diff options
| -rw-r--r-- | .gitattributes | 3 | ||||
| -rw-r--r-- | 16219-8.txt | 2667 | ||||
| -rw-r--r-- | 16219-8.zip | bin | 0 -> 56569 bytes | |||
| -rw-r--r-- | 16219-h.zip | bin | 0 -> 98009 bytes | |||
| -rw-r--r-- | 16219-h/16219-h.htm | 3029 | ||||
| -rw-r--r-- | 16219-h/images/devil.png | bin | 0 -> 38908 bytes | |||
| -rw-r--r-- | LICENSE.txt | 11 | ||||
| -rw-r--r-- | README.md | 2 |
8 files changed, 5712 insertions, 0 deletions
diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes new file mode 100644 index 0000000..6833f05 --- /dev/null +++ b/.gitattributes @@ -0,0 +1,3 @@ +* text=auto +*.txt text +*.md text diff --git a/16219-8.txt b/16219-8.txt new file mode 100644 index 0000000..5855d9b --- /dev/null +++ b/16219-8.txt @@ -0,0 +1,2667 @@ +The Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das +Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes + Maio a Junho de 1877 + +Author: Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +Release Date: July 6, 2005 [EBook #16219] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL *** + + + + +Produced by Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal, Cláudia +Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed +Proofreading Team. + + + + + +[Illustration: EÇA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGÃO--AS FARPAS] + +RAMALHO ORTIGÃO--EÇA DE QUEIROZ + +AS FARPAS + +CHRONICA MENSAL DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES + +NOVA SERIE TOMO IX + +Maio a Junho 1877 + + + + + +Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, +da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das +sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da +politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande +universo, e da adoração de mim mesmo. + +P.J. PROUDHON + + + + +SUMMARIO + +A burra do Estado. Porque motivo o ministerio Fontes se deitou abaixo +d'essa burra, e do mais que então passou. A queda do dente. Elogio do +dente pelo sr. Assumpção. O dente embrulhado n'um papel. O dente aos pés +do throno. O dente demittido. Pede-se um dente novo.--O drama _Leonor de +Bragança_ e a caixa do Poder Moderador. Parallelo da peça do sr. Luiz de +Campos e da do sr. Alfredo Ansúr. Os caracteres em cada uma das duas +peças, a lingoagem, o stylo, a cortezania, a intenção moral. Conclusões +do referido estudo: requisita-se para o sr. Ansúr a commenda do lagarto +ou metade da caixa conferida pelo Poder ao sr. Campos.--As corridas de +cavallos--O premio do Jockey-Club e o premio da Academia--O progresso em +Lisboa durante o ultimo semestre. A sociedade affirma o seu movimento +ascendente na civilisação por meio de dois novos estancos e de uma +ourivesaria. Philosophia de uma vitrine de joias--A peregrinação a Roma. +Os preparativos. A partida. A prescripção da _toilette_. A chegada a +Lourdes. Aspecto pittoresco e elegante do milagre: o _restaurant_, o +trem de Paris, as _parties fines_ sobre a relva, o Champagne e as +bilhinhas da agoa. Em Roma. As offerendas. O dinheiro de S. Pedro. A +applicação d'esta receita. O album dos peregrinos e o que n'elle se +contém. A nossa allocução. O primeiro e o ultimo jubileu. Pio IX e +Bonifacio VIII. A antiga fé. Os peregrinos em 1300. A fé actual e os +peregrinos d'hoje. O conflicto da sciencia e da fé. O Deus de Darwin. Os +novos poderes espirituaes. De como ninguem quer o ceu do Padre +Marnoco--A primeira communhão de sua alteza o principe--A civilisação +africana e as conferencias academicas. Uma conferencia que se não faz: +_Da influencia do «sport» no caracter dos povos exploradores_. + + * * * * * + +Era em uma bella manhã do mez de março. A primavera, essa filha do amor +e da brisa--como diria o sr. Antonio de Serpa se as conveniencias +partidarias lhe permittissem ainda dedilhar a theorba sob o lyrico +balcão de D. Mafalda--tinha estendido sobre as campinas o seu manto de +esmeraldas. Nas estradas que convergem a Lisboa um alegre raio de luz +animava a circulação da vida suburbana. Havia um novo tom festivo no +chocalhar das recuas dos almocreves, no rodar das pesadas carroças da +hortaliça de que se exhalam emanações appetitosas de cuentro e de +pimpinella, no tic-tic do passo miudo e zeloso dos jumentos saloios +ajoujados de bilhas de leite e de seirões de roupa lavada. A agua das +regas rumorejava suavemente por baixo da macia verdura aveludada dos +favaes. As cotovias cantavam na espessura das hortas. Pelos portões das +quintas, de pateo ajardinado, sahia em calidas baforadas o perfume dos +limoeiros. Por cima dos muros pintados de amarelo bracejavam sobre os +caminhos as hastes dos pecegueiros em flôr. Uma aragem tepida e +balsamica cahia do ceu azul e envolvia n'um doce torpor voluptuoso e +suave os nervos dos lisboetas que madrugavam voltando de Cintra ou +desembarcando na gare de Santa Apolonia. + + * * * * * + +Foi dominado por essas influencias do clima, da paizagem, dos aspectos da +natureza, que o sr. Fontes Pereira de Mello deliberou deitar-se abaixo +do governo, retirando-se ao diletantismo particular e abandonando aos +que iam pela via a burrinha pacata e fiel do poder, que elle cavalgara +em cinco annos de choito glorioso atravez das _diversas provincias da +publica administração_. + +Somos informados de que s. ex.ª, reunindo os seus collegas do ministerio +e os seus mais intimos amigos politicos, lhes fallara d'esta arte: + +Senhores! Achando-me esta manhã á janella do meu quarto, fazendo algumas +considerações philosophicas e a barba, deliberei apear-me por algum +tempo da azemola do poder. + +_Vozes de amigos intimos desapontados_.--Oh! oh! Não o cremos!... Não o +podemos crer!... É um gracejo, um puro gracejo de s. ex.ª! Que a burra +do poder venha á presença de s. ex.ª para que s. ex.ª a cavalgue! S. +ex.ª não pode assim descer da burra! Seria altamente impolitico +deixar-nos n'este momento com a burra devoluta nos braços! deixar-nos, +para assim dizer, com a burra atravessada na garganta! Haja ao menos um +pretexto, haja uma razão! + +_O sr. presidente proseguindo_: Quereis uma razão? Eu vol-a dou. Acho-me +impossibilitado de proseguir provincias da publica administração além. Á +força de meditar nos altos negocios do estado acaba de me cahir um +dente... + +_Vozes_--Dê o dente para ordem do dia! + +_O sr. presidente (tirando o dente da algibeira e collocando-o na +discussão)_--Ahi tendes o dente. Abri sobre elle os mais largos e +rasgados debates, e julgae-o como vos approuver. É um queixal. Nada mais +acrescento. Sobre este ponto considerações de melindre pessoal me +inhibem de continuar. Farei apenas sentir aos meus amigos politicos e +aos meus collegas do gabinete que nem a camara nem o paiz nem a corôa +poderão, segundo penso, exigir da minha fidelidade partidaria que eu +sacrifique á investigação dos negocios os dentes que o meu ardente +patriotismo me impõe a obrigação de reservar para os inimigos da patria. +Tenho dito. + +(_Vozes:_--Muito bem! Muito bem!) + + * * * * * + +O sr. Manuel da Assumpção, havida então venia para fallar, consta que +estendera a dextra sobre o dente, e proferira com ardor e enthusiasmo as +seguintes palavras: + +«Meus senhores! Este dente é a pagina mais gloriosa da nossa historia. É +effectivamente um queixal, como s. ex.ª muito bem disse na sua phrase +tersa, de uma energia e de uma concisão dignas de Tacito. Ha oito dias +que os jornaes que nos guerreiam lançaram este dente na tela da +discussão, procurando fazer acreditar ao paiz e ás nações extrangeiras, +por meio de insinuações malevolas, que elle é canino. Mandando o dente +para a meza o sr. presidente acaba de confundir de uma vez para sempre +os seus adversarios. Queixal! Longa foi a tua carreira gloriosa. +Enraizado no queixo de s. ex.ª atravessaste com elle as mais duras +provações de uma carreira brilhante. Roeste o pão negro do ostrocismo. +Atolaste-te na lampreia d'ovos das doces illusões. Mascaste a cabedella +dos terriveis desenganos. Depois de cada um d'esses estadios na senda +dos progressos materiaes e moraes, s. ex.ª, com mão decisiva, +palitava-te. Um dia porém, á meza do orçamento, no grande banquete da +civilisação, n'esse campo de batalha onde se travam os combates +incruentes do progresso e onde o talher de s. ex.ª por muitas vezes +fulgurou desembainhado ao sol das victorias, tu, depois de uma violenta +refrega, com umas amendoas torradas de exercicios lindos, com uns +biscoutos de gerencias anteriores, e com algumas outras verdades duras +de tragar, appareceste furado. No dia seguinte s. ex.ª chamava ás armas +a reserva e um dentista, e tu, ó dente, recebias como os bravos o +baptismo do chumbo. A bala inimiga.... + +_O sr. Presidente_--Tomo a liberdade de interromper o illustre deputado +e meu nobre amigo para lhe fazer notar que o dente não recebeu o +baptismo do chumbo sob a forma de bala, mas simplesmente sob a forma de +pingo. + +_O orador_--Do mesmo modo então que um fundo de chaleira? + +_O sr. Presidente_--Precisamente do mesmo modo. + +_O orador_--Agradeço infinitamente a s. ex.ª a informação que acaba da +prestar-me, e, se s. ex.ª m'o permitte prosigo, pondo de pane a piada +relativa á bala do inimigo... + +Dente! cahiste alfim. A tua queda tem o caracter de um triumpho, pois +não cahiste arrancado por uma opposição accintosa e malevola; cahiste +porque tinhas os teus dias cheios e um pouco tambem porque estavas +podre. + +Que mais queres, ó dente? que mais desejas? que mais ambicionas?... + +_O sr. Presidente_--Peço perdão para ainda uma vez interromper o +illustre deputado, rogando-lhe que não tome por incivil o silencio do +dente ás suas interrogações. O dente é hoje a primeira vez que apparece +em publico separado dos seus companheiros, e deve-se ter em conta o +justo acanhamento que a sua nova situação lhe infunde. Eu acho-me porém +habilitado para satisfazer a curiosidade do illustre deputado em quanto +ás ambições do dente logo que s. ex.ª o exija. + +_O orador_--Como deputado da maioria tenho a declarar ao sr. presidente +que nunca dirijo ao governo, nem no seu conjuncto nem separadamente a +nenhum dos seus queixaes pergunta alguma para que deseje resposta. As +minhas interrogações são puramente rhetoricas. O silencio com que fui +escutado pelo dente não sómente me não escandalisa mas antes pelo +contrario me penhora como um testemunho de benevolencia a que não +ousava aspirar. + +Concluindo, tenho a honra de propor que, depois de embrulhado +respeitosamente em um papel, o dente seja levado ás plantas do poder +moderador, para que sua magestade haja por bem resolver como lhe +approuver esta passageira crise. Faço votos por que o sr. Presidente do +conselho se apresse em pôr ao serviço da nação um novo dente.» + + * * * * * + +Approvada unanimemente a eloquente proposta do sr. Assumpção, o sr. +Presidente do conselho recolheu-se a sua casa a tomar bochechos +emolientes emquanto o resto do ministerio partia para o Paço a levar ao +soberano o dente resignatario. + +Constou pelos jornaes quo apenas recebera o dente sua magestade se +dirigira a casa do sr. presidente do conselho, com o qual teve uma +entrevista de duas horas. Estas duas horas foram empregadas pela corôa +em procurar reintegrar, pelas suas proprias mãos, o dente caído na +maxilla do illustre estadista. + +Diz-se que a corôa, suando em bica, esgotára, para consolidar o dente +caído no seu logar primitivo, todos os meios compativeis com as +disposições do codigo fundamental da monarchia. Sua magestade tentára +fixar o dente ao chefe do gabinete com obreias, com adhesivo, com lacre, +com pez, com gomma arabica, com barbante, com alfinetes e com pregos. + +O dente reagiu a todas as reaes instancias: o excelso politico, em cujo +queixo inferior elle se firmára durante cinco annos de gerencia +governativa não queria mais a confiança da corôa, queria unicamente +cosimento de malvas. + +O monarcha lavrou então o decreto mandando o seu antigo ministerio +bochechar, e encarregou o sr. marquez de Avila e Bolama de reunir com os +seus amigos o numero de dentes necessarios para formar uma gerencia +duradoura e firme. + +D'este encargo se desempenhou o sr. marquez com o zelo que o +caracterisa, e o actual ministerio nasceu. + + * * * * * + +Um dos nossos mais distinctos amadores, o sr. Luiz de Campos, acaba de +dotar o theatro de D. Maria com um drama, cujo exito constitue o maior +triumpho modernamente alcançado pelas letras portuguezas. + +Não só os jornaes todos consagraram a esta obra louvores emittidos com +uma energia desusada, mas até a alta sociedade, de ordinario tão +parcimoniosa de curiosidade dispendida com a arte, patrocinou com +especial favor esta peça. O auctor teve a gloria de ver os seus finaes +d'acto applaudidos do fundo dos primeiros camarotes pelas mãos mais +aristocraticas. Nas situações patheticas do seu assumpto lagrimas +illustres sulcaram o pó d'arroz com que se perfumam os brazões das mais +nobres e distinctas familias. Finalmente no fim do espectaculo o Poder +Moderador, que assistira á representação em companhia da sua familia, +expediu um dos seus camareiros, o qual foi ao palco cumprimentar o +laureado dramaturgo, pedir-lhe desculpa de lhe não pingar do alto do +throno sobre o peito da casaca a commenda de S. Thiago, e entregar-lhe +em vez das insignias d'essa ordem excelsa e em nome do referido Poder um +cofre com uma pedra preciosa, que os jornaes do outro dia pela manhã +almotaçaram em 1:500$000 réis. + + * * * * * + +O drama do sr. Luiz de Campos intitula-se _Leonar de Bragança_ e encerra +a historia d'aquella desditosa, cuja mocidade e belleza feneceram de +subito, surprehendidas no ventre por trez facadas com que a brindou seu +esposo, o mui nobre e poderoso duque de Bragança, um dos antepassados do +Poder que hoje nos rege, e ao qual, bem como á sua familia, acima +tivemos a honra de reportar-nos submissa e respeitosamente. + +O pretexto sob o qual D. Jayme damnificou com instrumento perfurante o +abdomen de sua mulher foram os amores d'esta com o pagem Antonio +Alcoforado. + +Existiram effectivamente esses amores? Era a duqueza realmente culpada +de uma fraqueza anormal pelos pagens? Era Alcoforado um honesto e leal +servidor do principe D. Theodosio, ou era uma ratoeira vil de duquezas +incautas? + + * * * * * + +Ha duas opiniões ácerca do modo de considerar no theatro a natureza +d'este facto. + +Na sua _Leonor de Bragança_, escripta em prosa, o sr. Luiz de Campos +entende que a duqueza é innocente. Na sua _Leonor de Bragança_, escripta +em verso, o sr. Alfredo Ansúr julga a duqueza culpada. + +Os fados, que tão propicios foram á obra do festejado sr. Campos, +trataram adversamente a obra não menos estimavel do malogrado sr. Ansúr. +Julgamos do nosso dever protestar contra esta dura injustiça pondo em +cotejo as duas composições a que deu origem a tragica aventura de +Leonor. + + * * * * * + +No drama do sr. Luiz de Campos a culpa toda do nojoso sarrabulho +perpetrado por D. Jayme está unicamente, segundo diz o sr. Campos, em +_haver o pagem um coração_. O sr. Luiz de Campos emprega constantemente +_haver_ em logar de _ter_, não só nos casos em que esse verbo é usado +como auxiliar mas ainda quando se toma na accepção de possuir. Acatamos +discretamente as rasões de pundonor e de dignidade que possam ter levado +este cavalheiro a cortar as suas relações pessoaes com o verbo _ter_. O +simples depoimento do verbo _haver_, conjugado com tanta lealdade, +cravado no discurso com tanta firmeza como aquella que se admira em +todas as locubrações litterarias d'este auctor, basta para nos convencer +da innocencia de Leonor. + +Todos os encontros da duqueza com o pagem no decurso d'esta peça são de +um caracter fortuito absolutamente illibado. + +A scena está vasia. Leonor tem por acaso de atravessar do segundo +bastidor á esquerda para o segundo bastidor á direita exactamente no +momento em que Alcoforado por egual acaso atravessa do segundo bastidor +á direita para o segundo bastidor á esquerda. Elles veem ambos meditando +no verbo _haver_, e descarregam um sobre o outro o objecto das suas +cogitações pouco mais ou menos nos seguintes termos: + +_Duqueza_--Houveste alfim volvido? + +_Pagem_--Houve; e vós, senhora, que heis de determinar-me? + +_Duqueza_--Nada hei. + +_Pagem_--Hão, quiçá, offendido-vos outra vez? + +_Duqueza_--Não hão. Pagem, havereis de volver a casa do sr. D. +Theodosio. + +_Pagem_--Visto que não heis de mim de, senhora minha, haja de se cumprir +vossa vontade! Haverei força, haverei de havel-a... Manhã, ao toque de +prima, serei partido. De nada mais heis mister? + +_Duqueza_--De nada mais hei, pagem; e a Deus prasa que jámais haja de +haver! Idevos presto a D. Theodosio, consoante-vos hei di-lo pouco ha. + +_Pagem_--Em mim havei fé, minha senhora ama: eu me vou. + +_(Saem ambos, cada um por seu lado, meditabundos.)_ + +A entrevista que dá causa á vingança do duque não a tem Alcoforado com a +duqueza mas sim com uma das suas damas. Em toda a peça, finalmente, a +duqueza, nem por carta, nem de viva voz, nem de simples ôlho, tem para +Antonio uma palavra, um aceno, um gesto, em que se presinta de leve que +seja a exhalação da perfidia. + + * * * * * + +O sr. Ansúr é menos complacente com os seus personagens, como vamos ver. + +BEATRIZ ANNES + +_Grande mal, grande mal, senhor Fernão!_ + +FERNÃO RODRIGUES + +_Que mal?_ + +BEATRIZ ANNES + +_Homem em casa._ + +FERNÃO RODRIGUES + +_Com a aia?_ + +BEATRIZ ANNES + +_Não._ + +FERNÃO RODRIGUES + +_Com quem pois?_ + +BEATRIZ ANNES + +_Com nossa ama._ + +O fogoso e pittoresco sr. Ansúr vae mais longe ainda: colloca o pagem +aos pés da duqueza e põe na bocca de um e outro estas palavras: + +PAGEM + + _Que enthusiasmo sinto! Arfa-me o seio + Em vertigem de amor! Sinto a poesia + Na mente distillar grata ambrosia. + Ó senhora duqueza! Minha vida! + Como vos amo!_ + +LEONOR + + _Antonio! alma querida..._ + +PAGEM + + _Longe de vós a vida é-me desterro... + Perdoar-me-heis do coração este erro?_ + +LEONOR + + _Sim._ + +PAGEM + + _Sem vos escutar e sem vos ver + Não podia, senhora, mais viver! + Meu peito abrasa._ + +LEONOR + + _Doce pensamento, + Longe de ti é egual o meu tormento._ + +E a duqueza prosegue exaltando-se n'uma gradação rhetorica perfeitamente +calculada pelo sr. Ansúr até o ponto de lhe dizer o Alcoforado: + + _Calae-vos por piedade! Tende imperio + Sobre a imaginação._ + +Em outra scena da peça depois de uma entrevista secreta com o pagem, á +hora da meia noite, a duqueza profere uma palavra physiologica, de um +sentido decisivo: + + _Como evitar que o duque venha, e veja + Aqui tua presença que me peja?_ + +PAGEM + + _Meu Deus!_ + +LEONOR + + _Jesus! esconde-te!_ + +Ao que o pagem, com o temerario valor que só os altos sentimentos +persuadem, replica energicamente: + + _Fujamos!_ + +LEONOR + + _Por onde oh! ceus?_ + +PAGEM + + _Por esta porta._ + +LEONOR + + _Vamos._ + +Sendo tanto a _Leonor de Bragança_ do sr. Luiz de Campos como a _Leonor +de Bragança_ do sr. Alfredo Ansúr peças offerecidas pelos seus auctores +a sua magestade el-rei o sr. D. Luiz I, é claro que ellas devem ser +consideradas pela critica não como livres producções litterarias mas +como especiaes mimos dedicados á familia de Bragança. Ora sob este ponto +de vista--não hesitamos em dizel-o--a obra do sr. Ansúr parece-nos muito +mais completa e perfeita que a do sr. Luiz de Campos. + +Pomos de parte a questão da investigação historica, que foi egualmente +aprofundada pelos dois auctores. O sr. Luiz de Campos reforça-se com o +testemunho dos documentos que manuseou: _A historia genealogica, As +Decadas_ de Couto e de Barros, a _Chronica de D. Manuel_ por Damião de +Goes e o _Auto de inquirição e devassa_ existente na Torre do Tombo. O +sr. Alfredo Ansúr fortifica-se exactamente com os mesmos documentos por +elle compulsados. + +Para suas excellencias, armados de eguaes argumentos pró e contra a +duqueza, a escolha do papel que tem de lhe ser dado n'este drama é pois +uma questão de gosto. O sr. Ansúr, emquanto a nós, escolheu melhor, e +fez a sua magestade el-rei uma dadiva mais delicada. + +Segundo o sr. Ansúr o duque de Bragança D. Jayme é um cavalheiro infeliz +em familia, ao qual succede--como muito bem diz Menelau na Bella +Helena--uma fatalidade. O duque deteriora a região intestinal da +duqueza, mas deteriora-a em legitimo desforço da sua dignidade offendida +e ao abrigo das leis do reino. + +Segundo o sr. Luiz de Campos, dada a innocencia da esposa, o duque não +passa de um sanguinario estupido, que envolve o seu brasão de familia e +a futura tradição dynastica n'um ignobil e affrontoso chouriço de sangue +innocente. O acto de mandar desossar pelo cosinheiro o pagem Alcoforado, +com o mesmo facalhão com que se picam os bifes, é um facto indecente +que, posto o criterio do sr. Luiz de Campos, estabelece um precedente +que pode levar os servidores da casa de Bragança a não distinguirem +inteiramente a differença que ha em ir para o paço e em ir para a +salgadeira. + +Eliminada a circumstancia do adulterio o duque é um facinora vulgar sem +nenhum apoio na jurisprudencia ou na legislação. Depois da leitura da +peça do sr. Luiz de Campos, um jury sensato que houvesse de julgar D. +Jayme, mandal-o-hia degradado por toda a vida para a Costa de Africa. +Só assim se poria uma sociedade culta ao abrigo de um principe que faz +das esposas e dos vassalos um consumo que se não justifica pelas +necessidades ordinarias da vida exterior. + + * * * * * + +Parece-nos ser um serviço em extremo subalterno prestado a alguem o +publicar a historia de um dos seus antepassados á luz de uma critica +cujas derradeiras consequencias são, como no drama do sr. Campos, a +condemnação do mesmo antepassado a um genero de glorificação e de +apotheose que elle só pode remir com a prisão correcional perpetua. + +Na peça do sr. Ansúr o antepassado do alto personagem a quem elle a +offerece e consagra apparece-nos satisfactoriamente levado ao crime por +uma provocação cheia de solicitude e de cortezia. «Ha homem em casa. Com +a creada? Não. Com a patrôa.» Este grito sublime de clareza e de +concisão esparge no facto um raio de luz juridica e lança um immenso +clarão de legalidade e de justiça sobre o chifarote brigantino destinado +á perfuração das damas. + +Nada mais tocante do que a situação do duque ao receber o fatal +desengano: + + _Horror! Infamia! Anathema! Vergonha! + ....................................... + Rompe-se-me do ser toda a harmonia, + Passa-se-me na mente extranha orgia! + Estalam-me no corpo algumas fibras! + Meu pobre espirito, que assim te libras + Do desespero na mortal esphera, + Não te consumas tanto! Acalma! Espera! + ......................................... + Mofina dor me roe, me despedaça! + Emquanto descuidoso andara á caça, + Tu deliravas... tu... oh! que villeza!_ + +E depois dirigindo-se ao pagem: + + _Arrepende-te dos teus peccados + Que os fios da tua vida estão contados!_ + +PAGEM + + _Perdão! piedade!_ + +DUQUE + + _Soffre com valor + Que mais soffreu par nós o Redemptor! + ..................................... + .........................Alfim + Com o manchil Domingos cortará + A cabeça do pagem. Morrerá._ + +A duqueza intervem com esta conceituosa +mas intempestiva maxima: + + _Jamais decepes com manchil odioso + A cabeça de um justo. É horroroso!_ + +O duque não precisa que lhe ensinem a resposta... + + _Sabe mostrar do Barbadão de Veiros + O descendente, como pune o ultraje, + Que lhe fizeste, Leonor! Apage._ + +Não são estes porém os unicos serviços prestados pelo sr. Ansúr á +clareza justificativa dos factos e ao esplendor immarcessivel da casa de +Bragança. A peça d'este benemerito cavalheiro abunda em conceitos e em +noções preciosas para a historia da nossa monarchia. Quem é o luso que, +presando-se de amar o rei e a patria, deixará de ler sem uma commoção +profunda as seguintes palavras que o auctor põe na bocca da mãe de D. +Manuel, por occasião do advento d'este monarcha ao regio solio? + + _Omnipotente Deus! quiz o destino + Dar existencia ao throno manuelino! + Quem predissera tal, filho cadete, + Quando surgiste á luz em Alcochete?!_ + +Temos por indigno e refece todo o cortezão que achando-se ao serviço da +casa de Bragança se recusar a decorar os seguintes carmes em que o sr. +Ansúr celebra os antigos privilegios heraldicos de tão distincta +familia: + + _A não ser o real, não ha poder, + Que possa hoje nos reinos exceder + O de nosso senhor! Póde D. Jayme + (Ó fóros brigantinos inspirae-me) + Nas salas dos seus paços ter doceis + E sitiaes nas egrejas dos fieis. + Forrada com arminhos, rica, larga + Vestir opa vermelha aberta á ilharga; + Ante si leva estoque, segundo acho, + Com o extremo voltado para baixo, + Distinctivo dos reis, que é para cima._ + +Faz gosto ler estas noticias e pensar a gente que pertence a um paiz em +cujo throno se acha uma familia que antes de reinar tinha o direito de +levar estoque para baixo, que ao reinar adquiriu o direito de levar +estoque para cima, de sorte que póde hoje em dia (ó fóros brigantinos +acudi-me), levar estoque simultaneamente para cima e para baixo! + +A unica coisa que se nos offerece reprehender na peça do sr. Ansúr, por +innumeros titulos superior á do sr. Luiz de Campos, é que o auctor a não +tivesse accrescentado com mais um acto, no qual, para completa +rehabilitação da casa de Bragança, o duque D. Jayme nos apparecesse +resgatando-se aos olhos do Omnipotente por meio das penitencias em que +consumiu até o ultimo dia da sua taciturna viuvez. Nos paços de Villa +Viçosa ainda hoje se mostra aos viajantes uma tina cavada no chão, a que +se desce por quatro degraus, na qual é tradição geralmente crida que o +nobre duque se mettia em agua, durante uma hora por dia, para desaggravo +e remissão de suas culpas. O illustre heroe tão devéras se arrependeu +que chegou a mortificar-se d'esta maneira insolita e sem +precedentes--tomando banho! + +Seria um bello melhoramento na obra do sr. Ansúr que s. ex.ª a +completasse com um breve epilogo, em que D. Jayme fosse visto amarrado +pelo grilhão da penitencia a uma bacia, e ciliciado no vivo das suas +carnes ultrajadas e viuvas pelo contacto expurgante de um sabão. + + * * * * * + +Postas estas considerações, não podemos deixar de perguntar: Porque +motivo não caiu do alto da regia munificencia sobre o peito inspirado do +sr. Ansúr o pingo da nobre ordem do lagarto, do merito artistico e +litterario, pingo suspenso da real goteira sobre as boças poeticas do +sr. Luiz de Campos? Não fez o sr. Ansúr um drama de assumpto brigantino +como o do seu collega? Não tem o sr. Ansúr a precedencia n'esta creação +litteraria? Não é a sua obra dedicada egualmente a el-rei? Não é ella +escripta em bellas parelhas de versos de dez syllabas, em vez de o ser +em prosa villôa como a do seu competidor? + +O sr. Luiz de Campos, não podendo pela sua qualidade de deputado receber +mercês honorificas, teve de el-rei o presente de um cofre no valor acima +referido de 1:500$000 réis. + +Não so dando com o sr. Ansúr a incompatibilidade annexa ao mandato +popular, porque não se lhe confere a commenda da nobre ordem ou, quando +menos, a sua equivalencia em cofre com pedra preciosa no valor de réis +1:500$000? + +Grave e inexplicavel injustiça! Se a nossa debil voz póde chegar até ás +orelhas da corôa, nós diremos ao augusto soberano: + +Senhor! A vossa protecção ás letras patrias não se tem até hoje +desmarcado de uma reserva tão discreta como constitucional. Os +dramaturgos que precederam Luiz de Campos e Alfredo Ansúr apenas teem +colhido da regia liberalidade a graça de haverem possuido collocado em +uma _avant-scène_, durante uma ou duas representações das suas peças, o +vosso real perfil, que outros não possuem senão collocado nas moedas de +5$000 réis, coisa miseravel e vil. Acabado o espectaculo vós enfiaes o +vosso paletot, accendeis o vosso charuto, retomaes o vosso sceptro no +bengaleiro, e ides para casa recolher as commoções da noite sob o +agasalho da vossa corôa de dormir, de algodão branco com uma borla na +ponta. O genio nacional não pôde ainda até hoje obter da vossa +munificencia manifestações mais expressivas. Uma vez, porém, que +deliberastes inaugurar a éra do galardão litterario, dae a Alfredo +Ansúr a commenda que Luiz de Campos não pôde acceitar. Dae-lh'a quanto +antes. Não espereis que á cabeceira do vosso leito se erga o espectro do +remorso, e que, sob a figura do poeta menosprezado, elle vos brade nos +silencios da noite: + +«Descendente de Barbadão! solta-me o lagarto! Larga o lagarto, +Barbadão!» + +Se o throno for surdo ás nossas vozes, cairemos sobre o sr. Luiz de +Campos, e com o manchil da justiça distribuitiva em punho +cortar-lhe-hemos a dadiva regia ao meio! + +Que o sr. Ansúr nos diga para onde quer que se lhe mande a metade do +brinde que lhe lhe compete. + + * * * * * + +Hoje, 7 de maio, corridas de cavallos no hippodromo de Belem. + +Um premio foi disputado por quatro cavallos, um foi disputado por tres, +outro por dois, e o ultimo finalmente por um cavallo só. Este cavallo +partiu correndo vertiginosamente atraz de si mesmo, e desenvolveu tal +ardôr e tal velocidade que chegou á meta, no meio das ovações e dos +applausos geraes, passando adiante de si proprio! + +Nota-se esta curiosa influencia do premio do governo, do premio de +el-rei, e do premio do Club, sobre o desenvolvimento da raça +cavallar:--quanto mais premios se distribuem menos cavallos ha. + +Se a instituição se mantem por dois ou tres annos mais, é-nos licito +acariciar a esperança de que terminaremos por não haver cavallo nenhum, +e teremos ainda o gosto de ver o primeiro dos _sportmen_ que figuram no +programma da presente corrida, o ex.'mo sr. Galileo, acabar por +percorrer a pista montado no seu telescopio. + + * * * * * + +E no entanto o campo das corridas é o mais bello sitio dos contornos de +Lisboa, o mais aprazivel ponto de passeio de carruagem, a cavallo ou a +pé nas tardes de verão, e é susceptivel de ser explorado pelo +Jockey-Club com sufficiente lucro da associação e com grande vantagem do +publico. Bastaria para utilisar e aformosear o campo circumdal-o por +fora da pista com uma rua de arvores intermeadas de bancos de jardim; +estabelecer no centro do hippodromo um jogo do _Cricket_ para os membros +de um _Cricket-Club_ addido ao _Jockey-Club_; organisar um tiro ao alvo, +um _Croquet_ para as senhoras, alguns jogos gymnasticos para o povo e +para as creanças; promover nos domingos da primavera e de verão no +recinto do campo pequenos certames agricolas e industriaes, concursos de +vaccas, de carneiros, de gallinhas, de porcos gordos, exposições de +flores, de fructas, de legumes, de queijos, de instrumentos de +agricultura e de jardinagem, etc. + +Lisboa carece vergonhosamente de uma instituição d'este genero que reuna +com as condições de recreio os desenvolvimentos de actividade e de +educação. Visto que nem o governo nem a municipalidade se occupam d'essa +questão, o _Jockey-Club_ prestaria um serviço relevante procurando +resolvel-a. + + * * * * * + +Mas de modo algum pretendemos forçar o _Jockey-Club_ a acceitar esse +encargo. O _Jockey-Club_ fará o que entender, e nós acharemos sempre que +entendeu bem; a unica coisa que lhe rogamos é que reflicta no futuro que +o espera continuando na senda assustadora em que principia a resvalar. O +club achou ainda um meio de resolver o problema do concurso diante da +simples unidade: queremos saber o que fará quando vier a apparecer a +fracção, e a quem se dará o premio de el-rei, quando para o anno +concorrer unicamente a disputal-o--um selim! + + + * * * * * + + +Ao mesmo passo que o _Jockey-Club_, sob a protecção de suas magestades o +sr. D. Luiz e o sr. D. Fernando confere premios no valor de tres contos +de réis annuaes ás bestas velozes, a Academia Real das Sciencias, sob a +presidencia e sob a protecção dos mesmos augustos principes, confere +apenas 50$000 réis de premio aos sabios extenuados. + +Um cavallo que percorre a galope uma distancia de mil e quinhentos +metros ganha réis 1:500$000. Os sabios do paiz inteiro ganharão 50$000 +réis satisfazendo entre varios outros os seguintes pontos do programma +da Academia para o anno de 1877: + +Em mechanica: Apresentar um trabalho sobre o movimento dos fluidos; +achar o melhor systema de obras a eslabelecer nas margens do Tejo a fim +de satisfazer simultaneamente as condições de salubridade, irrigação e +segurança das propriedades adjacentes. Em physica: estudar a capacidade +calorifica dos atomos nos corpos simples; indicar a construcção da pilha +de effeito mais constante e mais propria para ser applicada á +telegraphia; apresentar a synthese dos alcaloides organicos; estudar a +composição chimica das principaes aguas sulfureas e alcalinas de +Portugal. Nas sciencias historico-naturaes: Fazer a descripção +ampelographica das principaes castas de uvas portuguezas e determinar o +melhor processo para o fabrico dos vinhos genuinos; fazer um ensaio +monographico da fauna portugueza. Nas sciencias medicas: Determinar as +alterações da saude e as doenças devidas ás principaes industrias do +paiz e indicar os meios efficazes de as prevenir; fazer um estudo +critico do systema de esgoto e saneamento da capital, que satisfaça a +todas as condições prescriptas pela hygiene, apresentando o modo da sua +realisação; estudar a mortalidade de Lisboa, suas causas e meios de as +attenuar. Em litteratura: Fazer um romance historico, fazer um poema, +fazer um glossario das palavras e locuções hoje obsoletas ou antiquadas +que se leem nos antigos cancioneiros portuguezes acompanhando esse +vocabulario de observações linguisticas e philologicas. Nas sciencias +economicas e administrativas: Memorias ácerca da descentralisação em +Portugal e do melhor systema de circulação fiduciaria. Em historia e +archeologia: Estudo ácerca do estado da sociedade portugueza ao tempo da +morte de D. João V; determinar e caracterisar as relações artisticas de +Portugal nos seculos XV e XVI no tocante á architectura, esculptura, +pintura, musica e artes industriaes, indicando os meios officiaes e +extra-officiaes que facilitaram essas relações pondo os resultados em +parallelo com a historia da arte em geral, etc., etc., etc. + + * * * * * + +Se nós fossemos sabios preferiamos ao trabalho de responder a qualquer +dos alludidos quesitos pela somma de 50$000 réis, o trabalho de +percorrer á desfilada a pista do hipodromo de Belem--de graça. + + + * * * * * + + +Durante o semestre que finda este mez Lisboa não produziu nem um só +livro util, nem uma só notavel obra d'arte na pintura, na musica, na +poesia. + +Não se fez nem uma prelecção nem uma conferencia litteraria ou +scientifica. A estação toda passou-se como a estação anterior, como as +estações precedentes, sem que esta sociedade em marasmo désse um unico +signal de vida intelligente. + +Lisboa é hoje a unica capital da Europa em que isto succede. Não +queremos dar-lhe em parallelo Paris, Berlim, Bruxellas, Londres, S. +Petersburgo, qualquer das grandes cidades da Italia ou da Hollanda. +Apontaremos apenas Madrid, e não citaremos senão um dos seus institutos +particulares, o _Atheneu_, sociedade da natureza do _Gremio Litterario_ +em Lisboa. No _Atheneu_ os cursos publicos, livres, gratuitos, +abriram-se no mez de outubro, tendo havido desde o dia da abertura +prelecções, conferencias ou debates em todas as noites. Teem-se +ventilado as mais interessantes questões da philosophia e da sciencia +social no ponto de vista de espiritos altamente cultos. + +Em Lisboa o progresso social, o movimento ascendente da civilisação +manifestou-se unicamente pela apparição de tres estancos novos no +Chiado e de uma ourivesaria no largo das Duas Egrejas. Como á falta de +objecto para outros interesses mais elevados, nós occupavamos os nossos +ocios encostando-nos ás humbreiras das tabacarias a ver dispersar-se no +ar o fumo dos nossos charutos, as tabacarias comprehenderam que este +estado geral dos espiritos deveria começar a fatigar os habitantes de +Lisboa, e dotaram-os com sofás. Para o anno os estancos requintarão +ainda as condições de commodidade e havemos de ver os estanqueiros +sairem ao encontro dos desejos do publico com colchões. Chegaremos á +Casa Havaneza, despir-nos-hemos, poremos a camisa de dormir e fumaremos +os nossos _carvajales_ deitados em camas, á porta. + + * * * * * + +A ourivesaria do largo das Duas Egrejas teve o successo de uma +instituição. Ella é como um templo ao luxo, como um altar ao deus Ouro, +tal como o conceberiam, erigido com todo o esplendor do culto, os +Pharaós da Rua dos Capellistas. A armação interior da loja é feita em +Paris segundo os elegantes modelos das joalherias da rua de la Paix ou +do Palais Royal. Armarios da mais verosimil imitação de ebano sobre um +parquet brunido. Tecto de um azul idealisado, representando um trecho de +ceu coberto de creme. + +Nas vitrines, de um só cristal immaculado, desdobram-se em degraus, como +n'um throno de lausperenne, as prateleiras de veludo cor de cereja, de +cuja suavidade macia e ardente destacam em vigoroso relevo as joias em +exposição. A um lado pendem em meada as correntes de relogio exhibidas +como o corpo de delicto de uma quadrilha de pick-pocket apanhados com o +roubo. Suspensos nas extremidades das correntes pousam em baixo os +breloques, n'um grande molho confuso, como se adornassem um collete +monstro sobre o estomago collectivo e proeminente do capital. + +Nos logares mais proximos de quem olha estão os miudos objectos +preciosos, as finas pedras raras, os olhos de gato castanhos e amarellos +em pequenas elypses cujo grande eixo é indicado por uma linha que separa +nitidamente as duas côres; as perolas negras de um tom profundo, que não +é o preto, é o infinitamente escuro, como a noite; as perolas côr de +rosa sobresaindo em cercaduras de brilhantes como capsulas cabalisticas +feitas de substancias extraidas de uma cristalisação mimosa de beijos +ternos e de perfumes castos. + +No segundo plano apparecem os ornamentos de mais vulto: os broches +tremelusentes e vivos como esparrinhaduras de diamantes e de rubis +chispando no ar; as flores imaginosas de petalas de aljofar ou de +saphira, orvalhadas de pulverisações de esmeralda; os medalhões em +camafeus preciosos sobre pedras de tres côres nos tres planos da +esculptura; as eflorescencias phantasticas das onix, das granadas, das +malaquites, das opalas; em raios como estrellas, em sobreposições como +pinhas, listradas, rajadas, mosquetadas, affestoadas, zebradas com todas +as scintillações do prisma. + +Mais longe offerecem-se os braceletes nos seus estojos côr de lilaz. Uns +são fortes e duros como os violentos desejos, outros vaporosos e finos +como aspirações platonicas. Nas suas variadas formas teem physionomias, +revelam temperamentos. Ha-os lascivos e ardentes, colleados em quatro +roscas de um ouro fulvo, terminando n'uma cabeça de cobra esmagada por +um esbraseamento de rubi. Ha-os contemplativos e ingenuos, de uma côr +limphatica, salpicados de frias e innocentes turquezas. Tambem os ha +trasbordantes de uma vida farta e victoriosa, largos, rendilhados, +superabundantes de cores, expansivos e triumphaes como orchestras, +soprando hymnos de um enthusiasmo sanguineo, vermelho, despotico. + +Em outra vitrine está a exposição das pratas: os centros de mesa +representando palmeiras, á sombra das quaes se empinam cavallos em +pello, que deverão parecer relinchar de amor no meio das sobremesas, +entre as frutas empilhadas geometricamente em pyramide sobre taças de +filigrana e os gelados transparentes impregnados de luz, tremulos, côr +de topasio; as bacias de mãos, de desenhos bysantinos _repoussés_; os +jarros de forma etrusca; os assucareiros graves e concentrados como +vasos de particulas sagradas; e os grossos bules barrigudos e polidos, +nos quaes se espelham os rostos em caricatura monstruosa, com bochechas +obscenas, narizes que incham como focinhos de vitela e bocas que riem +até as nucas. + + * * * * * + +Ao accender das luzes, ás oito horas e pouco depois, magotes compactos +de espectadores estacionam defronte da vitrine das joias. Demoram-se +mais as mulheres: mulheres de amanuenses e de pequenos empregados, +costureiras das modistas, que saem a essa hora das officinas quando não +ha serão. + +Candieiros de gaz com fortes reflectores não só alumiam intensamente os +objectos expostos nas vitrines, mas alumiam tambem pedaços de +espectadores, em que se podem fazer exames minuciosos, de microscopio. + +As mulheres magras, pallidas, que olham, teem as faces oleosas da +transpiração do trabalho de 14 horas em pequenos gabinetes abafados, +cheios de exhalações mornas de roupa suja. Na mão esquerda o dedo que +aponta para um colar de mil libras tem uma nodoa escura, esfarpada, +produzida pelas picaduras da agulha, e o dedo polegar mostra uma unha +curta atrophiada no habito de esmagar costuras. Os chapeus adornam-se +com velhas flores em terceira mão, desbotadas e tristes; e das cuias, +caidas sobre a mancha gordorosa que tem entre as espaduas a alpaca poida +dos vestidos, sae um cheiro acido de cabellos humidos e embrulhados, em +fermentação. + +Dentro da loja uma bella mulher risonha que se apeou de um coupé, +embrulhada em fina renda branca, debruça-se no mostrador e aproxima da +mão do caixeiro que lhe segura um brinco a polpa aveludada da sua orelha +carnuda, sensual, de comilona feliz. + +Os espelhos dos angulos da sala e os que forram as vitrines reproduzem +infinitamente para todas as direcções essa cabeça bonita envolta em +renda, e mostrada ao mesmo tempo de todos os lados, de frente, de +perfil, de tres quartos, acompanhada sempre da mão que enfia o brinco. + +As macilentas Margaridas de olhos pisados vão ver em cada noite esse +espectaculo de tentação, em quanto na esquina fronteira, na Casa +Havaneza, os Doutores Faustos accendem os seus charutos, e muitos +diabinhos invisiveis volitam no ar dizendo segredos, deitando de fóra +impudentemente as linguinhas de chamma e coçando os seus piqueninos +chavelhos com freneticas contracções aduncas, como quem se sente +inteiramente cheio de phosphoro e de alacridade. + + * * * * * + +A peregrinação a Roma foi promovida pelos chefes do partido clerical com +um zelo fervoroso, que acabamos de ver coroado com o mais prospero +exito. + +Suas excellencias annunciáram com a devida antecedencia a celebração do +jubileu pontificio; facilitaram a romagem com esclarecimentos que fariam +a gloria do _Guide Joanne_; conseguiram o estabelecimento de comboyos de +recreio, ida e volta, preços reduzidos, de Lisboa a Roma, com escala por +Nossa Senhora de Lourdes; deram os preços dos hoteis e dos restaurantes +romanos, a regimen de peixe ou de carne, para as grandes bolsas, para as +bolsas medias e para as pequenas bolsas; fixaram finalmente a +_toilette_, explicando que as senhoras deveriam apresentar-se com +vestidos de seda preta e véos de renda, e os homens de uniforme ou de +casaca preta e gravata branca. + +Porque--suas excellencias o explicáram--o santissimo padre não recebe +senão senhoras de rendas e homens de casaca. Os peregrinos vestidos de +sacco e burel, as peregrinas cingidas pela estamenha e pela corda de +esparto, não sobem a escada do Vaticano. Os pés privilegiados para +pisarem os tapetes do Vigario de Christo na terra são os pés mimosos e +aristocraticos, calçados em escarpins de setim ou de polimento. Os +sapatos ferrados dos caminheiros plebeus, as sandalias espalmadas das +peccadoras que não vem de passeiar em _victoria_ ou em caleche á +Daumont, de volta do Corso ou do Pincio, mas que chegam das escabrosas +veredas da miseria; as alpagartas dos penitentes que vieram trilhando +abrolhos sangrentos no aclive da via dolorosa, são generos de calçado +expulsos pelos enxota-cães, e expulsos com os respectivos pés, porque +tambem se não entra descalço no Vaticano como se entra no templo em +Jerusalem, ou na mesquita de Santa Sophia em Constantinopla. + +Facultados tão interessantes esclarecimentos muitas pessoas partiram a +receber as bençãos paternaes offerecidas pelo pontifice ás rendas e ás +casacas pretas do orbe christão. + + * * * * * + +Alguns episodios d'essa piedosa viagem são já do dominio da imprensa. Da +estação do caminho de ferro de Braga sairam os romeiros entre +acclamações sympathicas e vivas enthusiasticos á santa religião e ao +summo pontifice Pio IX. Em compensação na gare do Porto foram os mesmos +romeiros acolhidos aos gritos não menos enthusiasticos de «Fóra os +hypocritas! fóra os patifes!» Por este ultimo successo damos a suas +excellencias os nossos cordeaes parabens, porque suppomos que elles +viajam com um fim de humildade e mortificação, e que lhes serão +agradaveis todas as manifestações publicas tendentes a exacerbar-lhes o +pungimento expurgante das duras penitencias. + +Em Lourdes, refere o telegramma de um sacerdote ao jornal _A Nação_, que +á vista da gruta toda a romagem rompera em pranto e se prostrára em +joelhos. Devemos crêr que esta prostração fosse passageira, não só +porque um telegramma subsequente nos annuncia a chegada dos peregrinos á +cidade eterna, mas ainda porque em Lourdes a belleza da paisagem, a +exuberancia da vegetação, o rumor das aguas, as perspectivas sombrias e +flexuosas da floresta, a clara alegria do restaurante, de gelosias +abertas, de _stores_ desdobrados ao sol, com a sua grande taboleta _Á +Notre Dame de Lourdes_, e os seus subtitulos em caracteres appetitosos +_Diners à la carte et déjeuners à la fourchette,--gras et maigre_, tudo +convida os espiritos ascetas a uma conciliação amavel com a carnalidade +mundana. + +Além do aspecto das coisas, as exterioridades das pessoas contribuem +tambem poderosamente para arrancar os adventicios ás attitudes +prostradas e contemplativas. + +Os comboyos de Paris chegam e partem cheios de alegres _touristes_ de um +e outro sexo. + +São graciosas peccadoras com adoraveis _toilettes_ de viagem; chapeus de +grossa palha de fôrma aguda e aba estreita derrubada sobre os olhos, +descobrindo a nuca, em que se enrolam as tranças loiras, e a nascença do +cabello junto do pescoço, com os seus flocosinhos de pennugem crespa e +doirada penetrada de luz; os vestidos decotados no collo em linhas +quadradas como os colletes dos devotos bretões; as saias curtas deixando +ver as meias de seda listradas de azul, e os sapatos de pelle de gamo +atacados com correntes de aço, que telintam ao andar. Estas gentis +romeiras abordoam-se a cajados rusticos comprados no _boulevard_ dos +Italianos, trazem ao tiracollo os grandes rosarios de contas de madeira, +grossas como bugalhos, terminando em uma cruz egualmente de madeira que +chega á barra do vestido,--ornato local de um pittoresco picante. + +São os homens de nickerbockar de flanella alvadia e capacetes de sabugo +envoltos em véos turcos, com uma flor de madresilva na _boutonière_, +fazendo gelar o champagne e preparando debaixo das arvores os seus +jantares em _partie fine_, emquanto padres solicitos vendem a agua +milagrosa, ou aos copos á bica da gruta, ou em bilhinhas de lata +devidamente lacradas e selladas authenticamente, facultando na igreja +recantos reservados e escusos para as applicações em banhos parciaes, ou +em compressas, a orgãos enfermos que as devotas desejem submeter á cura +nos proprios logares benzidos e sagrados. + + * * * * * + +Em cem contos é calculada a somma dos donativos em dinheiro levada +pelos peregrinos portuguezes ao Santo Padre. + +É valiosa na occasião presente essa contribuição, porque a historia do +dinheiro de S. Pedro teve sob a gerencia do cardeal Antonelli episodios +devastadores. Procurando ha annos o governo de Victor Manuel realisar +uma operação bancaria destinada a equilibrar as finanças da Italia, o +cardeal Antonelli, como fino rabula e zeloso ultramontano, concebeu o +plano de um _coup de bourse_ destinado a combater as intenções do +governo italiano provocando uma descida que impossibilitasse a emissão +de novos fundos. Para este fim o astuto financeiro vendeu em massa, pela +baixa, os titulos da divida italiana que a Santa Sé possuia e que +representavam o dinheiro de S. Pedro. É porém perigoso, mesmo para um +italiano, jogar as peras com outro italiano. Na Italia todo o homem +habil deve estar preparado para encontrar um mais habil que o logre. Foi +o que succedeu a Antonelli. O seu plano foi estrategicamente +contraminado pelo governo de Victor Manuel, organisando-se um syndicado +de banqueiros que despedaçou a armadilha do illustre cardeal. + +O dinheiro de S. Pedro convertido outra vez em metal pela operação +malograda nos seus effeitos, foi então convertido em fundos turcos, +operação arrojada mas tão lucrativa que promettia duplicar, em poucos +annos, o capital empregado, a não ser que um caso, então imprevisto, +prejudicasse o exito da transacção fazendo estalar no Oriente uma guerra +inesperada. + +Foi, como se sabe, o que veiu a succeder desgraçadamente para os bens do +Papa. De sorte que o dinheiro de S. Pedro, piedosamente accumulado pelos +catholicos para o esplendor da Igreja, achou-se, pela mais estranha das +coincidencias, consumido em polvora por uma potencia chamada ao fogo +como perseguidora dos christãos! + + * * * * * + +Além dos donativos em dinheiro e dos presentes em objectos preciosos, os +peregrinos levaram, para offerecer a Sua Santidade, um grande album, em +que vae inserida uma declaração de principios assignada por todos os +romeiros. Os jornaes que nos transmittem essa noticia não nos dão o +texto do documento precioso. Não temos, portanto, a ventura de saber o +que suas excellencias dizem. O que deveriam dizer era o seguinte: + + * * * * * + +Santissimo Padre + +Ha hoje quinhentos e setenta e sete annos que o primeira jubileu da +Igreja Catholica Apostolica Romana foi celebrado por um dos +predecessores de Vossa Santidade, o papa Bonifacio VIII. + +Esta solemnidade não tinha por fim, como o anno jubilario do Mosaismo, +dar a liberdade aos escravos, fazer reverter os bens territoriaes aos +seus primitivos possuidores, tornar o homem insoluvel de cincoenta em +cincoenta annos, e ao cabo de cada um d'esses prazos reconstituir a +familia nos seus primitivos direitos, operando periodicamente aquillo +que hoje chamariamos a _liquidação social_, e a que o _Pentateuco_ +chamava simplesmente a--_santificação do quinquagesimo anno_. + +O papa Bonifacio, antigo rabula, (_quia primo advocatus_), +preoccupava-se pouco com as interpretações do direito; promettendo a +remissão dos peccados a todos os que viessem a Roma visitar, durante +trinta dias, as igrejas dos apostolos, o seu fim unico era realisar um +dos seus sonhos de decrepito allucinado: inaugarar o seculo XIV com uma +solemnidade unica na historia--a reunião em Roma do genero humano +prostrado aos seus pés, como perante o Deus vingador no dia do juizo +final, no valle de Josaphat. + +N'esse tempo, Santissimo Padre, ainda no mundo existia a fé. O numero +dos peregrinos que vieram a Roma foi tão grande, que chegaram a contar +cem mil. Por fim não poderam ser arrolados. Cresciam monstruosamente +como esses formigueiros da America do Sul que n'um mez minam os +alicerces de um predio e aluem uma torre. Eram insufficientes para +albergal-os as casas dos moradores, os hospicios, as ermidas, as +igrejas. Acampavam nas ruas e nos campos suburbanos. A escassez dos +alimentos e a _malaria_ produziam uma infinidade de doenças. Houve uma +fome e quasi uma peste. A mortalidade era enorme. Uns não regressavam +mais. Outros não conseguiam chegar ao termo da romagem, e extenuados de +fadiga e de fraqueza, com os pés em sangue, morriam saudando de longe a +sagrada collina. + +Com quanto o poder papal entrasse já então na phase de declinação que +até os nossos dias devia progressivamente arrastal-o ao occaso, +Bonifacio suppunha-se ainda o senhor e o arbitro do mundo. Por occasião +da morte de Alberto d'Austria, tendo-se feito acclamar imperador Adolpho +de Nassau, o papa Bonifacio tinha posto a corôa na cabeça, tinha +brandido uma espada, e do alto do monte Aventino havia bradado: «Eu é +que sou o Cesar! eu é que sou o imperador!» + +Era elle ainda que na bula _ausculta filii_ tinha escripto estas +palavras supremas: «Deus collocou-nos, apezar de indigno, acima dos reis +e acima dos reinos, impondo-nos o jugo da servidão apostolica _para +arrancar, destruir, dispersar, dissipar, e para edificar e plantar em +seu nome e segundo a sua doutrina_.» + +No dia do jubileu, para celebrar a ceremonia de bater com o malhete de +prata e de desmoronar o muro com que se veda para esse fim uma das +portas de S. Pedro, o Papa appareceu á multidão prostrada e atravessou +pelo meio d'ella, vestindo as insignias imperiaes, levando adiante de si +a espada e o sceptro sobre o globo do mundo, symbolo da monarquia +universal, enquanto um arauto proclamava: «Aqui vão duas espadas. +Pedro, eis o teu successor. Christo, eis o teu vigario.» + +Os peregrinos que haviam conseguido visitar os tumulos dos apostolos, +cujas columnas são feitas com o bronze subtraído da abobada do Pantheon, +os que haviam chegado a receber com a benção apostolica a absolvição das +suas culpas, regressavam á familia encanecidos, alquebrados, assombrados +para o resto dos seus dias, como os tocados de raio, pelos aspectos +collossaes da tragica Roma, pela historia do seu passado, semi-vivo +ainda nos monumentos destroncados da edade republicana e da edade +imperial, pelas visões portentosas de um mundo extincto que lhes haviam +apparecido como tremendos phantasmas, na arcaria dos aqueductos truncada +a espaços como os elos partidos de um enorme grilhão estendido na vasta +campina; nos banhos de Caracala; nas dispersas columnas corinthias; nos +obeliscos egypcios; no Capitolio convertido em _Colina das cabras_; no +_Forum_ transformado em _Campo das vaccas_; no Coliseu, finalmente, com +as suas tres ordens de columnas doricas, jonicas e corinthias, monumento +collossal, em que trabalharam doze mil captivos, em que cabiam cem mil +espectadores e em que não há uma pedra que não corresponda a uma golfada +de sangue de um gladiador ou de um martyr. + +Os peregrinos regressados n'um vago estado de somnambulismo, como +aluados, haviam porém levado do jubileu uma consoladora lição: haviam +desaprendido de viver, mas tinham-lhes ensinado a morrer tranquillos na +esperança doce e firme da bemaventurança promettida. O que era porém o +mundo, Santissimo Padre, n'esses tempos remotos e sombrios em que os +homens eram isto? + +Em Paris e em Londres as casas eram feitas de madeira ou de lama +endurecida, com tectos de canas. As ruas eram montões de immundicia em +fermentação miasmatica. O uso de banhos tinha desapparecido. A amante de +Petrarca tinha uma unica camisa. O poderoso arcebispo de Cantorbery e +outros altos ecclesiasticos tinham piolhos. Os burguezes vestiam-se de +couros mal curtidos, de um cheiro infecto. Os pobres cobriam-se de +palha. Em muitos pontos das Ilhas Britanicas conta um papa do nome +augusto de Vossa Santidade, Pio II, que não se conhecia a existencia do +pão. Os trabalhadores dos campos comiam herva e cascas de arvores. E era +já o seculo XV! No seculo XI, por occasião de uma fome, vendeu-se e +comeu-se cosida carne humana. A medicina tinha passado de moda, +desprestigiada pelos padres. Tinham-a substituido as penitencias, as +promessas aos santos e as viagens ás ermidas. As reliquias faziam as +vezes de pharmacias. As pestes afugentavam-se não com medidas +sanitarias, mas com preces. Para curar os males da humanidade, conta +Draper que varias abbadias possuiam a corôa de espinhos do Salvador; +onze igrejas conservavam a lança que trespassou o sacratissimo lado; nas +guerras santas os Templarios vendiam como panacéa universal garrafinhas +de leite da Virgem Maria; em um mosteiro de Jerusalem guardava-se n'um +relicario um dedo--do Espirito Santo. A chuva e o bom tempo +determinavam-se com orações. Era egualmente com orações que se combatiam +os eclypses e as trovoadas. O cometa de Halley foi exorcismado e +enxotado do céo pelo papa Calixto III, que o amaldiçoou em nome de Deus. + +N'esse estado das coisas e n'esse estado dos espiritos um serviço +enorme foi inconscientemente prestado pelo papado á civilisação e á +humanidade. Das peregrinações á Roma pontificia sairam as duas maiores +revoluções do mundo moral: do jubileu do principio do seculo XIV saiu +Dante com a _Divina Comedia_ e a reconstituição do direito pelo +sentimento: do jubileu do seculo XVI saiu Luthero com a _Reforma_ e com +a liberdade do pensamento humano. _Alea jacta erat!_ + +Desde então até hoje, Santissimo Padre, que serie enorme de revoluções +successivas e incruentas, determinadas pelo livre espirito do homem, +cortando lentamente a corrente tenebrosa das perseguições, boiando +sempre progressiva e sempre victoriosa sobre o occeano de sangue e de +puz com que a superstição ecclesiastica e o auctoritarismo monarchico +procuram debalde afogar o advento da nova era! Os reis oppõem os seus +exercitos; a igreja oppõe as suas excommunhões; o seu inferno, em que ha +o ranger dos dentes por todos os seculos dos seculos sem fim; os seus +carceres em que a lepra corroe até á medula os ossos dos condemnados; os +seus tormentos, em que ha o fogo lento, a grelha, o forno rubro, o +borzeguim que se descalça levando comsigo, palpitantes, todos os +musculos e todos os nervos das pernas, a pua que fura as unhas e o torno +que esmaga os ossos do craneo e faz rebentar o cerebro como um abcesso +espremido. + +E tudo é em vão! A sciencia intemerata prosegue, inerme e candida, sem +haver feito uma unica victima, sem uma só gota de sangue derramado, sem +uma só lagrima vertida! E deante da branca visão benigna que se +aproxima, o dogma espavorido recúa mais profundamente fulminado por um +simples raciocinio humano de que nunca o foi a mais fraca das almas +deante da colera implacavel e infinita dos deuses immortaes. + +Tudo quanto atravez de toda a historia moderna a auctoridade tem +procurado conservar pela força se tem fatalmente destruido pelo tempo. O +que a auctoridade e a força têem conseguido é unicamente atrazar o +movimento intellectual, determinando os longos periodos estacionarios da +humanidade. Pelo contrario tudo quanto a sciencia iniciou se transmittiu +de idade em idade, se desenvolveu, se relacionou, se perpetuou. Nem uma +unica semente lançada á terra pelo trabalho e pelo estudo deixou ainda +de vingar e de frutificar em resultados decisivos de tolerancia, de +paz, de liberdade e de justiça. + +Na astronomia, na physica e na chimica, na geologia, na meteorologia, na +zoologia, na medecina, na philologia quantos descobrimentos novos! E +cada novo descobrimento é uma conquista nos dominios da Igreja, dominios +que ella successivamente cede na mesma proporção em que a sciencia +caminha. + +É um novo diluvio aquelle de que a historia do pensamento humano nos +offerece a imagem caudalosa e tremenda. A inundação espraia-se no vasto +campo da theologia, e vemos ao longe, fugindo desgrenhadas, as ultimas +superstições, medonhas como os grandes monstros pre-historicos que vão +ser tragados pela vaga. + +Cançada de combater a theologia finalmente rende-se. Tendo perseguido +Galileu, Giordano Bruno, Savanarola, Averroes, Luthero, tendo combatido +todos os iniciadores de um novo systema do universo ou de uma nova +comprehensão dos destinos do homem, a Igreja vê apparecer Darwin, e nem +se quer tenta lutar! + +O transformismo, revelado por Lamarck, supitado um momento na Academia +Franceza sob a auctoridade funesta de Cuvier, é finalmente definido e +promulgado, e todo o immenso edificio theologico da creação do mundo e +do homem cae aluido pela lei da adaptação e da seleção natural na luta +pela existencia. + +Ás grandes revoluções nas sciencias physicas e naturaes succederam-se +modificações equivalentes nas theorias e nas praxes da vida social, na +economia, na administração, na politica, no sentimento, na critica, na +poesia, na arte, na moral e na propria religião. + +Da philosophia zoologica de Darwin sae um Deus como religião alguma +tinha até hoje tido o poder de concebel-o, o unico Deus compativel com a +noção da sabedoria infinita. Segundo os systemas da creação anteriores +ao transformismo, e adoptados pela Igreja, Deus era o auctor de um +universo que elle successivamente revia e emendava, depois de cada um +dos cataclismos que passavam por cima da sua obra, como passa uma +esponja sobre uma operação incorrecta. Segundo a theoria darwiniana, +experimentalmente demonstrada e contraprovada pelos mais sabios +analysadores, Deus não revê, Deus não corrige, Deus não se emenda, Deus +não se aperfeiçôa sendo assim perfectivel e portanto imperfeito, como +fatalmente deveriamos admittir que o era acceitando a doutrina do +Genesis e a critica paleontologica de Cuvier e de todos os adversarios +de Lamarck de Goethe, de Darwin e de Haeckel. + +As especies extinctas não foram cortadas pelo Creador no livro da terra +como por meio de um signal posto á margem na prova de uma segunda +edição. + +Os orgãos rudimentares dos animaes, os orgãos que não têem funcção, +deixaram de ser excrecencias de stylo inadvertidas pelo auctor ou +empregadas por elle com um intuito de ornato rhetorico. Se o homem, por +exemplo, tem em estado rudimentar e na atrophia de uma inercia de +milhares de seculos, uma cauda indicada pelas suas vertebras falsas, se +tem mamillas sem amamentar, se tem utero sem conceber, se tem um segundo +estomago sem ruminar, escusamos já hoje de explicar estes factos por um +descuido indolente ou por uma emphase premeditada na confecção do nosso +organismo. A evolução genealogica de todos os seres e a sua procedencia +de um tronco ancestral commum, descoberta e provada pela lei de Darwin, +basta para nos explicar cabalmente todas as apparentes anomalias da +creação sem quebra da infalibilidade suprema. + +Assim o Deus revelado ao mundo pelos modernos philosophos theistas é o +unico Deus omnipotentemente sabio, o unico Deus verdadeiramente divino, +porque não procede na obra da creação por emendas, revisões successivas, +reedições augmentadas e correctas, como o Deus theologico: Elle cria a +vida no atomo primitivo vogando na immensidade, deixa cair a cellula +primordial nas profundidades fecundas do Mar Tenebroso e ordena-lhe que +se desenvolva dentro de uma lei prefixa. Depois do quê não só não +descansa, não só não revê, não só não modifica, mas nem sequer espera, +porque infinito Elle mesmo, e prehenchendo o infinito no espaço e o +infinito no tempo, possue em si proprio, completa, a infinita evolução. + +Surge finalmente invencivel na sociedade contemporanea um novo poder +temporal, o poder da industria, e um novo poder espiritual--o poder da +consciencia na comprehensão da solidariedade humana. + +Vae pois longe, dercorrida ha muitos annos a idade ingenua em que o +genero humano acreditava na virtude das peregrinações aos santos +logares! + +Compare Vossa Santidade a primeira e a segunda cruzada com esta que nós +outros, portadores do album em que escrevemos estas linhas, acabamos de +emprehender e de levar a cabo em comboyo de recreio de ida e volta, a +preços reduzidos, guiados pelo padre Conceição Vieira, um sacrista, e +pelo Pedro de Alcantara, um grotesco! E estes dois sujeitos são quanto +pudemos obter como successores de Pedro Eremita e de Godofredo de +Bulhões. + +Somos noventa e nove, de um paiz de quatro milhões de habitantes, o +menos instruido de todo o orbe christão, aquelle em que por mais tempo +vigorou, com detrimento do nosso senso commum e um pouco tambem da nossa +pelle o despotismo da inquisição e do direito divino. Isto ainda assim +não obsta porém a que deixassemos na patria tres milhões novecentos mil +novecentos e um individuos que não quizeram vir, perdendo assim a +indulgencia plenaria e deixando de resgatar as suas almas das penas +eternas a troco da modica quantia de dezeseis libras, ida e volta, em +segunda classe! + +Porque elles entendem--principalmente depois que o fogo do Santo +Officio deixou de afervoral-os--que não é facil despir os peccados como +se despe um collete de flanela, descalçar a culpa como se descalçam as +chinellas de trazer no quarto, e pendurar a responsabilidade como se +pendura a _robe de chambre_ para envergar a _toilette_ redemptora de uma +viagem a Roma. + +Parece-lhes que o Diabo não é tão tolo como alguem o presume, e que, se +elle tiver, por exemplo, a idéa de filar o padre Conceição Vieira ou o +padre Marnoco para os referver no caldeirão destinado á classe +ecclesiastica apanhada em peccado, não será porque os mesmos Conceição e +Marnoco lhe digam que estão afivelando a chapeleira para ir buscar as +indulgencias a Roma, que o Diabo crusará os braços e deixará escapar-lhe +sob essa evasiva, aliás engenhosa, uma tão interessante presa. + +Estão profundamente convencidos--os herejes!--de que, acima da +auctoridade dos pontifices, que teem o poder de resgatar as culpas e de +franquear a entrada no reino dos céos, está um outro poder mais alto--o +poder da incorruptivel consciencia, segundo o qual não é pelas romagens +divertidas nem pelas orações authomaticas, nem pelas estereis +penitencias, mas sim pela simples pratica do dever, austero e +inilludivel, que cada um se affirma como verdadeiro justo. + +Acham ridiculo um céo em que tenha de sentar-se, glorioso e triumphal, á +mão direita do Deus da Justiça, um padre Marnoco--simplesmente porque +obteve as indulgencias no jubileu pontificio, em quanto á mão esquerda +fique ardendo nos tormentos eternos um Lincoln, que pacificou a America, +que deu a paz a tres milhões de negros e que, depois de uma vida toda +consagrada á justiça e á abnegação, entrou finalmente na eternidade pela +porta do martyrio, coberto com a benção da humanidade e com a benção da +historia, mas sem a benção dos papas. + +Santissimo Padre! estas convicções profundas d'aquelles que não vieram a +este jubileu, não podemos deixar de vos dizer n'este album,--como +seríamos forçados a dizer-vol-o, se estivessemos aos vossos pés n'uma +confissão geral, humildes e contrictos, batendo nos peitos,--estas +convicções dos que não vieram são tambem no intimo das nossas almas as +convicções de todos os que nos achamos aqui, quer chegados das +occidentaes praias lusitanas, quer procedentes de qualquer outra região +do globo. + +E a evidente prova de que a nossa fé está irremissivelmente apagada e +precisa de se reconstituir em novas bases, é que, no tempo em que o papa +era o imperador e o Cesar, no tempo em que elle brandia uma espada de +justiça e de guerra, meio milhão de homens rojados aos seus pés estariam +prontos a recomeçar as guerras santas ao seu minimo aceno. + +Hoje vós proclamaes que sois captivo, que sois ultrajado, espoliado, +perseguido, e entre todos os que vos trazem offertas não ha um só que +seja capaz de derramar o seu sangue para vos restituir a liberdade que +dizeis perdida e o poder que dizeis violado! Beijamos devotamente o +vosso pé sacrosanto; depois do quê, em vez de enristarmos uma lança, +vimos para a rua com as mãos nos bolsos e um charuto nos beiços ver +desfilar em pelotões marciaes os esveltos _bersaglieri_ da Italia +unificada. + +Debalde nos dizeis que «os pedreiros livres atacam a religião e chamam +os catholicos a combater.» Os pedreiros livres são bem lastimaveis se +não teem mais nada que fazer do que chamar-nos ao combate! A verdade não +se alimenta com sangue, alimenta-se com principios, e não necessita de +victimas, necessita unicamente de razões: é precisamente n'isso que ella +se distingue do erro e da mentira. + +Se os pedreiros livres querem por força combater, a resposta mais +sensata ao seu convite aos catholicos é mandar-lhes um medico que os +sangre e lhes prescreva os debilitantes. Que os senhores pedreiros +tenham a bondade, antes de nos reptar ao combate, de experimentar a +dieta! + +Emquanto á guerra, não! Oh! não! Esse é um privilegio dos reis. Hoje só +os reis, e algum tanto tambem os diplomatas, é que fazem as guerras. Por +uma razão muito simples: é que só elles as pódem fazer por um modo +exclusivamente verbal,--mandando partir os seus exercitos. + +Quando os exercitos se lembrarem de mandar partir adeante os reis e os +diplomaticos, teremos então firmada para todo sempre a paz geral. + +Concluindo pois, Santissirno Padre, dignae-vos de lançar-nos a vossa +benção e de nos permittir que a transmittamos a todos os nossos +concidadãos, que saberão devidamente presal-a sendo enviada por quem é, +como vós, um ancião veneravel, cuja longa vida é para todos os que +trabalham e para todos os que soffrem um nobre exemplo de constancia nos +principios, de firmeza na luta e de resignação na derrota. + + + * * * * * + + +Sua alteza o principe real, herdeiro presumptivo da corôa, acaba de +tomar a primeira communhão. + +Comparecendo pela primeira vez no tribunal da graça aprendeu sua alteza +a theoria do resgate da culpa pela penitencia. + +A familia real e a côrte reuniram-se solemnemente no templo para verem +ensinar a esse menino por que methodo facil os reis podem deixar na +terra o oprobrio e enfiarem no entanto para o ceu o mais candido vôo, +alados pelos anjos que, ao som da musica da real capella e ao signal da +benção lançada pelo sacerdote, baixam aos reaes paços a pegarem ao collo +nas almas dos principes devidamente desobrigados. + +Dizem todos os jornaes que foi extremamente edificante e commovente +esse augusto espectaculo. + + * * * * * + +Para ministrar ao principe a sagrada eucharistia foi chamado +expressamente do Porto o sr. bispo D. Americo. + +Parece-nos--comquanto não ouzemos dizel-o sem uma reserva profundamente +timida--que sendo a communhão um acto puramente religioso, seria talvez +mais consentaneo com a humildade christã que o sr. bispo D. Americo não +fosse chamado, que se não fizesse da pratica de um sacramento uma +distincção aristocratica, e que sua alteza commungasse simplesmente como +os demais christãos na igreja da sua freguezia e pelas mãos do seu +parocho. + +Poderão objectar-nos que, não comprehendendo as abluções do rito senão +as pontas dos dedos no sacrificio da missa e sendo as _douches_ +applicadas unicamente aos sacerdotes pelo bico de um galheta, ha +parochos que, por não ultrapassarem as prescripções liturgicas teem nas +suas lobas tantas nodoas como botões, e não sómente cheiram +penetranremente ao fumo do incenso e ao murrão dos cirios, mas cheiram +tambem algum tanto a saes ammoniacaes e a uréa, d'onde poderia resultar +que no banquete eucharistico a qualidade da baixella desgostasse o +principe da pureza mystica do manjar. + +A essa objecção respondemos que seria mais economico e talvez mesmo mais +efficaz para remedio do baixo clero que, em vez de só mandar vir o sr. +D. Americo, deslocando-o dispendiosamente da sua diocese com os seus +famulos e a sua mitra, se mandasse chamar simplesmente o sr. Cambournac. + +Porque--acreditem-o--não é com a presença do illustre e correcto bispo +portuense, nitidamente barbeado, perfumado pelo uso de bons comesticos, +com bellas meias de seda escrupulosamente esticadas por um destro _valet +de chambre_, com fina roupa branca e lustrosas unhas esmeradamente +limadas e polidas, não é com exemplos que deslumbram que se ha de obstar +á decadencia das nossas batinas. Ellas em Portugal não querem por +emquanto exemplos. O que ellas querem é directamente benzina. + + * * * * * + +Se, porém, se entende definitivamente que á mesa da communhão devamos +nós os catholicos aproximar-nos por cathegorias e por classes, como á +mesa dos paquetes, então pedímos uma tarifa para regularisação do +serviço ecclesiastico. Que a Igreja nos diga definidamente quem são os +passageiros da terceira classe que commungam na tolda com a marinhagem e +quaes os escolhidos com direito a receberem a communhão á mesa do +commandante! + + * * * * * + +Depois da ceremonia religiosa, accrescentam os jornaes, que fora servido +no paço um opiparo almoço aos dignatarios da côrte e ao alto clero. +Esperamos que o sr. patriarcha fazendo aos poderes temporaes o duro +sacrificio de não cumprir o preceito jejuando, pozesse ao menos a +condição de que a sua costelleta fosse de bacalhhau! + + + * * * * * + + +A narração feita pelo capitão Cameron da sua viagem no continente +africano veio levantar em Portugal, entre alguns incidentes, a seguinte +questão: + +O que devemos fazer para manter por meio de medidas civilisadoras o +dominio das nossas colonias? + +Para isto ha uma unica resposta: Para dominar o que se deve fazer é +crear faculdades dominantes. + +Quem tem força para dirigir manda; quem a não tem serve. + +A escola dos grandes exploradores e dos colonisadores é a escola da +força nos individuos. Quando Stanley deu pela primeira vez conta em uma +conferencia em Londres, da viagem que fizera em procura de Levingstone o +argumento que mais convenceu o publico de que o conferente não era um +simples phantasista foi a expressão energica da sua figura agigantada, a +sua saude de Hercules e os fortes pulsos com que na gesticulação elle +parecia estar outra vez abatendo e supplantando de novo aos olhos do +auditorio os obstaculos com que dizia ter luctado. + +Deante de um retrato do capitão Cameron sentimos a mesma impressão, que +explica o successo de uma empreza difficil e perigosa pela decisão e +pela firmeza do que a emprehende. A physionomia um pouco espessa e dura +de Cameron, o seu grosso pescoço solidamente plantado entre uns hombros +athleticos são para a consideração de todos os inglezes os mais bellos +attributos de raça, o mais apreciavel caracteristico de uma distincção +privilegiada. Porque na educação ingleza a saude, o vigor muscular, a +força physica são o objecto de um culto. + +Nos collegios Eton, Rugby, Harrow, os jogos athleticos, a pella, o +exercicio do remo, a carreira, o _foot ball_, o _cricket_ occupam todos +os dias algumas horas de applicação. Duas vezes por semana, quando +menos, as aulas terminam ao meio dia para darem tempo aos exercicios +physicos. As contendas entre os alumnos decidem-se ao pugilato, deante +de testemunhas, com padrinhos que estabelecem as condições do combate, +que amparam o vencido, que lhe refrescam com agua as contusões, porque +estes encontros não terminam sem um ou outro ou ambos os contendores +ficarem com um olho pisado, um dedo partido, ou um beiço esmurrado por +um dos socos do adversario. Toda a creança que se exhime a liquidar n'um +combate leal as suas pendencias de honra é despresada pelos seus +camaradas e considerada como incapaz de vir a ser jámais um verdadeiro +_gentleman_. + +Do collegio passam os alumnos creados n'este regimen durante a +adolescencia para as universidades, onde a mocidade se desenvolve sob um +regimen egual: conhecem-se as celebres regatas no Tamisa entre as +equipagens das duas universidades de Oxford e de Cambridge. Os +estudantes ricos exercitam-se e fortificam-se ainda montando a cavallo, +caçando a raposa, governando a quatro. Para se tornarem vigorosos e +dextros, creanças, moços, adultos, homens de quarenta e cincoenta annos, +outros muito mais velhos, como por exemplo lord Palmerston, cumprem as +mais severas prescripções hygienicas, submettem-se a uma alimentação +especial, absteem-se de todo o excesso que prejudique o desenvolvimento +systematico da musculatura. Os principaes divertimentos nacionaes são os +exercicios de agilidade e de força. Ha _crickters_ que teem ido jogar +partidas solemnes de Londres á Australia. + +Em Lisboa vivem dois inglezes que vão frequentemente a Cintra a pé, +levam as suas espingardas, passam o dia a caçar nos Capuchos e +regressam á noite sempre a pé. Tripulam uma pequena embarcação com a +qual teem batido em muitas apostas todos os catraeiros do Caes do Sodré. +Ha poucos dias foram ao Porto expressamente para regatar com o club +d'aquella cidade. Foram vencidos pelos do Porto. Depois da regata havia +uma partida de _cricket_. Um dos inglezes a que nos referimos +sustentou-se no campo cinco horas consecutivas sem nunca sair do jogo. +Dois officiaes a bordo de um dos navios da ultima esquadra que esteve no +Tejo partem a pé de Lisboa, pela manhã, vão a Mafra, passeiam na mata, +percorrem todo o enorme edificio do convento, almoçam um bife e voltam a +pé a Lisboa, chegando a tempo de estarem em um jantar de convite, á hora +fixada, lavados, perfumados, frescos, com os seus uniformes de _soirée_ +e uma rosa de Mafra na casa da farda. + +D'estes factos e de muitos outros equivalentes, que seria prolixo +enumerar, deduz-se que o assumpto de uma conferencia, que não vemos por +emquanto citada entre as que nos annuncia a Academia ácerca da +civilisação africana, poderia intitular-se: _Da influencia do «sport» no +caracter dos povos exploradores_. + + * * * * * + +A Academia póde muito bem civilisar a Africa pelo modo mais +superiormente sabio na rua do Arco a Jesus, mas não seria talvez +inteiramente ocioso o perguntar quem é que ha de ir levar aos interiores +inhospitos da Africa as bases elementares d'essa civilisação. Não ha +duvida que é possivel mas não é completamente inaccessivel a algumas +objecções a hypothese de que os negros se queiram desde já civilisar a +si mesmos e venham expressamente para esse fim á Academia escutar. Ao +passo que, por outro lado, as prelecções dos illustres academicos não se +distinguem das conferencias feitas em Paris e em Londres pelos viajantes +extrangeiros unicamente no facto de encararem os assumptos por um ponto +de vista contrario, distinguem-se ainda pela particularidade de que os +srs. Cameron e Young fizeram as suas exposições depois de chegarem, e os +srs. academicos, com excepção do sr. José Horta, fazem as suas um +poucochinho antes de partirem. Isto em nada prejudica o valor real da +doutrina academica, que de modo algum menospresamos. O que pretendemos +simplesmente notificar é que talvez não seja facil encontrar-se de +pronto quem vá traduzir em bunda ao gentio de Africa a prosa eloquente +e vernacula dos civilisadores inamoviveis da metropole. Não é facil +encontrar esses homens, porque a raça dos nossos antigos expedicionarios +abastardou-se e extinguiu-se na molleza dissoluta dos costumes modernos. + +Folheem-se os velhos chronistas, examinem-se os retratos dos homens dos +nossos descobrimentes e das nossas conquistas: + +Affonso de Albuquerque, aos sessenta e tres annos de idade, cercado dos +desgostos mais profundos, arrosta durante cinco mezes com os estragos +devastadores da terrivel dysenteria asiatica, porque--diz João de +Barros--_como era fragueiro e pouco mimoso de sua pessoa só se lançava +em cama, quando mais não podia_. Albuquerque que em saude reunia á força +physica a grande força moral da alegria--_era homem de muitas graças e +motes, e em algumas melancolias leves, no tempo de mandar, soltava +muitas, que davam prazer a quem estava de fóra,_--assim tocado de morte +por uma enfermidade que não perdôa nunca, reune conselho de capitães, +nomeia o seu successor põe bôa ordem em todos os negocios da +administração da India, escreve a el-rei a famosa carta, modelo de +hombridade e de independencia, cujo autographo se conserva na Torre do +Tombo, despede-se do rei de Ormuz, e faz-se ao mar em um dos seus +navios, onde expira, tendo fulminado a incompatibilidade das monarchias +com o direito por via da conhecida phrase: _mal com o rei por amor dos +homens, mal com os homens por amor do rei_. + +O infante D. Henrique--segundo o mesmo João de Barros--_tinha largos e +fortes membros acompanhados de carne: a côr da qual era branca e corada, +em que bem mostrava a boa compleição dos humores. Tinha os cabellos +algum tanto alevantados, e o acatamento_ (_por a gravidade de sua +pessoa_) _um pouco temeroso a quem d'elle não tinha conhecimento._ + +Do conde Duarte de Menezes, a quem D. Affonso V deu a capitania de +Alacer-Ceguer, e que foi um dos heroes da Africa, diz Gomes Eanes de +Azurara: «Foi este conde de baixa estatura de corpo, enformado em +carnes, e de cabellos corredios, e graciosa presença, embargado na +falla, e homem de grande e bom entendimento, pouco risonho nem +festejador, tal que quasi do berço começou de ter auctoridade e +representação de senhorio. Foi muito amador de verdade e de justiça, +_mui temperado em comer, e beber, e dormir, e soffredor de grandes +trabalhos, tanto que parecia que elle mesmo se deleitava em os haver, +porque quando lhos a necessidade nom apresentava elle por si mesmo os +buscava_. E segundo entender dos homens nem se desenfadava tanto em +outra cousa, como nos feitos da cavallaria, como aquelle que quasi do +berço usara o officio das armas.» + +Diriamos estar vendo colorida no stylo das nossas velhas chronicas a +photographia moderna de um _sportman_ da Grã-Bretanha. + +Do mesmo Duarte de Menezes diz Schoeffer: «O poder que tinha sobre si +mesmo, a sua gravidade natural, que raras vezes interrompia por um +sorriso, e sobretudo o seu juizo são e a sua alta intelligencia +tornavam-o _proprio para o commando_.» + +O infante D. Pedro, o que, segundo o proloquio popular, _viajou as sete +partidas do mundo_, era alto e magro; diz Schoeffer que a suavidade do +seu olhar abrandava a impressão de receio produzida pela sua estatura e +pelo seu rosto fortemente carregado; «irado tinha um aspecto que +infundia terror». + +Os corações eram de uma tempera inquebrantavel, hostil á +sentimentalidade e á ternura. Em um combate no assedio de Alcacer, +Martim de Tavora arranca do poder dos moiros a golpes de espada o seu +fidagal inimigo Gonçalo Vaz Coutinho, verte para o conseguir o seu +proprio sangue, arrisca eminentemente a sua vida, e quando Gonçalo Vaz +lhe pergunta como viverão d'ahi em diante, Tavora responde-lhe +duramente: «Como dantes.» E a inimisade dos dois continuou inabalavel. + +Os que eram dados ao galanteio das damas commoviam-as mais pela asperesa +varonil do aspecto do que pela suavidade effeminada das formas. + +Na lenda dos doze que foram bater-se na corte de Londres pelas damas do +Palacio, o Magriço diz á loura _miss_ que depois do combate ia +deitar-lhe agua ás mãos: «Sabei, senhora, que as minhas mãos, segundo as +tenho assim tão grosseiras e cabelludas, poderão ser-vos molestas e temo +que vos causem desgosto.» Ao que a mimosa ingleza replica fazendo sentir +ao calejado e cabelludo cavalleiro que a bella mão de um homem é a que +denota pelo seu aspecto não dedicar-se ás caricias molles, mas sim aos +fortes trabalhos que teem como fim a honra e como premio o amor. + +O Vasco da Gama era de um porte tão exforçado e valoroso, que o rei D. +Manuel, hesitante na escolha do homem a quem devia entregar o commando +da expedição projectada, vendo-o atravessar por acaso na sala em que ia +sentar-se á mesa para jantar, determina que seja aquelle o que vá +descobrir-lhe a India. + +O modo como o Gama esmaga a seu bordo a conspiração dos pilotos basta +para provar que D. Manuel tinha o olho prescrutante que adivinha os +homens pela cara. Sacudido pela tempestade temerosa no meio de empresa +de tanto risco e de tamanha aventura, quando a guarnição desalentada e +espavorida pede em todos os navios da frota que se arribe, que se +regresse á patria, o Gama prende a um por um todos os pilotos cabeças do +motim, carrega-os de ferros, encarcera-os no porão, intima-os a que lhe +entreguem «quantas cousas tinham da arte de navegar» sob pena de os +enforcar a todos, e havendo na mão as cartas que os deviam orientar na +volta, lança tudo ao mar, exclamando: «Olhae que não tendes mais mestres +nem pilotos nem quem vos ensine o caminho de hoje em diante. A Deus vos +encommendae e pedi misericordia, e a mim de hoje ávante ninguem me diga +que arribe; porque de mim sabei certo que, se não achar recado do que +venho buscar, não voltarei nunca mais.» + +Ao que a guarnição se submetteu com a docilidade de quem não tinha senão +dois caminhos que escolher n'aquella viagem:--o da India ou o da morte. + +O proprio Camões, o immortalisador das façanhas d'essa velha raça, era +elle mesmo um forte, um destemido, um lord Byron da Renascença. Os seus +costumes de audaz espadachim e de famigerado tranca-ruas crearam-lhe na +India conflictos arriscados, de cujas ameaças elle sorria dizendo: que +só era vulneravel pelas solas dos pés e que estas ninguem lh'as vira nem +havia de ver. + +Em todas as altas figuras do nosso grande seculo se patenteia o typo +expressivamente caracteristico de uma forte raça privilegiada, hoje +extincta. + +A Europa sahia apenas do regimen feudal. Conservavam-se vivas no coração +de todos os fidalgos as tradições da cavallaria. Os besteiros de conto +eram apenas uma debil tentativa do que deviam vir a ser mais tarde os +nossos exercitos permanentes. + +Os grandes vassalos defendiam os seus foros com numerosas lanças, e nos +prasos em que não serviam o rei e a patria batendo-se com inimigos +extrangeiros, adestravam a mão em sortidas e escaramuças intestinas. +Quando não combatiam monteavam. + +Tinham a educação da guerra, a experiencia das aventuras arrojadas e das +duras privações. + +Os divertimentos publicos eram ainda os jogos guerreiros: o _tavlado_, +um exercicio de força, e as _canas_, um exercicio de destreza. + + * * * * * + +A moderna educação portugueza esterilisou a sociedade para o fim de +gerar homens proprios para as lutas do trabalho nas regiões inclementes +em que é preciso arrostar com a fadiga, com o sol tropical, com as +febres dos rios podres. + +Os cidadãos que em Portugal recebem alguma cultura de espirito +sacrificam-lhe de tal modo o seu desenvolvimento physico que não só não +podem levar a sua influencia e a sua dominação intellectual ao interior +da Africa, mas nem sequer a levam de Lisboa a Cascaes se lhes suprimirem +as facilidades do rebocador ou do carrão. + +Sabemos que ha excepções, mas essas constituem uma vantagem pessoal de +poucos individuos, e não uma feição do paiz. + +Na Inglaterra pelo contrario o _sport_ está na mesma alma da nação, +completa o caracter do paiz. + +O principe de Galles readquiriu depois da sua ultima viagem a +popularidade que antes d'ella tendia a fugir-lhe. O simples facto de ter +penetrado na India e de ter caçado as feras a tiro com risco de vida é +um dos seus mais poderosos titulos á estima publica. O _sport_ é na +Inglaterra uma especie de religião. O inglez bem educado atravessa a +Africa por fanatismo. Simplesmente para a ter atravessado, e para ter a +gloria incomparavel de o poder referir ás sociedades sabias de +geographia, de zoologia, de botanica, de meteorologia, de anthropologia, +aos differentes clubs dos caminheiros da Inglaterra, da França e da +Suissa, deixando a enorme distancia atraz de si os seus compatriotas de +curto folego que apenas subiram ao Monte Branco ou percorreram a pé os +Pyreneus. + +Ora sem esse fanatismo e sem esse enorme ecco na opinião e na +popularidade não ha paiz que se possa medir com a empresa enorme de +explorar e de civilisar as regiões salvagens. São insufficientes para +esse fim todos os esforços do governo, das sociedades geographicas, das +academias e de todas as agregações artificiaes de alguns individuos; é +preciso que o grande impulso parta do genio collectivo do povo. + + * * * * * + +O povo pertuguez não está creado para esses movimentos energicos. Era +uma raça audaz, enthusiasta e forte. Preverteram-a com duzentos annos de +uma educação dogmatica e de uma disciplina fradesca. + +Estamos como o filho de um homem que herda um estaleiro em que o pae +fazia navios e em que elle para sustentar a fabrica tem de brandir um +machado e de talhar madeira durante dez horas por dia. Ora esse filho é +um anemico, que não pode com a sua _badine_. O que ha de fazer? +Restaurar a sua constituição ou vender o machado e ir tossir para o +Martinho. + + * * * * * + +Contra os agentes da dissolução em que cahimos uma ou duas vozes em todo +o paiz protestam--o que até o dia de hoje 15 de junho, ás 11 horas e +meia da noite, tem sido completamente inutil. Deitam-se abaixo +livrarias, enegrecem-se com prosa official resmas de papel da Abelheira, +abrem-se conferencias publicas, organisam-se expedições,--tudo para dar +a entender ao mundo que somos um povo forte. E no entanto o povo +continua nas condições de abatimento em que estava, as quaes não podem +tornal-o proprio para o dominio, mas sim para a servidão. + +Vimos já, ligeiramente esboçado, o quadro da educação inglesa. Vejamos o +espectaculo correspondente na nossa organisação social. + +Olhem ao domingo e á quinta feira para um dos nossos collegios de +educação em passeio na baixa. Uma fieira de pequenos macilentos e +enfesados, encarreirados a dois de fundo, vestidos de preto ou com +falsos uniformes de guarda-marinhas, vigiados por dois padres. Que +differença dos collegiaes inglezes, com os seus chapeus de palha, a +blusa de flanella, o calção curto, a meia de lã, correndo livremente nos +campos, com os grossos sapatos cheios de lama, em plena liberdade, +entregues a si mesmos, responsaveis pelos seus actos, conscientes do seu +direito e do seu dever como pequenos republicos! + +Em Portugal um cão fraldiqueiro pode andar sem perigo pelas ruas, +sabe-se governar, sabe-se dirigir, sabe morder, sabe voltar para casa; +um joven racional de dez ou doze annos, dos quaes cinco de escola sob a +pressão dos compendios do sr. João Felix, não aprendeu nada d'isso, e +precisa de um padre ou d'um aguadeiro que o leve pela mão para +atravessar a rua! + +Essa miseravel creatura tem uma mãe que o não deixa saltar para que não +quebre as pernas, que o não deixa trepar para que não quebre a cabeça, +que o não deixa metter-se na agua fria para que não se constipe. Era +melhor que elle tivesse quebrado uma perna uma vez, que tivesse rachado +a cabeça quatro, e que se tivesse constipado dezeseis, e houvesse +aprendido assim a ser um principio d'homem, do que não ter passado por +nenhum d'esses desares e ser unicamente um lamentavel boneco, medroso e +covarde, que um gaiato, creado na lama da rua e tendo metade da edade +que elle tem, pode impunemente encher de bofetadas nas duas faces e +estofar de ponta-pés em todo o resto do corpo, servindo-se para isso dos +membros que não quebrou, nem a trepar, nem a correr, nem a deitar-se de +mergulho ao ribeiro, apezar dos perigos previstos pela mãe do molestado. + +O primeiro acto da vida civil d'esse sujeitinho consiste em metter +empenhos para ser approvado em instrucção primaria. + +A primeira gloria da sua existencia consiste em se considerar tão +importante personagem que sahiu approvado com dez valores, apezar de ter +passado a metter os dedos pelo nariz e a explorar exclusivamente esse +orgão todo o tempo destinado a aprofundar concomitantemente as doutrinas +do sr. Felix. + +No anno seguinte começa a estudar as linguas e a fumar cigarros ás +escondidas. + +Penetra finalmente na rhetorica e na leitura dos romances, em que passam +visões de mulheres que o tornam cada vez mais amarelo. + +Chega da côr de uma cidra ao fim do curso dos lyceus, tendo, além de +todos os preparatorios, mau halito, as pernas cambadas, a espinha +torcida, algum tedio da vida e muita caspa. + +Matricula-se então na faculdade de direito na universidade de Coimbra e +o primeiro effeito dos estudos superiores sobre a sua cabeça é +augmentar-lhe a caspa. + +Depois a vida academica absorve-o e elle percorre toda a escala das +nobres loucuras de uma mocidade espirituosa e vivaz: empenha as piugas, +toca o fado, dá canelões nos caloiros, espanca os burguezes, faz algumas +canções «grivoises», entorna o môlho das ceias pelo peito da batina, e +regressa a Lisboa bacharel formado. + +Tem vinte annos e fez vinte exames. Para cada exame pediu protecção a +tres individuos;--pediu protecção e pediu feriados; pediu humildemente, +inclinado, arrastando a capa, retirando-se ás arrecúas como uma pêga +assustada, sorrindo com um agrado pusilanime:--Sr. doutor, imploro +submissamente a valiosa protecção de v. ex.ª!... Sr. doutor, criado de +v. ex.ª!... Criado de v. ex.ª! ex.'mo sr. doutor... + +O espinhaço do bacharel traz feita de Coimbra a curva servil do +pretendente do Terreiro do Paço. + +O que na universidade pedia, em Lisboa requer. É apenas a mudança de +nome: «--Sr. ministro, imploro submissamente a protecção de v. ex.ª... +Criado de v. ex.ª, sr. ministro... Ex.mo sr. ministro, humilde servo de +v. ex.ª...» E sae ás arrecúas dos gabinetes dos ministros como saía dos +gabinetes dos lentes, dando-se o ar lastimoso de um cão pelludo ao +emergir da agua, com o seu velho sorriso deploravel, anediando a copa do +chapéo com o canhão da sobrecasaca. + +Depois de ter cambado os tacões de cinco ou seis pares de botas nos +passeios por baixo da arcada das secretarias, o bacharel alcança o que +deseja. Um ministro despacha-o--para se ver livre d'elle. Consegue ser +empregado publico ou candidato governamental por um circulo do +continente ou do ultramar. + +Desde então as engrenagens do machinismo official apoderam-se d'elle +para nunca mais o largarem. É um escravo. Perdeu a personalidade. +Pertence á grande legião. Vae para onde ella for, diz o que ella disser, +pensa o que ella pensar, dentro de limites intransitaveis, na distancia +prefixa do cepo a que o amarraram. + +É assim que uma quantidade iunumeravel de individuos que formam a +classe dirigente vivem d'este cuidado unico: O cuidado de se não +comprometterem. Nunca mais dizem o que sentem. Nas suas idéas, nas suas +opiniões, na sua linguagem, tudo é riscado pela pauta official. Se +alguma vez do fundo do nojo que suscita esta dyspepsia moral lhes vem á +bocca uma verdade, engolem-a para baixo como o caroço de uma fruta +prohibida. + +Como pelo desdem do trabalho vivem n'uma estreiteza pecuniaria visinha +da miseria, muitos se lançam á caça do casamento rico, e, vexando-se de +ser tecelões ou ferreiros, não se vexam de casar por interesse, e +acceitam para toda a vida a intimidade indissoluvel de uma mulher feia, +estupida, malcreada, sem espirito de ordem, sem methodo, sem a dignidade +do conforto e do aceio domestico,--a viva negação de todas as condições +que tornam a casa feliz e a familia amavel. + +É d'esses consorcios sem idealidade e sem amor, contraidos fóra da mutua +dedicação que completa o homem pelo seu par e cria o verdadeiro +individuo social duplicadamente corajoso, digno e forte, que saem os +filhos dissolutos, os jovens cynicos, desdenhosos das affeições +honestas, hostis a todos os sentimentos de familia, cujos nobres +encantos nunca aprenderam a conhecer e a estimar. + +D'esses consorcios procedem tambem as meninas futeis e pretenciosas, +frageis entes inuteis, a que falta a condição essencial da nobreza e da +dignidade da mulher--a comprehensão do _ménage_, o culto do santuario +domestico. Ellas refugiam-se da convivencia antipathica da sua familia, +constituida sem bases organicas, na religião, ou, para que o digamos no +termo mais preciso, na _igrejice_, e na leitura dos romances +sentimentaes. A _igrejice_ e o romance são os dois pólos da sua vida +moral. + +Como qualquer d'essas meninas desconhece completamente a arte de +cultivar e desenvolver os seus encantos de espirito e de caracter, um +instincto de aperfeiçoamento, desencaminhado pela educação, leva-a ao +cultivo do trapo como um fim de superioridade, e arroja-a no lastimavel +fetichismo dissipador da moda. + +Ignora completamente todas as artes que constituem os elementos da +felicidade conjugal e que só por uma grande pratica e por uma longa +tradição se aprendem: a arte de se fazer bella pelo simples modo de atar +uma fita, de pôr em si uma flor, pela maneira de coser, de caminhar, de +se sentar n'um _fauteuil_, de pegar no talher, de estar á mesa; a arte +de dirigir a cozinha, de organisar a alimentação, de extrair da sua +chimica a alegria e a saude dos seus commensaes; a arte de arranjar a +casa, de lhe dar physionomia, de a obrigar a mostrar talento, a exprimir +idéas, a ter quasi conversação, fazendo respirar como coisas vivas nos +armarios as pilhas perfumadas da roupa branca, sorrir nas prateleiras da +casa de jantar o esmalte das loiças e o estanho reluzente das tampas das +canecas, estenderem-nos os braços as cadeiras do salão, e +solicitarem-nos a permanecer a côr dos cortinados, o tom dos estofos, o +assumpto dos quadros, a collocação dos moveis, a graduação da luz, a +frescura do ar, a nitidez geral do aceio e a sabia disposição dos livros +e dos jornaes sobre o panno da mesa. + +A menina em similhantes condições de inutilidade raramente se casa, ou +se desquita do marido se algum dia o vem a ter. As suas inclinações +romanescas e doentias chamam-a para beata. De resto é essa talvez a sua +melhor maneira de ter um fim, porque, emquanto a ser mãe, prohibe-lh'o +physica e moralmente a accumulada estreiteza do coração e dos ossos. + + +Taes são, no caracter dos individuos de um e outro sexo, os frutos da +educação portugueza na classe mais preponderante da sociedade, aquella +que fórma a opinião e determina as tendencias do espirito publico. Com +similhante estado é irreconciliavel o genio explorador, a tendencia para +as viagens entre póvos barbaros e finalmente o poder de dirigir e de +dominar. + + * * * * * + +Como colonisadores temos apenas uma vantagem sobre os outros póvos +europeus: a sobriedade, que permitte aos nossos operarios alimentarem-se +com a simplicidade d'esses chins cuja concorrencia, pelo simples facto +d'elles se satisfazerem não comendo senão arroz e não tendo outra +baixella senão dois paus, faz tremer todos os trabalhadores do mundo. + +Mas esta grande virtude de raças inferiores, caracteristica +principalmente dos nossos operarios do Minho e de Traz-os-Montes, é +insufficiente para nos conservar o dominio de extensos territorios, que +se não arroteiam para a civilisação senão pelo esforço combinado de +altas faculdades administrativas que não temos, de uma grande robustez +physica que tambem não temos, e de um enthusiasmo impulsivo e +desinteressado, tirado de uma grande corrente nacional das mesmas idéas +e das mesmas convicções, o qual egualmente nos falta. + + * * * * * + +Nenhum phenomeno mais expressivo da nossa anarchia administrativa e da +nossa abdicação governamental do que o estado da nossa marinha. + +Em todo o paiz colonial e maritimo a industria da pesca é a escola em +que se iniciam os marinheiros. A pesca é a infancia da marinha. A +Hollanda comprehendeu admiravelmente essa verdade, e a industria +piscatoria é desde muitos annos objecto dos cuidados e das attenções +mais desveladas por parte do governo hollandez, cuja marinha é hoje +florentissima. Essa marinha constituiu-a a Hollanda attraindo, com +grande augmento de salarios, os pescadores biscaynhos que iam á pesca da +baleia ao cabo de Finisterra. + +As pescarias no mar largo, como a da baleia e principalmente a do +bacalhau, são particularmente favorecidas por todas as nações maritimas +com grandes premios conferidos pelo estado. É na classe numerossima dos +tripulantes de milhares de navios empregados nas chamadas _grandes +pescas_ que se recrutam os marinheiros das armadas europêas. + +O governo francez protege, com grandes subsidios na armação dos navios e +com avultados premios sobre o pescado importado, as suas pescas do +bacalhau, cujo producto augmenta extraordinariamente os recursos +alimenticios do paiz, elevando-se o seu valor em dinheiro á somma de 17 +milhões por anno. A pesca do bacalhau emprega em França 400 navios e 12 +mil marinheiros. + +Um facto bem notavel e digno de ser ponderado pelos legisladores +portuguezes é que a prosperidade e o progresso da França teem sido +marcado, como a temperatura em um termometro, pelo desenvolvimento ou +pela estagnação das suas grandes pescas! No tempo da emancipação +communal a pesca do bacalhau desenvolve-se enormemente; cae com a +corrupção monarchica do regimen despotico; revive deante das medidas +legisladas pela Revolução. + +Talvez o governo ignore as condições em que actualmente se tributa o sal +que os pescadores francezes nos compram com destino ao seu bacalhau. Os +navios francezes que veem ao nosso porto fornecer-se d'esse genero fazem +fiscalisar o seu carregamento pelo respectivo consulado; o consul +francez remette ao seu governo a nota dos moios de sal carregados em +Lisboa e cujos direitos de importação em França são pagos no porto +d'onde o navio partiu pelo proprietario responsavel por este imposto. +D'este modo evita-se todo o contrabando na importação do sal: os +direitos estão pagos na razão de 50 centimos por cem kilogrammas. Quando +porém o navio que carregou em Lisboa volta a França com o sal empregado +nos bacalhaus que pescou, o governo restitue-lhe os direitos +anteriormente percebidos, não já na razão de 50 centimos por cada cem +kilogrammas de sal, mas sim na de 13 francos por cada cem kil. de +bacalhau. É assim que na questão de um simples imposto se revela o plano +de um paiz para o qual a administração tem um fim de progresso. + +Portugal possue no mar dos Açores, segundo a asseveração de varios +navegantes, um banco de bacalhau que muitos julgam superior ao da Terra +Nova, o qual se diz descoberto por um portuguez Gaspar Côrte Real. E +deixa morrer ao desamparo essa grande industria riquissima, a pesca de +um peixe precioso em que tudo se transforma em riqueza: as linguas +constituem um artigo especial presadissimo dos _gourmets_; dos +intestinos faz-se o melhor adubo da terra; do figado extrae-se o oleo +importantissimo para a industria e para a medicina; os ovos empregam-se +com grande vantagem na pesca da sardinha. + +Apezar de Portugal ser um paiz privilegiado para a pesca do bacalhau, +pelo valor e pela pericia dos seus pescadores, pela posse do melhor sal +que se conhece para salgar o peixe e do melhor sol que ha para o secar, +o nosso governo despresa este importantissimo ramo da actividade +commercial, perdendo por esse mesmo facto a melhor escola pratica dos +nossos marinheiros e dos nossos navegantes. A grande pesca tambem é para +nós um symptoma da vitalidade nacional. Quando eramos fortes mandavamos +cincoenta ou sessenta navios de pesca para a Terra Nova. Hoje pescamos +na costa o carapau para o gato, servindo-nos de redes que deveriam ser +prohibidas, despovoando as aguas de pequenos peixes insignificantes, que +pelo contrario pesariam dois kilos e seriam um importante artigo +alimenticio, se tivessemos estudado os nossos apparelhos de pesca e +soubessemos legislar sobre a dimensão permittida ás malhas das redes. O +governo portuguez nunca deu a este assumpto, base de toda a exploração +colonial, um só instante de attenção. + +O parlamento nomeia em cada anno uma commissão de pescas, que ainda não +serviu para mais nada se não para tributar o pescador. As especies de +peixes que frequentam as nossas costas estão por estudar. A piscicultura +não tem sido objecto de maiores disvellos que a ictyologia: nem uma só +medida tomada pelo Estado para repovoar as aguas das nossas costas e dos +nossos rios principaes; nenhum estudo feito sobre os botes e sobre os +apparelhos empregados na pesca. Assim o pescador considera o Estado, que +elle nunca viu representado senão pelo fisco, como um puro explorador. + +Na Povoa de Varzim ha um antigo quebra-mar destinado a formar um porto +de abrigo, que nunca se concluiu. Todas as reclamações, todas as +instancias feitas para este fim teem sido inuteis. + +Ha cerca de seis annos el-rei em pessoa visitou a Povoa acompanhado por +um dos seus ministros, o sr. Avelino, o qual em nome do soberano +prometteu aos pescadores que ia ser concluido o paredão. Até hoje ainda +se não accrescentou uma pedra áquelle monumento unico do desleixo +nacional! + +E todavia o espirito aventuroso dos nossos antigos navegantes, que o sr. +marquez de Sousa Holstein acaba de procurar resuscitar com a sua +eloquente e erudita conferencia ácerca da escola de Sagres, está ali +vivo ao pé d'esse paredão em ruinas. Ha ahi tres mil homens que em cada +dia jogam as suas vidas com a mesma coragem com que nós aqui em Lisboa +jogamos as cartas. Os poveiros são os homens mais alentados e mais +robustos que tem Portugal. É raro o que se enterra no cemiterio da +freguezia. Morrem no mar, sob um céo de chumbo, estrangulados pela +inclemencia das vagas, á vista da terra, ao alcance das vozes das suas +mulheres e dos seus filhos, por lhes faltar o abrigo a que se destina o +quebra-mar de conclusão em projecto! Não ha um que saiba ler. Habitam em +terra um bairro infecto e miseravel. Os cações escalados, destinados á +alimentação no inverno, secam pregados ás portas interiores das casas. +Cheios de _vermine_, homens, mulheres e creanças, dormem no mesmo +quarto, n'uma promiscuidade horrorosa. A terra da patria dá-lhes apenas +um farol, que elles illuminam á sua custa, e um barco de salva-vidas, +que elles mesmos tripulam. E é para isso que elles, desgraçados, quasi +mendigos, pedindo esmola em bandos durante o inverno, pagam um imposto +annual de cerca de seis contos de réis, integralmente devorados pelo +fisco. + +Imagine-se como elles lhe hão de querer e como a hão de amar, á querida +terra da patria! + +A unica vingança que esses generosos lobos do mar tiram do Estado, que +tão vilmente os explora e os rouba, consiste em não darem nem um só +homem para o recrutamento maritimo. Não ha meio algum de os obrigar a +fornecer um recruta á armada. Preferem morrer mil vezes a servir taes +amos. + +E eis ahi está o ultimo capitulo na provincia do Minho da historia, +feita pelo sr. marquez de Sousa, da escola dos navegadores portuguezes +fundada em Sagres pelo infante D. Henrique! + +Como a administração das nossas colonias depende directamente da +organisação da nossa marinha, como a importancia da nossa marinha +depende da organisação das nossas pescas, a Academia prestou á +civilisação da Africa um serviço verdadeiro, não organisando +conferencias, mas tomando uma deliberação mais obscura e todavia mil +vezes mais importante: a de nomear o sr. Brito Capello, naturalista +adjunto do museu zoologico, para ir estudar ao longo do nosso littoral a +industria da pesca e de expôr os meios de a reorganisar. + +Comtudo a opinião, que tem de julgar os factos, tão esclarecida é, que +applaudiu como um notavel beneficio patriotico a iniciativa das +conferencias--um espectaculo de erudição, e não teve uma palavra de +applauso para a missão do sr. Capello--o primeiro passo para atacar o +mal na sua verdadeira origem! + + * * * * * + +Do estado verdadeiramente deploravel em que se acha a nossa força +maritima póde-se ter uma idéa pela recente medida tomada pelo governo de +convidar a servir na armada, mediante uma gratificação apregoada na +folha official todas as praças de infanteria ou de caçadores que para +esse fim se apresentem! O governo tem de um marinheiro esta +comprehensão:--que elle se fabrica por meio do abono de quatrocentos +réis por dia dados a um soldado de caçadores! + +Mas, a não ser que o façam ao acaso ou que se determinem por uma +escolha baseada na côr dos olhos ou na fórma do nariz, que razões podiam +ter levado o governo a alistar na arma de caçadores um dos seus +recrutas? Suppomos que estas razões devem ser tiradas das condições em +que foi educado o recruta; que o fizeram caçador porque habitava as +montanhas, porque era um caminheiro, porque tinha a agilidade que dá a +luta com os terrenos escabrosos nas visinhanças das serras. Ora, sendo +assim, como querem sujeitar á vida sedentaria do mar e á familiaridade +das ondas esse montanhez, que nunca pegou n'um remo, que chegou das +Alturas de Barroso, do Marão ou da Serra da Estrella e que sente as +pernas enferrujadas e o pulmão opprimido desde que não anda mais de uma +legua por dia trepando saudosamente ás colinas que cercam o logar do seu +quartel? + +Outro facto não menos expressivo é o que ha pouco tempo se deu com +alguns guarda-marinhas do nosso conhecimento em estação em Loanda. + +Sabe-se que não ha plantas dos nossos portos da Africa, cuja navegação +se faz por meio de cartas inglezas. + +Os jovens marinheiros a que nos referimos, impellidos por esta vergonha +da nossa marinha, quizeram levantar a planta do porto de Loanda. +Empregaram todos os esforços para obter os necessarios instrumentos, não +puderam conseguir senão unicamente a offerta de um bote, unico elemento +de trabalho que o governador se achava habilitado a pôr á disposição +d'esses extravagantes. Elles comprehenderam então que não tinham senão +uma coisa que consagrar aos destinos da patria; não era o talento, não +era a dedicação, não era o trabalho; era unicamente a saude. E foram +immolar o figado á administração nacional para bordo do seu navio, como +patos de engorda pregados pelos pés á respectiva capoeira. + +Quando os nossos officiaes teem conseguido arruinar completamente as +suas visceras na inanição official das nossas estações de Africa, voltam +doentes á metropole e concluem a missão civilisadora que o paiz lhes +incumbiu tomando as aguas alcalinas de Vidago. + +As aguas de Vidago são o fim supremo do seu destino militar. + + * * * * * + +Emquanto estas coisas se passam os inglezes, com um poder creador que +faz muitas vezes o elogio das suas faculdades inventivas, acham em cada +dia pretextos novos para intervirem com o _seu protectorado +humanitario_ nos negocios do interior africano, e dilatam a pouco e +pouco a sua occupação e o seu dominio manso sobre o nosso territorio. + + * * * * * + +Um dos incidentes que acompanham a questão suscitada pela viagem do +capitão Cameron é a revelação feita por este viajante de que as +auctoridades portuguezas no interior da Africa não obstam ao trafico dos +escravos, que ainda ali vigora. + +Como é que nós respondemos á denuncia d'este facto? Respondemos negando +a asseveração do sr. Cameron e fazendo protestos. + +Para decidirmos se um tal modo de retorquir nos podia ser ou não +permittido, vejamos quem é o homem que nos acusa. + +Cameron é o segundo europeu depois de Levingstone que modernamente +atravessou a Africa desde a costa oriental até a costa occidental, +levado por um intuito exclusivamente scientifico. D'esta viagem, que +durou quatro annos, trouxe o sr. Cameron o projecto de ligar a costa do +oriente com a do occidente por meio da navegação fluvial, aproveitando +as relações hydrographicas do rio Congo e do Zambese, o primeiro dos +quaes desemboca de um lado no Zaire e o outro do lado opposto, ao sul de +Moçambique. + +Durante esses quatro annos passados entre selvagens, o capitão Cameron +parte de Bogamoyo em frente de Zanzibar, passa em Rehenneko, atravessa o +paiz de Ounyanyembe, o paiz de Ugara, o Ujiji, o lago Tanganyika, o +mercado de Nyaugwe, o estado de Urua, a Ponta do Lenho, desce as margens +do Congo, toca em Benguela, chega finalmente a Loanda. Os companheiros +de viagem que haviam saido de Inglaterra para o acompanharem--o doutor +Dillon, Moffat sobrinho de Levingstone, o artilheiro Murphy, não podem +seguil-o a mais do começo d'essa longa e perigosa expedição. Adoecem +successivamente todos. Moffat morre em Bogamoyo. Em Ounyanyembe +apparecem-lhe os homens de Levingstone trazendo o cadaver do explorador +que o precedera. Então Murphy e Dillon, ambos gravemente enfermos, +desistem de continuar essa immensa viagem e regressam com o corpo de +Levingstone para Zanzibar. Dillon morre no caminho. + +Cameron, só, sem nenhum outro companheiro europeu, armado de uma +clavina, seguido por uma escolta de negros, prosegue, caminhando +atravez de regiões inexploradas e desconhecidas, sob um clima mortifero, +deixando atraz de si, marcado com a morte dos seus camaradas e cada um +dos primeiros estadios da sua portentosa peregrinação. + +Não sabemos quem era Cameron ao partir. Admittimos que saisse da +Inglaterra com a educação commum de um simples tenente da armada +britanica. Mas dizemos que uma viagem como a que elle fez, e nas +condições em que a fez, basta para retemperar uma alma e para formar um +caracter. Um tal homem não mente. N'elle a mentira seria a refutação de +todos os principios do nosso aperfeiçoamento, seria a violação de todas +as leis da natureza humana. + +Nada mais lastimosamente ridiculo do que a indignação patriotica de +qualquer dos nossos politicos, chupando auctoritariamente um cigarro no +Gremio ou á porta da Casa Havaneza, bombardeando a atmosphera com balas +de fumo, e desmentindo o homem mais competente que hoje existe no mundo +para nos informar do que se passa em Africa! + +O que Cameron disse ácerca da escravatura africana na conferencia feita +em Londres foi o seguinte: + +«Cerca da linha de separação das bacias do Zambese e do Congo fomos +retardados no primeiro acampamento por causa da caça aos escravos +fugidos. Quando pela manhã me preparava para partir, chega um mensageiro +dizendo-nos: _Não partaes; Kouaroumba vae chegar com os seus escravos_. +Depois do meio dia chegou effectivamente Kouaroumba com uma fila de +cincoenta ou sessenta infelizes mulheres, carregadas com a presa, +trazendo algumas os seus filhos nos braços. Estas mulheres representavam +pelo menos a ruina e a destruição de quarenta ou cincoenta aldeias e a +matança d'aquelles dos seus habitantes masculinos que não conseguiram +refugiar-se nos juncaes para ali viverem como podessem ou morrerem de +fome. É para mim fóra de duvida que estas cincoenta ou sessenta escravas +representam mais de 500 individuos mortos na defeza do seu lar ou +acabando mais tarde de inanição. As mulheres a que me refiro vinham +presas umas ás outras pela cinta por meio de cordas cuidadosamente +atadas. Quando ellas affrouxavam na marcha, batiam-lhes +desapiedadamente. Os traficantes portuguezes, negros ou mestiços são +muito brutaes; os arabes pelo contrario tratam geralmente bem os +escravos. Os negros caçados como estas mulheres no interior da Africa +não são em geral levados para a costa. Vão para Sakaleton, onde por +varios motivos a população é rara e são mui procurados os escravos. São +vendidos por marfim, que os traficantes trazem para a costa.» + +Estas palavras são perfeitamente explicitas e terminantes. + +Persiste com todos os seus horrores no interior das nossas possessões da +Africa o trafico dos escravos. Emquanto se não provar manifestamente o +contrario esta é que é a verdade, verdade referida pelo sr. Cameron, já +anteriormente ennunciada pelo viajante francez o sr. Jocolliot, +confirmada pelo sr. Young, explorador inglez, e ultimamente, mesmo em +Lisboa em uma carta publicada no _Progresso_ pelo sr. Pinheiro Bayão, +que esteve por algum tempo em Africa empregado do Estado. + +Para factos d'esta ordem os protestos de toda a imprensa[1] e de todo o +parlamento, por mais unanimes que elles sejam, não teem a natureza de +uma refutação nem o caracter de uma resposta, são uma pura evasiva +compacta. + +[Nota 1: Um unico periodico, de que tenhamos noticia, o _Seculo_, de +Coimbra, tomou a defeza do capitão Cameron em um artigo poderosamente +escripto pelo sr. Correia Barata.] + +A primeira noticia dada em Portugal da viagem de Cameron foi objecto de +uma sabia exposição feita á primeira classe da Academia das Sciencias +pelo fallecido naturalista o dr. Bernardino Antonio Gomes. O resultado +d'essa exposição dos serviços prestados pelo viajante inglez á +civilisação universal foi dirigir-se a Academia ao ainda então tenente +Cameron, agradecendo-lhe em nome da sciencia e em nome de Portugal a +contribuição valiosissima com que elle tinha cooperado para o progresso +da sociedade humana. + +O governo, deliberando tomar officialmente conhecimento dos factos +referidos pelo capitão Cameron, não tinha senão uma resposta que +dar-lhe:--nomear uma commissão de inquerito que syndicasse +rigorosamente da cumplicidade dos funccionarios portuguezes no +menosprezo ou na contravenção das leis que aboliram a servidão. + +Em quanto á camara dos srs. deputados, parece-nos que ella teria +procedido, pelo lado scientifico com mais logica, e pelo lado patriotico +com mais tacto, se em vez das protestações que iniciou houvesse seguido +o exemplo que lhe fôra dado pela Academia e agradecesse simplesmente ao +sr. Cameron as informações que este lhe prestára. + +D'esse modo teria a camara dos sr. deputados evitado receber do _Times_ +a mais dura e humilhante lição que por via da penna de um jornalista se +pode inflingir a uma sociedade. + +O preconceito do patriotismo é o mais funesto de todos os preconceitos +sociaes sempre que elle nos leva a trahir a verdade. Manter na opinião +publica a mentira é violar o progresso da humanidade pelo modo mais +sacrilego e mais nefando. A decomposição em que se acha a governação e a +politica em Portugal deve-se principalmente á fraqueza dissolvente dos +caracteres publicos em testemunhar a verdade. Todo aquelle que por meio +da sua palavra ou por meio da sua penna não tem o preciso valor para +ennunciar a sua inteira opinião é um traidor da civilisação e um +perigoso inimigo do genero humano. Não queremos para a nossa +consciencia de escriptor o remorso d'essa voluntaria culpa, e é por isso +que dizemos aos srs. deputados: + +A verdade, meus senhores, é o que vos disse o _Times_. «A questão, como +diz o referido periodico, não é se Portugal prestou serviços á causa do +progresso africano, nem se os estadistas foram estudiosamente polidos na +sua linguagem tratando com uma nação alliada e amiga; a questão é se os +factos são ou não são como recentes viajantes affirmaram que eram. Que o +commercio da escravatura na Africa central seja feito mui largamente por +negociantes portuguezes e sob a protecção da bandeira portugueza é +accusação que pode ser refutada, não pela linguagem de uma indignação +ficticia ou real, não por patrioticas reminiscencias, nem por uma +referencia a cumprimentos diplomaticos, mas sim deixando-se de permittir +que haja materia para que a accusação continue. Sabemos quanto Portugal +tem feito no papel para acabar a escravatura, e conhecemos tambem o +pouco effeito que as suas energicas declarações produziram.» + +Os quatro milhões de vozes de que o paiz inteiro pode dispor, a +protestarem todas perante o universo, não poderão convencer um só homem +de que a verdade seja differente do que é. A declamação n'este ponto é +completamente inutil com outro qualquer fim que não seja um puro +exercicio de eloquencia nacional. + +Por tal modo, meus senhores, não julgueis contribuir para a civilisação. +Vós contribuis apenas para o _Peculio de Oradores_, do sr. João Felix. + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da +Politica, das Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL *** + +***** This file should be named 16219-8.txt or 16219-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/1/6/2/1/16219/ + +Produced by Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal, Cláudia +Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed +Proofreading Team. + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you +do not charge anything for copies of this eBook, complying with the +rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose +such as creation of derivative works, reports, performances and +research. They may be modified and printed and given away--you may do +practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project +Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement +and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic +works. See paragraph 1.E below. + +1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" +or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project +Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the +collection are in the public domain in the United States. If an +individual work is in the public domain in the United States and you are +located in the United States, we do not claim a right to prevent you from +copying, distributing, performing, displaying or creating derivative +works based on the work as long as all references to Project Gutenberg +are removed. Of course, we hope that you will support the Project +Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by +freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of +this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with +the work. You can easily comply with the terms of this agreement by +keeping this work in the same format with its attached full Project +Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. + +1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern +what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in +a constant state of change. If you are outside the United States, check +the laws of your country in addition to the terms of this agreement +before downloading, copying, displaying, performing, distributing or +creating derivative works based on this work or any other Project +Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning +the copyright status of any work in any country outside the United +States. + +1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: + +1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate +access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently +whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the +phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project +Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, +copied or distributed: + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + +1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived +from the public domain (does not contain a notice indicating that it is +posted with permission of the copyright holder), the work can be copied +and distributed to anyone in the United States without paying any fees +or charges. If you are redistributing or providing access to a work +with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the +work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 +through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the +Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or +1.E.9. + +1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted +with the permission of the copyright holder, your use and distribution +must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional +terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked +to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the +permission of the copyright holder found at the beginning of this work. + +1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm +License terms from this work, or any files containing a part of this +work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. + +1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this +electronic work, or any part of this electronic work, without +prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with +active links or immediate access to the full terms of the Project +Gutenberg-tm License. + +1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, +compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any +word processing or hypertext form. However, if you provide access to or +distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than +"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version +posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), +you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a +copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon +request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other +form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm +License as specified in paragraph 1.E.1. + +1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, +performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works +unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. + +1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing +access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided +that + +- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from + the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method + you already use to calculate your applicable taxes. The fee is + owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he + has agreed to donate royalties under this paragraph to the + Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments + must be paid within 60 days following each date on which you + prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax + returns. Royalty payments should be clearly marked as such and + sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the + address specified in Section 4, "Information about donations to + the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." + +- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies + you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he + does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm + License. You must require such a user to return or + destroy all copies of the works possessed in a physical medium + and discontinue all use of and all access to other copies of + Project Gutenberg-tm works. + +- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any + money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the + electronic work is discovered and reported to you within 90 days + of receipt of the work. + +- You comply with all other terms of this agreement for free + distribution of Project Gutenberg-tm works. + +1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm +electronic work or group of works on different terms than are set +forth in this agreement, you must obtain permission in writing from +both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael +Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the +Foundation as set forth in Section 3 below. + +1.F. + +1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable +effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread +public domain works in creating the Project Gutenberg-tm +collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic +works, and the medium on which they may be stored, may contain +"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or +corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual +property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a +computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by +your equipment. + +1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right +of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project +Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project +Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all +liability to you for damages, costs and expenses, including legal +fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT +LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE +PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE +TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE +LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR +INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH +DAMAGE. + +1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a +defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can +receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a +written explanation to the person you received the work from. If you +received the work on a physical medium, you must return the medium with +your written explanation. The person or entity that provided you with +the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a +refund. If you received the work electronically, the person or entity +providing it to you may choose to give you a second opportunity to +receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy +is also defective, you may demand a refund in writing without further +opportunities to fix the problem. + +1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth +in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO OTHER +WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO +WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. + +1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied +warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. +If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the +law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be +interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by +the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any +provision of this agreement shall not void the remaining provisions. + +1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. To +SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any +particular state visit https://pglaf.org + +While we cannot and do not solicit contributions from states where we +have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition +against accepting unsolicited donations from donors in such states who +approach us with offers to donate. + +International donations are gratefully accepted, but we cannot make +any statements concerning tax treatment of donations received from +outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. + +Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation +methods and addresses. Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + +*** END: FULL LICENSE *** + diff --git a/16219-8.zip b/16219-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..b3202a9 --- /dev/null +++ b/16219-8.zip diff --git a/16219-h.zip b/16219-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..aed1cdd --- /dev/null +++ b/16219-h.zip diff --git a/16219-h/16219-h.htm b/16219-h/16219-h.htm new file mode 100644 index 0000000..1cd8492 --- /dev/null +++ b/16219-h/16219-h.htm @@ -0,0 +1,3029 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" + "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> +<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"> +<head> + <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=ISO-8859-1" /> + <meta content="pg2html (binary v0.16)" name="generator" /> + <meta name="author" content="Ramalho Ortigão and José Maria Eça de Queiroz" /> + <title>The Project Gutenberg eBook of As Farpas, Maio a Junho 1877 +by Ramalho Ortigão and Eça De Queiroz.</title> + <style type="text/css"> + /*<![CDATA[*/ + <!-- + body { margin-left: 10%; margin-right: 10%; } + h1,h2,h3,h4,h5,h6 { text-align: center; } + hr.major { width: 30%;} + hr.minor { width: 10%;} + sup.small {font-size: 75%} + .centered {text-align: center} + .foot { margin-left: 10%; margin-right: 10%; text-align: justify; text-indent: -3em; font-size: 85%; } + .poem { margin-left: 10%; margin-right: 10%; margin-bottom: 1em; text-align: left; } + .poem .stanza { margin: 1em 0em 1em 0em; } + .poem p { margin: 0; padding-left: 3em; text-indent: -3em; } + .poem p.i2 { margin-left: 1em; } + .poem p.i4 { margin-left: 2em; } + .poem p.i6 { margin-left: 3em; } + .poem p.i8 { margin-left: 4em; } + .poem p.i10 { margin-left: 5em; } + /*]]>*/ + // --> + </style> +</head> +<!--====================================================--> +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das +Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes + Maio a Junho de 1877 + +Author: Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +Release Date: July 6, 2005 [EBook #16219] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL *** + + + + +Produced by Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal, Cláudia +Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed +Proofreading Team. + + + + + + +</pre> + +<div class="centered"> + <img src="images/devil.png" width="570" height="755" + alt="Eça de Queiroz—Ramalho Ortigão—As Farpas" /> + <!--IMAGE END--> +</div> +<hr class="major" /> +<h1> + AS FARPAS +</h1> +<div class="centered"> + <p>RAMALHO ORTIGÃO—EÇA DE QUEIROZ</p> + <p>CRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES</p> + <p>NOVA SERIE TOMO IX</p> + <p>Maio a Junho 1877</p> +</div> +<hr class="major" /><!--===================--> +<blockquote> +<p> +Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, +da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das +sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da +politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande +universo, e da adoração de mim mesmo. +</p> +</blockquote> +<p class="centered"> + P.J. PROUDHON +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> + +<p class="centered"> + <b>SUMMARIO</b> +</p> +<p> + A burra do Estado. Porque motivo o ministerio Fontes se deitou abaixo + d'essa burra, e do mais que então passou. A queda do dente. Elogio do + dente pelo <a href="#Assumpcao">sr. Assumpção</a>. + O dente embrulhado n'um papel. O dente aos pés + do throno. O dente demittido. Pede-se um dente novo.—O + drama <a href="#Braganca"><i>Leonor de Bragança</i></a> + e a caixa do Poder Moderador. Parallelo da peça do sr. Luiz de + Campos e da do sr. Alfredo Ansúr. Os caracteres em cada uma das duas + peças, a lingoagem, o stylo, a cortezania, a intenção moral. Conclusões + do referido estudo: requisita-se para o sr. Ansúr a commenda do lagarto + ou metade da caixa conferida pelo Poder ao sr. Campos.—As corridas de + cavallos—O premio do + <a href="#Jockey">Jockey-Club</a> e o premio da Academia—O progresso em + Lisboa durante o ultimo semestre. A sociedade affirma o seu movimento + ascendente na civilisação por meio de dois novos estancos e de uma + ourivesaria. Philosophia de uma vitrine de joias—A + <a href="#peregrinacao">peregrinação a Roma</a>. + Os preparativos. A partida. A prescripção da <i>toilette</i>. A chegada a + Lourdes. Aspecto pittoresco e elegante do milagre: o <i>restaurant</i>, o + trem de Paris, as <i>parties fines</i> sobre a relva, o Champagne e as + bilhinhas da agoa. Em Roma. As offerendas. O dinheiro de S. Pedro. A + applicação d'esta receita. O album dos peregrinos e o que n'elle se + contém. A nossa allocução. O primeiro e o ultimo jubileu. Pio IX e + Bonifacio VIII. A antiga fé. Os peregrinos em 1300. A fé actual e os + peregrinos d'hoje. O conflicto da sciencia e da fé. O Deus de + <a href="#Darwin">Darwin</a>. Os + novos poderes espirituaes. De como ninguem quer o ceu do + <a href="#Marnoco">Padre Marnoco</a>—A + primeira communhão de sua alteza o principe—A + <a href="#africana">civilisação africana</a> + e as conferencias academicas. Uma conferencia que se não faz: + <i>Da influencia do «sport» no caracter dos povos exploradores</i>. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Era em uma bella manhã do mez de março. A primavera, essa filha do amor + e da brisa—como diria o sr. Antonio de Serpa se as conveniencias + partidarias lhe permittissem ainda dedilhar a theorba sob o lyrico + balcão de D. Mafalda—tinha estendido sobre as campinas o seu manto de + esmeraldas. Nas estradas que convergem a Lisboa um alegre raio de luz + animava a circulação da vida suburbana. Havia um novo tom festivo no + chocalhar das recuas dos almocreves, no rodar das pesadas carroças da + hortaliça de que se exhalam emanações appetitosas de cuentro e de + pimpinella, no tic-tic do passo miudo e zeloso dos jumentos saloios + ajoujados de bilhas de leite e de seirões de roupa lavada. A agua das + regas rumorejava suavemente por baixo da macia verdura aveludada dos + favaes. As cotovias cantavam na espessura das hortas. Pelos portões das + quintas, de pateo ajardinado, sahia em calidas baforadas o perfume dos + limoeiros. Por cima dos muros pintados de amarelo bracejavam sobre os + caminhos as hastes dos pecegueiros em flôr. Uma aragem tepida e + balsamica cahia do ceu azul e envolvia n'um doce torpor voluptuoso e + suave os nervos dos lisboetas que madrugavam voltando de Cintra ou + desembarcando na gare de Santa Apolonia. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Foi dominado por essas influencias do clima, da paizagem, dos aspectos da + natureza, que o sr. Fontes Pereira de Mello deliberou deitar-se abaixo + do governo, retirando-se ao diletantismo particular e abandonando aos + que iam pela via a burrinha pacata e fiel do poder, que elle cavalgara + em cinco annos de choito glorioso atravez das <i>diversas provincias da + publica administração</i>. +</p> +<p> + Somos informados de que s. ex.ª, reunindo os seus collegas do ministerio + e os seus mais intimos amigos politicos, lhes fallara d'esta arte: +</p> +<p> + Senhores! Achando-me esta manhã á janella do meu quarto, fazendo algumas + considerações philosophicas e a barba, deliberei apear-me por algum + tempo da azemola do poder. +</p> +<p> + <i>Vozes de amigos intimos desapontados</i>.—Oh! oh! Não o cremos!... Não o + podemos crer!... É um gracejo, um puro gracejo de s. ex.ª! Que a burra + do poder venha á presença de s. ex.ª para que s. ex.ª a cavalgue! S. + ex.ª não pode assim descer da burra! Seria altamente impolitico + deixar-nos n'este momento com a burra devoluta nos braços! deixar-nos, + para assim dizer, com a burra atravessada na garganta! Haja ao menos um + pretexto, haja uma razão! +</p> +<p> + <i>O sr. presidente proseguindo</i>: Quereis uma razão? Eu vol-a dou. Acho-me + impossibilitado de proseguir provincias da publica administração além. Á + força de meditar nos altos negocios do estado acaba de me cahir um + dente ... +</p> +<p> + <i>Vozes</i>—Dê o dente para ordem do dia! +</p> +<p> + <i>O sr. presidente (tirando o dente da algibeira e collocando-o na + discussão)</i>—Ahi tendes o dente. Abri sobre elle os mais largos e + rasgados debates, e julgae-o como vos approuver. É um queixal. Nada mais + acrescento. Sobre este ponto considerações de melindre pessoal me + inhibem de continuar. Farei apenas sentir aos meus amigos politicos e + aos meus collegas do gabinete que nem a camara nem o paiz nem a corôa + poderão, segundo penso, exigir da minha fidelidade partidaria que eu + sacrifique á investigação dos negocios os dentes que o meu ardente + patriotismo me impõe a obrigação de reservar para os inimigos da patria. + Tenho dito. +</p> +<p> + (<i>Vozes:</i>—Muito bem! Muito bem!) +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + O <a id="Assumpcao" name="Assumpcao" >sr. Manuel da Assumpção</a>, + havida então venia para fallar, consta que + estendera a dextra sobre o dente, e proferira com ardor e enthusiasmo as + seguintes palavras: +</p> +<p> + «Meus senhores! Este dente é a pagina mais gloriosa da nossa historia. É + effectivamente um queixal, como s. ex.ª muito bem disse na sua phrase + tersa, de uma energia e de uma concisão dignas de Tacito. Ha oito dias + que os jornaes que nos guerreiam lançaram este dente na tela da + discussão, procurando fazer acreditar ao paiz e ás nações extrangeiras, + por meio de insinuações malevolas, que elle é canino. Mandando o dente + para a meza o sr. presidente acaba de confundir de uma vez para sempre + os seus adversarios. Queixal! Longa foi a tua carreira gloriosa. + Enraizado no queixo de s. ex.ª atravessaste com elle as mais duras + provações de uma carreira brilhante. Roeste o pão negro do ostrocismo. + Atolaste-te na lampreia d'ovos das doces illusões. Mascaste a cabedella + dos terriveis desenganos. Depois de cada um d'esses estadios na senda + dos progressos materiaes e moraes, s. ex.ª, com mão decisiva, + palitava-te. Um dia porém, á meza do orçamento, no grande banquete da + civilisação, n'esse campo de batalha onde se travam os combates + incruentes do progresso e onde o talher de s. ex.ª por muitas vezes + fulgurou desembainhado ao sol das victorias, tu, depois de uma violenta + refrega, com umas amendoas torradas de exercicios lindos, com uns + biscoutos de gerencias anteriores, e com algumas outras verdades duras + de tragar, appareceste furado. No dia seguinte s. ex.ª chamava ás armas + a reserva e um dentista, e tu, ó dente, recebias como os bravos o + baptismo do chumbo. A bala inimiga.... +</p> +<p> + <i>O sr. Presidente</i>—Tomo a liberdade de interromper o illustre deputado + e meu nobre amigo para lhe fazer notar que o dente não recebeu o + baptismo do chumbo sob a forma de bala, mas simplesmente sob a forma de + pingo. +</p> +<p> + <i>O orador</i>—Do mesmo modo então que um fundo de chaleira? +</p> +<p> + <i>O sr. Presidente</i>—Precisamente do mesmo modo. +</p> +<p> + <i>O orador</i>—Agradeço infinitamente a s. ex.ª a informação que acaba da + prestar-me, e, se s. ex.ª m'o permitte prosigo, pondo de pane a piada + relativa á bala do inimigo ... +</p> +<p> + Dente! cahiste alfim. A tua queda tem o caracter de um triumpho, pois + não cahiste arrancado por uma opposição accintosa e malevola; cahiste + porque tinhas os teus dias cheios e um pouco tambem porque estavas + podre. +</p> +<p> + Que mais queres, ó dente? que mais desejas? que mais ambicionas?... +</p> +<p> + <i>O sr. Presidente</i>—Peço perdão para ainda uma vez interromper o + illustre deputado, rogando-lhe que não tome por incivil o silencio do + dente ás suas interrogações. O dente é hoje a primeira vez que apparece + em publico separado dos seus companheiros, e deve-se ter em conta o + justo acanhamento que a sua nova situação lhe infunde. Eu acho-me porém + habilitado para satisfazer a curiosidade do illustre deputado em quanto + ás ambições do dente logo que s. ex.ª o exija. +</p> +<p> + <i>O orador</i>—Como deputado da maioria tenho a declarar ao sr. presidente + que nunca dirijo ao governo, nem no seu conjuncto nem separadamente a + nenhum dos seus queixaes pergunta alguma para que deseje resposta. As + minhas interrogações são puramente rhetoricas. O silencio com que fui + escutado pelo dente não sómente me não escandalisa mas antes pelo + contrario me penhora como um testemunho de benevolencia a que não + ousava aspirar. +</p> +<p> + Concluindo, tenho a honra de propor que, depois de embrulhado + respeitosamente em um papel, o dente seja levado ás plantas do poder + moderador, para que sua magestade haja por bem resolver como lhe + approuver esta passageira crise. Faço votos por que o sr. Presidente do + conselho se apresse em pôr ao serviço da nação um novo dente.» +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Approvada unanimemente a eloquente proposta do sr. Assumpção, o sr. + Presidente do conselho recolheu-se a sua casa a tomar bochechos + emolientes emquanto o resto do ministerio partia para o Paço a levar ao + soberano o dente resignatario. +</p> +<p> + Constou pelos jornaes quo apenas recebera o dente sua magestade se + dirigira a casa do sr. presidente do conselho, com o qual teve uma + entrevista de duas horas. Estas duas horas foram empregadas pela corôa + em procurar reintegrar, pelas suas proprias mãos, o dente caído na + maxilla do illustre estadista. +</p> +<p> + Diz-se que a corôa, suando em bica, esgotára, para consolidar o dente + caído no seu logar primitivo, todos os meios compativeis com as + disposições do codigo fundamental da monarchia. Sua magestade tentára + fixar o dente ao chefe do gabinete com obreias, com adhesivo, com lacre, + com pez, com gomma arabica, com barbante, com alfinetes e com pregos. +</p> +<p> + O dente reagiu a todas as reaes instancias: o excelso politico, em cujo + queixo inferior elle se firmára durante cinco annos de gerencia + governativa não queria mais a confiança da corôa, queria unicamente + cosimento de malvas. +</p> +<p> + O monarcha lavrou então o decreto mandando o seu antigo ministerio + bochechar, e encarregou o sr. marquez de Avila e Bolama de reunir com os + seus amigos o numero de dentes necessarios para formar uma gerencia + duradoura e firme. +</p> +<p> + D'este encargo se desempenhou o sr. marquez com o zelo que o + caracterisa, e o actual ministerio nasceu. +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + Um dos nossos mais distinctos amadores, o sr. Luiz de Campos, acaba de + dotar o theatro de D. Maria com um drama, cujo exito constitue o maior + triumpho modernamente alcançado pelas letras portuguezas. +</p> +<p> + Não só os jornaes todos consagraram a esta obra louvores emittidos com + uma energia desusada, mas até a alta sociedade, de ordinario tão + parcimoniosa de curiosidade dispendida com a arte, patrocinou com + especial favor esta peça. O auctor teve a gloria de ver os seus finaes + d'acto applaudidos do fundo dos primeiros camarotes pelas mãos mais + aristocraticas. Nas situações patheticas do seu assumpto lagrimas + illustres sulcaram o pó d'arroz com que se perfumam os brazões das mais + nobres e distinctas familias. Finalmente no fim do espectaculo o Poder + Moderador, que assistira á representação em companhia da sua familia, + expediu um dos seus camareiros, o qual foi ao palco cumprimentar o + laureado dramaturgo, pedir-lhe desculpa de lhe não pingar do alto do + throno sobre o peito da casaca a commenda de S. Thiago, e entregar-lhe + em vez das insignias d'essa ordem excelsa e em nome do referido Poder um + cofre com uma pedra preciosa, que os jornaes do outro dia pela manhã + almotaçaram em 1:500$000 réis. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + O drama do sr. Luiz de Campos intitula-se <i>Leonar de Bragança</i> e encerra + a historia d'aquella desditosa, cuja mocidade e belleza feneceram de + subito, surprehendidas no ventre por trez facadas com que a brindou seu + esposo, o mui nobre e poderoso duque de Bragança, um dos antepassados do + Poder que hoje nos rege, e ao qual, bem como á sua familia, acima + tivemos a honra de reportar-nos submissa e respeitosamente. +</p> +<p> + O pretexto sob o qual D. Jayme damnificou com instrumento perfurante o + abdomen de sua mulher foram os amores d'esta com o pagem Antonio + Alcoforado. +</p> +<p> + Existiram effectivamente esses amores? Era a duqueza realmente culpada + de uma fraqueza anormal pelos pagens? Era Alcoforado um honesto e leal + servidor do principe D. Theodosio, ou era uma ratoeira vil de duquezas + incautas? +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Ha duas opiniões ácerca do modo de considerar no theatro a natureza + d'este facto. +</p> +<p> + Na sua <a id="Braganca" name="Braganca" ><i>Leonor de Bragança</i></a>, + escripta em prosa, o sr. Luiz de Campos + entende que a duqueza é innocente. Na sua <i>Leonor de Bragança</i>, escripta + em verso, o sr. Alfredo Ansúr julga a duqueza culpada. +</p> +<p> + Os fados, que tão propicios foram á obra do festejado sr. Campos, + trataram adversamente a obra não menos estimavel do malogrado sr. Ansúr. + Julgamos do nosso dever protestar contra esta dura injustiça pondo em + cotejo as duas composições a que deu origem a tragica aventura de + Leonor. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + No drama do sr. Luiz de Campos a culpa toda do nojoso sarrabulho + perpetrado por D. Jayme está unicamente, segundo diz o sr. Campos, em + <i>haver o pagem um coração</i>. O sr. Luiz de Campos emprega constantemente + <i>haver</i> em logar de <i>ter</i>, não só nos casos em que esse verbo é usado + como auxiliar mas ainda quando se toma na accepção de possuir. Acatamos + discretamente as rasões de pundonor e de dignidade que possam ter levado + este cavalheiro a cortar as suas relações pessoaes com o verbo <i>ter</i>. O + simples depoimento do verbo <i>haver</i>, conjugado com tanta lealdade, + cravado no discurso com tanta firmeza como aquella que se admira em + todas as locubrações litterarias d'este auctor, basta para nos convencer + da innocencia de Leonor. +</p> +<p> + Todos os encontros da duqueza com o pagem no decurso d'esta peça são de + um caracter fortuito absolutamente illibado. +</p> +<p> + A scena está vasia. Leonor tem por acaso de atravessar do segundo + bastidor á esquerda para o segundo bastidor á direita exactamente no + momento em que Alcoforado por egual acaso atravessa do segundo bastidor + á direita para o segundo bastidor á esquerda. Elles veem ambos meditando + no verbo <i>haver</i>, e descarregam um sobre o outro o objecto das suas + cogitações pouco mais ou menos nos seguintes termos: +</p> +<p> + <i>Duqueza</i>—Houveste alfim volvido? +</p> +<p> + <i>Pagem</i>—Houve; e vós, senhora, que heis de determinar-me? +</p> +<p> + <i>Duqueza</i>—Nada hei. +</p> +<p> + <i>Pagem</i>—Hão, quiçá, offendido-vos outra vez? +</p> +<p> + <i>Duqueza</i>—Não hão. Pagem, havereis de volver a casa do sr. D. + Theodosio. +</p> +<p> + <i>Pagem</i>—Visto que não heis de mim de, senhora minha, haja de se cumprir + vossa vontade! Haverei força, haverei de havel-a ... Manhã, ao toque de + prima, serei partido. De nada mais heis mister? +</p> +<p> + <i>Duqueza</i>—De nada mais hei, pagem; e a Deus prasa que jámais haja de + haver! Idevos presto a D. Theodosio, consoante-vos hei di-lo pouco ha. +</p> +<p> + <i>Pagem</i>—Em mim havei fé, minha senhora ama: eu me vou. +</p> +<p> + <i>(Saem ambos, cada um por seu lado, meditabundos.)</i> +</p> +<p> + A entrevista que dá causa á vingança do duque não a tem Alcoforado com a + duqueza mas sim com uma das suas damas. Em toda a peça, finalmente, a + duqueza, nem por carta, nem de viva voz, nem de simples ôlho, tem para + Antonio uma palavra, um aceno, um gesto, em que se presinta de leve que + seja a exhalação da perfidia. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + O sr. Ansúr é menos complacente com os seus personagens, como vamos ver. +</p> +<p class="centered"> + BEATRIZ ANNES +</p> +<p> + <i>Grande mal, grande mal, senhor Fernão!</i> +</p> +<p class="centered"> + FERNÃO RODRIGUES +</p> +<p> + <i>Que mal?</i> +</p> +<p class="centered"> + BEATRIZ ANNES +</p> +<p> + <i>Homem em casa.</i> +</p> +<p class="centered"> + FERNÃO RODRIGUES +</p> +<p> + <i>Com a aia?</i> +</p> +<p class="centered"> + BEATRIZ ANNES +</p> +<p> + <i>Não.</i> +</p> +<p class="centered"> + FERNÃO RODRIGUES +</p> +<p> + <i>Com quem pois?</i> +</p> +<p class="centered"> + BEATRIZ ANNES +</p> +<p> + <i>Com nossa ama.</i> +</p> +<p> + O fogoso e pittoresco sr. Ansúr vae mais longe ainda: colloca o pagem + aos pés da duqueza e põe na bocca de um e outro estas palavras: +</p> +<p class="centered"> + PAGEM +</p> +<pre> + <i>Que enthusiasmo sinto! Arfa-me o seio + Em vertigem de amor! Sinto a poesia + Na mente distillar grata ambrosia. + Ó senhora duqueza! Minha vida! + Como vos amo!</i> +</pre> +<p class="centered"> + LEONOR +</p> +<pre> + <i>Antonio! alma querida...</i> +</pre> +<p class="centered"> + PAGEM +</p> +<pre> + <i>Longe de vós a vida é-me desterro... + Perdoar-me-heis do coração este erro?</i> +</pre> +<p class="centered"> + LEONOR +</p> +<pre> + <i>Sim.</i> +</pre> +<p class="centered"> + PAGEM +</p> +<pre> + <i>Sem vos escutar e sem vos ver + Não podia, senhora, mais viver! + Meu peito abrasa.</i> +</pre> +<p class="centered"> + LEONOR +</p> +<pre> + <i>Doce pensamento, + Longe de ti é egual o meu tormento.</i> +</pre> +<p> + E a duqueza prosegue exaltando-se n'uma gradação rhetorica perfeitamente + calculada pelo sr. Ansúr até o ponto de lhe dizer o Alcoforado: +</p> +<pre> + <i>Calae-vos por piedade! Tende imperio + Sobre a imaginação.</i> +</pre> +<p> + Em outra scena da peça depois de uma entrevista secreta com o pagem, á + hora da meia noite, a duqueza profere uma palavra physiologica, de um + sentido decisivo: +</p> +<pre> + <i>Como evitar que o duque venha, e veja + Aqui tua presença que me peja?</i> +</pre> +<p class="centered"> + PAGEM +</p> +<pre> + <i>Meu Deus!</i> +</pre> +<p class="centered"> + LEONOR +</p> +<pre> + <i>Jesus! esconde-te!</i> +</pre> +<p> + Ao que o pagem, com o temerario valor que só os altos sentimentos + persuadem, replica energicamente: +</p> +<pre> + <i>Fujamos!</i> +</pre> +<p class="centered"> + LEONOR +</p> +<pre> + <i>Por onde oh! ceus?!</i> +</pre> +<p class="centered"> + PAGEM +</p> +<pre> + <i>Por esta porta.</i> +</pre> +<p class="centered"> + LEONOR +</p> +<pre> + <i>Vamos.</i> +</pre> +<p> + Sendo tanto a <i>Leonor de Bragança</i> do sr. Luiz de Campos como a <i>Leonor + de Bragança</i> do sr. Alfredo Ansúr peças offerecidas pelos seus auctores + a sua magestade el-rei o sr. D. Luiz I, é claro que ellas devem ser + consideradas pela critica não como livres producções litterarias mas + como especiaes mimos dedicados á familia de Bragança. Ora sob este ponto + de vista—não hesitamos em dizel-o—a obra do sr. Ansúr parece-nos muito + mais completa e perfeita que a do sr. Luiz de Campos. +</p> +<p> + Pomos de parte a questão da investigação historica, que foi egualmente + aprofundada pelos dois auctores. O sr. Luiz de Campos reforça-se com o + testemunho dos documentos que manuseou: <i>A historia genealogica, As + Decadas</i> de Couto e de Barros, a <i>Chronica de D. Manuel</i> por Damião de + Goes e o <i>Auto de inquirição e devassa</i> existente na Torre do Tombo. O + sr. Alfredo Ansúr fortifica-se exactamente com os mesmos documentos por + elle compulsados. +</p> +<p> + Para suas excellencias, armados de eguaes argumentos pró e contra a + duqueza, a escolha do papel que tem de lhe ser dado n'este drama é pois + uma questão de gosto. O sr. Ansúr, emquanto a nós, escolheu melhor, e + fez a sua magestade el-rei uma dadiva mais delicada. +</p> +<p> + Segundo o sr. Ansúr o duque de Bragança D. Jayme é um cavalheiro infeliz + em familia, ao qual succede—como muito bem diz Menelau na Bella + Helena—uma fatalidade. O duque deteriora a região intestinal da + duqueza, mas deteriora-a em legitimo desforço da sua dignidade offendida + e ao abrigo das leis do reino. +</p> +<p> + Segundo o sr. Luiz de Campos, dada a innocencia da esposa, o duque não + passa de um sanguinario estupido, que envolve o seu brasão de familia e + a futura tradição dynastica n'um ignobil e affrontoso chouriço de sangue + innocente. O acto de mandar desossar pelo cosinheiro o pagem Alcoforado, + com o mesmo facalhão com que se picam os bifes, é um facto indecente + que, posto o criterio do sr. Luiz de Campos, estabelece um precedente + que pode levar os servidores da casa de Bragança a não distinguirem + inteiramente a differença que ha em ir para o paço e em ir para a + salgadeira. +</p> +<p> + Eliminada a circumstancia do adulterio o duque é um facinora vulgar sem + nenhum apoio na jurisprudencia ou na legislação. Depois da leitura da + peça do sr. Luiz de Campos, um jury sensato que houvesse de julgar D. + Jayme, mandal-o-hia degradado por toda a vida para a Costa de Africa. + Só assim se poria uma sociedade culta ao abrigo de um principe que faz + das esposas e dos vassalos um consumo que se não justifica pelas + necessidades ordinarias da vida exterior. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Parece-nos ser um serviço em extremo subalterno prestado a alguem o + publicar a historia de um dos seus antepassados á luz de uma critica + cujas derradeiras consequencias são, como no drama do sr. Campos, a + condemnação do mesmo antepassado a um genero de glorificação e de + apotheose que elle só pode remir com a prisão correcional perpetua. +</p> +<p> + Na peça do sr. Ansúr o antepassado do alto personagem a quem elle a + offerece e consagra apparece-nos satisfactoriamente levado ao crime por + uma provocação cheia de solicitude e de cortezia. «Ha homem em casa. Com + a creada? Não. Com a patrôa.» Este grito sublime de clareza e de + concisão esparge no facto um raio de luz juridica e lança um immenso + clarão de legalidade e de justiça sobre o chifarote brigantino destinado + á perfuração das damas. +</p> +<p> + Nada mais tocante do que a situação do duque ao receber o fatal + desengano: +</p> +<pre> + <i>Horror! Infamia! Anathema! Vergonha! + ....................................... + Rompe-se-me do ser toda a harmonia, + Passa-se-me na mente extranha orgia! + Estalam-me no corpo algumas fibras! + Meu pobre espirito, que assim te libras + Do desespero na mortal esphera, + Não te consumas tanto! Acalma! Espera! + ......................................... + Mofina dor me roe, me despedaça! + Emquanto descuidoso andara á caça, + Tu deliravas... tu... oh! que villeza!</i> +</pre> +<p> + E depois dirigindo-se ao pagem: +</p> +<pre> + <i>Arrepende-te dos teus peccados + Que os fios da tua vida estão contados!</i> +</pre> +<p class="centered"> + PAGEM +</p> +<pre> + <i>Perdão! piedade!</i> +</pre> +<p class="centered"> + DUQUE +</p> +<pre> + <i>Soffre com valor + Que mais soffreu par nós o Redemptor! + ..................................... + .........................Alfim + Com o manchil Domingos cortará + A cabeça do pagem. Morrerá.</i> +</pre> +<p> + A duqueza intervem com esta conceituosa + mas intempestiva maxima: +</p> +<pre> + <i>Jamais decepes com manchil odioso + A cabeça de um justo. É horroroso!</i> +</pre> +<p> + O duque não precisa que lhe ensinem a resposta... +</p> +<pre> + <i>Sabe mostrar do Barbadão de Veiros + O descendente, como pune o ultraje, + Que lhe fizeste, Leonor! Apage.</i> +</pre> +<p> + Não são estes porém os unicos serviços prestados pelo sr. Ansúr á + clareza justificativa dos factos e ao esplendor immarcessivel da casa de + Bragança. A peça d'este benemerito cavalheiro abunda em conceitos e em + noções preciosas para a historia da nossa monarchia. Quem é o luso que, + presando-se de amar o rei e a patria, deixará de ler sem uma commoção + profunda as seguintes palavras que o auctor põe na bocca da mãe de D. + Manuel, por occasião do advento d'este monarcha ao regio solio? +</p> +<pre> + <i>Omnipotente Deus! quiz o destino + Dar existencia ao throno manuelino! + Quem predissera tal, filho cadete, + Quando surgiste á luz em Alcochete?!</i> +</pre> +<p> + Temos por indigno e refece todo o cortezão que achando-se ao serviço da + casa de Bragança se recusar a decorar os seguintes carmes em que o sr. + Ansúr celebra os antigos privilegios heraldicos de tão distincta + familia: +</p> +<pre> + <i>A não ser o real, não ha poder, + Que possa hoje nos reinos exceder + O de nosso senhor! Póde D. Jayme + (Ó fóros brigantinos inspirae-me) + Nas salas dos seus paços ter doceis + E sitiaes nas egrejas dos fieis. + Forrada com arminhos, rica, larga + Vestir opa vermelha aberta á ilharga; + Ante si leva estoque, segundo acho, + Com o extremo voltado para baixo, + Distinctivo dos reis, que é para cima.</i> +</pre> +<p> + Faz gosto ler estas noticias e pensar a gente que pertence a um paiz em + cujo throno se acha uma familia que antes de reinar tinha o direito de + levar estoque para baixo, que ao reinar adquiriu o direito de levar + estoque para cima, de sorte que póde hoje em dia (ó fóros brigantinos + acudi-me), levar estoque simultaneamente para cima e para baixo! +</p> +<p> + A unica coisa que se nos offerece reprehender na peça do sr. Ansúr, por + innumeros titulos superior á do sr. Luiz de Campos, é que o auctor a não + tivesse accrescentado com mais um acto, no qual, para completa + rehabilitação da casa de Bragança, o duque D. Jayme nos apparecesse + resgatando-se aos olhos do Omnipotente por meio das penitencias em que + consumiu até o ultimo dia da sua taciturna viuvez. Nos paços de Villa + Viçosa ainda hoje se mostra aos viajantes uma tina cavada no chão, a que + se desce por quatro degraus, na qual é tradição geralmente crida que o + nobre duque se mettia em agua, durante uma hora por dia, para desaggravo + e remissão de suas culpas. O illustre heroe tão devéras se arrependeu + que chegou a mortificar-se d'esta maneira insolita e sem + precedentes—tomando banho! +</p> +<p> + Seria um bello melhoramento na obra do sr. Ansúr que s. ex.ª a + completasse com um breve epilogo, em que D. Jayme fosse visto amarrado + pelo grilhão da penitencia a uma bacia, e ciliciado no vivo das suas + carnes ultrajadas e viuvas pelo contacto expurgante de um sabão. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Postas estas considerações, não podemos deixar de perguntar: Porque + motivo não caiu do alto da regia munificencia sobre o peito inspirado do + sr. Ansúr o pingo da nobre ordem do lagarto, do merito artistico e + litterario, pingo suspenso da real goteira sobre as boças poeticas do + sr. Luiz de Campos? Não fez o sr. Ansúr um drama de assumpto brigantino + como o do seu collega? Não tem o sr. Ansúr a precedencia n'esta creação + litteraria? Não é a sua obra dedicada egualmente a el-rei? Não é ella + escripta em bellas parelhas de versos de dez syllabas, em vez de o ser + em prosa villôa como a do seu competidor? +</p> +<p> + O sr. Luiz de Campos, não podendo pela sua qualidade de deputado receber + mercês honorificas, teve de el-rei o presente de um cofre no valor acima + referido de 1:500$000 réis. +</p> +<p> + Não so dando com o sr. Ansúr a incompatibilidade annexa ao mandato + popular, porque não se lhe confere a commenda da nobre ordem ou, quando + menos, a sua equivalencia em cofre com pedra preciosa no valor de réis + 1:500$000? +</p> +<p> + Grave e inexplicavel injustiça! Se a nossa debil voz póde chegar até ás + orelhas da corôa, nós diremos ao augusto soberano: +</p> +<p> + Senhor! A vossa protecção ás letras patrias não se tem até hoje + desmarcado de uma reserva tão discreta como constitucional. Os + dramaturgos que precederam Luiz de Campos e Alfredo Ansúr apenas teem + colhido da regia liberalidade a graça de haverem possuido collocado em + uma <i>avant-scène</i>, durante uma ou duas representações das suas peças, o + vosso real perfil, que outros não possuem senão collocado nas moedas de + 5$000 réis, coisa miseravel e vil. Acabado o espectaculo vós enfiaes o + vosso paletot, accendeis o vosso charuto, retomaes o vosso sceptro no + bengaleiro, e ides para casa recolher as commoções da noite sob o + agasalho da vossa corôa de dormir, de algodão branco com uma borla na + ponta. O genio nacional não pôde ainda até hoje obter da vossa + munificencia manifestações mais expressivas. Uma vez, porém, que + deliberastes inaugurar a éra do galardão litterario, dae a Alfredo + Ansúr a commenda que Luiz de Campos não pôde acceitar. Dae-lh'a quanto + antes. Não espereis que á cabeceira do vosso leito se erga o espectro do + remorso, e que, sob a figura do poeta menosprezado, elle vos brade nos + silencios da noite: +</p> +<p> + «Descendente de Barbadão! solta-me o lagarto! Larga o lagarto, + Barbadão!» +</p> +<p> + Se o throno for surdo ás nossas vozes, cairemos sobre o sr. Luiz de + Campos, e com o manchil da justiça distribuitiva em punho + cortar-lhe-hemos a dadiva regia ao meio! +</p> +<p> + Que o sr. Ansúr nos diga para onde quer que se lhe mande a metade do + brinde que lhe lhe compete. +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + Hoje, 7 de maio, corridas de cavallos no hippodromo de Belem. +</p> +<p> + Um premio foi disputado por quatro cavallos, um foi disputado por tres, + outro por dois, e o ultimo finalmente por um cavallo só. Este cavallo + partiu correndo vertiginosamente atraz de si mesmo, e desenvolveu tal + ardôr e tal velocidade que chegou á meta, no meio das ovações e dos + applausos geraes, passando adiante de si proprio! +</p> +<p> + Nota-se esta curiosa influencia do premio do governo, do premio de + el-rei, e do premio do Club, sobre o desenvolvimento da raça cavallar:—quanto + mais premios se distribuem menos cavallos ha. +</p> +<p> + Se a instituição se mantem por dois ou tres annos mais, é-nos licito + acariciar a esperança de que terminaremos por não haver cavallo nenhum, + e teremos ainda o gosto de ver o primeiro dos <i>sportmen</i> que figuram no + programma da presente corrida, o ex.'mo sr. Galileo, acabar por + percorrer a pista montado no seu telescopio. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + E no entanto o campo das corridas é o mais bello sitio dos contornos de + Lisboa, o mais aprazivel ponto de passeio de carruagem, a cavallo ou a + pé nas tardes de verão, e é susceptivel de ser explorado pelo + <a id="Jockey" name="Jockey" >Jockey-Club</a> + com sufficiente lucro da associação e com grande vantagem do + publico. Bastaria para utilisar e aformosear o campo circumdal-o por + fora da pista com uma rua de arvores intermeadas de bancos de jardim; + estabelecer no centro do hippodromo um jogo do <i>Cricket</i> para os membros + de um <i>Cricket-Club</i> addido ao <i>Jockey-Club</i>; organisar um tiro ao alvo, + um <i>Croquet</i> para as senhoras, alguns jogos gymnasticos para o povo e + para as creanças; promover nos domingos da primavera e de verão no + recinto do campo pequenos certames agricolas e industriaes, concursos de + vaccas, de carneiros, de gallinhas, de porcos gordos, exposições de + flores, de fructas, de legumes, de queijos, de instrumentos de + agricultura e de jardinagem, etc. +</p> +<p> + Lisboa carece vergonhosamente de uma instituição d'este genero que reuna + com as condições de recreio os desenvolvimentos de actividade e de + educação. Visto que nem o governo nem a municipalidade se occupam d'essa + questão, o <i>Jockey-Club</i> prestaria um serviço relevante procurando + resolvel-a. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Mas de modo algum pretendemos forçar o <i>Jockey-Club</i> a acceitar esse + encargo. O <i>Jockey-Club</i> fará o que entender, e nós acharemos sempre que + entendeu bem; a unica coisa que lhe rogamos é que reflicta no futuro que + o espera continuando na senda assustadora em que principia a resvalar. O + club achou ainda um meio de resolver o problema do concurso diante da + simples unidade: queremos saber o que fará quando vier a apparecer a + fracção, e a quem se dará o premio de el-rei, quando para o anno + concorrer unicamente a disputal-o—um selim! +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + Ao mesmo passo que o <i>Jockey-Club</i>, sob a protecção de suas magestades o + sr. D. Luiz e o sr. D. Fernando confere premios no valor de tres contos + de réis annuaes ás bestas velozes, a Academia Real das Sciencias, sob a + presidencia e sob a protecção dos mesmos augustos principes, confere + apenas 50$000 réis de premio aos sabios extenuados. +</p> +<p> + Um cavallo que percorre a galope uma distancia de mil e quinhentos + metros ganha réis 1:500$000. Os sabios do paiz inteiro ganharão 50$000 + réis satisfazendo entre varios outros os seguintes pontos do programma + da Academia para o anno de 1877: +</p> +<p> + Em mechanica: Apresentar um trabalho sobre o movimento dos fluidos; + achar o melhor systema de obras a eslabelecer nas margens do Tejo a fim + de satisfazer simultaneamente as condições de salubridade, irrigação e + segurança das propriedades adjacentes. Em physica: estudar a capacidade + calorifica dos atomos nos corpos simples; indicar a construcção da pilha + de effeito mais constante e mais propria para ser applicada á + telegraphia; apresentar a synthese dos alcaloides organicos; estudar a + composição chimica das principaes aguas sulfureas e alcalinas de + Portugal. Nas sciencias historico-naturaes: Fazer a descripção + ampelographica das principaes castas de uvas portuguezas e determinar o + melhor processo para o fabrico dos vinhos genuinos; fazer um ensaio + monographico da fauna portugueza. Nas sciencias medicas: Determinar as + alterações da saude e as doenças devidas ás principaes industrias do + paiz e indicar os meios efficazes de as prevenir; fazer um estudo + critico do systema de esgoto e saneamento da capital, que satisfaça a + todas as condições prescriptas pela hygiene, apresentando o modo da sua + realisação; estudar a mortalidade de Lisboa, suas causas e meios de as + attenuar. Em litteratura: Fazer um romance historico, fazer um poema, + fazer um glossario das palavras e locuções hoje obsoletas ou antiquadas + que se leem nos antigos cancioneiros portuguezes acompanhando esse + vocabulario de observações linguisticas e philologicas. Nas sciencias + economicas e administrativas: Memorias ácerca da descentralisação em + Portugal e do melhor systema de circulação fiduciaria. Em historia e + archeologia: Estudo ácerca do estado da sociedade portugueza ao tempo da + morte de D. João V; determinar e caracterisar as relações artisticas de + Portugal nos seculos XV e XVI no tocante á architectura, esculptura, + pintura, musica e artes industriaes, indicando os meios officiaes e + extra-officiaes que facilitaram essas relações pondo os resultados em + parallelo com a historia da arte em geral, etc., etc., etc. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Se nós fossemos sabios preferiamos ao trabalho de responder a qualquer + dos alludidos quesitos pela somma de 50$000 réis, o trabalho de + percorrer á desfilada a pista do hipodromo de Belem—de graça. +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + Durante o semestre que finda este mez Lisboa não produziu nem um só + livro util, nem uma só notavel obra d'arte na pintura, na musica, na + poesia. +</p> +<p> + Não se fez nem uma prelecção nem uma conferencia litteraria ou + scientifica. A estação toda passou-se como a estação anterior, como as + estações precedentes, sem que esta sociedade em marasmo désse um unico + signal de vida intelligente. +</p> +<p> + Lisboa é hoje a unica capital da Europa em que isto succede. Não + queremos dar-lhe em parallelo Paris, Berlim, Bruxellas, Londres, S. + Petersburgo, qualquer das grandes cidades da Italia ou da Hollanda. + Apontaremos apenas Madrid, e não citaremos senão um dos seus institutos + particulares, o <i>Atheneu</i>, sociedade da natureza do <i>Gremio Litterario</i> + em Lisboa. No <i>Atheneu</i> os cursos publicos, livres, gratuitos, + abriram-se no mez de outubro, tendo havido desde o dia da abertura + prelecções, conferencias ou debates em todas as noites. Teem-se + ventilado as mais interessantes questões da philosophia e da sciencia + social no ponto de vista de espiritos altamente cultos. +</p> +<p> + Em Lisboa o progresso social, o movimento ascendente da civilisação + manifestou-se unicamente pela apparição de tres estancos novos no + Chiado e de uma ourivesaria no largo das Duas Egrejas. Como á falta de + objecto para outros interesses mais elevados, nós occupavamos os nossos + ocios encostando-nos ás humbreiras das tabacarias a ver dispersar-se no + ar o fumo dos nossos charutos, as tabacarias comprehenderam que este + estado geral dos espiritos deveria começar a fatigar os habitantes de + Lisboa, e dotaram-os com sofás. Para o anno os estancos requintarão + ainda as condições de commodidade e havemos de ver os estanqueiros + sairem ao encontro dos desejos do publico com colchões. Chegaremos á + Casa Havaneza, despir-nos-hemos, poremos a camisa de dormir e fumaremos + os nossos <i>carvajales</i> deitados em camas, á porta. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + A ourivesaria do largo das Duas Egrejas teve o successo de uma + instituição. Ella é como um templo ao luxo, como um altar ao deus Ouro, + tal como o conceberiam, erigido com todo o esplendor do culto, os + Pharaós da Rua dos Capellistas. A armação interior da loja é feita em + Paris segundo os elegantes modelos das joalherias da rua de la Paix ou + do Palais Royal. Armarios da mais verosimil imitação de ebano sobre um + parquet brunido. Tecto de um azul idealisado, representando um trecho de + ceu coberto de creme. +</p> +<p> + Nas vitrines, de um só cristal immaculado, desdobram-se em degraus, como + n'um throno de lausperenne, as prateleiras de veludo cor de cereja, de + cuja suavidade macia e ardente destacam em vigoroso relevo as joias em + exposição. A um lado pendem em meada as correntes de relogio exhibidas + como o corpo de delicto de uma quadrilha de pick-pocket apanhados com o + roubo. Suspensos nas extremidades das correntes pousam em baixo os + breloques, n'um grande molho confuso, como se adornassem um collete + monstro sobre o estomago collectivo e proeminente do capital. +</p> +<p> + Nos logares mais proximos de quem olha estão os miudos objectos + preciosos, as finas pedras raras, os olhos de gato castanhos e amarellos + em pequenas elypses cujo grande eixo é indicado por uma linha que separa + nitidamente as duas côres; as perolas negras de um tom profundo, que não + é o preto, é o infinitamente escuro, como a noite; as perolas côr de + rosa sobresaindo em cercaduras de brilhantes como capsulas cabalisticas + feitas de substancias extraidas de uma cristalisação mimosa de beijos + ternos e de perfumes castos. +</p> +<p> + No segundo plano apparecem os ornamentos de mais vulto: os broches + tremelusentes e vivos como esparrinhaduras de diamantes e de rubis + chispando no ar; as flores imaginosas de petalas de aljofar ou de + saphira, orvalhadas de pulverisações de esmeralda; os medalhões em + camafeus preciosos sobre pedras de tres côres nos tres planos da + esculptura; as eflorescencias phantasticas das onix, das granadas, das + malaquites, das opalas; em raios como estrellas, em sobreposições como + pinhas, listradas, rajadas, mosquetadas, affestoadas, zebradas com todas + as scintillações do prisma. +</p> +<p> + Mais longe offerecem-se os braceletes nos seus estojos côr de lilaz. Uns + são fortes e duros como os violentos desejos, outros vaporosos e finos + como aspirações platonicas. Nas suas variadas formas teem physionomias, + revelam temperamentos. Ha-os lascivos e ardentes, colleados em quatro + roscas de um ouro fulvo, terminando n'uma cabeça de cobra esmagada por + um esbraseamento de rubi. Ha-os contemplativos e ingenuos, de uma côr + limphatica, salpicados de frias e innocentes turquezas. Tambem os ha + trasbordantes de uma vida farta e victoriosa, largos, rendilhados, + superabundantes de cores, expansivos e triumphaes como orchestras, + soprando hymnos de um enthusiasmo sanguineo, vermelho, despotico. +</p> +<p> + Em outra vitrine está a exposição das pratas: os centros de mesa + representando palmeiras, á sombra das quaes se empinam cavallos em + pello, que deverão parecer relinchar de amor no meio das sobremesas, + entre as frutas empilhadas geometricamente em pyramide sobre taças de + filigrana e os gelados transparentes impregnados de luz, tremulos, côr + de topasio; as bacias de mãos, de desenhos bysantinos <i>repoussés</i>; os + jarros de forma etrusca; os assucareiros graves e concentrados como + vasos de particulas sagradas; e os grossos bules barrigudos e polidos, + nos quaes se espelham os rostos em caricatura monstruosa, com bochechas + obscenas, narizes que incham como focinhos de vitela e bocas que riem + até as nucas. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Ao accender das luzes, ás oito horas e pouco depois, magotes compactos + de espectadores estacionam defronte da vitrine das joias. Demoram-se + mais as mulheres: mulheres de amanuenses e de pequenos empregados, + costureiras das modistas, que saem a essa hora das officinas quando não + ha serão. +</p> +<p> + Candieiros de gaz com fortes reflectores não só alumiam intensamente os + objectos expostos nas vitrines, mas alumiam tambem pedaços de + espectadores, em que se podem fazer exames minuciosos, de microscopio. +</p> +<p> + As mulheres magras, pallidas, que olham, teem as faces oleosas da + transpiração do trabalho de 14 horas em pequenos gabinetes abafados, + cheios de exhalações mornas de roupa suja. Na mão esquerda o dedo que + aponta para um colar de mil libras tem uma nodoa escura, esfarpada, + produzida pelas picaduras da agulha, e o dedo polegar mostra uma unha + curta atrophiada no habito de esmagar costuras. Os chapeus adornam-se + com velhas flores em terceira mão, desbotadas e tristes; e das cuias, + caidas sobre a mancha gordorosa que tem entre as espaduas a alpaca poida + dos vestidos, sae um cheiro acido de cabellos humidos e embrulhados, em + fermentação. +</p> +<p> + Dentro da loja uma bella mulher risonha que se apeou de um coupé, + embrulhada em fina renda branca, debruça-se no mostrador e aproxima da + mão do caixeiro que lhe segura um brinco a polpa aveludada da sua orelha + carnuda, sensual, de comilona feliz. +</p> +<p> + Os espelhos dos angulos da sala e os que forram as vitrines reproduzem + infinitamente para todas as direcções essa cabeça bonita envolta em + renda, e mostrada ao mesmo tempo de todos os lados, de frente, de + perfil, de tres quartos, acompanhada sempre da mão que enfia o brinco. +</p> +<p> + As macilentas Margaridas de olhos pisados vão ver em cada noite esse + espectaculo de tentação, em quanto na esquina fronteira, na Casa + Havaneza, os Doutores Faustos accendem os seus charutos, e muitos + diabinhos invisiveis volitam no ar dizendo segredos, deitando de fóra + impudentemente as linguinhas de chamma e coçando os seus piqueninos + chavelhos com freneticas contracções aduncas, como quem se sente + inteiramente cheio de phosphoro e de alacridade. +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + A <a id="peregrinacao" name="peregrinacao" >peregrinação a Roma</a> + foi promovida pelos chefes do partido clerical com + um zelo fervoroso, que acabamos de ver coroado com o mais prospero + exito. +</p> +<p> + Suas excellencias annunciáram com a devida antecedencia a celebração do + jubileu pontificio; facilitaram a romagem com esclarecimentos que fariam + a gloria do <i>Guide Joanne</i>; conseguiram o estabelecimento de comboyos de + recreio, ida e volta, preços reduzidos, de Lisboa a Roma, com escala por + Nossa Senhora de Lourdes; deram os preços dos hoteis e dos restaurantes + romanos, a regimen de peixe ou de carne, para as grandes bolsas, para as + bolsas medias e para as pequenas bolsas; fixaram finalmente a + <i>toilette</i>, explicando que as senhoras deveriam apresentar-se com + vestidos de seda preta e véos de renda, e os homens de uniforme ou de + casaca preta e gravata branca. +</p> +<p> + Porque—suas excellencias o explicáram—o santissimo padre não recebe + senão senhoras de rendas e homens de casaca. Os peregrinos vestidos de + sacco e burel, as peregrinas cingidas pela estamenha e pela corda de + esparto, não sobem a escada do Vaticano. Os pés privilegiados para + pisarem os tapetes do Vigario de Christo na terra são os pés mimosos e + aristocraticos, calçados em escarpins de setim ou de polimento. Os + sapatos ferrados dos caminheiros plebeus, as sandalias espalmadas das + peccadoras que não vem de passeiar em <i>victoria</i> ou em caleche á + Daumont, de volta do Corso ou do Pincio, mas que chegam das escabrosas + veredas da miseria; as alpagartas dos penitentes que vieram trilhando + abrolhos sangrentos no aclive da via dolorosa, são generos de calçado + expulsos pelos enxota-cães, e expulsos com os respectivos pés, porque + tambem se não entra descalço no Vaticano como se entra no templo em + Jerusalem, ou na mesquita de Santa Sophia em Constantinopla. +</p> +<p> + Facultados tão interessantes esclarecimentos muitas pessoas partiram a + receber as bençãos paternaes offerecidas pelo pontifice ás rendas e ás + casacas pretas do orbe christão. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Alguns episodios d'essa piedosa viagem são já do dominio da imprensa. Da + estação do caminho de ferro de Braga sairam os romeiros entre + acclamações sympathicas e vivas enthusiasticos á santa religião e ao + summo pontifice Pio IX. Em compensação na gare do Porto foram os mesmos + romeiros acolhidos aos gritos não menos enthusiasticos de «Fóra os + hypocritas! fóra os patifes!» Por este ultimo successo damos a suas + excellencias os nossos cordeaes parabens, porque suppomos que elles + viajam com um fim de humildade e mortificação, e que lhes serão + agradaveis todas as manifestações publicas tendentes a exacerbar-lhes o + pungimento expurgante das duras penitencias. +</p> +<p> + Em Lourdes, refere o telegramma de um sacerdote ao jornal <i>A Nação</i>, que + á vista da gruta toda a romagem rompera em pranto e se prostrára em + joelhos. Devemos crêr que esta prostração fosse passageira, não só + porque um telegramma subsequente nos annuncia a chegada dos peregrinos á + cidade eterna, mas ainda porque em Lourdes a belleza da paisagem, a + exuberancia da vegetação, o rumor das aguas, as perspectivas sombrias e + flexuosas da floresta, a clara alegria do restaurante, de gelosias + abertas, de <i>stores</i> desdobrados ao sol, com a sua grande taboleta <i>Á + Notre Dame de Lourdes</i>, e os seus subtitulos em caracteres appetitosos + <i>Diners à la carte et déjeuners à la fourchette,—gras et maigre</i>, tudo + convida os espiritos ascetas a uma conciliação amavel com a carnalidade + mundana. +</p> +<p> + Além do aspecto das coisas, as exterioridades das pessoas contribuem + tambem poderosamente para arrancar os adventicios ás attitudes + prostradas e contemplativas. +</p> +<p> + Os comboyos de Paris chegam e partem cheios de alegres <i>touristes</i> de um + e outro sexo. +</p> +<p> + São graciosas peccadoras com adoraveis <i>toilettes</i> de viagem; chapeus de + grossa palha de fôrma aguda e aba estreita derrubada sobre os olhos, + descobrindo a nuca, em que se enrolam as tranças loiras, e a nascença do + cabello junto do pescoço, com os seus flocosinhos de pennugem crespa e + doirada penetrada de luz; os vestidos decotados no collo em linhas + quadradas como os colletes dos devotos bretões; as saias curtas deixando + ver as meias de seda listradas de azul, e os sapatos de pelle de gamo + atacados com correntes de aço, que telintam ao andar. Estas gentis + romeiras abordoam-se a cajados rusticos comprados no <i>boulevard</i> dos + Italianos, trazem ao tiracollo os grandes rosarios de contas de madeira, + grossas como bugalhos, terminando em uma cruz egualmente de madeira que + chega á barra do vestido,—ornato local de um pittoresco picante. +</p> +<p> + São os homens de nickerbockar de flanella alvadia e capacetes de sabugo + envoltos em véos turcos, com uma flor de madresilva na <i>boutonière</i>, + fazendo gelar o champagne e preparando debaixo das arvores os seus + jantares em <i>partie fine</i>, emquanto padres solicitos vendem a agua + milagrosa, ou aos copos á bica da gruta, ou em bilhinhas de lata + devidamente lacradas e selladas authenticamente, facultando na igreja + recantos reservados e escusos para as applicações em banhos parciaes, ou + em compressas, a orgãos enfermos que as devotas desejem submeter á cura + nos proprios logares benzidos e sagrados. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Em cem contos é calculada a somma dos donativos em dinheiro levada + pelos peregrinos portuguezes ao Santo Padre. +</p> +<p> + É valiosa na occasião presente essa contribuição, porque a historia do + dinheiro de S. Pedro teve sob a gerencia do cardeal Antonelli episodios + devastadores. Procurando ha annos o governo de Victor Manuel realisar + uma operação bancaria destinada a equilibrar as finanças da Italia, o + cardeal Antonelli, como fino rabula e zeloso ultramontano, concebeu o + plano de um <i>coup de bourse</i> destinado a combater as intenções do + governo italiano provocando uma descida que impossibilitasse a emissão + de novos fundos. Para este fim o astuto financeiro vendeu em massa, pela + baixa, os titulos da divida italiana que a Santa Sé possuia e que + representavam o dinheiro de S. Pedro. É porém perigoso, mesmo para um + italiano, jogar as peras com outro italiano. Na Italia todo o homem + habil deve estar preparado para encontrar um mais habil que o logre. Foi + o que succedeu a Antonelli. O seu plano foi estrategicamente + contraminado pelo governo de Victor Manuel, organisando-se um syndicado + de banqueiros que despedaçou a armadilha do illustre cardeal. +</p> +<p> + O dinheiro de S. Pedro convertido outra vez em metal pela operação + malograda nos seus effeitos, foi então convertido em fundos turcos, + operação arrojada mas tão lucrativa que promettia duplicar, em poucos + annos, o capital empregado, a não ser que um caso, então imprevisto, + prejudicasse o exito da transacção fazendo estalar no Oriente uma guerra + inesperada. +</p> +<p> + Foi, como se sabe, o que veiu a succeder desgraçadamente para os bens do + Papa. De sorte que o dinheiro de S. Pedro, piedosamente accumulado pelos + catholicos para o esplendor da Igreja, achou-se, pela mais estranha das + coincidencias, consumido em polvora por uma potencia chamada ao fogo + como perseguidora dos christãos! +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Além dos donativos em dinheiro e dos presentes em objectos preciosos, os + peregrinos levaram, para offerecer a Sua Santidade, um grande album, em + que vae inserida uma declaração de principios assignada por todos os + romeiros. Os jornaes que nos transmittem essa noticia não nos dão o + texto do documento precioso. Não temos, portanto, a ventura de saber o + que suas excellencias dizem. O que deveriam dizer era o seguinte: +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Santissimo Padre +</p> +<p> + Ha hoje quinhentos e setenta e sete annos que o primeira jubileu da + Igreja Catholica Apostolica Romana foi celebrado por um dos + predecessores de Vossa Santidade, o papa Bonifacio VIII. +</p> +<p> + Esta solemnidade não tinha por fim, como o anno jubilario do Mosaismo, + dar a liberdade aos escravos, fazer reverter os bens territoriaes aos + seus primitivos possuidores, tornar o homem insoluvel de cincoenta em + cincoenta annos, e ao cabo de cada um d'esses prazos reconstituir a + familia nos seus primitivos direitos, operando periodicamente aquillo + que hoje chamariamos a <i>liquidação social</i>, e a que o <i>Pentateuco</i> + chamava simplesmente a—<i>santificação do quinquagesimo anno</i>. +</p> +<p> + O papa Bonifacio, antigo rabula, (<i>quia primo advocatus</i>), + preoccupava-se pouco com as interpretações do direito; promettendo a + remissão dos peccados a todos os que viessem a Roma visitar, durante + trinta dias, as igrejas dos apostolos, o seu fim unico era realisar um + dos seus sonhos de decrepito allucinado: inaugarar o seculo XIV com uma + solemnidade unica na historia—a reunião em Roma do genero humano + prostrado aos seus pés, como perante o Deus vingador no dia do juizo + final, no valle de Josaphat. +</p> +<p> + N'esse tempo, Santissimo Padre, ainda no mundo existia a fé. O numero + dos peregrinos que vieram a Roma foi tão grande, que chegaram a contar + cem mil. Por fim não poderam ser arrolados. Cresciam monstruosamente + como esses formigueiros da America do Sul que n'um mez minam os + alicerces de um predio e aluem uma torre. Eram insufficientes para + albergal-os as casas dos moradores, os hospicios, as ermidas, as + igrejas. Acampavam nas ruas e nos campos suburbanos. A escassez dos + alimentos e a <i>malaria</i> produziam uma infinidade de doenças. Houve uma + fome e quasi uma peste. A mortalidade era enorme. Uns não regressavam + mais. Outros não conseguiam chegar ao termo da romagem, e extenuados de + fadiga e de fraqueza, com os pés em sangue, morriam saudando de longe a + sagrada collina. +</p> +<p> + Com quanto o poder papal entrasse já então na phase de declinação que + até os nossos dias devia progressivamente arrastal-o ao occaso, + Bonifacio suppunha-se ainda o senhor e o arbitro do mundo. Por occasião + da morte de Alberto d'Austria, tendo-se feito acclamar imperador Adolpho + de Nassau, o papa Bonifacio tinha posto a corôa na cabeça, tinha + brandido uma espada, e do alto do monte Aventino havia bradado: «Eu é + que sou o Cesar! eu é que sou o imperador!» +</p> +<p> + Era elle ainda que na bula <i>ausculta filii</i> tinha escripto estas + palavras supremas: «Deus collocou-nos, apezar de indigno, acima dos reis + e acima dos reinos, impondo-nos o jugo da servidão apostolica <i>para + arrancar, destruir, dispersar, dissipar, e para edificar e plantar em + seu nome e segundo a sua doutrina</i>.» +</p> +<p> + No dia do jubileu, para celebrar a ceremonia de bater com o malhete de + prata e de desmoronar o muro com que se veda para esse fim uma das + portas de S. Pedro, o Papa appareceu á multidão prostrada e atravessou + pelo meio d'ella, vestindo as insignias imperiaes, levando adiante de si + a espada e o sceptro sobre o globo do mundo, symbolo da monarquia + universal, enquanto um arauto proclamava: «Aqui vão duas espadas. + Pedro, eis o teu successor. Christo, eis o teu vigario.» +</p> +<p> + Os peregrinos que haviam conseguido visitar os tumulos dos apostolos, + cujas columnas são feitas com o bronze subtraído da abobada do Pantheon, + os que haviam chegado a receber com a benção apostolica a absolvição das + suas culpas, regressavam á familia encanecidos, alquebrados, assombrados + para o resto dos seus dias, como os tocados de raio, pelos aspectos + collossaes da tragica Roma, pela historia do seu passado, semi-vivo + ainda nos monumentos destroncados da edade republicana e da edade + imperial, pelas visões portentosas de um mundo extincto que lhes haviam + apparecido como tremendos phantasmas, na arcaria dos aqueductos truncada + a espaços como os elos partidos de um enorme grilhão estendido na vasta + campina; nos banhos de Caracala; nas dispersas columnas corinthias; nos + obeliscos egypcios; no Capitolio convertido em <i>Colina das cabras</i>; no + <i>Forum</i> transformado em <i>Campo das vaccas</i>; no Coliseu, finalmente, com + as suas tres ordens de columnas doricas, jonicas e corinthias, monumento + collossal, em que trabalharam doze mil captivos, em que cabiam cem mil + espectadores e em que não há uma pedra que não corresponda a uma golfada + de sangue de um gladiador ou de um martyr. +</p> +<p> + Os peregrinos regressados n'um vago estado de somnambulismo, como + aluados, haviam porém levado do jubileu uma consoladora lição: haviam + desaprendido de viver, mas tinham-lhes ensinado a morrer tranquillos na + esperança doce e firme da bemaventurança promettida. O que era porém o + mundo, Santissimo Padre, n'esses tempos remotos e sombrios em que os + homens eram isto? +</p> +<p> + Em Paris e em Londres as casas eram feitas de madeira ou de lama + endurecida, com tectos de canas. As ruas eram montões de immundicia em + fermentação miasmatica. O uso de banhos tinha desapparecido. A amante de + Petrarca tinha uma unica camisa. O poderoso arcebispo de Cantorbery e + outros altos ecclesiasticos tinham piolhos. Os burguezes vestiam-se de + couros mal curtidos, de um cheiro infecto. Os pobres cobriam-se de + palha. Em muitos pontos das Ilhas Britanicas conta um papa do nome + augusto de Vossa Santidade, Pio II, que não se conhecia a existencia do + pão. Os trabalhadores dos campos comiam herva e cascas de arvores. E era + já o seculo XV! No seculo XI, por occasião de uma fome, vendeu-se e + comeu-se cosida carne humana. A medicina tinha passado de moda, + desprestigiada pelos padres. Tinham-a substituido as penitencias, as + promessas aos santos e as viagens ás ermidas. As reliquias faziam as + vezes de pharmacias. As pestes afugentavam-se não com medidas + sanitarias, mas com preces. Para curar os males da humanidade, conta + Draper que varias abbadias possuiam a corôa de espinhos do Salvador; + onze igrejas conservavam a lança que trespassou o sacratissimo lado; nas + guerras santas os Templarios vendiam como panacéa universal garrafinhas + de leite da Virgem Maria; em um mosteiro de Jerusalem guardava-se n'um + relicario um dedo—do Espirito Santo. A chuva e o bom tempo + determinavam-se com orações. Era egualmente com orações que se combatiam + os eclypses e as trovoadas. O cometa de Halley foi exorcismado e + enxotado do céo pelo papa Calixto III, que o amaldiçoou em nome de Deus. +</p> +<p> + N'esse estado das coisas e n'esse estado dos espiritos um serviço + enorme foi inconscientemente prestado pelo papado á civilisação e á + humanidade. Das peregrinações á Roma pontificia sairam as duas maiores + revoluções do mundo moral: do jubileu do principio do seculo XIV saiu + Dante com a <i>Divina Comedia</i> e a reconstituição do direito pelo + sentimento: do jubileu do seculo XVI saiu Luthero com a <i>Reforma</i> e com + a liberdade do pensamento humano. <i>Alea jacta erat!</i> +</p> +<p> + Desde então até hoje, Santissimo Padre, que serie enorme de revoluções + successivas e incruentas, determinadas pelo livre espirito do homem, + cortando lentamente a corrente tenebrosa das perseguições, boiando + sempre progressiva e sempre victoriosa sobre o occeano de sangue e de + puz com que a superstição ecclesiastica e o auctoritarismo monarchico + procuram debalde afogar o advento da nova era! Os reis oppõem os seus + exercitos; a igreja oppõe as suas excommunhões; o seu inferno, em que ha + o ranger dos dentes por todos os seculos dos seculos sem fim; os seus + carceres em que a lepra corroe até á medula os ossos dos condemnados; os + seus tormentos, em que ha o fogo lento, a grelha, o forno rubro, o + borzeguim que se descalça levando comsigo, palpitantes, todos os + musculos e todos os nervos das pernas, a pua que fura as unhas e o torno + que esmaga os ossos do craneo e faz rebentar o cerebro como um abcesso + espremido. +</p> +<p> + E tudo é em vão! A sciencia intemerata prosegue, inerme e candida, sem + haver feito uma unica victima, sem uma só gota de sangue derramado, sem + uma só lagrima vertida! E deante da branca visão benigna que se + aproxima, o dogma espavorido recúa mais profundamente fulminado por um + simples raciocinio humano de que nunca o foi a mais fraca das almas + deante da colera implacavel e infinita dos deuses immortaes. +</p> +<p> + Tudo quanto atravez de toda a historia moderna a auctoridade tem + procurado conservar pela força se tem fatalmente destruido pelo tempo. O + que a auctoridade e a força têem conseguido é unicamente atrazar o + movimento intellectual, determinando os longos periodos estacionarios da + humanidade. Pelo contrario tudo quanto a sciencia iniciou se transmittiu + de idade em idade, se desenvolveu, se relacionou, se perpetuou. Nem uma + unica semente lançada á terra pelo trabalho e pelo estudo deixou ainda + de vingar e de frutificar em resultados decisivos de tolerancia, de + paz, de liberdade e de justiça. +</p> +<p> + Na astronomia, na physica e na chimica, na geologia, na meteorologia, na + zoologia, na medecina, na philologia quantos descobrimentos novos! E + cada novo descobrimento é uma conquista nos dominios da Igreja, dominios + que ella successivamente cede na mesma proporção em que a sciencia + caminha. +</p> +<p> + É um novo diluvio aquelle de que a historia do pensamento humano nos + offerece a imagem caudalosa e tremenda. A inundação espraia-se no vasto + campo da theologia, e vemos ao longe, fugindo desgrenhadas, as ultimas + superstições, medonhas como os grandes monstros pre-historicos que vão + ser tragados pela vaga. +</p> +<p> + Cançada de combater a theologia finalmente rende-se. Tendo perseguido + Galileu, Giordano Bruno, Savanarola, Averroes, Luthero, tendo combatido + todos os iniciadores de um novo systema do universo ou de uma nova + comprehensão dos destinos do homem, a Igreja vê apparecer + <a id="Darwin" name="Darwin" >Darwin</a>, e nem se quer tenta lutar! +</p> +<p> + O transformismo, revelado por Lamarck, supitado um momento na Academia + Franceza sob a auctoridade funesta de Cuvier, é finalmente definido e + promulgado, e todo o immenso edificio theologico da creação do mundo e + do homem cae aluido pela lei da adaptação e da seleção natural na luta + pela existencia. +</p> +<p> + Ás grandes revoluções nas sciencias physicas e naturaes succederam-se + modificações equivalentes nas theorias e nas praxes da vida social, na + economia, na administração, na politica, no sentimento, na critica, na + poesia, na arte, na moral e na propria religião. +</p> +<p> + Da philosophia zoologica de Darwin sae um Deus como religião alguma + tinha até hoje tido o poder de concebel-o, o unico Deus compativel com a + noção da sabedoria infinita. Segundo os systemas da creação anteriores + ao transformismo, e adoptados pela Igreja, Deus era o auctor de um + universo que elle successivamente revia e emendava, depois de cada um + dos cataclismos que passavam por cima da sua obra, como passa uma + esponja sobre uma operação incorrecta. Segundo a theoria darwiniana, + experimentalmente demonstrada e contraprovada pelos mais sabios + analysadores, Deus não revê, Deus não corrige, Deus não se emenda, Deus + não se aperfeiçôa sendo assim perfectivel e portanto imperfeito, como + fatalmente deveriamos admittir que o era acceitando a doutrina do + Genesis e a critica paleontologica de Cuvier e de todos os adversarios + de Lamarck de Goethe, de Darwin e de Haeckel. +</p> +<p> + As especies extinctas não foram cortadas pelo Creador no livro da terra + como por meio de um signal posto á margem na prova de uma segunda + edição. +</p> +<p> + Os orgãos rudimentares dos animaes, os orgãos que não têem funcção, + deixaram de ser excrecencias de stylo inadvertidas pelo auctor ou + empregadas por elle com um intuito de ornato rhetorico. Se o homem, por + exemplo, tem em estado rudimentar e na atrophia de uma inercia de + milhares de seculos, uma cauda indicada pelas suas vertebras falsas, se + tem mamillas sem amamentar, se tem utero sem conceber, se tem um segundo + estomago sem ruminar, escusamos já hoje de explicar estes factos por um + descuido indolente ou por uma emphase premeditada na confecção do nosso + organismo. A evolução genealogica de todos os seres e a sua procedencia + de um tronco ancestral commum, descoberta e provada pela lei de Darwin, + basta para nos explicar cabalmente todas as apparentes anomalias da + creação sem quebra da infalibilidade suprema. +</p> +<p> + Assim o Deus revelado ao mundo pelos modernos philosophos theistas é o + unico Deus omnipotentemente sabio, o unico Deus verdadeiramente divino, + porque não procede na obra da creação por emendas, revisões successivas, + reedições augmentadas e correctas, como o Deus theologico: Elle cria a + vida no atomo primitivo vogando na immensidade, deixa cair a cellula + primordial nas profundidades fecundas do Mar Tenebroso e ordena-lhe que + se desenvolva dentro de uma lei prefixa. Depois do quê não só não + descansa, não só não revê, não só não modifica, mas nem sequer espera, + porque infinito Elle mesmo, e prehenchendo o infinito no espaço e o + infinito no tempo, possue em si proprio, completa, a infinita evolução. +</p> +<p> + Surge finalmente invencivel na sociedade contemporanea um novo poder + temporal, o poder da industria, e um novo poder espiritual—o poder da + consciencia na comprehensão da solidariedade humana. +</p> +<p> + Vae pois longe, dercorrida ha muitos annos a idade ingenua em que o + genero humano acreditava na virtude das peregrinações aos santos + logares! +</p> +<p> + Compare Vossa Santidade a primeira e a segunda cruzada com esta que nós + outros, portadores do album em que escrevemos estas linhas, acabamos de + emprehender e de levar a cabo em comboyo de recreio de ida e volta, a + preços reduzidos, guiados pelo padre Conceição Vieira, um sacrista, e + pelo Pedro de Alcantara, um grotesco! E estes dois sujeitos são quanto + pudemos obter como successores de Pedro Eremita e de Godofredo de + Bulhões. +</p> +<p> + Somos noventa e nove, de um paiz de quatro milhões de habitantes, o + menos instruido de todo o orbe christão, aquelle em que por mais tempo + vigorou, com detrimento do nosso senso commum e um pouco tambem da nossa + pelle o despotismo da inquisição e do direito divino. Isto ainda assim + não obsta porém a que deixassemos na patria tres milhões novecentos mil + novecentos e um individuos que não quizeram vir, perdendo assim a + indulgencia plenaria e deixando de resgatar as suas almas das penas + eternas a troco da modica quantia de dezeseis libras, ida e volta, em + segunda classe! +</p> +<p> + Porque elles entendem—principalmente depois que o fogo do Santo + Officio deixou de afervoral-os—que não é facil despir os peccados como + se despe um collete de flanela, descalçar a culpa como se descalçam as + chinellas de trazer no quarto, e pendurar a responsabilidade como se + pendura a <i>robe de chambre</i> para envergar a <i>toilette</i> redemptora de uma + viagem a Roma. +</p> +<p> + Parece-lhes que o Diabo não é tão tolo como alguem o presume, e que, se + elle tiver, por exemplo, a idéa de filar o padre Conceição Vieira ou o + <a id="Marnoco" name="Marnoco" >padre Marnoco</a> + para os referver no caldeirão destinado á classe + ecclesiastica apanhada em peccado, não será porque os mesmos Conceição e + Marnoco lhe digam que estão afivelando a chapeleira para ir buscar as + indulgencias a Roma, que o Diabo crusará os braços e deixará escapar-lhe + sob essa evasiva, aliás engenhosa, uma tão interessante presa. +</p> +<p> + Estão profundamente convencidos—os herejes!—de que, acima da + auctoridade dos pontifices, que teem o poder de resgatar as culpas e de + franquear a entrada no reino dos céos, está um outro poder mais alto—o + poder da incorruptivel consciencia, segundo o qual não é pelas romagens + divertidas nem pelas orações authomaticas, nem pelas estereis + penitencias, mas sim pela simples pratica do dever, austero e + inilludivel, que cada um se affirma como verdadeiro justo. +</p> +<p> + Acham ridiculo um céo em que tenha de sentar-se, glorioso e triumphal, á + mão direita do Deus da Justiça, um padre Marnoco—simplesmente porque + obteve as indulgencias no jubileu pontificio, em quanto á mão esquerda + fique ardendo nos tormentos eternos um Lincoln, que pacificou a America, + que deu a paz a tres milhões de negros e que, depois de uma vida toda + consagrada á justiça e á abnegação, entrou finalmente na eternidade pela + porta do martyrio, coberto com a benção da humanidade e com a benção da + historia, mas sem a benção dos papas. +</p> +<p> + Santissimo Padre! estas convicções profundas d'aquelles que não vieram a + este jubileu, não podemos deixar de vos dizer n'este album,—como + seríamos forçados a dizer-vol-o, se estivessemos aos vossos pés n'uma + confissão geral, humildes e contrictos, batendo nos peitos,—estas + convicções dos que não vieram são tambem no intimo das nossas almas as + convicções de todos os que nos achamos aqui, quer chegados das + occidentaes praias lusitanas, quer procedentes de qualquer outra região + do globo. +</p> +<p> + E a evidente prova de que a nossa fé está irremissivelmente apagada e + precisa de se reconstituir em novas bases, é que, no tempo em que o papa + era o imperador e o Cesar, no tempo em que elle brandia uma espada de + justiça e de guerra, meio milhão de homens rojados aos seus pés estariam + prontos a recomeçar as guerras santas ao seu minimo aceno. +</p> +<p> + Hoje vós proclamaes que sois captivo, que sois ultrajado, espoliado, + perseguido, e entre todos os que vos trazem offertas não ha um só que + seja capaz de derramar o seu sangue para vos restituir a liberdade que + dizeis perdida e o poder que dizeis violado! Beijamos devotamente o + vosso pé sacrosanto; depois do quê, em vez de enristarmos uma lança, + vimos para a rua com as mãos nos bolsos e um charuto nos beiços ver + desfilar em pelotões marciaes os esveltos <i>bersaglieri</i> da Italia + unificada. +</p> +<p> + Debalde nos dizeis que «os pedreiros livres atacam a religião e chamam + os catholicos a combater.» Os pedreiros livres são bem lastimaveis se + não teem mais nada que fazer do que chamar-nos ao combate! A verdade não + se alimenta com sangue, alimenta-se com principios, e não necessita de + victimas, necessita unicamente de razões: é precisamente n'isso que ella + se distingue do erro e da mentira. +</p> +<p> + Se os pedreiros livres querem por força combater, a resposta mais + sensata ao seu convite aos catholicos é mandar-lhes um medico que os + sangre e lhes prescreva os debilitantes. Que os senhores pedreiros + tenham a bondade, antes de nos reptar ao combate, de experimentar a + dieta! +</p> +<p> + Emquanto á guerra, não! Oh! não! Esse é um privilegio dos reis. Hoje só + os reis, e algum tanto tambem os diplomatas, é que fazem as guerras. Por + uma razão muito simples: é que só elles as pódem fazer por um modo + exclusivamente verbal,—mandando partir os seus exercitos. +</p> +<p> + Quando os exercitos se lembrarem de mandar partir adeante os reis e os + diplomaticos, teremos então firmada para todo sempre a paz geral. +</p> +<p> + Concluindo pois, Santissirno Padre, dignae-vos de lançar-nos a vossa + benção e de nos permittir que a transmittamos a todos os nossos + concidadãos, que saberão devidamente presal-a sendo enviada por quem é, + como vós, um ancião veneravel, cuja longa vida é para todos os que + trabalham e para todos os que soffrem um nobre exemplo de constancia nos + principios, de firmeza na luta e de resignação na derrota. +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + Sua alteza o principe real, herdeiro presumptivo da corôa, acaba de + tomar a primeira communhão. +</p> +<p> + Comparecendo pela primeira vez no tribunal da graça aprendeu sua alteza + a theoria do resgate da culpa pela penitencia. +</p> +<p> + A familia real e a côrte reuniram-se solemnemente no templo para verem + ensinar a esse menino por que methodo facil os reis podem deixar na + terra o oprobrio e enfiarem no entanto para o ceu o mais candido vôo, + alados pelos anjos que, ao som da musica da real capella e ao signal da + benção lançada pelo sacerdote, baixam aos reaes paços a pegarem ao collo + nas almas dos principes devidamente desobrigados. +</p> +<p> + Dizem todos os jornaes que foi extremamente edificante e commovente + esse augusto espectaculo. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Para ministrar ao principe a sagrada eucharistia foi chamado + expressamente do Porto o sr. bispo D. Americo. +</p> +<p> + Parece-nos—comquanto não ouzemos dizel-o sem uma reserva profundamente + timida—que sendo a communhão um acto puramente religioso, seria talvez + mais consentaneo com a humildade christã que o sr. bispo D. Americo não + fosse chamado, que se não fizesse da pratica de um sacramento uma + distincção aristocratica, e que sua alteza commungasse simplesmente como + os demais christãos na igreja da sua freguezia e pelas mãos do seu + parocho. +</p> +<p> + Poderão objectar-nos que, não comprehendendo as abluções do rito senão + as pontas dos dedos no sacrificio da missa e sendo as <i>douches</i> + applicadas unicamente aos sacerdotes pelo bico de um galheta, ha + parochos que, por não ultrapassarem as prescripções liturgicas teem nas + suas lobas tantas nodoas como botões, e não sómente cheiram + penetranremente ao fumo do incenso e ao murrão dos cirios, mas cheiram + tambem algum tanto a saes ammoniacaes e a uréa, d'onde poderia resultar + que no banquete eucharistico a qualidade da baixella desgostasse o + principe da pureza mystica do manjar. +</p> +<p> + A essa objecção respondemos que seria mais economico e talvez mesmo mais + efficaz para remedio do baixo clero que, em vez de só mandar vir o sr. + D. Americo, deslocando-o dispendiosamente da sua diocese com os seus + famulos e a sua mitra, se mandasse chamar simplesmente o sr. Cambournac. +</p> +<p> + Porque—acreditem-o—não é com a presença do illustre e correcto bispo + portuense, nitidamente barbeado, perfumado pelo uso de bons comesticos, + com bellas meias de seda escrupulosamente esticadas por um destro <i>valet + de chambre</i>, com fina roupa branca e lustrosas unhas esmeradamente + limadas e polidas, não é com exemplos que deslumbram que se ha de obstar + á decadencia das nossas batinas. Ellas em Portugal não querem por + emquanto exemplos. O que ellas querem é directamente benzina. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Se, porém, se entende definitivamente que á mesa da communhão devamos + nós os catholicos aproximar-nos por cathegorias e por classes, como á + mesa dos paquetes, então pedímos uma tarifa para regularisação do + serviço ecclesiastico. Que a Igreja nos diga definidamente quem são os + passageiros da terceira classe que commungam na tolda com a marinhagem e + quaes os escolhidos com direito a receberem a communhão á mesa do + commandante! +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Depois da ceremonia religiosa, accrescentam os jornaes, que fora servido + no paço um opiparo almoço aos dignatarios da côrte e ao alto clero. + Esperamos que o sr. patriarcha fazendo aos poderes temporaes o duro + sacrificio de não cumprir o preceito jejuando, pozesse ao menos a + condição de que a sua costelleta fosse de bacalhhau! +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + A narração feita pelo capitão Cameron da sua viagem no continente + africano veio levantar em Portugal, entre alguns incidentes, a seguinte + questão: +</p> +<p> + O que devemos fazer para manter por meio de medidas civilisadoras o + dominio das nossas colonias? +</p> +<p> + Para isto ha uma unica resposta: Para dominar o que se deve fazer é + crear faculdades dominantes. +</p> +<p> + Quem tem força para dirigir manda; quem a não tem serve. +</p> +<p> + A escola dos grandes exploradores e dos colonisadores é a escola da + força nos individuos. Quando Stanley deu pela primeira vez conta em uma + conferencia em Londres, da viagem que fizera em procura de Levingstone o + argumento que mais convenceu o publico de que o conferente não era um + simples phantasista foi a expressão energica da sua figura agigantada, a + sua saude de Hercules e os fortes pulsos com que na gesticulação elle + parecia estar outra vez abatendo e supplantando de novo aos olhos do + auditorio os obstaculos com que dizia ter luctado. +</p> +<p> + Deante de um retrato do capitão Cameron sentimos a mesma impressão, que + explica o successo de uma empreza difficil e perigosa pela decisão e + pela firmeza do que a emprehende. A physionomia um pouco espessa e dura + de Cameron, o seu grosso pescoço solidamente plantado entre uns hombros + athleticos são para a consideração de todos os inglezes os mais bellos + attributos de raça, o mais apreciavel caracteristico de uma distincção + privilegiada. Porque na educação ingleza a saude, o vigor muscular, a + força physica são o objecto de um culto. +</p> +<p> + Nos collegios Eton, Rugby, Harrow, os jogos athleticos, a pella, o + exercicio do remo, a carreira, o <i>foot ball</i>, o <i>cricket</i> occupam todos + os dias algumas horas de applicação. Duas vezes por semana, quando + menos, as aulas terminam ao meio dia para darem tempo aos exercicios + physicos. As contendas entre os alumnos decidem-se ao pugilato, deante + de testemunhas, com padrinhos que estabelecem as condições do combate, + que amparam o vencido, que lhe refrescam com agua as contusões, porque + estes encontros não terminam sem um ou outro ou ambos os contendores + ficarem com um olho pisado, um dedo partido, ou um beiço esmurrado por + um dos socos do adversario. Toda a creança que se exhime a liquidar n'um + combate leal as suas pendencias de honra é despresada pelos seus + camaradas e considerada como incapaz de vir a ser jámais um verdadeiro + <i>gentleman</i>. +</p> +<p> + Do collegio passam os alumnos creados n'este regimen durante a + adolescencia para as universidades, onde a mocidade se desenvolve sob um + regimen egual: conhecem-se as celebres regatas no Tamisa entre as + equipagens das duas universidades de Oxford e de Cambridge. Os + estudantes ricos exercitam-se e fortificam-se ainda montando a cavallo, + caçando a raposa, governando a quatro. Para se tornarem vigorosos e + dextros, creanças, moços, adultos, homens de quarenta e cincoenta annos, + outros muito mais velhos, como por exemplo lord Palmerston, cumprem as + mais severas prescripções hygienicas, submettem-se a uma alimentação + especial, absteem-se de todo o excesso que prejudique o desenvolvimento + systematico da musculatura. Os principaes divertimentos nacionaes são os + exercicios de agilidade e de força. Ha <i>crickters</i> que teem ido jogar + partidas solemnes de Londres á Australia. +</p> +<p> + Em Lisboa vivem dois inglezes que vão frequentemente a Cintra a pé, + levam as suas espingardas, passam o dia a caçar nos Capuchos e + regressam á noite sempre a pé. Tripulam uma pequena embarcação com a + qual teem batido em muitas apostas todos os catraeiros do Caes do Sodré. + Ha poucos dias foram ao Porto expressamente para regatar com o club + d'aquella cidade. Foram vencidos pelos do Porto. Depois da regata havia + uma partida de <i>cricket</i>. Um dos inglezes a que nos referimos + sustentou-se no campo cinco horas consecutivas sem nunca sair do jogo. + Dois officiaes a bordo de um dos navios da ultima esquadra que esteve no + Tejo partem a pé de Lisboa, pela manhã, vão a Mafra, passeiam na mata, + percorrem todo o enorme edificio do convento, almoçam um bife e voltam a + pé a Lisboa, chegando a tempo de estarem em um jantar de convite, á hora + fixada, lavados, perfumados, frescos, com os seus uniformes de <i>soirée</i> + e uma rosa de Mafra na casa da farda. +</p> +<p> + D'estes factos e de muitos outros equivalentes, que seria prolixo + enumerar, deduz-se que o assumpto de uma conferencia, que não vemos por + emquanto citada entre as que nos annuncia a Academia ácerca da + <a id="africana" name="africana" >civilisação africana</a>, + poderia intitular-se: <i>Da influencia do «sport» no + caracter dos povos exploradores</i>. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + A Academia póde muito bem civilisar a Africa pelo modo mais + superiormente sabio na rua do Arco a Jesus, mas não seria talvez + inteiramente ocioso o perguntar quem é que ha de ir levar aos interiores + inhospitos da Africa as bases elementares d'essa civilisação. Não ha + duvida que é possivel mas não é completamente inaccessivel a algumas + objecções a hypothese de que os negros se queiram desde já civilisar a + si mesmos e venham expressamente para esse fim á Academia escutar. Ao + passo que, por outro lado, as prelecções dos illustres academicos não se + distinguem das conferencias feitas em Paris e em Londres pelos viajantes + extrangeiros unicamente no facto de encararem os assumptos por um ponto + de vista contrario, distinguem-se ainda pela particularidade de que os + srs. Cameron e Young fizeram as suas exposições depois de chegarem, e os + srs. academicos, com excepção do sr. José Horta, fazem as suas um + poucochinho antes de partirem. Isto em nada prejudica o valor real da + doutrina academica, que de modo algum menospresamos. O que pretendemos + simplesmente notificar é que talvez não seja facil encontrar-se de + pronto quem vá traduzir em bunda ao gentio de Africa a prosa eloquente + e vernacula dos civilisadores inamoviveis da metropole. Não é facil + encontrar esses homens, porque a raça dos nossos antigos expedicionarios + abastardou-se e extinguiu-se na molleza dissoluta dos costumes modernos. +</p> +<p> + Folheem-se os velhos chronistas, examinem-se os retratos dos homens dos + nossos descobrimentes e das nossas conquistas: +</p> +<p> + Affonso de Albuquerque, aos sessenta e tres annos de idade, cercado dos + desgostos mais profundos, arrosta durante cinco mezes com os estragos + devastadores da terrivel dysenteria asiatica, porque—diz João de + Barros—<i>como era fragueiro e pouco mimoso de sua pessoa só se lançava + em cama, quando mais não podia</i>. Albuquerque que em saude reunia á força + physica a grande força moral da alegria—<i>era homem de muitas graças e + motes, e em algumas melancolias leves, no tempo de mandar, soltava + muitas, que davam prazer a quem estava de fóra,</i>—assim tocado de morte + por uma enfermidade que não perdôa nunca, reune conselho de capitães, + nomeia o seu successor põe bôa ordem em todos os negocios da + administração da India, escreve a el-rei a famosa carta, modelo de + hombridade e de independencia, cujo autographo se conserva na Torre do + Tombo, despede-se do rei de Ormuz, e faz-se ao mar em um dos seus + navios, onde expira, tendo fulminado a incompatibilidade das monarchias + com o direito por via da conhecida phrase: <i>mal com o rei por amor dos + homens, mal com os homens por amor do rei</i>. +</p> +<p> + O infante D. Henrique—segundo o mesmo João de Barros—<i>tinha largos e + fortes membros acompanhados de carne: a côr da qual era branca e corada, + em que bem mostrava a boa compleição dos humores. Tinha os cabellos + algum tanto alevantados, e o acatamento</i> (<i>por a gravidade de sua + pessoa</i>) <i>um pouco temeroso a quem d'elle não tinha conhecimento.</i> +</p> +<p> + Do conde Duarte de Menezes, a quem D. Affonso V deu a capitania de + Alacer-Ceguer, e que foi um dos heroes da Africa, diz Gomes Eanes de + Azurara: «Foi este conde de baixa estatura de corpo, enformado em + carnes, e de cabellos corredios, e graciosa presença, embargado na + falla, e homem de grande e bom entendimento, pouco risonho nem + festejador, tal que quasi do berço começou de ter auctoridade e + representação de senhorio. Foi muito amador de verdade e de justiça, + <i>mui temperado em comer, e beber, e dormir, e soffredor de grandes + trabalhos, tanto que parecia que elle mesmo se deleitava em os haver, + porque quando lhos a necessidade nom apresentava elle por si mesmo os + buscava</i>. E segundo entender dos homens nem se desenfadava tanto em + outra cousa, como nos feitos da cavallaria, como aquelle que quasi do + berço usara o officio das armas.» +</p> +<p> + Diriamos estar vendo colorida no stylo das nossas velhas chronicas a + photographia moderna de um <i>sportman</i> da Grã-Bretanha. +</p> +<p> + Do mesmo Duarte de Menezes diz Schoeffer: «O poder que tinha sobre si + mesmo, a sua gravidade natural, que raras vezes interrompia por um + sorriso, e sobretudo o seu juizo são e a sua alta intelligencia + tornavam-o <i>proprio para o commando</i>.» +</p> +<p> + O infante D. Pedro, o que, segundo o proloquio popular, <i>viajou as sete + partidas do mundo</i>, era alto e magro; diz Schoeffer que a suavidade do + seu olhar abrandava a impressão de receio produzida pela sua estatura e + pelo seu rosto fortemente carregado; «irado tinha um aspecto que + infundia terror». +</p> +<p> + Os corações eram de uma tempera inquebrantavel, hostil á + sentimentalidade e á ternura. Em um combate no assedio de Alcacer, + Martim de Tavora arranca do poder dos moiros a golpes de espada o seu + fidagal inimigo Gonçalo Vaz Coutinho, verte para o conseguir o seu + proprio sangue, arrisca eminentemente a sua vida, e quando Gonçalo Vaz + lhe pergunta como viverão d'ahi em diante, Tavora responde-lhe + duramente: «Como dantes.» E a inimisade dos dois continuou inabalavel. +</p> +<p> + Os que eram dados ao galanteio das damas commoviam-as mais pela asperesa + varonil do aspecto do que pela suavidade effeminada das formas. +</p> +<p> + Na lenda dos doze que foram bater-se na corte de Londres pelas damas do + Palacio, o Magriço diz á loura <i>miss</i> que depois do combate ia + deitar-lhe agua ás mãos: «Sabei, senhora, que as minhas mãos, segundo as + tenho assim tão grosseiras e cabelludas, poderão ser-vos molestas e temo + que vos causem desgosto.» Ao que a mimosa ingleza replica fazendo sentir + ao calejado e cabelludo cavalleiro que a bella mão de um homem é a que + denota pelo seu aspecto não dedicar-se ás caricias molles, mas sim aos + fortes trabalhos que teem como fim a honra e como premio o amor. +</p> +<p> + O Vasco da Gama era de um porte tão exforçado e valoroso, que o rei D. + Manuel, hesitante na escolha do homem a quem devia entregar o commando + da expedição projectada, vendo-o atravessar por acaso na sala em que ia + sentar-se á mesa para jantar, determina que seja aquelle o que vá + descobrir-lhe a India. +</p> +<p> + O modo como o Gama esmaga a seu bordo a conspiração dos pilotos basta + para provar que D. Manuel tinha o olho prescrutante que adivinha os + homens pela cara. Sacudido pela tempestade temerosa no meio de empresa + de tanto risco e de tamanha aventura, quando a guarnição desalentada e + espavorida pede em todos os navios da frota que se arribe, que se + regresse á patria, o Gama prende a um por um todos os pilotos cabeças do + motim, carrega-os de ferros, encarcera-os no porão, intima-os a que lhe + entreguem «quantas cousas tinham da arte de navegar» sob pena de os + enforcar a todos, e havendo na mão as cartas que os deviam orientar na + volta, lança tudo ao mar, exclamando: «Olhae que não tendes mais mestres + nem pilotos nem quem vos ensine o caminho de hoje em diante. A Deus vos + encommendae e pedi misericordia, e a mim de hoje ávante ninguem me diga + que arribe; porque de mim sabei certo que, se não achar recado do que + venho buscar, não voltarei nunca mais.» +</p> +<p> + Ao que a guarnição se submetteu com a docilidade de quem não tinha senão + dois caminhos que escolher n'aquella viagem:—o da India ou o da morte. +</p> +<p> + O proprio Camões, o immortalisador das façanhas d'essa velha raça, era + elle mesmo um forte, um destemido, um lord Byron da Renascença. Os seus + costumes de audaz espadachim e de famigerado tranca-ruas crearam-lhe na + India conflictos arriscados, de cujas ameaças elle sorria dizendo: que + só era vulneravel pelas solas dos pés e que estas ninguem lh'as vira nem + havia de ver. +</p> +<p> + Em todas as altas figuras do nosso grande seculo se patenteia o typo + expressivamente caracteristico de uma forte raça privilegiada, hoje + extincta. +</p> +<p> + A Europa sahia apenas do regimen feudal. Conservavam-se vivas no coração + de todos os fidalgos as tradições da cavallaria. Os besteiros de conto + eram apenas uma debil tentativa do que deviam vir a ser mais tarde os + nossos exercitos permanentes. +</p> +<p> + Os grandes vassalos defendiam os seus foros com numerosas lanças, e nos + prasos em que não serviam o rei e a patria batendo-se com inimigos + extrangeiros, adestravam a mão em sortidas e escaramuças intestinas. + Quando não combatiam monteavam. +</p> +<p> + Tinham a educação da guerra, a experiencia das aventuras arrojadas e das + duras privações. +</p> +<p> + Os divertimentos publicos eram ainda os jogos guerreiros: o <i>tavlado</i>, + um exercicio de força, e as <i>canas</i>, um exercicio de destreza. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + A moderna educação portugueza esterilisou a sociedade para o fim de + gerar homens proprios para as lutas do trabalho nas regiões inclementes + em que é preciso arrostar com a fadiga, com o sol tropical, com as + febres dos rios podres. +</p> +<p> + Os cidadãos que em Portugal recebem alguma cultura de espirito + sacrificam-lhe de tal modo o seu desenvolvimento physico que não só não + podem levar a sua influencia e a sua dominação intellectual ao interior + da Africa, mas nem sequer a levam de Lisboa a Cascaes se lhes suprimirem + as facilidades do rebocador ou do carrão. +</p> +<p> + Sabemos que ha excepções, mas essas constituem uma vantagem pessoal de + poucos individuos, e não uma feição do paiz. +</p> +<p> + Na Inglaterra pelo contrario o <i>sport</i> está na mesma alma da nação, + completa o caracter do paiz. +</p> +<p> + O principe de Galles readquiriu depois da sua ultima viagem a + popularidade que antes d'ella tendia a fugir-lhe. O simples facto de ter + penetrado na India e de ter caçado as feras a tiro com risco de vida é + um dos seus mais poderosos titulos á estima publica. O <i>sport</i> é na + Inglaterra uma especie de religião. O inglez bem educado atravessa a + Africa por fanatismo. Simplesmente para a ter atravessado, e para ter a + gloria incomparavel de o poder referir ás sociedades sabias de + geographia, de zoologia, de botanica, de meteorologia, de anthropologia, + aos differentes clubs dos caminheiros da Inglaterra, da França e da + Suissa, deixando a enorme distancia atraz de si os seus compatriotas de + curto folego que apenas subiram ao Monte Branco ou percorreram a pé os + Pyreneus. +</p> +<p> + Ora sem esse fanatismo e sem esse enorme ecco na opinião e na + popularidade não ha paiz que se possa medir com a empresa enorme de + explorar e de civilisar as regiões salvagens. São insufficientes para + esse fim todos os esforços do governo, das sociedades geographicas, das + academias e de todas as agregações artificiaes de alguns individuos; é + preciso que o grande impulso parta do genio collectivo do povo. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + O povo pertuguez não está creado para esses movimentos energicos. Era + uma raça audaz, enthusiasta e forte. Preverteram-a com duzentos annos de + uma educação dogmatica e de uma disciplina fradesca. +</p> +<p> + Estamos como o filho de um homem que herda um estaleiro em que o pae + fazia navios e em que elle para sustentar a fabrica tem de brandir um + machado e de talhar madeira durante dez horas por dia. Ora esse filho é + um anemico, que não pode com a sua <i>badine</i>. O que ha de fazer? + Restaurar a sua constituição ou vender o machado e ir tossir para o + Martinho. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Contra os agentes da dissolução em que cahimos uma ou duas vozes em todo + o paiz protestam—o que até o dia de hoje 15 de junho, ás 11 horas e + meia da noite, tem sido completamente inutil. Deitam-se abaixo + livrarias, enegrecem-se com prosa official resmas de papel da Abelheira, + abrem-se conferencias publicas, organisam-se expedições,—tudo para dar + a entender ao mundo que somos um povo forte. E no entanto o povo + continua nas condições de abatimento em que estava, as quaes não podem + tornal-o proprio para o dominio, mas sim para a servidão. +</p> +<p> + Vimos já, ligeiramente esboçado, o quadro da educação inglesa. Vejamos o + espectaculo correspondente na nossa organisação social. +</p> +<p> + Olhem ao domingo e á quinta feira para um dos nossos collegios de + educação em passeio na baixa. Uma fieira de pequenos macilentos e + enfesados, encarreirados a dois de fundo, vestidos de preto ou com + falsos uniformes de guarda-marinhas, vigiados por dois padres. Que + differença dos collegiaes inglezes, com os seus chapeus de palha, a + blusa de flanella, o calção curto, a meia de lã, correndo livremente nos + campos, com os grossos sapatos cheios de lama, em plena liberdade, + entregues a si mesmos, responsaveis pelos seus actos, conscientes do seu + direito e do seu dever como pequenos republicos! +</p> +<p> + Em Portugal um cão fraldiqueiro pode andar sem perigo pelas ruas, + sabe-se governar, sabe-se dirigir, sabe morder, sabe voltar para casa; + um joven racional de dez ou doze annos, dos quaes cinco de escola sob a + pressão dos compendios do sr. João Felix, não aprendeu nada d'isso, e + precisa de um padre ou d'um aguadeiro que o leve pela mão para + atravessar a rua! +</p> +<p> + Essa miseravel creatura tem uma mãe que o não deixa saltar para que não + quebre as pernas, que o não deixa trepar para que não quebre a cabeça, + que o não deixa metter-se na agua fria para que não se constipe. Era + melhor que elle tivesse quebrado uma perna uma vez, que tivesse rachado + a cabeça quatro, e que se tivesse constipado dezeseis, e houvesse + aprendido assim a ser um principio d'homem, do que não ter passado por + nenhum d'esses desares e ser unicamente um lamentavel boneco, medroso e + covarde, que um gaiato, creado na lama da rua e tendo metade da edade + que elle tem, pode impunemente encher de bofetadas nas duas faces e + estofar de ponta-pés em todo o resto do corpo, servindo-se para isso dos + membros que não quebrou, nem a trepar, nem a correr, nem a deitar-se de + mergulho ao ribeiro, apezar dos perigos previstos pela mãe do molestado. +</p> +<p> + O primeiro acto da vida civil d'esse sujeitinho consiste em metter + empenhos para ser approvado em instrucção primaria. +</p> +<p> + A primeira gloria da sua existencia consiste em se considerar tão + importante personagem que sahiu approvado com dez valores, apezar de ter + passado a metter os dedos pelo nariz e a explorar exclusivamente esse + orgão todo o tempo destinado a aprofundar concomitantemente as doutrinas + do sr. Felix. +</p> +<p> + No anno seguinte começa a estudar as linguas e a fumar cigarros ás + escondidas. +</p> +<p> + Penetra finalmente na rhetorica e na leitura dos romances, em que passam + visões de mulheres que o tornam cada vez mais amarelo. +</p> +<p> + Chega da côr de uma cidra ao fim do curso dos lyceus, tendo, além de + todos os preparatorios, mau halito, as pernas cambadas, a espinha + torcida, algum tedio da vida e muita caspa. +</p> +<p> + Matricula-se então na faculdade de direito na universidade de Coimbra e + o primeiro effeito dos estudos superiores sobre a sua cabeça é + augmentar-lhe a caspa. +</p> +<p> + Depois a vida academica absorve-o e elle percorre toda a escala das + nobres loucuras de uma mocidade espirituosa e vivaz: empenha as piugas, + toca o fado, dá canelões nos caloiros, espanca os burguezes, faz algumas + canções «grivoises», entorna o môlho das ceias pelo peito da batina, e + regressa a Lisboa bacharel formado. +</p> +<p> + Tem vinte annos e fez vinte exames. Para cada exame pediu protecção a + tres individuos;—pediu protecção e pediu feriados; pediu humildemente, + inclinado, arrastando a capa, retirando-se ás arrecúas como uma pêga + assustada, sorrindo com um agrado pusilanime:—Sr. doutor, imploro + submissamente a valiosa protecção de v. ex.ª!... Sr. doutor, criado de + v. ex.ª!... Criado de v. ex.ª! ex.'mo sr. doutor ... +</p> +<p> + O espinhaço do bacharel traz feita de Coimbra a curva servil do + pretendente do Terreiro do Paço. +</p> +<p> + O que na universidade pedia, em Lisboa requer. É apenas a mudança de + nome: «—Sr. ministro, imploro submissamente a protecção de v. ex.ª ... + Criado de v. ex.ª, sr. ministro ... Ex.mo sr. ministro, humilde servo de + v. ex.ª ...» E sae ás arrecúas dos gabinetes dos ministros como saía dos + gabinetes dos lentes, dando-se o ar lastimoso de um cão pelludo ao + emergir da agua, com o seu velho sorriso deploravel, anediando a copa do + chapéo com o canhão da sobrecasaca. +</p> +<p> + Depois de ter cambado os tacões de cinco ou seis pares de botas nos + passeios por baixo da arcada das secretarias, o bacharel alcança o que + deseja. Um ministro despacha-o—para se ver livre d'elle. Consegue ser + empregado publico ou candidato governamental por um circulo do + continente ou do ultramar. +</p> +<p> + Desde então as engrenagens do machinismo official apoderam-se d'elle + para nunca mais o largarem. É um escravo. Perdeu a personalidade. + Pertence á grande legião. Vae para onde ella for, diz o que ella disser, + pensa o que ella pensar, dentro de limites intransitaveis, na distancia + prefixa do cepo a que o amarraram. +</p> +<p> + É assim que uma quantidade iunumeravel de individuos que formam a + classe dirigente vivem d'este cuidado unico: O cuidado de se não + comprometterem. Nunca mais dizem o que sentem. Nas suas idéas, nas suas + opiniões, na sua linguagem, tudo é riscado pela pauta official. Se + alguma vez do fundo do nojo que suscita esta dyspepsia moral lhes vem á + bocca uma verdade, engolem-a para baixo como o caroço de uma fruta + prohibida. +</p> +<p> + Como pelo desdem do trabalho vivem n'uma estreiteza pecuniaria visinha + da miseria, muitos se lançam á caça do casamento rico, e, vexando-se de + ser tecelões ou ferreiros, não se vexam de casar por interesse, e + acceitam para toda a vida a intimidade indissoluvel de uma mulher feia, + estupida, malcreada, sem espirito de ordem, sem methodo, sem a dignidade + do conforto e do aceio domestico,—a viva negação de todas as condições + que tornam a casa feliz e a familia amavel. +</p> +<p> + É d'esses consorcios sem idealidade e sem amor, contraidos fóra da mutua + dedicação que completa o homem pelo seu par e cria o verdadeiro + individuo social duplicadamente corajoso, digno e forte, que saem os + filhos dissolutos, os jovens cynicos, desdenhosos das affeições + honestas, hostis a todos os sentimentos de familia, cujos nobres + encantos nunca aprenderam a conhecer e a estimar. +</p> +<p> + D'esses consorcios procedem tambem as meninas futeis e pretenciosas, + frageis entes inuteis, a que falta a condição essencial da nobreza e da + dignidade da mulher—a comprehensão do <i>ménage</i>, o culto do santuario + domestico. Ellas refugiam-se da convivencia antipathica da sua familia, + constituida sem bases organicas, na religião, ou, para que o digamos no + termo mais preciso, na <i>igrejice</i>, e na leitura dos romances + sentimentaes. A <i>igrejice</i> e o romance são os dois pólos da sua vida + moral. +</p> +<p> + Como qualquer d'essas meninas desconhece completamente a arte de + cultivar e desenvolver os seus encantos de espirito e de caracter, um + instincto de aperfeiçoamento, desencaminhado pela educação, leva-a ao + cultivo do trapo como um fim de superioridade, e arroja-a no lastimavel + fetichismo dissipador da moda. +</p> +<p> + Ignora completamente todas as artes que constituem os elementos da + felicidade conjugal e que só por uma grande pratica e por uma longa + tradição se aprendem: a arte de se fazer bella pelo simples modo de atar + uma fita, de pôr em si uma flor, pela maneira de coser, de caminhar, de + se sentar n'um <i>fauteuil</i>, de pegar no talher, de estar á mesa; a arte + de dirigir a cozinha, de organisar a alimentação, de extrair da sua + chimica a alegria e a saude dos seus commensaes; a arte de arranjar a + casa, de lhe dar physionomia, de a obrigar a mostrar talento, a exprimir + idéas, a ter quasi conversação, fazendo respirar como coisas vivas nos + armarios as pilhas perfumadas da roupa branca, sorrir nas prateleiras da + casa de jantar o esmalte das loiças e o estanho reluzente das tampas das + canecas, estenderem-nos os braços as cadeiras do salão, e + solicitarem-nos a permanecer a côr dos cortinados, o tom dos estofos, o + assumpto dos quadros, a collocação dos moveis, a graduação da luz, a + frescura do ar, a nitidez geral do aceio e a sabia disposição dos livros + e dos jornaes sobre o panno da mesa. +</p> +<p> + A menina em similhantes condições de inutilidade raramente se casa, ou + se desquita do marido se algum dia o vem a ter. As suas inclinações + romanescas e doentias chamam-a para beata. De resto é essa talvez a sua + melhor maneira de ter um fim, porque, emquanto a ser mãe, prohibe-lh'o + physica e moralmente a accumulada estreiteza do coração e dos ossos. +</p> +<p> + Taes são, no caracter dos individuos de um e outro sexo, os frutos da + educação portugueza na classe mais preponderante da sociedade, aquella + que fórma a opinião e determina as tendencias do espirito publico. Com + similhante estado é irreconciliavel o genio explorador, a tendencia para + as viagens entre póvos barbaros e finalmente o poder de dirigir e de + dominar. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Como colonisadores temos apenas uma vantagem sobre os outros póvos + europeus: a sobriedade, que permitte aos nossos operarios alimentarem-se + com a simplicidade d'esses chins cuja concorrencia, pelo simples facto + d'elles se satisfazerem não comendo senão arroz e não tendo outra + baixella senão dois paus, faz tremer todos os trabalhadores do mundo. +</p> +<p> + Mas esta grande virtude de raças inferiores, caracteristica + principalmente dos nossos operarios do Minho e de Traz-os-Montes, é + insufficiente para nos conservar o dominio de extensos territorios, que + se não arroteiam para a civilisação senão pelo esforço combinado de + altas faculdades administrativas que não temos, de uma grande robustez + physica que tambem não temos, e de um enthusiasmo impulsivo e + desinteressado, tirado de uma grande corrente nacional das mesmas idéas + e das mesmas convicções, o qual egualmente nos falta. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Nenhum phenomeno mais expressivo da nossa anarchia administrativa e da + nossa abdicação governamental do que o estado da nossa marinha. +</p> +<p> + Em todo o paiz colonial e maritimo a industria da pesca é a escola em + que se iniciam os marinheiros. A pesca é a infancia da marinha. A + Hollanda comprehendeu admiravelmente essa verdade, e a industria + piscatoria é desde muitos annos objecto dos cuidados e das attenções + mais desveladas por parte do governo hollandez, cuja marinha é hoje + florentissima. Essa marinha constituiu-a a Hollanda attraindo, com + grande augmento de salarios, os pescadores biscaynhos que iam á pesca da + baleia ao cabo de Finisterra. +</p> +<p> + As pescarias no mar largo, como a da baleia e principalmente a do + bacalhau, são particularmente favorecidas por todas as nações maritimas + com grandes premios conferidos pelo estado. É na classe numerossima dos + tripulantes de milhares de navios empregados nas chamadas <i>grandes + pescas</i> que se recrutam os marinheiros das armadas europêas. +</p> +<p> + O governo francez protege, com grandes subsidios na armação dos navios e + com avultados premios sobre o pescado importado, as suas pescas do + bacalhau, cujo producto augmenta extraordinariamente os recursos + alimenticios do paiz, elevando-se o seu valor em dinheiro á somma de 17 + milhões por anno. A pesca do bacalhau emprega em França 400 navios e 12 + mil marinheiros. +</p> +<p> + Um facto bem notavel e digno de ser ponderado pelos legisladores + portuguezes é que a prosperidade e o progresso da França teem sido + marcado, como a temperatura em um termometro, pelo desenvolvimento ou + pela estagnação das suas grandes pescas! No tempo da emancipação + communal a pesca do bacalhau desenvolve-se enormemente; cae com a + corrupção monarchica do regimen despotico; revive deante das medidas + legisladas pela Revolução. +</p> +<p> + Talvez o governo ignore as condições em que actualmente se tributa o sal + que os pescadores francezes nos compram com destino ao seu bacalhau. Os + navios francezes que veem ao nosso porto fornecer-se d'esse genero fazem + fiscalisar o seu carregamento pelo respectivo consulado; o consul + francez remette ao seu governo a nota dos moios de sal carregados em + Lisboa e cujos direitos de importação em França são pagos no porto + d'onde o navio partiu pelo proprietario responsavel por este imposto. + D'este modo evita-se todo o contrabando na importação do sal: os + direitos estão pagos na razão de 50 centimos por cem kilogrammas. Quando + porém o navio que carregou em Lisboa volta a França com o sal empregado + nos bacalhaus que pescou, o governo restitue-lhe os direitos + anteriormente percebidos, não já na razão de 50 centimos por cada cem + kilogrammas de sal, mas sim na de 13 francos por cada cem kil. de + bacalhau. É assim que na questão de um simples imposto se revela o plano + de um paiz para o qual a administração tem um fim de progresso. +</p> +<p> + Portugal possue no mar dos Açores, segundo a asseveração de varios + navegantes, um banco de bacalhau que muitos julgam superior ao da Terra + Nova, o qual se diz descoberto por um portuguez Gaspar Côrte Real. E + deixa morrer ao desamparo essa grande industria riquissima, a pesca de + um peixe precioso em que tudo se transforma em riqueza: as linguas + constituem um artigo especial presadissimo dos <i>gourmets</i>; dos + intestinos faz-se o melhor adubo da terra; do figado extrae-se o oleo + importantissimo para a industria e para a medicina; os ovos empregam-se + com grande vantagem na pesca da sardinha. +</p> +<p> + Apezar de Portugal ser um paiz privilegiado para a pesca do bacalhau, + pelo valor e pela pericia dos seus pescadores, pela posse do melhor sal + que se conhece para salgar o peixe e do melhor sol que ha para o secar, + o nosso governo despresa este importantissimo ramo da actividade + commercial, perdendo por esse mesmo facto a melhor escola pratica dos + nossos marinheiros e dos nossos navegantes. A grande pesca tambem é para + nós um symptoma da vitalidade nacional. Quando eramos fortes mandavamos + cincoenta ou sessenta navios de pesca para a Terra Nova. Hoje pescamos + na costa o carapau para o gato, servindo-nos de redes que deveriam ser + prohibidas, despovoando as aguas de pequenos peixes insignificantes, que + pelo contrario pesariam dois kilos e seriam um importante artigo + alimenticio, se tivessemos estudado os nossos apparelhos de pesca e + soubessemos legislar sobre a dimensão permittida ás malhas das redes. O + governo portuguez nunca deu a este assumpto, base de toda a exploração + colonial, um só instante de attenção. +</p> +<p> + O parlamento nomeia em cada anno uma commissão de pescas, que ainda não + serviu para mais nada se não para tributar o pescador. As especies de + peixes que frequentam as nossas costas estão por estudar. A piscicultura + não tem sido objecto de maiores disvellos que a ictyologia: nem uma só + medida tomada pelo Estado para repovoar as aguas das nossas costas e dos + nossos rios principaes; nenhum estudo feito sobre os botes e sobre os + apparelhos empregados na pesca. Assim o pescador considera o Estado, que + elle nunca viu representado senão pelo fisco, como um puro explorador. +</p> +<p> + Na Povoa de Varzim ha um antigo quebra-mar destinado a formar um porto + de abrigo, que nunca se concluiu. Todas as reclamações, todas as + instancias feitas para este fim teem sido inuteis. +</p> +<p> + Ha cerca de seis annos el-rei em pessoa visitou a Povoa acompanhado por + um dos seus ministros, o sr. Avelino, o qual em nome do soberano + prometteu aos pescadores que ia ser concluido o paredão. Até hoje ainda + se não accrescentou uma pedra áquelle monumento unico do desleixo + nacional! +</p> +<p> + E todavia o espirito aventuroso dos nossos antigos navegantes, que o sr. + marquez de Sousa Holstein acaba de procurar resuscitar com a sua + eloquente e erudita conferencia ácerca da escola de Sagres, está ali + vivo ao pé d'esse paredão em ruinas. Ha ahi tres mil homens que em cada + dia jogam as suas vidas com a mesma coragem com que nós aqui em Lisboa + jogamos as cartas. Os poveiros são os homens mais alentados e mais + robustos que tem Portugal. É raro o que se enterra no cemiterio da + freguezia. Morrem no mar, sob um céo de chumbo, estrangulados pela + inclemencia das vagas, á vista da terra, ao alcance das vozes das suas + mulheres e dos seus filhos, por lhes faltar o abrigo a que se destina o + quebra-mar de conclusão em projecto! Não ha um que saiba ler. Habitam em + terra um bairro infecto e miseravel. Os cações escalados, destinados á + alimentação no inverno, secam pregados ás portas interiores das casas. + Cheios de <i>vermine</i>, homens, mulheres e creanças, dormem no mesmo + quarto, n'uma promiscuidade horrorosa. A terra da patria dá-lhes apenas + um farol, que elles illuminam á sua custa, e um barco de salva-vidas, + que elles mesmos tripulam. E é para isso que elles, desgraçados, quasi + mendigos, pedindo esmola em bandos durante o inverno, pagam um imposto + annual de cerca de seis contos de réis, integralmente devorados pelo + fisco. +</p> +<p> + Imagine-se como elles lhe hão de querer e como a hão de amar, á querida + terra da patria! +</p> +<p> + A unica vingança que esses generosos lobos do mar tiram do Estado, que + tão vilmente os explora e os rouba, consiste em não darem nem um só + homem para o recrutamento maritimo. Não ha meio algum de os obrigar a + fornecer um recruta á armada. Preferem morrer mil vezes a servir taes + amos. +</p> +<p> + E eis ahi está o ultimo capitulo na provincia do Minho da historia, + feita pelo sr. marquez de Sousa, da escola dos navegadores portuguezes + fundada em Sagres pelo infante D. Henrique! +</p> +<p> + Como a administração das nossas colonias depende directamente da + organisação da nossa marinha, como a importancia da nossa marinha + depende da organisação das nossas pescas, a Academia prestou á + civilisação da Africa um serviço verdadeiro, não organisando + conferencias, mas tomando uma deliberação mais obscura e todavia mil + vezes mais importante: a de nomear o sr. Brito Capello, naturalista + adjunto do museu zoologico, para ir estudar ao longo do nosso littoral a + industria da pesca e de expôr os meios de a reorganisar. +</p> +<p> + Comtudo a opinião, que tem de julgar os factos, tão esclarecida é, que + applaudiu como um notavel beneficio patriotico a iniciativa das + conferencias—um espectaculo de erudição, e não teve uma palavra de + applauso para a missão do sr. Capello—o primeiro passo para atacar o + mal na sua verdadeira origem! +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Do estado verdadeiramente deploravel em que se acha a nossa força + maritima póde-se ter uma idéa pela recente medida tomada pelo governo de + convidar a servir na armada, mediante uma gratificação apregoada na + folha official todas as praças de infanteria ou de caçadores que para + esse fim se apresentem! O governo tem de um marinheiro esta + comprehensão:—que elle se fabrica por meio do abono de quatrocentos + réis por dia dados a um soldado de caçadores! +</p> +<p> + Mas, a não ser que o façam ao acaso ou que se determinem por uma + escolha baseada na côr dos olhos ou na fórma do nariz, que razões podiam + ter levado o governo a alistar na arma de caçadores um dos seus + recrutas? Suppomos que estas razões devem ser tiradas das condições em + que foi educado o recruta; que o fizeram caçador porque habitava as + montanhas, porque era um caminheiro, porque tinha a agilidade que dá a + luta com os terrenos escabrosos nas visinhanças das serras. Ora, sendo + assim, como querem sujeitar á vida sedentaria do mar e á familiaridade + das ondas esse montanhez, que nunca pegou n'um remo, que chegou das + Alturas de Barroso, do Marão ou da Serra da Estrella e que sente as + pernas enferrujadas e o pulmão opprimido desde que não anda mais de uma + legua por dia trepando saudosamente ás colinas que cercam o logar do seu + quartel? +</p> +<p> + Outro facto não menos expressivo é o que ha pouco tempo se deu com + alguns guarda-marinhas do nosso conhecimento em estação em Loanda. +</p> +<p> + Sabe-se que não ha plantas dos nossos portos da Africa, cuja navegação + se faz por meio de cartas inglezas. +</p> +<p> + Os jovens marinheiros a que nos referimos, impellidos por esta vergonha + da nossa marinha, quizeram levantar a planta do porto de Loanda. + Empregaram todos os esforços para obter os necessarios instrumentos, não + puderam conseguir senão unicamente a offerta de um bote, unico elemento + de trabalho que o governador se achava habilitado a pôr á disposição + d'esses extravagantes. Elles comprehenderam então que não tinham senão + uma coisa que consagrar aos destinos da patria; não era o talento, não + era a dedicação, não era o trabalho; era unicamente a saude. E foram + immolar o figado á administração nacional para bordo do seu navio, como + patos de engorda pregados pelos pés á respectiva capoeira. +</p> +<p> + Quando os nossos officiaes teem conseguido arruinar completamente as + suas visceras na inanição official das nossas estações de Africa, voltam + doentes á metropole e concluem a missão civilisadora que o paiz lhes + incumbiu tomando as aguas alcalinas de Vidago. +</p> +<p> + As aguas de Vidago são o fim supremo do seu destino militar. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Emquanto estas coisas se passam os inglezes, com um poder creador que + faz muitas vezes o elogio das suas faculdades inventivas, acham em cada + dia pretextos novos para intervirem com o <i>seu protectorado + humanitario</i> nos negocios do interior africano, e dilatam a pouco e + pouco a sua occupação e o seu dominio manso sobre o nosso territorio. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Um dos incidentes que acompanham a questão suscitada pela viagem do + capitão Cameron é a revelação feita por este viajante de que as + auctoridades portuguezas no interior da Africa não obstam ao trafico dos + escravos, que ainda ali vigora. +</p> +<p> + Como é que nós respondemos á denuncia d'este facto? Respondemos negando + a asseveração do sr. Cameron e fazendo protestos. +</p> +<p> + Para decidirmos se um tal modo de retorquir nos podia ser ou não + permittido, vejamos quem é o homem que nos acusa. +</p> +<p> + Cameron é o segundo europeu depois de Levingstone que modernamente + atravessou a Africa desde a costa oriental até a costa occidental, + levado por um intuito exclusivamente scientifico. D'esta viagem, que + durou quatro annos, trouxe o sr. Cameron o projecto de ligar a costa do + oriente com a do occidente por meio da navegação fluvial, aproveitando + as relações hydrographicas do rio Congo e do Zambese, o primeiro dos + quaes desemboca de um lado no Zaire e o outro do lado opposto, ao sul de + Moçambique. +</p> +<p> + Durante esses quatro annos passados entre selvagens, o capitão Cameron + parte de Bogamoyo em frente de Zanzibar, passa em Rehenneko, atravessa o + paiz de Ounyanyembe, o paiz de Ugara, o Ujiji, o lago Tanganyika, o + mercado de Nyaugwe, o estado de Urua, a Ponta do Lenho, desce as margens + do Congo, toca em Benguela, chega finalmente a Loanda. Os companheiros + de viagem que haviam saido de Inglaterra para o acompanharem—o doutor + Dillon, Moffat sobrinho de Levingstone, o artilheiro Murphy, não podem + seguil-o a mais do começo d'essa longa e perigosa expedição. Adoecem + successivamente todos. Moffat morre em Bogamoyo. Em Ounyanyembe + apparecem-lhe os homens de Levingstone trazendo o cadaver do explorador + que o precedera. Então Murphy e Dillon, ambos gravemente enfermos, + desistem de continuar essa immensa viagem e regressam com o corpo de + Levingstone para Zanzibar. Dillon morre no caminho. +</p> +<p> + Cameron, só, sem nenhum outro companheiro europeu, armado de uma + clavina, seguido por uma escolta de negros, prosegue, caminhando + atravez de regiões inexploradas e desconhecidas, sob um clima mortifero, + deixando atraz de si, marcado com a morte dos seus camaradas e cada um + dos primeiros estadios da sua portentosa peregrinação. +</p> +<p> + Não sabemos quem era Cameron ao partir. Admittimos que saisse da + Inglaterra com a educação commum de um simples tenente da armada + britanica. Mas dizemos que uma viagem como a que elle fez, e nas + condições em que a fez, basta para retemperar uma alma e para formar um + caracter. Um tal homem não mente. N'elle a mentira seria a refutação de + todos os principios do nosso aperfeiçoamento, seria a violação de todas + as leis da natureza humana. +</p> +<p> + Nada mais lastimosamente ridiculo do que a indignação patriotica de + qualquer dos nossos politicos, chupando auctoritariamente um cigarro no + Gremio ou á porta da Casa Havaneza, bombardeando a atmosphera com balas + de fumo, e desmentindo o homem mais competente que hoje existe no mundo + para nos informar do que se passa em Africa! +</p> +<p> + O que Cameron disse ácerca da escravatura africana na conferencia feita + em Londres foi o seguinte: +</p> +<p> + «Cerca da linha de separação das bacias do Zambese e do Congo fomos + retardados no primeiro acampamento por causa da caça aos escravos + fugidos. Quando pela manhã me preparava para partir, chega um mensageiro + dizendo-nos: <i>Não partaes; Kouaroumba vae chegar com os seus escravos</i>. + Depois do meio dia chegou effectivamente Kouaroumba com uma fila de + cincoenta ou sessenta infelizes mulheres, carregadas com a presa, + trazendo algumas os seus filhos nos braços. Estas mulheres representavam + pelo menos a ruina e a destruição de quarenta ou cincoenta aldeias e a + matança d'aquelles dos seus habitantes masculinos que não conseguiram + refugiar-se nos juncaes para ali viverem como podessem ou morrerem de + fome. É para mim fóra de duvida que estas cincoenta ou sessenta escravas + representam mais de 500 individuos mortos na defeza do seu lar ou + acabando mais tarde de inanição. As mulheres a que me refiro vinham + presas umas ás outras pela cinta por meio de cordas cuidadosamente + atadas. Quando ellas affrouxavam na marcha, batiam-lhes + desapiedadamente. Os traficantes portuguezes, negros ou mestiços são + muito brutaes; os arabes pelo contrario tratam geralmente bem os + escravos. Os negros caçados como estas mulheres no interior da Africa + não são em geral levados para a costa. Vão para Sakaleton, onde por + varios motivos a população é rara e são mui procurados os escravos. São + vendidos por marfim, que os traficantes trazem para a costa.» +</p> +<p> + Estas palavras são perfeitamente explicitas e terminantes. +</p> +<p> + Persiste com todos os seus horrores no interior das nossas possessões da + Africa o trafico dos escravos. Emquanto se não provar manifestamente o + contrario esta é que é a verdade, verdade referida pelo sr. Cameron, já + anteriormente ennunciada pelo viajante francez o sr. Jocolliot, + confirmada pelo sr. Young, explorador inglez, e ultimamente, mesmo em + Lisboa em uma carta publicada no <i>Progresso</i> pelo sr. Pinheiro Bayão, + que esteve por algum tempo em Africa empregado do Estado. +</p> +<p> + Para factos d'esta ordem os protestos de toda a imprensa +<a href="#note-1"> +<sup class="small" id="note_return_1">1</sup></a> + e de todo o + parlamento, por mais unanimes que elles sejam, não teem a natureza de + uma refutação nem o caracter de uma resposta, são uma pura evasiva + compacta. +</p> +<p class="foot"> +<a href="#note_return_1"><sup id="note-1">1</sup></a> + Um unico periodico, de que tenhamos noticia, o <i>Seculo</i>, de + Coimbra, tomou a defeza do capitão Cameron em um artigo poderosamente + escripto pelo sr. Correia Barata. +</p> +<p> + A primeira noticia dada em Portugal da viagem de Cameron foi objecto de + uma sabia exposição feita á primeira classe da Academia das Sciencias + pelo fallecido naturalista o dr. Bernardino Antonio Gomes. O resultado + d'essa exposição dos serviços prestados pelo viajante inglez á + civilisação universal foi dirigir-se a Academia ao ainda então tenente + Cameron, agradecendo-lhe em nome da sciencia e em nome de Portugal a + contribuição valiosissima com que elle tinha cooperado para o progresso + da sociedade humana. +</p> +<p> + O governo, deliberando tomar officialmente conhecimento dos factos + referidos pelo capitão Cameron, não tinha senão uma resposta que + dar-lhe:—nomear uma commissão de inquerito que syndicasse + rigorosamente da cumplicidade dos funccionarios portuguezes no + menosprezo ou na contravenção das leis que aboliram a servidão. +</p> +<p> + Em quanto á camara dos srs. deputados, parece-nos que ella teria + procedido, pelo lado scientifico com mais logica, e pelo lado patriotico + com mais tacto, se em vez das protestações que iniciou houvesse seguido + o exemplo que lhe fôra dado pela Academia e agradecesse simplesmente ao + sr. Cameron as informações que este lhe prestára. +</p> +<p> + D'esse modo teria a camara dos sr. deputados evitado receber do <i>Times</i> + a mais dura e humilhante lição que por via da penna de um jornalista se + pode inflingir a uma sociedade. +</p> +<p> + O preconceito do patriotismo é o mais funesto de todos os preconceitos + sociaes sempre que elle nos leva a trahir a verdade. Manter na opinião + publica a mentira é violar o progresso da humanidade pelo modo mais + sacrilego e mais nefando. A decomposição em que se acha a governação e a + politica em Portugal deve-se principalmente á fraqueza dissolvente dos + caracteres publicos em testemunhar a verdade. Todo aquelle que por meio + da sua palavra ou por meio da sua penna não tem o preciso valor para + ennunciar a sua inteira opinião é um traidor da civilisação e um + perigoso inimigo do genero humano. Não queremos para a nossa + consciencia de escriptor o remorso d'essa voluntaria culpa, e é por isso + que dizemos aos srs. deputados: +</p> +<p> + A verdade, meus senhores, é o que vos disse o <i>Times</i>. «A questão, como + diz o referido periodico, não é se Portugal prestou serviços á causa do + progresso africano, nem se os estadistas foram estudiosamente polidos na + sua linguagem tratando com uma nação alliada e amiga; a questão é se os + factos são ou não são como recentes viajantes affirmaram que eram. Que o + commercio da escravatura na Africa central seja feito mui largamente por + negociantes portuguezes e sob a protecção da bandeira portugueza é + accusação que pode ser refutada, não pela linguagem de uma indignação + ficticia ou real, não por patrioticas reminiscencias, nem por uma + referencia a cumprimentos diplomaticos, mas sim deixando-se de permittir + que haja materia para que a accusação continue. Sabemos quanto Portugal + tem feito no papel para acabar a escravatura, e conhecemos tambem o + pouco effeito que as suas energicas declarações produziram.» +</p> +<p> + Os quatro milhões de vozes de que o paiz inteiro pode dispor, a + protestarem todas perante o universo, não poderão convencer um só homem + de que a verdade seja differente do que é. A declamação n'este ponto é + completamente inutil com outro qualquer fim que não seja um puro + exercicio de eloquencia nacional. +</p> +<p> + Por tal modo, meus senhores, não julgueis contribuir para a civilisação. + Vós contribuis apenas para o <i>Peculio de Oradores</i>, do sr. João Felix. +</p> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da +Politica, das Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL *** + +***** This file should be named 16219-h.htm or 16219-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/1/6/2/1/16219/ + +Produced by Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal, Cláudia +Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed +Proofreading Team. + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you +do not charge anything for copies of this eBook, complying with the +rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose +such as creation of derivative works, reports, performances and +research. They may be modified and printed and given away--you may do +practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project +Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement +and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic +works. See paragraph 1.E below. + +1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" +or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project +Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the +collection are in the public domain in the United States. If an +individual work is in the public domain in the United States and you are +located in the United States, we do not claim a right to prevent you from +copying, distributing, performing, displaying or creating derivative +works based on the work as long as all references to Project Gutenberg +are removed. Of course, we hope that you will support the Project +Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by +freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of +this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with +the work. You can easily comply with the terms of this agreement by +keeping this work in the same format with its attached full Project +Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. + +1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern +what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in +a constant state of change. If you are outside the United States, check +the laws of your country in addition to the terms of this agreement +before downloading, copying, displaying, performing, distributing or +creating derivative works based on this work or any other Project +Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning +the copyright status of any work in any country outside the United +States. + +1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: + +1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate +access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently +whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the +phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project +Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, +copied or distributed: + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + +1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived +from the public domain (does not contain a notice indicating that it is +posted with permission of the copyright holder), the work can be copied +and distributed to anyone in the United States without paying any fees +or charges. If you are redistributing or providing access to a work +with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the +work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 +through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the +Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or +1.E.9. + +1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted +with the permission of the copyright holder, your use and distribution +must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional +terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked +to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the +permission of the copyright holder found at the beginning of this work. + +1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm +License terms from this work, or any files containing a part of this +work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. + +1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this +electronic work, or any part of this electronic work, without +prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with +active links or immediate access to the full terms of the Project +Gutenberg-tm License. + +1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, +compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any +word processing or hypertext form. However, if you provide access to or +distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than +"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version +posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), +you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a +copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon +request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other +form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm +License as specified in paragraph 1.E.1. + +1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, +performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works +unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. + +1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing +access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided +that + +- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from + the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method + you already use to calculate your applicable taxes. The fee is + owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he + has agreed to donate royalties under this paragraph to the + Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments + must be paid within 60 days following each date on which you + prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax + returns. Royalty payments should be clearly marked as such and + sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the + address specified in Section 4, "Information about donations to + the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." + +- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies + you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he + does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm + License. You must require such a user to return or + destroy all copies of the works possessed in a physical medium + and discontinue all use of and all access to other copies of + Project Gutenberg-tm works. + +- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any + money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the + electronic work is discovered and reported to you within 90 days + of receipt of the work. + +- You comply with all other terms of this agreement for free + distribution of Project Gutenberg-tm works. + +1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm +electronic work or group of works on different terms than are set +forth in this agreement, you must obtain permission in writing from +both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael +Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the +Foundation as set forth in Section 3 below. + +1.F. + +1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable +effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread +public domain works in creating the Project Gutenberg-tm +collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic +works, and the medium on which they may be stored, may contain +"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or +corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual +property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a +computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by +your equipment. + +1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right +of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project +Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project +Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all +liability to you for damages, costs and expenses, including legal +fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT +LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE +PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE +TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE +LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR +INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH +DAMAGE. + +1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a +defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can +receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a +written explanation to the person you received the work from. If you +received the work on a physical medium, you must return the medium with +your written explanation. The person or entity that provided you with +the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a +refund. If you received the work electronically, the person or entity +providing it to you may choose to give you a second opportunity to +receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy +is also defective, you may demand a refund in writing without further +opportunities to fix the problem. + +1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth +in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO OTHER +WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO +WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. + +1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied +warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. +If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the +law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be +interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by +the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any +provision of this agreement shall not void the remaining provisions. + +1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. To +SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any +particular state visit https://pglaf.org + +While we cannot and do not solicit contributions from states where we +have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition +against accepting unsolicited donations from donors in such states who +approach us with offers to donate. + +International donations are gratefully accepted, but we cannot make +any statements concerning tax treatment of donations received from +outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. + +Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation +methods and addresses. Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + +*** END: FULL LICENSE *** + + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/16219-h/images/devil.png b/16219-h/images/devil.png Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..13a77a6 --- /dev/null +++ b/16219-h/images/devil.png diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize +this eBook outside of the United States should confirm copyright +status under the laws that apply to them. diff --git a/README.md b/README.md new file mode 100644 index 0000000..24a39cc --- /dev/null +++ b/README.md @@ -0,0 +1,2 @@ +Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for +eBook #16219 (https://www.gutenberg.org/ebooks/16219) |
