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authorRoger Frank <rfrank@pglaf.org>2025-10-15 02:06:00 -0700
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+The Project Gutenberg EBook of Orpheu Nº1, by
+Luís de Montalvor and Mário de Sá-Carneiro and Ronald de Carvalho and Fernando António Nogueira Pessoa and José Sobral de Almada Negreiros
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Orpheu Nº1
+ Revista Trimestral de Literatura
+
+Author: Luís de Montalvor
+ Mário de Sá-Carneiro
+ Ronald de Carvalho
+ Fernando António Nogueira Pessoa
+ José Sobral de Almada Negreiros
+
+Release Date: November 25, 2007 [EBook #23620]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ORPHEU Nº1 ***
+
+
+
+
+Produced by Vasco Salgado
+
+
+
+
+ORPHEU
+
+
+
+
+*"ORPHEU"*
+
+REVISTA TRIMESTRAL DE LITERATURA
+
+
+PORTUGAL E BRAZIL
+
+Propriedade de: ORPHEU, L.^da Editor: ANTONIO FERRO
+
+
+_DIRECÇÃO_
+
+PORTUGAL
+
+Luiz de Montalvôr--17, Caminho do Forno do Tijolo--LISBOA
+
+BRAZIL
+
+Ronald de Carvalho--104, Rua Humaytá--RIO DE JANEIRO
+
+
+*ANO I--1915* *N.^o 1* *Janeiro-Fevereiro-Março*
+
+
+*SUMARIO*
+
+LUIZ DE MONTALVÔR _Introducção_
+MARIO DE SÁ-CARNEIRO _Para os "Indicios de Oiro"_ (poemas)
+RONALD DE CARVALHO _Poemas_
+FERNANDO PESSOA _O Marinheiro_ (drama estático)
+ALFREDO PEDRO GUISADO _Treze sonetos_
+JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS _Frizos_ (prosas)
+CÔRTES-RODRIGUES _Poemas_
+ALVARO DE CAMPOS _Opiário_ e _Ode Triunfal_
+
+
+*Capa desenhada por José Pacheco*
+
+
+Oficinas: Tipografia do Comércio--10, Rua da Oliveira, ao Carmo
+
+LISBOA
+
+
+
+
+*CONDIÇÕES*
+
+
+Toda a correspondencia deve ser dirigida aos Directores.
+
+
+Convidamos todos os Artistas cuja simpatia esteja com a indole desta
+Revista a enviarem-nos colaboração. No caso de não ser inserta
+devolveremos os originais.
+
+
+São nossos depositarios em Portugal os srs. Monteiro & C.^a, Livraria
+Brazileira--190 e 192, Rua Aurea, Lisboa.
+
+
+*Orpheu* publicará um numero incerto de paginas, nunca inferior a 72,
+ao preço invariavel de 30 centavos o numero avulso, em Portugal, e
+1$500 réis fracos no Brazil.
+
+
+*ASSINATURAS*
+
+(AO ANO--SÉRIE DE 4 NUMEROS)
+
+Portugal, Espanha e Colonias portuguesas 1 escudo
+Brazil 5$000 réis (moeda fraca)
+União Postal 6 francos
+
+
+
+
+*Livraria Brazileira de MONTEIRO & C.^a--Editores*
+190 e 192, RUA AUREA--LISBOA
+
+
+Á venda no fim de abril:
+
+
+*CÉU EM FOGO*
+
+NOVELAS POR
+
+MARIO DE SÁ-CARNEIRO
+
+
+A GRANDE SOMBRA--MISTÉRIO
+O HOMEM DOS SONHOS--ASAS--EU-PRÓPRIO O OUTRO
+A ESTRANHA MORTE DO PROF. ANTENA
+O FIXADOR DE INSTANTES--RESURREIÇÃO
+
+
+1 VOLUME DE 350 PAGINAS
+
+
+CAPA DESENHADA POR
+
+JOSÉ PACHECO
+
+
+Preço 70 centavos
+
+
+
+
+*Obras dos colaboradores dêste numero*
+
+
+LUIZ DE MONTALVÔR
+
+_A Caminho_, uma plaquette de versos
+Edição da Livraria Brazileira
+Preço: 20 centavos
+
+
+MARIO DE SÁ-CARNEIRO
+
+_Amizade_, peça em 3 actos (com colaboração de Tomás Cabreira J.^or)
+Edição da Livraria Bordalo
+Preço: 30 centavos
+
+_Principio_, novelas
+Edição da Livraria Ferreira
+Preço: 70 centavos
+
+_Dispersão_, 12 poesias
+Edição do autor
+Exgotada
+
+_A Confissão de Lucio_, narrativa
+Edição do autor
+Preço: 60 centavos
+
+
+RONALD DE CARVALHO
+
+_Luz Gloriosa_, poemas
+Paris 1913. Edição do autor
+
+
+FERNANDO PESSOA
+
+_As sete salas do palacio abandonado_, poemas
+Em preparação
+
+
+ALFREDO PEDRO GUISADO
+
+_Rimas da Noite e da Tristeza_, versos
+Edição da Livraria Classica Editora
+Preço: 40 centavos
+
+_Distância_, poemas
+Edição da Livraria Ferreira
+Preço: 30 centavos
+
+
+JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS
+
+_Frizos_, prosas ilustradas pelo autor
+A saír este ano
+
+
+ALVARO DE CAMPOS
+
+_Arco do Triunfo_
+Em preparação
+
+
+Qualquer destas obras pode ser requisitada directamente ao administrador
+de ORPHEU--Alfredo Pedro Guisado: 112, Rocio, Lisboa.
+
+
+No nosso segundo numero (a sair em junho) contamos publicar, entre
+outras obras, as seguintes: _Poemas_ de Fernando Pessoa, _Mundo
+Interior_, novela de Mario de Sá-Carneiro e _Narcisso_, poema de Luiz
+de Montalvôr.
+
+
+A fotogravura da capa foi executada nos ateliers da ILUSTRADORA
+
+
+
+
+*ORPHEU*
+
+VOL. I--1915
+
+
+
+
+*ORPHEU*
+
+REVISTA TRIMESTRAL DE LITERATURA
+
+VOLUME I
+
+
+LISBOA
+TYPOGRAPHIA Do COMMERCIO
+10, RUA DA OLIVEIRA (AO CARMO), 10
+
+1915
+
+
+
+
+_INTRODUCÇÃO_
+
+
+_O que é propriamente revista em sua essencia de vida e quotidiano,
+deixa-o de ser_ ORPHEU_, para melhor se engalanar do seu titulo e
+propôr-se.
+
+E propondo-se, vincula o direito de em primeiro lugar se desassemelhar
+de outros meios, maneiras de formas de realisar arte, tendo por notavel
+nosso volume de Beleza não ser incaracteristico ou fragmentado, como
+literarias que são essas duas formas de fazer revista ou jornal.
+
+Puras e raras suas intenções como seu destino de Beleza é o do:--Exilio!
+
+Bem propriamente,_ ORPHEU_, é um exilio de temperamentos de arte que
+a querem como a um segrêdo ou tormento...
+
+Nossa pretenção é formar, em grupo ou ideia, um numero escolhido de
+revelações em pensamento ou arte, que sobre este principio aristocratico
+tenham em_ ORPHEU _o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos
+e conhecermo-nos.
+
+A photographia de geração, raça ou meio, com o seu mundo immediato de
+exhibição a que frequentemente se chama literatura e é sumo do que para
+ahi se intitula revista, com a variedade a inferiorisar pela egualdade
+de assumptos (artigo, secção ou momentos) qualquer tentativa de
+arte--deixa de existir no texto preocupado de_ ORPHEU_.
+
+Isto explica nossa ansiedade e nossa essencia!
+
+Esta linha de que se quer acercar em_ Beleza_,_ ORPHEU_, necessita de
+vida e palpitação, e não é justo que se esterilise individual e
+isoladamente cada um que a sonhar nestas cousas de pensamento, lhes
+der orgulho, temperamento e esplendor--mas pelo contrario se unam em
+selecção e a dêem aos outros que, da mesma especie, como raros e
+interiores que são, esperam ansiosos e sonham nalguma cousa que lhes
+falta,--do que resulta uma procura esthética de permutas: os que nos
+procuram e os que nós esperamos...
+
+Bem representativos da sua estructura, os que a formam em_ ORPHEU_,
+concorrerão a dentro do mesmo nivel de competencias
+para o mesmo rithmo, em elevação, unidade e discreção, de onde
+dependerá a harmonia esthética que será o typo da sua especialidade.
+
+E assim, esperançados seremos em ir a direito de alguns desejos de bom
+gosto e refinados propositos em arte que isoladamente vivem para ahi,
+certos que assignalamos como os primeiros que somos em nosso meio,
+alguma cousa de louvavel e tentamos por esta forma, já revelar um
+signal de vida, esperando dos que formam o publico leitor de selecção,
+os esforços do seu contentamento e carinho para com a realisação da
+obra literaria de_ ORPHEU_._
+
+
+LUIS DE MONTALVÔR.
+
+
+
+
+
+*PARA OS "INDICIOS DE OIRO"*
+
+POEMAS DE
+
+MARIO DE SÁ-CARNEIRO
+
+
+
+
+*TACITURNO*
+
+
+Ha Ouro marchetado em mim, a pedras raras,
+Ouro sinistro em sons de bronzes medievais--
+Joia profunda a minha Alma a luzes caras,
+Cibório triangular de ritos infernais.
+
+No meu mundo interior cerraram-se armaduras,
+Capacetes de ferro esmagaram Princesas.
+Toda uma estirpe rial de herois d'Outras bravuras
+Em mim se despojou dos seus brazões e presas.
+
+Heraldicas-luar sobre ímpetos de rubro,
+Humilhações a liz, desforços de brocado;
+Bazilicas de tédio, arnezes de crispado,
+Insignias de Ilusão, troféus de jaspe e Outubro...
+
+A ponte levadiça e baça de Eu-ter-sido
+Enferrujou--embalde a tentarão descer...
+Sobre fossos de Vago, ameias de inda-querer--
+Manhãs de armas ainda em arraiais de olvido...
+
+Percorro-me em salões sem janelas nem portas,
+Longas salas de trôno a espessas densidades,
+Onde os pânos de Arrás são esgarçadas saudades,
+E os divans, em redór, ansias lassas, absortas...
+
+Ha rôxos fins de Imperio em meu renunciar--
+Caprichos de setim do meu desdem Astral...
+Ha exéquias de herois na minha dôr feudal--
+E os meus remorsos são terraços sobre o Mar...
+
+
+_Paris--Agosto de 1914_
+
+
+
+
+*SALOMÉ*
+
+
+Insónia rôxa. A luz a virgular-se em mêdo,
+Luz morta de luar, mais Alma do que a lua...
+Ela dança, ela range. A carne, alcool de nua,
+Alastra-se pra mim num espasmo de segrêdo...
+
+Tudo é capricho ao seu redór, em sombras fátuas...
+O arôma endoideceu, upou-se em côr, quebrou...
+Tenho frio... Alabastro!... A minh'Alma parou...
+E o seu corpo resvala a projectar estátuas...
+
+Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me,
+Golfa-me os seios nus, ecôa-me em quebranto...
+Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me:
+
+Mordoura-se a chorar--ha sexos no seu pranto...
+Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
+Na bôca imperial que humanisou um Santo...
+
+
+_Lisboa 1913--Novembro 3_
+
+
+
+
+*CERTA VOZ NA NOITE, RUIVAMENTE...*
+
+
+Esquivo sortilégio o dessa voz, opiada
+Em sons côr de amaranto, ás noites de incerteza,
+Que eu lembro não sei d'Onde--a voz duma Princesa
+Bailando meia nua entre clarões de espada.
+
+Leonina, ela arremessa a carne arroxeada;
+E bêbada de Si, arfante de Beleza,
+Acera os seios nus, descobre o sexo... Reza
+O espasmo que a estrebucha em Alma copulada...
+
+Entanto nunca a vi, mesmo em visão. Sómente
+A sua voz a fulcra ao meu lembrar-me. Assim
+Não lhe desejo a carne--a carne inexistente...
+
+É só de voz-em-cio a bailadeira astral--
+E nessa voz-Estátua, ah! nessa voz-total,
+É que eu sonho esvaír-me em vicios de marfim...
+
+
+_Lisboa 1914--Janeiro 31_
+
+
+
+
+*NOSSA SENHORA DE PARIS*
+
+
+Listas de som avançam para mim a fustigar-me
+Em luz.
+Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
+Os braços duma cruz
+Anseiam-se-me, e eu fujo tambem ao luar...
+
+Um cheiro a maresia
+Vem-me refrescar,
+Longinqua melodia
+Toda saudosa a Mar...
+Mirtos e tamarindos
+Odoram a lonjura;
+Resvalam sonhos lindos...
+Mas o Oiro não perdura,
+E a noite cresce agora a desabar catedrais...
+Fico sepulto sob círios--
+Escureço-me em delirios,
+Mas ressurjo de Ideais...
+
+--Os meus sentidos a escoarem-se...
+Altares e vélas...
+Orgulho... Estrelas...
+Vitrais! Vitrais!
+
+Flores de liz...
+
+Manchas de côr a ogivarem-se...
+As grandes naves a sagrarem-se...
+--Nossa Senhora de Paris!...
+
+
+_Paris 1913--Junho 15_
+
+
+
+
+*16*
+
+
+Esta inconstancia de mim próprio em vibração
+É que me ha de transpôr ás zonas intermédias,
+E seguirei entre cristais de inquietação,
+A retinir, a ondular... Soltas as rédeas,
+Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar
+A tôrre d'ouro que era o carro da minh'Alma,
+Transviarão pelo deserto, muribundos de Luar--
+E eu só me lembrarei num baloiçar de palma...
+Nos oásis, depois, hão de se abismar gumes,
+A atmosfera ha de ser outra, noutros planos:
+As rãs hão de coaxar-me em roucos tons humanos
+Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes...
+
+ * * * * *
+
+Ha sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos...
+A cada passo a minha alma é outra cruz,
+E o meu coração gira: é uma roda de côres...
+Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo...
+Já não é o meu rastro o rastro d'oiro que ainda sigo...
+Resvalo em pontes de gelatina e de bolôres...
+Hoje, a luz para mim é sempre meia-luz...
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+As mesas do Café endoideceram feitas ar...
+Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai êle a valsar
+Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei...
+
+(Subo por mim acima como por uma escada de corda,
+E a minha Ansia é um trapézio escangalhado...).
+
+
+_Lisboa--Maio de 1914_
+
+
+
+
+*DISTANTE MELODIA...*
+
+
+Num sonho d'Iris, morto a ouro e brasa,
+Vem-me lembranças doutro Tempo azul
+Que me oscilava entre véus de tule--
+Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.
+
+Então os meus sentidos eram côres,
+Nasciam num jardim as minhas ansias,
+Havia na minh'alma Outras distancias--
+Distancias que o segui-las era flôres...
+
+Caía Ouro se pensava Estrelas,
+O luar batia sobre o meu alhear-me...
+Noites-lagôas, como éreis belas
+Sob terraços-liz de recordar-me!...
+
+Idade acorde d'Inter sonho e Lua,
+Onde as horas corriam sempre jade,
+Onde a neblina era uma saudade,
+E a luz--anseios de Princesa nua...
+
+Balaústres de som, arcos de Amar,
+Pontes de brilho, ogivas de perfume...
+Dominio inexprimivel d'Ópio e lume
+Que nunca mais, em côr, hei de habitar...
+
+Tapêtes doutras Persias mais Oriente...
+Cortinados de Chinas mais marfim...
+Aureos Templos de ritos de setim...
+Fontes correndo sombra, mansamente...
+
+Zimbórios-panthéons de nostalgias...
+Catedrais de ser-Eu por sobre o mar...
+Escadas de honra, escadas só, ao ar...
+Novas Byzancios-alma, outras Turquias...
+
+Lembranças fluidas... cinza de brocado...
+Irrealidade anil que em mim ondeia...
+--Ao meu redór eu sou Rei exilado,
+Vagabundo dum sonho de sereia...
+
+
+_Paris 1914--Junho 30_
+
+
+
+
+*VISLUMBRE*
+
+
+A horas flébeis, outonais--
+Por magoados fins de dia--
+A minha Alma é água fria
+Em ânforas d'Ouro... entre cristais...
+
+
+_Camarate--Quinta da Vitória.
+Outubro de 1914._
+
+
+
+
+*SUGESTÃO*
+
+
+As companheiras que não tive,
+Sinto-as chorar por mim, veladas,
+Ao pôr do sol, pelos jardins...
+Na sua mágoa azul revive
+A minha dôr de mãos finadas
+Sobre setins...
+
+
+_Paris--Agosto de 1914_
+
+
+
+
+*7*
+
+
+Eu não sou eu nem sou o outro,
+Sou qualquer coisa de intermédio:
+ Pilar da ponte de tédio
+ Que vai de mim para o Outro.
+
+
+_Lisboa--Fevereiro de 1914_
+
+
+
+
+*ANGULO*
+
+
+Aonde irei neste sem-fim perdido,
+Neste mar ôco de certezas mortas?--
+Fingidas, afinal, todas as portas
+Que no dique julguei ter construido...
+
+--Barcaças dos meus impetos tigrados,
+Que oceano vos dormiram de Segrêdo?
+Partiste-vos, transportes encantados,
+De embate, em alma ao rôxo, a que rochêdo?...
+
+--Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
+Onde, em Champanhe, a minha ansia ia,
+Quebraste-vos tambem ou, por ventura,
+Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+Chegaram á baía os galeões
+Com as séte Princesas que morreram.
+Regatas de luar não se correram...
+As bandeiras velaram-se, orações...
+
+Detive-me na ponte, debruçado,
+Mas a ponte era falsa--e derradeira.
+Segui no cais. O cais era abaulado,
+Cais fingido sem mar á sua beira...
+
+--Por sôbre o que Eu não sou ha grandes pontes
+Que um outro, só metade, quer passar
+Em miragens de falsos horizontes--
+Um outro que eu não posso acorrentar...
+
+
+_Barcelona--Setembro de 1914_
+
+
+
+
+*A INEGUALAVEL*
+
+
+Ai, como eu te queria toda de violetas
+E flébil de setim...
+Teus dedos longos, de marfim,
+Que os sombreassem joias pretas...
+
+E tão febril e delicada
+Que não podesses dar um passo--
+Sonhando estrelas, transtornada,
+Com estampas de côr no regaço...
+
+Queria-te nua e friorenta,
+Aconchegando-te em zibelinas--
+Sonolenta,
+Ruiva de éteres e morfinas...
+
+Ah! que as tuas nostalgias fôssem guisos de prata--
+Teus frenesis, lantejoulas;
+E os ócios em que estiolas,
+Luar que se desbarata...
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+Teus beijos, queria-os de tule,
+Transparecendo carmim--
+Os teus espasmos, de sêda...
+
+--Água fria e clara numa noite azul,
+Água, devia ser o teu amor por mim...
+
+
+_Lisboa 1915--Fevereiro 16_
+
+
+
+
+*APOTEOSE*
+
+
+Mastros quebrados, singro num mar d'Ouro
+Dormindo fôgo, incerto, longemente...
+Tudo se me igualou num sonho rente,
+E em metade de mim hoje só móro...
+
+São tristezas de bronze as que inda chóro--
+Pilastras mortas, marmores ao Poente...
+Lagearam-se-me as ansias brancamente
+Por claustros falsos onde nunca óro...
+
+Desci de mim. Dobrei o manto d'Astro,
+Quebrei a taça de cristal e espanto,
+Talhei em sombra o Oiro do meu rastro...
+
+Findei... Horas-platina... Olor-brocado...
+Luar-ansia... Luz-perdão... Orquideas pranto...
+
+. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
+
+--Ó pantanos de Mim--jardim estagnado...
+
+
+_Paris 1914--Junho 28_
+
+
+MARIO DE SÁ-CARNEIRO.
+
+
+
+
+
+*POEMAS*
+
+DE
+
+RONALD DE CARVALHO
+
+
+
+
+*A ALMA QUE PASSA*
+
+
+*I--Sentido*
+
+Fujo de mim como um perfume antigo
+foge ondulante e vago de um missal
+e julgo uma alma estranha andar commigo,
+dizendo adeus a uma aventura irreal.
+
+Sou transparencia, chamma pallida, ansia,
+ultima nau que abandonou o caes.
+No alvôr das minhas mãos chora a distancia
+prôas rachadas, longes de ouro, ideaes...
+
+Sonho meu corpo como de um ausente,
+naufrágo e exsurjo dentro da memoria,
+accórdo num jardim convalescente,
+
+vago perdido em outros num jardim,
+e sinto no clarão da ultima gloria
+a sombra do que sou morrer em mim...
+
+
+*II--Legenda*
+
+A Vida é uma princeza dolorosa
+no seu castelo de rubis e opalas,
+tanjendo ao poente em harpa silenciosa
+uma agonia de almas e de falas...
+
+Colho de tuas mãos a triste rosa,
+Vida que és sombra e sobre mim resvalas.
+Passas, e em tua sombra a ondear saudosa
+vagam fantasmas de desertas salas...
+
+(Vozes perdidas, juramentos a esmo,
+passos que morrem sobre passos, sinos
+accórdam madrugadas em mim mesmo.
+
+E entre trompas, tambores e metralha,
+claveharpas, orgãos, tubas e violinos
+a Vida e a Dôr começam a batalha...)
+
+
+*III--Genese*
+
+Antes a alma que tenho andou perdida,
+foi pedrouço a rolar pelo caminho,
+topazio, opala, perola esquecida
+num bracelete real; foi caule e espinho,
+
+bronze que a mão tocou, aurea jazida
+por entre as ruinas de um paiz maninho,
+e reflectiu, fatal, o olhar da Vida
+no corpo em sangue de um estranho vinho...
+
+Foi casco medieval, foi lança e escudo,
+foi luz lunar e errante de lanterna,
+e depois de exsurgir, triste, de tudo
+
+veio para chorar dentro em meu ser
+a amarga maldição de ser eterna
+e a dôr de renascer quando eu morrer...
+
+
+
+
+*LAMPADA NOCTURNA*
+
+
+Tonta de somno e de doçura
+no alto das garras de marfim
+perdida em sombra a luz procura.
+Alguem morreu dentro de mim...
+
+Pela janela triste e escura
+que abre os balcões para o jardim
+sóbe um perfume de amargura.
+Alguem morreu dentro de mím...
+
+E vaes rompendo silenciosa
+com o fino teu punhal de luxo
+no ultimo vaso a ultima rosa...
+
+E o caule nú reflecte agora
+no teu olhar como um repuxo
+que implora o azul e não demora...
+
+
+
+
+*TORRE IGNOTA*
+
+
+Da sombra se ergue e não demóra
+nas mãos que a cingem desejosas
+o ar a fascina sempre e agora
+e as linhas lava luminosas
+
+O talhe inquieta a luz por fóra
+sonham chimeras dolorosas
+e não floresce na haste da hóra
+nem a volupia de outras rosas
+
+Só de ser unica levanta
+como um sorriso a pedraria
+que o som dos bronzes acalanta
+
+Da sombra se ergue para a gloria
+e a mão que a esflóra é argila fria
+num vôo branco de memoria
+
+
+
+
+*O ELOGIO DOS REPUXOS*
+
+
+Dôr dos repuxos ao Sol-Pôr agonisando
+em plumas e marfins, em rosas de ouro e luz...
+Canto da água que desce em poeira, leve e brando,
+canto da água que sobe e onde o jardim transluz.
+
+Dormem sinos na bruma--a cinza tem affagos...
+Sombras de antigas náos, velas altas a arfar,
+passam em turbilhões pelo fundo dos lagos,
+(a aventura, a conquista, a ansia eterna do mar!)
+
+Repuxos a morrer sobre si mesmos, lentos--
+curvos leques a abrir e a fechar num adejo,
+--mão vencida que vem de vãos incitamentos,
+mão nervosa que vai mais cheia de desejo...
+
+Volupia de fugir--ser longe e ser distancia,
+e tornar logo ao cais e de novo partir!
+Volupia--desejar e não possuir, ser ansia...
+Repuxos a descer, repuxos a subir...
+
+Não fixar emoções, volupia de esquecê-las,
+andar dentro de si perdido na memória...
+(Caçadores ideais de mundos e de estrelas--
+repuxos ao Sol-Pôr cheios de magoa e glória...)
+
+Dôr dos repuxos ao crepusculo cantando!
+desespero, alegria--o labio, a mão... e um beijo.
+Dôr dos repuxos, dôr sangrando, dôr sonhando--
+ir tocar a ilusão e morrer em desejo...
+
+
+
+
+*REFLEXOS*
+
+_(Poema da Alma enferma)_
+
+
+Minha alma treme como um lirio
+dentro da água dos teus olhos--
+minha alma treme como um lirio,
+com as mãos varadas por abrolhos.
+
+Toda de linho de noivado,
+á tua porta a tremer,
+toda de linho de noivado
+minha alma vai amanhecer.
+
+Anda um perfume de alêm-morte
+na sua voz dolorida,
+anda um perfume de alêm-morte
+nas vestes pálidas da vida...
+
+A hora lilaz desabotôa
+em flôres de cinza e braza,
+a hora lilaz desabotôa
+com um rumor sonambulo de asa.
+
+Pelo canal resam os barcos
+cheios de graça e de glória...
+pelo canal resam os barcos
+a triste história da memória...
+
+Minha alma accorda o caes deserto,
+florida em rosas de magoa--
+minha alma accorda o caes deserto,
+e a sua sombra é um cysne na água...
+
+E sobre as lampadas extintas
+tombam funebres antenas,
+e sobre as lampadas extintas
+morrem as ultimas falenas.
+
+As torres scismam pelo espaço.
+No silencio erram violinos--
+as torres scismam pelo espaço...
+na penumbra cogitam sinos...
+
+Minha alma toda se enclausura
+no jardim que entardeceu...
+minha alma toda se enclausura
+num beijo irreal que não nasceu...
+
+Dentro da água dos teus olhos
+minha alma treme como um lirio...
+
+
+RONALD DE CARVALHO.
+
+
+
+
+
+_FERNANDO PESSOA_
+
+
+*O MARINHEIRO*
+
+DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO
+
+
+a Carlos Franco.
+
+
+
+
+Um quarto que é sem duvida num castello antigo. Do quarto vê-se que é
+circular. Ao centro ergue-se, sobre uma eça, um caixão com uma
+donzella, de branco. Quatro tochas aos cantos. Á direita, quasi em
+frente a quem imagina o quarto, ha uma unica janella, alta e estreita,
+dando para onde só se vê, entre dois montes longinquos, um pequeno
+espaço de mar.
+
+Do lado da janella velam trez donzellas. A primeira está sentada em
+frente á janella, de costas contra a tocha de cima da direita. As
+outras duas estão sentadas uma de cada lado da janella.
+
+É noite e ha como que um resto vago de luar.
+
+
+*Primeira veladora*.--Ainda não deu hora nenhuma.
+
+*Segunda*.--Não se podia ouvir. Não ha relogio aqui perto. Dentro
+em pouco deve ser dia.
+
+*Terceira*.--Não: o horizonte é negro.
+
+*Primeira*.--Não desejaes, minha irmã, que nos entretenhamos contando
+o que fômos? É bello e é sempre falso...
+
+*Segunda*.--Não, não fallemos d'isso. De resto, fômos nós alguma
+cousa?
+
+*Primeira*.--Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é bello
+fallar do passado... As horas teem cahido e nós temos guardado
+silencio. Por mim, tenho estado a olhar para a chamma d'aquella vela.
+Ás vezes treme, outras torna-se mais amarella, outras vezes empallidece.
+Eu não sei porque é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas
+irmãs, porque se dá qualquer cousa?...
+
+
+(uma pausa)
+
+
+*A mesma*.--Fallar do passado--isso deve ser bello, porque é inútil
+e faz tanta pena...
+
+*Segunda*.--Fallemos, se quizerdes, de um passado que não tivessemos
+tido.
+
+*Terceira*.--Não. Talvez o tivessemos tido...
+
+*Primeira*.--Não dizeis senão palavras. É tão triste fallar! É um
+modo tão falso de nos esquecermos!... Se passeassemos?...
+
+*Terceira*.--Onde?
+
+*Primeira*.--Aqui, de um lado para o outro. Ás vezes isso vai buscar
+sonhos.
+
+*Terceira*.--De quê?
+
+*Primeira*.--Não sei. Porque o havia eu de saber?
+
+
+(uma pausa)
+
+
+*Segunda*.--Todo este paiz é muito triste... Aquelle onde eu vivi
+outr'ora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada á minha
+janella. A janella dava para o mar e ás vezes havia uma ilha ao longe...
+Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de
+viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquillo que talvez
+eu nunca fôsse...
+
+*Primeira*.--Fóra de aqui, nunca vi o mar. Alli, d'aquella janella,
+que é a unica de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de
+outras terras é bello?
+
+*Segunda*.--Só o mar das outras terras é que é bello. Aquelle
+que nós vemos dá-nos sempre saudades d'aquelle que não veremos
+nunca...
+
+
+(uma pausa)
+
+
+*Primeira*.--Não diziamos nós que iamos contar o nosso passado?
+
+*Segunda*.--Não, não diziamos.
+
+*Terceira*.--Porque não haverá relogio neste quarto?
+
+*Segunda*.--Não sei... Mas assim, sem o relogio, tudo é mais
+afastado e mysterioso. A noite pertence mais a si-propria... Quem
+sabe se nós poderiamos fallar assim se soubessemos a hora que é?
+
+*Primeira*.--Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo dezembros
+na alma... Estou procurando não olhar para a janella... Sei que de
+lá se vêem, ao longe, montes... Eu fui feliz para além de montes,
+outr'ora... Eu era pequenina. Colhia flôres todo o dia e antes de
+adormecer pedia que não m'as tirassem... Não sei o que isto tem de
+irreparavel que me dá vontade de chorar... Foi longe d'aqui que
+isto pôde ser... Quando virá o dia?...
+
+*Terceira*.--Que importa? Elle vem sempre da mesma maneira...
+sempre, sempre, sempre...
+
+
+(uma pausa)
+
+
+*Segunda*.--Contemos contos umas ás outras... Eu não sei contos
+nenhuns, mas isso não faz mal... Só viver é que faz mal... Não
+rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... Não, não vos
+levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho...
+Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar
+que o podia estar tendo... Mas o passado--porque não fallâmos nós
+d'elle?
+
+*Primeira*.--Decidimos não o fazer... Breve raiará o dia e arrepender-nos-hemos...
+Com a luz os sonhos adormecem... O passado
+não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho... Se
+ólho para o presente com muita attenção, parece-me que elle já passou...
+O que é qualquer cousa? Como é que ella passa? Como é
+por dentro o modo como ella passa?... Ah, fallemos, minhas irmãs,
+fallemos alto, fallemos todas juntas... O silencio começa a tomar
+corpo, começa a ser cousa... Sinto-o envolver-me como uma nevoa...
+Ah, fallae, fallae!...
+
+*Segunda*.--Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo...
+Parece-me que entre nós se augmentaram abysmos... Tenho que
+cançar a idéa de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos...
+Este ar quente é frio por dentro, naquella parte que toca na alma...
+Eu devia agora sentir mãos impossiveis passarem-me pelos cabellos...
+As mãos pelos cabellos--é o gesto com que fallam das
+sereias... _(Cruza as mãos sobre os joelhos. Pausa.)_ Ainda ha pouco,
+quando eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado...
+
+*Primeira*.---Eu tambem devia ter estado a pensar no meu...
+
+*Terceira*.--Eu já não sei em que pensava... No passado dos
+outros talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu...
+Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho... Porque é
+que correria, e porque é que não correria mais longe, ou mais
+perto?... Ha alguma razão para qualquer cousa ser o que é? Ha
+para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?...
+
+*Segunda*.--As mãos não são verdadeiras nem reaes... São mysterios
+que habitam na nossa vida... Ás vezes, quando fito as minhas
+mãos, tenho medo de Deus... Não ha vento que mova as chammas
+das velas, e olhae, ellas movem-se... Para onde se inclinam ellas?...
+Que pena se alguem pudesse responder!... Sinto-me desejosa de
+ouvir musicas barbaras que devem agora estar tocando em palacios
+de outros continentes... É sempre longe na minha alma... Talvez porque,
+quando creança, corri atraz das ondas á beira-mar. Levei a vida
+pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado
+as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estatua de
+anjo para que nunca mais ninguem olhasse...
+
+*Terceira*.--As vossas phrases lembram-me a minha alma...
+
+*Segunda*.--É talvez por não serem verdadeiras... Mal sei que as
+digo... Repito-as seguindo uma voz que não ouço que m'as está
+segredando... Mas eu devo ter vivido realmente á beira-mar... Sempre
+que uma causa ondeia, eu amo-a... Ha ondas na minha alma...
+Quando ando embalo-me... Agora eu gostaria de andar... Não o
+faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se
+quer fazer... Dos montes é que eu tenho medo... É impossivel que
+elles sejam tão parados e grandes... Devem ter um segredo de pedra
+que se recusam a saber que teem... Se d'esta janella, debruçando-me,
+eu pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-hia um momento da
+minha alma alguem em quem eu me sentisse feliz...
+
+*Primeira*.--Por mim, amo os montes... Do lado de cá de todos
+os montes é que a vida é sempre feia... Do lado de lá, onde mora
+minha mãe, costumavamos sentarmo-nos á sombra dos tamarindos e
+fallar de ir ver outras terras... Tudo alli era longo e feliz como
+o canto de duas aves, uma de cada lado do caminho... A floresta
+não tinha outras clareiras senão os nossos pensamentos... E os nossos
+sonhos eram de que as arvores projectassem no chão outra calma
+que não as suas sombras... Foi decerto assim que alli vivemos, eu
+e não sei se mais alguem... Dizei-me que isto foi verdade para que
+eu não tenha de chorar...
+
+*Segunda*.--Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla
+da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas...
+Eu era pequena e barbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente
+parece me que durmo... Fallae-me das fadas. Nunca ouvi fallar
+d'ellas a ninguem... O mar era grande demais para fazer pensar
+nellas... Na vida aquece ser pequeno... Ereis feliz minha irmã?.
+
+*Primeira*.--Começo neste momento a tel-o sido outr'ora... De
+resto, tudo aquilo se passou na sombra... As arvores viveram-o mais
+do que eu... Nunca chegou quem eu mal esperava... E vós, irmã,
+porque não fallaes?
+
+*Terceira*.--Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que
+vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as diga, pertencerão
+logo ao passado, ficarão fóra de mim, não sei onde, rigidas e
+fataes... Fallo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras
+parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto
+na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E
+toda eu sou um amuleto ou um sacrario que estivesse com consciencia
+de si-proprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta
+escura, atravez do mysterio de fallar... E, afinal, quem sabe
+se eu sou assim e se é isto sem duvida que sinto?...
+
+*Primeira*.--Custa tanto saber o que se sente quando reparamos
+em nós!... Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso...
+Fallae portanto, sem reparardes que existis... Não nos ieis dizer quem
+ereis?
+
+*Terceira*.--O que eu era outr'ora já não se lembra de quem sou...
+Pobre da feliz que eu fui!... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e
+tudo na minha alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a
+minha sombra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes,
+onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquillas
+dos meus dedos... Ás vezes, á beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me...
+Quando eu sorria, os meus dentes eram mysteriosos na
+agua... Tinham um sorriso só d'elles, independente do meu... Era
+sempre sem razão que eu sorria... Fallae-me da morte, do fim de
+tudo, para que eu sinta uma razão p'ra recordar...
+
+*Primeira*.--Não fallemos de nada, de nada... Está mais frio, mas
+porque é que está mais frio? Não ha razão para estar mais frio. Não
+é bem mais frio que está... Para que é que havemos de fallar?...
+É melhor cantar, não sei porquê... O canto, quando a gente canta
+de noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no
+quarto e o aquece a consolar-nos... Eu podia cantar-vos uma canção
+que cantavamos em casa de meu passado. Porque é que não quereis
+que vol-a cante?
+
+*Terceira*.--Não vale a pena, minha irmã... Quando alguem canta,
+eu não posso estar commigo. Tenho que não poder recordar-me. E
+depois todo o meu passado torna-se outro e eu chóro uma vida morta
+que trago commigo e que não vivi nunca. É sempre tarde de mais
+para cantar, assim como é sempre tarde de mais para não cantar...
+
+
+(uma pausa)
+
+
+*Primeira*.--Breve será dia... Guardemos silencio... A vida assim
+o quer... Ao pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá
+e assentava-me á beira d'elle, sobre um tronco de arvore que cahira
+quasi dentro de agua... Sentava-me na ponta e molhava na agua os
+pés, esticando para baixo os dedos. Depois olhava excessivamente
+para as pontas dos pés, mas não era para as ver... Não sei porquê,
+mas parece-me d'este lago que elle nunca existiu... Lembrar-me
+d'elle é como não me poder lembrar de nada... Quem sabe porque
+é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?...
+
+*Segunda*.--Á beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não
+podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremol-o
+sempre ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a
+espuma chia, parece que ha mil vozes minimas a fallar. A espuma
+só parece ser fresca a quem a julga uma... Tudo é muito e nós não
+sabemos nada... Quereis que vos conte o que eu sonhava á beira-mar?
+
+*Primeira*.--Podeis contal-o, minha irmã, mas nada em nós tem necessidade
+de que nol-o conteis... Se é bello, tenho já pena de vir a
+tel-o ouvido. E se não é bello, esperae..., contae-o só depois de o
+alterardes...
+
+*Segunda*.--Vou dizer vol-o. Não é inteiramente falso, porque sem
+duvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que
+eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha
+esquecido que tinha pae e mãe e que houvera em mim infancia
+e outros dias--nesse dia vi ao longe, como uma cousa que eu só pensasse
+em ver, a passagem vaga de uma vela... Depois ella cessou...
+Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não
+sei onde elle teve principio... E nunca tornei a ver outra vela...
+Nenhuma das velas dos navios que sahem aqui de um porto se parece
+com aquella, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...
+
+*Primeira*.--Vejo pela janella um navio ao longe. É talvez aquelle
+que vistes...
+
+*Segunda*.--Não, minha irmã; esse que vêdes busca sem duvida
+um porto qualquér... Não podia ser que aquelle que eu vi buscasse
+qualquér porto...
+
+*Primeira*.---Porque é que me respondestes?... Pode ser... Eu
+não vi navio nenhum pela janella... Desejava ver um e fallei-vos
+d'elle para não ter pena... Contae-nos agora o que foi que sonhastes
+á beira mar...
+
+*Segunda*.--Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido
+numa ilha longinqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e
+aves vagas passavam por ellas... Não vi se alguma vez pousavam...
+Desde que, naufragado, se salvára, o marinheiro vivia alli... Como
+elle não tinha meio de voltar á patria, e cada vez que se lembrava
+d'ella soffria, poz-se a sonhar uma patria que nunca tivesse tido; poz-se
+a fazer ter sido sua uma outra patria, uma outra especie de paiz,
+com outras especies de paysagens, e outra gente, e outro feitio de passarem
+pelas ruas e de se debruçarem das janellas... Cada hora elle
+construía em sonho esta falsa patria, e elle nunca deixava de sonhar,
+de dia á sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada
+de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia,
+de costas, e não reparando nas estrellas.
+
+*Primeira*.--Não ter havido uma arvore que mosqueasse sobre as
+minhas mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!...
+
+*Terceira*.--Deixae-a fallar... Não a interrompaes... Ella conhece
+palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar...
+Dizei, minha irmã, dizei... Meu coração doe-me de não ter
+sido vós quando sonhaveis á beira mar...
+
+*Segunda*.--Durante annos e annos, dia a dia o marinheiro erguia
+num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha
+uma pedra de sonho nesse edificio impossivel... Breve elle ia tendo
+um paiz que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se
+já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que côr
+soiam ser os crepusculos numa bahia do norte, e como era suave
+entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmurio da agua que
+o navio abria, num grande porto do sul onde elle passára outr'ora,
+feliz talvez, das suas mocidades a supposta...
+
+
+(uma pausa)
+
+
+*Primeira*.--Minha irmã, porque é que vos calaes?
+
+*Segunda*.--Não se deve fallar demasiado... A vida espreita-nos
+sempre... Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não
+o saber... Quando fallo de mais começo a separar-me de mim e a
+ouvir-me fallar. Isso faz com que me compadeça de mim-propria e
+sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa
+de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho... Vêde:
+o horizonte empallideceu... O dia não póde já tardar... Será preciso
+que eu vos falle ainda mais do meu sonho?
+
+*Primeira*.--Contae sempre, minha irmã, contae sempre... Não
+pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca
+raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não
+torçaes as mãos. Isso faz um ruido como o de uma serpente furtiva...
+Fallae-nos muito mais do vosso sonho. Elle é tão verdadeiro que não
+tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca musica na
+alma...
+
+*Segunda*.--Sim, fallar-vos-hei mais d'elle. Mesmo eu preciso de
+vol-o contar. À medida que o vou contando, é a mim tambem que o
+conto... São trez a escutar... _(De repente, olhando para o caixão,
+e estremecendo.)_ Trez não... Não sei... Não sei quantas...
+
+*Terceira*.--Não falleis assim... Contae depressa, contae outra
+vez... Não falleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos
+quantas cousas realmente vivem e vêem e escutam... Voltae ao vosso
+sonho... O marinheiro... O que sonhava o marinheiro?...
+
+*Segunda* _(mais baixo, numa voz muito lenta)_.--Ao principio elle
+creou as paysagens; depois creou as cidades; creou depois as ruas
+e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na materia da sua alma--
+uma a uma as ruas, bairro a bairro, até ás muralhas dos caes d'onde
+elle creou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as
+percorria e que olhava sobre ellas das janellas... Passou a conhecer
+certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as
+vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas
+paysagens e as vae vendo... Depois viajava, recordado, atravez
+do paiz que creara... E assim foi construindo o seu passado... Breve
+tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova patria, um
+logar onde nascera, os logares onde passara a juventude, os portos
+onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infancia e depois
+os amigos e inimigos da sua edade viril... Tudo era differente de
+como elle o tivera--nem o paiz, nem a gente, nem o seu passado
+proprio se pareciam com o que haviam sido... Exigís que eu continue?...
+Causa-me tanta pena fallar d'isto!... Agora, porque vos fallo
+d'isto, aprazia-me mais estar-vos fallando de outros sonhos...
+
+*Terceira*.--Continuae, ainda que não saibaes porquê... Quanto
+mais vos ouço, mais me não pertenço...
+
+*Primeira*.--Será bom realmente que continueis? Deve qualquer
+historia ter fim? Em todo o caso fallae... Importa tão pouco o que
+dizemos ou não dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso
+mister é inutil como a Vida...
+
+*Segunda*.--Um dia, que chovêra muito, e o horizonte estava mais
+incerto, o marinheiro cançou-se de sonhar... Quiz então recordar a
+sua patria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que
+ella não existia para elle... Meninice de que se lembrasse, era a na
+sua patria de sonho; adolescencia que recordasse, era aquella que se
+creara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E
+elle viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se elle
+nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se
+lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e
+tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que
+tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... Ó minhas
+irmãs, minhas irmãs... Ha qualquer cousa, que não sei o que é, que
+vos não disse..., qualquer cousa que explicaria isto tudo... A minha
+alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a fallar... Fallae-me, gritae-me,
+para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante
+vós e que ha cousas que são apenas sonhos...
+
+*Primeira* _(numa voz muito baixa)_.--Não sei que vos diga... Não
+ouso olhar para as cousas... Esse sonho como continúa?...
+
+*Segunda*.--Não sei como era o resto... Mal sei como era o
+resto... Porque é que haverá mais?...
+
+*Primeira*.--E o que aconteceu depois?
+
+*Segunda*.--Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?...
+Veiu um dia um barco... Veiu um dia um barco...--Sim, sim...
+só podia ter sido assim...--Veiu um dia um barco, e passou por
+essa ilha, e não estava lá o marinheiro...
+
+*Terceira*.--Talvez tivesse regressado á patria... Mas a qual?
+
+*Primeira*.--Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabel-o-hia
+alguem?
+
+*Segunda*.--Porque é que m'o perguntaes? Ha resposta para
+alguma cousa?
+
+
+(uma pausa)
+
+
+*Terceira*.--Será absolutamente necessario, mesmo dentro do vosso
+sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?
+
+*Segunda*.--Não, minha irmã; nada é absolutamente necessario.
+
+*Primeira*.--Ao menos, como acabou o sonho?
+
+*Segunda*.--Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba...
+Sei eu ao certo se o não continúo sonhando, se o não sonho sem o
+saber, se o sonhal-o não é esta cousa vaga a que eu chamo a minha
+vida?... Não me falleis mais... Principío a estar certa de qualquer
+cousa, que não sei o que é... Avançam para mim, por uma noite que
+não é esta, os passos de um horror que desconheço... Quem teria eu
+ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo
+disforme de que Deus tivesse prohibido o meu sonho... Elle é sem
+duvida mais real do que Deus permitte... Não estejaes silenciosas...
+Dizei-me ao menos que a noite vae passando, embora eu o saiba...
+Vêde, começa a ir ser dia... Vêde: vae haver o dia real... Paremos...
+Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura
+interior... Quem sabe o que está no fim d'ella?... Tudo isto, minhas
+irmãs, passou-se na noite... Não fallemos mais d'isto, nem a nós-proprias...
+É humano e conveniente que tomemos, cada qual a sua
+attitude de tristeza.
+
+*Terceira*.--Foi-me tão bello escutar-vos... Não digaes que não...
+Bem sei que não valeu a pena... É porisso que o achei bello... Não
+foi porisso, mas deixae que eu o diga... De resto, a musica da vossa
+voz, que escutei ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez
+só por ser musica, descontente...
+
+*Segunda*.--Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens
+que pensam cançam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que
+passam provam-o, porque mudam com tudo... De eterno e bello ha
+apenas o sonho... Porque estamos nós fallando ainda?...
+
+*Primeira*.--Não sei... _(olhando para o caixão, em voz mais baixa)_
+Porque é que se morre?
+
+*Segunda*.--Talvez por não se sonhar bastante...
+
+*Primeira*.--É possivel... Não valeria então a pena fecharmo-nos
+no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?...
+
+*Segunda*.--Não, minha irmã: nada vale a pena...
+
+*Terceira*.--Minhas irmãs, é já dia... Vêde, a linha dos montes
+maravilha-se... Porque não choramos nós?... Aquella que finge estar
+alli era bella, e nova como nós, e sonhava tambem... Estou certa
+que o sonho d'ella era o mais bello de todos... Ella de que sonharia?...
+
+*Primeira*.--Fallae mais baixo. Ella escuta-nos talvez, e já sabe
+para que servem os sonhos...
+
+
+(uma pausa)
+
+
+*Segunda*.--Talvez nada d'isto seja verdade... Todo este silencio,
+e esta morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho...
+Olhae bem para tudo isto... Parece-vos que pertence á vida?...
+
+*Primeira*.--Não sei. Não sei como se é da vida... Ah, como vós
+estaes parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente...
+
+*Segunda*.--Não vale a pena estar triste de outra maneira... Não
+desejaes que nos calemos? É tão extranho estar a viver... Tudo o
+que acontece é inacreditavel, tanto na ilha do marinheiro como neste
+mundo... Vêde, o céu é já verde... O horizonte sorri ouro... Sinto
+que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar...
+
+*Primeira*.--Chorastes, com effeito, minha irmã.
+
+*Segunda*.--Talvez... Não importa... Que frio é este?... O que
+é isto?... Ah, é agora... é agora... Dizei-me isto... Dizei-me uma
+cousa ainda... Porque não será a unica cousa real nisto tudo o marinheiro,
+e nós e tudo isto aqui apenas um sonho d'elle?...
+
+*Primeira*.--Não falleis mais, não falleis mais... Isso é tão extranho
+que deve ser verdade... Não continueis... O que ieis dizer não
+sei o que é, mas deve ser de mais para a alma o poder ouvir...
+Tenho medo do que não chegastes a dizer... Vêde, vêde, é dia já...
+Vêde o dia... Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, alli
+fóra... Vêde-o, vêde-o... Elle consola... Não penseis, não olheis
+para o que pensaes... Vêde-o a vir, o dia... Elle brilha como ouro
+numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se á medida que
+se coloram... Se nada existisse, minhas irmãs?... Se tudo fosse, de
+qualquer modo, absolutamente cousa nenhuma?... Porque olhastes
+assim?...
+
+
+(Não lhe respondem. E ninguem olhara de nenhuma maneira.)
+
+
+*A mesma*.--Que foi isso que dissestes e que me apavorou?... Senti-o
+tanto que mal vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu,
+ouvindo-o segunda vez, já não tenha tanto mêdo como d'antes... Não,
+não... Não digaes nada... Não vos pergunto isto para que me respondaes,
+mas para fallar apenas, para me não deixar pensar... Tenho
+medo de me poder lembrar do que foi... Mas foi qualquer cousa
+de grande e pavoroso como o haver Deus... Deviamos já ter acabado
+de fallar... Ha tempo já que a nossa conversa perdeu o sentido...
+O que ha entre nós que nos faz fallar prolonga-se demasiadamente...
+Ha mais presenças aqui do que as nossas almas... O dia devia ter
+já raiado... Deviam já ter acordado... Tarda qualquer cousa...
+Tarda tudo... O que é que se está dando nas cousas de accordo com
+o nosso horror?... Ah, não me abandoneis... Fallae commigo, fallae
+commigo... Fallae ao mesmo tempo do que eu para não deixardes
+sosinha a minha voz... Tenho menos medo á minha voz do que
+á idéa da minha voz, dentro de mim, se fôr reparar que estou fallando...
+
+*Terceira*.--Que voz é essa com que fallaes?... É de outra...
+Vem de uma especie de longe...
+
+*Primeira*.--Não sei... Não me lembreis isso... Eu devia estar
+fallando com a voz aguda e tremida do mêdo... Mas já não sei como
+é que se falla... Entre mim e a minha voz abriu-se um abysmo...
+Tudo isto, toda esta conversa, e esta noite, e este mêdo--tudo isto
+devia ter acabado, devia ter acabado de repente, depois do horror que
+nos dissestes... Começo a sentir que o esqueço, a isso que dissestes,
+e que me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para
+exprimir um horror de aquelles...
+
+*Terceira* _(para a Segunda)_.--Minha irmã, não nos devieis ter
+contado essa historia. Agora extranho-me viva com mais horror. Contaveis
+e eu tanto me distrahia que ouvia o sentido das vossas palavras
+e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e
+o sentido do que dizieis eram trez entes differentes, como trez creaturas
+que fallam e andam.
+
+*Segunda*.--São realmente trez entes differentes, com vida propria
+e real. Deus talvez saiba porquê... Ah, mas porque é que fallamos?
+Quem é que nos faz continuar fallando? Porque fallo eu sem querer
+fallar? Porque é que á não reparamos que é dia?...
+
+*Primeira*.--Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me
+a gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha
+vontade para a minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter
+mêdo de que alguem possa agora bater àquella porta. Porque não bate
+alguem á porta? Seria impossivel e eu tenho necessidade de ter mêdo
+d'isso, de saber de que é que tenho mêdo... Que extranha que me sinto!...
+Parece-me já não ter a minha voz... Parte de mim adormeceu e ficou
+a vêr... O meu pavôr cresceu mas eu já não sei sentil-o... Já
+não sei em que parte da alma é que se sente... Puzeram ao meu sentimento
+do meu corpo uma mortalha de chumbo... Para que foi que
+que nos contastes a vossa historia?
+
+*Segunda*.--Já não me lembro... Já mal me lembro que a contei...
+Parece ter sido já ha tanto tempo!... Que somno, que somno absorve
+o meu modo de olhar para as cousas!... O que é que nós queremos
+fazer? o que é que nós temos idéa de fazer?--já não sei se é fallar
+ou não fallar...
+
+*Primeira*.--Não fallemos mais. Por mim, cança-me o esforço que
+fazeis para fallar... Dóe-me o intervallo que ha entre o que pensaes
+e o que dizeis... A minha consciencia boia á tona da somnolencia
+apavorada dos meus sentidos pela minha pelle... Não sei o que é isto,
+mas é o que sinto... Preciso dizer phrases confusas, um pouco longas,
+que custem a dizer... Não sentis tudo isto como uma aranha
+enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende?
+
+*Segunda*.--Não sinto nada... Sinto as minhas sensações como uma
+cousa que se não sente... Quem é que eu estou sendo?... Quem é
+que está fallando com a minha voz?... Ah, escutae...
+
+*Primeira e Terceira*.--Quem foi?
+
+*Segunda*.--Nada. Não ouvi nada... Quiz fingir que ouvia para que
+vós suppozesseis que ouvieis e eu pudesse crêr que havia alguma cousa
+a ouvir... Oh, que horror, que horror intimo nos desata a voz da alma,
+e as sensações dos pensamentos, e nos faz fallar e sentir e pensar
+quando tudo em nós pede o silencio e o dia e a inconsciencia da vida...
+Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe
+sempre que vamos a sentir?...
+
+*Primeira*.--Para quê tentar apavorar-me?... Não cabe mais terror
+dentro de mim... Peso excessivamente ao collo de me sentir.
+Afundei-me toda no lodo morno do que supponho que sinto. Entra-me
+por todos os sentidos qualquer cousa que m'os pega e m'os vela. Pesam
+as palpebras a todas as minhas sensações. Prende-se a lingua a
+todos os meus sentimentos. Um somno fundo colla uma ás outras as
+idéas de todos os meus gestos... Porque foi que olhastes assim?...
+
+*Terceira* _(numa voz muito lenta e apagada)_.--Ah, é agora, é
+agora... Sim, acordou alguem... Ha gente que acorda... Quando
+entrar alguem tudo isto acabará... Até lá façamos por crêr que todo
+este horror foi um longo somno que fomos dormindo... É dia já...
+Vae acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois
+feliz, porque acreditaes no sonho...
+
+*Segunda*.--Porque é que m'o perguntaes? Porque eu o disse? Não,
+não acredito...
+
+
+Um gallo canta. A luz, como que subitamente,
+augmenta. As trez veladoras quedam-se silenciosas
+e sem olharem umas para as outras.
+
+Não muito longe, por uma estrada, um vago
+carro geme e chia.
+
+
+_11/12 Outubro, 1913._
+
+
+FERNANDO PESSÔA.
+
+
+
+
+
+*TREZE SONETOS*
+
+DE
+
+ALFREDO PEDRO GUISADO
+
+
+
+
+_ADORMECIDA_
+
+
+As tuas mãos dormiam na lagôa incenso.
+E pelas alamedas destruídas, loucas,
+Desceu-se em mim minha alma a procurar as bocas
+Que me rezaram Ser sôbre o teu manto extenso.
+
+Vagamente desceu sôbre o silêncio, a arfar,
+Combatendo de luz, a esvoaçar no ataque...
+E de noite caiu Egipto em meu olhar,
+Nos teus braços em cruz, sepulcros em Karnak.
+
+Bocas de Faraós rezam múmias cansadas...
+Tebas em mim fenece em bronze de toadas,
+Apagando-se em cinza em lâmpadas sombrias.
+
+E tu adormecida há tanto tempo, em pranto.
+Os cisnes na lagôa embranqueceram tanto,
+Que se esqueceram Côr nas tuas mãos esguías.
+
+
+
+
+_SONHO EGÍPCIO_
+
+
+No palácio, os pavões são apenas dizê-los...
+As asas côr do longe erguidas sôbre mim.
+Existem os pavões... O meu sentir-me é vê-los...
+E o meu sonhar-te, alêm, são lagos no jardim.
+
+Quando passei no parque, eu encontrei Nitokris.
+Vi-a. Fitei-lhe as mãos para poder senti-las...
+Meus olhos foram naus em águas intranquilas,
+Meus sentidos, aneis nos dedos de Nitokris.
+
+Labirinto de sons. Adormeço-me oiro.
+Ansia apagada. Deus desce minha alma em oiro.
+Meus olhos p'ra te ver, arcadas nos espelhos.
+
+Rezas que nunca ouvi. Hálitos de saudades.
+E as tuas mãos, ao largo, ungindo divindades
+Scismam Ibis, pagãos, sôbre tapetes velhos.
+
+
+
+
+_PAGÃO_
+
+
+... Lembro-me então de mim. Rezo-me longe. Scismo.
+E o lembrar-me de mim são os meus passos idos.
+Arqueia-se em azul meu próprio misticismo
+E eu fico apenas Côr sôbre vitrais vencidos.
+
+O teu hálito é luz em candelabros velhos
+Aos cantos dos salões onde me vejo a orar,
+E os teus passos de Dôr são um quebrar de espelhos.
+Quando te quero ver, morres no meu olhar.
+
+Abraço-me chorando. O teu morrer é vêr-me,
+Oiro de asas em Tule, ardendo antiguidade--
+E o ter-te visto morta, o mêdo de perder-me.
+
+Procuro-me em silêncio e oiço-me em teus passos.
+Sôbre altares pagãos ergo-me divindade
+E Isis dorme meu Ser em cortinados lassos!
+
+
+
+
+_VER-TE_
+
+
+Estendi os meus braços p'ra abraçar-te
+E entre nós uma porta se cerrou.
+Um sôpro de rubins em mim voou,
+Sôpro que permitiu poder sonhar-te.
+
+Saía a tua sombra p'las janelas
+E perdia-se, ao largo, em arvoredos...
+Os meus dedos scismando caravelas,
+Eram prolongamentos dos teus dedos.
+
+Num parque de oliveiras te sonhei
+Erguendo-te do oiro que queimei
+Nas ânforas do templo do meu Ser.
+
+Parece que te vejo e tu estás longe...
+Afastei-me de mim para ser monge...
+Meus olhos são a sombra de te ver!
+
+
+
+
+_PRINCESA LOUCA_
+
+
+Vejo passar na curva da alameda
+Uma princesa há muitos anos louca,
+Princesa cujo Corpo é uma roca
+Em principados de faisões de seda.
+
+A sua sombra, uma lagôa azul.
+As suas mãos tecendo pinheirais,
+Lembram-me naus sempre chegando ao cais,
+Águias sem asas num palácio, em Tule.
+
+Seus dedos, pregos que pregaram Cristo.
+Olha-me longe. Em seu olhar existo...
+Passo nas rezas duma antiga boca...
+
+Arqueio-me a sonhar sôbre marfim.
+Sou arco com que brinca no jardim
+Essa princesa há tantos anos louca.
+
+
+
+
+_MÃOS DE CEGA_
+
+
+I
+
+Sinto que as tuas mãos são teus olhos vencidos,
+Teus olhos que esquecendo as orações da luz
+São claustros apagando os passos esquecidos
+De Deus ao regressar de amortalhar Jesus.
+
+Sinto-as tanger ainda os violinos velhos,
+Onde os dedos saltando em cordas de oiro, à tarde,
+Te cegaram de som. E em candelabros arde
+O teu antigo olhar emoldurando espelhos.
+
+Teus dedos ao bater nas tuas mãos são remos.
+Inda vejo nas salas do palácio, arfando,
+As tuas mãos de Dôr entreabrindo as portas.
+
+Buscamo-nos em Côr e quando nos perdemos
+Passam as tuas mãos em meus dedos, scismando
+Estátuas de marfim sôbre as arcadas, mortas...
+
+
+II
+
+Morreram os leões que guardavam perdidos
+A branca escadaria. Velhos leões sombrios...
+Dêles apenas resta o eco dos rugidos
+Que os arcos dos salões tornaram mais esguios.
+
+As rendas que fiaste adormeciam bocas
+E as rugas no teu rosto iam caindo, fundas...
+No fim do parque, à noite, as águias moribundas
+Guardavam em silêncio as destroçadas rocas.
+
+Fiavas noutro tempo os teus olhos dormentes.
+Deixaste de os fiar e os teus olhos arderam
+Na côr das tuas mãos, na cruz de outros poentes...
+
+Cega de mim, partiste. E quando regressaste
+Manchada de Distância, os meus sentidos eram
+Palmeiras ladeando a estrada onde passaste!
+
+
+
+
+_ESQUECENDO_
+
+
+Os lagos dormem cisnes na alameda
+E as portas do palácio estão fechadas.
+As folhas a caír, rezando seda,
+Sonham paisagens mortas, afastadas...
+
+Essas paisagens foram tuas aias.
+Flautas ao longe foram teus sentidos.
+E as tuas mãos ao desfiar vestidos
+Dormiram franjas em doiradas saias.
+
+A tua Sombra o seu olhar perdeu...
+Não sei se não serás um gesto meu,
+Um gesto de meus dedos longos, frios...
+
+Não sei quem és... Meus olhos esquecidos
+Sentem-te em mim, dormir nos meus sentidos...
+Meus sentidos, arcadas sôbre rios...
+
+
+
+
+_SALOMÉ_
+
+
+I
+
+Dançava Salomé sôbre mistérios idos.
+--Tarde bronze a morrer. Poente em véus vermelhos--
+Os seus sentidos, longe, eram bailados velhos,
+E o seu Corpo, a bailar, é que era os seus sentidos.
+
+Dançava Salomé nas suas mãos morenas
+Que eram salões de seda, a descerrar o hábito.
+E Ela quando se via era o seu próprio hálito,
+E o Corpo no bailado era uma curva apenas.
+
+Dançava Salomé.--E os seus olhos ao vê-la,
+Cerravam-se leões com mêdo de perdê-la,
+Leões bebendo luz na luz dos olhos seus...
+
+Não vejo Salomé.--Talvez adormecida...
+Talvez no meu olhar Ausência dolorida...
+Talvez boca pagã beijando as mãos de Deus...
+
+
+II
+
+Deus, longo cais em mim, donde outras naus singrando
+Conduzem para o Longe o meu não existir.
+Morena, Salomé, entre vitrais bailando.
+Arcadas-sensações transpondo o seu Sentir.
+
+Fita paisagens-Ansia em suas mãos cansadas,
+Paisagens a sonhar castelos nunca erguidos.
+E os lábios percorrendo em lume os seus sentidos,
+Scismam príncipes-Côr descendo das arcadas.
+
+Há entre Ela e Deus o corpo de João.
+E em seu olhar, dormindo um bronze de oração,
+É sombra do bailado um inclinar de palma.
+
+Baila seu Corpo ainda. E Deus nos seus bailados.
+Bailados-asas, longe, em capiteis bordados,
+Gestos de Deus caindo entre molduras-Alma!
+
+
+
+
+_MORTE DE SALOMÉ_
+
+
+Apagaram-se bronze os círios que sonhara.
+Erguidos no seu Ser, sentidos-mausoléus.
+O palácio, no parque, era um olhar de Deus
+E as salas do palácio, os bailes que bailara.
+
+Ela, taça caída em uma orgia infinda,
+Taça vencida de Alma em pálios afastados.
+Seu Corpo tinha sido algum dos seus bailados,
+E a sua própria Morte era um bailado ainda.
+
+Eram as suas mãos rainhas em impérios
+Onde passavam reis com séquitos mistérios,
+Adagas de marfim erguidas noutras mãos.
+
+Seu Corpo, cinto de oiro ao seu redor, dormindo,
+Um hálito de Deus sôbre missais caindo,
+Cinza de Alma rezando outros Jesus, pagãos.
+
+
+
+
+_RECORDANDO_
+
+
+Sinto as cores, de noite, terem mêdo
+E acolherem-se à sombra do teu luto.
+Eu fui um rei dos godos, que em Toledo
+O Tejo adormeceu e ainda escuto.
+
+Cercam-se de oiro as salas que habitei,
+Oiro-cinza esquecido, oiro dormente.
+E em minha Alma, na qual inda sou rei
+Scismo tronos caindo lentamente.
+
+Buscam-me pagens tristes nos caminhos.
+E a minha lenda em sonhos pergaminhos
+Vai escrevendo em silêncio o meu scismar.
+
+São outros os domínios que vivi
+Todas as coisas que eu outrora vi
+Regressaram mistério ao meu olhar.
+
+
+
+
+_ANTE DEUS_
+
+
+Quando te vi eu fui o teu voar
+E desci Deus p'ra me encontrar em mim.
+Voei-me sôbre pontes de marfim--
+E uma das pontes, Deus, em meu olhar!
+
+Aureolei-me de oiro em sombra fria
+E meus vôos cairam destruídos.
+Foram dedos de Deus os meus sentidos.
+Meu Corpo andou ao colo de Maria.
+
+Agora durmo Cristo em véus pagãos.
+São tapetes de Deus as minhas mãos.
+Regresso Ansia p'ra alcançar os céus.
+
+Ergo-me mais. Sou o perfil da Dôr.
+Sôbre os ombros de Deus olho em redor
+E Deus não sabe qual de nós é Deus!
+
+
+ALFREDO PEDRO GUISADO.
+
+
+
+
+
+*FRIZOS*
+
+DO DESENHADOR
+
+JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS
+
+
+
+
+*CIUMES*
+
+
+Pierrot dorme sobre a relva junto ao lago. Os cisnes junto d'elle
+passam sêde, não n'o acordem ao beber.
+
+Uma andorinha travêssa, linda como todas, avôa brincando rente
+á relva e beija ao passar o nariz de Pierrot. Elle accorda e a andorinha,
+fugindo a muito, olha de medo atraz, não venha o Pierrot de
+zangado persegui-la pelos campos. E a andorinha perdia-se nos montes,
+mas, porque elle se queda, de nôvo volta em zig-zags travêssos
+e chilreios de troça. E chilreia de troça, muito alto, por cima d'elle.
+Pierrot já se adormecia, e a andorinha em descida que faz calafrios
+pousou-lhe no peito duas ginjas bicadas, e fugiu de nôvo.
+
+De contente, ergueu-se sorrindo e de joelhos, braços erguidos,
+seus olhos foram tão longe, tão longe como a andorinha fugida nos
+montes.
+
+De repente viu-se cego--os dedos finissimos da Colombina brincavam
+com elle. Desceu-lhe os dedos aos labios e trocou com beijos
+o arôma das palmas perfumadas. Depois dependurou-lhe de cada
+orelha uma ginja, á laia de brincos com joias de carmim. Rolaram-se
+na relva e uniram as boccas, e já se esqueciam de que as tinham
+juntas...
+
+--Sabes? Uma andorinha...
+
+E foram de enfiada as graças da ave toda paixão. Pierrot contava
+enthusiasmado, olhando os montes ainda em busca da andorinha,
+e Colombina torceu o corpo numa dôr calada e tomou-lhe as mãos.
+
+Havia na relva uma máscara branca de dôr, e a lua tinha nos
+olhos claros um olhar triste que dizia: Morreu Colombina!
+
+
+
+
+*O ECHO*
+
+
+Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
+
+Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça
+branca lá da floresta.
+
+Era p'lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
+
+Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem,
+tambem chamou Adão.
+
+Teve mêdo: Mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E
+uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
+
+Foi-se triste para a tenda.
+
+Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
+
+E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
+
+--Outra que não Ella chamára tambem por Elle.
+
+
+
+
+*SÈVRES PARTIDO*
+
+
+A amazona negra era bella como o sol e triste como o luar, e
+ninguem acredita mas era pastora de galgas. Figura negra muito esguia,
+cypreste procurando vaga na margem do caminho.
+
+Nas manhãs de Outomno, frias como os degraus do tanque, era
+Ella quem largava ás galgas a lebre cinzenta, e a que a filásse já
+sabia com quem dormia a sésta. E as galgas já nem dormiam bem
+noutra almofada.
+
+Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarellecidas
+dos plátanos onde os repuxos do tanque cuspiam lagryrnas de vidro,
+a Amazona negra sonhava o seu Principe encantado e a galga do dia
+dormia quieta, estendido o focinho no ventre d'Ella.
+
+Uma manhã mais turva as galgas todas voltaram tristes, de focinhos
+pendidos--e nenhuma para dormir a sésta!
+
+Uma flauta triste vinha de viagem pelo caminho; chorava de seguida
+imensas canções de choros e tinha acompanhamentos funéreos
+de guisalhádas surdas.
+
+Callou-se a flauta, um cypreste distante gemia baixinho as dôres
+da tatuagem que lhe iam abrindo no peito. O pastor lembrava ali o
+nome do seu Bem. Pendia-lhe da cinta uma lebre cinzenta e a funda
+torcida.
+
+As galgas como settas deixaram nú o caminho. E as guisalhadas...
+
+
+
+
+*MIMA FATAXA*
+
+
+Ella marcára-lhe na vespera aquelle rendez-vous no muro do
+cemiterio. De feito Elle tornara escrava de uma cigana a sua alma
+apaixonada de uma rainha loira senhora de todas as ciganas. Fôra
+d'Ella desde o dia em que, seguindo o ritmo acanalhado das ancas
+desconjuntadas, ficou enfeitiçado por aquelles dentes brancos ferindo
+lume no colar de pederneiras. Sentiu desejos de morder aquelles labios
+ardendo vermêlhos incendios de beijos e as faces fumadas do
+lume d'aquella bocca. E estranhava o seu coração vencido pela monotonia
+dos berros das cantorias com acompanhamentos de urros de
+pandeiro. Enfeitiçara-o aquella vagabunda de olhos ardidos compondo
+as tranças nos fundos dos caldeirões de cobre onde durante o sol um
+tisnado cigano consumia as horas em maçadôras marteladas. Encantára-o
+aquella feiticeira afiando as tranças nos labios molhados da
+saliva. E nas danças o tic-tac metalico das sandálias, matrácas tagarélas
+a cantar nas lágens, tinha um telintar jovial; e os pulsos cingidos
+de guizos eram um concerto de amarellos canarios contentes da
+gaiola.
+
+E mais bella do que nunca no chafariz real, de saias arregaçadas,
+a lavar as pernas da poeira das estradas e bellamente descomposta a
+enfiar as meias muito grossas, vermêlhas da côr das papoulas, e a dár
+um nó-cego num retorcido nastro branco muito negro á laia de liga
+muito acima do joelho... E tem graça que a sua morenez não era
+por via do sol, pois toda ella era queimada. Quem a visse trepar nas
+amoreiras e despi-las das amóras que lhe ensanguentavam os labios
+e as faces e os dedos sem cuidar no vento que lhe levanta as saias,
+teria tido como Elle um sorriso de desejos, iria como Elle fingir a
+sésta por debaixo da linda amoreira.
+
+E na descida, co'a saia erguida á laia de cabaz, meio tonta, meio
+embriagada p'las amóras em demasia, vê-la-hia tão bella como em
+sonhos se desenha uma mulher para nós. E escarranchada no tronco
+deixava-se escorregar lentamente, mas teve subida forçada por via da
+haste que ficava em riba. Depois dependurou-se de um galho rijo,
+abriu as mãos e foi de vez chapar-se na relva. E de bruços, como uma
+cabra a espojar-se, começou de juntar os fructos espalhados. E os
+seus olhos de gata, de gata que brinca nos telhados vermêlhos com
+a lua branca, mais do que amóras colhiam.
+
+
+
+
+*A SOMBRA*
+
+(TRADUCÇÃO DE UM POEMA DE UMA LINGUA DESCONHECIDA)
+
+
+Foi ali que um dia sentiu desejos de partir tambem. Que ficava
+fazendo sósinha? Quem leva uma lança, leva a mulher tambem.
+
+
+O seu châle negro tem um segredo, e o seu mal de morte vem
+do mesmo dia.
+
+
+Os annos correram sem nóvas algumas, e as môças finaram-se
+velhas, velhas de tanto esperar.
+
+
+E todas as noites, na margem sombria, uma silhueta franzina de
+tragica sonambula vae seguindo, como um braço murcho de cypreste
+a boiar ao de cima da corrente que o vae levando-mansamente.
+
+
+
+
+*A SÉSTA*
+
+
+Pierrot escondido por entre o amarello dos gyrassois espreita em
+cautela o somno d'ella dormindo na sombra da tangerineira. E ella
+não dorme, espreita tambem de olhos descidos, mentindo o sôno, as
+vestes brancas do Pierrot gatinhando silencios por entre o amarelo
+dos gyrassois. E porque Elle se vem chegando perto, Ella mente
+ainda mais o sôno a mal-resonar.
+
+Junto d'Ella, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo
+na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos
+e lizos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o
+ventre descomposto, quando Ella acordou cançada de tanto sôno fingir.
+
+E Elle ameaça fugida, e Ella furta-lhe a fuga nos braços nús estendidos.
+
+E Ella, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte
+num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ella dormisse
+outra vez.
+
+
+
+
+*CANÇÃO DA SAUDADE*
+
+
+Se eu fosse cego amava toda a gente.
+
+Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu
+amo a minha irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la
+viva na minha edade.
+
+Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde
+móras, dize se vives ou se já nasceste.
+
+Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé
+que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.
+
+Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por
+entre as gentes apressadas.
+
+Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram
+a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
+
+Eu amo os cemiterios--as lágens são espessas vidraças transparentes,
+e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, mulheres
+bellas rindo-se para mim.
+
+Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das
+mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em
+meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
+
+Se eu fosse cego amava toda a gente.
+
+
+
+
+*RUINAS*
+
+
+Pandeiros rôtos e côxas táças de crystal aos pés da muralha.
+
+Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em
+bandolins distantes, surdinas finas de princezas mortas.
+
+Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mãos esguias
+e de cabelleiras embranquecidas.
+
+Aquellas ameias cingiram uma noite peccados sem fim; e ainda
+guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha
+todas as noites réza a chorar: Era uma vez em tempo antigo
+um castello de nobres naquelle lugar... E a lua, a contar, pára um
+instante--tem mêdo do frio dos subterraneos.
+
+Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e rizinhos
+de sêdas.
+
+Aquellas ruinas são o tumulo sagrado de um beijo adormecido--
+cartas lacradas com ligas azues de fechos de oiro e armas reais e
+lizes.
+
+Pobres velhinhas da côr do luar, sem terço nem nada, e sempre
+a rezar...
+
+Noites de insonia com as galés no mar e a alma nas galés.
+
+Archeiros amordaçados na noite em que o côche era de volta ao
+palacio pela tapada d'El-rei. Grande caçada na floresta--galgos brancos
+e Amazonas negras. Cavalleiros vermêlhos e trombêtas de oiro
+no cimo dos outeiros em busca de dois que faltam.
+
+Uma gondola, ao largo, e um pagem nas areias de lanterna erguida
+dizendo pela briza o aviso da noite.
+
+O sapato d'Ella desatou-se nas areias, e fôram calça-lo nas furnas
+onde ninguem vê. Nas areias ficaram as pègadas de um par que
+se beija.
+
+Noticias da guerra--choros lá dentro, e crépes no brazão. Ardem
+cirios, serpentinas. Ha mãos postas entre as flôres.
+
+E a torre morêna canta, molenga, dôze vezes a mesma dôr.
+
+
+
+
+*PRIMAVERA*
+
+
+O sol vae esmolando os campos com bôdos de oiro.
+
+A pastorinha aquecida vae de corrida a mendigar a sombra do
+chorão corcunda, poeta romantico que tem paixão p'la fonte.
+
+Espreita os campos, e os campos despovoados dão-lhe licença
+para ficar núa. Que leves arrepios ao refrescar-se nas aguas! Depois
+foi de vez, meteu-se no tanque e foi espojar-se na relva, a seccar-se
+ao sol. Mas o vento que vinha de lá das Azenhas-do-Mar, trazia peccados
+comsigo. Sentiu desejos de dar um beijo no filho do Senhor
+Morgado. E lembrou-se logo do beijo da horta no dia da feira. Fechou
+os olhos a cegar-se do mau pensamento, mas foi lembrar-se do
+proprio Senhor Morgado á meia noite ao entrar na adega. Abanou a
+fronte para lhe fugir o peccado, mas foi dar comsigo na sachristia a
+deixar o Senhor Prior beijar-lhe a mão, e depois a testa... porque
+Deus é bom e perdôa tudo... e depois as faces e depois a bocca e
+depois... fugiu... Não devia ter fugido... E agora o moleiro, lá no
+arraial, bailando com ella e sem querer, coitado, foi ter ao moinho
+ainda a bailar com ella. E lembra-se ainda--sentada na grande arca,
+e mãos alheias a desapertarem-lhe as ligas e o corpête, emquanto
+ouve a historia triste do moinho com cincoenta malfeitores... Quer
+lembrar-se mais, que seja peccado! quer mais recordações do moinho,
+mas não encontra mais.
+
+Ah! e o boieiro quando, a guiar a junta, topou com ella e lhe
+perguntou se vira por acaso uma borboleta branca a voar a muito,
+uma borboleta muito bonita! Que não, que não tinha visto; mas o
+boieiro desconfiado foi procurando sempre, e até mesmo por debaixo
+dos vestidos.
+
+Como desejava poder ir com todos!
+
+
+Não sabe o que sente dentro de si que a importuna de bem estar.
+
+Teria a borbolêta branca fugido para dentro d'ella?
+
+
+
+
+*TREVAS*
+
+
+De dia não se via nada, mas p'la tardinha já se apercebia gente
+que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, nascendo
+dos pinheiros e morrendo nelles. E os punhaes não brilhavam: eram
+luzes distantes, eram guias de lençoes de linho escorridos de hombros
+franzinos. E a briza que vinha dava gestos de azas vencidas aos lençoes
+de linho, azas brancas de garças caídas por faunos caçadores.
+E o vento segredava por entre os pinheiros os mêdos que nasciam.
+
+E vinha vindo a Noite por entre os pinheiros, e vinha descalça
+com pés de surdina por môr do barulho, de braços estendidos p'ra
+não topar com os troncos; e vinha vindo a noite céguinha como a
+lanterna que lhe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao
+vê-la esconderam os punhaes nos peitos vazios.
+
+A lua é uma laranja d'oiro num prato azul do Egypto com perolas
+desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados
+na briza eram um bailado de estatuas de sonho em vitraes azues. Mãos
+ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se.
+
+Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos,
+havia gemidos da briza dos tumulos, havia surdinas de gritos
+distantes--e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros
+gigantes.
+
+A briza fez-se gritos de pavões perseguidos. E as sombras em
+danças macabras fugiam fumo dos pinheiraes p'lo meu respirar.
+
+Escondidas todas por detraz de todos os pinheiros, chocam-se
+nos ares os punhaes acêsos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda
+rezam a gritar ladainhas da Morte. Veem mais bruxas, trazem alfanges
+e um caixão. Doem-me os cabellos, fecham-se-me os olhos e quatro
+anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de alêm
+do monte vem dizer-me que tudo dorme em silencio na escuridão.
+
+Veiu a manha e foi como de dia: não se via nada.
+
+
+
+
+*CANÇÃO*
+
+
+A pastorinha morreu, todos estão a chorar. Ninguem a conhecia
+e todos estão a chorar.
+
+
+A pastorinha morreu, morreu de seus amôres. Á beira do rio
+nasceu uma arvore e os braços da arvore abriram-se em cruz.
+
+
+As suas mãos compridas já não acenam de alêm. Morreu a pastorinha
+e levou as mãos compridas.
+
+
+Os seus olhos a rirem já não troçam de ninguem. Morreu a pastorinha
+e os seus olhos a rirem.
+
+
+Morreu a pastorinha, está sem guia o rebanho. E o rebanho sem
+guia é o enterro da pastorinha.
+
+
+Onde estão os seus amôres? Ha prendas para Lhe dar. Ninguem
+sabe se é Elle e ha prendas para Lhe dar.
+
+
+Na outra margem do rio deu á praia uma santa que vinha das
+bandas do mar. Vestida de pastora p'ra se não fazer notar. De dia
+era uma santa, á noite era o luar.
+
+
+A pastorinha em vida era uma linda pastorinha; a pastorinha
+mórta é a Senhora dos Milagres.
+
+
+
+
+*A TAÇA DE CHÁ*
+
+
+O luar desmaiava mais ainda uma máscara caida nas esteiras
+bordadas. E os bambús ao vento e os crysanthemos nos jardins e as
+garças no tanque, gemiam com elle a advinharem-lhe o fim. Em róda
+tombávam-se adormecidos os idolos coloridos e os dragões alados.
+E a gueisha, procelana transparente como a casca de um ovo da Ibis,
+enrodilhou-se num labyrinto que nem os dragões dos deuses em dias
+de lagrymas. E os seus olhos rasgados, perolas de Nankim a desmaiar-se
+em agua, confundiam-se scintillantes no luzidio das procelanas.
+
+Elle, num gesto ultimo, fechou-lhe os labios co'as pontas dos dedos,
+e disse a finar-se:--Chorar não é remedio; só te peço que não
+me atraiçoes emquanto o meu corpo fôr quente. Deitou a cabeça nas
+esteiras e ficou. E Ella, num grito de garça, ergueu alto os braços a
+pedir o Ceu para Elle, e a saltitar foi pelos jardíns a sacudir as mãos,
+que todos os que passavam olharam para Ella.
+
+Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar por
+entre os bambús, e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto
+com um leque de marfim.
+
+
+A estampa do pires é igual.
+
+
+JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS.
+
+
+
+
+
+*POEMAS*
+
+DE
+
+CÔRTES-RODRIGUES
+
+
+
+
+_ABERTURA DO "LIVRO DA VIDA"_
+
+
+Transcendencias nubloticas, metaphysicas raras,
+Modelei a minha Obra com minhas mãos avaras.
+Litanias liturgicas de febre de paixão,
+Crepusculos de fogo ardendo em sentimento,
+Columnas de Além-Sonho, arcos de commoção,
+Claustros de Archi-Tristeza aonde o Pensamento
+Vive longe do mundo, em funda adoração...
+
+ Castello esguio
+ Sobre o rio
+ Do Amôr.
+ Armei-me cavalleiro,
+ Quebrou-se minha lança de guerreiro
+ No combate da Dôr.
+
+Architectonicas theorias de Belleza,
+Transfigurações, resurreições, e a Natureza
+No fundo longo, sensitivo da emoção,
+Bysantinos jardins onde a Tarde agonisa,
+Fluidicos aromas em mystica ascenção,
+Emanações d'Amor que a alma divinisa
+Em Alma de outra Alma--eterna communhão...
+
+ Praia tão desconhecida
+ Do mar da vida vivida
+ Onde o luar nunca vem,
+ De onde a nau da minha Alma
+ Parte pela noite calma
+ A caminho do Alêm.
+
+E eis a grande rota seguida em Mim sómente,
+P'ra que parta do mundo e chegue até aos céus,
+E onde Tu e Eu iremos lentamente
+ Da Vida para Deus.
+
+
+_Lisboa--1914._
+
+
+
+
+_POENTE_
+
+
+As minhas sensações--barcos sem velas--
+Erram de mim. Occaso rôxo. Scismo.
+Meus olhos de Não-ver-me são janellas
+ Dando sobre o abysmo.
+
+Abysmo d'Outro Ser. E a Hora chora
+Nostalgica de Si, mas eu de vê-las
+Erro de Ser-me, e a noite sem estrellas
+ Apavora.
+
+Delirio rôxo d'agonia. Prece.
+Poente feito noite. Escuridão.
+Perturbo-me de mim em sensação
+ E dentro em mim desfallece
+ E anoitece
+A sombra do meu Ser na solidão
+ Do dia que morreu
+ E se perdeu
+ E jámais amanhece.
+
+
+_Lisboa--1914._
+
+
+
+
+_AGONIA_
+
+
+Ergo meus olhos vagos na distancia
+ Da sombra do meu Ser...
+Pairam de mim Além, e a minha Ansia
+ Cança de me viver.
+
+Meus olhos espectraes de comoção,
+Olhos de Alma olhando-se a Si,
+Nimbam de luz a longa escuridão
+ Da Vida que vivi.
+
+Auréola de Dôr que finalisa
+Na noite do abysmo do meu nada,
+Silencio, prece, communhão sagrada,
+Sonho de luz que em Ti me divinisa,
+ Tortura do meu fim,
+ Alma ungida
+ E perdida
+Na grandeza de Si. E já sem ver-me,
+Maceração crepuscular de Mim,
+ Agoniso de Ser-me.
+
+
+_Lisboa--1914._
+
+
+
+
+_SÓ_
+
+
+O mar da minha vida não tem longes.
+É tudo água só! E o horisonte
+Funde-se no céu. Por sobre a ponte
+Marcha sinistra a procissão dos monges.
+
+Velas accêsas, opas, ladainha,
+E o rio deslisando para o mar,
+E e as raparigas veem á tardinha
+Buscar á fonte a água sem cantar.
+
+ Ermida branca sobre o monte.
+ Nossa Senhora da Paz...
+
+Peregrino voltei sem ser ouvido.
+Rasguei os meus pés pelo caminho ido.
+Ai, a calma de tudo quanto jaz
+No frio esquecimento! Sobre a ponte
+A procissão caminha. Sob o arco
+ Singrou sereno um barco
+ A caminho do mar.
+Ó perdida visão da minha Ansia!
+Vejo-me só na lugubre distancia,
+Cadaver dos meus sonhos a boiar.
+
+
+_Lisboa--1914._
+
+
+
+
+_OUTRO_
+
+
+Passo triste no mundo, alheio ao mundo.
+Passo no mundo alheio, sem o ver,
+E, mystico, ideal e vagabundo,
+Sinto erguer-se minh'Alma do profundo
+ Abysmo do meu Ser.
+
+Vivo de Mim em Mim e para Mim
+E para Deus em Mím resuscitado.
+Sou Saudade do Longe d'onde vim,
+E sou Ansia do Longe em que por fim
+ Serei transfigurado.
+
+Vivo de Deus, em Deus e para Deus,
+E minh'Alma, somnambula esquecida,
+N'Elle fitando os tristes olhos seus,
+Passa triste e sósinha olhando os céus
+ No caminho da Vida.
+
+Fui Outro e, Outro sendo, Outro serei,
+Outro vivendo a mystica belleza
+Por esta humana fórma que encarnei,
+Por lagrimas de sangue que chorei
+ Na terra de tristeza.
+
+Espirito na Dôr purificado,
+Ser que passa no mundo sem o ver,
+Em esta pobre terra de peccado
+Amor divino em Deus extasiado,
+O meu Ser é Não-Ser em Outro-Ser.
+
+
+_Lisboa--1914._
+
+
+CÔRTES-RODRIGUES.
+
+
+
+
+
+*OPIÁRIO*
+
+E
+
+*ODE TRIUNFAL*
+
+DUAS COMPOSIÇÕES DE
+
+ALVARO DE CAMPOS
+
+PUBLICADAS POR
+
+FERNANDO PESSOA
+
+
+
+
+_OPIÁRIO_
+
+AO SENHOR MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
+
+
+É antes do ópio que a minh'alma é doente.
+Sentir a vida convalesce e estióla
+E eu vou buscar ao ópio que consóla
+Um Oriente ao oriente do Oriente.
+
+Esta vida de bórdo ha-de matar-me.
+São dias só de febre na cabêça
+E, por mais que procure até que adoêça,
+Já não encontro a móla pra adaptar-me.
+
+Em paradoxo e incompetência astral
+Eu vivo a vincos d'ouro a minha vida,
+Onda onde o pundonôr é uma descida
+E os próprios gosos ganglios do meu mal.
+
+É por um mecanismo de desastres,
+Uma engrenagem com volantes falsos,
+Que passo entre visões de cadafalsos
+Num jardim onde ha flores no ar, sem hastes.
+
+Vou cambaleando através do lavôr
+Duma vida-interior de renda e láca.
+Tenho a impressão de ter em casa a fáca
+Com que foi degolado o Precursôr.
+
+Ando expiando um crime numa mála,
+Que um avô meu cometeu por requinte.
+Tenho os nervos na fôrca, vinte a vinte,
+E caí no ópio como numa vála.
+
+Ao toque adormecido da morfina
+Perco-me em transparências latejantes
+E numa noite cheia de brilhantes
+Ergue-se a lua como a minha Sina.
+
+Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
+Não faço mais que ver o navio ir
+Pelo canal de Suez a conduzir
+A minha vida, camfora na aurora.
+
+Perdi os dias que já aproveitara.
+Trabalhei para ter só o cansaço
+Que é hoje em mim uma especie de braço
+Que ao meu pescôço me sufoca e ampara.
+
+E fui criança como toda a gente.
+Nasci numa provincia portuguêsa
+E tenho conhecido gente inglêsa
+Que diz que eu sei inglês perfeitamente.
+
+Gostava de ter poêmas e novélas
+Publicados por Plon e no _Mercure_,
+Mas é impossivel que esta vida dure.
+Se nesta viagem nem houve procélas!
+
+A vida a bórdo é uma coisa triste
+Embora a gente se divirta ás vezes.
+Falo com alemães, suecos e inglêses
+E a minha mágoa de viver persiste.
+
+Eu acho que não vale a pena ter
+Ido ao Oriente e visto a India e a China.
+A terra é semelhante e pequenina
+E ha só uma maneira de viver.
+
+Porisso eu tomo ópio. É um remedio.
+Sou um convalescente do Momento.
+Móro no rés-do-chão do pensamento
+E ver passar a Vida faz-me tedio.
+
+Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, emfim,
+Muito a leste não fosse o oeste já!
+Pra que fui visitar a India que ha
+Se não ha India senão a alma em mim?
+
+Sou desgraçado por meu morgadío.
+Os ciganos roubaram minha Sorte.
+Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
+Um lugar que me abrigue do meu frio.
+
+Eu fingi que estudei engenharia.
+Vivi na Escóssia. Visitei a Irlanda.
+Meu coração é uma avòzinha que anda
+Pedindo esmóla ás portas da Alegria.
+
+Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
+Volta á direita, nem eu sei para onde.
+Passo os dias no smoking-room com o conde--
+Um escroc francês, conde de fim de enterro.
+
+Volto á Europa descontente, e em sortes
+De vir a ser um poeta sonambólico.
+Eu sou monarquico mas não católico
+E gostava de ser as coisas fortes.
+
+Gostava de ter crenças e dinheiro,
+Ser varia gente insipida que vi.
+Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
+Num navio qualquer um passageiro.
+
+Não tenho personalidade alguma.
+É mais notado que eu êsse criado
+De bórdo que tem um belo modo alçado
+De _laird_ escossez ha dias em jejum.
+
+Não posso estar em parte alguma. A minha
+Patria é onde não estou. Sou doente e fraco.
+O comissário de bórdo é velhaco.
+Viu-me co'a sueca... e o resto êle adivinha.
+
+Um dia faço escândalo cá a bórdo,
+Só para dar que falar de mim aos mais.
+Não posso com a vida, e acho fatais
+As iras com que ás vezes me debórdo.
+
+Levo o dia a fumar, a beber coisas,
+Drogas americanas que entontecem,
+E eu já tão bêbado sem nada! Déssem
+Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.
+
+Escrevo estas linhas. Parece impossivel
+Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
+O facto é que esta vida é uma quinta
+Onde se aborrece uma alma sensivel.
+
+Os inglêses são feitos pra existir.
+Não ha gente como esta pra estar feita
+Com a Tranquilidade. A gente deita
+Um vintém e sai um dêles a sorrir.
+
+Pertenço a um genero de portuguêses
+Que depois de estar a India descoberta
+Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
+Tenho pensado nisto muitas vêzes.
+
+Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
+Nem leio o livro á minha cabeceira.
+Enoja-me o Oriente. É uma esteira
+Que a gente enróla e deixa de ser béla.
+
+Caio no ópio por força. Lá querer
+Que eu leve a limpo uma vida destas
+Não se pode exigír. Almas honestas
+Com horas pra dormir e pra comer,
+
+Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
+Porque estes nêrvos são a minha morte.
+Não haver um navio que me transporte
+Para onde eu nada queira que o não vêja!
+
+Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.
+Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali
+Para sonhos que dessem cabo de mim
+E pregassem comigo nalgum lôdo.
+
+Febre! Se isto que tenho não é febre,
+Não sei como é que se tem febre e sente.
+O facto essencial é que estou doente.
+Está corrida, amigos, esta lebre.
+
+Veio a noite. Tocou já a primeira
+Corneta, pra vestir para o jantar.
+Vida social por cima! Isso! E marchar
+Até que a gente saia pla coleira!
+
+Porque isto acaba mal e ha-de haver
+(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
+Deste desassossego que ha em mim
+E não ha forma de se resolver.
+
+E quem me olhar, ha-de me achar banal,
+A mim e á minha vida... Ora! um rapaz...
+O meu proprio monóculo me faz
+Pertencer a um tipo universal.
+
+Ah quanta alma haverá, que ande metida
+Assim como eu na Linha, e como eu mística!
+Quantos sob a casaca carateristica
+Não terão como eu o horrôr á vida?
+
+Se ao menos eu por fóra fôsse tão
+Interessante como sou por dentro!
+Vou no Maelstrom, cada vês mais pró centro.
+Não fazer nada é a minha perdição.
+
+Um inutil. Mas é tão justo sê-lo!
+Pudesse a gente despresar os outros
+E, ainda que co'os cotovêlos rôtos,
+Ser heroi, doido, amaldiçoado ou bélo!
+
+Tenho vontade de levar as mãos
+Á bôca e morder nélas fundo e a mal.
+Era uma ocupação original
+E distraía os outros, os tais sãos.
+
+O absurdo como uma flôr da tal India
+Que não vim encontrar na India, nasce
+No meu cérebro farto de cansar-se.
+A minha vida mude-a Deus ou finde-a...
+
+Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
+Até virem meter-me no caixão.
+Nasci pra mandarim de condição,
+Mas faltam-me o sossego, o chá e a esteira.
+
+Ah que bom que era ir daqui de caída
+Prá cova por um alçapão de estouro!
+A vida sabe-me a tabaco louro.
+Nunca fiz mais do que fumar a vida.
+
+E afinal o que quero é fé, é calma,
+E não ter estas sensações confusas.
+Deus que acabe com isto! Abra as eclusas--
+E basta de comedias na minh'alma!
+
+
+_1914, Março._
+
+_No canal de Sués, a bordo._
+
+
+
+
+_ODE TRIUNFAL_
+
+
+Á dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
+Tenho febre e escrevo.
+Escrevo rangendo os dentes, féra para a beleza disto,
+Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
+
+Ó rodas, ó engrenagens, _r-r-r-r-r-r-r_ eterno!
+Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
+Em fúria fóra e dentro de mim,
+Por todos os meus nervos dissecados fóra,
+Por todas as papilas fóra de tudo com que eu sinto!
+Tenho os lábios sêcos, ó grandes ruídos modernos,
+De vos ouvir demasiadamente de perto,
+E arde-me a cabêça de vos querer cantar com um excesso
+De expressão de todas as minhas sensações,
+Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
+
+Em febre e olhando os motores como a uma Naturesa tropical--
+Grandes trópicos humanos de ferro e fôgo e fôrça--
+Canto, e canto o presente, e tambem o passado e o futuro,
+Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
+E ha Platão e Vergilio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
+Só porque houve outróra e fôram humanos Vergilio e Platão,
+E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cincoenta,
+Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
+Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
+Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
+Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
+
+Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
+Ser completo como uma máquina!
+Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modêlo!
+Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
+Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
+A todos os perfumes de ólios e calores e carvões
+Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
+
+Fraternidade com todas as dinâmicas!
+Promíscua fúria de ser parte-agente
+Do rodar férreo e cosmopolita
+Dos comboios estrénuos,
+Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
+Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
+Do tumulto disciplinado das fábricas,
+E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
+
+Horas europeias, produtoras, entaladas
+Entre maquinismos e afazêres úteis!
+Grandes cidades paradas nos cafés,
+Nos cafés--oásis de inutilidades ruìdosas
+Onde se cristalisam e se precipitam
+Os rumores e os gestos do Útil
+E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
+Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
+Novos entusiasmos de estatura do Momento!
+Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
+Ou a sêco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
+Actividade internacional, transatlantica, _Canadian-Pacific_!
+Luzes e febrís pêrdas de tempo nos bares, nos hoteis,
+Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
+E Piccadillies e Avenues de l'Opéra que entram
+Pela minh'alma dentro!
+
+Hé-la as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô _la foule_!
+Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
+Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos;
+Membros evidentes de clubs aristocráticos;
+Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
+E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colête
+De algibeira a algibeira!
+Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
+Presença demasiadamente acentuada das cocottes;
+Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
+Das burguezinhas, mãe e filha geralmente,
+Que andam na rua com um fim qualquer;
+A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
+E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
+E afinal tem alma lá dentro!
+
+(Ah, como eu desejaria ser o _souteneur_ disto tudo!)
+
+A maravilhosa belesa das corrupções políticas,
+Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
+Agressões políticas nas ruas,
+E de vez em quando o comêta dum regicídio
+Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
+Usuais e lúcidos da Civilisação quotidiana!
+
+Notícias desmentidas dos jornais,
+Artigos políticos insinceramente sinceros,
+Notícias _passez à-la-caisse_, grandes crimes--
+Duas colunas dêles passando para a segunda página!
+O cheiro frêsco a tinta de tipografia!
+Os cartazes postos ha pouco, molhados!
+_Vients-de-paraître_ amarelos com uma cinta branca!
+Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
+Como eu vos amo de todas as maneiras,
+Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
+E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
+E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
+Ah, como todos os meus sentidos teem cio de vós!
+
+Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
+Química agrícola, e o comércio quase uma sciência!
+Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
+Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
+Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!
+
+Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
+Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
+Olá grandes armazens com várias secções!
+Olá anúncios eléctricos que veem e estão e desaparecem!
+Olá tudo com que hoje se constroi, com que hoje se é diferente de ontem!
+Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
+Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
+Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aéroplanos!
+
+Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
+Amo-vos carnivoramente,
+Pervertidamente e enroscando a minha vista
+Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
+Ó coisas todas modernas,
+Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
+Do sistema imediato do Universo!
+Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
+
+Ó fábricas, ó laboratórios, ó _music-halls_, ó Luna-Parks,
+Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes--
+Na minha mente turbulenta e encandescida
+Possúo-vos como a uma mulher bela,
+Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
+Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
+
+Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
+Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
+Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
+Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
+Orçamentos falsificados!
+(Um orçamento é tão natural como uma árvore
+E um parlamento tão belo como uma borboleta).
+
+Eh lá o interesse por tudo na vida,
+Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
+Até á noite ponte misteriosa entre os astros
+E o mar antigo e solene, lavando as costas
+E sendo misericordiosamente o mesmo
+Que era quando Platão era realmente Platão
+Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
+E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dêle.
+
+Eu podia morrer triturado por um motor
+Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
+Atirem-me para dentro das fornalhas!
+Metam-me debaixo dos comboios!
+Espanquem-me a bordo de navios!
+Masóquismo através de maquinismos!
+Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!
+
+Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
+Morder entre dentes o teu _cap_ de duas côres!
+
+(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
+Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)
+
+Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
+Deixai-me partir a cabêça de encontro às vossas esquinas,
+E ser levantado da rua cheio de sangue
+Sem ninguem saber quem eu sou!
+
+Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
+Roçai-vos por mim até ao espasmo!
+Hilla! hilla! hilla-hô!
+Dai-me gargalhadas em plena cara,
+Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
+Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
+Rio multicolôr anónimo e onde eu não me posso banhar como quereria!
+Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
+Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
+As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
+Os pensamentos que cada um tem a sós comsigo no seu quarto
+E os gestos que faz quando ninguem o pode ver!
+Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
+Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
+Me põe a magro o rôsto e me agita às vezes as mãos
+Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
+Nas ruas cheias de encontrões!
+
+Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
+Que emprega palavrões como palavras usuais,
+Cujos filhos roubam às portas das mercearias
+E cujas filhas aos oito anos--e eu acho isto belo e amo-o!--
+Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
+A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
+Por vielas quase irreais de estreitesa e podridão.
+Maravilhosa gente humana que vive como os cães,
+Que está abaixo de todos os sistemas morais,
+Para quem nenhuma religião foi feita,
+Nenhuma arte criada,
+Nenhuma política destinada para êles!
+Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
+Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
+Inatingíveis por todos os progressos,
+Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
+
+(Na nora do quintal da minha casa
+O burro anda à roda, anda à roda,
+É o mistério do mundo é do tamânho disto.
+Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
+A luz do sol abafa o silêncio das esferas
+E havemos todos de morrer,
+Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
+Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
+Do que eu sou hoje...)
+
+Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
+Outra vez a obsessão movimentada dos ómnibus.
+E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
+De todas as partes do mundo,
+De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
+Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
+Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
+Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!
+
+Eh-lá grandes desastres de comboios!
+Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
+Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
+Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
+Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
+Ruìdo, injustiças, violências, e talvês para breve o fim,
+A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
+E outro Sol no novo Horizonte!
+
+Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
+Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
+Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
+Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
+O Momento de tronco nú e quente como um fogueiro,
+O momento estridentemente ruìdoso e mecânico,
+O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
+Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
+
+Eia comboios, eia pontes, eia hoteis à hora do jantar,
+Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
+Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
+Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
+Eia! eia! eia!
+Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
+Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
+Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
+Eia todo o passado dentro do presente!
+Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
+Eia! eia! eia!
+Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
+Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
+Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
+Engatam-me em todos os comboios.
+Içam-me em todos os cais.
+Giro dentro das hélices de todos os navios.
+Eia! eia-hô! eia!
+Eia! sou o calor-mecânico e a eletricidade!
+
+Eia! e os _rails_ e as casas de máquinas e a Europa!
+Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
+
+Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
+
+Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
+Hé-há! Hé-hô! Ho-o-o-o-o!
+Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
+
+Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
+
+
+_Londres, 1914--Junho._
+
+
+ALVARO DE CAMPOS.
+
+
+Dum livro chamado _Arco de Triunfo_, a publicar.
+
+
+
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+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
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+Foundation
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+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
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