO* + + +A pastorinha morreu, todos estão a chorar. Ninguem a conhecia +e todos estão a chorar. + + +A pastorinha morreu, morreu de seus amôres. Á beira do rio +nasceu uma arvore e os braços da arvore abriram-se em cruz. + + +As suas mãos compridas já não acenam de alêm. Morreu a pastorinha +e levou as mãos compridas. + + +Os seus olhos a rirem já não troçam de ninguem. Morreu a pastorinha +e os seus olhos a rirem. + + +Morreu a pastorinha, está sem guia o rebanho. E o rebanho sem +guia é o enterro da pastorinha. + + +Onde estão os seus amôres? Ha prendas para Lhe dar. Ninguem +sabe se é Elle e ha prendas para Lhe dar. + + +Na outra margem do rio deu á praia uma santa que vinha das +bandas do mar. Vestida de pastora p'ra se não fazer notar. De dia +era uma santa, á noite era o luar. + + +A pastorinha em vida era uma linda pastorinha; a pastorinha +mórta é a Senhora dos Milagres. + + + + +*A TAÇA DE CHÁ* + + +O luar desmaiava mais ainda uma máscara caida nas esteiras +bordadas. E os bambús ao vento e os crysanthemos nos jardins e as +garças no tanque, gemiam com elle a advinharem-lhe o fim. Em róda +tombávam-se adormecidos os idolos coloridos e os dragões alados. +E a gueisha, procelana transparente como a casca de um ovo da Ibis, +enrodilhou-se num labyrinto que nem os dragões dos deuses em dias +de lagrymas. E os seus olhos rasgados, perolas de Nankim a desmaiar-se +em agua, confundiam-se scintillantes no luzidio das procelanas. + +Elle, num gesto ultimo, fechou-lhe os labios co'as pontas dos dedos, +e disse a finar-se:--Chorar não é remedio; só te peço que não +me atraiçoes emquanto o meu corpo fôr quente. Deitou a cabeça nas +esteiras e ficou. E Ella, num grito de garça, ergueu alto os braços a +pedir o Ceu para Elle, e a saltitar foi pelos jardíns a sacudir as mãos, +que todos os que passavam olharam para Ella. + +Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar por +entre os bambús, e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto +com um leque de marfim. + + +A estampa do pires é igual. + + +JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS. + + + + + +*POEMAS* + +DE + +CÔRTES-RODRIGUES + + + + +_ABERTURA DO "LIVRO DA VIDA"_ + + +Transcendencias nubloticas, metaphysicas raras, +Modelei a minha Obra com minhas mãos avaras. +Litanias liturgicas de febre de paixão, +Crepusculos de fogo ardendo em sentimento, +Columnas de Além-Sonho, arcos de commoção, +Claustros de Archi-Tristeza aonde o Pensamento +Vive longe do mundo, em funda adoração... + + Castello esguio + Sobre o rio + Do Amôr. + Armei-me cavalleiro, + Quebrou-se minha lança de guerreiro + No combate da Dôr. + +Architectonicas theorias de Belleza, +Transfigurações, resurreições, e a Natureza +No fundo longo, sensitivo da emoção, +Bysantinos jardins onde a Tarde agonisa, +Fluidicos aromas em mystica ascenção, +Emanações d'Amor que a alma divinisa +Em Alma de outra Alma--eterna communhão... + + Praia tão desconhecida + Do mar da vida vivida + Onde o luar nunca vem, + De onde a nau da minha Alma + Parte pela noite calma + A caminho do Alêm. + +E eis a grande rota seguida em Mim sómente, +P'ra que parta do mundo e chegue até aos céus, +E onde Tu e Eu iremos lentamente + Da Vida para Deus. + + +_Lisboa--1914._ + + + + +_POENTE_ + + +As minhas sensações--barcos sem velas-- +Erram de mim. Occaso rôxo. Scismo. +Meus olhos de Não-ver-me são janellas + Dando sobre o abysmo. + +Abysmo d'Outro Ser. E a Hora chora +Nostalgica de Si, mas eu de vê-las +Erro de Ser-me, e a noite sem estrellas + Apavora. + +Delirio rôxo d'agonia. Prece. +Poente feito noite. Escuridão. +Perturbo-me de mim em sensação + E dentro em mim desfallece + E anoitece +A sombra do meu Ser na solidão + Do dia que morreu + E se perdeu + E jámais amanhece. + + +_Lisboa--1914._ + + + + +_AGONIA_ + + +Ergo meus olhos vagos na distancia + Da sombra do meu Ser... +Pairam de mim Além, e a minha Ansia + Cança de me viver. + +Meus olhos espectraes de comoção, +Olhos de Alma olhando-se a Si, +Nimbam de luz a longa escuridão + Da Vida que vivi. + +Auréola de Dôr que finalisa +Na noite do abysmo do meu nada, +Silencio, prece, communhão sagrada, +Sonho de luz que em Ti me divinisa, + Tortura do meu fim, + Alma ungida + E perdida +Na grandeza de Si. E já sem ver-me, +Maceração crepuscular de Mim, + Agoniso de Ser-me. + + +_Lisboa--1914._ + + + + +_SÓ_ + + +O mar da minha vida não tem longes. +É tudo água só! E o horisonte +Funde-se no céu. Por sobre a ponte +Marcha sinistra a procissão dos monges. + +Velas accêsas, opas, ladainha, +E o rio deslisando para o mar, +E e as raparigas veem á tardinha +Buscar á fonte a água sem cantar. + + Ermida branca sobre o monte. + Nossa Senhora da Paz... + +Peregrino voltei sem ser ouvido. +Rasguei os meus pés pelo caminho ido. +Ai, a calma de tudo quanto jaz +No frio esquecimento! Sobre a ponte +A procissão caminha. Sob o arco + Singrou sereno um barco + A caminho do mar. +Ó perdida visão da minha Ansia! +Vejo-me só na lugubre distancia, +Cadaver dos meus sonhos a boiar. + + +_Lisboa--1914._ + + + + +_OUTRO_ + + +Passo triste no mundo, alheio ao mundo. +Passo no mundo alheio, sem o ver, +E, mystico, ideal e vagabundo, +Sinto erguer-se minh'Alma do profundo + Abysmo do meu Ser. + +Vivo de Mim em Mim e para Mim +E para Deus em Mím resuscitado. +Sou Saudade do Longe d'onde vim, +E sou Ansia do Longe em que por fim + Serei transfigurado. + +Vivo de Deus, em Deus e para Deus, +E minh'Alma, somnambula esquecida, +N'Elle fitando os tristes olhos seus, +Passa triste e sósinha olhando os céus + No caminho da Vida. + +Fui Outro e, Outro sendo, Outro serei, +Outro vivendo a mystica belleza +Por esta humana fórma que encarnei, +Por lagrimas de sangue que chorei + Na terra de tristeza. + +Espirito na Dôr purificado, +Ser que passa no mundo sem o ver, +Em esta pobre terra de peccado +Amor divino em Deus extasiado, +O meu Ser é Não-Ser em Outro-Ser. + + +_Lisboa--1914._ + + +CÔRTES-RODRIGUES. + + + + + +*OPIÁRIO* + +E + +*ODE TRIUNFAL* + +DUAS COMPOSIÇÕES DE + +ALVARO DE CAMPOS + +PUBLICADAS POR + +FERNANDO PESSOA + + + + +_OPIÁRIO_ + +AO SENHOR MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO + + +É antes do ópio que a minh'alma é doente. +Sentir a vida convalesce e estióla +E eu vou buscar ao ópio que consóla +Um Oriente ao oriente do Oriente. + +Esta vida de bórdo ha-de matar-me. +São dias só de febre na cabêça +E, por mais que procure até que adoêça, +Já não encontro a móla pra adaptar-me. + +Em paradoxo e incompetência astral +Eu vivo a vincos d'ouro a minha vida, +Onda onde o pundonôr é uma descida +E os próprios gosos ganglios do meu mal. + +É por um mecanismo de desastres, +Uma engrenagem com volantes falsos, +Que passo entre visões de cadafalsos +Num jardim onde ha flores no ar, sem hastes. + +Vou cambaleando através do lavôr +Duma vida-interior de renda e láca. +Tenho a impressão de ter em casa a fáca +Com que foi degolado o Precursôr. + +Ando expiando um crime numa mála, +Que um avô meu cometeu por requinte. +Tenho os nervos na fôrca, vinte a vinte, +E caí no ópio como numa vála. + +Ao toque adormecido da morfina +Perco-me em transparências latejantes +E numa noite cheia de brilhantes +Ergue-se a lua como a minha Sina. + +Eu, que fui sempre um mau estudante, agora +Não faço mais que ver o navio ir +Pelo canal de Suez a conduzir +A minha vida, camfora na aurora. + +Perdi os dias que já aproveitara. +Trabalhei para ter só o cansaço +Que é hoje em mim uma especie de braço +Que ao meu pescôço me sufoca e ampara. + +E fui criança como toda a gente. +Nasci numa provincia portuguêsa +E tenho conhecido gente inglêsa +Que diz que eu sei inglês perfeitamente. + +Gostava de ter poêmas e novélas +Publicados por Plon e no _Mercure_, +Mas é impossivel que esta vida dure. +Se nesta viagem nem houve procélas! + +A vida a bórdo é uma coisa triste +Embora a gente se divirta ás vezes. +Falo com alemães, suecos e inglêses +E a minha mágoa de viver persiste. + +Eu acho que não vale a pena ter +Ido ao Oriente e visto a India e a China. +A terra é semelhante e pequenina +E ha só uma maneira de viver. + +Porisso eu tomo ópio. É um remedio. +Sou um convalescente do Momento. +Móro no rés-do-chão do pensamento +E ver passar a Vida faz-me tedio. + +Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, emfim, +Muito a leste não fosse o oeste já! +Pra que fui visitar a India que ha +Se não ha India senão a alma em mim? + +Sou desgraçado por meu morgadío. +Os ciganos roubaram minha Sorte. +Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte +Um lugar que me abrigue do meu frio. + +Eu fingi que estudei engenharia. +Vivi na Escóssia. Visitei a Irlanda. +Meu coração é uma avòzinha que anda +Pedindo esmóla ás portas da Alegria. + +Não chegues a Port-Said, navio de ferro! +Volta á direita, nem eu sei para onde. +Passo os dias no smoking-room com o conde-- +Um escroc francês, conde de fim de enterro. + +Volto á Europa descontente, e em sortes +De vir a ser um poeta sonambólico. +Eu sou monarquico mas não católico +E gostava de ser as coisas fortes. + +Gostava de ter crenças e dinheiro, +Ser varia gente insipida que vi. +Hoje, afinal, não sou senão, aqui, +Num navio qualquer um passageiro. + +Não tenho personalidade alguma. +É mais notado que eu êsse criado +De bórdo que tem um belo modo alçado +De _laird_ escossez ha dias em jejum. + +Não posso estar em parte alguma. A minha +Patria é onde não estou. Sou doente e fraco. +O comissário de bórdo é velhaco. +Viu-me co'a sueca... e o resto êle adivinha. + +Um dia faço escândalo cá a bórdo, +Só para dar que falar de mim aos mais. +Não posso com a vida, e acho fatais +As iras com que ás vezes me debórdo. + +Levo o dia a fumar, a beber coisas, +Drogas americanas que entontecem, +E eu já tão bêbado sem nada! Déssem +Melhor cérebro aos meus nervos como rosas. + +Escrevo estas linhas. Parece impossivel +Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta! +O facto é que esta vida é uma quinta +Onde se aborrece uma alma sensivel. + +Os inglêses são feitos pra existir. +Não ha gente como esta pra estar feita +Com a Tranquilidade. A gente deita +Um vintém e sai um dêles a sorrir. + +Pertenço a um genero de portuguêses +Que depois de estar a India descoberta +Ficaram sem trabalho. A morte é certa. +Tenho pensado nisto muitas vêzes. + +Leve o diabo a vida e a gente tê-la! +Nem leio o livro á minha cabeceira. +Enoja-me o Oriente. É uma esteira +Que a gente enróla e deixa de ser béla. + +Caio no ópio por força. Lá querer +Que eu leve a limpo uma vida destas +Não se pode exigír. Almas honestas +Com horas pra dormir e pra comer, + +Que um raio as parta! E isto afinal é inveja. +Porque estes nêrvos são a minha morte. +Não haver um navio que me transporte +Para onde eu nada queira que o não vêja! + +Ora! Eu cansava-me do mesmo modo. +Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali +Para sonhos que dessem cabo de mim +E pregassem comigo nalgum lôdo. + +Febre! Se isto que tenho não é febre, +Não sei como é que se tem febre e sente. +O facto essencial é que estou doente. +Está corrida, amigos, esta lebre. + +Veio a noite. Tocou já a primeira +Corneta, pra vestir para o jantar. +Vida social por cima! Isso! E marchar +Até que a gente saia pla coleira! + +Porque isto acaba mal e ha-de haver +(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim +Deste desassossego que ha em mim +E não ha forma de se resolver. + +E quem me olhar, ha-de me achar banal, +A mim e á minha vida... Ora! um rapaz... +O meu proprio monóculo me faz +Pertencer a um tipo universal. + +Ah quanta alma haverá, que ande metida +Assim como eu na Linha, e como eu mística! +Quantos sob a casaca carateristica +Não terão como eu o horrôr á vida? + +Se ao menos eu por fóra fôsse tão +Interessante como sou por dentro! +Vou no Maelstrom, cada vês mais pró centro. +Não fazer nada é a minha perdição. + +Um inutil. Mas é tão justo sê-lo! +Pudesse a gente despresar os outros +E, ainda que co'os cotovêlos rôtos, +Ser heroi, doido, amaldiçoado ou bélo! + +Tenho vontade de levar as mãos +Á bôca e morder nélas fundo e a mal. +Era uma ocupação original +E distraía os outros, os tais sãos. + +O absurdo como uma flôr da tal India +Que não vim encontrar na India, nasce +No meu cérebro farto de cansar-se. +A minha vida mude-a Deus ou finde-a... + +Deixe-me estar aqui, nesta cadeira, +Até virem meter-me no caixão. +Nasci pra mandarim de condição, +Mas faltam-me o sossego, o chá e a esteira. + +Ah que bom que era ir daqui de caída +Prá cova por um alçapão de estouro! +A vida sabe-me a tabaco louro. +Nunca fiz mais do que fumar a vida. + +E afinal o que quero é fé, é calma, +E não ter estas sensações confusas. +Deus que acabe com isto! Abra as eclusas-- +E basta de comedias na minh'alma! + + +_1914, Março._ + +_No canal de Sués, a bordo._ + + + + +_ODE TRIUNFAL_ + + +Á dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica +Tenho febre e escrevo. +Escrevo rangendo os dentes, féra para a beleza disto, +Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. + +Ó rodas, ó engrenagens, _r-r-r-r-r-r-r_ eterno! +Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! +Em fúria fóra e dentro de mim, +Por todos os meus nervos dissecados fóra, +Por todas as papilas fóra de tudo com que eu sinto! +Tenho os lábios sêcos, ó grandes ruídos modernos, +De vos ouvir demasiadamente de perto, +E arde-me a cabêça de vos querer cantar com um excesso +De expressão de todas as minhas sensações, +Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! + +Em febre e olhando os motores como a uma Naturesa tropical-- +Grandes trópicos humanos de ferro e fôgo e fôrça-- +Canto, e canto o presente, e tambem o passado e o futuro, +Porque o presente é todo o passado e todo o futuro +E ha Platão e Vergilio dentro das máquinas e das luzes eléctricas +Só porque houve outróra e fôram humanos Vergilio e Platão, +E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cincoenta, +Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, +Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes, +Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando, +Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma. + +Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! +Ser completo como uma máquina! +Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modêlo! +Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, +Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento +A todos os perfumes de ólios e calores e carvões +Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! + +Fraternidade com todas as dinâmicas! +Promíscua fúria de ser parte-agente +Do rodar férreo e cosmopolita +Dos comboios estrénuos, +Da faina transportadora-de-cargas dos navios, +Do giro lúbrico e lento dos guindastes, +Do tumulto disciplinado das fábricas, +E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão! + +Horas europeias, produtoras, entaladas +Entre maquinismos e afazêres úteis! +Grandes cidades paradas nos cafés, +Nos cafés--oásis de inutilidades ruìdosas +Onde se cristalisam e se precipitam +Os rumores e os gestos do Útil +E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo! +Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares! +Novos entusiasmos de estatura do Momento! +Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas, +Ou a sêco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos! +Actividade internacional, transatlantica, _Canadian-Pacific_! +Luzes e febrís pêrdas de tempo nos bares, nos hoteis, +Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots, +E Piccadillies e Avenues de l'Opéra que entram +Pela minh'alma dentro! + +Hé-la as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô _la foule_! +Tudo o que passa, tudo o que pára às montras! +Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos; +Membros evidentes de clubs aristocráticos; +Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes +E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colête +De algibeira a algibeira! +Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa! +Presença demasiadamente acentuada das cocottes; +Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?) +Das burguezinhas, mãe e filha geralmente, +Que andam na rua com um fim qualquer; +A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos; +E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra +E afinal tem alma lá dentro! + +(Ah, como eu desejaria ser o _souteneur_ disto tudo!) + +A maravilhosa belesa das corrupções políticas, +Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos, +Agressões políticas nas ruas, +E de vez em quando o comêta dum regicídio +Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus +Usuais e lúcidos da Civilisação quotidiana! + +Notícias desmentidas dos jornais, +Artigos políticos insinceramente sinceros, +Notícias _passez à-la-caisse_, grandes crimes-- +Duas colunas dêles passando para a segunda página! +O cheiro frêsco a tinta de tipografia! +Os cartazes postos ha pouco, molhados! +_Vients-de-paraître_ amarelos com uma cinta branca! +Como eu vos amo a todos, a todos, a todos, +Como eu vos amo de todas as maneiras, +Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto +E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!) +E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar! +Ah, como todos os meus sentidos teem cio de vós! + +Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura! +Química agrícola, e o comércio quase uma sciência! +Ó mostruários dos caixeiros-viajantes, +Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria, +Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios! + +Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos! +Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar! +Olá grandes armazens com várias secções! +Olá anúncios eléctricos que veem e estão e desaparecem! +Olá tudo com que hoje se constroi, com que hoje se é diferente de ontem! +Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos! +Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos! +Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aéroplanos! + +Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera. +Amo-vos carnivoramente, +Pervertidamente e enroscando a minha vista +Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis, +Ó coisas todas modernas, +Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima +Do sistema imediato do Universo! +Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus! + +Ó fábricas, ó laboratórios, ó _music-halls_, ó Luna-Parks, +Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes-- +Na minha mente turbulenta e encandescida +Possúo-vos como a uma mulher bela, +Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama, +Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima. + +Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas! +Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios! +Eh-lá-hô recomposições ministeriais! +Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos, +Orçamentos falsificados! +(Um orçamento é tão natural como uma árvore +E um parlamento tão belo como uma borboleta). + +Eh lá o interesse por tudo na vida, +Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras +Até á noite ponte misteriosa entre os astros +E o mar antigo e solene, lavando as costas +E sendo misericordiosamente o mesmo +Que era quando Platão era realmente Platão +Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro, +E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dêle. + +Eu podia morrer triturado por um motor +Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída. +Atirem-me para dentro das fornalhas! +Metam-me debaixo dos comboios! +Espanquem-me a bordo de navios! +Masóquismo através de maquinismos! +Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho! + +Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby, +Morder entre dentes o teu _cap_ de duas côres! + +(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta! +Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!) + +Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais! +Deixai-me partir a cabêça de encontro às vossas esquinas, +E ser levantado da rua cheio de sangue +Sem ninguem saber quem eu sou! + +Ó tramways, funiculares, metropolitanos, +Roçai-vos por mim até ao espasmo! +Hilla! hilla! hilla-hô! +Dai-me gargalhadas em plena cara, +Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas, +Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas, +Rio multicolôr anónimo e onde eu não me posso banhar como quereria! +Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto! +Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro, +As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam, +Os pensamentos que cada um tem a sós comsigo no seu quarto +E os gestos que faz quando ninguem o pode ver! +Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva, +Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome +Me põe a magro o rôsto e me agita às vezes as mãos +Em crispações absurdas em pleno meio das turbas +Nas ruas cheias de encontrões! + +Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma, +Que emprega palavrões como palavras usuais, +Cujos filhos roubam às portas das mercearias +E cujas filhas aos oito anos--e eu acho isto belo e amo-o!-- +Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada. +A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa +Por vielas quase irreais de estreitesa e podridão. +Maravilhosa gente humana que vive como os cães, +Que está abaixo de todos os sistemas morais, +Para quem nenhuma religião foi feita, +Nenhuma arte criada, +Nenhuma política destinada para êles! +Como eu vos amo a todos, porque sois assim, +Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus, +Inatingíveis por todos os progressos, +Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida! + +(Na nora do quintal da minha casa +O burro anda à roda, anda à roda, +É o mistério do mundo é do tamânho disto. +Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente. +A luz do sol abafa o silêncio das esferas +E havemos todos de morrer, +Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo, +Pinheirais onde a minha infância era outra coisa +Do que eu sou hoje...) + +Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante! +Outra vez a obsessão movimentada dos ómnibus. +E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios +De todas as partes do mundo, +De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios, +Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas. +Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado! +Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores! + +Eh-lá grandes desastres de comboios! +Eh-lá desabamentos de galerias de minas! +Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos! +Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá, +Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões, +Ruìdo, injustiças, violências, e talvês para breve o fim, +A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa, +E outro Sol no novo Horizonte! + +Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto +Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, +Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje? +Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento, +O Momento de tronco nú e quente como um fogueiro, +O momento estridentemente ruìdoso e mecânico, +O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes +Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais. + +Eia comboios, eia pontes, eia hoteis à hora do jantar, +Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos, +Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar, +Engenhos, brocas, máquinas rotativas! +Eia! eia! eia! +Eia electricidade, nervos doentes da Matéria! +Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente! +Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez! +Eia todo o passado dentro do presente! +Eia todo o futuro já dentro de nós! eia! +Eia! eia! eia! +Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita! +Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô! +Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. +Engatam-me em todos os comboios. +Içam-me em todos os cais. +Giro dentro das hélices de todos os navios. +Eia! eia-hô! eia! +Eia! sou o calor-mecânico e a eletricidade! + +Eia! e os _rails_ e as casas de máquinas e a Europa! +Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia! + +Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá! + +Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá! +Hé-há! Hé-hô! Ho-o-o-o-o! +Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z! + +Ah não ser eu toda a gente e toda a parte! + + +_Londres, 1914--Junho._ + + +ALVARO DE CAMPOS. + + +Dum livro chamado _Arco de Triunfo_, a publicar. + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Orpheu Nº1, by +Luís de Montalvor and Mário de Sá-Carneiro and Ronald de Carvalho and Fernando António Nogueira Pessoa and José Sobral de Almada Negreiros + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ORPHEU Nº1 *** + +***** This file should be named 23620-8.txt or 23620-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/3/6/2/23620/ + +Produced by Vasco Salgado + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at http://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + http://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/23620-8.zip b/23620-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..0e27bbe --- /dev/null +++ b/23620-8.zip diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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